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CAMPINAS
2016
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): FAPESP, 2010/522324
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272
Muitas foram as pessoas que, por sua presença, amizade, ou palavras de encorajamento,
contribuíram com este trabalho. Limito-me aqui a agradecer aquelas/es que participaram deste
projeto de forma mais direta.
Durante minha estadia na França, pude contar com a ajuda de diversas pesquisadoras sem as
quais este trabalho não teria sido possível. Agradeço à Isabelle Clair, Danièle Linhart, Cornelia
Möser, Jules Falquet e Lucie Tanguy. Um agradecimento especial à Helena Hirata pelo apoio e
encorajamentos permanentes.
Às amigas e amigos que acompanharam de perto as longas jornadas de trabalho e, para além da
amizade, leram, discutiram e opinaram sobre alguma parte deste texto: Malek Bouyahia e
Nehara Feldman pelas inúmeras correções de textos em francês e pelos diálogos que tanto
enriqueceram esta tese; Lettícia Leite, escudeira fiel e incansável; Juliana Guanais, sempre
presente e encorajadora; Danielle Tega, pela ajuda preciosa e determinante no fechamento destr
testo. Agraço também à Daniela Vieira, Maria Angélica, Sylvie Bastian, Sophie Noyé, Maíra
Mano e Rafael Silva pelas trocas, sugestões e contribuições.
Um agradecimento especial à Aluana Abreu, minha irmã, que me acolheu no último ano de
doutorado e que me deu a infraestrutura necessária para a conclusão deste trabalho.
Esta tese foi financiada pela Fapesp e se beneficiou também de uma bolsa “sanduíche” Capes na
França.
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo analisar a emergência de um pensamento feminista materialista
e antinaturalista no bojo das intensas mobilizações feministas dos anos 1970 e início dos anos
1980 na França. A partir de um diálogo entre diferentes campos disciplinares e temáticos,
como os estudos de gênero, a teoria feminista e a história das ideias, o objetivo é analisar essa
produção em estreita relação com o contexto histórico e teórico no qual tais análises surgiram
e que lhe confere sentido. É dada especial ênfase à constituição do que ficaria conhecido
como “feminismo materialista”, corrente associada aos trabalhos de Christine Delphy, Colette
Guillaumin, Nicole-Claude Mathieu e Monique Wittig, que fizeram parte do coletivo de
redação da revista Questions féministes (1977-1980) e que foram pioneiras ao propor uma
abordagem antinaturalista articulada a uma análise materialista. Utilizando diferentes tipos de
fontes como panfletos, textos de jornais militantes, além de textos publicados sob a forma de
livro e artigo, o objetivo é restituir os caminhos trilhados por essa reflexão e os embates
teóricos que marcaram o seu desenvolvimento, ressaltando a conflitualidade e o caráter
coletivo dessa reflexão.
This paper aims to analyze the emergence of a feminist materialist and anti-naturalist thought
in the midst of the intense feminist mobilizations of the 1970s and early 1980s in France.
From a dialogue between different disciplinary and thematic fields, such as gender studies,
feminist theory and the history of ideas, the objective is to analyze this production in close
relation with the historical and theoretical context in which such analyzes have arisen and
which makes sense to it. Particular emphasis is given to the constitution of what would be
known as "materialist feminism," associated with the works of Christine Delphy, Colette
Guillaumin, Nicole-Claude Mathieu, and Monique Wittig, who were part of the editorial
collective of the journal Questions féministes (1977-1980). They were pioneers in proposing
an anti-naturalist approach articulated to a materialistic analysis. Using different types of
sources, such as pamphlets, magazines and newspapers, as well as texts published as book and
article, the objective is to restore the paths followed by this reflection and the theoretical
clashes that marked its development, highlighting the conflict and the collective character of
this reflection.
Introdução ........................................................................................................................................11
Os “anos 1960”.......................................................................................................................64
Teoria feminista....................................................................................................................117
Feminismo e a esquerda........................................................................................................221
Em busca das bases materiais da opressão feminina............................................................225
Christine Delphy e o inimigo principal..................................................................225
Outras análises materialistas...................................................................................230
Salário para o trabalho doméstico..........................................................................236
O domestic labour debat........................................................................................239
Encontros em torno de uma perspectiva comum....................................................242
Sexagem.................................................................................................................245
Debates em torno de alguns conceitos..................................................................................249
Marxismo e marxismos..........................................................................................249
Mulheres como classe.............................................................................................250
Patriarcado e capitalismo........................................................................................257
Bibliografia......................................................................................................................................299
11
Introdução
No contexto francês, nos últimos dois anos, seminários, ateliers, livros e números
especiais de revistas indicam o interesse por esse tipo de debate.5 Somente no ano de 2016
foram publicados: um número especial da revista Cahier du genre (“Análises críticas e
1
FRASER, Nancy. Entre marchandisation et protection sociale. Les ambivalences du féminisme dans la crise du
capitalisme. In: Le féminisme en mouvements. Des années 1960 à l’ère néolibérale. Paris: La Découverte, 2012,
p. 309. Este artigo foi publicado originalmente em 2010.
2
Esses termos são usados frequentemente como sinônimos. Entretanto, em alguns casos, o uso do termo
“materialista” é uma forma de se distanciar de perspectivas mais ortodoxas do marxismo.
3
Ver, por exemplo, SEARS, Alan. Queer Anti-Capitalism: What's Left of Lesbian and Gay Liberation? Science
and Society, vol. 69, n.1, 2005.
4
Floyd, Kevin. La reification du désir. Vers un marxisme queer. Paris: Édition Amsterdam, 2012.
5
Por exemplo, dois ateliers sobre feminismo materialista no 7e Congrès international des recherches féministes
dans la francophonie “ Penser créer agir les féminimes. De la révolution des savoirs au changement social ”
realizado em Montreal nos dias 24 – 28 de agosto de 2015. “ Usages et actualité des théories féministes
matérialistes francophones: réflexions antiracistes, lesbiennes , décoloniales et postcoloniales ” (4 sessões).
Organizadoras: Dominique Bourque, Ochy Curiel, Lucia Direnberger, Jules Falquet ; e “ Actualité du
matérialisme ” (5 sessões) organizado por Anne-Marie Devreux, Michèle Ferrand e Marie Mathieu. Um
seminário organizado por Danièle Kergoat, Helena Hirata e Michelle Paiva tinha igualmente a questão como
temática,“ Féminismes matérialistes et analyses critiques ”. Apresentei na quarta sessão no dia 12 de maio de
2014, a comunicação “Genèse et débats autour du concept de rapports sociaux de sexe ”.
12
6
“Analyse critique et féminismes matérialistes ” Cahiers du genre. Hors serie 2016 . Número organizado por
Annie Bidet-Mordrel, Elsa Galerand e Danièle Kergoat.
7
GRANJON, Fabien (org.)Matérialismes, culture & communication, Tome1 (Marxismes, théorie et sociologies
critiques). Paris: Presses des Mines, Collection Matérialismes, 2016 ;CERVULLE, Maxime ; QUEMENER,
Nelly ; VOROS, Florian (org.). Matérialismes, culture & communication, Tome2 (Cultural studies, théories
féministes et décoloniales). Paris: Presses des Mines, Collection Matérialismes, 2016.
8
Comment s’en sotir n.4 intitulado “Matérialismes féministes” organizado por Isabelle Clair e Maxime Cervulle
(no prelo, publicação prevista para abril de 2017). Neste número publicarei um artigo intitulado “De quelle
histoire le ‘féminisme matérialiste’ (français) est-il le nom?”.
9
Sobre o chamado “neo-materialismo” que, apesar do nome, se distingue completamente das reflexões que, em
geral, se reivindicam “materialistas”, ver: Stancy Alaimo e Susan Hekman, e New Materialism: Interviews &
Cartographies. Open University Press, 2012. Para uma análise desse tipo de reflexão, consultar: MOSER,
Cornelia. Neo- matérialisme. Um nouveau courant féministe ? In: CERVULLE, Maxime ; QUEMENER, Nelly ;
VOROS, Florian (org.). Matérialismes, culture & communication, Tome2. Paris: Presses des Mines, Collection
Matérialismes, 2016.
10
Para definições recentes de “feminismo materialista” ver: FALQUET, Jules. Introdução. In: FERREIRA,
Verônica; ÁVILA, Maria Betânia; FALQUET, Jules; ABREU, Maira (org.) O Patriarcado Desvendado: teorias
de três feministas materialistas. Colette Guillaumin, Paola Tabet e Nicole-Claude Mathieu. Recife: Edições SOS
Corpo, 2016; BERENI, Laure ; CHAUVIN, Sébastien, Alexandre Jaunait et Anne Revillard. Introduction aux
Gender Studies. Manuel des études sur le genre. Bruxelas: De Boeck, 2008.
11
Como exemplo, podemos os títulos listados como “obras teóricas essenciais sobre o gênero” no Manuel des
études sur le genre na qual contam sete títulos, três são identificadas com essa corrente (Christine Delphy,
Nicole-Claude Mathieu e Colette Guillaumin) sem contar Simone de Beauvoir. Constam também La domination
masculina de Pierre Bourdieu, Problemas de gênero de Judith Butler e Masculin/Féminin de Françoise Héritier.
13
No Brasil, por razões que precisariam ser investigadas, predominam nos estudos
de gênero, autoras e questionamentos oriundos, sobretudo, de um contexto anglófono,
particularmente estadunidense. Embora as ciências humanas no Brasil tenham sofrido uma
forte influência da produção teórica francesa, o mesmo não ocorre neste campo específico. As
autoras que constituem a base deste trabalho começaram a ser traduzidas recentemente13 e são
praticamente desconhecidas no país, com exceção de Monique Wittig, que se tornou mais
conhecida, ao que parece, em decorrência de sua passagem pelos EUA, mas, sobretudo, por
referências presentes nos textos de Judith Butler.
mulher, essencialismo, este trabalho se propunha a fazer uma análise sistemática desse quadro
conceitual, buscando relacioná-lo tanto com o contexto histórico e teórico-prático da
emergência dessas ideias, como promover um diálogo com outras perspectivas e conceitos
derivados das mesmas, como, por exemplo, as teorizações de gênero influenciadas pelo “pós-
modernismo”.
História do feminismo
Genviève Fraisse17, poucos eram os títulos dentro dessa temática e a maioria foi publicada a
partir do final dos anos 1970. É, portanto, no bojo das movimentações feministas dos anos
1970 que surgiu um maior interesse pela história desse movimento.
17
FRAISSE, Geneviève. Singularité féministe. Historiographie critique de l’histoire du féminisme en France. In:
PERROT, Michèle (org.). Une histoire des femmes est-elle possible ? Marselha: Rivages, 1984.
18
ALBISTUR, Maïté ; ARMOGATHE, Daniel. Histoire du féminisme français du moyen âge à nos jours. Paris:
Des Femmes, 1977.
19
Para uma lista das teses de doutorado orientadas por Michele Perrot, ver: Annexe I: Histoire, Paris 7. Thèses
soutenues sur l'histoire des femmes, sous la direction de Michelle Perrot (par ordre chronologique) Quelques
thèses sur l'histoire des femmes (XIXe s.). Les cahiers du CEDREF n.10, 2001.
20
GARCIA GUADILLA, Naty. Le Mouvement de Libération des Femmes (M.L.F) en France de 1968 à 1978.
Thèse de Doctorat: Troisième cycle sociologie. Paris: Écoles des Hautes Etudes en sciences sociales, 1979.
21
GARCIA GUADILLA, Naty, Libération des femmes. Le MLF, PUF, 1981.
22
Laurence Klejman et Florence Rochefort. L'égalité en marche. Histoire du mouvement féministe en France,
1868-1914. Tese doutorado. Paris: Université Paris 7, octobre 1987 (publicado com o título: L'égalité en marche.
Le féminisme sous la Troisième République, FNSCPO/Des femmes, 1989.
23
BARD, Christine. Les féministes en France. Vers l'intégration des femmes dans La Cité (1914-1940). Tese
doutorado. Paris: Université Paris 7, janvier 1994. BARD Christine, Les Filles de Marianne. Histoire des
féminismes. 1914-1940, Fayard, 1995.
24
PICQ, Françoise. Libération des femmes, quarente ans de mouvement. Paris: Editions dialogues, 2011
[publicado originalmente em 1993].
25
CHAPERON, Sylvie. Le reflux de la vague. Mouvements féminins et féministes 1945-1970, Université
européenne de Florence, en co-direction avec Paris 7, 1996.
16
et féministes 1945-1970, defendida em 1996 e publicada em 2000 sob o título Les années
Beauvoir, veio preencher essa lacuna. A autora nos fornece um detalhado quadro das
movimentações feministas entre o período posterior à concessão do voto feminino e o início
das mobilizações do MLF, período que a autora chama de “anos Beauvoir”.26 Além disso,
Chaperon nos mostra como neste período, particularmente a partir dos anos 1960, opera-se
uma lenta e discreta gestação de um conjunto de ideias e práticas que viriam a se transformar
no Mouvement de libération des femmes. Fora da França, neste mesmo período, surgem os
trabalhos, de caráter mais panorâmico como os de Claire Duchen: Feminism in France: From
May 1968 to Mitterrand (1986) e Women’s Right and women’s lives 1944-1968 (1994).27
Nos últimos anos, alguns outros trabalhos foram publicados sobre o tema,
oriundos em grande medida de outra geração, dentre eles, os de Bibia Pavard32, Les éditions
des femmes. Histoire des premières années 1972-1979 (2005), sobre a história dos primeiros
anos da editora Des femmes, ligada ao grupo Psicanálise e Política. Cabe ainda ressaltar que
diversos títulos foram publicados na coleção Archives du Féminisme, da editora Presse
Universitaire de Rennes.33 Sobre o período que nos interessa, podemos mencionar: L’État et
26
CHAPERON, Sylvie. Les années Beauvoir, Fayard, 2000.
27
DUCHEN Claire, Feminism in France: From May 1968 to Mitterrand, London, Routledge, 1986; DUCHEN
Claire, Women’ s Rights and women’s lives 1944-1968, Routledge, 1994.
28
GARCIA GUADILLA Naty, Libération des femmes. Le MLF, PUF, 1981. p.25.
29
PICQ, Françoise. Libération des femmes 1993 Op. cit., 487.
30
Ibidem, p. 487.
31
Ibidem, p. 489.
32
PAVARD Bibia. Les éditions des femmes. Histoire des premières années 1972-1979, L’Harmattan, 2005.
33
Para uma lista completa, ver o site internet da editora: http://www.pureditions.fr/collection.php?idColl=105
17
les droits des femmes, de Sandrine Dauphin; Si je veux quando je veux, de Bibia Pavard34; Les
féministes de la deuxième vague, organizado por Christine Bard35; e À tire d’elles. Itineraires
de féministes radicales des années 1970, de Françoise Flamant. Estes dois últimos se
concentram em trajetórias individuais. Françoise Flamant procura recuperar os itinerários de
onze feministas radicais oriundas de diferentes contextos (sobretudo França, Estados Unidos).
Para a autora, os relatos de vida na história do feminismo, embora raros, são fundamentais
para tornar visíveis as atrizes desse movimento.36 Nesse mesmo sentido, Les féministes de la
deuxième vague, organizado por Christine Bard, pretende fazer uma história do feminismo a
partir da história das feministas.
Cabe mencionar também alguns títulos que procuram divulgar outras fontes para
se compreender esse movimento tais como Luttes de femmes. 100 ans d'affiches
féministes37que reproduz cartazes feministas dos últimos 100 anos e ainda MLF// textes
premiers38, uma antologia de importantes documentos relativos aos primeiros anos do
movimento. Um exaustivo panorama da imprensa feminista e lésbica a partir dos anos 1970,
Mouvement de presse des années 1970 à nos jours, luttes féministes et lesbiennes39,
publicado em 2011, completa esse quadro.
34
PAVARD, Bibia. Si je veux, quand je veux. Contraception et avortement dans la société française (1956-
1979). Rennes: PUR, 2012.
35
BARD, Christine. (org.) Les féministes de la deuxième vague, Rennes: PUR, 2012.
36
FLAMANT, Françoise. À titre d’elles. Itinéraires de féministes radicales des années 1970. Rennes: PUR
(collection Archives du Féminisme), 2007, p.13.
37
PAVARD, Bibia ; ZANCARINI-FOURNEL, Michelle. Luttes de femmes. 100 ans d'affiches féministes. Paris:
Les Échappés, 2013.
38
COLLECTIF. MLF. Textes premiers. Paris: Stock, 2009.
39
LAROCHE Martine, LARROUY Michèle, Le collectif des Archives Recherches cultures lesbiennes,
Mouvement de presse des années 1970 à nos jours, luttes féministes et lesbiennes. Paris: éditions ARCL, 2011.
40
FOUQUE, Antoinette et. Al. Génération MLF 1968-2008. Paris, Éditions des femmes-Antoinette Fouque,
2008, 614 p.
41
Prochoix, n.46, dez. 2008.
18
Nos últimos dez anos, uma produção deste tipo começou a tomar corpo.
Entretanto, trata-se, em geral, de trabalhos de cunho mais didático.47 Esses livros, cuja
importância é inegável para a consolidação de um campo de estudos, não se propõem como
análises sociológicas ou históricas dessas teorizações feministas recentes. Por razões de
ordem didática, são selecionadas algumas questões consideradas como importantes ou atuais e
algumas autoras, e eventualmente autores, cuja importância é reconhecida e consolidada.
42
Para o MLF, ver “Les temps des procès” In: PICQ, Françoise. Libération des femmes, quarente ans de
mouvement. Paris: Editions dialogues, 2011.
43
ZANCARINI-FOURNEL, Michelle. Récit. 68. Une histoire collective (1962-1981). Paris: La Découverte,
2008, p.273.
44
BARD, Christine. Écrire l’histoire du féministes: bilan et perspectives . In: BARD, Christine (org.). Les
féministes de la deuxième vague, Rennes, PUR, 2012.
45
BARD, Christine. Ecrire l’histoire du féminisme. CORRADIN, Irène, MARTIN, Jacqueline (org.). Les
femmes, sujets d’histoire, Toulouse, Presses universitaires du Mirail, 1999, p.13.
46
CLAIR Isabelle; HEINEN, Jacqueline. Le genre et les études féministes françaises: une histoire ancienne.
Introduction. Cahiers du genre, n.54, 2013, p. 13.
47
Ver, por exemplo, DORLIN, Elsa. Sexe, genre et sexualités: Introduction à la théorie féministe. Paris: PUF,
2008; BERENI, Laure. et. al. Introduction aux Gender Studies. Op. cit.; PFEFFERKORN, Roland. Genre et
rapports sociaux de sexe. Lausanne: Éditions page deux, 2012.
19
Alguns livros sobre as teorias feministas francesas foram publicados nos últimos
anos, entre eles, Inégalités et rapports sociaux48 de Roland Pfefferkorn, Déplier le genre.
Enquête epistemologique sur le féminisme materialiste Fabienne Malbois49 e Féminismes en
traductions50 Cornelia Möser.
Cornelia Möser se aproxima mais da proposta desta tese, mas trabalha com um
período diferente. Möser procura reconstituir os debates sobre a “teoria do gênero” na França
e Alemanha, destacando “a presença de discussões e controvérsias precedentes”, integrando a
conflitualidade desse processo como um elemento constitutivo desse debate. Nesse sentido,
ela procura evitar a “armadilha de uma construção historiográfica do pensamento feminista
que procede de uma visão teleológica e linear que defende que a pesquisa feminista é
necessariamente o que ela é e sabe em consequência também do que ela deve se tornar”51, isto
é, a autora procura escapar de narrativas já prontas sobre o feminismo. Esse trabalho
compartilha, nesse sentido, alguns dos questionamentos levantado pela autora, embora para
um período anterior ao abordado por Möser.
