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FORMAÇÃO SOCIAL DO BRASIL I

ESCRAVIDÃO
E

RACISMO
[PROF. FELIPE CORRÊA]
Abdias do Nascimento (1914-2011)

 Artista e professor brasileiro


 Ativista dos direitos humanos
dos negros (movimento negro)
 Professor emérito/titular da
Universidade do Estado
de Nova York
 Conhecido por seus estudos sobre a
situação dos negros no Brasil
Roberto da Matta (1936 -- )

 Antropólogo brasileiro
 Historiador (UFF), especialização em
Antropologia Social (UFRJ)
 Mestrado e doutorado em Harvard
(1969 e 1971)
 Professor da PUC-RJ
 Professor emérito da Universidade
de Notre Dame (EUA)
 Ampla produção intelectual no
campo da Antropologia
Jessé de Souza (1960 -- )

 Sociólogo brasileiro
 Formado em Direito (UnB), mestre
e doutor em sociologia (UnB e
UNI-HEILDELBERG, Alemanha)
 Professor titular da UFABC
 Ampla produção intelectual no
campo da Sociologia: classes
sociais, teoria social, sociologia
política
Escravidão e racismo
na formação social do Brasil
Formação social brasileira

 Escravidão e racismo como principais elementos


da formação social brasileira
 Escravidão como principal instituição colonial, englobando
todas as outras (economia, política, justiça, família)
 Desumanização dos escravos -> Dominação
em todos os níveis
 Racismo aberto e, ao longo do tempo, disfarçando-se

 Escravidão foi peculiaridade em relação a Portugal

 Nossa herança não é a herança dos portugueses,


mas a herança da escravidão
 Em nossa história, fator racial determina posição social
Formação social brasileira

 Escravidão e racismo determinantes para entender


nosso passado e nosso presente
Elementos que atravessam os séculos e que ainda hoje
encontram-se presentes em nossa sociedade

 Formação social do Brasil como resultado de:


1.) Sistema hierarquizado real, concreto
e historicamente dado
2.) Profunda legitimação ideológica
Sistema hierarquizado real
Bases da colonização

 Portugueses numa empreitada colonizadora,


comercial e extrativista, da atividade agrícola

 Bases da colonização:
 Econômica: monocultura agrícola baseada
no trabalho escravo
 Social: família patriarcal encabeçada pelo senhor português
casado com uma mulher não europeia (frequentem. indígena)
 Familiar: senhor e sua família nuclear + enorme
quantidade de bastardos e dependentes + escravos
domésticos e escravos da lavoura
Bases da colonização

 Política e cultural: particularismo da família patriarcal


(senhor como autoridade absoluta em seus domínios)

 Particularidade: Filhos do senhor europeu (assim como os


muitos filhos dos padres) com escravas podiam ser
incorporados formalmente às famílias (“europeizados”),
usufruindo de reconhecimento, heranças etc.
Escravidão no Brasil

 Desde o “descobrimento” (1500), a escravidão (de


indígenas e negros) foi um traço fundamental
 Em 1530, o negro escravo proveniente da África
já estava presente em solo brasileiro
 Em 1535, seu comércio foi regularmente constituído
Escravos no nordeste

 Escravos trabalham em todo o Brasil; no início,


especialmente na cana-de-açúcar (nordeste)
Escravos no sudeste

 Durante os séculos 18 e 19, o foco escravista


desloca-se mais para o sudeste do país
 Ouro e diamante em Minas Gerais
 Café no Rio de Janeiro e São Paulo

Escravos na colheita do café; Rio de Janeiro, 1882


Condição social do escravo africano

 Desumanização completa dos negros


 Escravos a preços baixos e de fácil substituição
 Dedicam-se ao trabalho braçal, muitíssimo pesado,
em péssimas condições de trabalho e moradia
 Sem descansos semanais, jornadas imensas,
falta de comida, de higiene
 Vida útil de no máximo 7 ou 8 anos
 Deformações por excesso de trabalho pesado

 Enormes taxas de mortalidade (infantil chega a 88%)

 Para senhores, era mais fácil comprar outros do


que tratar problemas, doenças etc.
 Aleijamento corporal pelas punições e torturas
A escravização e o genocídio dos indígenas

