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DIA 21 DE MARÇO - DIA INTERNACIONAL

DE LUTA PELA ELIMINAÇÃO DA


DISCRIMINAÇÃO RACIAL

VIDAS NEGRAS
IMPORTAM.
EM CAMPINAS,
TAMBÉM.
Texto piloto da cartilha: Professora Mestra Tayná Victória de Lima Mesquita
Socióloga (IFCH/UNICAMP), Mestre em Educação (FE/UNICAMP), Doutoranda em Ciências Sociais
(PAGU/UNICAMP)
APRESENTAÇÃO
O dia 21 de Março é considerado dia internacional de luta pela eliminação da
discriminação racial. A data, proposta pela Organização das Nações Unidas
(ONU), faz referencia ao “massacre de Shaperville”, ocorrido em 1960, na África
do Sul, onde durante o regime do apartheid, um protesto pacífico de negros, que
reuniu cerca de 20.000 pessoas, foi reprimido pelas forças policiais, culminando
na morte de 69 pessoas desarmadas. Para além desse triste episódio, o dia 21 de
março marca o reconhecimento da necessidade de enfrentamento ao racismo em
nível mundial, compromisso do qual o Brasil como um todo também não deve se
esquivar.

É sabido que o Brasil foi o país que recebeu o maior contingente de africanos
traficados, e que escravizou por mais tempo, sendo o último país do mundo a
abolir a escravidão negra, em 13 de Maio de 1888. A proporcionalidade, duração e
distribuição geográfica da escravidão negra diferencia a sociedade brasileira de
todas as outras da América Latina. Diferentemente de outros países latino-
americanos e até mesmo os Estados Unidos da América, onde a presença do
escravizado negro era geograficamente concentrada, regionalizada, e nunca
superou numericamente a população branca, no Brasil, a distribuição da
população escravizada percorreu todo o território. Nesse sentido, conforme
afirmou o sociólogo negro Clóvis Moura (1993), o trabalho dos escravizados
estabeleceu as relações de produção de riqueza fundamentais da sociedade
brasileira.

É importante rememorar também que a cidade de Campinas – SP foi uma das


últimas cidades do mundo a abolir a escravidão. As relações com a escravidão
em Campinas foram dinamizadas pela consolidação da economia, inicialmente
açucareira e posteriormente cafeeira, ao longo dos séculos XVIII e segunda
metade do século XIX. Se faz relevante lembrar que a cidade de Campinas - SP era
considerada, no período escravocrata, a “bastilha negra”, na medida em que era
o município paulista com maior número de escravizados. Segundo o historiador
Robert Slenes (2001), no ano de 1872 a população do município de Campinas era
composta por cerca de 44% de escravizados, numericamente, 14 mil
escravizados e 18 mil pessoas livres. Esse contingente representava cerca de 5%
da população total da província de São Paulo, fazendo de Campinas o maior
mercado comprador e exportador de escravizados.
Reconhecendo a importância deste marco histórico para compreensão das
dinâmicas estabelecidas acerca das relações étnico-raciais nesta cidade, e
as experiências de racismo cotidiano que se expressam ainda na
contemporaneidade em todo o país, apresentamos a presente cartilha. Esse
documento foi desenvolvido com o intuito de se fazer instrumento de acesso
a informação sobre conceitos e direitos fundamentais relacionados a
população negra e ao combate ao racismo no país. Sobretudo, trata-se de
uma ação educativa, que visa demarcar o comprometimento da cidade de
Campinas com a promoção da igualdade racial. Nesse sentido, nos
inspirando no mote internacional Black Lives Matter, afirmamos:

Em Campinas e em todo lugar:


