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Sumário

coluna
Bianca Santana
Marcia Tiburi

entrevista Ignácio de Loyola Brandão

reportagem
O racismo nos relacionamentos inter-raciais

dossiê Walter Benjamin


Apresentação
Walter Benjamin e as cidades
Crítica da cultura e do progresso
O que o ato de colecionar nos fala sobre o presente?
Benjamin e a fantasmagoria

inédito Audre Lorde


A poesia não é um luxo

colaboraram nesta edição


coluna

O que fazer diante da barbárie?


BIANCA SANTANA

O exército dispara contra um carro civil. O motorista e um dos passageiros do


banco traseiro são atingidos. Outra passageira, do banco da frente, acalma os
feridos: “Não são bandidos, é o exército. Está tudo bem. Logo o socorro chega.”
Ela sai do carro, abre a porta traseira para uma amiga e o filho de sete anos. Ao
se afastarem, mais disparos de fuzil. Oitenta, no total. O motorista, o músico
Evaldo Rosa dos Santos, de 51 anos, morre. Enquanto Luciana Nogueira, sua
esposa, grita por socorro, os homens fardados riem. Outro homem que passa
pelo local ajuda a família e também é baleado. Luciano Macedo, catador de lixo,
vai para o hospital em estado grave e morre onze dias depois.
O mesmo exército que disparou os fuzis julgará o caso. Conforme a lei
13.491/2017, decretada por Michel Temer, o julgamento de militares que
cometem crimes contra civis passou a ser atribuição da Justiça Militar; uma
violação de direitos humanos, de acordos internacionais e de qualquer propósito
de justiça.
Mencionar que era domingo de tarde e que a família negra passava por
Guadalupe, na zona norte do Rio, rumo a um chá de bebê, soa desnecessário.
Tanto quanto reafirmar que Evaldo era trabalhador, não criminoso. Se fosse
noite ou se o carro levasse mulheres ou homens infratores, os disparos estariam
justificados? Naturalizamos de vez a pena de morte no Brasil? E sem
julgamento? A informação – que reproduzo aqui quase todos os meses – de que
a cada 23 minutos um jovem negro é executado no Brasil parece banal. É o
esperado. Possivelmente, o desejado.
Parte das pessoas que se diz defensora de direitos humanos manifestou
alguma indignação no Facebook. Textão. Filtro da foto de perfil simulando
buracos de bala. Gente branca afirmando, em hashtags, que
#VidasNegrasImportam. Mas aí, entidades do movimento negro convocaram
atos em todo o país para o domingo seguinte, em São Paulo, sob a palavra de
ordem “80 tiros em uma família negra, 80 tiros em nós”. E quem vai para a rua?
Na tarde de 14 de abril de 2019 estive na avenida Paulista com militantes do
movimento negro que suspiravam de cansaço ao se abraçar. Três dias antes,
havíamos nos encontrado no Cemitério da Saudade, em Taboão da Serra, depois
de enterrar Tula Pilar. A escritora, poeta, atriz, educadora conhecida no cenário
cultural das periferias, frequentadora do Sarau do Binho e da Cooperifa, que por
anos foi vendedora da revista Ocas, nos deixou depois de uma parada cardíaca,
em meio a uma crise respiratória.
Tula Pilar havia passado algumas vezes no pronto-socorro naquela semana.
Recebia uma inalação e era orientada a voltar para casa. Nenhum exame. Quase
nenhuma atenção. Algum nível de negligência característico do racismo
estrutural que tanto denunciamos. E aos 49 anos de idade, é mais uma mulher
negra e periférica a morrer cerca de 30 anos antes da expectativa de vida da
média da população.
Exatamente um ano antes, em 14 de abril de 2018, estivemos também na
avenida Paulista cobrando justiça pelo assassinato de Marielle Franco. Fazia um
mês da morte da vereadora eleita, mulher negra favelada. E até hoje não
sabemos quem mandou o vizinho do presidente matar Marielle.
“Se alguém disser que quero dar carta branca para policial militar matar, eu
respondo: quero sim! O policial que não atira em ninguém e atiram nele não é
policial”, declarou Jair Bolsonaro, em dezembro de 2017, quando ainda era
deputado federal (PSC-RJ) e pré-candidato à Presidência da República. Depois
do assassinato de Evaldo, o presidente passou cinco dias sem comentar o
ocorrido, quando afirmou que os 80 tiros foram um incidente.
Desde fevereiro de 2019, tramita na Câmara Federal o chamado pacote
anticrime apresentado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro
(PL 882/19). O conjunto de propostas tem sido denunciado nacional e
internacionalmente, por ignorar fatos, evidências científicas e elaborações da
sociedade civil sobre a segurança pública e os direitos humanos. Para citar
apenas duas violações de direitos propostas no pacote: (1) ao formalizar prisões
em segunda instância, abre-se mão do direito à presunção da inocência, o que
levará ao cárcere inúmeras pessoas que não tiveram sua sentença definida; (2) ao
considerar legítima defesa que agentes policiais ou de segurança pública
previnam agressões em conflitos armados, ou seja, possam atirar primeiro,
consolida-se uma licença para matar. Pena de morte, sem julgamento, legalizada.
Trinta e nove entidades do movimento negro protocolaram uma denúncia à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre os riscos que o
dito pacote oferece “à democracia, à ordem constitucional e aos direitos
consagrados pela Convenção Americana de Direitos Humanos, notadamente das
pessoas negras, pobres e moradoras das favelas e periferias do Brasil”. Esta ação
inaugurou a articulação de uma coalizão de entidades do movimento negro para
participação em fóruns internacionais e incidência no Congresso Nacional.
A CIDH acatou a denúncia e convocou uma comitiva para participar de
audiência oficial, em 9 de maio, na Jamaica, durante o 172º Período
Extraordinário de Sessões. Representarão o Brasil nesta audiência Douglas
Belchior, da Uneafro, Ieda Leal, do Movimento Negro Unificado, Sandra Silva,
da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas, Winnie Bueno, iyalorixá, Rute Fiúza, das Mães de Maio da Bahia,
Pedro Borges, do Alma Preta, Maria Sylvia, de Geledés – Instituto da Mulher
Negra, Lia Manso, da Criola, Gizele Martins, do Movimento de Favelas, Nilma
Bentes, da Marcha das Mulheres Negras e Anielle Franco, do Instituto Marielle
Franco.
Entidades que estão articulando esta coalizão estiveram em Brasília no mês
de março para se reunir com parlamentares negros buscando desenhar estratégias
comuns na luta antirracista; para sentar com o presidente da Câmara, Rodrigo
Maia (DEM-RJ) e assegurar o compromisso de não revogação da bem-sucedida
política de cotas raciais; e para garantir a participação de negras e negros nas
discussões do pacote anticrime. Afinal, somos 52% da população brasileira, os
mais vulneráveis às violações de direitos humanos no Brasil e os principais alvos
do chamado pacote anticrime. Mas também somos juristas, especialistas,
pesquisadoras, doutoras, militantes: temos preparo técnico e voz pública para
travar os debates democráticos necessários.
Rodrigo Maia determinou a criação de um grupo de trabalho para analisar o
pacote – estão previstas dez audiências públicas para debater os principais temas.
A coalizão de entidades do movimento negro, com apoio dos parlamentares
Orlando Silva (PCdoB-SP), Paulo Teixeira (PT-SP) e Marcelo Freixo (Psol-RJ),
garantiu a participação de, ao menos, um representante da luta antirracista em
cada uma das audiências. A primeira aconteceu em 17 de abril sob o tema
“Mudanças na parte geral do Código Penal”, e Livia Casseres, defensora pública
negra do estado do Rio de Janeiro foi nossa representante. “Quem diz o que é
segurança pública são as Mães de Maio e de Manguinhos. Sem essa garantia,
nós não vamos avançar em termos de combate à violência, combate ao crime
organizado e combate à corrupção”, afirmou.
Ainda em maio estaremos no Senado. Em dezembro, em um encontro
mundial de organizações negras africanas e da diáspora, construído com o intuito
de refletir sobre ações comuns no enfrentamento ao genocídio nas Américas e na
África, em aliança com as duas principais redes de luta antirracista do planeta,
Black Lives Matter e Africans Rising.
Não há pena de morte legal no Brasil, nem haverá, senhor Sérgio Moro. Não
aceitamos o assassinato de nossas mulheres nem de nossos jovens, seja por
negligência hospitalar, seja por bala a cada 23 minutos. Não há justificativa ou
incidente quando o exército dispara 80 tiros contra um carro civil. Vamos
descobrir e condenar quem mandou matar Marielle Franco. Estamos unidas, em
coalizão, e cada vez mais fortes.
coluna

Ideologia oculta
MARCIA TIBURI

Aprendemos a separar corpo e alma, espírito e matéria, pensamento e ação,


feminino e masculino, brancos e pretos, oriente e ocidente, centro e periferia.
Não há nenhuma justificativa lógica ou ética suficiente para sustentar essas
separações. Elas são meras classificações produzidas ao longo dos séculos por
processos hermenêuticos. Devemos considerar a hipótese de que haja
motivações ideológicas para que sejam sustentadas.
Por meio dessas separações que opõem algo de positivo e algo de negativo
se garante a divisão do trabalho como a verdade profunda de um sistema que
define que uns serão privilegiados em detrimento de outros. Ricos em relação a
pobres, homens em relação a mulheres, brancos em relação a pretos, europeus a
não europeus, e assim por diante sempre em conformidade com exigências
ideológicas em vigência dentro do sistema de interesses. A sustentação
ideológica mascara a verdade e sustenta a docilidade dos prejudicados.
Trabalhadores em geral, operadores das mais ingratas tarefas ao longo de sua
vida útil são vítimas da descartabilidade, quando seus corpos já não servem para
o fim a que foram destinados pela ideologia em ação. Essa ideologia primeiro os
marcou como úteis, depois como objetos descartáveis. A descartabilidade
depende da marcação produzida pela ideologia: em que mulher/preto/pobre se
justapõem.
No Brasil de hoje, a exemplo de outros países do mundo, os trabalhadores
perdem seus direitos e são jogados à mercê da vida e da morte quando se tornam
incapazes de trabalhar por falta de condições físicas. O Estado, que antes tinha o
papel de proteger sua vida e sua dignidade, cancela a lei e abandona as pessoas à
sua própria sorte. A falsa “abolição da escravidão” escondia esse descarte do ser
humano como acontece hoje com a destruição da Previdência Social. O caráter
serviçal da vida das mulheres é parte essencial da divisão do trabalho à qual elas
servem.
Sabemos que, se as vítimas da divisão do trabalho se rebelarem, o sistema
ruirá. Seja como racismo, seja como machismo, afinal, são faces de uma mesma
moeda, é o capitalismo que ruirá. Por isso, aqueles que administram a divisão do
trabalho tentam evitar a todo custo que os administrados percebam o que se
passa. Controlar teorias que defendam o bem comum, evitar questionamentos e
aniquilar críticos, bem como esconder seus interesses pessoais, é essencial para a
sustentação do sistema.
O NEOLIBERALISMO COMO IDEOLOGIA
Não é difícil entender por que o neoliberalismo precisa evitar a todo custo ser
reconhecido em sua ideologia. Se a ideologia é um conjunto de ideias prontas
que visa evitar a busca da verdade e se a filosofia é a busca da verdade, as
ideologias não são filosofias porque não são questionamentos que poderiam
levar à busca da verdade. Como foi dito, ideologias são conjuntos de ideias
prontas. Podemos falar em ideologias de partidos, do mesmo modo que podemos
dizer que todas as religiões possuem algo de ideológico justamente no elemento
dogmático que lhe é inerente.
O capitalismo se torna ideologia ao não ser questionado, seja por opção,
seja por imposição. O neoliberalismo é a forma do capitalismo que mais oculta
sua própria estrutura ideológica para poder valer sem limitações. Nesse sentido,
ele é a autoconsciência do capitalismo em sua fase mais avançada e perversa.
Por não agir na contramão dessa consciência, mas se aproveitando dos seus
piores ensinamentos, o neoliberalismo se torna uma espécie de perversão na
segunda potência do capitalismo. A falta de ética pela desvalorização do ser
humano e de sua dignidade é a sua marca fundamental.
O neoliberalismo se apresenta como natural e, portanto, isento de
interesses. Se ele revelasse no discurso o seu objetivo, se ele não escondesse o
seu verdadeiro propósito anti-humano, que é a eliminação da vida humana na
Terra em nome dos privilégios de uns poucos, ele seria rechaçado e a
humanidade inteira estaria preocupada com o seu próprio destino.
entrevista Ignácio de Loyola Brandão
Distopias reais
DANIEL DE MESQUITA BENEVIDES