Esta pesquisa se diferencia de outros trabalhos citados acima por razões ligadas
à escolha das fontes e à forma de interpretá-las. Partimos da ideia de que não se pode
compreender as teorias feministas desvinculadas dos movimentos que permitiram a sua
eclosão. Separar alguns escritos do contexto que lhes permitiu emergir e que dá sentido a
essas ideias amputa uma dimensão importante da reflexão feminista. Consideramos os
movimentos sociais como produtores de teorias e, por essa razão, fontes e abordagens devem
levar em consideração esse aspecto. No próximo item, procuraremos abordar alguns aspetos
da proposta metodológica deste trabalho.
Este trabalho procura trazer, para uma reflexão sobre as ideias feministas, uma
série de questionamentos metodológicos de diferentes campos disciplinares como da história
das ideias, história intelectual e sociologia das ideias.
A partir dos anos 1960, diversos autores, com diferentes perspectivas teóricas,
promoveram críticas a certa forma de analisar o objeto “ideias”. Arnault Skornicki e Jérôme
48
PFEFFERRKON, Roland. Inégalités et rapports sociaux. Paris: La Dispute, 2007.
49
MALBOIS, Fabienne. Déplier le genre. Enquête épistémologique sur le féminisme antinaturaliste, Zurich:
Editions Seismo, 2011.
50
MÖSER, Cornelia. Féminismes en traductions. Théories voyageuses et traductions culturelles. Paris:
Éditionsdes archives contemporaines, 2013.
51
Ibidem, p. 5.
20
Tournadre propõem abranger sob a designação de “nova história das ideias políticas”52
diversas iniciativas que compõem o esforço teórico de autores de diferentes países (Inglaterra,
Alemanha, Estados Unidos), incluindo desde os “contextualistas” da escola de Cambrigde
(Skinner, Poccok, dentre outros), à genealogia de Foucault ou perspectivas desenvolvidas no
Science studies. O que permite reunir esse conjunto de autores e perspectivas sob tal
designação é muito mais a oposição a certa forma de conceber as ideias políticas do que
propriamente uma coerência interna das propostas metodológicas. Alguns dos principais
aspectos questionados são: a restrição da análise a um corpus de autores considerados como
grandes clássicos; uma história retrospectiva que avalia o passado a partir de questões do
presente, desconsiderando o seu contexto de emergência e imputando questões a esse passado
que não eram relevantes ou não se apresentavam da mesma forma neste, dentre outras. Em
oposição, propõem chamar a atenção para os “contextos linguísticos, retóricos, políticos e
sociais no seio dos quais os discursos, teorias, argumentos e slogans ganham sentido”.53
52
SKORNICKI Arnault, TOURNADRE Jérôme. La nouvelle histoire des idées politiques, Paris, La Découverte,
2015.
53
Ibidem, p. 5.
54
CHAUBET, François. Enjeu-Histoire des intellectuels, histoire intellectuelle. Bilan provisoire et perspectives.
Vingtième Siècle. Revue d'histoire. 2009/1 - n° 101.
55
Ibidem, p. 5.
56
SKINNER, Op. cit., p. 121.
21
os textos “têm contexto, que os discursos foram pensados e enunciados para um certo público,
que os artigos e livros foram pensados e escritos visando um leitor”.57
Há também uma tentativa de romper com a dicotomia entre uma análise externa e
interna, isto é, entre uma hermenêutica prisioneira do texto e uma análise que tende a reduzir
as ideias ao contexto que permitiu sua emergência.
Neste trabalho, pretendo incorporar algumas dessas críticas para uma análise das
ideias feministas. Muitas análises da “teoria feminista” continuam reproduzindo alguns dos
problemas indicados acima. A teoria feminista tratada a partir de algumas “grandes autoras”,
muitas vezes, descontextualizadas, a partir de um corpus limitado de textos – sobretudo
aqueles publicados sob a forma de livros –, ignorando ou menosprezando um rico material
produzido pelo movimento feminista, é praticamente uma constante nos livros sobre o tema.
Além disso, o passado é frequentemente visitado a partir de questões do presente e poucos são
os esforços para compreender como e por que alguns debates emergiram no momento
histórico no qual foram formuladas. Para formar uma narrativa coerente, acumulativa e em
constante aperfeiçoamento, algumas questões são eleitas como relevantes e outras não.
Questões que não fazem sentido no contexto atual, questões que não deixaram “herdeiros”,
57
MUCCHIELLI, Laurent. La découverte du social. Paris: La Découverte, 1997, p.13.
22
caminhos que foram abandonados, pistas e indicações que não tiveram continuidade terminam
por caírem no esquecimento.
Considero que a crítica a esse tipo de narrativa passa necessariamente por uma
problematização dos tipos de fontes utilizadas. Por que algumas autoras são eleitas como as
legítimas representantes do feminismo desse período é uma questão que se impõe. Analisar a
“teoria feminista” gestada nos anos 1970, a partir de algumas autoras eleitas como
representativas do movimento (Shulamith Firestone, Kate Millet no caso dos EUA), nos
conduz a um panorama empobrecido das teorizações dessa rica década. É preciso levar em
consideração que textos publicados sob a forma de livro tiveram que passar frequentemente
por uma seleção de um comitê editorial, e que outros instrumentos, como panfletos, cartazes e
revistas com pouca tiragem e baseadas na mão de obra militante, constituem formas muito
mais acessíveis de divulgação de ideias e foram frequentemente usados por pequenos grupos
58
HEMMINGS, Clare. Contando estórias feministas. Revista Estudos feministas, 17, 2009.
59
Ibidem, p. 229.
60
Ibidem, p. 220.
61
CROW, Barbara. (org.) Radical feminism. A documentary reader. Nova York e Londres: New York
University Press, 2000.
23
que não tinham outro meio de divulgação e expressão. Como afirma Guillaumin62, uma
grande parte da reflexão feminista foi veiculada sob formas frágeis, efêmeras, de difusão
limitada e militante, destinadas ao rápido desaparecimento, tais como panfletos, textos de
preparação de encontros, chamadas mimeografadas de reuniões etc. Os relatórios, artigos e
livros, ou seja, as formas mais permanentes e que ganham com mais facilidade a posteridade,
constituem somente uma parcela pequena dessa massa de trabalhos produzidos pelo
movimento.
Não se trata, contudo, de propor somente uma incorporação de novas fontes, mas
também uma crítica à própria separação entre textos considerados “teóricos” e “militantes”.
Como estabelecer essa diferença? Os Condenados da terra, de Fanon, O Dezoito Brumário de
Luís Bonaparte, de Marx, Discurso sobre o colonialismo, de Césaire, são textos teóricos ou
militantes? Os primeiros escritos feministas da segunda onda foram frequentemente rejeitados
como pouco teóricos e excessivamente militantes e até hoje um véu de suspeição paira sob as
teorizações na área de estudos de gênero. Trata-se de uma crítica recorrente direcionada às
teorizações de grupos dominados ou que ameaçam certa forma de dominação. Essa separação
implica frequentemente, embora não necessariamente, a ideia de que há textos teóricos,
neutros e puramente objetivos e outros que são claramente partidários. Procuro mostrar que
essas produções são situadas e como qualquer produção exprime interesses e uma
perspectiva. Utilizamos neste trabalho tanto textos reconhecidos como “teóricos”, quanto
panfletos, materiais de congressos, textos da imprensa feminista, dentre outros materiais
claramente identificados como “militantes” ou “partidários”. Isso não significa ignorar as
diferenças entre um texto curto, voltado para divulgação, e um texto denso, no qual há uma
preocupação em lapidar conceitos e analisar de forma aprofundada teorias ou fenômenos.
Essa perspectiva permite também borrar as fronteiras entre um grupo que produz
teoria, as intelectuais, e as “outras”, que receberiam passivamente essa produção. Nada mais
equivocado para o contexto e o movimento em questão. Como afirma Christine Delphy63,
uma das bases do feminismo é justamente a ideia de que todas as mulheres (e não algumas)
são capazes de teorizar. Isso não significa negar o fato de que algumas delas possam dispor de
maior capital cultural, assumindo a iniciativa de sintetizar teoricamente algumas questões
lançadas pelo movimento, ou ainda com mais tempo ou disposição para fazê-lo. Muitos dos
62
GUILLAUMIN, Colette. Femmes et théories de la société: Remarques sur les effets théoriques de la colère des
opprimées. [1981]. IN: GUILLAUMIN, Colette. Sexe, race et pratique du pouvoir. L’idée de nature. Paris:
Côté-femmes, 1992, p. 225.
63
DELPHY, Christine. Un féminisme matérialiste est possible. [1982 em inglês]. In: DELPHY, Christine.
L’ennemi principal 2. Penser le genre. Paris: Syllepse, 2009, p. 122.
24
Skinner afirmava sobre os textos clássicos – mas podemos extrapolar para outros
– que estes respondem a “problemas que eles próprios colocam e não aos nossos”.64 O
objetivo deste trabalho é justamente tentar entender quais eram os problemas colocados em
certo contexto por certo tipo de feminismo e compreender os usos que foram feitos de alguns
conceitos num contexto preciso. Isso não significa recusar “apropriações indevidas”, tomando
aqui os termos de Butler, para a elaboração de novas teorias. Os textos feministas podem e
devem servir como caixa de ferramentas na qual buscar instrumentos para compreender a
realidade atual. Analisar o feminismo dos anos 1970 e 1980 a partir de questões relevantes
para os debates atuais constitui, sem dúvida, uma possibilidade de trabalho, mas não se trata
da perspectiva adotada neste trabalho. Não se propõe aqui, portanto, uma exegese das obras
das autoras que são identificadas sob o epíteto de “feministas materialistas” assim como não
se trata também de um trabalho sobre a recepção a recepção mais recente dessa corrente ou
ainda dos debates sobre as divergências e convergências entre queer e materialismo.65
66
TOPALOV, Christian. Les usages stratégiques de l’histoire des disciplines. Le cas de l’ ‘école de Chicago’ en
sociologie. In HEILBRON, Johan ; LENOIR, Remi ; SAPIRO, Gisèle. Pour une histoire des sciences sociales.
Paris: Fayard, 2004, p. 128.
67
Tomo de empréstimo o título do livro de Arlette Farge Le goût de l’archive. Paris: Seuil, 1989.
68
Cito aqui alguns dos guias consultados para essa pesquisa: COLLECTIF. Mémoires de 68. Guide des sources
d’une histoire à faire. Lagrasse: Verdier, 1993; ANNICK, TILLIER (org.) Des sources pour l’histoire des
femmes: guide. Paris: Biblithèque nacional de France, 200 ; Christine Bard, Annie Metz, Valérie Neveu (org.),
Guide des sources de l'histoire du féminisme. Rennes, Presses universitaires de Rennes, Collection Archives du
féminisme, 2006.
26
Para acompanhar esses debates num contexto mais acadêmico consultei também
alguns fundos de arquivo do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique),
particularmente aqueles relativos a grupos ligados a essa instituição exclusivamente dedicados
aos a temática mulheres, feminismo, relações sociais de sexo ou que tinham entre os eixos de
pesquisa tais questões, fundamentalmente: Fundo GEDISST (Groupe d’études sur la division
sociale et sexuelle du travail) e do Groupe d’Ethnologie Sociale. Esses materiais encontram-se
arquivados nos Archives Nationales (France). Dentro dessa categoria de materiais mais
universitários, cabe mencionar também o Centre de Documentation do CRESPPA que
arquiva textos apresentados em congressos, relatórios de atividades de pesquisadores e dos
centros de pesquisa vinculados a esta instituição (GTM, CSU e Labtop).
Uma parte das caixas era composta por revistas e jornais feministas e lésbicos
publicadas nos anos 1970, sobretudo na França, mas também em outros países, que
provavelmente compunham uma pequena “biblioteca” da revista. A maioria tinha marcado na
capa a sigla QF. Em geral essas publicações não apresentavam grandes novidades e faziam
parte do acervo de outros arquivos. Mas, as outras caixas continham um conjunto de materiais
de difícil acesso e que só poderia ser encontrados de forma dispersa em alguns arquivos
pessoais. Novos horizontes se abriam para essa pesquisa.
materiais arquivados de uma forma aleatória foram algumas das dificuldades com as quais me
deparei num primeiro momento. O trabalho com este tipo de material requer tempo por
diferentes razões. Algumas são de ordem prática: desvendar caligrafias numa língua
estrangeira, descobrir pseudônimos, compreender a origem de um documento, de um carimbo,
revelou ser um trabalho um tanto árduo. Nessas situações, é necessário um contato
prolongado com as fontes para restituir o contexto no qual se encontram aqueles documentos.
Caso contrário, estes podem se tornar ilegíveis, como bem lembra Artières em relação ao
trabalho com arquivos pessoais. “Sem um enquadramento exterior ao documento, não se
compreende nada” afirma. Caberia então “fabricar uma contextura”, algo que permitisse ligar
uma série de textos a um contexto:
Sem elementos contextuais, ficamos desarmados diante da aparente
desordem. Cada página da escrita é duplicada por uma cena social a ser
conhecida, a se documentar, a se informar, o que supõe outras explorações
numa cidade, numa organização, num evento político, uma cultura da leitura,
72
um modo de pensar compartilhado, uma experiência de trabalho.
Pouco a pouco e com a ajuda de algumas militantes da ARCL fui tecendo essa
contextura. Este trabalho me abriu também outras portas. Fui convidada para fazer um estágio
neste arquivo com o objetivo de organizar o acervo de revistas e panfletos. Este trabalho
envolvia limpeza das estantes, dos materiais, separação e organização nas prateleiras além de
inserir as informações sobre as revistas numa base de dados. Uma vez por semana, durante
cinco horas, dediquei-me a essa atividade, privilegiando as produções dos anos 1970 num
primeiro momento. Essa atividade trouxe diversas contribuições a este trabalho. Algumas das
militantes do grupo tinham um histórico de militância desde os anos 1970 e as inúmeras
conversas e trocas foram enriquecedoras. Além disso, proporcionou-me uma familiaridade
com a imprensa feminista nos anos 1970 e, sobretudo, a descoberta de panfletos, materiais de
congresso inexistentes em outros arquivos. Esses materiais foram fundamentais sobretudo
para a redação do capítulo 6 no qual procuro contextualizar um conflito no seio da revista
Questions féministes no bojo de um debate mais amplo sobre a lesbianidade e o movimento
feminista. Como praticamente não existem trabalhos sobre a história do movimento lésbico na
França (com exceção de uma dissertação de mestrado sobre o tema)73, foram esses materiais
que me deram subsídios para compreender o contexto no qual emergiram alguns debates em
torno de uma tendência lésbica radical que estaria, por sua vez, relacionada com o conflito
72
ARTIERES, P. Archives personnelles; histoire; anthropologie et sociologie. Paris: Armand Colin, 2011, p.17.
73
ELOIT, Llana. Le sujet politique lesbien à Paris: compositions, recompositions et décompositions du sujet
féministe (1970-1984). Mémoire de master 2, 2013.
29
que deu origem ao fim da revista Questions féministes. Esse conflito, pouco abordado na
bibliografia francesa74, teve um impacto importante na militância lésbica subsequente e, para
Isabelle Clair75, seria até mesmo um dos elementos que teria freado a inclusão dos estudos
sobre sexualidade na França.
Esta tese está dividida em sete capítulos. Partindo de Simone de Beauvoir, que
é considerada a base das análises antinaturalistas feministas, e depois expandindo para outros
autores que escreveram sobre a temática nos anos 1950 e 1960, procuro analisar como a
questão da “natureza” feminina era tematizada e quais eram as saídas políticas propostas para
74
Encontramos breves menções em: MARTEL, Frédéric. Le Rose et le noir: Les homosexuels en France depuis
1968, Paris: Éditions du Seuil, 1996 ; DUCHEN, Claire. Feminism in France: From May 1968 to Mitterrand,
London, Routledge, 1986; LESSELIER, Claudie. Les regroupements de lesbiennes dans le mouvement féministe
parisien: positions et problèmes 1970-1982. In: GEF, Crises de la société, féminisme et changement, Éditions
Tierce, 1991.
75
CLAIR, Isabelle. Porquoi penser la sexualité pour penser le genre en sociologie ? Retour sur quarente ans de
réticences. Cahiers du genre. n. 54, 2013.
76
Para a noção de sociabilidade intelectual, ver: SIRINELLI, Jean-François. Le hasard ou la nécessité ? une
histoire en chantier: l'histoire des intellectuels. Vingtième siècle, vol. 9, n.1, 1986.
30
As fontes utilizadas neste trabalho não necessariamente podem ser citadas dentro
das normas vigentes de citação. Alguns textos não tem data, outros não têm autor ou são
assinados só pelo nome ou por um pseudônimo. Citar pseudônimos e nomes sem sobrenome
não é, portanto, um recurso escolhido mas a única forma de se fazer referência a uma
produção teórica que procurava criticar os cânones de produção de saber e publicação. Cabe
ainda mencionar que uma grande parte da bibliografia deste trabalho foi publicada
originalmente em francês. Todas as citações foram traduzidas para o português e, dado o
volume, só foram reproduzidos os originais em alguns casos.
32
Capítulo 1
A busca por explicar uma série de fenômenos sociais a partir de uma ideia de
“natureza” dominou os séculos XVIII e XIX. O século XX representa o início do fim de um
ciclo. Em diversos domínios, essa abordagem do problema será objeto de contestação e de
reelaborações. A sociologia seria uma das disciplinas a dar importantes contribuições nesse
sentido. A sociologia de Durkheim e de outros dos seus contemporâneos nasce e ganha
terreno num contexto de embate com teorias biologizantes que dominavam o campo
intelectual no final do século XIX.3 Essa sociologia surge em contraposição à ideia de que a
natureza fisiológica seria uma fonte para uma análise do comportamento social. As análises
1
HARAWAY, Donna. ‘Gênero’ para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra. Cadernos Pagu,
n.22, jan./junho 2004; JACKSON, Stevi. Théoriser le genre: l’heritage de Beauvoir . In: DELPHY, Christine
CHAPERON,Sylvie. Cinquantenaire du Deuxième Sexe. Colloque International Simone de Beauvoir. Paris:
Édition Syllepse, 2002.
2
LÖWY, LLANA; ROUCH,HELENE. Gênese et développement du genre: les sciences et les origines de la
distinction entre sexe et genre. Cahiers du Genre, n.34, 2003, p. 8 .
3
Sobre essa questão ver: MUCCHIELLI, Laurent. La découverte du social. Paris: La Découverte, 1997 ;
MUCCHIELLI, Laurent. Sociologie versus anthropologie raciale. L’engagement décisif des durkheimiens dans
le contexte ‘fin de siècle’ (1885-1914). Gradhiva, n.21, 1998.
32
33
4
Para a ação da ONU nesse sentido ver: MAUREL, Chloé. La question des races. Gradhiva, n. 5, 2007.
5
HARAWAY, Donna. ‘Gênero’ para um dicionário marxista... Op. cit., p.217.
6
DORLIN, Elsa. Sexe, genre et sexualités. Paris: PUF, 2008, p.79-80.
33
34
é designado por “construtivismo social” e que apagam uma série de autoras/es que já
trabalhavam nesse sentido. Rubin destaca o papel de figuras como Mary McIntosh, Jeffrey
Weeks, Kenneth Plummer, dentre outros sociólogos, antropólogos e historiadores”.7 Jeffrey
Weeks, por sua vez, também mostra insatisfação com algumas dessas narrativas do campo de
sexualidade8 e destaca a importância do artigo de Mary McIntosh, “The homosexual role”,
publicado pela primeira vez em 1968, que representaria um texto fundamental para um debate
sobre a construção social da sexualidade.
