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coluna
Bianca Santana
Marcia Tiburi
reportagem
O racismo nos relacionamentos inter-raciais
Ideologia oculta
MARCIA TIBURI
Um autor que, à maneira dos românticos do século 18, escreveu grande parte de
sua obra na forma de fragmentos. Com exceção da tese sobre o drama barroco,
reprovada pela banca na Universidade de Frankfurt, sua obra se desenvolve na
forma do ensaio, que permite grande liberdade para se abordar um tema de
forma fragmentária. Assim são as magníficas crônicas da Infância berlinense,
assim seus ensaios mais conhecidos, como “O narrador” e “Experiência e
pobreza”, assim as dezoito Teses sobre o conceito de história e, em especial, o
belo ensaio sobre Baudelaire, cuja publicação – que teria rendido algum dinheiro
a Benjamin, na época vivendo miseravelmente em Paris – foi recusada por
Adorno e Horkheimer, já refugiados nos Estados Unidos.
Outra característica marcante na obra de Benjamin é seu interesse pelas
cidades. A Infância berlinense é rememorada pelo autor na forma de pequenas
passagens – lembremo-nos de que Passagens é o título do grande projeto
inacabado de Benjamin, cujo nome foi inspirado nas galerias comerciais
construídas em Paris como parte do projeto de Napoleão III de modernizar a
cidade, executado pelo prefeito Georges-Eugène Haussmann – e recantos da
cidade. A Berlim de Benjamin é toda descrita da perspectiva da criança míope:
atenta aos detalhes, a beleza das cores, aos recantos secretos do zoológico, aos
barulhos produzidos pelo trabalho doméstico no pátio interno da casa da avó.
Também são as coisas pequenas, modestas, que o impressionam na viagem a
Moscou, movido pela paixão por uma jovem comunista, Asja Lacis. A capital da
Rússia comunista comove o viajante através dos detalhes: as cores dos modestos
brinquedos de madeira vendidos nas ruas; o papagaio empoleirado no ombro da
vendedora de roupas íntimas; os bandos de meninos de rua que perambulam a
mendigar pelo centro da cidade. No entanto, através dessa observação miúda,
Benjamin admira a vivacidade das pessoas comuns, engrandecidas pelas
conquistas do primeiro período da vida revolucionária.
Nessa breve intervenção, escolho o ensaio Charles Baudelaire: um lírico no
auge do capitalismo – primeiro texto de Benjamin com o qual tive contato, nos
anos oitenta (do século passado...). É a última série de ensaios escrita por ele, na
qual o filósofo, exilado em Paris, segue as pegadas do poeta em busca dos
fragmentos do passado naquela cidade toda reconstruída de forma monumental
por iniciativa do prefeito Barão de Haussmann, no período napoleônico. De
forma análoga ao anonimato daquele que viria a ser consagrado (postumamente)
como o maior poeta da língua francesa, a publicação dos preciosos ensaios de
Walter Benjamin, enviados para a revista do Institute for Social Research foi
recusada pelos amigos frankfurtianos Adorno e Horkheimer, que a editavam
desde Nova York. Uma prova, a meu ver, de extrema insensibilidade de parte da
dupla, que não ignorava a penúria enfrentada pelo amigo na capital francesa e
também não entendeu a grandeza do ensaio não acadêmico de Benjamin. Prova
também, por outro lado, da desadaptação de Benjamin aos padrões acadêmicos
de pesquisa.
Talvez seja abuso interpretativo imaginar que o interesse de Benjamin por
Baudelaire passe por certa identificação com a condição em que viveu o poeta.
No entanto, é verdade que Benjamin viveu quase miseravelmente em Paris, para
onde fugiu em 1933 e onde ficou até a invasão nazista. “Vivo na expectativa de
que uma mensagem de má sorte caia sobre mim. Por enquanto, ainda me
aguento – exceto pelo fato de que não consigo me prevenir para o futuro”
escreve Benjamin em carta ao escritor Bernard von Brentano, em abril de 1942.
Durante o regime de Vichy (entre 1940-1944 o governo mudou-se para a
cidade de Vichy, a qual se tornou a capital de fato do Estado francês), aliado dos
nazistas, Benjamin esteve preso por um tempo em um campo de concentração.