Se os grandes artistas são antenas que captam o espírito da época e iluminam


suas complexidades nos mais diversos recônditos, Ignácio de Loyola Brandão
foi um pouco além ao “prever” a figura de Bolsonaro, décadas antes. Em seu
livro Não verás país nenhum, de 1982, há um capitão ligado a “milícias” que
carrega parte do intestino numa bolsa atada à cintura. O romance mostra um
futuro próximo em que a Amazônia virou um deserto, cientistas são perseguidos
e não há água potável – as pessoas têm de reciclar a própria urina para beber.
É um dos grandes sucessos de Loyola, que acaba de ser eleito, por
unanimidade, para a Academia Brasileira de Letras. Mas o livro pelo qual é mais
lembrado é Zero, traduzido para várias línguas e estudado em universidades
mundo afora. “Foi uma bomba que eu quis explodir naquele momento”, conta. O
momento era 1974, plena ditadura. Construído a partir de fragmentos de
matérias censuradas que ele ia recolhendo no jornal Última Hora, Zero desafia
exegeses e interpretações. “Realismo feroz” foi o epíteto dado por Antonio
Candido. De fato, o romance descreve os anos de chumbo a partir das entranhas
dos personagens, que vagam por ruínas reais e simbólicas, perdidos e sem
esperança; mas também é um pastiche do caos consumista, uma colagem pop de
sensações e sentimentos, uma radiografia alucinada das crenças, dores e dos
pesadelos que permeavam nossa sociedade. O livro foi lançado primeiro na
Itália, com tradução do então estudante Antonio Tabucchi. Em 1975 saiu no
Brasil, onde se esgotou rapidamente e ganhou as melhores críticas. No ano
seguinte, acabou censurado, sendo liberado apenas em 1979, depois de
manifestações dos maiores intelectuais do país.
Recentemente, o autor, também contista, cronista (desde 1993, no jornal O
Estado de S. Paulo) e escritor de infantojuvenis – em 2008 ganhou um Jabuti por
O menino que vendia palavras –, resgatou o ímpeto feroz e distópico e publicou
Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela, romance que
lança o mal-estar da chamada civilização num vórtice vertiginoso. Ao nascer, as
pessoas são presas a uma tornozeleira eletrônica, os pensamentos são
monitorados, não há ministério da cultura, direitos humanos e meio ambiente, as
escolas foram abolidas, os impeachments são corriqueiros como os mortos,
carregados em comboios nas ruas, a política e o judiciário estão sequestrados por
“astutos” e criminosos, o desgoverno é a norma.
Perto disso – e do obscurantismo presente – sua cobertura em Pinheiros é
um paraíso de resistência cultural e ambiental. Há livros no chão, nos degraus da
escada, na cozinha e até nas estantes. Há jardins em cada canto e mesmo um
caramanchão. Chamam atenção os quadros de lugares que visitou, com folhas
que colheu no cemitério de Kafka ou na casa de Hemingway, duas de suas
maiores influências. Fellini é outra, como conta na saborosa conversa que
tivemos: “A estrutura do Zero vem do Oito e meio.” Diz, inclusive, que seu
maior desejo era ter sido cineasta. Mas está feliz: “Vivi tudo o que o eu pude –
mais seria impossível.”
Ser cineasta foi sempre o seu sonho, desde pequeno?
É, mais ou menos. O cinema era o único divertimento em Araraquara [onde
nasceu, em 1936]. O primeiro filme que vi, com meu pai e minha mãe, foi
Canção de Bernadete. Eu não entendia direito, pois não conseguia ler as
legendas. Aos 15 anos comecei a acompanhar os críticos. Lia Almeida Salles,
Paulo Emílio Salles Gomes, Benedito J. Duarte, Alex Viany, que fazia
correspondência de Hollywood. Um dia apareceu na biblioteca o livro Sétima
arte. Fiquei encantado e roubei. Devolvi uns 50 anos depois, com uma
cerimônia, a gente morreu de rir. Convidei o velho bibliotecário, um sujeito
humilde, que fumava cigarro de palha, mas que teve uma atitude que nunca mais
esquecemos. O prefeito e o presidente da Câmara tinham proibido as obras do
Jorge Amado para as mulheres. O Marcelo liberou e elas, que não frequentavam
a biblioteca, passaram a ir em peso.
Seu pai era um grande leitor também.
Muito. Meu pai era um ferroviário remediado, não era pobre, mas não tinha
como me dar dinheiro para ir ao cinema toda noite. Mas um dia fui ver a história
do Rodolfo Valentino. Adorei e resolvi escrever um texto. Fui pondo termos das
outras críticas, um pastiche total. Levei ao jornal e publicaram. Eu tinha 16 anos.
Meu professor, o Jurandir, disse: “nunca use o ‘lhe’, porque estraga qualquer
frase. E cuidado com o ponto e vírgula. Só quem escreve muito bem ou quem é
louco que usa”. Até hoje eu não sei para que serve o ponto e vírgula. Ganhei
uma permanente para o cinema e ia toda noite. O dono do jornal falava “escreve
curto, tá? Não fica fazendo frase comprida que ninguém lê, enxuga bem”.
Velhinho já, tinha a cara do Graciliano Ramos. Depois vim para São Paulo, para
trabalhar no Última Hora, onde eu fiz geral, mas logo consegui a coluna de
cinema.
Mesmo com o sucesso do Zero e do Não verás país nenhum, você continuou a
trabalhar como jornalista?
O Zero na época vendeu demais. O Não verás vendeu demais. Depois, O verde
violentou o muro (1984) vendeu muito. Cadeiras proibidas (1976) não era lido,
mas nos anos 1990 explodiu, todo professor recomendava, os jovens adoravam o
livro. Outro que vendeu bem foi o O beijo não vem da boca (1985). Mas eu fazia
muito freelance, sempre vivi do jornalismo, tinha o Última Hora e aí fui para a
Abril. Quando lancei Não verás, fui embora para Paris, para Berlim, onde fiquei
dois anos.
Em Berlim, você fazia o quê?
O Zero foi publicado lá com grande sucesso no mundo acadêmico, traduzido
pelo Curt Meyer-Clason, famoso pela tradução do Grande sertão: veredas. O
Serviço de Intercâmbio Cultural da Alemanha me convidou para desenvolver um
projeto em Berlim. Eu não tinha projeto nenhum, mas claro que disse que tinha.
Fui e acabei apaixonado. Eu gosto muito de andar nas cidades, não dirijo. Lá, eu
sentava no primeiro banco dos ônibus, no andar de cima, onde tinha visão total.
Sempre levava uma cadernetinha comigo. E anotava tudo, um cartaz esquisito,
um lago, um bosque... Eu ia e via pessoas andando – foi a primeira vez que eu vi
um monte de mulher nua no parque. Comecei a perceber que tinha um outro
mundo. Quando voltei, acho que tinha uns 120 cadernos preenchidos. E vi que
aquilo tudo formava um diário de como funcionava Berlim com o muro em
volta. Aquela neura, aquela cidade movimentadíssima, que de repente ficava
silenciosa, e então surgia uma manifestação e a polícia chegava descendo o pau,
quebrando tudo. Fiquei fascinado e escrevi O verde violentou o muro em quatro,
cinco meses.
Esses três livros, Zero, Não verás país e o mais recente, têm um aspecto
premonitório muito forte, infelizmente.
O Zero mostra o momento. Era daquele jeito. Mas o Não verás foi premonitório,
e o outro, Desta terra..., então, foi sacação em cima de tudo que estava aí, é só
elevar à potência máxima. A minha primeira professora, a Ruth – está viva até
hoje, lá em Araraquara –, dava redação e dizia assim: “inventa o que quiser, por
mais louco que for, não fica descrevendo, fica imaginando”. E ela sempre
alertou para essa coisa: a realidade é mais absurda do que o próprio absurdo. Isso
ficou muito na minha cabeça. Quando cheguei numa idade mais madura, uns 20
anos, descobri A metamorfose. E eu tinha um outro amigo, o Dedão,
completamente maluco. Era um beat antes da beat generation, revoltado contra
tudo, cínico, satírico. Ele dizia assim: “você leu esse livrinho e gostou. Se ele
achasse que um cara virar um inseto fosse uma loucura, ele nunca teria
modificado o romance moderno”.
Como você coloca seus livros, em especial Desta terra…, diante da realidade
de hoje – a gente está se encaminhando para essa distopia toda?
A gente já está vivendo. A gente não tem um presidente sem cérebro? É ou não é
o Bolsonaro? É um homem totalmente despreparado, totalmente sem cultura,
totalmente sem escola, totalmente sem raciocínio. É igual aos meus presidentes
em Desta terra... um tem uma doença, outro não tem cérebro, outro vive sem
coração. Não existe mais anonimidade, a gente está vigiado o tempo inteiro. Se
você for trepar, vão saber que você está trepando, se for mijar, vão saber do
mijo. Você é vigiado, fiscalizado. Não tem mais esse ser que se esconde. Você é
coagido a consumir, compra coisa que não precisa. Com o celular, você não quer
em nenhum momento ficar só. A arte da conversação deixou de existir. A
discussão, então, acabou, porque a discussão pode resultar numa morte.
Ninguém mais tolera a opinião do outro, a crença do outro, a religião do outro, a
política do outro, nada, isso não existe mais. Existe ódio. Isso me incomoda
muito, e a única maneira de eu tirar as coisas de dentro é pôr num livro, botar no
texto.
O livro funciona como uma espécie de catarse?
Para mim, funciona.
E para o leitor também?
Acho que sim. Para mim, funcionou muito. Você sabe o primeiro livro que eu li
na vida? O patinho feio. Eu era muito complicado. Pobre, malvestido, me achava
muito feio. As meninas não olhavam para mim na praça, aquelas coisas que você
tem de criança. E era muito enrustido, me escondia, ficava no fundo da classe.
Um dia, meu pai trouxe esse livro para eu ler. E disse: “Depende de você, da sua
cabeça.”
Você acha que o escritor tem um papel social?
Não é que você vai sair por aí cumprindo um papel social. Mas acho que o ato de
escrever é um ato de capturar as coisas em sua volta e mostrar. Quando
Dostoiévski escreveu Crime e castigo, ele estava colocando todo o problema da
culpa. Os escritores aclaram as coisas em volta. O que me leva a uma frase do
Érico Veríssimo, que eu tive emoldurada por muitos anos: “cabe a um escritor
acender uma luz diante da escuridão. Se não tiver uma luz, acender uma
lanterna. Se não tiver uma lanterna, acender uma vela. Se não tiver uma vela,
acender um fósforo”.
Mas eu diria que tanto o Zero quanto o seu mais recente não são fósforos
nem lanternas, são explosões.
É, o Zero, quando eu estava escrevendo, eu queria jogar uma bomba. E era época
de jogar bomba. Mas eu pensei, porra, não sou violento, eu não sei matar. O que
eu posso fazer? Fui jogar uma bomba literária. E sabe que o Zero não tem uma
palavra inventada. Você sabe o processo dele?
Você pegava os artigos que eram censurados...
Tudo, tudo. Eu era secretário gráfico. Eu tinha 30, 28 anos. As matérias vinham
para mim e o censor falava “me dá”, e eu dava. E ele ia falando “isso não pode”.
Da primeira vez eu disse “por que não pode?” Ele disse “a próxima vez que você
perguntar, você vai preso. Não pergunta mais nada”. Fui jogando tudo na gaveta
e depois levei para o meu apartamento. Um dia, a Ítala Nandi, a atriz, passou por
lá e perguntou “o que é isso? Pegou no lixo?” Aí eu comecei a mostrar e ela
falou “porra, não dá um livro? Tudo o que o Brasil não soube?” E aí eu comecei
o Zero. Em 1964 comecei a pegar o material, em 73 ele estava já quase pronto.
Você lançou primeiro na Itália, numa das fases mais pesadas aqui da
ditadura.
O livro foi vendido para o Feltrinelli, através da Luciana Stegagno Picchio, que
era professora do Antonio Tabucchi, que o traduziu. Ela mandou uma carta: “o
livro está pronto, mas a gente acabou de saber que o adido militar da embaixada
do Brasil está dizendo que qualquer artigo, qualquer publicação que denigra a
imagem do Brasil no exterior pode dar cadeia para o autor e o editor. Publico o