7
RUBIN, Gayle; BUTLER, Judith. Tráfico sexual – uma entrevista. Cadernos Pagu, n.21, 2003, p. 184.
8
WEEKS, Jeffrey. Le rôle homosexuel’ trente ans plus tard: retour sur le travail de Mary McIntosh.Genre,
sexualité & société, hors de série n.1, 2001, p.1.
9
GUILLO, Dominique. Des sciences de la vie aux sciences sociales: les visages du naturalisme. In:
KEUCHEYAN, Razmig ; BRONNER, Gérald. La Théorie sociale contemporaine. Paris: PUF, 2012.
10
Idem, p.51.
34
35
11
LEMERLE Sébastien. Le singe, le gène et le neurone. Du retour du biologisme en France, Presses
universitaires de France, 2014.
12
GUILLAUMIN, Colette. Compte-rendu de ACHARD, Pierre ; CHAUVENET, Elisabeth, et. al. Discours
biologique et ordre social. Paris: Le Seuil, 1977. L’Homme , tome 17, n.4, 1977, p.123.
13
TAGUIEFF, Pierre-André. Essencialisme. In: TAGUIEFF, Pierre-André (org.) Dictionnaire historique et
critique du racisme. Paris: PUF, 2013.
14
Sobre o racismo “cultural” no contexto francês ver, entre outros: TAGUIEFF, Pierre-André (org.), Face au
Racisme, Editions La Découverte, Paris 1993.
35
36
Embora essas perspectivas ganhassem terreno ao longo do século XX, elas foram
alvo de contestação. A sociobiologia é uma das principais manifestações da reemergência de
um discurso naturalisante nas ciências humanas. Ela surge primeiro para explicar
comportamentos animais, uma “sociobiologia animal” que alguns pesquisadores proporiam
transpor para explicar os fenômenos sociais. Particularmente sobre a França, afirma Sébastien
Lemerle, a partir dos anos 1970 há uma difusão cada vez mais ampla de “óticas de leitura do
mundo social”16 e uma “renovação do biologismo”.17 Trata-se de um discurso que usa
elementos das ciências da vida, que são importados, explorados e transformados, para servir a
um outro tipo de discurso, notadamente para explicar fenômenos sociais. Para Lemerle, entre
1968 e 1972, o sucesso de alguns livros como de Konrad Lorenz, Jacques Monod e François
Jacob marcam o início de uma onda de ensaios de pesquisadores que, a partir de suas
competências científicas, consideravam válido promover análises sobre fenômenos que
fugiam do escopo das suas respectivas disciplinas e a partir dessa ótica de leitura. Essa
perspectiva, deslegitimada no pós-guerra, volta a ganhar força nesse período. Em reação a
esse discurso, diversas são as críticas que tomam corpo.18
15
Ibdem, p.562.
16
LEMERLE Sébastien. Le singe, le gène et le neurone. Du retour du biologisme en France, Presses
universitaires de France, 2014, p. 3.
17
Ibdem, p. 13.
18
Para uma crítica ao crescimento da sociobiologia no contexto estadunidense ver: SAHLINS, Marshall. The
Use and Abuse of Biology: An Anthropological Critique of Sociobiology. London: Tavistock, 1976.
19
Para um exemplo de oposição entre “naturalismo” e “construtivismo”, ver: JAUNAIT, Alexandre; RAZ,
MICHAEL; RODRIGUEZ, Eva. La biologisation de quoi? Genre, sexualité & société n.12, 2014.
20
KEUCHEYAN, Razmig. Le constructivisme. Des origines à nos jours. Paris: Hermann, 2007, p.9.
36
37
21
LYNCH, Michael. Vers une généalogie constructiviste du constructivisme. Revue du MAUSS 1/2001, n. 17,
p.225.
22
Ibdem, p. 237.
23
Ibdem, p.226.
24
Ibdem, p. 238.
37
38
sucesso do construtivismo num primeiro momento, por algo mais “profundo e coerente”25,
traria diversos problemas.
25
Ibdem, p.243.
38
39
Mas, o impacto que a leitura dessa obra provocou na vida das mulheres
individualmente é algo mais dificilmente mensurável. Ménie Grégoire afirmava que Simone
de Beauvoir “foi mais importante para as mulheres da minha geração do que os historiadores
nunca admitirão”.28 Diversos são os relatos, oriundos de diferentes partes do mundo, sobre o
impacto dessa obra.
Beauvoir afirma ter recebido centenas de cartas após a publicação do livro. Para
essa pesquisa consultamos, na Bibliothèque National de France (BnF), algumas cartas
recebidas por Beauvoir, entre 1975 e 1977, com o objetivo de compreender a relação da
autora com a revista Questions féministes. Encontramos diversas cartas enviadas por leitoras
de todo o mundo, inclusive do Brasil, relatando o impacto que a obra teve nas suas vidas,
mais de vinte e cinco anos após a publicação do livro.
26
ALBISTUR Maïté, ARMOGATHE Daniel. Histoire du féminisme français du moyen âge à nos jours. Paris:
Des Femmes, 1977. P. 606.
27
Apud RODGERS, Catherine. Le Deuxième sexe de Simone de Beauvoir. Une héritage admiré et contesté.
Paris: L’Harmattan, 1998, p. 18.
28
Apud CHAPERON, Sylvie. Les années Beauvoir ... Op. Cit., p. IX.
29
SUTTON, Nina. Colloque Le ‘Deuxième Sexe’ a trente ans. F Magazin, p. 69.
30
GALSTER, Ingrid (org.), Le Deuxième Sexe de Simone de Beauvoir, Paris, Presses de l’Université Paris-
Sorbonne, 2004.
39
40
“temos dificuldade em acreditar que esse livro pôde suscitar um escândalo”.31 A dificuldade
em compreender o impacto e as críticas que este livro recebeu é um sinal das intensas
transformações pelas quais passou o “segundo sexo” na segunda metade do século XX, e para
as quais o livro foi um elemento não negligenciável.
Marcos históricos
O Segundo sexo foi gestado no imediato pós-Guerra e publicado quatro anos após
o fim da Grande Guerra. Em 1948 a revista Les Temps Modernes publica um primeiro texto
de Beauvoir, apresentado como um “excerto de um livro, prestes a ser publicado, e que
tratava da situação da mulher”. “Le mythe de la femme et les écrivains” foi publicado em
fevereiro, “L’initiation sexuelle de la femme” em maio, “La lesbienne” em junho e “La
Maternité” em julho. Em junho de 1949 seria publicado pela editora Gallimard o primeiro
volume de Le deuxième sexe e, em novembro, o segundo.
31
GALSTER, Ingrid. Préface. In: GASTER, Ingrid. Le Deuxième Sexe... Op. cit., p. 11.
32
Ibidem, p. 8.
33
CHAPERON, Sylvie. 1949-1999: cinquante ans de lecture et de débats français. In: DELPHY, Christine ;
CHAPERON, Sylvie. Cinquantenaire du Deuxième Sexe. Colloque International Simone de Beauvoir. Paris:
Édition Syllepse, 2002, p. 352.
34
GALSTER, Ingrid (org.). Le Deuxième Sexe de Simone de Beauvoir, Op. cit., p. 11.
35
CHAPERON, Sylvie. Les années Beauvoir. Op. cit., p. 161.
40
41
abordava temas como sexualidade e aborto, os quais não faziam parte da pauta política dos
grupos existentes. Sobre o clima hostil desse momento, Sylvie Chaperon comenta:
O segundo sexo foi publicado em 1949, nesse clima hostil. Os comunistas e
os católicos acusam o livro de ser pornográfico. Uma polêmica violenta
eclode em torno das questões sexuais, que a maioria das mulheres gostariam
de guardar em segredo e em privado. Mesmo as feministas não se
reconhecem nas novas reivindicações acerca da contracepção, da liberdade
amorosa defendida por Simone de Beauvoir.36
Um dos elementos de crítica deve ser localizado dentro desse contexto. A importância
do existencialismo na conjuntura do pós-Guerra e as críticas que essa corrente recebia tiveram
um papel importante na recepção da obra da autora. A posição hegemônica dessa corrente
filosófica em tal momento histórico explicaria, em parte, segundo Sylvie Chaperon39, a
amplitude dos debates. Grandes revistas intelectuais entram em guerra contra o livro. Mas,
através de Beauvoir, apelidada de “Notre-Dame-de-Sartre” ou “Grande Sartreuse”, por alguns
de seus críticos, são visados, frequentemente – como se pode ver – Sartre, considerado como
“pornográfico”, “mau preceptor e corruptor da juventude”40, e o existencialismo, acusados de
provocar a decadência da literatura francesa.
36
CHAPERON, Sylvie. Les années Beauvoir, Fayard, 2000, p. 114.
37
GALSTER, Ingrid (org.), Le Deuxième Sexe de Simone de Beauvoir. Op. cit., p. 6.
38
Apud GALSTER, Ingrid (org.), Le Deuxième Sexe de Simone de Beauvoir. Op. cit, p. 6
39
CHAPERON Sylvie, Les années Beauvoir. Op. cit.
40
Apud GALSTER, Ingrid (org.), Le Deuxième Sexe de Simone de Beauvoir. Op. cit p. 6
41
42
Seu primeiro romance L’invité (1943), além da sua participação na revista Le Temps
Modernes, faziam de Beauvoir uma figura já conhecida do público.41
Porém, como afirma já, em 1949, Colette Audry, trata-se de um livro “muito lido,
mal lido e mal compreendido”.44 A hostilidade à obra se concentra claramente nos capítulos
sobre a sexualidade e a maternidade.45 Os capítulos mais polêmicos teriam sido “La mère” (A
mãe), “L’initiation sexuelle” (A iniciação sexual) e “La lesbienne” (A lésbica), publicados
previamente em Les Temps modernes. O primeiro capítulo mencionado é um manifesto a
favor da contracepção livre e do aborto, num contexto marcado por um forte incentivo ao
aumento da natalidade, da esquerda à direita. A descrição minuciosa de aspectos da
sexualidade feminina chocaria leitores pouco acostumados a esse tipo de abordagem,
particularmente por se tratar da sexualidade feminina. Por fim, o capítulo sobre “a lésbica”,
com uma abordagem longe da patologização e da ideia de perversão. Para Chaperon:
o caso mostra também o quanto Beauvoir estava à frente da maioria dos seus
contemporâneos, pois esses capítulos tão escandalosos prefiguram,
precisamente, os temas chave do MLF, que surgiria vinte anos mais tarde e
que, como sabemos, reivindica de maneira ainda mais ruidosa, que as
mulheres tenham direito a dispor de seus corpos, reivindicando a
liberalização do aborto e uma sexualidade escolhida livremente.46
Em relação à questão que mais nos interessa, deve-se ressaltar que somente uma
minoria se posicionaria completamente favorável à ideia do slogan “On ne naît pas femme: on
41
Sobre essa questão há controvérsias. Ver: CHAPERON, Sylvie. Les années Beauvoir. Op. cit., p. 8 (nota 5).
42
Ibidem, p. 167.
43
Ibidem, p. 161.
44
AUDRY, Colette. “Le 2o. Sexe” et la presse. Livre très lu, mal lu et mal compris. In: Galster GALSTER,
Ingrid (org.), Le Deuxième Sexe de Simone de Beauvoir. Op. cit p. 234.
45
CHEPERON, Sylvie. , Les années Beauvoir. Op. cit., p. 180.
46
CHAPERON, Sylvie. 1949-1999: cinquante ans de lecture et de débats français . In: DELPHY, Christine ;
CHAPERON, Sylvie. Cinquantenaire du Deuxième Sexe. Colloque International Simone de Beauvoir. Paris:
Édition Syllepse, 2002, p. 359.
42
43
le devient” (Não se nasce mulher: torna-se mulher), entre elas Colette Audry e Françoise
d’Eaubonne47. D’Eaubonne foi, ao que tudo indica, segundo Chaperon, a primeira a resumir o
livro pela citação supracitada, que mais tarde se tornaria um slogan48 e frase símbolo do livro.
Essa ideia seria, para Audry, uma “novidade tão nova”, que a maior parte daqueles e daquelas
que escrevem sobre mulheres a consideram ruim por não tê-la compreendido. “Para a maioria
das pessoas” afirma Audry, a “negação da ‘pequena diferença’ provinha de um feminismo
delirante”.49
Ele rompe com um pensamento naturalista, dominante naquele contexto. Para Armengaud, a
crítica ao naturalismo em Beauvoir comporta três elementos: 1-filosóficos: “a primazia da
existência impõe-se contra o naturalismo essencialista.” 2- epistemológicos: a série
causal/explicativa situa-se de maneira homogênea do lado da sociedade, da civilização; 3-
políticos: a crítica à ideia de fatalidade biológica é um elemento propulsor à mudança. Para
Chaperon, O segundo sexo repousa em pressupostos claramente culturais. Muitos dos
postulados de Beauvoir implicariam num profundo rompimento com o pensamento
naturalista: sua concepção existencial do humano, a importância constitutiva das relações
interpessoais na formação do indivíduo e o estudo do humano, não em sua forma abstrata,
mas situado, anula toda pretensão de uma essência corporal.53
Alguns anos após a publicação de O segundo sexo, numa entrevista realizada em 1966,
Beauvoir se declarava “radicalmente feminista”, compreendendo essa radicalidade no sentido
de reduzir “radicalmente a diferença enquanto dado tendo uma importância em si”. Ela afirma
uma evidência de uma diferença física entre homens e mulheres mas “essa diferença poderia
ser, na minha visão, retomada em contextos que a anulariam completamente”.54
Mas, apesar de promover uma forte crítica aos pressupostos naturalistas, Beauvoir
não conseguiu se desvincular totalmente das concepções que combatia.57 Embora procure
escapar de uma visão naturalizante, sua concepção de corpo e sexualidade continua refém de
uma lógica naturalista.58 Encontramos, ao longo dos dois volumes da obra, elementos dessa
ambiguidade, ou, para usar os termos de Chaperon, dessa “ruptura epistemológica inacabada”.
53
Ibidem, p.117.
54
Simone de Beauvoir apud ARMENGAUD, Françoise. Le matérialisme beauvoirien et la critique du
naturalisme dans le Deuxième sexe: une ‘rupture épistemologique inachevée’? Nouvelles Questions féministes,
vol. 20, n.4, 1999, p. 44.
55
As estruturas elementares do parentensco de Lévi-Strauss foi publicado em 1949, mas Beauvoir teve acesso a
essa obra antes da publicação e escreveu uma resenha bastante favorável em Les temps modernes
56
AUDRY, Colette. [Necrologie de Simone de Beauvoir, 15 avril 1986]. Publicado originalmente no jornal
Libération e reproduzido em GALSTER, Ingrid (org.), Le Deuxième Sexe de Simone de Beauvoir p. 315.
57
CHAPERON, Sylvie. Les années… Op. cit., p. 158-159.
58
Ibidem, p. 158.
44
45
Christine Delphy relembra que, o teor das suas anotações das leituras das suas
primeiras leituras de O segundo sexo. Este não seria “suficientemente radical”61 e em alguns
momentos Beauvoir aparecia como “francamente biologisante”.62
Suzanne Lillar afirmaria que era necessário superar tal livro, porque a posição de
Beauvoir seria incorreta: “Não podemos recorrer à pura negação do feminino e da natureza”.
Para Lillar a posição sustentada por Beauvoir culmina numa “neutralização do sexual, uma
identificação da mulher ao homem através de uma desexualização”.66 Afirmar que a diferença
entre homens e mulheres seja de “ordem cultural e não natural” seria um erro, conclui a
autora67. Para Rodgers, o duelo “Beauvoir–Lilar” prefigura alguns debates dos anos 1970 e
1980 entre feministas “igualitárias” e “diferencialistas”.
Menos que discutir sobre a coerência interna do livro, o objetivo aqui é analisar
quais possibilidades foram abertas e que seriam posteriormente desenvolvidas por outras
feministas. Stevi Jackson, num texto de 1999, considera que Simone de Beauvoir teria
apresentado os “fundamentos de uma análise feminista do gênero”, ainda que não dispusesse
do conceito. Afirmando o caráter social da feminilidade, Beauvoir teria antecipado a distinção
65
LILAR, Suzanne. Le malentendu du deuxième sexe. Paris: PUF, 1969, p. 45-46.
66
LILAR, Suzanne ; DURANTEAU, Joseane. Suzanne Lilar s'explique sur deux malentendus. Le Monde, 25 de
outubro de 1969.
67
Ibidem.
68
KAIL, Michel. Pour un matérialisme anti-naturaliste. La leçon de Simone de Beauvoir. Nouvelles questions
féministes. Vol. 20, n.4, 1999.
69
CHAPERON, Sylvie. Les années… Op. cit., p. 167.
46
47
entre sexo e gênero, adotada pelas feministas anglófonas, nos anos 1970, e dado uma base
para reflexões feministas antiessencialistas do feminismo materialista.70
Embora Beauvoir afirme que as diferenças sexuais são um fato, ela defende, por
outro lado, que estes, em si mesmos, não têm nenhuma significação, e que seu sentido
depende da totalidade do contexto. A ênfase de Beauvoir no corpo como objeto de
interpretação cultural abre a possibilidade de um questionamento do corpo como um dado
natural. As implicações radicais dessa ideia não foram, ainda segundo Butler, desenvolvidas
por Beauvoir, mas o seriam por autores como Foucault e Monique Wittig:
If the pure body cannot be found, if what can be found is the situated body,
a locus of cultural interpretations, then Simone de Beauvoir’s theory seems
implicitly to ask whether sex was not gender all along. Simone de Beauvoir
herself does not follow through with the consequences of this view of the
body, but we can see the radicalization of her view in the work of Monique
Wittig and Michel Foucault: the former self-consciously extends Simone de
Beauvoir’s doctrine in ‘One is not Born a woman’; the latter is not indebted
to Simone de Beauvoir (although she was a student of Merleau-Ponty) and
yet promotes in fuller terms the historicity of the body and the mythic status
of natural ‘sex’.72
70
JACKSON, Stevi. Théoriser le genre: l’héritage de Beauvoir . Nouvelles Questions féministes, vol. 20, n.4,
1999, p. 10.
71
BUTLER, Judith. Sex and Gender in Simone de Beauvoir’s second sex. In: FALLAIZE, Elisabeth. Simone de
Beauvoir: a critical reader. London/New York, 1998, p.31.
72
Ibidem, p. 39-40.
47
48
Perspectivas de transformação
73
JACKSON, Stevi. Théoriser le genre. Op. cit.
74
DAUPHIN, Sandrine. Du socialisme au féminisme radical: Les fondements du militantisme. In: DELPHY,
Christine ; CHAPERON, Sylvie. Cinquantenaire du Deuxième Sexe. Colloque International Simone de
Beauvoir. Paris: Édition Syllepse, 2002.
75
Ibidem.
76
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo sexo. 1 Fatos e mitos. Op. cit., 2000, p. 73.
48
49
Numa entrevista concedida no início dos anos 1970 ela afirma que não se
considerava feminista nos anos 1940: “eu achava que a solução dos problemas femininos
deveria ser encontrada em uma evolução socialista da sociedade. Por feminista, eu entendia
lutar por reivindicações propriamente femininas, independentemente da luta de classes”.82 Na
época da publicação do livro, a autora considerava que a solução do “problema das mulheres”
estaria inexoravelmente ligada a “uma solução global” e as mulheres deveriam “se encarregar
de outras coisas que não delas”, afirmava em 1968.83 Nos anos que antecederam a emergência
do MLF, Beauvoir não tinha nenhum contato com os grupos feministas ou de mulheres
77
Ibidem, p.75.