Voltou a Paris, pouco antes da iminência da chegada das tropas de Hitler à
cidade, quando demorou a fugir com um pequeno grupo guiado pela jovem
combatente Lisa Fitko. Ao chegar a Port Bou, limite da França com a Espanha, o
grupo recebe a notícia de que a fronteira tinha sido fechada. Sem mais nenhuma
esperança, Benjamin toma em seu quarto uma cápsula de morfina que levava
para a possibilidade de ser capturado. Na manhã seguinte a fronteira foi reaberta.
O corpo de Walter Benjamin foi sepultado no pequeno cemitério da cidade
catalã. O trágico episódio faz lembrar o comentário familiar sobre o então
menino “azarado”. Perseguido pelo “corcundinha”, dizia carinhosamente a avó.
A má sorte de Baudelaire não fica atrás da de seu melhor leitor. Rejeitado
pelo segundo marido de sua mãe (um militar), o poeta deixou a casa familiar e
enfrentou uma vida miserável em Paris, onde morreu aos 46 anos. Se o corpo de
Benjamin jaz num pequeno cemitério de fronteira, os restos mortais de
Baudelaire se encontram em Montparnasse, no túmulo da família, onde seu
nome está inscrito em letras pequenas... “e o poeta Charles Baudelaire” abaixo
dos registros mais vistosos da mãe e do padrasto. Seus poemas sobre os
mendigos, os moradores de rua, os habitantes dos sótãos minúsculos na cidade
monumental, dão notícias da proximidade do poeta com esses personagens.
“Baudelaire conformou sua imagem de artista a uma imagem de herói”, escreve
Benjamin na abertura do ensaio “A modernidade”. Um herói trágico, diga-se,
que entregou a vida à poesia, prescindindo praticamente de tudo o mais.
Os traços que Benjamin valoriza em Baudelaire são intrigantes para o leitor
de expectativas românticas. Embora o poeta seja considerado pelo cânone como
o último romântico e o primeiro dos modernos, não é banal entender de que
romantismo se trata. No espaço que este breve ensaio me permite, posso resumir
o romantismo de Baudelaire com a frase citada pelo próprio Benjamin: ele
possuiria “a indolência natural dos inspirados”. Nada lhe interessava exceto a
poesia. O heroísmo romântico do poeta reside em sua resistência a aburguesar-
se, em sua escolha radical de viver como um clochard, “colhendo a poesia que
espalha(s) no chão”, para citar um belo verso de Chico Buarque. Um clochard
que se portava e se vestia como um dândi. Mas o dandismo do poeta estava
fadado ao fracasso: para Benjamin, “seu amor pelo dandismo não foi feliz. Não
tinha o dom de agradar, um elemento tão importante na arte de não agradar do
dândi”.
O pretenso dandismo de Baudelaire era inseparável da escolha de levar ao
extremo sua vocação – daí o aspecto trágico de sua vida. “Para viver a
modernidade”, escreveu Baudelaire, “é preciso ter uma constituição de herói”.
No entanto, nela não há lugar para o herói. “Nela o herói não cabe”, observa
Benjamin, ao ressaltar o desencanto que caracteriza os tempos modernos. “Ela
não tem emprego algum para esse tipo (...). Pois o herói moderno não é herói –
apenas representa o papel do herói. A modernidade heroica se revela como uma
tragédia onde o papel do herói está disponível”. Diante disso Benjamin, em uma
pirueta ardilosa que é bem do seu estilo, cita Jules Lemaître para concluir que o
dandismo do poeta é “o último brilho do heroico em tempos de decadência”.
O elemento que Benjamin destaca na poesia de Baudelaire, na contramão
do que uma leitura romântica poderia esperar, é o elemento do choque. O tema
da velocidade que caracteriza a vida moderna, presente em outros de seus
ensaios é destacado na leitura dos poemas de Baudelaire.
*Vê-se um trapeiro cambaleante, a fronte inquieta,
Rente às paredes a esgueirar-se como um poeta,
E, alheio aos guardas e alcaguetes mais abjetos,
Abrir seu coração em gloriosos projetos.
Juramentos profere e dita leis sublimes,
Derruba os maus, perdoa as vítimas dos crimes,
E sob o azul do céu, como um dossel suspenso,
Embriaga-se na luz de seu talento imenso.