• Escravização • Genocídio
• Extração de pau-brasil • 90% assassinados por
• Principalmente no início doenças e homicídios
da colonização
O papel dos Bandeirantes

• Descendentes de portugueses
que buscavam riquezas e mão de
obra no território brasileiro
• Manuel Mourato Coelho
 Bandeirante paulista
 Participou em 1628 das
expedições de conquista do Guaíra
com Raposo Tavares, Pedroso de
Morais e Fradique Coutinho
 Em 1629 bate um “recorde”:
ataca uma missão Guarani e volta a
São Paulo com 20 mil indígenas
escravizados
Violência contra as mulheres negras

 Uma sociedade formada pelo estupro


das mulheres negras
 Violação brutal como meio constante de prazer
dos colonizadores (especialmente as mulatas)
 Crime tem continuidade como prática normal da elite branca

 Filhos dos senhores iniciam-se sexualmente com


as negras trabalhadoras
 Senhores mantêm prostitutas negras como meio de renda
Crueldade e sadismo

 Crueldade e mesmo sadismo são traços constitutivos


das relações entre brancos e negros (e também entre
brancos e indígenas)
 A dor alheia (dos escravos) não é reconhecida; não há
empatia por parte dos senhores brancos
 Em muitos casos, eles e seus descendentes têm
prazer com essa dor
 Esse valor é transmitido de geração em geração;
não raro, ele é aprovado ou tolerado pelos brancos
Crueldade e sadismo

 Tal crueldade se reproduz, em vários casos, com


esposas e filhos dos próprios senhores
 A ideia de que o senhor, no Brasil, era um “senhor
benevolente”, portanto, é falsa

 A própria literatura brasileira retratou


esse processo
 Machado de Assis (em Memórias
Póstumas de Brás Cubas), por exemplo,
assim expõe um caso narrado pelo filho
de um senhor:
“Um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma
colher de doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o
malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito
da travessura, fui dizer a minha mãe que a escrava é que estragara
o doce ‘por pirraça’; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um
moleque de casa, era meu cavalo de todos os dias; punha as mãos
no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu
trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava-
lhe mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, – algumas vezes
gemendo, – mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito,
um – ‘ai, nhonhô!’ – ao que eu retorquia: – ‘Cala a boca, besta!’ –
Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas
graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscão nos braços
das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras
de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões
de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande
admiração; e se às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o
por simples formalidade: em particular dava-me beijos.”
A resistência dos escravos

 Protesto negro
 Suicídio, crime, fuga, insurreição, revolta

 Quilombos (Palmares, Alagoas, 1630-1697, Zumbi e Dandara)

 Banzo (fim da vontade de viver)

Zumbi dos Palmares Dandara


Quilombo dos Palmares (Alagoas, 1630-1697)
Papel assumido por vários mulatos

 Entre a casa grande e a senzala, o mulato (mestiço)


frequentemente prestou serviços importantes
às elites dominantes
 Durante a escravidão, ele foi capitão-do-mato, feitor
(capataz que inspeciona e pune os escravos), foi usado
em outras tarefas de confiança dos senhores, e, mais
recentemente, o erigiram como um símbolo da nossa
"democracia racial"
 Nele se concentraram as esperanças de pôr fim à
"ameaça racial" representada pelos africanos
 Negros não mulatos também cumpriram esse papel
Abolição e atentado contra a história

 Abolição da escravatura em 13 de maio de 1888


Problemática: Contexto econômico e internacional X
Princesa Isabel X Lutas dos escravos
 Em 1891, Rui Barbosa (ministro das Finanças) mandou
queimar todos os documentos referentes à escravidão
 Dificuldades (estimativa 5-9 milhões escravos africanos)

Missa pela Abolição da Escravidão, Brasil, 1888; princesa Isabel ao centro


O branqueamento dos brasileiros

 Racismo da Igreja e das elites brasileiras


 Negros vistos como raça naturalmente inferior
 Por um lado, senhores se beneficiam da condição
dos negros; por outro, querem e investem no
“branqueamento dos brasileiros”
 Incentivo à imigração de europeus brancos e ao
crescimento de mulatos
 Com isso, pensavam que a raça negra desapareceria
em vista do progressivo clareamento da população
O branqueamento dos brasileiros

 O escritos José Veríssimo


(1857-1916, membro da
Academia Brasileira de Letras):