78
Ibidem, p. 80.
79
Ibidem, p. 77.
80
Ibidem, p.80.
81
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo 2. Op. cit., p. 500.
82
La femme révoltée. Un entretien de Simone de Beauvoir avec Alice Schwarzer. Le Nouvel Observateur, no
379, 14-20 février 1972.
83
CHAPERON, Sylvie. ‘Monomes’ et les ‘bonnes femmes’ ou Beauvoir et le MLF. In: BARD, Christine. (org.)
Les féministes de la deuxième vague, Rennes: PUR, 2012, p.87.
49
50
existentes. Numa entrevista dada no início dos anos 1980, ela afirma que os grupos que
existiam antes dos anos 1970 eram “reformistas e legalistas” e por isso ela não tinha
“nenhuma vontade” de fazer parte dos mesmos.84
O nascimento de uma nova “onda” feminista nos anos 1970 teria impacto nas
posições da autora. Logo após os primeiros sinais do movimento, em 1970, Beauvoir teria
entrado em contato com algumas militantes e, ao longo doa década, se engajaria numa série
de iniciativas. Ela assina, em 1971, o manifesto das 343 mulheres que declaram ter abortado,
publicado na revista Le Nouvel Observateur, participa do processo de Bobigny, que se tornou
emblemático na luta pela legalização do aborto, das Journées de dénonciation des crimes
contre les femmes, em 1972, participa da fundação da Ligue du droit des femmes e, no final
dos anos 1970, da revista Questions féministes.
84
SCHWARZER, Alice. Simone de Beauvoir hoje. Rio de Janeiro, RJ: Rocco, 1986, p. 28.
85
“La femme révoltée” . Propôs recueillis par A. SCHWARZER. Le Nouvel Observateur, 14 février 1972.
86
SCHWARZER, Alice. Simone de Beauvoir hoje. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p.36.
87
RODGERS, Catherine. Le Deuxième sexe de Simone de Beauvoir. Op. cit.
50
51
da opressão feminina não era uma boa resposta para muitas militantes que justamente se
confrontavam com essa visão para construir um movimento autônomo de mulheres.
Entretanto, muitas das militantes o haviam lido e, dentre elas, algumas tiveram tempo de
assimilar suas ideias ao ponto de considerá-las como “insuficientes, inadequadas e
ultrapassadas”.88
Quando bato os olhos, toda vez, percebo que eu reconheço a frase que
encontro. Mas, o mais estranho, é que, frequentemente, o que eu reconheço é
um dos meus pensamentos: mais precisamente, um pensamento que eu
acreditava ser meu. Eu me apropriei do pensamento, já faz tempo, desde que
eu li o livro pela primeira vez, e eu o fiz tão meu, que me esqueci que era de
Beauvoir.89
Os anos 1950 e 1960 são marcados por intensas transformações sociais e políticas.
Algumas delas afetariam particularmente a vida das mulheres nesse período, como o fim do
baby boom, o aumento dos divórcios, um crescimento da taxa de atividade feminina, entre
outros. Para Chaperon, há uma progressiva destruição do modelo da dona de casa, provocada
por fenômenos como as mudanças no trabalho doméstico (ligado a mudanças de infraestrutura
como acesso à água corrente, eletricidade, dentre outros), assim como pela extensão de
serviços do Estado de bem-estar social, o que também contribui para a diminuição da carga de
trabalho doméstico. Essa modernização seria acompanhada também por novas reivindicações
políticas de grupos femininos.90 Para Claire Duchen91, o período após o fim da Segunda
88
Ibidem, p. 25.
89
DELPHY, Christine. Beauvoir, l’heritage oublie. Travail, genre et sociétés. nº 20, 2008, p. 174.
90
CHAPERON, Sylvie. La radicalisation des mouvements féminins de 1960 à 1970. Vingtième Siècle, n° 48,
octobre-décembre, 1995.
91
DUCHEN, Claire. Une femme nouvelle pour une France nouvelle? Clio n.1, 1995, p. 5.
51
52
Guerra é marcado por uma “confrontação entre a feminilidade tradicional e a busca de uma
feminilidade nova”, uma confrontação que se esgotaria somente nos anos 1960.
Como mencionam os autores do trecho acima, uma grande parte dessa literatura é
de autoria feminina. Andrée Michel, Évelyne Sullerot, Geneviève Texier, Madeleine Guilbert,
Marie-José Chombart, Françoise d’Eaubonne e Edith Thomas são alguns dos nomes que
compõem essa geração “nos rastros de Simone de Beauvoir”, que tematizava a questão. Uma
parte delas estaria envolvida com alguns dos movimentos femininos que surgem nesses anos,
como a Maternité heureuse, que surge em 1956 e depois torna-se Mouvement français pour le
92
Para um panorama da produção nesse período ver: Chaperon, Sylvie. Une génération d’intellectuelles dans le
sillage de Simone de Beauvoir. Op. cit.
93
CHAPERON, Sylvie. La radicalisation des mouvements féminins... Op. cit.
94
R.D. Liminaire. Recherches et débats du Centre Catholique des Intellectuels Français. Cahier n.45, dez. 1963,
p.7.
95
CHOMBART DE LAUWE, Marie-José e Paul-Henry et. al. La femme dans la société. Son image dans
différents milieux sociaux. Paris, Centre national de la Recherche scientifique, 1963, 441 p. (Travaux du Groupe
d’Ethnologie sociale), p.9.
52
53
planning familial, a Union des femmes françaises, fundada em 1944 pela federação de
comitês comunistas da resistência feminina, e o Mouvement démocratique féminin. Muitas
haviam militado durante a Resistência na Segunda Guerra.
Essas mulheres são provenientes, com algumas exceções, de uma mesma geração,
que nasce nas primeiras duas décadas do século e é marcada pela experiência da Guerra.96
Elas são também parte de uma geração que feminizou o ensino superior e está entre as
primeiras gerações que viveram o ensino sem restrições formais para as mulheres.97 Em 1900,
as mulheres representavam 2% do total de estudantes no ensino superior; em 1930 esse
número já havia aumentado para 25,9%, chegando a 35,6%, em 1950.98
96
CHAPERON, Sylvie. Les années Beauvoir. Op. cit., p.4.
97
“Les baccalauréats féminin et masculin sont uniformisés en 1924, les classes de khâgne s’ouvrent aux filles la
même année, l’École Normale supérieure en 1927, à partir de cette date les salaires de professeurs hommes et
femmes sont égalisés.” CHAPERON, Sylvie. Une génération d’intellectuelles dans le sillage de Simone de
Beauvoir. CLIO. Histoire, femmes et sociétés, 13, 2001, p. 4.
98
GUELAND-LERIDON, Françoise. Recherches sur la condition féminine dans la société d’aujourd’hui.
Travaux et documents. Cahier n.48, 1967.
99
BATTALLON, Anne-Marie; BLANCHARD, Raymond et. al. Présence des femmes au CNRS. L’homme et la
société, n.99-100, 1991, p.174.
53
54
a temática ainda nos anos 1940, “Le travail des femmes”, que é publicado na Revue Française
du Travail, no ano de 1946.
Outra autora relevante nesse contexto foi Andée Michel que publicou, entre
outros, em 1959, Famille industrialisation logement101, editado pelo CNRS e identificado
como parte dos trabalhos do CES (Centre d’études Sociologiques). Andrée Michel é autora de
diversos artigos sobre o trabalho feminino. Em colaboração com Texier, ela foi autora de um
importante livro para a época: La condition de la française102, composto por dois volumes
(vol. 1 Mitos e Realidades – como o primeiro volume de Beauvoir; e vol. 2 Os grupos de
pressão. Novas perspectivas).
100
Para maiores informações, consultar: CACOUAULT-BITAUD, Marlaine; ROGERS, Rebecca; ISAMBERT-
JAMATI, Viviane. Le féminisme est, pour moi, une sorte d'évidence. Travail, genre et société, n.18, 2/2007.
101
MICHEL, Andrée. Famille, industrialisation, logement. Paris: CNRS Editions, 1959. (Travaux du Centre
d'études sociologiques)
102
MICHEL, Andrée ; TEXIER, Geneviève. La condition de la française d’aujourd’hui. Paris: Gonthier
(Collection Femme), 1964.
103
CHOMBART DE LAUWE, Marie-José e Paul-Henry , HUGET, Michèle ; PERROY, Elia ; BISSERET,
Noelle. La femme dans la société. Son image dans différents milieux sociaux. Paris, Centre national de la
Recherche scientifique, 1963, 441 p. (Travaux du Groupe d’Ethnologie sociale).
104
Revue internationale des sciences sociales , revue trimestrielle, vol. XIV, no 1, 1962. Paris: UNESCO, 1962.
105
Chombart de Lauwe, Paul Henry (org.). Imagens da mulher na sociedade (trad. Genny Carvalho Pinto). São
Paulo, SP: Senzala, 1967.
54
55
sociais e os comportamentos”. Nesse texto são ressaltados alguns dos novos estudos
empreendidos pelo grupo “sobre as atitudes com respeito ao trabalho da mulher e à posição da
mulher na sociedade”. Três anos depois, nessa mesma revista, o grupo apresenta de forma
mais detalhada seus objetivos e pesquisas em curso:
O aparecimento de novas formas de vida social encontra-se ligado ao
nascimento de novas necessidades e aspirações, e seria útil detectar as suas
origens. O grupo de Etnologia Social procura estudar certos aspectos desse
problema. Trata-se ao mesmo tempo de procurar o sentido possível das
transformações, de analisar o processo e de dar ao conjunto da população a
possibilidade de uma participação cada vez maior na elaboração de planos de
106
desenvolvimento.
No programa de pesquisa são listados seis itens. Dois deles nos interessam mais
particularmente: “A família, a mulher e o homem. Suas imagens na sociedade. As aspirações
a novas formas de família e a novos papeis, com relação às transformações sociais” e “As
segregações de classes e de grupos étnicos. A oposição das imagens recíprocas e seu papel
nas transformações sociais”. Entre as integrantes do laboratório, cabe mencionar os nomes de
Marie-José Chombart de Lauwe, Nicole-Claude Mathieu, Colette Guillaumin e Nöelle
Bisseret.
Essa literatura produzida no pós Guerra, universitária ou não, pouco estudada, nos
dá elementos para analisar como a “questão feminina” era tematizada nos anos que
antecederam a aparição do MLF. Certos temas são recorrentes e merecem alguns comentários.
É muito frequente que esses trabalhos partam da constatação que muitas foram as
mudanças na “condição feminina” na primeira metade do século. A pesquisa do Groupe
d’ethnologie sociale, que daria origem aos dois títulos acima mencionados, tinha como
objetivo estudar “a imagem que dela fazem os homens e as mulheres nas diversas regiões do
mundo, em função de sua cultura, das transformações sociais” etc. A finalidade era
compreender como as transformações sociais em relação à situação da mulher eram
percebidas, visando também como essas imagens poderiam frear ou acelerar as mudanças107.
Os dois primeiros parágrafos da Introdução de La femme dans la société nos dão alguns
elementos para pensar as mudanças que se operavam naquele contexto:
106
“Actualité de la recherche” . Centre d’Ethnmologie sociale. Revue Française de sociologie, 1963, 4-4, p. 445.
107
Idem, p.10.
55
56
108
CHOMBART DE LAUWE, Marie-José e Paul-Henry et. al. La femme dans la société... Op.cit. , p.9.
109
Ibidem, p.9.
110
FAURE, Lucie. La femme démystifiée: libre, mais.... La Nef . Nouvelle série, Cahier n.4, outubro-dez. 1960,
p. 9.
111
CHOMBART DE Lauwe, Marie-José. Images de la Femme dans la Société, conflits et malaises . Recherches
et débats du Centre Catholique des Intellectuels Français. Cahier n.45, dez. 1963, p.11.
112
FAURE, Lucie. La femme démystifiée: libre, mais.... Op. cit., p.6
113
MICHEL, Andrée; TEXIER, Geneviève. La condition de la française d’aujourd’hui 1... Op. cit., p.5.
114
Ibidem, p. 37.
56
57
115
CHAPERON, Sylvie. La radicalisation des mouvements féminins de 1960 à 1970. Op. cit., p.65-66.
116
Havel Jean-Eugène. La condition de la femme. Paris: A. Colin, 1961.
117
MICHEL, Andrée; TEXIER, Geneviève. La condition de la française d’aujourd’hui 1... Op. cit., p. 34.
118
ROCHEBLAVE-SPENLÉ, Anne-Marie. Rôle féminin et rôle masculin. Recherches et débats du Centre
Catholique des Intellectuels Français. Cahier n.45, dez. 1963, p. 29.
119
HAVEL, Jean-Eugène. La condition de la femme. Op. cit., p. 5.
120
SALOMON-BAYET, Claire. La femme en question. La Nef . Nouvelle serie, Cahier n.4, outubro-dez. 1960,
p. 12.
57
58
que quase todo o restante é apanágio da educação e da crença”.121 Para Havel, “Com exceção
de algumas consequências próprias às características fisiológicas de cada sexo, é a cultura,
quer dizer, o conjunto dos hábitos e das crenças, o que determina as respectivas posições
ocupadas pelas mulheres e pelos homens em uma sociedade”.122
Para Chombart de Lauwe et. al., “se nos colocarmos em uma perspectiva
evolutiva, a oposição entre natureza e cultura é ilusória”. Há a ideia de uma progressiva
apropriação das forças da natureza pelo homem. A cultura, nesse sentido, permitiria uma
libertação em relação à natureza. A cultura, “que cada vez mais regula as relações entre os
sexos”, tenderia, por ela mesma, em certa medida, a mudar a natureza. Em apoio à hipótese,
mencionam, sem citar nomes, descobertas científicas recentes, sobretudo sobre hormônios,
que mostrariam “a instabilidade de certos traços sexuais e conferem ampla possibilidade de
dosar a parte feminina e masculina em um indivíduo”.123 Em relação às mulheres, isso
significa que, embora elas fossem distintas dos homens por razões biológicas, essa diferença
poderia diminuir em função das transformações culturais: “Evolução biológica e evolução
social não são opostas”124, afirma.
121
HAVEL, Jean-Eugène. La condition de la femme. Op. cit., p. 5.
122
Ibidem, p.38.
123
Idem, p.11.
124
CHOMBART DE LAUWE (org.) Imagens da mulher... Op. Cit, p. 29.
125
ROCHEBLAVE-SPENLÉ, Anne-Marie. Rôle féminin et rôle masculin. Recherches et débats du Centre
Catholique des Intellectuels Français. Cahier n.45, dez. 1963, p. 48.
126
R.D. Liminaire. Recherches et débats du Centre Catholique des Intellectuels Français. Cahier n.45, dez.
1963, p. 8.
58
59
127
Ibidem, p. 9.
128
CHOMBART DE LAUWE (org.) Imagens da mulher... Op. cit., p.16.
129
Ibidem, p.29.
130
Ibidem, p.29.
131
MICHEL, Andrée; TEXIER, Geneviève. La condition de la française d’aujourd’hui 1... Op. cit., p. 216.
132
Ibidem.
59
60
Como superar esse “problema” não se constituía em objeto de muitas análises. Por
um lado, para alguns desses autores, essa superação seria fruto de um movimento evolutivo da
sociedade, sem a necessidade de um movimento social ou quaisquer outras intervenções. Para
setores mais próximos dos comunistas, a solução era, fundamentalmente, a revolução
socialista, e os esforços de homens e mulheres deveriam ser reunidos em prol dessa grande
transformação. Mas em algumas dessas análises surgem críticas a essas visões e outras
alternativas começam a ser vislumbradas. Nesse sentido, podemos destacar algumas propostas
de Andrée Michel, Texier e Colette Audry. Michel e Audry estariam também engajadas em
movimentos femininos no qual se gestaram algumas das experiências de militância que
dariam origem ao MLF, como será abordado no próximo capítulo.
133
MICHEL, Andrée; TEXIER, Geneviève. La condition de la française d’aujourd’hui 2... Op. cit., p. 227.
134
Ibidem, p. 99.
135
MICHEL, Andrée. La française et le démocrate. La Nef . Nouvelle serie, Cahier n.4, outubro-dez. 1960.
60
61
136
Ibidem, p.21.
137
Idem, p.21.
138
Idem, p. 31.
139
Idem, p. 36
140
MICHEL, Andrée; TEXIER, Geneviève. La condition de la française d’aujourd’hui 2... Op. cit., p. 107.
141
Ibidem, p. 122.
61
62
desmobilização das mulheres, para que elas deixassem os seus destinos nas mãos do
proletariado”142. Para as autoras, assim como a emancipação dos operários deve ser obra dos
próprios operários, a libertação feminina deve partir delas mesmas. O fim da propriedade
privada dos meios de produção seria, afirmam, uma condição “necessária” para a
“emancipação efetiva das mulheres”143 não sendo, entretanto, suficiente mas criaria
“condições objetivas” que facilitariam consideravelmente sua integração política, econômica
e social.144
Mas, a última frase do texto permite pensar outros caminhos diferentes de uma
dissolução total da questão nas organizações de esquerda. Para Michel, “nas suas lutas
libertárias, as mulheres devem contar, sobretudo, com elas mesmas”.147
142
Ibidem, p. 123.
143
Ibidem, p. 123.
144
Ibidem, p. 124.
145
MICHEL, Andrée. La française et le démocrate. Op. cit., p. 36.
146
Ibidem, p.36.
147
Ibidem, p. 36.
62
63
dos “dois sexos” e por uma transformação mais ampla da sociedade. O erro dos movimentos
feministas seria justamente atacar a injustiça sem uma luta para “transformar o conjunto da
sociedade”. Audry sugere uma participação das mulheres em lutas mais gerais que não
resolverão o problema imediatamente, mas criarão as condições para que esses sejam
resolvidas:
Uma vez que as condições econômicas e sociais forem alcançadas em escala
global, poderemos afirmar, com relação à questão feminina, o que outrora
André Breton escreveu, no Point du Jour, sobre a revolução social
concretizada, a saber: que ela não resolveria os problemas propriamente
ditos, mas que ela permitiria que eles fossem tomados de forma direta.
Quando a organização econômica, o arsenal jurídico, o estatuto da família,
deixarem de impor suas limitações à existência feminina, desde os
primórdios, a mulher poderá, enfim, colocar-se como sujeito de pleno direito
perante o homem, nessa realidade purificada, homens e mulheres poderão
começar a experienciar as suas distinções naturais e, conforme os termos que
encerravam O segundo sexo, ‘para além das suas distinções naturais, afirmar
de forma inequívoca, a sua fraternidade.148
148
AUDRY, Colette. Dix ans après ‘Le Deuxième Sexe’. La NEF (La française d’aujourd’hui). Nouvelle série.
Cahier n.4, outubro-dez. 1960, p. 128.
63
64
Capítulo 2
Os “anos 1960”
Para Fredric Jameson2, podemos situar o início do que viria a ser conhecido como
“anos 60” no Terceiro Mundo, particularmente no movimento de descolonização na África.
As expressões mais características dos anos 1960 no Primeiro Mundo viriam mais tarde,
sejam os movimentos identificados como contraculturais, sejam a nova esquerda estudantil e
o movimento contra a guerra, com exceção somente para o movimento pelos direitos civis.