Toda essa gente afeita às aflições caseiras,
Derreada pela idade e farta de canseiras,
Trôpega e curva ao peso atroz do asco infinito,
Vômito escuro de um Paris enorme e aflito,
Retorna, a trescalar do vinho as escorralhas,
Junto aos comparsas fatigados das batalhas,
Os bigodes lembrando insígnias espectrais.
Os estandartes, os pendões e arcos triunfais
Ou o choque da brutal transformação da cidade antiga, demolida para dar
lugar à monumental “cidade-luz”:
*Paris muda! mas nada em minha nostalgia
Mudou! novos palácios, andaimes, lajedos,
Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria,
E essas lembranças pesam mais do que rochedos.
As transformações da velha Paris não alteraram a melancolia do poeta, que
busca na alegoria um destino simbólico para o que se perdeu. A alegoria foi
também um tema caro a Benjamin, que a analisa em seu estudo pós-doutoral –
que seria recusado – de admissão à Universidade de Frankfurt, em 1925, como
professor, A origem do drama trágico alemão. Brevemente: para Benjamin, o
Romantismo (que na Alemanha surge no século 18) com sua fome de absoluto,
teria dominado toda a filosofia da arte, tornando “antiquado” o uso da alegoria
que caracteriza o Barroco. O “simbolismo concreto” da alegoria, símbolo
artístico por excelência no entender de Benjamin, associa-se ao que os antigos
consideravam como “sinais dos deuses”, já que na alegoria existiria uma
correspondência completa, ponto por ponto, entre o “simbolizante”, suporte do
símbolo, e aquilo que é simbolizado. Assim, quando Baudelaire escreve “J’ai
plus de souvenirs que si j’avais mil ans” (Eu tenho mais recordações do que há
em mil anos), é de uma alegoria e não de uma metáfora que se trata. O poeta
afirma que sim, ele tem mais lembranças do que teria se vivesse mil anos e não
(no caso da metáfora), que tem lembranças como se tivesse mil anos.
Apenas para dar mais um exemplo, vejamos o final do poema “Obsession”:
*Me agradarias tanto, ó noite, sem estrelas
Cuja linguagem é por todos tão falada!
O que eu procuro é a escuridão, o nu, o nada!
Mas eis que as trevas afinal são como telas,
Onde, jorrando de meus olhos aos milhares,
Vejo a me olharem mortas faces familiares.
O que agradaria ao poeta, na “linguagem” da noite? Ao buscar o vazio, o
negro, o nu, o eu poético encontra, não o brilho das estrelas, mas os seres
invisíveis, impossíveis de se ver a olhos nus. O poeta declara seu fascínio por um
objeto perdido, cujo brilho lhe acena de tão longe quanto a luz das estrelas.
Como não pensar aqui no objeto perdido da psicanálise, causador de desejo?
Objeto que também pode ser a cidade, aquela que desapareceu sob os escombros
da reforma promovida por Napoleão III e que mais tarde Benjamin veio a buscar
para compor com elas o livro interminável, o livro fragmentado e impossível das
Passagens.
*Trecho de poemas extraídos de As flores do mal, tradução Ivan Junqueira,
Nova Fronteira, 1985
Crítica da cultura e do progresso
MARTHA D’ANGELO
Compor uma coleção consiste num exercício constante de montar uma narrativa,
não só através do ato de selecionar os objetos, mas também de eleger quais deles
serão exibidos. Trata-se de uma ação atravessada pela dialética da reificação e da
reanimação como lembra Hal Foster em “Arquivos da arte moderna”, de 2009. O
colecionador é o mediador da circulação dos objetos, movimentando seu ciclo de
vida e morte (exibição e apagamento). É aquele que não apenas coleta, mas
também o que investe suas memórias e afetos nesse corpo externo, construindo
nele a extensão de sua existência.
Essa prática de colecionar foi, em diferentes textos, analisada por Walter
Benjamin como um fenômeno da modernidade presente tanto no habitar
burguês, quanto no ambiente urbano. O burguês coleciona objetos no interior de
sua moradia como um antídoto ao anonimato da cidade, ambiente marcado pelas
multidões, pelo apagamento da individualidade e pela intensa transformação
dada pelas reformas urbanísticas como as de Paris no século 19 por Hausmann.
