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História oral e movimento social: narrativas públicas – Juniele Rebêlo de Almeida

(org.) – São Paulo, Letra e Voz, 2016.

Introdução
“A interface história oral e história dos movimentos sociais apresenta aspectos sobre as
dimensões dos públicos na história. As práticas de história pública são expressas nas
construções dialógicas da memória social – produzidas e difundidas – entre os saberes
acadêmicos e não acadêmicos. Os capítulos que seguem apresentam experiências de
historiadores brasileiros com a metodologia da história oral, sem perder de vista o
trabalho de memória realizado pelos próprios sujeitos históricos envolvidos nos
movimentos sociais.” (p. 7)
- A história oral mobiliza o entrecruzamento das noções de memória, narrativa, tempo e
identidade. (p. 7)
“Os autores, sensíveis aos procedimentos da história oral, discutiram o processo de
construção das entrevistas a partir da negociação de significados entre entrevistador e
entrevistado. As fontes orais expressaram as dimensões subjetivas dos integrantes dos
movimentos sociais, bem como as oportunidades políticas para as ações coletivas e
dimensões estratégicas para a legitimação de diferentes sistemas de valores
sociopolíticos dentro de cada grupo. As narrativas públicas, resultantes do trabalho de
memória no tempo presente, expressaram lembranças, esquecimentos e silêncios em
múltiplas dimensões.” (p. 8)

PARTE 1 – TRAJETÓRIAS DE VIDA: MULHERES PARA ALÉM DOS


MOVIMENTOS

A coragem do afeto: memórias femininas sobre a greve de Osasco, em 1968 –


Marta Gouveia de Oliveira Rovai
- A história oral tem representado a possibilidade de publicização da história das
mulheres, inscrevendo no relato historiográfico os acontecimentos e impressões
silenciados por um discurso e uma escrita masculina (p. 15)
“Dar visibilidade a narrativas de mulheres não significa apenas integrá-las à história
masculina, acrescentando informações e curiosidades sem analisar suas implicações.
Publicizar seus testemunhos é vincular os acontecimentos privados aos problemas
sociais, é revelar micropoderes cotidianos, demonstrando que uma leitura de gênero
modifica o quadro geral da história ou da memória coletiva.” (p. 16)
- A autora entrevistou mulheres que se envolveram e sofreram as consequências da
greve de julho de 1968 em uma fábrica da Cobrasma em Osasco
- A autora sintetiza a trajetória de cada entrevista, relatando suas origens e como eram
suas vidas no momento da greve. A partir daí, analisa os impactos da greve na vida
dessas mulheres.
“Aos poucos, o acontecimento da greve colocou-as, obrigatoriamente, em estado de
alerta, diante de um quadro assustador: a maior parte dos relatos dez referência à
ignorância transformada em medo, quando assistiram à cena dos tanques invadindo a
cidade e quando as notícias de prisões chegaram aos seus ouvidos.” (p. 19)
“Paradoxalmente, o gênero, que até então havia representado a sua exclusão do ‘mundo
masculino do sindicato e dos partidos’, passou a ser o instrumento pelo qual se
inscreveram na luta de resistência contra a perseguição e exclusão políticas promovidas
pelo regime. A narrativa coletiva mostrou que o espaço privado não era a ausência do
político e que o público não era a ausência do subjetivo.” (p. 20)
- A autora analisa profundamente os deslocamentos da memória à medida que as
entrevistadas vão narrando as experiências. “As memórias dessas mulheres
apresentaram o constrangimento inicial quanto ao destino que lhes foi imposto pela
militância política de seus entes queridos.” (p. 21). Em seguida a autora mostra as
artimanhas e recursos que as mulheres utilizaram, fazendo um uso estratégico dos
estereótipos de gênero/feminilidade/fragilidade/docilidade para movimentar-se entre
diversos espaços (casa-rua-delegacia-prisão), conseguir informações de policiais e
militares, etc. “Assumir o gênero significou interpretar as normas recebidas de tal forma
e reproduzi-las a contento dos opressores, reorganizando-as numa pseudosubmissão.”
(p. 22)