Mas, para além de terem sido um marco inicial, esses movimentos influenciaram,
pelo menos indiretamente, a maioria dos grandes movimentos dessa década. Para alguns,
forneceram modelos político-culturais, como foi o caso do movimento feminista. Para outros,
proveram a própria “missão”, a resistência a guerras cujo objetivo era justamente reprimir as
novas forças revolucionárias atuantes no Terceiro Mundo.3
1
CHAPERON, Sylvie. Les années Beauvoir 1945-1970. Paris: Fayard, 2000; CHAPERON, Sylvie. La
radicalisation des mouvements féminins français de 1960 à 1970. Vingtième siècle. Revue d’histoire, n.48, 1995.
2
JAMESON, Frederic. Periodizando os anos 60. In: BUARQUE, Heloisa. Pós modernismo e política. Rio de
Janeiro: Rocco, 1992.
3
Ibidem, p. 84.
65
Mas não apenas os povos do Terceiro Mundo emergiram em cena como agentes
políticos que se reconheceram na qualidade de sujeitos históricos. Houve também uma
espécie de “Terceiro Mundo” dentro do Primeiro Mundo que começou a protagonizar
movimentos políticos de importante impacto naquele período, como afirma Jameson:
Os anos 60 foram, assim, a época em que todos esses ‘nativos’ tornaram-se
seres humanos, e isto tanto interna quanto externamente: aqueles
internamente colonizados do Primeiro mundo – as ‘minorias’, os marginais e
as mulheres – não menos que os súditos externos e os ‘nativos’ oficiais desse
mundo.4
contexto puderam ser integradas, ainda que de forma periférica, ao escopo de análises
marxistas. A natureza do regime soviético, os problemas da transição nas sociedades ditas
“primitivas”, a cultura, as mulheres, o racismo emergem como novas questões colocando em
causa um certo tipo de marxismo.
8
CASTELS, Manuel. La question urbaine. Paris: Maspero, 1973, p.11.
9
TERRAY, Emmanuel. Le marxisme devant les sociétés “primitives”. Paris: Maspero, 1969, p. 8.
10
Chaperon, Sylvie. La radicalisation... Op. cit., p. 61.
11
ZANCARINI-FOURNEL, Michelle. Genre et politique: Les années 1968. Vingtième Siècle. Revue d'histoire,
n. 75, 2002, p.133.
67
12
FELDMAN, Jacqueline. De FMA au MLF. Un témoignage sur les débuts du mouvement de libération des
femmes. Clio n. 29, 2009; PISAN Annie de, TRISTAN Anne, Histoires du MLF. Paris: Calmann-Lévy, 1977.
13
Para análise desse grupo foram consultados: Lettres, invitations, comptes-rendus de reunions, articles de
presse 1966-1970 Mouvement démocratique féminin. BMD; Dossier MLF, BDIC e os boletins produzidos pelo
grupo La femme du 20 e siècle (BnF e BMD).
68
anos 1960 com o objetivo de dar respostas a um certo público de esquerda”14. Ele era
composto por militantes socialistas como Roudy, sindicalistas como Jeannette Laot e
intelectuais como Evelyne Sullerot, presidente de honra e fundadora do Planning familial,
Andrée Michel, Colette Audry, dentre outras. Segundo o jornal Le Monde, em 1967, cinco
anos após sua aparição, o grupo contava com uma ficha de dez mil aderentes ou
simpatizantes15. Uma das mais importantes atividades do grupo foi a publicação do boletim
La femme du 20 e siècle, entre 1965 e 1969.16
Jacqueline Feldman inicia seu contato com o MDF por volta de 1967. Interessada
pela questão e dissuadida a procurar os comunistas, devido às tomadas de posição que ela
considerava como “reacionárias” sobre a contracepção, Feldman tenta encontrar, entre os
socialistas, um grupo no qual pudesse militar. Anne Zelensky, interessada pela questão nesse
mesmo período, entra em contato com Andrée Michel e, por seu intermédio, conhece o grupo
por volta do ano de 1967.
Feldman rememora que pensava, no final dos anos 1960, que após a conquista do
voto era o momento para tratar as “relações entre homens e mulheres” assim como pautar uma
questão que consideravam central, a sexualidade. Mas, não foi exatamente o que encontrou no
grupo em questão. Anne Zelensky, nesse mesmo sentido, descreve, com um olhar
retrospectivo, as reuniões do MDF como pouco interessantes. Desse descontentamento surge
14
Yvette Roudy. A cause d’elles, 1985, p.83.
15
Nicole Bernheim. Le mouvement démocratique féminin a précisé ses revendications et ses projets. Le monde
14 de novembro de 1967. BMD
16
Segundo o artigo supracitado publicado em Le monde, o jornal teria uma tiragem de 7000 exemplares.
17
Bulletin MDF. Sem data. BMD
18
Boletim sem data, MD.
69
o desejo por uma estrutura mais jovem, dinâmica que não temesse “a provocação como único
meio de mudar as mentalidades”19 e a vontade de criar algo novo, como relembra Zelensky:
Com Jaqueline pensávamos o que fazer. Formar um grupo mais radical e
formado por homens e mulheres? Nós queríamos nos demarcar das
associações femininas, sempre sem homens. Não tínhamos compreendido
ainda que cada categoria oprimida deve levar o seu combate inicialmente à
parte, longe dos seus opressores de fato. No caso, os homens. Nosso futuro:
F.M.A. (Féminin Masculin Avenir) já estava lá, em germe. Faltava ainda um
20
ano para que este finalmente fosse oficializado, em fins de 1967.
19
FELDMAN, Jacqueline. De FMA au MLF... Op. cit., p.195.
20
Tristan, Anne; Pisan, Annie. Histoires du MLF. Op. cit., p. 34.
21
FELDMAN, Jacqueline. De FMA au MLF… Op. cit., p.195.
22
La femme du 20 e siècle. N.11, décembre 1967 - janvier 1968.
23
“Groupe d’études”. La femme du 20 e siècle, n.11, décembre 1967 - janvier 1968. No número seguinte, n.12
(março-abril de 1968), o grupo é identificado como um grupo universitário FMA “Feminin, Masculin, Avenir”
que realizaria reuniões duas vezes por mês e cuja responsável seria a mesma já mencionada.
24
Les femmes et le mouvement de mai 68. La femme du 20 e siècle, n.13, dez. 1968.
70
Sair das grandes discussões sobre igualdade, trabalho feminino entre outras e
pensar a relação entre homens e mulheres no seio da família já mostrava a preocupação do
grupo com o privado, com sua politização, elemento que seria fundamental nos movimentos
femininos que começam a se constituir nesse momento. Outro elemento importante, e que
seria ressaltado num panfleto distribuído nessa mesma universidade, com data de final de
junho25, foi a necessidade de que os movimentos encampassem essas bandeiras como parte da
sua pauta política. O texto em questão conclama as mulheres, que tiveram participação ativa
nos eventos de 68, a levantarem também pautas feministas.
No imenso debate que se instaura no país, na grande remise en cause de
estruturas e valores, nenhuma voz se levantou para declarar que a mudança
das relações entre os homens implica também a mudança das relações entre
homens e mulheres (...) É necessário que a sociedade que será construída
seja obra das mulheres como dos homens, que ela dê a todas as mulheres
chances iguais àquelas dos homens. Se você concorda com isso, o que está
disposta a fazer? Venha discutir conosco.26
25
Nesse panfleto consta a existência de um stand no grupo na Sorbonne ocupada.
26
Recueil MDF. BnF. Reproduzido em: FAURÉ, Op. cit, p. 18.
27
“15 janvier 1969 déclaration à la Prefecture de Police F.M.A (Féminin, Masculin, Avenir). But: Définir et
diffuser les modalités d’une adaptation des rôles respectives des hommes et des femmes aux exigences de la
société actuelle. Siège social ? 54, Avenue de Chosy, Paris, (13è) ”. Journal Officiel de la République Française.
101è année, n.31, Jeudi 6 février 1969. (Fundo Anne Zelensky, BMD)
28
Temos registro de duas reuniões realizadas no final de 1968 e uma assembleia geral do FMA em 26 de
setembro, uma reunião em 24 de outubro.
71
Zelensky, haveria no FMA uma tentativa de “encontrar razões de existir” que se manifestava
em “tomadas de posição quase nunca publicadas, análises, sonhos de ações impossíveis”.29
Feldman relembra que se escrevia “manifesto sobre manifesto para definir nosso combate
específico”.30 A partir desses textos e esboços podemos acompanhar as tentativas de formular
teoricamente a existência de um grupo feminista em moldes distintos da maioria das
organizações existentes.
29
Tristan, Anne; Pisan, Annie. Histoires du MLF. Op. cit, p. 46.
30
FELDMAN, Jacqueline. De FMA au MLF… Op. cit., p 196.
31
Não há nenhum documento que ateste a data dessa mudança. Como para a maioria dos documentos desse
grupo, as datas são aproximadas.
32
Révolution sexuelle ou erotisme bourgeois? Acte ou parole ?, s.d. Fundo Anne Zelensky. BMD.
33
Daniel Guérin (1904-1988) é um escritor, autor de numerosos livros sobre temáticas como capitalismo,
revolução, sexualidade e colonialismo. Sobre a discussão em questão cabe mencionar: Kinsey et la sexualité
publicado em 1955 e Essai sur la révolution sexuelle après Reich et Kinsey em 1969. Militou nos anos 1970 em
grupos homossexuais como o FHAR (Front Homosexuel d’Action Révolutionnaire).
34
Paris 8/11/69. Carta do FMA endereçada a Daniel Guérin. Fundo Anne Zelensky. BMD.
72
Nos próximos itens, voltaremos a essas três questões, não somente pela centralidade que
tinham no grupo em questão, mas também pela importância que ganhariam nas mobilizações
da década seguinte.
Ação
A mudança do “A” da sigla “FMA” de Avenir (futuro) para Action (ação) não é
fortuita, representa um desejo concreto de um tipo de militância que não se contentasse
somente com discussões, mas tivesse também outro programa de intervenção. Essa seria a
base da crítica às associações femininas existentes, que seriam “mais inclinadas à discussão
que à ação”. Simone de Beauvoir, por exemplo, é criticada nesse sentido pelo grupo. Um dos
chamados de reuniões, que data do final de 1968, um dos mais antigos documentos que
encontramos do grupo, menciona esses encontros e a proposta para as ações vindouras:
Nossas últimas reuniões nos permitiram tomar posição em relação a certos
problemas. Visamos agora passar à ação concreta. Solicitamos sua
participação na próxima reunião. Sua presença é indispensável para
desenvolver nossa ação. Nossa próxima reunião será realizada na quinta, 24
de outubro, às 20h.35
Como vimos no capítulo anterior, a partir dos anos 1950, uma série de livros e
publicações sobre as “mulheres” são lançados na França. A questão era, portanto, analisada e
debatida. Para o FMA, era o momento de uma ação concreta. Denunciando a ideia de uma
“idade de ouro” para as mulheres e recusando a concepção de um progresso “natural” que
agiria independente da “ação humana”, elas reivindicam a herança das feministas e a
necessidade de se organizarem para travar uma luta contra essa opressão.36 A proposta de sair
da teorização e partir para a “prática” perpassa diversos textos do grupo. Era necessário,
afirmam, passar “da teoria da igualdade à prática da igualdade” e isso só poderia ser feito a
partir do momento que as mulheres se encarregassem do seu próprio destino. Se isso é
reconhecido para diferentes grupos oprimidos, é considerado como “ridículo quando se trata
das mulheres” que não teriam o direito de figurar entre os “movimentos revolucionários”.37 O
FMA deseja justamente ser parte desses movimentos com uma perspectiva feminista.
35
FMA, sem data. Fundo Anne Zelensky. BMD.
36
[Panfleto] Porquoi F.M.A?, s.d., Fundo Anne Zelensky. BMD.
37
Ibidem.
73
Imagem 1: Convite para reunião do FMA, outubro de 1968. Fundo Anne Zelensky. BMD
74
Mas, a forma que essa intervenção política deveria ganhar não constituía uma
questão cuja resposta era clara. Pelas cartas, podemos ver que o grupo procurava divulgar
suas ideias e suscitar alguns debates que considerava importante, além de denunciar artigos
discriminatórios publicados na imprensa. Dentre os documentos do grupo há diversas cartas
enviadas ao jornal Le Monde com o objetivo de denunciar a discriminação sexual em alguns
anúncios de emprego. Encontramos também trocas de cartas com a revista Nouvel
observateur, L’avenir est à nous e com organizações como Ligue Communiste. O grupo
também entrou em contato com intelectuais e militantes cujas ideias o interessavam. Essas
cartas nos permitem reconstituir uma rede de contatos com importantes intelectuais como
Simone de Beauvoir, Daniel Guérin e Albert Memmi38, particularmente os dois últimos.
38
Albert Memmi (1920-) é um escritor de origem tunisiana, autor de romances e ensaios, diversos deles sobre a
temática colonial. Entre eles podemos citar La Statue de sel (1953), Portrait du colonisé précédé de Portrait du
colonisateur (1957), L'Homme dominé (1968) e Le Racisme (1982).
39
Compte-rendu du débat: Échec au Couple? (avec la participation d’Albert Memmi). Fundo Anne Zelensky.
BMD.
75
pode denunciar a opressão dos proletários e dos colonizados sem denunciar a opressão das
mulheres e a opressão das crianças?”.40
Mas, não se tratava, naquele contexto, da defesa de uma luta que incluísse
somente as mulheres. Elas procuravam dialogar com os homens. Apesar de considerarem que
esses tinham vantagens em manter a posição subordinada das mulheres, essa posição seria
“alienante” para os homens e estes deveriam lutar para sair do papel de opressor imposto pela
sociedade41. A emancipação feminina passaria pela instauração de relações “realmente
igualitárias” e, nesse sentido, homens devem fazer parte do processo.
O grupo manteve esse princípio durante quase toda sua existência, mas essa
posição altera-se em seus momentos finais. Em 1970, afirma-se a necessidade de se organizar
somente entre mulheres, sob o argumento de que a reunião entre oprimidos seria a única
forma de recriar uma identidade, longe daquela forjada pelo opressor:
Quando um indivíduo é psicologicamente oprimido desde o seu nascimento,
devido à sua raça ou ao seu sexo, ele não pode se libertar do seu sentimento
de inferioridade e recriar uma identidade senão num grupo exclusivamente
de sua raça ou do seu sexo.42
Uma das dificuldades enfrentadas pelo grupo era justificar sua existência e os
moldes da luta que propunha. O marxismo foi, para muitas feministas, um ponto de partida
40
Porquoi F.M.A?
41
Idem.
42
Carta enviada à revista Nouvel Observateur , 18/02/1970. Fundo Anne Zelensky. BMD.
76
para suas teorizações. No manifesto do grupo43, as militantes constatam que não haveria uma
“tradição feminista” na França mas, por outro lado, as feministas poderiam contar com a
“vivacidade da tradição marxista na França, com o seu poder de contestação e análise crítica”.
Para o grupo, tratava-se de partir de um marxismo “crítico”, o qual recusa toda forma de culto
à personalidade e procura historicizar e renovar um pensamento cujos “escritos datam de mais
de um século”. Essa perspectiva poderia ser um ponto de partida, mas não era possível
encontrar respostas já prontas às questões que esse movimento começava a lançar:
Para o FMA, a categoria opressão parece constituir uma chave de explicação para
pensar a subordinação feminina, mas também para pensar sua superação e as articulações com
outros grupos igualmente oprimidos. Quem seriam os “grupos oprimidos”? Os “negros dos
EUA, os povos do Terceiro mundo, as inúmeras minorias étnicas e as mulheres em todo o
mundo”45, afirmam. Segundo o grupo, a história da servidão e da libertação de grupos
oprimidos mostraria que nada jamais é dado pelo opressor, logo, os oprimidos não podem
43
Manifeste F.M.A. Fundo Anne Zelensky. BMD.
44
FELDMAN, Jacqueline. De FMA au MLF... Op. Cit., p. 196.
45
Porquoi FMA. (s.d., aproximadamente 1969). Fundo Anne Zelensky. BMD.
77
esperar nada senão deles mesmos. A revolução seria sempre uma revolução de um grupo
contra uma opressão específica e só resolveria os problemas atacados.
A revolução não seria uma panaceia para todos os males. Atacar a sociedade de
classes não significa atacar todas as outras relações de dominação que a perpassa, por isso a
necessidade de um grupo “feminista revolucionário”. Por “revolucionário” o grupo entende
uma postura política que recusa arranjos dentro do sistema opressor e propõe a sua destruição,
além de “não esperar a mudança do poder para resolver de um dia para o outro todos os
problemas”.48 Aqui a retórica já é muito próxima daquela que seria a marca do MLF.
46
Sobre a importância da categoria “alienação” nas movimentações de maio, voltaremos posteriormente.
47
Féminin Masculin Avenir. Féminisme Marxisme Action. [Manifesto do grupo]
48
Idem.
49
Texte de Christine. Fundo Anne Zelensky. BMD.
78
50
Idem.
79
Antinaturalismo
51
Féminin Masculin Avenir. Féminisme Marxisme Action. [Manifesto do grupo]. Fundo Anne Zelensky. BMD
52
Idem.
80
53
Idem.
54
Idem.
55
MEMMI, Albert. L’homme dominé. Paris: Gallimard, 1968.
56
Todas as citações desse debate foram extraídas de um resumo da reunião. “Compte-rendu du débat: Echec au
couple? (avec la participation d’Albert Memmi). Fundo Anne Zelensky. BMD.
81
57
Idem
58
Idem.
59
Anne e Jacqueline. D’un groupe à l’autre. Partisans (Libération des femmes. Année zero), n.54-55, julho-
outubro de 1970, p.190.
60
Compte-rendu du débat: Echec au couple? (avec la participation d’Albert Memmi). Fundo Anne Zelensky.
BMD.
83
Terminaremos essa parte dedicada ao FMA com uma discussão sobre a revolução
sexual. A questão ocupa um lugar importante nas discussões do grupo nos documentos mais
próximos do ano de 1970. Essa temática era praticamente ausente nos grupos feministas
anteriores e é um símbolo da emergência de novas temáticas e reivindicações.
Revolução sexual
Para Chaperon63 a partir de meados dos anos 1950, após um longo eclipse, as
questões sexuais ganham “direito de existência” na França. Diversas obras sobre a questão
são publicadas nesse contexto. A década de 1960 é um momento particularmente importante
de politização da sexualidade. “Libertar” a sexualidade dos entraves impostos socialmente era
uma pauta importante e algumas das frases lendárias dos muros em 1968 “Gozar sem
barreiras” (Jouir sans entraves) são emblemáticas desse momento. Para Zancarini Fournel a
reinvindicação de liberdade sexual foi determinante na cristalização e erupção da
mobilizações dos anos 1968, mesmo que a questão passe para o segundo plano a partir de
61
DELPHY, Christine. A propos du service civique des filles. Un projet de loi dangereux. La femme du 20 e
siècle, n.16, março de 1970.
62
ZELENSKY, Anne. Le malentendu du Deuxième Sexe. La femme du 20 e siècle, n.15, dez. 1969.
63
CHAPERON, Sylvie. Kinsey en France: les sexualités féminine et masculine en débat. Le Mouvement social,
n.198, 2002.
84
maio de 1968. A questão tornou-se mesmo uma marca do “maio de 68” ganhando uma
preeminência em relação a outras mobilizações.64
Entre 1969 e 1970, o tema parece ter recebido particular atenção no seio do grupo.