Ele se fecha em sua casa-estojo. Como Benjamin descreve no texto “Experiência
e pobreza”, de 1933, essa relação entre indivíduo e objeto é representativa, o
burguês investe memórias e afetos nele, por isso, se encoleriza ao ver seus
bibelôs quebrados, imagem que simboliza o apagamento de sua existência no
mundo. Habitar nessa condição burguesa significa deixar rastros.
Além do colecionador burguês, Benjamin identifica outra figura marcada
pelo hábito da coleção: o poeta que atua como um trapeiro. Baseia-se no trapeiro
descrito por Charles Baudelaire, indivíduo atraído pelo resto e pelos dejetos do
espaço urbano. A pintura O trapeiro (1869) de Eduard Manet mostra um homem
com as roupas puídas e sujas acompanhado de um pequeno acúmulo de dejetos.
Essa tela ilustra a imagem desse indivíduo à margem que ao caminhar pela
cidade monta seu arquivo a partir de tudo o que a cidade rejeitou. Observa esse
espaço a partir do fragmento, do abjeto. Como coloca Constance von Krüger em
“A coleção – um gesto poético: uma leitura benjaminiana sobre o colecionismo”,
dos Cadernos Benjaminianos: “Ao catar imagens e recolher impressões, de
maneira análoga à obtenção de itens pelo colecionador, o poeta inaugura um
elenco de fragmentos”.
É interessante pensar nessa figura do trapeiro como um indivíduo que
coleciona o que sobra, o que é pedaço, logo, não partindo do todo (conjunto).
Sobre esse ponto, Benjamin em “Desempacotando minha biblioteca: um
discurso sobre o colecionador”, de 1931, olha para o livro, o fragmento da
coleção, o objeto, e, a partir dele, tece uma reflexão sobre o ato de colecionar,
revisitando também a memória presente nesses objetos. Ao desempacotar seus
itens, Benjamin convida o leitor a adentrar na paisagem na qual ele se encontra,
ou seja, o canteiro de obras de sua biblioteca: “Devo pedir-lhes que se transfiram
comigo para a desordem de caixotes abertos à força, para o ar cheio de pó de
madeira, para o chão coberto de papéis rasgados, por entre pilhas de volumes”.
Nesse canteiro, Benjamin reflete sobre a ação de colecionar; cada livro o leva a
rememorar a história de sua aquisição, a excitação do ato de adquirir própria da
atmosfera dos leilões, e, principalmente, a tensão entre a ordem e a desordem
que atravessa o colecionador em seu incessante impulso de catalogar e finalizar
sua biblioteca, seja a partir de sua organização, ou pela aquisição de um novo
item que a atualize.
Benjamin propõe um olhar sobre a coleção não a partir de seu produto, a
biblioteca, mas sobre o que está por trás da imagem desse conjunto de livros
catalogados em estantes, homogeneizados pela ordenação de tema, título e autor.
O foco sobre o instante entre a ordem e a desordem, descrito por Benjamin,
permite uma leitura sobre a movimentação desses itens da coleção fugindo da
imagem da biblioteca como um mausoléu de objetos encerrado em seu passado,
tratando-a como um local de efeitos mnemônicos. Nesse texto, Benjamin
também chama atenção para a figura do colecionador que se empenha em
compor uma estante de livros sem ter lido os exemplares de sua coleção, da
mesma forma que coleciona porcelana de Sévres e não a usa diariamente. Ele
critica esse papel imóvel da coleção através de sua própria bibliofilia: “Por anos
a fio (...) minha biblioteca não consistiu de mais de duas ou três fileiras que
cresciam anualmente cerca de um centímetro apenas. Foi a sua fase marcial, em
que nenhum livro podia nela ingressar, sem que eu houvesse lido”. Benjamin
critica o colecionador que toma o objeto como inócuo e que estabelece uma
relação fetichista, ao obtê-lo, encerrando o ciclo de vida do objeto chumbando-o
em suas prateleiras ou cristaleiras onde essa coleção é exibida.