"VIDAS NEGRAS IMPORTAM!"
RAÇA
As descobertas mais recentes da ciência indicam que a África é o
berço da humanidade. As primeiras populações humanas
modernas teriam surgido em solo africano há cerca de 300 mil
anos, espalhando-se posteriormente pelo mundo. Além disso, o
processo de sequenciamento do DNA humano revelou que a
informação genética que compartilhamos é 99,9% idêntica,
negando de uma vez por todas o argumento de que existiriam
diferentes raças biológicas humanas. Nesse sentido,
compreendemos na atualidade que somos todos pertencentes a
uma mesma espécie. Compreendidas as contribuições das
ciências biológicas, por que motivo então ainda falamos em Raça?
Em relações étnico-raciais, em racismo?
É importante elucidar que falamos em raça como um conceito
socialmente construído, e que é colocado em funcionamento o
tempo todo na vida cotidiana. A invenção da ideia de raça, como
percebemos hoje, remonta a escravização e colonização.
Conforme afirma o jurista Silvio de Almeida, autor da obra “O que
é racismo estrutural” (2019), a ideia de raça surge então como um
instrumento de poder e de justificação da violação, dominação e
opressão sistematizada pelo colonizador europeu, com relação
aos povos não-brancos colonizados, fundamentando relações de
desigualdade que persistem em nossa sociedade até os dias de
hoje. Nesse sentido, se é certo dizer que não existem raças
humanas, importa dizer também que na nossa sociedade todas as
pessoas são racializadas, com base em características fenotípicas
e culturais. A operacionalidade social da ideia de raça se revela de
forma contundente quando observamos as estatísticas sociais.
Um dos trágicos exemplos que temos, se refere ao genocídio da
população negra.
Desigualdades raciais e negação de
direitos fundamentais
Genocídio
A palavra genocídio serve para definir um processo deliberado
de aniquilamento de um grupo étnico, racial ou religioso. No
Brasil, o mapeamento das estatísticas de violência letal
corroboram a denúncia de um processo de genocídio da
população negra, em especial, de sua juventude. Como exemplo,
segundo dados do Atlas da Violência, produzido pelo IPEA
(2020), homens negros morrem em média 2,7 vezes mais que não
negros, representando 75,7% das vítimas de homicídios.