Um texto publicado em 12 de janeiro de 1970 no Nouvel Observateur, Sexe à gauche (Sexo à
esquerda) parece ter dado ainda mais força ao debate no seio do grupo. O artigo, assinado por
Roger Cremant, (pseudônimo de Roger Rosset), constituía uma resenha do livro de Reich La
révolution sexuelle. O texto de Rosset provocaria reações contundentes e numerosas por parte
dos leitores. Dentre as diversas cartas, uma era assinada pelo FMA e outra por Daniel Guérin
e Anne Zelensky.
64
Como exemplo da importância que a questão ganha no final dessa década, podemos citar a publicação, em
1966, de um número especial da revista Partisans, intitulado Sexualité et repression Partisans “Sexualité et
répression” (organizdo por Emile Copferman), n° 32- 33, outubro de 1966.Ver também Partisans, “Sexualité et
répression II”, n° 66-67, julho de 1972 (organizado por Boris Fraenkel). Henri Lefebvre dá um curso na
Universidade de Nanterre sobre ‘sexualidade e sociedade” neste período. A revolução sexual de Reich é
traduzida e publicada em francês em 1968. No ano seguinte Danièl Guerin publica Essai sur la révolution
sexuelle après Reich et Kinsey.
65
No final de 1969 o grupo entra em contato com Guérin: “Nós lemos seu último livro ‘Ensaio sobre a
Revolução sexual’. Gostaríamos de encontrá-lo para discutir com o objetivo de eventualmente realizar um debate
público sobre a questão” (Paris, 8/11/69).
85
Por fim, cabe ressaltar que o grupo, ou uma parte dele, decidiu promover algumas
atividades relacionadas ao tema. Nos arquivos podemos encontrar diversos questionários
preenchidos com questões sobre sexualidade, realizado na Université de Vincennes. Não
sabemos se esses questionários foram utilizados para alguma finalidade. Paralelamente,
Feldman e Zelensky pensavam na produção de um livro sobre o tema. Na primavera de 1970
o livro estaria concluído, mas teria dificuldades de encontrar um editor. O texto seria
finalmente publicado sob a forma de artigo no número especial de Partisans.
A partir do que foi exposto pode-se perceber semelhanças com temas e polêmicas
que marcariam o Mouvement de Libération des Femmes. Esse movimento surge a partir da
reunião de pequenos grupos já existentes que daria origem a um movimento mais amplo.
Segundo o relato de Anne Zelensky66, uma carta publicada pelo FMA no Nouvel Observateur
obtém respostas e uma delas de um grupo que se intitulava Les Oreilles Vertes. Ao que tudo
indica, ela se refere à polêmica do texto sobre Reich, mencionado acima. Nesse mesmo
momento, em maio de 1970, o jornal L’idiot international publica um texto, intitulado
Combat pour la libération de la femme, assinado por Monique Wittig, Gille Wittig, Marcia
Rothenburg e Margaret Stephenson. Segundo Françoise Picq, esse grupo se constitui após os
eventos de 68 e é formado pelos nomes citados acima, além de Françoise Ducrocq, Josiane
Chanel, Antoinette Fouque e Suzanne Fen.67 É do encontro desses grupos que surge o
embrião do Mouvement de Libération des Femmes. As primeiras aparições públicas desse
movimento datam de meados de 1970.
66
PISAN Annie de, TRISTAN Anne, Histoires du MLF. Op. citl, p. 48.
67
PICQ, Françoise. Libération des femmes.Op. cit., p.15.
86
Essa ação daria visibilidade na mídia ao movimento, que, segundo diversas fontes,
seria batizado, nesse contexto, de Mouvement de Libération des Femmes, em analogia ao
movimento estadunidense, nome que as próprias militantes passariam a adotar. Participaram
dessa ação, entre outras, antigas FMA como Christine Delphy, Emmanuèle de Lesseps e Anne
Zelensky, assim como outras pessoas com outras trajetórias como Monique Wittig, Cathy
Bernheim e Christine Rochefort.
68
COLLECTIF. Mlf Textes premiers. Op. cit., p.37.
69
Esse ato foi organizado por militantes da VLR (Vive la Révolution). [Panfleto] Solidarité avec les femmes em
greve aux USA les 26 et 27 août. Fundo Anne Zelensky. BMD. Reproduzido em: COLLECTIF. Mlf Textes
premiers, p. 36-37.
70
O evento se intitulava Etats Géneraux de la Femme, no qual aconteceriam debates, sobre temas diversos.
87
Para Picq, o MLF faz parte de uma corrente de contestação que surge a partir de
maio de 68, “mesmo desejo de mudar a vida, imediatamente. Mesmas palavras para dizê-lo,
mesma forma de passar uma mensagem, de desvendar questões implícitas, quebrar tabus:
denúncia espetacular, humor corrosivo, insolência, derrisão, encenação dramatizada”.73 Mas,
promoveria também críticas aos esquemas revolucionários e proporia novas formas de
estruturar o movimento, novas formas de ação e de manifestação.
Pela sua própria forma de organização, esse movimento é avesso a uma definição
mais precisa dos seus contornos. O movimento se pretendia amplo “com contornos
indefinidos e definição maleável”.74 Nos panfletos produzidos pelo movimento, sobretudo em
seu momento inicial, encontramos uma recusa a uma definição precisa:
O movimento de libertação das mulheres:
71
Politique Hebdo, n.9, 3 dez. 1970.
72
PICQ, Françoise. Libération des femmes...Op. cit., p. 52.
73
Ibidem, p. 114.
74
Ibidem, p. 125.
88
-É você
-São todas as mulheres que tomam a palavra
-São todas as mulheres em revolta que tomam a palavra
-É quando duas ou três mulheres se reúnem e falam da sua experiência e do
seu mal-estar.
-São todas aquelas que se revoltam coletivamente contra essa sociedade de
homens feitas por homens e para os homens.75
75
LE MOUVEMENT DE LIBÉRATION DES FEMMES. s.d. Recueils BnF.
76
LESSEPS, Emmanuèle de; HENNEQUIN, Claude. Trois ans de MLF. Actuel, n° 25, 1972.
77
LE MOUVEMENT DE LIBÉRATION DES FEMMES. s.d. Recueils BnF.
78
Le torchon brûle de n.2 p. 3.
79
Le Tourchon Brûle, n.2 apud GUADILLA, Naty. Libérations des femmes le M.L.F. Paris: Puf, 1981, p. 32.
80
PICQ, Françoise. Libération des femmes. op. cit., p.125.
89
Essas agremiações poderiam durar anos, uma estação, alguns meses ou mesmo o
“tempo de uma rosa”83, como nos mostra Picq. Em janeiro de 1971, poucos meses após as
primeiras ações públicas, alguns grupos são citados: prostituição, solidariedade cinema, grupo
aborto, ligação com o interior, Vincennes, Nanterre, la Halle aux vins, grupo de estudos
econômicos, grupo sobre a sexualidade, grupo sobre o ciúme, grupos de bairro”. 84
Um princípio comum a todas essas atividades era a reunião entre mulheres. “Só o
oprimido pode analisar e teorizar sua própria opressão e consequentemente escolher os meios
de luta”86 afirmavam na introdução de Partisans. (Libération des femmes. Année zero). Essa
81
[Panfleto] Le Mouvement de Libération des femmes. s.d. BMD.
82
PICQ, Françoise. Libération des femmes. Op. cit p. 157.
83
Ibidem. .
84
Actuel, 1971, p.11.
85
L’information des femmes, n.1, 24 de novembro de 1975.
86
UN GROUPE DES FEMMES. Introduction à l’édition de 1972. Partisans. Libération des femmes. Paris:
Maspero, 1973, p.5.
90
88
QUELQUES MILITANTS. Présentation. Partisans. Op. cit., p. 5.
89
UN GROUPE DES FEMMES. Introduction à la premier édition .Partisans. Libération des femmes. Paris:
Maspero, 1973, p. 9.
90
[Panfleto] Féministes revolutionnaires. Fundo Anne Zelensky, BMD.
91
PICQ, Françoise. Libérationdes femmes. Op. cit., p.233.
91
sexual (a diferença é, para algumas, um produto da opressão enquanto que para outras seria
algo a ser valorizado); formas diversas de se conceber a estrutura do movimento.
Simone de Beauvoir afirmava em 1949 que as mulheres “não dizem ‘nós’”; “não
temos meios concretos de nos reunirmos em uma unidade que se afirmaria em se opondo”94.
Uma grande onda feminista se constitui, 20 anos depois, justamente a partir desse “nós
mulheres”. Esse processo ganhou formas variáveis, dependendo do país e do contexto
político. Na França, foi fruto de um processo cujos contornos não é possível reconstituir
somente a partir dos traços escritos do movimento, pois se forjou, fundamentalmente, nos
diferentes espaços de militância. Já nos primeiros panfletos, esse sentimento é expresso:
Você é porque você é parte desse 1 milhão e meio e que, seja qual for o lado
para onde se vire, você terminará por encontrar só irmãs, semelhantes a
você, oprimidas e doentes dessa opressão, que, como você, colocarão um dia
os seus problemas em termos que lhes serão próprios, numa linguagem que
passará pelo corpo e vida, onde se encontra a verdadeira expressão.
É necessário que você encontre outras mulheres, que fale com elas da
opressão que lhes é comum, que fale de todas as maneiras possíveis.95
92
10 ans de luttes des femmes. Cahiers du féminisme, n.3, março 1978, p.22.
93
Idem, p. 31.
94
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Fatos e mitos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 13.
95
Combat pour les femmes. Le torchon brûle – L’idiot international, décembre 1970, p.2.
92
Esse encontro foi vivenciado por muitas como uma enorme descoberta. É
justamente nesses momentos de encontro que se forja a ideia de uma unidade, de um “nós”
para além de outras diferenças. Foi no contato com outras mulheres, na troca e no
reconhecimento de uma vivência comum que esse caráter coletivo da opressão pôde ser
verbalizado e elaborado. Em diversos textos do movimento podemos encontrar relatos que
ressaltam a importância desse processo
Muito mais difícil que lutar contra o sistema (tarefa para verdadeiros
combatentes), é unirmos as mulheres e concordamos umas com as outras.
Parece-me que não podemos ir muito longe se não superarmos essa etapa
que deveria ser a primeira a ser percorrida. Temo ainda que levar em conta
97
que estamos condicionadas pela sociedade para que sejamos inimigas.
96
[Panfleto] Solidaires de nos soeurs avec qui nous sommes sur le chemin du ‘sés honneur’, outubro de 1970.
Reproduzido em COLLECTIF. MLF. Textes premiers. Paris: Stock, 2009, p.87.
97
Ana Tegui. Testimonio: soy una mujer más. Nosotras,n.7, julho de 1974.
98
Féministes Révolutionaires. Torchon brûle n.5, s.d., p.9 [data aproximada: primeiros meses de 1973].
99
Idem.
93
100
Annie e Anne. Lutte des femmes et révolution. Les femmes s’entêtent. Paris: Gallimard, 1975, p.271.
101
Contre le terrorisme male . L’idiot international, juillet aout 1970.
94
experiências, poderia emergir a percepção de uma opressão comum e de uma identidade que
superasse as suas “experiências atomizadas e fragmentárias”.102
Sarachild foi uma das primeiras a propor atividades desse gênero nos EUA. Alice
Echols identifica as origens dessa ação no quadro do New York Radical Women103, onde o
termo foi cunhado. A técnica, no entanto, teria surgido a partir de outras experiências:
As a civil rights worker in Mississippi, Sarachild knew that the sharing of
personal problems, grievances, and aspirations could be a radicalizing
experience. In a 1973speech, she explained “[w]e organizers the practice a
number of us had learned in the civil rights movement in the Wouth in the
early 1960’s’. The proponents of consciousness-raising took their inspiration
front the Chinese revolution when peasants were urged ‘to speak pains to
recall pains’ and from the revolutionary struggle in Guatemala where
guerillas used similar techniques. 104
102
ROWBOTHAM, Sheila. A conscientização da mulher no mundo do homem. Rio de Janeiro: Globo, 1983, p.
74.
103
“The New York groupe included a number of the mouvement’s most significant thinkers-women livre. Kathie
Sarachild, S. Firestone, Anne Koedt, Kate Millet, Robin Morgan, and Ellen Willis”. ECHOLS, Alice. Daring to
be bad.Op. cit ., p.74.
104
ECHOLS, Alice. Daring to be bad.Op. cit, p.83-84.
105
Féministes Révolutionaires. Torchon brûle n.5, s.d.[data aproximada: primeiros meses de 1973].
95
Para Françoise Picq, o tema central mobilizador do MLF era a liberdade de dispor
do próprio corpo, resumido na palavra de ordem “Nosso corpo nos pertence”, largamente
utilizada. Grandes mobilizações em torno dessa temática foram um elemento fundamental
desse movimento na primeira metade da década de 1970. Elas se baseavam na ideia de que
“não há liberdade para as mulheres sem livre disposição de seus corpos”.107 “Nosso corpo nos
pertence” afirmam, “não pertence nem ao Papa, nem a Debré108, nem aos publicitários, nem
ao nosso marido, nem a nenhum homem”. Essa luta exige a total liberdade para aborto e
contracepção. O aborto constituiu um tema fundamental nos primeiros anos do movimento.
A luta pela legalização do aborto tem uma história que remonta à França dos anos
1960109, com a fundação da associação Maternité Heureuse que se transformaria no Planning
Familial. Não se trata de uma luta conduzida somente pelo MLF, mas também por grupos
como MLAC (Mouvement pour la liberté de l'avortement et de la contraception), Choisir e Le
Planning Familial. Em 5 de abril de 1971 a revista Nouvel observateur publica o manifesto
das 343 mulheres declarando terem abortado – que o jornal satírico Charlie Hebdo batizaria
106
Féministes Révolutionaires. Torchon brûle n.5, s.d. [data aproximada: primeiros meses de 1973].
107
PICQ, Françoise. Libération des femmes. Op. cit., p. 85.
108
Michel Debré era à época ministro de Estado encarregado da defesa nacional.
109
Para mais informações sobre os mais de 20 anos de luta por essa causa ver: PAVARD, Bibia. Si je veux,
quand je veux. Contraception et avortement dans la société française (1956-1979), Rennes: PUR (collection
Archives du féminisme), 2012.
96
das 343 sallopes (putas) – e que se tornou um manifesto símbolo da luta pela legalização do
aborto.
Na pauta da livre disposição dos corpos, outros temas foram debatidos, entre eles
o sentido da revolução sexual para as mulheres e a violência, entre elas o estupro. A
“libertação da sexualidade” dos entraves impostos por uma sociedade repressora constituía
um tema importante, na esteira dos debates que marcaram a década anterior. O MLF se
posiciona pela “libertação sexual e contra todos os tabus”.110 Denúncias ao mito do orgasmo
vaginal e à frigidez feminina assim como a afirmação da necessidade de uma redefinição da
sexualidade, que não passe pela procriação obrigatória, pela satisfação exclusivamente dos
desejos masculinos e pela heterossexualidade obrigatória se impõem para o movimento.
110
PICQ, Françoise. Libération des femmes. Op. cit., p.129.
97
como Dix heures contre le viol (Dez horas contra o estupro), em junho de 1976. A lei sobre o
estupro é finalmente alterada em 1980.111
Em torno dessa temática são organizadas, por exemplo, ações contra o dia das
mães – “Comemoradas um dia, exploradas todo o ano” era o mote –, uma greve das mulheres
em 1973, tendo por objetivo a paralização de todos os trabalhos realizados por mulheres.
O movimento tem o seu auge entre 1970 e 1973. Nestes anos, apesar das
divergências, este conseguia manter uma certa unidade. A partir de 1974, segundo Picq, o
movimento entra numa nova fase, na qual as divergências vão levar a uma certa
fragmentação, visível, por exemplo, na multiplicação da imprensa. Um jornal unificado como
o Torchon brûle não era mais possível.
111
Ver: PICQ, Françoise. Libération des femmes. Op. cit., cap. 20 “Ras le viol”.
112
KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA, Helena. LABORIE,
Françoise et. al. Dicionário Crítico do feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 68.
113
[Panfleto] “On n’appelle pas ça du travail ” s.d. Recueils BnF.
98
Diálogos transatlânticos
Nos anos 1990, alguns debates, entre eles sobre o uso do conceito de gênero e
sobre o “politicamente correto”, ambos considerados como uma importação dos Estados
Unidos, trouxeram para o debate político e teórico a ideia de “singularidade francesa” 114 e
algumas tentativas de “nacionalização” de conceitos e perspectivas, como nos mostra
Cornelia Moser.115 Mas, nos anos 1970, não há uma defesa de “especificidade nacional” ou a
recusa em utilizar determinados conceitos porque foram produzidos em outro país. Na
verdade, o movimento se pretende internacional e contra uma opressão que, apesar das
variações, seria universal. Nos documentos do MLF podemos encontrar diversos elementos
dessas trocas, particularmente com os Estados Unidos. Contudo, para Ezekiel e Gaslter116, a
influência do feminismo estadunidense é pouco reconhecida nos trabalhos sobre tema. Para
Galster, seria uma ocultação extremamente problemática dado que “a maioria das feministas
praticariam fundamentalmente o que elas haviam aprendido nos Estados Unidos”.117
Consideramos um exagero tal ideia. O feminismo francês apropriou-se de determinados
conceitos elaborados nos EUA, traduziu textos e categorias gestadas do outro lado do
Atlântico, mas, ao mesmo tempo, formulou, a partir de um contexto político, teórico e
intelectual particular, um feminismo que não pode ser caracterizado simplesmente como uma
replicação do woman’s liberation estadunidense.118 Neste item, o objetivo é mostrar algumas
dessas trocas transatlânticas.
114
Para debates sobre a ideia de “singularidade francesa” ver OZOUF, Mona. Les mots des femmes. Paris:
Fayard, 1995, o dossier “Femmes: une singularité française ? ”. Le Debat, n.87 (nov.-dez 1995) e BADINTER,
Elisabeth . Rumo equivocado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
115
MÖSER. Cornelia. Feminismes en traductions. Op. cit.
116
EZEKIEL, Judith. Anti-féminisme et anti-américanisme: um mariage politiquement réussi. Nouvelles
Questions Feministes. vol. 17, n.1, 1996 ; e GALSTER, Ingrid. Les chemins du féminisme entre la France et les
Etats-Unis. In: RACINE, Nicole; TREBITSCH, Michel (org.). Intellectuelles. Du genre en histoire des
intellectuels. Bruxelles: Complexe, 2004.
117
GALSTER, Ingrid. Les chemins du féminisme entre la France et les Etats-Unis. In: RACINE, Nicole;
TREBITSCH, Michel (org.). Intellectuelles. Du genre en histoire des intellectuels. Bruxelles: Complexe, 2004,
p. 251.
118
As disputas em tornos de teorias “nacionais” pertencem a outro momento histórico, particularmente os anos
1990, e estão relacionadas, em grande medida, à controvérsia sobre o conceito de gênero e sobre a categoria
french feminism.
99
lembrança de algumas daquelas que viveram esse período, o feminismo parecia algo que
dificilmente chegaria à França. Sobre isso, Beauvoir comenta:
119
BEAUVOIR, Simone de. France: Feminism – Alive, Well, and in Constant Danger. In: MORGAN, Robin.
Sisterhood is Global. The International Women’s Movement Anthology. Garden City, Nova York: 1984.
120
Plate-forme du Cercle Dimitriev apud COLLECTIF. MLF textes premiers... Op. Cit., p. 144.
121
AUDRY, Colette. Les pièces du dossier. Après demain, n.140, janeiro 1972, p. 4. Fundo Colette Audry,
BMD.
122
GODCHAUD, J.F. Introduction: de noveau sur la libération des femmes. Partisans n.57, jan.-fev. 1971, p.64.