Na obra Terra de dois rios (Zweistromland, 1985), do artista alemão
Anselm Kiefer (1945), vê-se uma biblioteca formada por duzentos livros de
chumbo, dispostos em duas estantes de aço. O chumbo é um material pesado que
inviabiliza o simples ato de folhear e mover os livros. Ele atuaria da mesma
forma que o colecionador fossilizando sua coleção ao se relacionar com ela
apenas pela contemplação do acúmulo de volumes em suas estantes. Esse
trabalho de Kiefer oferece uma leitura sobre a neutralização da cultura e do
conhecimento e traz uma imagem para pensar a apropriação da biblioteca como
um mausoléu, um compêndio de restos de um passado fechado.
“Quando se quer designar uma pessoa, uma coisa antiquada, inútil fora de
uso, costuma-se dizer: ‘é uma peça de museu’.” Esse trecho de “Casas ou
museus?” (1958), da arquiteta Lina Bo Bardi, também serve de crítica aos
museus como mausoléus. Lina Bo Bardi foi responsável pelo projeto do Masp,
uma instituição que não se detém apenas na conservação das obras de seu
acervo. Trata-se de um museu que dialoga constantemente com o presente seja
através de sua arquitetura, seu vão livre aberto a diferentes apropriações políticas
e a atividades culturais, ou a exposições realizadas pelo museu que propõe um
revisitar do acervo refletindo sua ação no tempo agora. Um exemplo foi a
exposição “Acervo em transformação: mulheres à frente”, intervenção proposta
pelo museu na semana do dia internacional da mulher, 8 de março de 2019.
Nela, as obras dos artistas homens foram viradas e seus versos foram exibidos
em cavaletes de vidro, enquanto as produzidas pelas artistas mulheres eram
exibidas de frente. Essa imagem composta na galeria chamou atenção para a
disparidade entre gêneros na arte e também se propôs a dar visibilidade para a
produção dessas artistas mulheres pouco divulgadas pela história da arte. O
tratamento do acervo nessa proposição não toma a coleção como estática, não
lida com essas obras de modo a compor uma imagem do passado como ele
realmente foi, mas se apropriando dela e refletindo de que modo ela relampeja
no presente.
Outro fato que permite pensar a coleção no contexto atual é que sua
existência não está necessariamente condicionada a um espaço físico e a uma
instituição tal como um museu, na medida em que os itens colecionados não são
objetos e sim informação. A relação entre memória e arquivo através de novos
dispositivos eletrônicos e das redes sociais tem modificado a maneira como a
ação de arquivar atua no âmbito da cultura e dialoga com o presente. A produção
e a coleta de imagens feitas por usuários de redes sociais como o Instagram é um
potencial arquivo do cotidiano, um mosaico de impressões composto pelo que
resta da experiência, a fotografia. Coletar essas imagens e dispô-las em coleção,
assim como o trapeiro coleta o que restou no ambiente urbano, traz uma
possibilidade de lermos a atual atmosfera de ruína que vivenciamos marcada
pela proliferação de imagens de museus incendiados, desastres ambientais e
construções e projetos paralisados. Colecionar é um exercício de fazer ver.
Benjamin e a fantasmagoria
EDUARDO REBUÁ
A qualidade da luz sob a qual analisamos nossa vida tem efeito direto na forma
como vivemos, nos resultados obtidos e nas mudanças que desejamos provocar
por meio de nossa vida. É sob essa luz que damos forma às ideias que nos fazem
buscar nossa magia, para então torná-las realidade. Isso é a poesia como
iluminação, pois é através da poesia que nomeamos essas ideias que – até o
poema – não têm nome nem forma, estão prestes a nascer, mas já foram sentidas.
A destilação da experiência da qual a verdadeira poesia brota dá à luz o
pensamento, do mesmo modo que o sonho dá à luz o conceito, o sentimento dá à
luz a ideia, o conhecimento da à luz (precede) a compreensão.
Na medida em que aprendemos a suportar a intimidade da investigação e a
florescer dentro dela, na medida em que aprendemos a usar o resultado dessa
investigação para dar poder à nossa vida, os medos que dominam nossa
existência e moldam nossos silêncios começam a perder seu controle sobre nós.
Dentro de cada uma de nós, mulheres, existe um lugar sombrio onde cresce,
oculto, e de onde emerge nosso verdadeiro espírito, “belo/ e resistente como
castanha/ pilares se opondo ao (seu) nosso pesadelo de fraqueza” e de
impotência.