“Como nos asseguraram os


etnógrafos, e como pode
ser confirmado à primeira vista, a
mistura de raças é facilitada pela
prevalência do elemento superior.
Por isso mesmo, mais cedo ou
mais tarde, ela vai eliminar a raça
negra daqui. É óbvio que isso já
começa a ocorrer.”
O branqueamento dos brasileiros

 Decreto de 28 de junho de 1890:


“É inteiramente livre a entrada, nos portos da República, dos
indivíduos válidos e aptos para o trabalho .. . ( ... ) Excetuados
os indígenas da Ásia ou da África, que somente mediante
autorização do Congresso Nacional poderão ser admitidos.”

 Esse projeto perdurou e teve efeitos concretos; em


termos relativos, os brancos crescem bastante de
1870 a 1950, e muitos mulatos, constrangidos de se
considerarem negros, declaram-se brancos
Abandono pós-abolição

 Abolição da escravidão -> mercado competitivo


 Modernização (séc. 19): Mercado capitalista e Estado
burocrático centralizado

 Incentivo à imigração de europeus brancos


 Recebem terras, incentivos, instrução
 Nutrem, em função de sua trajetória, outra relação
com o trabalho (orgulho, apreço)

 Abandono completo do negro


 Não recebem terras, educação ou reparação
 Em função dessas condições, dificuldades na
competição com europeus
Legitimação ideológica
O papel da Igreja Católica

 Desde o início da colonização, a escravização de negros


e indígenas recebeu respaldo da Igreja Católica, que
chegou com os portugueses
 É ela que concede o direito à exploração da terra e à
escravização de negros e indígenas
 Feita com base em uma totalidade de interesses morais,
econômicos, políticos e sociais
 Religião, política, comércio etc.

 Mas setores protestantes também contribuíram


nesse sentido
O papel da Igreja Católica

 Padre Antonio Vieira


(1608-1697):
“Um etíope que se lava nas
águas do Zaire, fica limpo, mas
não fica branco; porém, na do
batismo sim, uma coisa e
outra.” (1662)
Racionalizando e justificando a dominação

 Especialmente com a Independência (1822), e depois


com a República (1889), as elites buscam racionalizar,
justificar e legitimar sua posição na hierarquia social
 Pretendem forjar uma identidade

 Criação de uma ideologia para apagar ou minimizar os


impactos da escravidão e do racismo no Brasil
 Discursos legitimadores:
 “Senhor benevolente”, “processo menos duro que em
outros países” (comparação com os Estados Unidos)
 “Malandragem do negro” e “indolência (preguiça) do índio”

 “Eram negros que escravizavam negros”

 “Integração harmônica e complementar”


“Democracia Racial”?

-> Resultado: Mito da “Democracia racial”


 “Culturalismo racista conservador” (J. Souza)
 “‘Fábula das três raças’ ou o racismo à brasileira” (R. Matta)

 Brasil é singular: encontro harmônico e


complementar de três raças (brancos, negros e índios)
 Essas três raças convivem sem conflitos, desfrutando
das mesmas oportunidades, sem interferência de sua
origem étnico-racial

 Unificação biológica do país prolongada em Umbanda,


cordialidade, carnaval, comida, beleza, mulher (e mulata)
e música
A “Fábula das Três Raças”

 Discurso formulado e difundido acerca da


formação sociocultural do Brasil:

 Nosso país foi formado por três raças:


 Portugueses (brancos), negros e índios

 Traços marcantes dessa formação:


 Miscigenação e integração
 Hierarquização
Versão pessimista (conservadores)

 Derivação 1: Visão “pessimista”


 O povo brasileiro é o resultado de:
 Preguiça do índio / Melancolia (tristeza) ou malandragem do
negro / Cupidez (ambição) e estupidez do português (branco)
 Dedução: “Drama brasileiro”: a relação entre as três raças
criou um povo de caráter ambíguo
 Atraso econômico-social / Indigência cultural /
Autoritarismo político
Versão otimista (progressistas)

 Derivação 2: Visão “otimista”


 Integração harmoniosa e complementar
 “Brasil país da miscigenação”, “aqui ninguém sabe
quem é negro e quem não é”, “integração racial
harmoniosa”, “não existe racismo no Brasil”,
“democracia racial”, etc.
Ideologia abrangente, identidade nacional