100
123
MERCIER, Sylviane. La foire à la libération. Partisans n.57, jan.-fev. 1971, p. 41.
124
HEDIN, Anne. Pour l’avortement libre et gratuite. Rouge, n.109, 12/04/1971, p. 6.
125
Le nouvel observateur 31 de agosto de 1970, p.18. “En solidarité avec les femmes américaines et pour mettre
l’accent sur leurs propres problèmes, un “ mouvement de Libération des femmes ” a été créé en France. Il dit
avoir trois mille adhérentes. Une délégation de ce mouvement a déposé mercredi dernier une gerbe à l’Arc de
Triomphe ”.
126
QUELQUES MILITANTS. Présentations. In: Partisans (Libération des femmes. Année zero), n.54-55, julho-
outubro de 1970, p. 7.
127
Na bibliografia de textos sobre o tema arrolada no final desse número especial, há um tópico de literatura
sobre a liberação das mulheres nos Estados Unidos, em que constam diferentes títulos que poderiam ser
encontradas na seção “Femmes” da livraria da editoira Maspero La Joie de Lire. Partisans (Libération des
femmes. Année zero), n.54-55, julho-outubro de 1970, p.246.
101
128
L’idiot international , julho-agosto de 1970.
129
Para debates mais recentes sobre a ideia de “singularidade francesa” ver OZOUF, Mona. Les mots des
femmes. Paris: Fayard, 1995, o dossier “Femmes: une singularité française ? ”. Le Debat, n.87 (nov.-dez 1995) e
BADINTER, Elisabeth . Rumo equivocado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
130
DUCHEN, Claire (org.) French connections. Op. cit Idem, p. 11.
131
DUCHEN, Claire (org.) French connections. Op. cit.
102
132
PICQ, Françoise. Libérationdes femmes.Op. cit, p.249.
133
Ibidem, 251.
103
134
Ibidem.
135
Féministes Révolutionaires. Torchon brûle, n.5, s.d., p.8 [data aproximada: primeiros meses de 1973].
136
[Panfleto] Pour un groupe feministe revolutionnaire (1971).
137
Idem.
138
PICQ, Françoise. Libération des femmes...Op. cit., p. 280.
104
139
CORINE. Je suis une effreuse renégate...Les temps des femmes n.12, été 1981.
140
Ver também: 10 ans de luttes des femmes. Cahiers du féminisme, n.3, março 1978.
141
CERCLE DIMITRIÈV. Brève histoire du MLF. Pour un féminisme autogestionnaire. Paris: Savelli, 1976,
p.5.
142
CERCLE DIMITRIÈV. Brève ... Op. cit, p.63.
143
GUADILLA, Naty. Libérations des femmes le M.L.F. Paris: PUF, 1981, pp.48-49.
144
PICQ, Françoise. Libération des femmes. Op. cit., p. 287.
145
Ibidem, p. 288.
146
Ibidem, p. 288.
105
147
GUADILLA, Naty. Libérations des femmes le M.L.F. Paris: PUF, 1981, p. 50
148
PICQ, Françoise. Libération des femmes. Les années-mouvement. Paris: Seuil, 1993. p.125.
149
PICQ, Françoise. Un homme sur deux est une femme. Les feministes entre égalité et parité (1970-1996). Les
Temps modernes. n.597, abril-maio 1997, p.222.
150
KANDEL, Liliane. Sur la différence des sexes et celle des féminismes. Les Temps modernes, n.609 (junho-
julho-agosto 2000).
151
Des femmes en mouvements –hebdo n.1, 9/11/1979, p.23 apud KANDEL, Liliane. Sur la difference des sexes
et celle des féminismes. In: Les Temps modernes, n.609 (junho-julho-agosto 2000).
152
Des femmes en mouvement apud KANDEL, Liliane. Sur la difference… Op. cit.
153
“Nós as mulheres do MLF que não nos definimos como feministas”. Le Torchon Brûle n. 4 apud
GUADILLA, N. Libérations des femmes… Op. cit., p. 38.
154
Le Quotidienn des Femmes, n.2 apud GUADILLA, Naty. Libérations des femmes… Op. cit., p. 38.
155
“D’un geste politique délibéré nous avons voulu ne pas figurer dans cette Histoire du Féminisme ; necessaire
et cependant utilile la publication de ce passif.
Histoire du Féminisme qui ainsi, ici, se détermine à remarquer en son envers l’autre-contre face du vieu,
l’Humanisme, celle qui du discours du fils (la fils) nascissique ne prend effet d’écriture qu’á dénier, refouler,
censurer pour l’exploiter, le lieu forclos, désormais incontournable, du corps de la mère.
106
espaço na sociedade existente, mais participação no poder masculino, o que por elas era
recusado em nome de um poder que não seria nem simétrico, nem inverso ao poder
masculino:
O poder das mulheres não é um poder legal, patriarcal, sádico, pederasta, de
representação, de chefe, de nome, de estupro, de repressão, de ódio, (...) de
ideias abstratas. É um (não) poder matricial, de engendramento, de expensas
de caos, de diferenças, de liberdades coletivas, de abertura, de corpos
(plural), de reconhecimentos, de anulação de censuras, de prazeres, de fora
156
da lei, um poder-agir-pensar-fazer-para/por todas, todos.
Mas, a oposição a essa tendência não era somente de ordem teórica. A forma
como o grupo “Psicanálise et Politique” se estruturava, a relação de suas militantes com
Antoinette Fouque era também alvo de críticas.
Nous pratiques dans ce mouvement, sociales-politiques, théoriques na viendront jamais au même (quoique tant
veuillent s’y méprendre et coûte que coûte ces malentendus). Motif questionnant d’analyse, notre lieu,
imprenable » ALBISTUR Histoire du féminisme… Op. cit., p.477.
156
D’une tendance. Le torchon Brûle, n.3, s.d., p.18. [Torchon brûle n.3, s.d., p.5 [data aproximada: final de
1971 ou início de 1972].
157
Fougeyrollas-Schwebel, Dominique. Controverses et anathèmes au sein du féminisme français des années
1970. Cahier du genre, n.39, 2005; PICQ, Françoise. Libération des femmes...Op.cit.
158
PICQ, Françoise. Libération des femmes...Op.cit., p. 239.
159
Fougeyrollas-Schwebel, Dominique. Controverses et anathèmes... Op. cit.
107
Um “nós mulheres”?
“As mulheres formam, através das classes e das camadas sociais, um grupo
suficientemente homogêneo para poder falar de ‘reivindicações específicas’, de ‘movimentos
autônomos’?”, perguntava um grupo de esquerda num panfleto de 1970.160 Evelyne Le
Garrec, no mesmo sentido, se pergunta: “As mulheres formam realmente uma fronte unida e
homogênea? A opressão específica que pesa sobre uma grande burguesa, uma mulher de um
presidente de empresa e uma operária é a mesma? 161 Muitas seriam aquelas a questionarem a
possibilidade de conceber esse “nós”.
Para Anne Zelensky, essa questão deu origem a uma clivagem entre dois grupos:
os partidários da tese “FMA-Christine” e um outro em torno da figura de Antoinette
Fouque.163 Nas páginas da primeira publicação coletiva do movimento, o número especial de
Partisans, encontramos também esse tipo de divergência. De um lado, algumas militantes
afirmam: “As mulheres, sejam elas mulheres de burgueses, mulheres de operários ou
mulheres de negros, estão submetidas a uma opressão comum e específica, a opressão das
160
[Panfleto] Cercle Jeune Garde. La libération des femmes et la révolution. sem data. Fundo Anne Zelensky,
BMD.
161
Evelyne Le Garrec. Luttes de femmes luttes de classe. Politique Hebdo n.28, 11 mai 72.
162
CHRISTINE. Je ne vois pas porquoi un mouvement s’arreterait de grandir. Les temps des femmes, n.12, 1981,
p. 19.
163
PISAN, Annie de ; TRISTAN, Anne. Histoires du MLF, Op. Cit., p.52-53.
108
Mas, a constituição de um “nós”, para além das diferenças de classe, foi também
objeto de polêmica no seio do chamado “feminismo luta de classes”. Num documento
fundador dessa corrente, “Sortir de l’ombre”, lançado pelo Cercle Dimitriev, há a defesa de
um movimento unificado de mulheres pertencentes a diferentes classes sociais, sem negar
essas diferenças. Outros grupos combatem essa ideia, como, por exemplo, o Cercle Flora
Tristan, que lança “Sortir de l’ombre du féminisme bourgeois ” (Sair da sombra do feminismo
burguês), em novembro de 1973. A ideia de uma solidariedade de todas as mulheres é
considerada uma “ilusão”: “Deve-se combater a ideia de unidade de todas as mulheres que
conduz à redução do movimento aos objetivos mínimos que só podem satisfazer as mais
privilegiadas”.166
Les Pétroleuses se insurgem também contra a ideia de uma opressão que seria
comum à mulher burguesa e operária: “as vantagens que essa última retira do sistema
contribui para afastá-la do combate por sua libertação que passa pela Revolução socialista”.167
Um dos exemplos usados pelo jornal, mas que aparecem em outros textos, é a mobilização de
mulheres chilenas a favor do golpe de estado de setembro de 1973: “Não são nossas ‘irmãs’,
são nossas inimigas”168, afirmam.
Esses são somente alguns exemplos de divergências sobre a questão. Com isso, o
objetivo era mostrar que diferentemente de algumas leituras que consideram esse “nós” como
164
QUELQUES MILITANTS. Présentations. Partisans (Libération des femmes. Année zero), n.54-55, julho-
outubro de 1970, p. 3.
165
UN GROUPE DE FEMMES. La femme en morceaux. Partisans (Libération des femmes. Année zero), n.54-
55, julho-outubro de 1970, p. 97.
166
1°. Contribution du cercle “Flore Tristan ” 1973.
167
PETROLEUSES, sans titre, Pétroleuses, n° 0, s.d., p. 2. [data aproximada: 1974].
168
PETROLEUSES, sans titre, Pétroleuses, n° 0, s.d., p. 12.
109
um ponto de partida unânime no seio do feminismo, este foi, na verdade, uma construção,
forjada no bojo de intensos debates.
Outra questão que provocou polêmicas e divisões foi sobre a forma de organizar o
movimento. O movimento deveria se basear na espontaneidade e na busca de novas formas de
organização ou seriam necessários estruturar um movimento a partir de bases consideradas
pelas primeiras como mais “convencionais”? Num primeiro momento, como procuramos
apresentar no item sobre o MLF, predomina no movimento a idéia de que este não deveria ser
uma organização mas um movimento com contornos pouco rígidos, baseado na
espontaneidade e sem estruturas. Mas, essa forma de se organizar gerou polêmica. Num
boletim mimeografado, sem data, mas que certamente foi publicado no primeiro ano de vida
do movimento, encontramos algumas dessas críticas. Para Hélène, o que deveria ser um
“movimento” não consegue se constituir enquanto tal e torna-se um lugar de passagem no
qual à parte alguns “núcleos estáveis” passa-se pelo mesmo sem ser incitada a permanecer.
Para a militante, a falta de estruturas dava uma posição privilegiada a alguns grupos no lugar
de incluir todas as mulheres e levaria a formação de vanguardas. Na falta de outras soluções:
serão os pequenos grupos daquelas que: 1º. Tem tempo para se encarregar de
tudo (na verdade, elas são de que classe social?), e 2º. Tem uma estrutura de
base que se recusa ao conjunto do movimento, que constituiria um núcleo
dirigente tomando as decisões.169
169
Hélène. Le Mouvement. Libération des femmes. Bulletin n.2, s.d.[1970].
170
QUELQUES MILITANTES. Quelques propositions . Libération des femmes. Bulletin n.2 s.d.[1970].
110
171
Texte du Cercle Elizabeth Dimtrive: Qu’est-ce qUE le Cercle Elizabeth Dimitriev. Mouvement de libération
des femmes. Bulletin d’informations, maio de 1971.
172
Idem.
173
De la revolte des femmes à la Revolution. Suppelement. L’internationale, n.11, junho 1971, p.10.
174
Idem.
175
E.B.Avec le mouvement de libération des femmes. L’international, n.7, jan. 1971 p.9.
111
momento pelo seu comitê” ou ainda que “uma plataforma de orientação comum seja
elaborada” assim como “que uma coordenação internacional regular dos movimentos
feministas seja colocada em prática com o objetivo de dar uma nova dimensão à luta das
mulheres”.176
176
Idem.
177
Aux sœurs des organistions principalement trotkystes et maoistes. Torchon brûle n.2.
178
Nous avons quelque chose en moins. Torchon brûle n.2, s.d.
112
Essa exigência de uma linha teórica clara por parte de alguns setores de esquerda
será melhor analisada no próximo capítulo. Esse debate percorreu toda a década de 1970 e
acirrou ainda mais as polarizações de ordem puramente teóricas.
179
Sommes-nous des brebis édentées?. Torchon brûle, n.2, s.d. [data aproximada:1971]
180
Segundo REMY, Monique. De l’utopie à l’intégration... Op. cit., p. 48.
113
Capítulo 3
TEORIZANDO A OPRESSÃO
1- Quem é o inimigo?
2-Onde ele se localiza?
3- Tem suporte exterior? –tropas? (...)
4- Onde estão reunidas suas forças? (…)
Que armas empregam?1
1
ATKINSON, Ti Grace. Le féminisme radical. Déclaration de Guerre [avril 1969]. In: Odyssée d’une amazone.
Paris: Des femmes, 1974, p.66.
2
Ibidem, p. 63.
3
Ibidem, p. 64.
4
GREER, Germaine. A mulher eununco. Rio de Janeiro: Artenova, 1971, p.13.
5
Anne e Jacqueline. D’um groupe à l’autre. Partisans n.54-55, juillet-octobre 1970, p.201.
6
Ibidem, p. 203.
114
Mas o ato de teorizar por parte dos oprimidos não era um processo evidente. Para
aquelas/es tradicionalmente desprovidas/es do verbo, a “teoria” aparece, muitas vezes, como
um privilégio daqueles que dominam, “verborragia sacerdotal daquelas que são dominantes”,
aquilo que “sai da cabeça e da boca daqueles que dispõem da força (instrumentos, armas
7
A ideia de um ano zero da libertação das mulheres foi frequentemente criticada por indicar um
desconhecimento das mobilizações anteriores. Entretanto, esses movimentos não era absolutamente
desconhecidos. O texto de Anne e Jacqueline “D’un groupe à l’autre” publicado justamente nesse número de
Partisans que reivindicava o ano zero menciona diversos nomes e ideias de feministas que as antecederam. Esta
ideia parece indicar muito mais uma tentativa de demarcação que desconhecimento do passado.
8
L’Idiot International, juillet-aout 1970.
99
ROCHEFORT, Christiane. Définition de l’opprimé . In: SOLANAS, Valerie. SCUM. Le premier manifeste de
la libération des femmes. Paris: Nouvelle société Olympia, 1971, p.7.
10
Ibidem, p.53.
115
A entrada dos “minoritários”, dos “oprimidos”, ou, para usar uma linguagem mais
corrente nos dias atuais, dos “subalternos” na teoria provocou não somente uma
diversificação, uma multiplicação de questões, mas uma subversão de perspectiva. “Ruptura
epistemológica”, “ano zero” da liberação das mulheres, “revolução do conhecimento”15
diversas foram as tentativas empreendidas pelo movimento para nomear a subversão
provocada pelo feminismo no campo teórico.
11
GUILLAUMIN, Colette. Femmes et théories de la société: Remarques sur les effets théoriques de la colère des
opprimées. [1981]. In: GUILLAUMIN, Colette. Sexe, race et pratique du pouvoiri. Paris: Côté-femmes, 1992, p.
219.
12
Ibidem.
13
Ibidem, p.222.
14
DELPHY, Christine. Pour un féminisme matérialiste [1982]. In: DELPHY, Christine. L’ennemi principal 1.
Op. cit., p. 262.
15
DELPHY, Christine. Pour un féminisme matérialiste. Op. cit., p.269.
16
Ibidem, p.269.
116
promovida por grupos oprimidos teria provocado uma transformação de uma concepção de
mundo “teológica”. 17 Desses grupos surge a ideia de que tudo é histórico e por isso não é
eterno e é passível de mudança. A afirmação do caráter histórico e, portanto, mutável da
opressão foi um passo fundamental para diferentes grupos oprimidos e foi a base da reflexão
de diferentes vertentes do pensamento feminista.
Por fim, vale recordar que o próprio sentido dado à “teoria” seria objeto de
reformulações. Para diferentes setores do movimento feminista, particularmente para autoras
que compõem o núcleo central deste trabalho, a teoria passa a ser concebida como algo a ser
elaborado pelos próprios oprimidos, rompendo com a separação entre um grupo que
“fabricaria” a teoria e outro a quem caberia “escutar e colocar em prática”. Essa divisão, para
Christine Delphy, seria antifeminista19, uma negação de um princípio básico do “novo
feminismo” segundo o qual qualquer mulher tem tanto a dizer sobre sua situação de mulher
quanto qualquer outra.20
17
GUILLAUMIN, Colette. Femmes et théories de la société [1981]. Op. cit., p. 238.
18
WITTIG, Monique. On ne naît pas femme[1980]. In: WITTIG, Monique. La pensée straight. Paris: Éditions
Amsterdam, 2007, p. 51.
19
DELPHY, Christine. Pour un féminisme matérialiste. L'Arc, n.61, 1975, p. 54.
20
Ibidem, p. 55.
21
GUILLAUMIN, Colette. Femmes et théories de la société [1981]. Op. cit., p.225.
117
Teoria feminista
“Cada oprimido deve tomar consciência da sua opressão e tomar em mãos sua
própria luta. É a primeira condição da revolução. E a teoria emergirá da prática”, lemos na
introdução de Partisans (Libération des femmes. Année zero).23 A ideia de que só o oprimido
poderia teorizar sua própria opressão é recorrente nos textos do movimento. Ela não somente
atribuía um privilégio epistemológico àquelas diretamente concernidas, como implicava que
“fazer teoria” não constituía uma atividade altamente especializada, reservada a um grupo
específico, as intelectuais.
22
Audre Lorde. Apud DORLIN, Elsa. Sexe, genre et sexualités: introduction à la théorie féministe. Paris: PUF,
2008, p. 79.
23
QUELQUES MILITANTS. Présentations. In: Partisans (Libération des femmes. Année zero), n.54-55, julho-
outubro de 1970, p.3.
24
[Panfleto] Pour les féministes revolutionnaires BMD.
25
[Panfleto] Pour les feministes revolutionnaires BMD.
26
J’aime le mouvement de libération des femmes . Torchon Brûle, n.1, s.d. (maio de 1971 segundo Françoise
Picq. Libération des femmes... Op. cit., p.144).
118
Considera-se que a teoria não deve ter seu fundamento em si mesma, mas nesse
fundo “experiencial” que decorre da própria agência em seu confronto com a realidade: “Se as
teorias estão nas coisas, nos as encontraremos necessariamente”28. As categorias teóricas
devem ser validadas a partir do real, que neste caso, remete à experiência de opressão vivida
pelas mulheres.
27
A nous la parole. Le torchon brûle – L’idiot international, décembre 1970, p.4.
28
[Panfleto] Pour les feministes revolutionnaires. BMD
29
Féministes Révolutionaires. Torchon brûle n.5, s.d., p.10 [data aproximada: primeiros meses de 1973].
30
MITCHELL, Juliet. La Liberación de la Mujer Barcelona: Editorial Anagrama, 1977, p.65.
31
SARACHILD, Kathie. Un programme pour ‘l’éveil d’une conscience féministe . In: Partisans n.54-55, julho-
agosto de 1970, p. 6.