“Em diferentes oportunidades, essas mulheres usaram seu corpo para se apresentarem
como mães fragilizadas, mulheres sedutoras ou ‘boas moças’. Também fizeram dele o
portador da esperança de muitas famílias e de organizações políticas de resistência ao
regime. Aos poucos, suas ações espontâneas e dispersas passaram a se aliar a outras
experiências, com as quais se identificavam. A percepção de que suas histórias eram a
compartilhado, transformou suas realizações em atos políticos, inscrevendo-se numa
rede de solidariedade e apoio. Tornaram-se mediadoras quando, por sua invisibilidade
política, podiam circular, usando a única arma que não eram impedidas de portar: sua
corporeidade. Corpo sexuado, (in)disciplinado e sensualizado, ao mesmo tempo
imposição social e arma de subversão.” (pp. 25-26)

“Arte de fazer” (Michel de Certau): táticas de subalternidade dentro da pseudo


conformidade; microresistências que fundam microliberdades e deslocam fronteiras de
dominação (p. 26)

A presença insuspeita de mulheres em delegacias e prisões permitiu a criação de uma


rede de solidariedade clandestina, comunicação, manutenção de laços afetivos,
sentimento de pertença ao mundo.

Bricolagem (Beatriz Sarlo): “As mulheres adotaram o que pode ser entendido como
uma estratégia de bricolage, produzindo novos assuntos públicos a partir de antigos
papeis e funções tradicionais. Se a sociedade definiu o privado como a quintessência da
esfera feminina, as mulheres transformaram os assuntos privados em debates públicos e
em intervenções.” (p. 27)

“O ato de testemunhar sobre a demolição do outro tornou-se compromisso assumido por


elas, uma responsabilidade pela publicização da dor de tantos outros semelhantes.
Tornar públicas as experiências de sofrimento coletivo promovido por um regime
autoritário rompe com a obrigação do esquecimento, decretado pela anistia unilateral,
de 1979. Lembrá-las, mesmo quando não se recordam dos nomes, trata de recuperar,
pela lembrança, a dignidade de quem não viveu para contar – afirmação da vida contra o
desaparecimento forçado.” (p. 29)

A autora argumenta que as mulheres se inseriram no ativismo de forma silenciosa, “pela


porta dos fundos”, com pequenas atitudes que, a princípio, não chamavam a atenção.
Elas utilizaram seus corpos para transitar pelos espaços e hoje narram com orgulho a
luta pela anistia, contra a carestia, pelo retorno dos exilados e soltura dos presos
políticos. (pp. 32-34)

As mulheres repetiram a frase “eu vivi”, enfatizando que fizeram escolhas que mudaram
suas vidas, de seus companheiros e muitas outras pessoas. Significa também um
fortalecimento, a partir do “aprendi a luta”, fortalecimento individual e coletivo,
representando a sociedade traumatizada pela ditadura. (pp. 34-35)

“Para finalizar, é preciso lembrar, no entanto, que não é só o fato de saber sobre os
acontecimentos que nos torna menos indiferentes às dores dos outros. As narrativas
femininas não são capazes, por si só, de nos fazerem mais sensíveis ou de enxergarmos
o protagonismo dos esquecidos na luta por memórias. O que nos atinge, de fato, ao
publicizarmos histórias e memórias como as relatadas por essas mulheres deve ser a
oportunidade de ouvi-las em toda plenitude de emoções, tendo tempo para entender a
complexidade que envolve os movimentos sociais e seus sujeitos. Seus relatos são
possibilidades históricas em aberto, desafios ao nosso próprio presente a partir de nosso
passado sempre inacabado. O trabalho com história oral não trata apenas de divulgação
de informação, mas de conhecimento sensível, o que implica compromisso com uma
história pública, que dê aos mortos e aos vivos o direito à sua história.” (pp. 35-36)

O Movimento Feminino pela Anistia e o humanismo intransigente de Helena


Greco – Lucília de Almeida Neves Delgado
A Campanha pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita foi um movimento sem precedentes
na história brasileira, o primeiro a alcançar adesão de amplos segmentos da sociedade
civil e política na luta contra a ditadura. Em 1978 já haviam sido criadas redes de
solidariedade, contatos estabelecidos com organizações internacionais de direitos
humanos e alianças com a igreja católica e SBPC. Portanto, nesse ano, as condições
para o nascimento do MPAAGI já estavam consolidadas. Depois dos comitês de SP e
RJ, novos foram fundados em outros estados. (pp. 37-39)