livro?” Fiquei numa sinuca. Conversei com a Bia, minha primeira mulher, que
disse “você levou 10 anos fazendo isso para quê? Para perder o seu tempo? Você
não fez isso porque era contra o que está acontecendo?” Decidi publicar... Se
naquele momento eu tivesse dito não, não estaria aqui hoje. Eu teria virado um
deprimido, amargurado, puto, culpado, sei lá. Porque depois do Zero tudo de
bom aconteceu para mim. Mas a proibição, em 1976, foi um horror. Eu tinha
quase 40 anos, tinha trabalhado naquele livro um quarto da minha vida. É nessa
hora que você decide a vida. Sim ou não. Ou você atravessa a porta ou não
atravessa.
Citando o Não verás... “Nada pior que a memória do gesto não realizado”.
Sim. Anos atrás, eu era jovem e me apaixonei por uma moça em Araraquara. Eu
já queria ir embora da cidade. Mas eu era também tímido e não falei para ela.
Passaram-se muitos anos, ela já estava casada, tinha filhos. Bebemos e eu falei
“você sabe que eu era apaixonado por você aos 16 anos?” Ela respondeu “E eu
era apaixonada por você, por que você não disse? Você passou a vida pensando
no que teria acontecido se tivesse tentado. Isso é um suicídio lento”. Isso
motivou a feitura de um livro meu, chamado Dentes ao sol.
Que é o seu livro favorito, não é?
Sim. Nós éramos um grupo fechadão, em que cada um tinha um sonho de fazer
alguma coisa. O Farouk queria vir para São Paulo cantar bolero. O Zé Celso
queria vir fazer teatro. Em 1962, comecei a escrever uma história impulsionado
pelo Encontro marcado, do Fernando Sabino. Terminei o livro e era muito ruim.
Chamava O sonho gasto. Horroroso. Depois eu mudei para Homem em baixo-
relevo. Pior ainda. Aí, deixei. Em 1975, me deu uma coisa, tirei o livro da gaveta
e o reescrevi. Em três meses. Foi o mais rápido que eu já escrevi, só que eu
pensei 13 anos nele. Esse livro foi um fracasso. Um pouco porque ele veio
depois do Zero, que eu passei a odiar. Mas Dentes ao sol acabou sendo traduzido
nos Estados Unidos, e um dia fui a Albuquerque, no Novo México, falar para 40
alunos, em português; um menino me disse “olha, eu adoro Dentes ao sol”.
Perguntei: “por quê?”. Ele respondeu: “é igualzinho a Albuquerque”. Aí eu
considerei o livro bom.
No Zero, o José, personagem central, entra para a guerrilha. Você chegou a
se aproximar dos grupos de resistência à ditadura?
Nunca estive em nenhum movimento clandestino. Minha clandestinidade foi o
Zero, minha luta armada. Quando a gente foi a Cuba, em 1978, eu, o Antônio
Callado, Fernando de Moraes, Wagner Carelli, Chico Buarque e a Marieta
Severo, como jurados do Prêmio Casa de las Américas, tinha um monte de
brasileiro exilado, e uma noite eles pediram se podiam ter uma conversa
conosco. A pergunta era: “vem anistia? Vocês acham que podemos voltar?”
Quando acabou aquela conversa, que eu expus no Cuba de Fidel (1978), a gente
saiu para um bar. E uma mulher grudou no meu braço e disse “em que grupo da
luta armada você esteve?” Eu falei “nenhum”. “Não, só um cara que esteve lá
dentro poderia ter escrito esse livro” – era a Clara [Charf], mulher do
Marighella. Minha amiga até hoje. Dei um beijo nela e falei “ai, obrigado”.
Como você se descreve politicamente?
Não tenho partido, não sou da esquerda nem da direita, eu sou da tentativa de
olhar em volta com lucidez. E de não aceitar imposições e dogmas. Não sou
petista, mas estou de acordo com várias coisas do PT. Acho que o Lula fez um
primeiro mandato muito bom. Porque eu estive no Nordeste e eu vi luz, vi uma
série de coisas que não existiam, as pessoas com geladeira, televisão. Antes,
tinham nem um pião. Então, sou um democrata, acho.
Um otimista experiente?
Quem falava isso era o Meyer-Clason. “Um pessimista é um otimista com
experiência.” Talvez eu seja isso. Eu não acredito em nada e acredito em tudo.
Se eu não acreditasse, não ia fazer esses livros.
Você que viajou pelo país inteiro, acha que no pé em que estamos, tem
alguma solução?
Esse país não é conhecido por nenhum daqueles políticos filhos da puta de
Brasília. Brasília vive dentro de um muro fechado. O que eu andei... peguei em
Macapá um barco-biblioteca e desci o Amazonas; a gente foi nas escolas
ribeirinhas. Você precisa ver o encanto daqueles professores pegando os livros
que a gente ia deixar. E os agentes da leitura no Ceará, de bicicleta, levando nas
costas os livros para a zona rural. Em Goiás, Pirenópolis, a gente indo para as
escolas rurais e as mães fazendo café e broa, e os meninos contando histórias.
Tem um monte de gente nesse país, só que são heróis anônimos. Uma vez, me
levaram para Ocara, no Ceará, a primeira cidade do sertão. Era sábado, fomos
para o centro comunitário, uma coisa muito bem armada, gostosa. Eu fui
contando história, e eles não se moviam – às vezes riam, às vezes não riam. Uma
hora e meia. Aí eu falei “vocês têm alguma pergunta?”. “Tenho, tenho!” A
professora estava abismada. Quando acabou, ela falou, “ai, muito obrigada, eu
quero te agradecer, porque eu tinha um medo de que o senhor viesse falar da
metalinguagem, da desconstrução, da metonímia e tal. E o senhor acabou de
dessacralizar a literatura”. Eu falei “é mesmo, eu nem sabia”. Quando estava
saindo, vieram duas senhoras, tinham uns 80 anos. Elas falaram “nós somos
analfabetas, nunca lemos um livro, mas gostamos tanto das suas histórias... a
gente quer aprender a ler”. Três anos depois eu voltei e fui para Aquiraz, a antiga
capital. Fiz uma palestra e aquelas duas mulheres estavam lá. Uma delas
perguntou: “Quando vou plantar o meu milho, eu vou na cooperativa e compro a
sementinha. Quando o senhor vai escrever um livro, onde você pega as
palavras?” Nem o Antonio Candido faz uma pergunta dessas. Eu expliquei que
vinha acumulando através da vida, guardando... E elas agora leem. Valeu minha
vida ter duas pessoas tiradas do analfabetismo. São essas pessoas que fazem o
Brasil. Não é Eduardo, Flávio, Carlos Bolsonaro. Não é. Eu acredito que a gente
muda. Pode demorar o quanto for, mas a gente muda. Eu morro mas vem outro.
Tem uma seção no New York Times chamada “By the book”, em que
perguntam: “Se você pudesse escolher três escritores para um jantar, vivos
ou mortos, quem você chamaria?”
Eu chamaria Hemingway, Graciliano Ramos e Érico Veríssimo. Eu jamais
esqueço uma vez quando perguntaram para o Hemingway “como que se deve
escrever um conto?” Ele falou “como se estivesse mandando um telegrama
internacional pago do seu próprio bolso. Cada palavra custa.” O Graciliano eu
acho o maior de todos. Você pega Vidas secas, é um livro perfeito.
É por isso que você tem uma obsessão com esses símbolos do sol, do deserto,
da areia?
Não sei, é gozado, no Dentes ao sol, a cidade fica debaixo da areia no fim do
livro; vira um deserto, e a única coisa que fica acima do solo é a torre do relógio
da antiga fábrica Lupo. O personagem entra pelo mostrador e fica vendo as horas
ao contrário e vai voltando. Agora, eu também gostaria de convidar para esse
jantar o Fellini. Quando ele morreu, eu fiquei muito mal. No fundo, nós em
Araraquara éramos I Vitelloni, Os Boas-vidas. E Araraquara era Rimini. Um dia
perguntaram ao Fellini “mas a Rimini foi destruída durante a guerra. O que
existe para você?” Ele respondeu: “não consigo considerar Rimini como fato
objetivo é antes uma dimensão da memória. Quando estou em Rimini, sou
sempre agredido por fantasmas já arquivados”. E Araraquara? E eu? Não é
igual? Essa aproximação com Fellini foi fundamental. Quando o La dolce vita
foi exibido em São Paulo, foi uma paulada, a gente saiu e ninguém falava nada.
Eu pensei sempre em fazer um Dolce vita, com fundo de São Paulo. Eu ainda
penso, quando eu passo na Vila Madalena. O Oito e meio também. Na primeira
vez que vi, cheguei no meio do filme e não entendi nada. Fiquei para outra
sessão. E aí comecei a perceber a estrutura do filme, o plano da realidade e o
plano da realidade idealizada. Anos mais tarde, quando eu estava procurando a
estrutura do Zero, lembrei do filme. Até hoje eu já vi umas 130 vezes. Escrevi
muito e ainda escrevo ouvindo o Nino Rota. Mas no Não verás... sabe o que eu
ouvi o tempo inteiro? A música do Apocalypse now. Gastei o disco. Eu sempre
escrevo com música.
É curioso ver a coincidência do Não verás..., em que o sobrinho do
personagem central é um capitão ligado a “milícias” e tem uma bolsa com
intestino para fora, que foi mais ou menos o que aconteceu com o
Bolsonaro.
Eu tinha até esquecido isso. Agora me arrepiei. Olha a arte, como é interessante.
A vida põe pontos assim, não tem acaso nem coincidência. Põe os pontos e
depois ela liga. Vai ligando e pronto. Coisa bonita. Gente, meu deus.
Você já está pensando em um livro novo?
Não, não dá. Eu fiquei quatro anos e meio fazendo o Desta terra nada vai
sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela. Eu tô com a cabeça muito cheia.
A unanimidade na eleição para a Academia foi um espanto para mim. Adorei,
viu?
Mas antes você não quis concorrer.
Achei que não era para mim, mas você muda de ideia. Lá dentro está o Antônio
Torres, meu amigo desde os anos 1970, e a Nélida Piñon – percorremos esse país
falando durante a ditadura; o Zuenir Ventura, o Cícero Sandroni – era toda uma
geração, eu falei “falta eu. Porra, no fundo, é um menino de Araraquara, filho de
um funcionário modesto... me encanta um pouco”. Quando eu fui eleito, ligaram
de Araraquara e disseram: “parece que a cidade ganhou a Copa do Mundo”.
Você mencionou suas andanças com a Nélida Piñon e outros autores
durante a ditadura. O que foi isso?
Essas andanças começaram em 1975. Eu nunca tinha falado para um público,
tinha pavor. E aí, foi organizado no Rio de Janeiro um ciclo contra a censura. No
Teatro Casagrande. Era cinema, teatro, televisão, artes. E um dia teve literatura.
Eram 400 jovens estudantes na nossa frente e a polícia toda anotava. Eu falei do
Zero. Fui falando, não sabia o que falava mas eu ia falando. E nós começamos a
receber convites. Não tinha cachê nem nada, eles pagavam uma passagem de
ônibus ou avião, a gente ia. Chegou um momento em que eu comecei a levar
tudo o que eu tinha de proibido. A minha palestra era ler coisa proibida. Aí o
Zero foi proibido! O censor, que era um sujeito culto, me disse: “por sorte sua,
foi proibido por moral, então não tem um processo. Se fosse proibido por
política, você ia se encrencar. Então fique feliz”. Como se eu ficasse feliz. Nessa
época, em Campina Grande, encontrei um exemplar do Zero que tinha sido
datilografado. Aquilo era de uma dificuldade imensa para fazer. Dividiram o
livro em 30 pedaços, cada jovem fez uma parte, e eles ficavam lendo e passando
para os outros. O que eu quero dizer é: você pode proibir, mas se tiver um, ele
vai continuar a viver. E aquilo deu um conforto durante a coisa. Não morreu o
livro. Isso me emocionou muito.
Você acha que a gente está correndo risco de voltar a esse tempo
obscurantista?
Eu tenho medo. Você viu o que o Dória acabou de fazer: contingenciamento,
diminui a verba toda de cultura. Eles não se preocupam e não é só o Bolsonaro,
os outros também. Há um bloqueio, a impossibilidade de fazer coisas. E pode ter
até censura, eu não sei. Quem governa, meu deus? Um homem que se submete
às palavras de Olavo de Carvalho. Porra, espera aí. Ele não sabe que é ridículo
para ele isso? Ele mesmo diz “eu não nasci para presidente, sou militar”. Nem
militar ele não é. Acho que ele não esperava ganhar.
reportagem