Mulheres Negras
“Quando a mulher negra se movimenta, toda estrutura da
sociedade se movimenta com ela”, afirmou a filósofa afro-
americana Angela Davis, em uma de suas recentes visitas ao
Brasil. Davis faz esse comentário em referência a uma realidade
que se faz presente no mundo todo: o posicionamento das
mulheres negras na base da pirâmide social. Em nosso contexto,
essa condição se revela, por exemplo, nas estatísticas relativas
ao feminicídio, ocupações profissionais e renda, indicadores
educacionais, bem como o acesso à saúde.
No que se refere ao feminicídio, (tipificado criminalmente pela
Lei no 13.104/2015 como o homicídio contra mulheres em
decorrência do menosprezo à condição de mulher, ocorrido
muitas vezes em ambiente doméstico ou familiar) conforme
relatado pelo Atlas da Violência, desenvolvido pelo IPEA (2020),
mulheres negras “representaram 68% do total das mulheres
assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade por 100
mil habitantes de 5,2, quase o dobro quando comparada à das
mulheres não negras.” (IPEA, 2020, p. 47). No que se refere as
estimativas de renda e ocupação, segundo dados coletados pelo
IBGE (2019) e divulgados na pesquisa “Desigualdades sociais por
cor ou raça”, mulheres negras recebem, em média, metade do
salário dos homens brancos, possuindo rendimentos inferiores
também aos das mulheres brancas e homens negros. Além disso,
segundo a pesquisa do IPEA, “Os Desafios do Passado no
Trabalho Doméstico do Século XXI” divulgada em 2018, mulheres
negras são sobrerepresentadas no campo do trabalho
doméstico, (63% da categoria), recebendo os mais baixos
rendimentos.
Já no que se refere à escolaridade, apesar das mulheres de
forma geral estudarem por mais tempo que os homens de
mesma cor ou raça, com relação as mulheres negras, a taxa de
conclusão do ensino médio entre homens brancos é mais
elevada em quase 5% (IBGE, 2019). Além disso, apenas 10% das
mulheres negras completam o ensino superior (IBGE, 2018). O
campo da saúde também é revelador de desigualdades. Com
relação a violência obstetrícia, segundo dados da pesquisa
“Nascer no Brasil: Pesquisa Nacional sobre o Parto e o
Nascimento”, coordenado pela pesquisadora da Fundação
Oswaldo Cruz, Maria do Carmo Leal, mulheres negras são mais
submetidas a pré-natais inadequados, recebem menos anestesia
local para episiotomia, migram com maior frequência entre
maternidades durante o parto e mais frequentemente
encontram-se sem acompanhantes no momento do parto.
Interseccionalidade
A reflexão sobre a experiência das mulheres negras serviu para
cunhar um conceito sociológico importante para analisar as
desigualdades sociais e propor políticas públicas: o conceito de
interseccionalidade, que segundo Tayná Mesquita, na obra
“Exclusão Escolar Racializada” (2019), serve para compreender
os modos como diferentes dimensões que constituem as
identidades e experiências sociais dos sujeitos, como gênero,
raça, classe, origem territorial, religião, entre outras, se
articulam entre si, produzindo situações de vulnerabilidade
específicas. Ainda, em reconhecimento da realidade de violação
de direitos vivenciada por mulheres negras, o dia 25 de Julho
marca em toda América Latina e Caribe o Dia Internacional da
Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. No Brasil, a data
homenageia a referência quilombola Tereza de Benguela, que
chefiou ao longo do século XVIII o Quilombo do Quariterê, em
Mato Grosso.
Infâncias Negras
Crianças negras também ocupam as principais estimativas de
vulnerabilidade social. Seja pelas já mencionadas estatísticas
relacionadas à violência obstetrícia, seja pelas mais altas taxas
de mortalidade no primeiro ano de vida, a experiência do
racismo impacta a vida de crianças negras desde o parto e
percorre toda a infância. Segundo levantamento da fundação
Abrinq, entre os homicídios de crianças e adolescentes em 2017,
aproximadamente 80% das vítimas eram negras.
Ainda, conforme revela o Mapa do Trabalho Infantil, produzido
pela Rede Peteca (2020), crianças negras representam 62,7% das
vítimas de trabalho precoce no país. Esses índices aumentam
com relação ao trabalho doméstico (73,5%) e em especial entre
as meninas negras, que representam mais de 94% dos casos
entre vítimas do trabalho doméstico infantil no país. Para além
desses e outros indicadores importantes, destacamos os efeitos
negativos da experiência do racismo para a construção da
estrutura emocional e subjetividade das crianças negras. Nesse
sentido, um marco legislativo importante é a Lei 10.639/2003 e a
Lei 11.645/2008, que tornam obrigatório o ensino da história e
cultura afro-brasileiras e indígenas na educação nacional.
Essas leis representam políticas indutoras de uma mudança
estrutural em termos ideológicos e curriculares no que diz
respeito a promoção de pedagogias antirracistas e pautadas na
valorização da diversidade que nos produz como o povo com
maior população negra fora da África. Conforme afirmou Nilma
Lino Gomes (2018), trata-se, portanto, de política que se vincula
“à garantia do direito à educação”, requalificando-a, "incluindo
nesse o direito à diferença”.
Além dos dados acima mencionados, com relação a epidemia da
COVID-19, no Brasil e no mundo a taxa de mortalidade por
contaminação do vírus entre pessoas negras supera o de
pessoas brancas, conforme exemplificam estudos desenvolvidos
pela Boston Consulting Group, que revelou um número de
mortes até seis vezes maior entre negros nos EUA, e dados do
boletim epidemiológico de abril de 2020, divulgado pela
Prefeitura de São Paulo, que revelou um risco de morte por
coronavírus 62% maior entre negros. Esses dados e muitos
outros são elucidativos da contemporaneidade do racismo no
Brasil e do funcionamento da ideia de raça no país, enquanto
um marcador de diferença e relações de desigualdade.

RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
A expressão relações étnico-raciais (RER) tem sido
comumente usada para denotar um campo de estudos e
promoção de políticas públicas relacionados à população
afro-brasileira e a promoção do antirracismo. Contudo, ao
compreendemos que todas as pessoas são racializadas,
percebemos também que ao contrário do que
frequentemente se pensa, as RER não são “um problema de
negro”. Trata-se de um debate de interesse de toda a
sociedade. A ideia de relação significa que existem vários
lados implicados.
Assim, quem é o outro nas RER? Essa reflexão é um convite para
desnaturalizarmos o negro como o único corpo racializado da
sociedade. Ser branco também é ser racializado, o que implica
na tomada de uma posição diante do fenômeno do racismo.
Discutir RER passa então não apenas sobre discutir os sentidos
de ser uma pessoa negra no Brasil e os diferentes desafios
impostos a esta população no país, mas também diz respeito a
visibilizar os sentidos e privilégios históricos envolvidos em ser
racializado como branco. A reflexão sobre o lugar particular
ocupado pelas pessoas brancas em sociedades de origem
colonial, como a brasileira, serviu para criação de um conceito
e campo de estudos ainda emergente no contexto brasileiro: os
estudos críticos da branquitude.

BRANQUITUDE
Segundo a especialista Lia Vainer Schucman (2012, p. 23), o
conceito de branquitude serve para descrever uma condição
estrutural de privilégios e acesso a recursos materiais e
simbólicos usufruídos por pessoas racializadas como brancas,
privilégios esses que foram gerados no colonialismo, no
imperialismo e que permanecem na contemporaneidade.
Realçar a dimensão da branquitude não significa dizer que
pessoas brancas são necessariamente felizes ou favoráveis a
sua condição de privilégio. Significa compreender que todas as
pessoas racializadas como brancas, ainda que não queiram e
não gostem, acabam por serem beneficiadas pelas dinâmicas
sociais do racismo, ao passo que pessoas negras são levadas a
ocuparem uma posição de desvantagem.
RACISMO
O racismo é um sistema de poder que produz relações sociais
de desigualdade, onde indivíduos sofrem desvantagens ou
privilégios com base em seus pertencimentos raciais. No caso
brasileiro, e em outros países de raiz escravocrata, a
população negra e as populações indígenas são as grandes
vítimas das desvantagens do racismo.

RACISMO, PRECONCEITO,
DISCRIMINAÇÃO: QUAL A DIFERENÇA?
Embora os três termos sejam frequentemente associados a ideia
de raça, seus significados são diferentes. Racismo, conforme
afirmamos anteriormente, diz respeito a um sistema de poder que
distribui desvantagens e privilégios sociais com base na ideia de
raça. Já o preconceito, diz respeito a opiniões generalizadas,
infundamentadas com relação a um determinado grupo racial,
podendo gerar estereótipos positivos ou negativos. A afirmação
difundida no senso comum, de que nordestinos são
“naturalmente” preguiçosos e asiáticos são “naturalmente”
trabalhadores, são exemplos de preconceitos presentes no
imaginário popular. No caso dos nordestinos, um preconceito
negativo. No dos asiáticos, um preconceito positivo. A
discriminação, por sua vez, diz respeito ao ato de discriminar, de
atribuir tratamento desigual a sujeitos com base em seu
pertencimento racial.
RACISMO ESTRUTURAL
Conforme salientou o jurista Silvio de Almeida (2019), o racismo,
enquanto um sistema de poder, é sempre estrutural, na medida em
que fundamenta a organização política e econômica da sociedade.
Nesse sentido, conforme já foi declarado pela Organização das
Nações Unidas – ONU, o racismo é um elemento estrutural e
também estruturante da sociedade brasileira, e as expressões
cotidianas do racismo (em nível individual, simbólico, religioso,
institucional) são manifestações de um mecanismo de poder mais
profundo, que está na base da organização da sociedade como um
todo. Em termos de metáfora, imagine a construção de um muro:
cada tijolo, representa para nós uma dimensão da vida social: a
economia, a política, a educação, a mídia, o mundo do trabalho, etc.
O racismo, não é apenas mais um tijolo. Na verdade é parte do
cimento que articula o muro, garantindo a reprodução das
condições de desigualdade e vulnerabilidade que desfavorecem
sistematicamente as populações não-brancas no país.