A autora resgata a trajetória pessoal e política de Helena Greco, conectando sua história
de vida com os acontecimentos políticos do Brasil, principalmente a luta pela anistia em
Belo Horizonte. “A Lei da Anistia acabou por não atender à demanda integral da
campanha, pois restringiu o ‘perdão’ em algumas de suas cláusulas e ainda trouxe no
seu corpo a expressão ‘anistia conexa’, que favoreceu aos responsáveis pela tortura.” (p.
50)

“Na narrativa sobre a campanha pela anistia, Helena Greco destacou duas vertentes: a
do alcance do movimento e a do retorno dos exilados. Quanto à primeira, lembrou o
apoio dos jornais alternativos e a participação de políticos como Teotônio Vilela e de
outras mulheres como Terezinha Zerbini. Registrou também o envolvimento de diversas
organizações da sociedade civil, como Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),
Associação Brasileira de Imprensa (ABI), União Nacional dos Estudantes (UNE) e
Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo.” (pp. 50-51)

PARTE 2: Trabalhadores entre memórias e identidades

História oral e movimentos sociais: a memória ferroviária em questão – Andrea


Casa Nova Maia
A autora trabalha com os ferroviários da região de Minas Gerais, buscando
compreender as suas lutas sociais e as profundas transformações advindas do processo
de desestatização da ferrovia. “Buscava a cultura, o cotidiano e as lutas sociais dos
ferroviários, com destaque para os de Minas.” (pp. 59-60)

Conceito de “ponto de saturação” (metodologia da história oral): determinadas


respostas que se repetem em entrevistas sobre o mesmo tempo (p. 64)

A autora contrasta/compara as narrativas dos ferroviários com outras fontes de


informação, o que possibilita que teça críticas e discorde de algumas memórias
cristalizadas. (p. 64) Os seus relatos são o principal fio condutor do texto.

Os relatos dão conta das mudanças ocorridas diante do processo de desestatização: o


sucateamento da malha ferroviária, o desemprego, o enfraquecimento do MUF
(Movimento de União dos Ferroviários), a perda de direitos trabalhistas. Paralelamente,
os registros e memórias também foram se deteriorando e se perdendo, depois de terem
sido outorgados a arquivos privados ou estatais. (pp. 70-72)

PARTE 3: A construção de acervos: narrativas públicas

Maria Paula Nascimento Araujo – Um acervo de depoimentos sobre a luta e


resistência contra a ditadura militar: questões teóricas e metodológicas
A autora começa o artigo com a seguinte reflexão: Como fazer frente ao legado de um
passado repressivo? Essa é uma questão ética e política fundamental para países que
enfrentaram regimes ditatoriais.

“Justiça de transição é um conceito que se desenvolveu nos últimos anos e que se refere
a um conjunto de procedimentos jurídicos e políticos implementados pelo Estado com
vistas à criação de uma nova situação política e moral após a transição de um regime
discriminatório e violento para um regime democrático. Inúmeros procedimentos
permeiam esta justiça transicional: a revelação dos crimes cometidos, a reparação das
vítimas, a responsabilização dos perpetradores de violência, sobretudo os agentes do
Estado. Memória, verdade e justiça são os seus pilares. Mas cada país desenvolve uma
justiça de transição própria; não existe um modelo único. Em cada país a situação
política específica, a correlação de forças, a cultura política e as demandas da sociedade
vão interferir neste processo e configurar um modelo específico de justiça de transição.
No caso do Brasil este modelo deu ênfase ao aspecto da reparação das vítimas. Um dos
elementos chaves desta ênfase foi a Anistia.” (p. 120)

A autora reflete criticamente sobre o processo de transição no Brasil. A Leia de Anistia


não pode ser vista exatamente como uma medida política de justiça transicional, pois foi
resultado da oposição durante a ditadura militar. Porém, nos anos seguintes, a anistia se
tornou o “carro chefe” de uma justiça transicional focada na questão da REPARAÇÃO.
As mudanças operadas na lei visavam ampliar os benefícios e número de beneficiados
pela anistia, numa ideia de que o cidadão também seria reparado. O governo FHC criou
em 2001 a Comissão da Anistia junto ao Ministério da Justiça, num esforço que ia nesse
sentido. (pp. 120-121)