O racismo nos relacionamentos inter-raciais


ALINE DE CAMPOS

Julia Bispo “foi barrada” na festa de aniversário do então namorado: “Fiquei o


dia inteiro em casa esperando. Quando ele apareceu, disse não ter me buscado
para evitar que eu me sentisse mal na presença deles. Já ia fazer dois anos que
estávamos juntos”. Jovem e negra, ela só percebeu o peso do preconceito após o
fim do relacionamento. A ex-sogra nunca escondeu sua desaprovação, ao passo
que ele a excluía sistematicamente de encontros com a família, de origem
espanhola e italiana. Julia lidou com a situação como muitas e muitos que são
obrigados a encarar o racismo de frente: “Isso vem da minha própria criação.
Minha família também foi ensinada que os negros se vitimizam e devem
esquecer estas situações. Eu achava que era só pirraça da família dele”.
Para ela, a chance de “ascender na vida” estava em se relacionar com
rapazes brancos, o que também aprendeu em casa: “Diziam que mulher negra
chama atenção de europeu. Às vezes acho que estou renegando minhas raízes ou
traindo o movimento negro por gostar de um cara branco. Sabe a Sam White da
[série] Dear white people? Me vejo na mesma situação que ela”, conta.
Hoje, aos 21 anos, Julia reconhece que seu olhar foi educado a enxergar
brancura como sinônimo de beleza, o que resultou com que não se atraísse por
homens negros e consequente-mente não visse beleza em sua própria negritude.
Esse é um fator presente em 100% dos relatos que ouvi. Com os cachos
assumidos há pouco mais de um ano, ela relembra que por dez anos foi refém de
seu cabelo. Para sentir-se bonita, alisava os fios, não o molhava em público e
assim podia se identificar como descendente de índios e sentir-se mais bonita,
melhor aceita. “As pessoas sempre vão olhar e tentar reprimir a gente, dizer para
alisar o cabelo, dizer como se comportar”, ressalta.
Pesquisar sobre a presença do racismo nos relacionamentos afetivo-sexuais
entre negros e brancos me possibilitou identificar a influência que a
representação e a representatividade – sobretudo midiática – têm na forma com
que olhamos uns para os outros. Representação que se dá através do
fortalecimento de estereótipos, pois a construção do que é o negro e qual o seu
lugar pouco evoluiu ao longo deste período pós-abolição. A representatividade
também é problemática, já que, em todas as estruturas sociais, não se vê pessoas
negras em posição de destaque. A junção destes dois fatores denota a
necessidade de um antídoto – e de alívio rápido – para que possamos avançar no
debate racial. Os meios de comunicação podem fazer esse papel, tanto de
garantir a justa visibilidade do povo preto, quanto de acabar com o estigma do
negro estereotipado.
A HERANÇA DO “É PUTA OU É LADRÃO”
“Nem um só brasileiro tem sangue puro, porque os exemplos de casamentos
entre brancos, índios e negros são tão disseminados que as nuances de cor são
infinitas, causando uma degeneração do tipo mais deprimente tanto nas classes
baixas quanto nas superiores.” A frase, citada pelo historiador norte-americano e
brasilianista Thomas Skidmore, mostra o pensamento do diplomata e escritor
francês Arthur de Gobineau (1816-1882), que propunha o genocídio não só do
negro, mas também dos mestiços.
Ao avaliar os aspectos históricos acerca do relacionamento afetivo-sexual
inter-racial no Brasil, somos capazes de compreender melhor as tensões de raça
e classe no país. Durante o período colonial, os relacionamentos entre brancos e
negros se deram por meio de uma miscigenação forçada, na qual a mulher negra
teve sua sexualidade roubada e submetida ao interesse dos senhores brancos, que
buscavam prazeres extraconjugais. Ao longo dos anos, essa prática passou a ser
vista com benevolência, como tentativa de branqueamento da população, dando
origem aos pretos de pele mais clara – na época, chamados de mulatos.
Estabelecem-se aqui as medidas do colorismo e a posição social de negros e seus
descendentes com base em seus diferentes tons. Por sua vez, a sexualização da
então escrava colocou a mulher negra em um lugar de preterimento que,
combinado à animalização do homem negro, à sustentação de teorias
hegemônicas como a de Gobineau, determinaram a pirâmide social que pauta as
relações entre negros e brancos nos dias atuais.
As práticas racistas de tentativa de genocídio da população negra formaram
um cancro na sociedade. À ilusão do mito da democracia racial se sobrepôs um
olhar preconceituoso sobre pessoas de pele preta: “Negro é ladrão, negra é puta.”
Para Rafaela Damasceno, negra e lésbica, “essa visão tem muito a ver com a
manutenção de estereótipos na sociedade”. Rafaela acredita que a descoberta de
sua identidade passou pelo entendimento do peso de sua cor. Ela diz sentir-se
duplamente descredibilizada em uma sociedade que sexualiza tanto sua
negritude quanto sua sexualidade.
Provenientes da herança colonialista que nos foi dada, os rótulos acerca da
cor da pele são responsáveis pela forma como enxergamos e nos relacionamos
com o outro. Rafaela considera que a mídia tem sua parcela de responsabilidade:
“Existe um apagamento histórico do negro que vem se repetindo até hoje.
Quando você não se vê, você não sabe o que você é, você perde sua identidade”.
Para ela, a falsa democracia racial no Brasil, muito presente em novelas e
propagandas, deixa evidentes as desigualdades das relações de poder.
Podemos considerar que a mídia, em seus diferentes canais, acaba por
influenciar a maneira como nos relacionamos, como lidamos com a pluralidade e
também a forma como a sociedade vê o corpo negro. Mais importante: o
conteúdo midiático influencia a visão que o negro tem de si próprio. Como eu
me vejo e o que isso me faz sentir? Assim, chegamos ao ponto em comum
apresentado por todos os entrevistados de minha pesquisa: baixa autoestima.
Rafaela passou um período nos Estados Unidos a trabalho. Conta que veem
a brasileira como aquela queimada de sol, não como a negra. Ela avalia que há
um apagamento dos afro-brasileiros na percepção dos norte-americanos: “O que
importa do Brasil para fora é a mulher branca, ou a mulher negra na prostituição.
A solidão da mulher negra vem muito disso também”.
SOLIDÃO DO CORPO NEGRO
Ao conhecer as experiências de Denise Lima, uma jovem negra que lida com
depressão e transtorno de borderline, é possível entender os efeitos dessa
solidão. Durante toda a vida, ela se cobrou de maneira exaustiva para ser uma
mulher interessante e suficientemente boa para seus parceiros. Diante das
dificuldades que enfrentou em relacionamentos desde a adolescência, por mais
que tentasse, Denise nunca se sentia tão boa quanto gostaria.
Em busca de uma aceitação que não tinha por si mesma, ela mergulhou na
procura por um relacionamento no qual se sentisse amada, mas se deparou com a
realidade: “Fui ficando mais velha e percebi que, por ser preta, nenhum cara me
queria. É triste demais isso”.
Relembra um relacionamento que teve e que a marcou muito. Descobriu
que um rapaz branco com o qual se relacionava havia algum tempo tinha outra
namorada, a qual ele assumia, ao contrário dela. “Quando vi que a outra era
branca, fiquei me sentindo um lixo. Vi que era loira, estudava numa faculdade de
boy como a dele, que eu nunca poderia pagar.”
Criada na Brasilândia, Denise hoje vive um relacionamento com outro
sujeito branco, também com padrão de vida melhor que o dela. Ela foi a primeira
mulher negra que ele, contrariado, apresentou para a família. Sem conseguir se
valorizar, acreditando mesmo merecer, Denise se sujeitou a abusos nessa
ligação, o que resultou em crises depressivas e uma tentativa de suicídio.
Não é novidade que o sentimento de solidão é muito mais presente na
mulher negra, pois ela é preterida não só por parceiros brancos, mas também por
negros. Avaliando os depoimentos que coletei, percebi uma resistência maior por
parte dos homens negros heterossexuais em se abrirem sobre o assunto – talvez
por este motivo.
Um dos homens que entrevistei me chamou a atenção. Após ter enfrentado
preconceito racial em relacionamentos anteriores, principalmente por ex-sogras e
família de ex-companheiras, ele, que não quis revelar o nome, diz ter adotado
estratégias de autoproteção no relacionamento atual. “A blindagem funciona
assim: ela me diz que a família é racista, porém eles não assumem isso. Então
ela evita me colocar em grandes encontros familiares”, explica. Pergunto se isso
não é algo que o afeta; ele se limita a responder que prefere evitar conflitos e que
vive bem assim.
Cansado de lidar com situações semelhantes, Toni Basílio se cobra para
priorizar o envolvimento com homens negros. Mesmo sabendo que isso não é
possível a qualquer custo, considera fundamental que o amor e o afeto fluam por
alguém que entenda sua luta.
Sobre suas experiências amorosas com homens brancos, ele destaca que “os
brancos se escolhem entre si” e que homens negros também escolhem os
brancos, o que sempre dificultou quaisquer relacionamentos. Para Toni, o amor
entre pessoas negras é um ato político. Pergunto qual é seu maior sonho e ele
responde, sorrindo com os olhos: “Ah! Eu gostaria de me casar com um homem
negro, aquele sonho da supremacia negra, sabe?”.
dossiê Walter Benjamin
Apresentação
EDUARDO REBUÁ

Walter Benjamin como caixa-preta do século 20. É impossível pensá-lo sem


imagens num trágico momento de derrotas das formas dialógicas e, por isso,
solidárias da experiência. A caixa-preta nos parece um duplo signo: um campo a
ser prospectado no movimento de “decifragem” de enigmas (fantasmagorias) e
ao mesmo tempo um guardador de memórias e sentidos de uma temporalidade.
Em 2020 teremos os oitenta anos de sua morte e na última década,
proporcionalmente ao seu tamanho, tivemos sintomaticamente no Brasil poucos
seminários, congressos sobre o filósofo que figura entre aqueles que mais
penetração têm nas diversas esferas da vida acadêmica, da História às Artes, da
Filosofia à Arquitetura, da Literatura à Sociologia. A despeito dos importantes
grupos de pesquisa e trabalhos sobre Benjamin, da reedição de suas obras ou
daquelas tecidas a partir delas, temos a impressão de que há ainda incisivos
desafios em fazer este colecionador dos estilhaços da dialética caminhar, numa
flânerie pelos trópicos, mais perto da vida fora das bancas de pós-graduação e
dos periódicos-commodities.
Somos um canteiro de obras que se especializou e “espacializou” num tipo
de barbarismo bovarista edulcorado capaz de matar, duas vezes ou mais, jovens
negros sobreviventes de chacinas, museus resistentes a incêndios, mulheres
violentadas que denunciam abusos de seus corpos e desejos, ecossistemas que
não pediram para ser guarda-volumes de rejeitos minerais, parlamentares do
contrapelo que quase sozinhos denunciam as máfias de estimação e os mitos de
ocasião, artistas que insistem em nos lembrar do capitão do mato, da mesquinhez
sudestina, de Marighella, de nosso conservadorismo para inglês não ver, de
Paulo Freire em Angicos e no Chile, da poesia ainda não usurpada dos
derrotados das vielas. Matamos a morte a ponto de a reificarmos.
Teremos, os intelectuais, transmutado Benjamin em totem, em souvenir de
Frankfurt? Sua exímia capacidade de antever perdas e catástrofes nos assombrou
a todos como alguém que tapa os ouvidos quando não mais suporta receber a má
notícia? Seus escritos heréticos endógenos e exógenos ao marxismo, produzidos
em recantos vários e quase sempre em fuga, ainda são desconhecidos de um
enorme público, sobretudo na esfera pública da política, ali onde os autores
geniais transitam sob pseudônimos como hegemonia, revolução, arte, narrativa,
sentimento.
Continuamos: se é impossível esgotar um pensador de tamanha amplitude,
teríamos domesticado sua potência crítica, notadamente em relação à
modernidade capitalista burguesa, filtrando em sua diagnose do que vai mal na
cultura os anseios revolucionários dos vencidos? Parece-nos que há um
Benjamin exilado no Brasil, professor universitário na USP a partir do convite
de Erich Auerbach, interessaria sobremaneira, na hora atual, a potência fascista
das milícias e dos tribunais que condenaram Marielle, a estética do manguebeat
que brota do legado de Chico Science, o cinema das favelas que não é o favela
movie da indústria cultural, a elaboração autoritária, sob as bênçãos religiosas, de
um passado negacionista que apaga a ditadura e desloca o nazismo para a
esquerda, as cruzes sem nomes, os jovens negros estrangulados por seguranças
negros de supermercados que nos eternizam nos rankings da morte mundo afora.
Talvez o crime contra Benjamin, como num conto de Poe, tenha deixado
mais rastros em relação à última hipótese, diluída na multidão de violências
contra aqueles que não consentem com o labirinto das mercadorias tampouco
com sentidos contrarrevolucionários. Nossa percepção da necessidade de um
dossiê sobre Walter Benjamin, num contexto de fascistização no/do Estado
Ampliado brasileiro, maneja a compreensão mais usual de “dossiê” como pasta
de documentos ou portfólio, mas também como elemento comum em
investigações policiais.
Em março de 2010 a CULT publicou um especial sobre o pensador em sua
edição nº 106, a partir das reflexões de intelectuais como Vladimir Safatle,
Márcio Seligmann-Silva e Jeanne Marie Gagnebin. Passada quase uma década,
vemos a fotografia de um país que negou o luto sob um Estado de Exceção
exemplar, normatizou colonialidades – estabelecendo suas memórias oficiais sob
a morfologia de um espremedor das classes populares – e estabeleceu uma
violência administrada como modo de vida e sustentáculo das instituições.
Compreendendo a Erfahrung benjaminiana como a construção coletiva de
sentidos sobre o real, como dimensão ontológica e práxis em corrosão na
contemporaneidade; defendemos que a democracia fantasmagórica brasileira
tem sido, sobretudo no colapso da Nova República, um enigma a exigir do
materialismo histórico interpretações e veredas à altura do Jetztzeit. A
democracia fantasmagórica é mercadoria, o toma lá dá cá e também uma
enganosa projeção; uma democracia cuja resultante quase que invariavelmente é
o par invisibilidade/impossibilidade.
Abrimos o dossiê com Maria Rita Kehl, psicanalista e escritora, uma das
mais sensíveis intérpretes benjaminianas no movimento que apontamos, o de sua
tradutibilidade menos erudita porque colada à experiência como partilha. Em O
tempo e o cão: a atualidade das depressões (2009, vencedor do prêmio Jabuti
2010) escava a temporalidade no capitalismo em seus vínculos com a
experiência buscando compreender os sintomas e as condições contemporâneas
do mal-estar. Em seu artigo apresenta uma narrativa que ausculta a relação de
nosso filósofo com as cidades, trazendo o lirismo-navalha de Baudelaire como
camada. Num exagero anacrônico válido podemos dizer que sem Benjamin não
haveria Paris, bem como o contrário. A cidade que foi objeto, casulo, biblioteca,
medo e sonho ressurge em Kehl com a força das barricadas.
Martha D’Angelo, estudiosa do poeta das Passagens desde longa data,
autora de Arte, política e educação em Walter Benjamin (2006), afirma-se como
interlocução obrigatória nas fronteiras entre filosofia e educação. Na costura
dialética entre cultura e progresso, a filósofa traz-nos um intelectual que não
precisa se explicar materialista porque anticapitalista e narrador-intérprete dos
derrotados do tempo como continuum. Um Benjamin historiador na reflexão de
D’Angelo, que traz o Brasil dos nossos dias sem vinheta e legenda, o país das
tragédias planejadas de mineradoras, dos massacres justificados de jovens
negras/os e pobres, do feminicídio em profusão que deveria impedir quaisquer
consciências tranquilas.
Luiza Amaral em Desempacotando minha biblioteca: montagem, memória
e exposição remexe o gigantesco-pequenino texto publicado em 1931 no Die
Literarische Welt, num artigo original marcado por sua habilidade em manejar
áreas do sensível como a História da Arte, a Arquitetura e a Restauração. É da
sociedade burguesa que a autora trata, restaurando – no limite imposto pelo
fetichismo e pela alienação – a potência do ato de colecionar como forma de ver,
de perceber, de sentir.
Finalmente, eu radiografo o conceito de fantasmagoria em Benjamin num
recorte de suas investigações recentes acerca do processo de fascistização no
Brasil, enfatizando a relação entre Estado de Exceção e democracia
fantasmagórica. Há nestas linhas uma reivindicação da crítica antifascista
benjaminiana, nunca descolada da diagnose do capital na modernidade, no
movimento sempre complexo de encontrar a distância certa da crítica, como
asseverou o ensaísta em Rua de mão única.
Dizem que caixas-pretas são analisadas por uma equipe de especialistas
altamente preparada. Acreditamos que aqui o esforço foi similar. Em prol da
dúvida e da permanência de Benjamin como problema e trilha.
Walter Benjamin e as cidades
MARIA RITA KEHL