RACISMO INDIVIDUAL
Essa forma de racismo se manifesta nas relações interpessoais, por
meio de comportamentos individuais de discriminação direta. A
atitude individual do sujeito que atravessa a rua ao ver uma pessoa
negra, por considera-la naturalmente perigosa, do segurança que
persegue o cliente negro no supermercado, da atendente de loja do
shopping que ignora e destrata a cliente negra por pressupor que
ela não possui dinheiro para pagar por sua compra, ou do indivíduo
que violenta verbalmente uma pessoa negra chamando-a de
"macaco", são alguns exemplos de manifestações do racismo
individual no cotidiano. A educação e a conscientização são os
principais meios de enfrentamento dessa forma de racismo.
RACISMO INSTITUCIONAL
Uma das manifestações do racismo na sociedade se dá na
dimensão institucional. O racismo institucional diz respeito as
maneiras pelas quais as instituições acabam por funcionar de
modo a produzir condições de desvantagem no acesso a direitos
e recursos oferecidos pelo Estado e instituições públicas ou
privadas. Segundo o Programa de Combate ao Racismo
Institucional (PCRI), estabelecido em uma parceria entre a
Agência de Cooperação Técnica do Ministério Britânico para o
Desenvolvimento Internacional e Redução da Pobreza (DFID), o
Ministério da Saúde (MS), a Secretaria Especial de Políticas para
Promoção da Igualdade Racial (Seppir), o Ministério Público
Federal (MPF), a Organização Panamericana de Saúde (Opas) e o
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o
racismo institucional é definido como “o fracasso das
instituições e organizações em prover um serviço profissional e
adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem
racial ou étnica. Ele se manifesta em normas, práticas e
comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano do
trabalho, os quais são resultantes do preconceito racial, uma
atitude que combina estereótipos racistas, falta de atenção e
ignorância. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre
coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em
situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo
Estado e por demais instituições e organizações”. (CRI, 2006,
p.22).
RACISMO RELIGIOSO
O racismo religioso diz respeito aos processos de preconceito e
discriminação que inferiorizam, demonizam e desqualificam as
religiosidades de matriz africana. O conceito de racismo
religioso passa a ser incorporado no começo do século XXI, a
partir do entendimento de que a expressão “intolerância
religiosa” é insuficiente para descrever a violência particular
que é direcionada as religiões afro-brasileiras (Candomblé,
Umbanda, Quimbanda, Batuque, Xangô, Tambor de Mina, entre
outras) e seus adeptos, já que se trata de uma forma de
preconceito que tem como base a aversão as pessoas negras, sua
cultura e especificamente, as formas de religiosidade negras
trazidas pelos africanos escravizados ao Brasil, e
reconfiguradas ao longo da diáspora no país.

A história do racismo religioso no país remonta aos tempos do


Brasil Colônia, quando africanos escravizados eram impedidos de
cultuarem seus próprios deuses e forçadamente catequizados
para aderirem a religião oficial da época, o catolicismo. Esse
histórico de perseguição e negação do direito à própria
religiosidade se estendeu mesmo após a abolição da escravatura.
No período da Primeira República (1889-1930) e na Era Vargas
(1930-1945) por exemplo, as religiões de matriz africana eram
oficialmente criminalizadas, segundo o Código Penal de 1890,
muito embora a Constituição já previsse, à época, a laicidade do
Estado.
Muitos objetos sagrados das religiões de matriz africana foram
confiscados pela polícia neste período, e alguns deles ainda se
encontram perdidos. A título de exemplo, no dia 22 de Janeiro de
2021, em decisão histórica do governador em exercício do Rio de
Janeiro, Cláudio Castro, cerca de 519 objetos sagrados de religiões
de matriz africana apreendidos pela polícia entre 1889 e 1945 foram
tombados pelo IPHAN e oficialmente doados ao Museu da República,
como parte das reivindicações de lideranças religiosas, através do
movimento “Libertem Nosso Sagrado”. Cabe relembrar, o
protagonismo de Mãe Aninha, Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá - BA,
juntamente a outras Iyalorixás de seu tempo, no processo de
intervenção junto a Getúlio Vargas para pôr fim a proibição aos
cultos afro-brasileiros.