O cunho essencial indenizatório foi muito criticado pelos movimentos de direitos


humanos e pela sociedade, pois reforçam diferenças de classe, não são justas, etc. Os
limites das indenizações estimulou a Comissão da Anistia a reforçar outras dimensões,
como o pedido de perdão oficial do Estado. A historiadora Glenda Gathe Alvez (2015)
mostra o esforço do Min. De Justiça em ampliar a dimensão política da anistia e
devolver uma justiça transicional no Brasil. Esse processo foi chamado de “virada
hermenêutica” pelo presidente da Comissão de Anistia – o novo foco da anistia. (p. 122)
A partir de 2010 esse esforço se tornou mais intenso e pesquisadores foram convocados
para o levantamento de fontes primárias, organizações de acervos e produção de
pesquisa sobre a história da ditadura, com ênfase nas histórias de vida das pessoas que
foram afetadas. Havia 2 objetivos: reconstruir a memória história, assumindo um “dever
de memória” por parte do Estado; dar voz às vítimas da violência da ditadura militar.

Foram, assim, criados 2 projetos: Memória Reveladas – criado em 2009 pela Casa Civil,
seu objetivo era a constituição de um Centro de Referência das Lutas Políticas no
Brasil, foi implantado no Arquivo Nacional. (pp. 122-123)

Marcas da memória – envolver universidades, centros de pesquisa e ONGs, subsidiou


pesquisas de história oral com o objetivo de dar voz às vítimas da ditadura. Foi uma
iniciativa do Ministério da Justiça, coordenado pela Comissão de Anistia e envolveu a
UFPE (Antonio Montenegro), UFRGS (Carla Rodeghero) e URFJ (autora).

Frente a primeira questão que a equipe enfrentou, sobre quem deveriam ser as pessoas
entrevistas, a orientação inicial da Comissão de Anistia voltava-se para a perspectiva
das “vítimas” – pessoas que tivessem sido vítimas da ditadura e, por conta disso,
tivessem pedido anistia e reparação. A ênfase nas vítimas deriva da abordagem
prioritariamente jurídica, que coloca em relevo os conflitos que são sempre abordados
pela perspectiva de vítimas e perpetradores. (p. 125)

A autora debate duas questões a partir desse primeiro momento do projeto:


1. Há uma mudança na memória coletiva: a passagem da valorização do herói para
a valorização da vítima. A memória coletiva das democracias modernas
celebrava seus heróis fundadores, enquanto que nas últimas décadas as
sociedades ocidentais colocam no centro as vítimas de violência. Isso se
relaciona com uma mudança política mais ampla, a “erosão das utopias” (ver
Berhard Giesen, 2011, Sobre héroes, víctimas y perpetradores. La construcción
pública del mal y del bien común). Trata-se da despolitização da sociedade, um
descrédito em relação à ação política, desaparecendo a figura do protagonista,
aquele que atua politicamente para transformar a sociedade. (pp. 125-126)
2. O foco nas vítimas coloca o sofrimento no lugar da ação política. É necessário
falar, além das vítimas, dos protagonistas. Por isso a equipe assumiu a
perspectiva de colher depoimentos de vítimas, militantes, simpatizantes,
lideranças sociais, etc. (ver Jonathan Grossman, 200, e Araujo, Uma história oral
da anistia no Brasil: memória, testemunho e superação).
3. Não cair em uma história única. É necessária uma pluralidade política, territorial
e social dos depoimentos, que consigam mostrar as diferentes perspectivas e
avaliações sobre a ditadura. Foi uma decisão de caráter teórico, metodológico e
político. (p. 128)
4. O projeto não deveria se alinha à construção de uma história oficial.

“As entrevistas foram na modalidade de ‘história de vida’, mas acentuando a trajetória


política do depoente e enfocando sua militância contra a ditadura.” (p. 129)

“Os relatos de vida permitem conhecer o campo de possibilidades, de escolhas, de


ações, de sentimentos; os valores morais, os projetos, as representações simbólicas de
uma época; e também as condições concretas de vivência dessas representações.” (p.
129)

“Além disso, os depoimentos constroem versões sobre o passado, expressam uma


memória que é socialmente construída, mas também intensamente disputada. Um
acervo amplo e diferenciado de entrevistas permite perceber as diferentes construções
de memória do período; as diferentes e conflitantes versões sobre fatos e temas; as
disputas pela memória.” (p. 130)

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