Um autor que, à maneira dos românticos do século 18, escreveu grande parte de
sua obra na forma de fragmentos. Com exceção da tese sobre o drama barroco,
reprovada pela banca na Universidade de Frankfurt, sua obra se desenvolve na
forma do ensaio, que permite grande liberdade para se abordar um tema de
forma fragmentária. Assim são as magníficas crônicas da Infância berlinense,
assim seus ensaios mais conhecidos, como “O narrador” e “Experiência e
pobreza”, assim as dezoito Teses sobre o conceito de história e, em especial, o
belo ensaio sobre Baudelaire, cuja publicação – que teria rendido algum dinheiro
a Benjamin, na época vivendo miseravelmente em Paris – foi recusada por
Adorno e Horkheimer, já refugiados nos Estados Unidos.
Outra característica marcante na obra de Benjamin é seu interesse pelas
cidades. A Infância berlinense é rememorada pelo autor na forma de pequenas
passagens – lembremo-nos de que Passagens é o título do grande projeto
inacabado de Benjamin, cujo nome foi inspirado nas galerias comerciais
construídas em Paris como parte do projeto de Napoleão III de modernizar a
cidade, executado pelo prefeito Georges-Eugène Haussmann – e recantos da
cidade. A Berlim de Benjamin é toda descrita da perspectiva da criança míope:
atenta aos detalhes, a beleza das cores, aos recantos secretos do zoológico, aos
barulhos produzidos pelo trabalho doméstico no pátio interno da casa da avó.
Também são as coisas pequenas, modestas, que o impressionam na viagem a
Moscou, movido pela paixão por uma jovem comunista, Asja Lacis. A capital da
Rússia comunista comove o viajante através dos detalhes: as cores dos modestos
brinquedos de madeira vendidos nas ruas; o papagaio empoleirado no ombro da
vendedora de roupas íntimas; os bandos de meninos de rua que perambulam a
mendigar pelo centro da cidade. No entanto, através dessa observação miúda,
Benjamin admira a vivacidade das pessoas comuns, engrandecidas pelas
conquistas do primeiro período da vida revolucionária.
Nessa breve intervenção, escolho o ensaio Charles Baudelaire: um lírico no
auge do capitalismo – primeiro texto de Benjamin com o qual tive contato, nos
anos oitenta (do século passado...). É a última série de ensaios escrita por ele, na
qual o filósofo, exilado em Paris, segue as pegadas do poeta em busca dos
fragmentos do passado naquela cidade toda reconstruída de forma monumental
por iniciativa do prefeito Barão de Haussmann, no período napoleônico. De
forma análoga ao anonimato daquele que viria a ser consagrado (postumamente)
como o maior poeta da língua francesa, a publicação dos preciosos ensaios de
Walter Benjamin, enviados para a revista do Institute for Social Research foi
recusada pelos amigos frankfurtianos Adorno e Horkheimer, que a editavam
desde Nova York. Uma prova, a meu ver, de extrema insensibilidade de parte da
dupla, que não ignorava a penúria enfrentada pelo amigo na capital francesa e
também não entendeu a grandeza do ensaio não acadêmico de Benjamin. Prova
também, por outro lado, da desadaptação de Benjamin aos padrões acadêmicos
de pesquisa.
Talvez seja abuso interpretativo imaginar que o interesse de Benjamin por
Baudelaire passe por certa identificação com a condição em que viveu o poeta.
No entanto, é verdade que Benjamin viveu quase miseravelmente em Paris, para
onde fugiu em 1933 e onde ficou até a invasão nazista. “Vivo na expectativa de
que uma mensagem de má sorte caia sobre mim. Por enquanto, ainda me
aguento – exceto pelo fato de que não consigo me prevenir para o futuro”
escreve Benjamin em carta ao escritor Bernard von Brentano, em abril de 1942.
Durante o regime de Vichy (entre 1940-1944 o governo mudou-se para a
cidade de Vichy, a qual se tornou a capital de fato do Estado francês), aliado dos
nazistas, Benjamin esteve preso por um tempo em um campo de concentração.
Voltou a Paris, pouco antes da iminência da chegada das tropas de Hitler à
cidade, quando demorou a fugir com um pequeno grupo guiado pela jovem
combatente Lisa Fitko. Ao chegar a Port Bou, limite da França com a Espanha, o
grupo recebe a notícia de que a fronteira tinha sido fechada. Sem mais nenhuma
esperança, Benjamin toma em seu quarto uma cápsula de morfina que levava
para a possibilidade de ser capturado. Na manhã seguinte a fronteira foi reaberta.
O corpo de Walter Benjamin foi sepultado no pequeno cemitério da cidade
catalã. O trágico episódio faz lembrar o comentário familiar sobre o então
menino “azarado”. Perseguido pelo “corcundinha”, dizia carinhosamente a avó.
A má sorte de Baudelaire não fica atrás da de seu melhor leitor. Rejeitado
pelo segundo marido de sua mãe (um militar), o poeta deixou a casa familiar e
enfrentou uma vida miserável em Paris, onde morreu aos 46 anos. Se o corpo de
Benjamin jaz num pequeno cemitério de fronteira, os restos mortais de
Baudelaire se encontram em Montparnasse, no túmulo da família, onde seu
nome está inscrito em letras pequenas... “e o poeta Charles Baudelaire” abaixo
dos registros mais vistosos da mãe e do padrasto. Seus poemas sobre os
mendigos, os moradores de rua, os habitantes dos sótãos minúsculos na cidade
monumental, dão notícias da proximidade do poeta com esses personagens.
“Baudelaire conformou sua imagem de artista a uma imagem de herói”, escreve
Benjamin na abertura do ensaio “A modernidade”. Um herói trágico, diga-se,
que entregou a vida à poesia, prescindindo praticamente de tudo o mais.
Os traços que Benjamin valoriza em Baudelaire são intrigantes para o leitor
de expectativas românticas. Embora o poeta seja considerado pelo cânone como
o último romântico e o primeiro dos modernos, não é banal entender de que
romantismo se trata. No espaço que este breve ensaio me permite, posso resumir
o romantismo de Baudelaire com a frase citada pelo próprio Benjamin: ele
possuiria “a indolência natural dos inspirados”. Nada lhe interessava exceto a
poesia. O heroísmo romântico do poeta reside em sua resistência a aburguesar-
se, em sua escolha radical de viver como um clochard, “colhendo a poesia que
espalha(s) no chão”, para citar um belo verso de Chico Buarque. Um clochard
que se portava e se vestia como um dândi. Mas o dandismo do poeta estava
fadado ao fracasso: para Benjamin, “seu amor pelo dandismo não foi feliz. Não
tinha o dom de agradar, um elemento tão importante na arte de não agradar do
dândi”.
O pretenso dandismo de Baudelaire era inseparável da escolha de levar ao
extremo sua vocação – daí o aspecto trágico de sua vida. “Para viver a
modernidade”, escreveu Baudelaire, “é preciso ter uma constituição de herói”.
No entanto, nela não há lugar para o herói. “Nela o herói não cabe”, observa
Benjamin, ao ressaltar o desencanto que caracteriza os tempos modernos. “Ela
não tem emprego algum para esse tipo (...). Pois o herói moderno não é herói –
apenas representa o papel do herói. A modernidade heroica se revela como uma
tragédia onde o papel do herói está disponível”. Diante disso Benjamin, em uma
pirueta ardilosa que é bem do seu estilo, cita Jules Lemaître para concluir que o
dandismo do poeta é “o último brilho do heroico em tempos de decadência”.
O elemento que Benjamin destaca na poesia de Baudelaire, na contramão
do que uma leitura romântica poderia esperar, é o elemento do choque. O tema
da velocidade que caracteriza a vida moderna, presente em outros de seus
ensaios é destacado na leitura dos poemas de Baudelaire.

*Vê-se um trapeiro cambaleante, a fronte inquieta,
Rente às paredes a esgueirar-se como um poeta,
E, alheio aos guardas e alcaguetes mais abjetos,
Abrir seu coração em gloriosos projetos.
Juramentos profere e dita leis sublimes,
Derruba os maus, perdoa as vítimas dos crimes,
E sob o azul do céu, como um dossel suspenso,
Embriaga-se na luz de seu talento imenso.
Toda essa gente afeita às aflições caseiras,
Derreada pela idade e farta de canseiras,
Trôpega e curva ao peso atroz do asco infinito,
Vômito escuro de um Paris enorme e aflito,
Retorna, a trescalar do vinho as escorralhas,
Junto aos comparsas fatigados das batalhas,
Os bigodes lembrando insígnias espectrais.
Os estandartes, os pendões e arcos triunfais
Ou o choque da brutal transformação da cidade antiga, demolida para dar
lugar à monumental “cidade-luz”:

*Paris muda! mas nada em minha nostalgia
Mudou! novos palácios, andaimes, lajedos,
Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria,
E essas lembranças pesam mais do que rochedos.
As transformações da velha Paris não alteraram a melancolia do poeta, que
busca na alegoria um destino simbólico para o que se perdeu. A alegoria foi
também um tema caro a Benjamin, que a analisa em seu estudo pós-doutoral –
que seria recusado – de admissão à Universidade de Frankfurt, em 1925, como
professor, A origem do drama trágico alemão. Brevemente: para Benjamin, o
Romantismo (que na Alemanha surge no século 18) com sua fome de absoluto,
teria dominado toda a filosofia da arte, tornando “antiquado” o uso da alegoria
que caracteriza o Barroco. O “simbolismo concreto” da alegoria, símbolo
artístico por excelência no entender de Benjamin, associa-se ao que os antigos
consideravam como “sinais dos deuses”, já que na alegoria existiria uma
correspondência completa, ponto por ponto, entre o “simbolizante”, suporte do
símbolo, e aquilo que é simbolizado. Assim, quando Baudelaire escreve “J’ai
plus de souvenirs que si j’avais mil ans” (Eu tenho mais recordações do que há
em mil anos), é de uma alegoria e não de uma metáfora que se trata. O poeta
afirma que sim, ele tem mais lembranças do que teria se vivesse mil anos e não
(no caso da metáfora), que tem lembranças como se tivesse mil anos.
Apenas para dar mais um exemplo, vejamos o final do poema “Obsession”:

*Me agradarias tanto, ó noite, sem estrelas
Cuja linguagem é por todos tão falada!
O que eu procuro é a escuridão, o nu, o nada!
Mas eis que as trevas afinal são como telas,
Onde, jorrando de meus olhos aos milhares,
Vejo a me olharem mortas faces familiares.
O que agradaria ao poeta, na “linguagem” da noite? Ao buscar o vazio, o
negro, o nu, o eu poético encontra, não o brilho das estrelas, mas os seres
invisíveis, impossíveis de se ver a olhos nus. O poeta declara seu fascínio por um
objeto perdido, cujo brilho lhe acena de tão longe quanto a luz das estrelas.
Como não pensar aqui no objeto perdido da psicanálise, causador de desejo?
Objeto que também pode ser a cidade, aquela que desapareceu sob os escombros
da reforma promovida por Napoleão III e que mais tarde Benjamin veio a buscar
para compor com elas o livro interminável, o livro fragmentado e impossível das
Passagens.
*Trecho de poemas extraídos de As flores do mal, tradução Ivan Junqueira,
Nova Fronteira, 1985
Crítica da cultura e do progresso
MARTHA D’ANGELO