 Ideologia abrangente, com enorme penetração


 Povo, intelectuais, políticos, acadêmicos
(esquerda e direita)

 “Ideologia dominante” e fundamento importante


da identidade nacional
 Determinismo biológico sem comprovação científica
 Problema derivado das “teorias” do séc. XIX
Branco, negro e indígena

 É óbvio que esses três elementos (branco, negro,


indígena) foram importantes na formação social do Brasil

 Mas as explicações do Brasil que partiram disso,


fundamentadas na “Fábula das três raças”, não
têm qualquer respaldo histórico
Brancos, negros, indígena e miscigenações

Branco

Mulato Mameluco

Negro Indígena

Cafuzo
Chancela do mundo “científico” da época

Arthur de Gobineau
(francês, 1816-1882)
 Pai do racismo moderno: influência
Hittler, Ku-Klux-Klan etc.
 Popularização da “teoria” do
racialismo: a humanidade é dividida em
raças biologicamente determinadas, e as
características dessas raças explicam e
justificam as hierarquias entre elas
 Cada raça ocupa um lugar na história
da humanidade
 Grande influência nos meios
intelectuais e populares
Teoria racialista de Gobineau

• Raças e características segundo a “teoria” do racialismo

Negra Amarela Branca

Intelecto Débil Medíocre Vigoroso

Propensões animais Muito fortes Moderadas Fortes

Parcialmente Comparativamente Altamente


Manifestações morais
latentes desenvolvidas cultivadas

• “Justificativa” da dominação dos brancos sobre os negros


• Afirmação da superioridade da raça branca (em função da
inteligência e moralidade)
Gobineau: fontes teórica do racismo brasileiro

 A. de Gobineau
 Diplomata no Brasil (séc. XIX)
 Brasil instável e sem futuro em função da miscigenação
 “Cruzamento de espécies distintas”

 Brasil não tem futuro


 Brancos perdendo suas qualidades para índios e negros
(miscigenação)
Dominação brutal

 Escravidão como um sistema hierarquizado real,


concreto e historicamente dado; tem profundo impacto
na formação social do Brasil
 Imensa desigualdade
 Não há igualdade perante a lei ou ideais igualitários
 Não há necessidade de segregar mestiço, mulato, indígena e
negro; porque as hierarquias asseguram a dominação dos
brancos
Legitimação eficaz

 Ao mesmo tempo, a “Fábula das Três Raças” foi


profundamente eficaz em criar uma narrativa que:
 Vem apagando/minimizando a história da escravidão
e do racismo de nosso passado
 Tem impedido toda e qualquer autocrítica e medida
no sentido de modificar seus impactos
 Faz com que “novos senhores” tenham sua consciência
aliviada e possam continuar sua dominação (muitas
vezes, com concordância dos próprios dominados
Brasil X EUA
Brasil e EUA

 Dinâmicas distintas; possuem relação com


a estrutura social dos países

 Brasil: desigualdade instituída e na base da


ideologia/identidade nacional
 Integração hierarquizada
 EUA: ideologia/identidade em torno da igualdade
 Segregação violenta
Brasil e EUA

-> No Brasil havia maior relação entre raças não porque


há certo traço cultural dos portugueses neste sentido
(tese Freyre), mas porque branco e negro têm lugar
certo e sem ambiguidades dentro de uma totalidade
hierarquizada
Brasil e EUA
EUA Brasil
Raças como realidades individuais / isoladas Todo que cria leis e todo nacional
(jamais se encontram)
“Todos iguais perante a lei” Desigualdade perante a lei
Preconceito de origem Preconceito de marca
Não admite gradações Há gradações e nuances
* Se tem algum sangue negro é negro * Características físicas (pele, cabelo, lábios,
(nunca mais muda de posição) corpo etc.) não são exclusivas na classificação
social
*Ex. Mulato rico que pode ser classificado
como branco
Igualdade perante a lei, desigualdade Desigualdade perante a lei e racial
(permanente) de sangue

• EUA: realidade + igualitária -> temem miscigenação


(risco homogeneidade)
• Brasil: realidade + desigual -> dizem comemorar
miscigenação (todo mundo é igual, “não há racismo”)
Obrigado!

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