O dia 21 de Janeiro é considerado o Dia Nacional de Combate à


Intolerância Religiosa. Essa data foi escolhida em homenagem à
Iyalorixá Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda, e
que acabou perdendo a vida devido a um episódio de racismo
religioso. No ano de 1999, a Igreja Universal do Reino de Deus
publicou um reportagem em seu jornal religioso, o Folha Universal,
difamando as religiões de matriz africana e utilizando a foto de
Mãe Gilda como exemplo. Desde então, seu terreiro de Candomblé, o
Ilê Axé Abassá Ogum, e seus filhos e filhas de santo passaram a
sofrer todo tipo de perseguições e violências físicas e simbólicas. A
exposição, violências e estresses gerados por esses episódios
culminaram na morte de Mãe Gilda, em 21 de Janeiro de 2000,
vítima de um infarto fulminante. Na atualidade, segundo Sidnei
Barreto Nogueira, autor da obra “Intolerância Religiosa” (2020), a
cada 23 minutos é registrada uma denúncia de racismo religioso no
país.
RACISMO LINGUÍSTICO

O campo da linguagem também pode contribuir para revelar


perspectivas racistas, muitas vezes de forma velada. Alguns
exemplos de termos de uso corrente que remetem a experiências da
escravidão ou a posicionamentos racistas, e que precisam ser
repensados e removidos do nosso vocabulário são:

Denegrir: nos dicionários de língua portuguesa a palavra


significa “tornar negro” ou “difamar”, remetendo a ideia de
negritude a algo negativo. O mesmo acontece com relação as
expressões mercado-negro, ovelha-negra, todas elas remetendo
a ideia de negro como algo negativo.
Criado-mudo: a palavra remete a uma das funções
desempenhadas por escravizados no período colonial. Tratados
de forma objetificada, eram obrigados a permanecer estáticos
carregando objetos para seus senhores, sempre em silêncio.
"Fazer nas coxas": a expressão remete ao processo de feitura de
telhas de cerâmica no período escravocrata, onde eram
modeladas nas coxas dos escravizados. Como o tamanho e
formato variava de pessoa para pessoa, nem sempre as telhas
se encaixavam. Na atualidade, a expressão serve para designar
um trabalho mal feito.
Mulata (o): uma das palavras mais entranhadas na cultura
brasileira, servindo geralmente para designar pessoas negras
de pele clara. A palavra se origina da ideia de “mula”, animal
híbrido fruto do cruzamento entre um cavalo e uma jumenta.
"Mulata tipo exportação”: a origem racista da palavra mulata
se aprofunda com essa expressão, que remete ao corpo da
mulher negra como uma mercadoria.
"Amanhã é dia de Branco”: a frase associa os dias de trabalho às
pessoas brancas, como se apenas elas trabalhassem, remetendo
por oposição ao negro como preguiçoso.
"Serviço de preto”: mais uma expressão que se revela racista, ao
desqualificar e relacionar o trabalho do negro a um trabalho
mal feito.
"Boçal”: Na atualidade, a palavra é frequentemente utilizada no
sentido de “ignorante”, “tosco”, “sem cultura”. Em sua origem, o
termo era utilizado no período escravocrata para designar os
africanos recém chegados ao Brasil e que ainda não sabiam
falar a língua portuguesa.
Não sou tuas Negas”: essa expressão é profundamente
agressiva com relação às mulheres negras, pois remete ao
tempo em que elas eram tratadas como propriedade dos
senhores de escravizados e como tal, relegadas a todo tipo de
abuso e violência.
LEGISLAÇÃO
Crime de Racismo "Lei Caó" (7.716/1989)
A prática de racismo é crime inafiançável no brasil, através da
chamada Lei Caó, assim nomeada em homenagem a Carlos
Alberto Caó de Oliveira, parlamentar negro que esteve
envolvido na elaboração da Constituição de 1988. A punição
mínima para o crime de racismo é de um ano.