A potência do pensamento de Walter Benjamin revela-se na forma como ele


aborda, no ensaio “Sobre a crítica do poder como violência”, a relação de toda
ordem jurídica com a violência e a questão da legitimidade dos meios
constituintes do poder. Esse texto, escrito provavelmente na virada do ano de
1920 para 1921, prenuncia o grau de sutileza e consistência que o autor viria a
alcançar através de um paciente rastreamento do obscuro e massacrante
caminhar da história. Em sua obra foram incorporados elementos de muitas
fontes – clássicos da filosofia, livros para crianças, panfletos, poesia, diários de
viagem, álbuns de fotografia, textos sobre cinema e arquitetura, tratados
teológicos, revistas de moda etc. – e também documentos retirados do lixo da
história oficial. O fôlego intelectual para processar um conjunto tão variado de
fontes e informações tinha como contraponto uma sensibilidade dolorosamente
frágil e inábil para resolver problemas práticos. Até o fim de sua vida, na trágica
noite de 26 de setembro de 1940, Benjamin investiu suas energias contra aquilo
que os historiadores liberais entendem por “progresso”. Diante da história, um
gesto tornou-se necessário para ele: deter a marcha do progresso e implodir o
enquadramento servil que mantém o status quo.
A carga de violência inerente à cultura e ao seu processo de transmissão
podem se tornar invisíveis dependendo da forma como a história é escrita. A
reflexão de Benjamin sobre a questão do poder como violência remete à ideia de
“estado de exceção como regra”, exposta na tese VIII Sobre o conceito de
história. Suas primeiras intuições sobre esse tema surgiram em 1919, sob o
impacto da derrota espartaquista e os assassinatos de Rosa Luxemburgo e Karl
Liebknecht, em janeiro daquele ano, antes da instituição da República de
Weimar. Dois anos depois, no ensaio “Para uma crítica da violência”, Benjamin
trata do abismo que separa a justiça do direito na época moderna.
A crítica benjaminiana ao progresso absorveu elementos da mística judaica,
do romantismo alemão, da poética de Baudelaire e das reflexões de Louis-
Auguste Blanqui. Na vertente romântica, Rousseau foi o primeiro autor moderno
a criar uma filosofia da história que tem como eixo central a crítica ao progresso.
Desde seu escrito inaugural, o Discurso sobre as ciências e as artes, manifestou
uma grande desconfiança em relação aos filósofos iluministas herdeiros da
tradição racionalista, que veem a marcha da história como progresso. A
polêmica gerada por esse Discurso, que obteve o primeiro prêmio no concurso
promovido pela Academia de Dijon em 1749, deve-se principalmente ao fato de
ele admitir que o desenvolvimento das ciências e das artes teria contribuído para
a degeneração dos costumes e a corrupção da sociedade. O progresso teria
favorecido a decadência das civilizações ao ampliar a separação entre o homem
e a natureza. Para Rousseau, a opacidade do mundo, fruto da alienação advinda
com a perda da inocência própria ao estado de natureza, explica a permanente
tensão que perpassa a história. O processo de formação da cultura, opondo o
homem à natureza e aos seus semelhantes, nos conduziu a um estado geral de
alienação e a um mal-estar insustentável.
Apesar de não citar Rousseau como referência, Benjamin mostra em suas
teses sobre a história muitas afinidades com ele. Contrário a uma concepção
evolucionista-positivista, compreende a marcha da história como catástrofe.
Nessa perspectiva, o “novo” representa a consolidação da ilusão do progresso. A
desconstrução desse mito remete à desnaturalização da barbárie. Uma barbárie
que oculta as contradições da cultura e apaga a memória dos vencidos,
impedindo a ruptura com a reprodução dos mecanismos de dominação que
sustentam a violência e a desigualdade social. Nesta concepção, a reconstrução
do passado é feita através do encadeamento de fatos por uma memória
pretensamente neutra. A leitura de Freud e a incorporação de conceitos da teoria
psicanalítica levaram Benjamin a compreender a história como um campo de
disputa em que atuam forças inconscientes. A história é construída por uma
memória interessada, que seleciona o que merece ser lembrado e o que deve ser
esquecido. O passado, por ser uma construção, não é imutável, nem uma espécie
de arquivo morto onde são colocados autores, obras e fatos dignos de registro à
disposição dos pesquisadores. A articulação entre memória e esquecimento
como forma de controle social auxiliar da história se expressa hoje, por exemplo,
na disputa que se trava no Brasil em torno do legado de Paulo Freire; a tentativa
de desqualificar sua obra confirma a lucidez de Benjamin ao afirmar, na tese VI,
que “nem os mortos estarão seguros se o inimigo vencer”.
Na crítica à cultura burguesa e sua visão do progresso, dois autores foram
fundamentais para Benjamin: Blanqui, e o relato de sua experiência pessoal
como revolucionário no livro A eternidade pelos astros, e Baudelaire, que
revelou o reprimido da história na sua prosa poética e nos versos d’As flores do
mal. A ira, o rancor, o sangue-frio, a paixão que animou meio século de lutas de
barricadas em Paris estão presentes no espírito de Baudelaire e na sua descrença
em relação ao progresso. Blanqui, o grande herdeiro dos valores jacobinos, um
revolucionário que participou do processo de transformação da França desde as
insurreições de 1830 até a Comuna de Paris, reforçou no pensamento de
Benjamin a ideia de progresso como a mais perversa e mentirosa de todas as
ilusões modernas. A aproximação entre os dois foi reconhecida em muitos
trechos das Passagens, de onde destaco os seguintes: “A fórmula de L’Éternité
par les Astres – ‘É o novo sempre velho e o velho sempre novo’ – corresponde
rigorosamente à experiência do spleen tal qual descrita em Baudelaire” e “O
spleen é o sentimento que corresponde à catástrofe em permanência”.
Em nossa época, a ideologia do progresso, ao estimular um
desenvolvimentismo predatório, cria condições para que aconteçam tragédias
como as de Mariana e Brumadinho. As imagens fortíssimas do rompimento da
barragem, mostrando a velocidade da lama devorando tudo a sua frente são uma
alegoria viva do progresso como catástrofe. Na versão da história escrita pelos
vencedores, o esquecimento do sacrifício imposto aos perdedores em nome do
progresso condena o presente a repetir os erros do passado. O genocídio da
juventude negra pobre que vemos hoje nas periferias das grandes cidades
brasileiras é uma violência que se conecta com o esquecimento da dívida social
resultante de mais de trezentos anos de escravidão. O feminicídio, por sua vez, é
indissociável da vigência de elementos da cultura patriarcal na política
institucional, na mídia e no Poder Judiciário. A fragilidade da democracia
brasileira, visível na pouca consistência e autonomia de suas instituições, sempre
tuteladas pelos militares, impede que esse ciclo de repetição infernal da
desigualdade seja rompido. Como observou Hannah Arendt, em A origem do
totalitarismo, em tempos sombrios, e isso caracteriza bem o que vivemos hoje,
os excluídos e os mais ressentidos com o establishment político, os que odeiam a
política, são facilmente recrutados pela direita. O fascismo brasileiro tem se
expressado através da negação e criminalização da política, da afirmação de
símbolos religiosos e de mitos como a família tradicional, a hierarquia, a
disciplina, as cores da pátria, a autoridade etc. Faixas pedindo a volta dos
militares nas manifestações que levaram ao golpe de 2016 demonstram esse
desejo regressivo de dominação fascista e de restauração moral e social.
A noção de tikkún, extraída da tradição messiânica cabalista de Isaac Luria,
que compreende a redenção como restauração da harmonia cósmica quebrada,
apresenta pontos de contato com a tradição romântica. No texto “A caminho do
planetário”, que integra a coletânea Rua de mão única (1928), a compreensão de
Benjamin sobre o progresso parece amalgamar essas duas fontes, sobretudo
quando ele observa que o “descaminho dos modernos”, conduzido pelo desejo
de dominação da natureza, significa exatamente a quebra da harmonia cósmica.
Esse desejo de dominação, potencializado pela ideologia do progresso,
promoveu uma mudança profunda na relação do homem com a natureza,
levando-o a considerar a experiência cósmica com o universo como
“irrelevante”, “descartável” ou como “devaneio místico em belas noites
estreladas”. A rejeição de Benjamin aos princípios e valores da cultura burguesa,
e sua denúncia do progresso como mito, também atinge o materialismo vulgar e
as teorias reducionistas que limitam o desenvolvimento da humanidade às
descobertas científicas e técnicas, e ao crescimento das forças produtivas. Foi a
dominação da natureza, movida pela avidez do lucro da classe dominante, que
impediu a tecnologia de realizar o casamento entre a humanidade e o Cosmos: “a
técnica traiu a humanidade e transformou o leito de núpcias em um mar de
sangue.”
O que o ato de colecionar nos fala sobre o presente?
LUIZA BATISTA AMARAL

Compor uma coleção consiste num exercício constante de montar uma narrativa,
não só através do ato de selecionar os objetos, mas também de eleger quais deles
serão exibidos. Trata-se de uma ação atravessada pela dialética da reificação e da
reanimação como lembra Hal Foster em “Arquivos da arte moderna”, de 2009. O
colecionador é o mediador da circulação dos objetos, movimentando seu ciclo de
vida e morte (exibição e apagamento). É aquele que não apenas coleta, mas
também o que investe suas memórias e afetos nesse corpo externo, construindo
nele a extensão de sua existência.
Essa prática de colecionar foi, em diferentes textos, analisada por Walter
Benjamin como um fenômeno da modernidade presente tanto no habitar
burguês, quanto no ambiente urbano. O burguês coleciona objetos no interior de
sua moradia como um antídoto ao anonimato da cidade, ambiente marcado pelas
multidões, pelo apagamento da individualidade e pela intensa transformação
dada pelas reformas urbanísticas como as de Paris no século 19 por Hausmann.
Ele se fecha em sua casa-estojo. Como Benjamin descreve no texto “Experiência
e pobreza”, de 1933, essa relação entre indivíduo e objeto é representativa, o
burguês investe memórias e afetos nele, por isso, se encoleriza ao ver seus
bibelôs quebrados, imagem que simboliza o apagamento de sua existência no
mundo. Habitar nessa condição burguesa significa deixar rastros.
Além do colecionador burguês, Benjamin identifica outra figura marcada
pelo hábito da coleção: o poeta que atua como um trapeiro. Baseia-se no trapeiro
descrito por Charles Baudelaire, indivíduo atraído pelo resto e pelos dejetos do
espaço urbano. A pintura O trapeiro (1869) de Eduard Manet mostra um homem
com as roupas puídas e sujas acompanhado de um pequeno acúmulo de dejetos.
Essa tela ilustra a imagem desse indivíduo à margem que ao caminhar pela
cidade monta seu arquivo a partir de tudo o que a cidade rejeitou. Observa esse
espaço a partir do fragmento, do abjeto. Como coloca Constance von Krüger em
“A coleção – um gesto poético: uma leitura benjaminiana sobre o colecionismo”,
dos Cadernos Benjaminianos: “Ao catar imagens e recolher impressões, de
maneira análoga à obtenção de itens pelo colecionador, o poeta inaugura um
elenco de fragmentos”.
É interessante pensar nessa figura do trapeiro como um indivíduo que
coleciona o que sobra, o que é pedaço, logo, não partindo do todo (conjunto).
Sobre esse ponto, Benjamin em “Desempacotando minha biblioteca: um
discurso sobre o colecionador”, de 1931, olha para o livro, o fragmento da
coleção, o objeto, e, a partir dele, tece uma reflexão sobre o ato de colecionar,
revisitando também a memória presente nesses objetos. Ao desempacotar seus
itens, Benjamin convida o leitor a adentrar na paisagem na qual ele se encontra,
ou seja, o canteiro de obras de sua biblioteca: “Devo pedir-lhes que se transfiram
comigo para a desordem de caixotes abertos à força, para o ar cheio de pó de
madeira, para o chão coberto de papéis rasgados, por entre pilhas de volumes”.
Nesse canteiro, Benjamin reflete sobre a ação de colecionar; cada livro o leva a
rememorar a história de sua aquisição, a excitação do ato de adquirir própria da
atmosfera dos leilões, e, principalmente, a tensão entre a ordem e a desordem
que atravessa o colecionador em seu incessante impulso de catalogar e finalizar
sua biblioteca, seja a partir de sua organização, ou pela aquisição de um novo
item que a atualize.
Benjamin propõe um olhar sobre a coleção não a partir de seu produto, a
biblioteca, mas sobre o que está por trás da imagem desse conjunto de livros
catalogados em estantes, homogeneizados pela ordenação de tema, título e autor.
O foco sobre o instante entre a ordem e a desordem, descrito por Benjamin,
permite uma leitura sobre a movimentação desses itens da coleção fugindo da
imagem da biblioteca como um mausoléu de objetos encerrado em seu passado,
tratando-a como um local de efeitos mnemônicos. Nesse texto, Benjamin
também chama atenção para a figura do colecionador que se empenha em
compor uma estante de livros sem ter lido os exemplares de sua coleção, da
mesma forma que coleciona porcelana de Sévres e não a usa diariamente. Ele
critica esse papel imóvel da coleção através de sua própria bibliofilia: “Por anos
a fio (...) minha biblioteca não consistiu de mais de duas ou três fileiras que
cresciam anualmente cerca de um centímetro apenas. Foi a sua fase marcial, em
que nenhum livro podia nela ingressar, sem que eu houvesse lido”. Benjamin
critica o colecionador que toma o objeto como inócuo e que estabelece uma
relação fetichista, ao obtê-lo, encerrando o ciclo de vida do objeto chumbando-o
em suas prateleiras ou cristaleiras onde essa coleção é exibida.
Na obra Terra de dois rios (Zweistromland, 1985), do artista alemão
Anselm Kiefer (1945), vê-se uma biblioteca formada por duzentos livros de
chumbo, dispostos em duas estantes de aço. O chumbo é um material pesado que
inviabiliza o simples ato de folhear e mover os livros. Ele atuaria da mesma
forma que o colecionador fossilizando sua coleção ao se relacionar com ela
apenas pela contemplação do acúmulo de volumes em suas estantes. Esse
trabalho de Kiefer oferece uma leitura sobre a neutralização da cultura e do
conhecimento e traz uma imagem para pensar a apropriação da biblioteca como
um mausoléu, um compêndio de restos de um passado fechado.
“Quando se quer designar uma pessoa, uma coisa antiquada, inútil fora de
uso, costuma-se dizer: ‘é uma peça de museu’.” Esse trecho de “Casas ou
museus?” (1958), da arquiteta Lina Bo Bardi, também serve de crítica aos
museus como mausoléus. Lina Bo Bardi foi responsável pelo projeto do Masp,
uma instituição que não se detém apenas na conservação das obras de seu
acervo. Trata-se de um museu que dialoga constantemente com o presente seja
através de sua arquitetura, seu vão livre aberto a diferentes apropriações políticas
e a atividades culturais, ou a exposições realizadas pelo museu que propõe um
revisitar do acervo refletindo sua ação no tempo agora. Um exemplo foi a
exposição “Acervo em transformação: mulheres à frente”, intervenção proposta
pelo museu na semana do dia internacional da mulher, 8 de março de 2019.
Nela, as obras dos artistas homens foram viradas e seus versos foram exibidos
em cavaletes de vidro, enquanto as produzidas pelas artistas mulheres eram
exibidas de frente. Essa imagem composta na galeria chamou atenção para a
disparidade entre gêneros na arte e também se propôs a dar visibilidade para a
produção dessas artistas mulheres pouco divulgadas pela história da arte. O
tratamento do acervo nessa proposição não toma a coleção como estática, não
lida com essas obras de modo a compor uma imagem do passado como ele
realmente foi, mas se apropriando dela e refletindo de que modo ela relampeja
no presente.
Outro fato que permite pensar a coleção no contexto atual é que sua
existência não está necessariamente condicionada a um espaço físico e a uma
instituição tal como um museu, na medida em que os itens colecionados não são
objetos e sim informação. A relação entre memória e arquivo através de novos
dispositivos eletrônicos e das redes sociais tem modificado a maneira como a
ação de arquivar atua no âmbito da cultura e dialoga com o presente. A produção
e a coleta de imagens feitas por usuários de redes sociais como o Instagram é um
potencial arquivo do cotidiano, um mosaico de impressões composto pelo que
resta da experiência, a fotografia. Coletar essas imagens e dispô-las em coleção,
assim como o trapeiro coleta o que restou no ambiente urbano, traz uma
possibilidade de lermos a atual atmosfera de ruína que vivenciamos marcada
pela proliferação de imagens de museus incendiados, desastres ambientais e
construções e projetos paralisados. Colecionar é um exercício de fazer ver.
Benjamin e a fantasmagoria
EDUARDO REBUÁ