Esse nosso lugar interior de possibilidades é escuro porque antigo e oculto;
sobreviveu e se fortaleceu com essa escuridão. Dentro desse local profundo,
cada uma de nós mantém uma reserva incrível de criatividade e de poder, de
emoções e de sentimentos que ainda não foram examinados e registrados. O
lugar de poder da mulher dentro de cada uma de nós não é claro nem superficial;
é escuro, é antigo e é profundo.
Quando olhamos a vida ao modo europeu como apenas um problema a ser
resolvido, confiamos exclusivamente em nossas ideias para nos libertar, pois
elas, segundo nos disseram os patriarcas brancos, são o que temos de valioso.
No entanto, quando entramos em contato com nossa ancestralidade, com a
consciência não europeia de que a vida, como situação, deve ser experimentada e
que devemos interagir com ela, aprendemos cada vez mais a apreciar nossos
sentimentos e a respeitar essas fontes ocultas do nosso poder – é delas que surge
o verdadeiro conhecimento e, com ele, as atitudes duradouras.
Neste momento, acredito que as mulheres carregamos dentro de nós a
possibilidade de fundirmos essas duas abordagens tão necessárias à
sobrevivência, e é na poesia que nos aproximamos ao máximo dessa fusão. Falo
aqui da poesia como destilação reveladora da experiência, não do estéril jogo de
palavras que, tão frequentemente e de modo distorcido, os patriarcas brancos
chamam de poesia – a fim de disfarçar um desejo desesperado de imaginação
sem discernimento.
Para as mulheres, então, a poesia não é um luxo. É uma necessidade vital da
nossa existência. Ela cria a qualidade da luz sob a qual baseamos nossas
esperanças e nossos sonhos de sobrevivência e mudança, primeiro como
linguagem, depois como ideia, e então como ação mais tangível. É da poesia que
nos valemos para nomear o que ainda não tem nome, e que só então pode ser
pensado. Os horizontes mais longínquos das nossas esperanças e dos nossos
medos são pavimentados pelos nossos poemas, esculpidos nas rochas que são
nossas experiências diárias.
À medida que os conhecemos e os aceitamos, nossos sentimentos, e o ato
de explorá-los com honestidade, se tornam santuários e campos férteis para as
ideias mais radicais e ousadas. Eles se tornam um abrigo para aquela divergência
tão necessária à mudança e à formulação de qualquer ação significativa. Agora
mesmo, eu poderia citar dez ideias que eu consideraria intoleráveis ou
incompreensíveis e assustadoras a menos que viessem de sonhos e de poemas.
Isso não é mero devaneio, mas sim manter um olhar atento ao verdadeiro
significado de “isso me cai bem”. Podemos nos condicionar a respeitar nossos
sentimentos e transpô-los em linguagem para que sejam compartilhados. E o que
ajuda a criar essa linguagem onde ela ainda não existe é a nossa poesia. A poesia
não é apenas sonho e imaginação; ela é o esqueleto que estrutura nossa vida. Ela
estabelece os alicerces para um futuro de mudanças, uma ponte que atravessa o
medo que sentimos daquilo que nunca existiu.
A possibilidade não é nem eterna nem instantânea. Não é fácil manter a
crença em sua eficácia. Às vezes, podemos fazer um grande esforço para fundar
uma verdadeira linha de frente em resistência à morte que esperam que
tenhamos, simplesmente para que essa linha de frente seja atacada ou ameaçada
pelas farsas que fomos socializadas para temer, ou pela batida em retirada das
aprovações que fomos orientadas a buscar por segurança. As mulheres nos
vemos diminuídas ou amansadas por acusações pretensamente inofensivas de
infantilidade, de falta de universalidade, de inconstância, de sensualidade. E
quem é que pergunta: Estou alterando sua aura, suas ideias, seus sonhos, ou
estou simplesmente levando-as a tomar uma atitude temporária e reativa? E
ainda que uma atitude reativa não seja de todo mal, é preciso analisá-la no
contexto da necessidade de uma verdadeira mudança nos próprios alicerces da
nossa vida.
Os patriarcas brancos nos disseram: “Penso, logo existo”. A mãe negra
dentro de cada uma de nós – a poeta – sussurra em nossos sonhos: “Sinto, logo
posso ser livre”. A poesia cria a linguagem para expressar e registrar essa
demanda revolucionária, a implementação da liberdade.