Entre as diversas condutas punidas por crime de racismo


estão:

Impedir a ascensão funcional do empregado ou vedar o


acesso a benefícios profissionais;
impedir, com base na raça, o acesso a cargos do serviço
público ou a empregos em empresas privadas;
promover tratamento diferenciado no ambiente de
trabalho, em especial com relação ao salário;
impedir acesso a estabelecimentos comerciais, negando-se
a servir, atender ou receber cliente ou comprador.
impedir ou recusar a inscrição ou ingresso a instituições
escolares públicas ou privadas em qualquer nível de
ensino;
impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos
ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos
mesmos;
impedir o acesso ou uso de transportes públicos, como
aviões, navios barcas, barcos, ônibus, trens, metrô, etc.
Crime de Injúria Racial (Artigo 140, §3º,
do Código Penal Brasileiro)
O crime de Injúria Racial está Previsto no artigo 140, §3º, do
Código Penal Brasileiro, sendo caracterizado pela ofensa a
dignidade de alguém, por meio da atribuição de elementos
negativos a sua raça, cor, etnia religião ou origem. O crime
tem como punição mínima um ano de prisão.

Racismo Religioso (Lei 7.716/1989, e Artigo 5,


Inciso VI da Constituição de 88 e Lei
17.157/2019)
A Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso VI, estabelece
a inviolabilidade da liberdade de consciência e crença,
assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e
garantindo a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.
Combinado ao que é postulado na Lei Caó, e na lei que tipifica
a Injúria Racial, observamos que ofensas atribuídas a
pessoas vinculadas às religiões de matriz africana, bem
como a violência a seus locais de culto e símbolos religiosos,
também podem ser tipificados como crime de racismo e
injúria. Ainda, no Estado de São Paulo, desde 2019 vigora a
Lei Nº. 17.157/2019, dispondo especificamente sobre
penalidades administrativas a serem aplicadas pela prática
de racismo religioso.
Crime de Tortura (Lei 9.455/1997)
Episódios de discriminação racial diversos e de racismo
religioso podem também ser tipificados como crime de
tortura, conforme indica o Artigo 1º da Lei Nº 9.455/1997:

“Art. 1º Constitui crime de tortura:


I - constranger alguém com emprego de violência ou
grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter
informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira
pessoa;
b) para
provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;” (BRASIL,
1997).

Lei Contra Discriminação Racial – Governo de


São Paulo - Lei 14. 187/2010
Complementando a Lei Caó, esta lei estadual dispõe sobre
penalidades administrativas (ou seja, que não resultam em
privação de liberdade) a serem aplicadas pela prática de atos
de discriminação racial.
FUI VÍTIMA DE UMA SITUAÇÃO
DE RACISMO: O QUE FAZER?
No momento em que o crime está
acontecendo:
Acione imediatamente a polícia militar, ligando no
número 190 a partir de qualquer telefone (fixo, celular,
com ou sem crédito, a qualquer hora do dia). É muito
importante identificar testemunhas do ocorrido!

Se o crime já aconteceu:
I. Reúna o maior número possível de provas do ocorrido
(fotografias, vídeos, gravações de áudio, nome, endereço,
telefone do agressor, testemunhas, informações sobre o
local, data, horário e a situação ocorrida).

II. Busque atendimento na Delegacia de


Polícia mais próxima. Caso esteja na cidade
de São Paulo, busque atendimento na
DECRADI - Delegacia de Crimes Raciais e
Delitos de Intolerância. Leve consigo as
Provas que conseguiu reunir e se possível,
testemunhas. Guarde consigo toda a
documentação gerada no atendimento.
III. Caso a autoridade policial se recuse a acolher a denúncia e
efetivar o Boletim de Ocorrência, acione a Ouvidoria da Polícia
do Estado no site: http://www.ssp.sp.gov.br/ouvidoria/ ou
telefone: 0800-177070.

IV. É importante informar ao policial responsável pelo registro


da denúncia o desejo da abertura de inquérito policial e de que
o agressor seja processado. Recuse a autuação de um TCO
(Termo Circunstanciado de Ocorrência, utilizado para
infrações de menor potencial ofensivo ou menor relevância).

V. ·Após o registro da ocorrência, é possível também buscar


atendimento no órgão da Defensoria Pública mais próximo,
para obter orientação jurídica, acompanhamento diante da
abertura de processos criminais e a busca por ações de
indenização pelos danos morais e materiais causados pelo
episódio de racismo.