O adjetivo fantasmagórico aparece usualmente, sobretudo no senso comum,


mais como sinônimo de fantasma do que de ilusão, falseamento. Em outras
palavras, o termo, que também significa o que é relativo a fantasmas, ganhou
pelo uso mais proximidade com seres espectrais, assombrados, mortos-vivos, de
outro mundo, e menos relação com o significado de irreal, quimera, utopia,
fabulação. Interessa-nos aqui justamente esta segunda acepção de fantasmagoria,
notadamente porque vimos trabalhando com o conceito de “democracia
fantasmagórica” no esforço de compreensão do Brasil da Nova República, com
destaque para os últimos quinze anos (2003-2018), quando o Lulismo enquanto
pacto social, campo político e conformismo entra em cena, ao mesmo tempo que
o par neo-neo (neoliberalismo-neoconservadorismo) materializa um corpo
prenhe de afetos desencantados e desencantos do afeto, a caminhar pelas formas
de hegemonia vigentes. Os acontecimentos de junho de 2013 e a chamada onda
conservadora são dinâmicas distintas, mas relacionadas, das metamorfoses do/no
Estado Ampliado periférico.
A fantasmagoria foi uma categoria central para as análises de Walter
Benjamin no projeto das Passagens (1927-1940), já presente nos textos mais
maduros da década de 1930, profundamente vinculados ao materialismo
histórico, ao qual adere paulatinamente a partir da leitura de Lukács (História e
consciência de classe, de 1922), em 1924. Nestes escritos Benjamin começa a
conferir mais atenção à teoria marxista da cultura da mercadoria com lastro no
conceito de fetichismo. Para uma primeira aproximação entendemos ser crucial
demarcar a fantasmagoria no pensador alemão como vinculada tanto ao
fetichismo quanto à ideologia, relacionados ao se investigar os efeitos do
crescimento vertiginoso da lógica da mercadoria como sentido e direção das
relações sociais na modernidade capitalista.
Em Parque Central (1939-1940), na parte 35, Benjamin utiliza o termo
fantasmagoria como sinônimo de “ideia especulativa”, antes de se valer da
expressão “fantasmagoria da modernidade” ao contrapor Baudelaire a Nietzsche.
Em Paris, capital do século XIX (1935), nome que receberiam as Passagens a
partir de então, Benjamin admite para o amigo Scholem o desejo de
compreensão do 19, nesta grande obra que erigia, a partir de um espaço, Paris,
assim como fizera em Origem do drama trágico alemão, de 1928, ao utilizar a
Alemanha como lente para a compreensão do século 17. Neste texto que reúne
escritos diversos e dispersos, com uma densidade aberta, Benjamin chama de
fantasmagórica a cultura capitalista, o interior (das casas burguesas), a história
da cultura, o espaço, o tempo dentre outros. O diminuto texto tem na
fantasmagoria uma costura destacada, partindo da crítica radical ao capitalismo e
seus modos de reificação, de fetichização.
Assim, todas essas relações passam a se transformar de acordo com a óptica
mercantil, reificadora da vida. Em Benjamin, a fantasmagoria indica também um
declínio na comunicabilidade e na transmissibilidade da experiência perceptível
na expansão da informação e na corrosão da narrativa, de acordo com Jaeho
Kang. Na experiência da fantasmagoria torna-se questionável a mirada
cartesiana que estabelece uma clivagem entre mundo da subjetividade e mundo
objetivo. Para Kang, a fantasmagoria de Benjamin não indica um modo nem
parcial tampouco transitório da experiência, mas sim geral, oriundo exatamente
da transformação de todas as relações sociais segundo a lógica da mercadoria.
De maneira sintética podemos afirmar que o núcleo da crítica aguda e
original de Benjamin à modernidade capitalista se encontra no trato do
fetichismo da mercadoria, segundo Fabio Mascaro Querido, sob a utilização da
noção de fantasmagoria, com grande presença em seus últimos escritos, com
destaque para Das Passagen-Werk, de 1937 a 1940. Benjamin amplia o escopo
marxiano acerca do fetichismo, a partir da contribuição decisiva de Lukács sobre
a reificação, pois busca compreender o fenômeno dentro da crítica mais alargada
e histórica da modernidade capitalista, a partir do estudo da epidêmica expansão
da forma-mercadoria para além das fábricas e do comércio, atingindo a cultura
ao acertar em cheio as formas da subjetividade humana. Benjamin também
confidencia a Scholem, ainda comparando o trabalho das Passagens com A
origem do drama: “E eu posso te dizer previamente que também aqui haverá no
ponto central o desenvolvimento de um conceito tradicional. Se lá foi o conceito
de drama trágico, aqui será o conceito do caráter de fetiche da mercadoria”.
O termo fantasmagoria, presente nos trabalhos de diversos escritores
românticos como Edgard Allan Poe, Charles Baudelaire e Arthur Rimbaud, se
encontra em Marx no Livro I de O capital (1867), no primeiro capítulo, quando
trata da mercadoria, especificamente de seu caráter fetichista e seu segredo: “Já a
forma-mercadoria (...) é apenas uma relação social determinada entre os próprios
homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre
coisas”. A depender da tradução, em outro trecho da mesma parte, salienta: “Por
isso, todo o misticismo do mundo das mercadorias, toda a mágica e a
assombração [fantasmagoria] que anuviam os produtos do trabalho na base da
produção de mercadorias desaparecem imediatamente, tão logo nos refugiemos
em outras formas de produção”.
Em Marx o valor é um ente fantasmagórico, a despeito de sua
racionalidade. Na fronte do valor não está escrito o que ele é. Todo o produto do
trabalho social é convertido pelo valor em hieróglifo social, aponta o filósofo. O
fetiche mercantil separa, oculta a forma-mercadoria em relação à verdadeira
fonte de valor, o trabalho humano, mascarando as relações de exploração e
garantindo a supremacia dos vencedores e seu cortejo triunfal(ista). As
fantasmagorias se apresentam, com o suporte da ideologia dominante, como a
mais fiel representação do real.
Numa carta para Gretel Adorno (datada de 23 de março de 1939), Benjamin
admite o movimento de centralização, de destaque, de uma das concepções
presentes nas Passagens, qual seja o entendimento da cultura da sociedade
produtora de mercadorias como fantasmagoria. O fetichismo em Marx e a
reificação em Lukács ganham em Benjamin um novo vigor, traduzido no uso da
fantasmagoria como instrumento de investigação da cultura fantasmagórica do
capitalismo. A perspectiva da totalidade e o manejo dialético acompanham esta
vereda benjaminiana, atenta aos detalhes.
Esta cultura capitalista-fantasmagórica seria para Benjamin uma
autoimagem desta sociedade, uma construção que esconde a memória da forma
como as mercadorias aparecem na vida social, quem as produziu, como
produziram, quando o fizeram. O mergulho de Benjamin na teoria marxiana tem
mais a ver com a oferta original de conceitos radicais por parte desta escola de
pensamento, porque visando a crítica e a superação do capitalismo, do que com
o fato do materialismo histórico se constituir num possível sistema de conceitos
sólido.
A noção da fantasmagoria em Benjamin, ainda que não proponha uma outra
abordagem do fetichismo e da fantasmagoria em relação a Marx e Lukács,
focaliza especialmente na representação crítica da experiência – em seu processo
moderno de declínio, erosão e até mesmo impossibilidade – resultante das
modificações tanto nas relações quanto nas percepções sociais elaboradas
no/pelo capitalismo e seus fantasmas reais. Reivindica a imperiosa
renovação/atualização das formas de representação estética e de crítica política,
tendo em vista os múltiplos limites impostos à crítica racionalista num momento
histórico de colapso dos meios clássicos de representação.
Como é possível observar, o marxismo em Benjamin não representava
axiomas vazios ou uma teoria determinista, dogmática. Exatamente pela
heterodoxia de seus escritos ele conseguiu trabalhar com esta perspectiva
ontológica como uma referência em aberto, oriunda do 19, mas fornecedora de
pistas significativas em suas investigações sobre o capitalismo no/do 20. Ao
compreender as fantasmagorias como obstáculos concretos à interrupção da
barbárie, à percepção de catástrofes iminentes e dos vencedores do momento
presente, Benjamin estabelece um cordão-memorial exitoso em articular lutas
pretéritas e hodiernas numa mesma perspectiva de resistência, entendendo, a
contrapelo, que a opressão dá origem a tradições tanto dos algozes quanto dos
derrotados. Apontando para o vínculo inapagável entre passado, presente e
futuro, sob a perspectiva de um tempo não linear, porque descontinuidade, e de
uma temporalidade não uniforme, porque sentido e conflito, tece uma história
que é abertura, sempre imprevisível e passível de ser reescrita, narrada
novamente.
A partir de seus prismas é possível perceber os múltiplos elementos
fantasmagóricos da modernidade burguesa: o mercado (invisível), o gozo
(insaciável), a justiça (inacessível), a liberdade (inexistente), o amor (impedido),
o medo (inacabável), o Estado de Direito (excepcional) e finalmente, a
democracia (impossível). Focalizando nela recuperamos mais enfaticamente a
noção de fantasmagoria no pensador das Teses, ao reivindicarmos um novo
conceito ou ao menos um esforço de atualização: o que chamamos de
“democracia fantasmagórica”.
Compreendemos a sociedade brasileira como uma das mais bem-acabadas
expressões deste tipo de democracia, concomitantemente resultado da cultura e
da política do/no capitalismo e o efeito de uma sociedade surgida da
colonização/escravidão, cujas (des)identidades e dívidas impossibilitam até hoje
a junção das peças de nosso quebra-cabeça, sob o forte signo do bovarismo
brasileiro, segundo Maria Rita Kehl.
Este autoengano coletivo, uma das condições que definem o sujeito
moderno, pode ser uma pista para os estudos sobre nosso Estado de Exceção. Tal
aparato é chamado diuturnamente, dos especialistas da academia ao senso
comum, de Estado Democrático de Direito, sendo um dos raros que ainda se
valem do foro privilegiado, um dos poucos que não puniram protagonistas de
suas ditaduras, uma das maiores experiências de convivência com formas de
trabalho escravas ou similares à escravidão, um caso quase sem cura de
manutenção cínica da figura masculina, branca, cristã e rentista à frente de
funções públicas, e uma forma de poder historicamente permeável aos
coronelismos, “familismos” e gangsterismos de toda sorte.
A tese de Kehl é a de que o bovarismo representa um sintoma social
brasileiro, onde o “fazer-se passar por um outro” não é um delírio epidêmico,
mas um modo de aceitação e ao mesmo tempo uma negação/mascaramento de
uma condição de atraso em inúmeras dimensões da vida social, como o
provincianismo, o racismo, o patriarcalismo, o fisiologismo, o elitismo, o
machismo, o patrimonialismo. Entendemos que sua análise dialoga com a
perspectiva da fantasmagoria em Benjamin, pois o bovarismo também é o nome
para uma forma de fantasia ou convicção delirante, nítida tanto na personagem
Emma Bovary quanto em Rubião, de Machado, em Quincas Borba. A
fantasmagoria benjaminiana, lembramos, tem profunda conexão com o fetiche e
com a ideologia, portanto, comportando-se como uma noção advinda da
percepção da transformação das formas de subjetividade (relações e percepções)
em valores de troca, sob o capital. Ora, o bovarismo nos parece em sintonia com
esta leitura uma vez que trata da transmutação simbólica, psíquica, subjetiva, de
um sujeito em outro ou em outros.
Há na reflexão da psicanalista elementos que nos autorizam a associar
Estado de Exceção e bovarismo, bem como Estado de Exceção e fetiche, no
movimento de desenho da noção de democracia fantasmagórica. Segurar o cabo
do chicote – e por aqui o chicote nunca foi pequeno – como um não privilégio
das elites, num país que é acima de tudo uma forma de violência, como aponta
Vladimir Safatle, em Só mais um esforço. Uma sociedade nascida da violência e
que soube com maestria incorporá-la às relações sociais, a ponto de seus sujeitos
não identificarem e assimilarem as opressões que sofrem, sendo comum a defesa
do agressor, uma justificação do horror. A negação recente, mais cínica ou
menos, da tragédia da ditadura civil-militar de 1964 por amplas camadas sociais
e capitaneadas pelo capitão-presidente miliciano, em conluio com o quarteto
mídia-parlamento-judiciário-think tanks (expressão polissêmica de origem
inglesa que designa aparelhos privados de hegemonia elaboradores de políticas,
pesquisas, pedagogias, estratégias. De origem militar, o nome dilatou-se a partir
do uso mais corrente, sobretudo a partir dos anos 1970, com a profusão de
instituições da sociedade civil, supostamente autônomas e de “interesse social”,
focalizadas na elaboração de consensos nas esferas política, econômica, cultural,
institucional, científica, em estreito vínculo com espaços de hegemonia), é
apenas mais uma expressão do longo processo de fascistização no Brasil,
elaborador e difusor de vontades coletivas neofascistas.
Fantasmagorias do último período ditatorial brasileiro, cujo luto e o trauma
foram adiados como projeto e sintoma social, impregnaram instituições, classes,
sujeitos, a cultura, numa síntese que amalgama o que temos chamado de “ethos
(neo)pentecostal corporativo”, mais visível nas duas últimas décadas, com
elementos de nossa subalternidade, nossa heteronomia cultural, nossa narrativa
da casa-grande, nosso ódio às classes populares, forjando um fascismo à
brasileira que tem cabeça de fascismo, olho de fascismo, nariz de fascismo,
pernas de fascismo e que ainda, para muitos, não é fascismo. Nossa dificuldade
costumeira com as temporalidades da violência, numa sociedade que tem o medo
e o ódio como religião, tem obliterado a compreensão desta ideologia como
tempo, como experiência e, logo, como forma de sentir. Benjamin, que entendeu
o fascismo como fenômeno difuso em toda a cultura, nos ajuda nesta
arqueologia tardia dos ecos do tempo.
inédito Audre Lorde
Levou 35 anos para que o mais celebrado livro de Audre Lorde (1934-1992)
chegasse ao Brasil. Irmã outsider, lançado neste mês pela editora Autêntica,
reúne 15 escritos de não ficção produzidos entre 1975 e 1983 pela poeta,
escritora e ativista norte-americana, filha de imigrantes caribenhos, nome central
para o desenvolvimento da teoria feminista contemporânea. São ensaios e
conferências que costuram temas recorrentes em seus nove livros de poesia e
cinco de prosa: sexualidade, autocuidado, racismo, amor, sexismo, classe,
LGBTfobia.
Mulher negra, lésbica, socialista, mãe e feminista, Audre Lorde escreveu a
partir da sua própria posição de “outsider”; como alguém que com frequência se
via fazendo parte de algum grupo no qual era definida como “difícil”, “inferior”
ou “errada”. Com a compreensão de que as opressões se acumulam sobre as
pessoas de forma não hierarquizada, ela confronta, nesses textos, a “inabilidade
de reconhecer o conceito de diferença como uma força humana dinâmica, mais
enriquecedora do que ameaçadora para a definição do indivíduo quando existem
objetivos em comum”. Irmã outsider reúne alguns de seus escritos mais
famosos, como “Usos do erótico: o erótico como poder”, “Idade, raça, classe e
sexo: mulheres redefinem a diferença”, “Uma carta aberta a Mary Daly” e “Os
usos da raiva: mulheres respondem ao racismo”. A seguir, a CULT publica com
exclusividade o inédito “A poesia não é um luxo”, no qual a autora – que se
afirmava, antes de tudo, poeta – questiona uma pretensa cisão europeia entre
poesia e teoria, saber e sentir; e nos convida a olhar para a criação poética como
linguagem, ideia e ação. Uma necessidade vital para a existência das mulheres.
A poesia não é um luxo
AUDRE LORDE