De qualquer maneira, a experiência nos ensinou que a ação no presente
também é necessária, sempre. Nossas crianças não podem sonhar a menos que
vivam, não podem viver a menos que sejam nutridas, e quem mais daria a elas o
verdadeiro alimento sem o qual seus sonhos não seriam diferentes dos nossos?
“Se vocês querem que mudemos o mundo um dia, precisamos pelo menos viver
o suficiente para crescer!”, grita a criança.
Às vezes nos drogamos com sonhos de novas ideias. A cabeça vai nos
salvar. O cérebro sozinho vai nos libertar. Mas não há ideias novas aguardando
nos bastidores o momento de nos salvar como mulheres, como seres humanos.
Existem apenas ideias velhas e esquecidas, novas combinações, extrapolações e
constatações dentro de nós mesmas – junto da coragem renovada de as
colocarmos à prova. E devemos encorajar constantemente umas às outras a nos
aventurar nas ações hereges que nossos sonhos sugerem e que são desmerecidas
por tantas das nossas ideias antigas. Na linha de frente da nossa passagem à
mudança existe apenas a poesia para aludir à possibilidade tornada real. Nossos
poemas articulam as implicações de nós mesmas, aquilo que sentimos
internamente e ousamos trazer à realidade (ou com o qual conformamos nossa
ação), nossos medos, nossas esperanças, nossos mais íntimos terrores.
Por vivermos dentro de estruturas definidas pelo lucro, por relações de
poder unilaterais, pela desumanização institucional, nossos sentimentos não
estariam destinados a sobreviver. Mantidos por perto como apêndices inevitáveis
ou agradáveis passatempos, esperava-se que os sentimentos se submetessem ao
pensamento assim como era esperado das mulheres que se submetessem aos
homens. Mas as mulheres sobreviveram. Como poetas. E não existem novas
dores. Já as sentimos antes. E escondemos esse fato no mesmo lugar onde temos
escondido nosso poder. As dores emergem dos nossos sonhos, e são os nossos
sonhos que apontam o caminho para a liberdade. Aqueles sonhos que se tornam
realizáveis por meio dos nossos poemas, que nos dão a força e a coragem para
ver, sentir, falar e ousar.
Se aquilo de que precisamos para sonhar, para conduzir nosso espírito de
maneira mais direta e profunda rumo à esperança, for desprezado como sendo
um luxo, vamos abrir mão do cerne – da fonte – do nosso poder, da nossa
condição de mulher; vamos abrir mão do futuro dos nossos mundos.
Pois novas ideias não existem. Há apenas novas formas de fazê-las serem
sentidas – de investigar como são sentidas quando vividas às 7 horas da manhã
de um domingo, depois do almoço, durante o amor selvagem, na guerra, no
parto, velando nossos mortos – enquanto sofremos os velhos anseios,
combatemos as velhas advertências e os velhos medos de ficarmos em silêncio,
impotentes e sozinhas, enquanto experimentamos novas possibilidades e
potências.
colaboraram nesta edição
Aline de Campos é jornalista
Bianca Santana é escritora, jornalista, pesquisadora, doutoranda em Ciência da
Informação pela USP, autora de Quando me descobri negra (SESI-SP)
Eduardo Rebuá é doutor em Educação pela UFF e professor adjunto de
Pedagogia na UFPB
Luiza Batista Amaral é doutoranda em História Social da Cultura pela PUC-
Rio
Marcia Tiburi é filósofa, escritora, pós-doutora em Artes pela Unicamp
Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora de O tempo e o cão – a
atualidade das depressões (Boitempo)
Martha D’Angelo é doutora em Filosofia pela UFRJ, professora aposentada da
Faculdade de Educação da UFF e autora de Arte, política e educação em Walter
Benjamin (Edições Loyola)
Table of Contents
coluna
Bianca Santana
Marcia Tiburi
entrevista Ignácio de Loyola Brandão
reportagem
O racismo nos relacionamentos inter-raciais
dossiê Walter Benjamin
Apresentação
Walter Benjamin e as cidades
Crítica da cultura e do progresso
O que o ato de colecionar nos fala sobre o presente?
Benjamin e a fantasmagoria
inédito Audre Lorde
A poesia não é um luxo
colaboraram nesta edição