VI. Em Campinas, o CR - Centro de Referência em Direitos


Humanos e Combate ao Racismo e a Discriminação Religiosa
também pode ser acionado, como espaço de acolhimento e
encaminhamento da denúncia. Tel: (19) 3232-6431 / (0800 771
7767) / 3231-1867 | Ramal 4

VII. O Disque Direitos Humanos (Disque 100) pode ser acionado


para busca de informações e efetivação de denuncias
concernentes a casos de violação de direitos humanos, entre
eles, casos de racismo. O serviço funciona 24 horas por dia,
sete dias por semana, incluindo feriados.
Pontos de apoio à comunidade negra
em Campinas:

Coordenadoria Setorial de
Promoção da Igualdade Racial
Coordena e desenvolve políticas públicas voltadas para a
promoção da igualdade racial na garantia de direitos da
população negra e outros grupos historicamente
discriminados.
Rua Visconde do Rio Branco, 468 - Centro (acesso pela
Avenida Campos Sales, 427) Tel: (19) 3232-0058
E-mail: cepir@campinas.sp.gov.br

Centro de Referência em Direitos Humanos na


Prevenção e Combate ao Racismo e à
Discriminação Religiosa
Previne e combate a discriminação racial e religiosa por meio
de ações educativas, acolhimento, acompanhamento e
encaminhamentos de denúncias sobre racismo.
Avenida Francisco Gicério, nº 1269 – 4º andar - Centro
Horário de Atendimento: das 9h às 17h (de segunda a sexta-
feira) Tel: (19) 3232-6431 / (0800 771 7767) / 3231-1867 | Ramal 4
E-mail: crcombateaoracismo@campinas.sp.gov.br
Conselho de Desenvolvimento e Participação da
Comunidade Negra de Campinas
O Conselho de Desenvolvimento e Participação da Comunidad
Negra de Campinas – CDPCNC foi criado a partir da Lei
Municipal Nº 10.813/2001. Sua composição se dá de membros
do poder público e da sociedade civil, entre representantes das
associações religiosas, educativas, esportivas, artísticas,
sindicatos de trabalhadores entre outros setores. O objetivo do
CDPCNC é servir como instrumento de participação, debate e
promoção de políticas públicas do município relacionadas à
promoção da igualdade racial na cidade.

Comitê Técnico de Saúde da População Negra


Instituído pelo Decreto nº 18.160 de 19 de novembro de 2013, o
Comitê Técnico de Saúde da População Negra tem como objetivo
promover atividades de intervenção relacionadas a equidade
racial na atenção em saúde, promovendo políticas públicas e ,
atividades educativas. Sua composição se dá entre representantes
da sociedade civil, universidades e membros do poder público.
Documento Instrutor
Plano Municipal de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial
O documento oferece um arcabouço teórico e prático para
desenvolvimento de programas e atividades de promoção da
igualdade racial no município, integrando diversas áreas
(educação, saúde, economia, segurança pública, políticas de
moradia, cidadania e direitos humanos, cultura, economia,
mídia, entre outras). O documento foi desenvolvido pelo poder
público em conjunto com representantes da sociedade civil
indicados pelo Conselho de Desenvolvimento e Participação da
Comunidade Negra e diversas plenárias públicas.

O documento está disponível para acesso público no link:


<http://www.campinas.sp.gov.br/arquivos/direitos-
deficiencia/plano%20igualdade%20racial_%20compl.pdf>.
Acessado em: 15/02/2021.

Lei Orgânica do Município de Campinas


A Lei Orgânica prevê, em especial no seu capítulo VIII, a
implementação de diversas medidas com vistas a promoção
da igualdade racial no município. Entre elas, está a política de
cotas em concursos públicos (Art. 265-B.I), direito formalizado
a partir da Lei Complementar 57/2019, que determina a
reserva de 20% das vagas oferecidas em concursos e processos
seletivos em empregos públicos a pessoas autodeclaradas
negras.
Referências Bibliográficas

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em: 26/02/2021.

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