A qualidade da luz sob a qual analisamos nossa vida tem efeito direto na forma
como vivemos, nos resultados obtidos e nas mudanças que desejamos provocar
por meio de nossa vida. É sob essa luz que damos forma às ideias que nos fazem
buscar nossa magia, para então torná-las realidade. Isso é a poesia como
iluminação, pois é através da poesia que nomeamos essas ideias que – até o
poema – não têm nome nem forma, estão prestes a nascer, mas já foram sentidas.
A destilação da experiência da qual a verdadeira poesia brota dá à luz o
pensamento, do mesmo modo que o sonho dá à luz o conceito, o sentimento dá à
luz a ideia, o conhecimento da à luz (precede) a compreensão.
Na medida em que aprendemos a suportar a intimidade da investigação e a
florescer dentro dela, na medida em que aprendemos a usar o resultado dessa
investigação para dar poder à nossa vida, os medos que dominam nossa
existência e moldam nossos silêncios começam a perder seu controle sobre nós.
Dentro de cada uma de nós, mulheres, existe um lugar sombrio onde cresce,
oculto, e de onde emerge nosso verdadeiro espírito, “belo/ e resistente como
castanha/ pilares se opondo ao (seu) nosso pesadelo de fraqueza” e de
impotência.
Esse nosso lugar interior de possibilidades é escuro porque antigo e oculto;
sobreviveu e se fortaleceu com essa escuridão. Dentro desse local profundo,
cada uma de nós mantém uma reserva incrível de criatividade e de poder, de
emoções e de sentimentos que ainda não foram examinados e registrados. O
lugar de poder da mulher dentro de cada uma de nós não é claro nem superficial;
é escuro, é antigo e é profundo.
Quando olhamos a vida ao modo europeu como apenas um problema a ser
resolvido, confiamos exclusivamente em nossas ideias para nos libertar, pois
elas, segundo nos disseram os patriarcas brancos, são o que temos de valioso.
No entanto, quando entramos em contato com nossa ancestralidade, com a
consciência não europeia de que a vida, como situação, deve ser experimentada e
que devemos interagir com ela, aprendemos cada vez mais a apreciar nossos
sentimentos e a respeitar essas fontes ocultas do nosso poder – é delas que surge
o verdadeiro conhecimento e, com ele, as atitudes duradouras.
Neste momento, acredito que as mulheres carregamos dentro de nós a
possibilidade de fundirmos essas duas abordagens tão necessárias à
sobrevivência, e é na poesia que nos aproximamos ao máximo dessa fusão. Falo
aqui da poesia como destilação reveladora da experiência, não do estéril jogo de
palavras que, tão frequentemente e de modo distorcido, os patriarcas brancos
chamam de poesia – a fim de disfarçar um desejo desesperado de imaginação
sem discernimento.
Para as mulheres, então, a poesia não é um luxo. É uma necessidade vital da
nossa existência. Ela cria a qualidade da luz sob a qual baseamos nossas
esperanças e nossos sonhos de sobrevivência e mudança, primeiro como
linguagem, depois como ideia, e então como ação mais tangível. É da poesia que
nos valemos para nomear o que ainda não tem nome, e que só então pode ser
pensado. Os horizontes mais longínquos das nossas esperanças e dos nossos
medos são pavimentados pelos nossos poemas, esculpidos nas rochas que são
nossas experiências diárias.
À medida que os conhecemos e os aceitamos, nossos sentimentos, e o ato
de explorá-los com honestidade, se tornam santuários e campos férteis para as
ideias mais radicais e ousadas. Eles se tornam um abrigo para aquela divergência
tão necessária à mudança e à formulação de qualquer ação significativa. Agora
mesmo, eu poderia citar dez ideias que eu consideraria intoleráveis ou
incompreensíveis e assustadoras a menos que viessem de sonhos e de poemas.
Isso não é mero devaneio, mas sim manter um olhar atento ao verdadeiro
significado de “isso me cai bem”. Podemos nos condicionar a respeitar nossos
sentimentos e transpô-los em linguagem para que sejam compartilhados. E o que
ajuda a criar essa linguagem onde ela ainda não existe é a nossa poesia. A poesia
não é apenas sonho e imaginação; ela é o esqueleto que estrutura nossa vida. Ela
estabelece os alicerces para um futuro de mudanças, uma ponte que atravessa o
medo que sentimos daquilo que nunca existiu.
A possibilidade não é nem eterna nem instantânea. Não é fácil manter a
crença em sua eficácia. Às vezes, podemos fazer um grande esforço para fundar
uma verdadeira linha de frente em resistência à morte que esperam que
tenhamos, simplesmente para que essa linha de frente seja atacada ou ameaçada
pelas farsas que fomos socializadas para temer, ou pela batida em retirada das
aprovações que fomos orientadas a buscar por segurança. As mulheres nos
vemos diminuídas ou amansadas por acusações pretensamente inofensivas de
infantilidade, de falta de universalidade, de inconstância, de sensualidade. E
quem é que pergunta: Estou alterando sua aura, suas ideias, seus sonhos, ou
estou simplesmente levando-as a tomar uma atitude temporária e reativa? E
ainda que uma atitude reativa não seja de todo mal, é preciso analisá-la no
contexto da necessidade de uma verdadeira mudança nos próprios alicerces da
nossa vida.
Os patriarcas brancos nos disseram: “Penso, logo existo”. A mãe negra
dentro de cada uma de nós – a poeta – sussurra em nossos sonhos: “Sinto, logo
posso ser livre”. A poesia cria a linguagem para expressar e registrar essa
demanda revolucionária, a implementação da liberdade.
De qualquer maneira, a experiência nos ensinou que a ação no presente
também é necessária, sempre. Nossas crianças não podem sonhar a menos que
vivam, não podem viver a menos que sejam nutridas, e quem mais daria a elas o
verdadeiro alimento sem o qual seus sonhos não seriam diferentes dos nossos?
“Se vocês querem que mudemos o mundo um dia, precisamos pelo menos viver
o suficiente para crescer!”, grita a criança.
Às vezes nos drogamos com sonhos de novas ideias. A cabeça vai nos
salvar. O cérebro sozinho vai nos libertar. Mas não há ideias novas aguardando
nos bastidores o momento de nos salvar como mulheres, como seres humanos.
Existem apenas ideias velhas e esquecidas, novas combinações, extrapolações e
constatações dentro de nós mesmas – junto da coragem renovada de as
colocarmos à prova. E devemos encorajar constantemente umas às outras a nos
aventurar nas ações hereges que nossos sonhos sugerem e que são desmerecidas
por tantas das nossas ideias antigas. Na linha de frente da nossa passagem à
mudança existe apenas a poesia para aludir à possibilidade tornada real. Nossos
poemas articulam as implicações de nós mesmas, aquilo que sentimos
internamente e ousamos trazer à realidade (ou com o qual conformamos nossa
ação), nossos medos, nossas esperanças, nossos mais íntimos terrores.
Por vivermos dentro de estruturas definidas pelo lucro, por relações de
poder unilaterais, pela desumanização institucional, nossos sentimentos não
estariam destinados a sobreviver. Mantidos por perto como apêndices inevitáveis
ou agradáveis passatempos, esperava-se que os sentimentos se submetessem ao
pensamento assim como era esperado das mulheres que se submetessem aos
homens. Mas as mulheres sobreviveram. Como poetas. E não existem novas
dores. Já as sentimos antes. E escondemos esse fato no mesmo lugar onde temos
escondido nosso poder. As dores emergem dos nossos sonhos, e são os nossos
sonhos que apontam o caminho para a liberdade. Aqueles sonhos que se tornam
realizáveis por meio dos nossos poemas, que nos dão a força e a coragem para
ver, sentir, falar e ousar.
Se aquilo de que precisamos para sonhar, para conduzir nosso espírito de
maneira mais direta e profunda rumo à esperança, for desprezado como sendo
um luxo, vamos abrir mão do cerne – da fonte – do nosso poder, da nossa
condição de mulher; vamos abrir mão do futuro dos nossos mundos.
Pois novas ideias não existem. Há apenas novas formas de fazê-las serem
sentidas – de investigar como são sentidas quando vividas às 7 horas da manhã
de um domingo, depois do almoço, durante o amor selvagem, na guerra, no
parto, velando nossos mortos – enquanto sofremos os velhos anseios,
combatemos as velhas advertências e os velhos medos de ficarmos em silêncio,
impotentes e sozinhas, enquanto experimentamos novas possibilidades e
potências.
colaboraram nesta edição
Aline de Campos é jornalista
Bianca Santana é escritora, jornalista, pesquisadora, doutoranda em Ciência da
Informação pela USP, autora de Quando me descobri negra (SESI-SP)
Eduardo Rebuá é doutor em Educação pela UFF e professor adjunto de
Pedagogia na UFPB
Luiza Batista Amaral é doutoranda em História Social da Cultura pela PUC-
Rio
Marcia Tiburi é filósofa, escritora, pós-doutora em Artes pela Unicamp
Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora de O tempo e o cão – a
atualidade das depressões (Boitempo)
Martha D’Angelo é doutora em Filosofia pela UFRJ, professora aposentada da
Faculdade de Educação da UFF e autora de Arte, política e educação em Walter
Benjamin (Edições Loyola)
Table of Contents
coluna
Bianca Santana
Marcia Tiburi
entrevista Ignácio de Loyola Brandão
reportagem
O racismo nos relacionamentos inter-raciais
dossiê Walter Benjamin
Apresentação
Walter Benjamin e as cidades
Crítica da cultura e do progresso
O que o ato de colecionar nos fala sobre o presente?
Benjamin e a fantasmagoria
inédito Audre Lorde
A poesia não é um luxo
colaboraram nesta edição

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