119
32
Féministes Révolutionaires. Torchon brûle n.5, s.d., p.10 [data aproximada: primeiros meses de 1973].
33
JK Les militantes ... In: Partisans Partisans (Libération des femmes. Année zero), n.54-55, julho-outubro de
1970, p. 150.
34
BEAUVOIR, Simone de. Preface. In: Les femmes s’entêtent. Paris: Gallimard, 1975, p.13
35
HARTMANN, Heidi. The unhappy marriage of marxism and feminism. In: SARGENT, Lydia.(org.) Woman
and Revolution: the unhappy marriage of Marxism and feminism. Boston: South and Press, 1981, p. 13.
120
à nossa teoria, nossa teoria a nossa ação, nossos sentimentos para essa ação a uma nova teoria
e, em seguida, a uma nova ação”.36 É partindo da própria experiência pessoal e confrontando-
a com a de outras mulheres que poderia emergir uma teorização sobre essa opressão. A
“experiência” é, concebida, assim, como momento central do empreendimento teórico.37 Não
se trata, portanto, da ideia de uma consciência imposta do exterior, por um grupo que deteria
os elementos dessa conscientização mas de um processo que se construía a partir de trocas de
experiências entre indivíduos que compartilhavam uma opressão.
Essa questão suscitou muitos debates. Como afirmam algumas daquelas que
participaram dessas discussões, havia, de um lado, a ideia de que “devemos olhar para nossa
própria experiência e criticar todas as outras ideologias anteriores” e, por outro lado, a ideia
que devemos de que devemos “olhar para a história” e “aprender o que as outras pessoas”.40
Nos primeiros anos do MLF, pelo menos no que explicitam os textos a que
tivemos acesso, predomina essa visão de um primado experiencial na produção do
conhecimento. Esse primado, desde que questiona a soberania das teorias existentes, está em
estreita relação com a crítica total que uma parcela do feminismo pretende promover.
Assumir a experiência da opressão como ponto de partida para a teoria implicava subverter o
que antes era concebido em termos de essência, de condição, de “problema” e romper com a
separação entre um aspecto “prático” e outro “teórico”.
Não aceitamos rejeitar o aspecto prático em benefício somente do aspecto
teórico. Estas são categorias artificiais criadas pela sociedade do macho
[mâle] e que não têm nenhum sentido para as mulheres dado que não nos é
nunca permitido pairar muito tempo nas ‘alturas’ da teoria ou dos grandes
sentimentos, é do nosso corpo que se trata aqui.41
36
SARACHILD, Kathie. Un programme pour l’éveil d’une conscience’ féministe. Partisans (Libération des
femmes. Année zero), n.54-55, julho-outubro de 1970, p. 66.
37
Mas essa centralidade não é uma característica somente do feminismo. Bronner evoca, de forma crítica, uma
visão, que permearia a nova esquerda estadunidense, segundo a qual a prática seria o critério de verdade.
BRONNER, Stephen. La nouvelle gauche: une expérience socio-culturelle . L’homme et la société, n.93, 1989.
38
ECHOLS, Alice. Daring to be bad ... Op. cit., p. 84.
39
Ibidem, p.84.
40
Idem.
41
COLLECTIF. Maternité esclave. Paris: Union Générale d’éditions. Paris, 1975, p. 6.
121
O tempo para uma elaboração teórica mais consistente seria um privilégio do qual
os oprimidos estariam excluídos, em razão da urgência da luta, que deveria ser conduzida
42
Dans les quartiers: du 18ème . Torchon brûle n.3, s.d., p.5 [data aproximada: final de 1971 ou início de 1972].
43
J.K. Les militantes... Partisans (Libération des femmes. Année zero), n.54-55, julho-outubro de 1970, p. 145.
44
QUELQUES MILITANTS. Présentations. Partisans (Libération des femmes. Année zero), n.54-55, julho-
outubro de 1970, p.3.
45
Ibidem, p.3.
122
mesmo que os instrumentos teóricos fossem ainda insuficientes. A partir dos documentos,
podemos captar a presença de algumas ideias que só seriam desenvolvidas teoricamente anos
depois. Como afirma Adriana Pisciteli, o movimento tinha que lidar, na prática, com algumas
questões que demoraram para ser elaboradas conceitualmente.
Embora algumas militantes, como Delphy, considerassem que uma teoria coerente
era fundamental para dar subsídios a uma prática adequada46, predomina nos escritos que
analisamos aqui a ideia de que deveria se partir da prática e pouco a pouco o movimento
formularia seus próprios conceitos e ideias. Para compreender esses debates, é preciso
também situá-los em relação a uma crítica direcionada ao movimento que o acusava de ser
pouco teórico e de fornecer uma justificação teórica consistente para sua existência.
46
Ver DUPONT, Christine. L’ennemi principal Op. cit., p. 158.
47
Partisans n.57, jan.-fev. 1971.
48
GODCHAUD, J.F. Introduction: de noveau sur la libération des femmes . Partisans n.57, jan.-fev. 1971, p. 64.
49
MERCIER, Sylviane. La foire à la libération . Partisans n.57, jan.-fev. 1971, p.39.
50
GLAZOUNOV, Gabriel. “ Des oprimées oppressantes ». Politique Hebdo n.29, 18 de maio de 1972, p.20.
51
BOURDET, Yvon. Le livre de l’oppression des femmes . Revue française de sociologie, n.13-4, 1972, p.581.
123
contentar com explosões de revolta”, “ele deve pensar uma revolução ”.52 Claude Alzon, num
livro inteiramente dedicado ao movimento feminista, afirma que esperava um “esforço
particular” de teorização por parte do movimento, mas que, ao contrário, este privilegiaria a
propaganda a “analisar honestamente a situação das mulheres”.53 Ainda nesse linha,
Godchaud pergunta: “Qual linha, qual estratégia, quais táticas, qual reflexão, quais objetivos
persegue, define, utiliza o MLF?”.54
“nossos amigos”, “partidários masculinos da libertação das mulheres” que entre outras coisas
pretendem substituir as mulheres e impor “sua concepção da libertação”.60 Esse mesmo tipo
de postura, de “aconselhamento”, afirmam, seria inaceitável se fosse feito em relação a
negros, populações do Terceiro Mundo, palestinos: “Eles não ousariam jamais subentender
que esses oprimidos são ‘ao mesmo tempo juízes e réus’, enquanto os opressores seriam
apenas ‘juízes’”.61
60
DELPHY, Christine. Nos amis et nous. Les fondements chachés de quelques discours pseudo-féministes
[1977]. DELPHY, Christine. L’ennemi principal 1. Op. cit., p. 160.
61
Ibidem, p. 162.
62
“Tu dis qu'il n'y a pas de mots pour décrire ce temps, tu dis qu'il n'existe pas. Mais souviens-toi. Fais un effort
pour te souvenir. Ou, à défaut, invente”. WITTIG, Monique. Les Guérillères. Paris: Les éditions de Minuit,
1969, p.127.
63
Pourquoi je suis dans la lutte des femmes. Le torchon brûle – L’idiot international, décembre 1970, p.16.
125
Como exemplo da força dessa ideia em tal contexto, podemos citar o posfácio
do livro de Memmi L’homme domine. Ele escreve este texto logo após os eventos de maio-
junho de 1968 e analisa brevemente suas implicações as de novas formulações teóricas que
emergiam para suas próprias análises:
O fenômeno que chama hoje nossa atenção pode parecer totalmente inédito e
temos o prazer em insistir sobre essa novidade absoluta. Não se trataria mais
da dominação de um grupo de homens sobre outro grupo de homens mas da
alienação do homem moderno em geral, do homem da civilização industrial,
em breve acompanhado por toda humanidade, dado que parece ser este o
destino geral. 66
Mas, para Memmi, essa concepção não poderia conduzir a um “velamento dessas
diferentes opressões” pois “mesmo no seio da civilização industrial, a questão permanece:
quem é realmente oprimido e em benefício de quem?”67. Não se trataria, conclui Memmi, de
um debate puramente teórico, mas, de uma questão com “consequências práticas
consideráveis”.68
64
BRONNER, Stephen. La nouvelle gauche: une expérience socio-culturelle . L’homme et la société, n.93, 1989,
p.55.
65
HABER, Stéphane. L'aliénation: vie sociale et expérience de la dépossession. Paris: PUF, 2007.
66
Posface. In: MEMMI, Albert. L’homme dominée... Op. cit. p. 219.
67
Ibidem, p. 220-221.
68
Ibidem, p.221.
126
desaparece pouco a pouco de seu léxico. Nicole-Claude Mathieu apresenta um dos seus textos
num congresso sobre o conceito de alienação69, numa mesa sobre alienação feminina na qual
o termo é usado praticamente como sinônimo de “opressão feminina”. A categoria “opressão”
assume esse lugar.
O termo “opressão” já está presente no FMA mas tornar-se-ia central no MLF. Foi
um recurso usado não somente pelo movimento feminista, mas, por um conjunto de outros
grupos que emergem na cena política nesse contexto para caracterizar formas de dominação
que não se resumiam à exploração econômica, assim como “minoritários” e “dominados”.
Esses termos foram usados como um grande guarda-chuva sob o qual se reuniam múltiplas
formas de desigualdades. Nesse quadro, os negros e outros racializados, as mulheres, os
colonizados foram considerados oprimidos.
Albert Memmi, no final dos anos 1960, faz um exercício importante nesse
sentido. Em L’homme dominé procura traçar um perfil dos oprimidos, que, apesar das
diferenças, teriam traços comuns:
Sabíamos que todos os oprimidos se assemelhavam, o colonizado, o judeu, o
pobre, a mulher, para além dos seus aspectos individuais e de suas histórias
específicas, eles têm semelhanças: todos eles estão submetidos ao jugo, que
deixa traços análogos nas suas almas e imprime um esquerdizamento similar
nas suas condutas. O mesmo sofrimento pede frequentemente os mesmos
gestos, as mesmas crispações interiores ou os mesmos trejeitos, as mesmas
angústias ou as mesmas revoltas.70
69
Para os anais do congresso, ver: GABEL, Joseph; ROUSSET, Bernanrd et. al. L’alienation aujourd’hui. Paris:
Éditions Anthropos, 1974.
70
MEMMI, Albert. L’homme dominée... Op. cit., p.24.
127
termo “condição feminina”, preso a uma explicação naturalista, a uma realidade física e não
modificável, o termo opressão “remete a um arbitrário, a uma explicação e a uma situação
política”.71 Essa categoria implica uma ideia de dominação estrutural. Essa dominação não se
confunde com a estrutura econômica. Ela perpassa a sociedade como um todo. Nesse sentido,
o conceito de “opressão das mulheres” implica uma expansão do conceito de “política” e uma
ruptura com a dicotomia privado-público. Esse termo, conclui Delphy, “é a base, o ponto de
partida de todo estudo e toda perspectiva feminista”.72 Partir da “opressão das mulheres”
constituiria uma “revolução epistemológica”.73
71
DELPHY, Christine. Pour un féminisme matérialiste [1975]. L’ennemi principal… Op. cit, p. 272.
72
Ibidem, p. 272.
73
Ibidem, p. 277.
74
BOURDET, Yvon. Le livre de l’oppression des femmes .Op. cit., p. 581.
75
Ver: panfletos “ Solidarité avec les femmes em greve aux USA les 26 et 27 aout » e o texto Contre le
terrorisme male L’idiot international , juillet-aout 1970.
128
76
Wittig, Monique et. al. Combat pour la libération de la femme . Op. cit, p.16.
77
Contre le terrorisme mâle. L’idiot internationale, julho-agosto 1970.
78
[Panfleto] Solidarité avec les femmes en grève aux USA les 26 et 27 août. BMD.
79
Porquoi je suis dans la lutte des femmes . Le Torchon brûle, décembre 1970, p. 16.
129
80
La Révolution fera le ménage. L’idiot international , juilllet-aout 1970.
81
Anne e Jacqueline. D’un groupe à l’autre. Partisans. Op. cit., p.200.
82
Torchon Brûle, n.1, s.d. [maio de 1971 segundo Françoise Picq. Libération des femmes... Op. cit., p.144].
83
Delphy , p. 198.
130
Opressão seria o termo mais consensual, mas, para algumas, tratar-se-ia de uma
forma de “exploração”, no sentido marxista do termo. O termo “exploração” foi muito
utilizado para caracterizar a extorsão do trabalho doméstico no seio da família, considerada
por algumas como a base da opressão feminina. Outras considerariam que analogias com
outras formas de dominação anteriores ao sistema capitalista seriam mais apropriadas. Fala-se
de escravidão, servidão. Guillaumin propôs o conceito de “sexagem”, um termo em francês
em estreita relação com servidão (servage) e escravidão (esclavage). A analogia com a ideia
de “povo” como afirma Kandel85, foi também bastante utilizada.
84
KANDEL, Liliane. Genération MLF (entrevista feita por Margaret Maruani e Nicole Mosconi). Travail,
genre et sociétés, n.24, 2010/2, p.12
85
KANDEL, Liliane. Les femmes sont-elles un peuple ? In: HOOCK-DEMARLE, Marie-Claire (org.). Femmes,
Nations, Europe: Nationalismes et internationalismes dans les mouvements de femmes en Europe, Paris,
Publications de l'Université Paris 7-Denis Diderot, collection CEDREF- Colloques et Travaux, 1995 .
86
Ibidem, p. 51.
131
87
QUELQUES MILITANTS. Présentations. Partisans (Libération des femmes. Année zero), n.54-55, julho-
outubro de 1970, p.4.
88
GUILLAUMIN, Colette. Race et nature... Op. cit.
89
Danda e Mariza. Feminismo. Nosotras,n.5, maio de 1974.
90
L’idiot International, juillet-aout 1970.
132
racismo dos homens a meu respeito”.91 Mas, o termo “sexismo”, concebido como um
“racismo contra as mulheres” foi rapidamente substituindo o uso do termo “racismo”.
91
Porquoi je suis dans la lutte des femmes . Le Torchon brûle. L’idiot liberte, décembre 1970, p. 16.
92
WITTIG, Monique et. al. Combat pour la libération de la femme Op. cit. , p. 18.
93
SHAPIRO, Fred. Historical Notes on the Vocabulary of the Women's Movement. American Speech, vol. 60,
No. 1, 1985, p. 7.
94
MITCHELL, Juliet. La Liberación de la Mujer Barcelona: Editorial Anagrama, 1977, p.68-69.
95
Guadilla usa o termo machisme para caracterizar uma ideologia sexual de repressão que afetaria
especialmente os países latinos e que seria particularmente enraizada na América Latina. GUADILLA, Naty
Garcia. Realité et utopia d’um mouvement de liberation des femmes en Amériqueu Latine . Les temps modernes,
n.337-338, août-sept. 1974, p. 2727.
133
96
BEAUVOIR, Simone. Le sexisme ordinaire. Les temps modernes, n.329, décembre 1973, p.1092.
97
DELPHY, Christine. Patriarcat. In: HIRATA, Helena. et. al. Dictionnaire critique du féminisme. Paris: PUF,
2000.
134
oriundos das feministas revolucionárias, mas algumas feministas ligadas a setores “luta de
classes” também adotam o termo.
A maior parte das categorias apresentadas neste item diz respeito a conceitos que
exprimem uma opressão/dominação comum ao conjunto das mulheres. No próximo item,
gostaríamos de explorar uma questão que foi bastante discutida posteriormente, a saber, as
outras hierarquias/desigualdades que atravessam a categoria “mulheres”. Ao analisar o
contexto do movimento feminista francês dos anos 1970, algumas pesquisas mais recentes
têm explicitado criticamente a ausência de uma tematização mais profunda da questão das
múltiplas opressões ou até mesmo de conivência com o racismo. Essa crítica envolve até
mesmo o uso de analogias com a raça, amplamente usadas pelo movimento como procuramos
mostrar. Para Éwamke-Épée e Magliani-Balkacem, no polêmico livro Les féministes blanches
et l’empire98, essas analogias constituíram uma forma de evacuar a “especificidade do estatuto
das mulheres não brancas em relação ao resto do movimento”.99
98
Para uma resposta ao livro, ver o texto de Josette Trat, que foi militante da tendência luta de classes: Les
féministes blanches et l’empire , ou le récit d’un complot féministe fantasmé. Contremps. Revue de critique
communiste. https://www.contretemps.eu/les-feministes-blanches-et-lempire-ou-le-recit-dun-complot-feministe-
fantasme/. Consultado em 10 de março de 2015.
99
Éwamke-Épée; Magliani-Balkacem. Les féministes blanches et l’empire. Paris: La Fabrique, 2012, p. 51.
100
BILGE, Sirma. De l'analogie à l'articulation: théoriser la différenciation sociale et l'inégalité complexe.
L'Homme et la société, 2010/2.
135
sexo, do mesmo modo que, para certo marxismo, seria o sistema capitalista. Apesar das
diferenças, esse feminismo e esse marxismo compartilham uma mesma lógica de apreensão
da dominação e das relações entre dominação principal, que deve ser combatida, e
dominações secundárias, que desapareceriam ou sairiam comprometidas a partir da destruição
da primeira.101
101
Ibidem, p.52.
102
REDSTOCKINGS. Redstockings Manifesto. Notes from second year… Op.cit., p.113.
103
BILGE, Sirma. De l'analogie à l'articulation... Op. cit., p. 56.
136
Uma análise dos primeiros materiais produzidos pelo movimento mostra que um
elemento fundamental para sua constituição foi a crítica a um certo modelo marxista
“monista”. Esse modelo subsumia a “questão feminina” nas relações de classe, considerando
o primeiro como parte do segundo. A crítica a essa posição deu origem a diversos outros
approaches mais ou menos desenvolvidos e a tentativas de formular a questão a partir de
novas bases.
104
Ibidem, p. 59.
105
Ibidem, p. 59.
106
Ibidem, p.61.
137
Mas, essa ideia coexiste com uma concepção, que aparece em alguns desses
textos, de que a opressão feminina seria a opressão “principal e primordial”.108 Anne e
Jacqueline afirmam também nesse mesmo sentido que: “Se queremos definir, a qualquer
preço, uma opressão primeira, senão principal, é aquela de um sexo sobre o outro. Ela é duas
vezes a primeira: primeira na História da humanidade e primeira para cada indivíduo”.109
107
Féministes Révolutionaires. Torchon brûle n.5, s.d., p.8 [data aproximada: primeiros meses de 1973].
108
[Panfleto] Pour um groupe feministe revolutionnaire. BMD
109
ANNIE e ANNE. Luttes des femmes et révolution. In : COLLECTIF. Les femmes s’entêtent. Paris :
Gallimard : Maspero, 1975, p. 279.
110
[Panfleto] Pour un groupe feministe revolutionnaire. s.d. BMD.
111
Projets pour la plataforme des groups de quartiers. Bilan: les FEMINISTES REVOLUTIONNAIRES. BMD.
138
sistema capitalista, ao contrário de outras tendências que não fazem “nenhuma referência à
natureza do sistema social” e, nesse sentido, propõem análises “a-históricas”.112
Para Delphy, a relação entre patriarcado e capitalismo (ou entre sexo e classe)
figurava mais como uma vontade teórica que algo realmente elaborado e desenvolvido. Uma
articulação com a raça não constituía um debate nesse momento. Entretanto, as referências às
lutas anti-imperialistas e anticoloniais podem ser apreendidas como uma forma de fazer
referência a esse fator. Entre as feministas radicais, encontramos a ideia de uma imbricação
entre “capitalismo, patriarcado e imperialismo”, que pode ser interpretado como o
“antepassado” da tríade “classe, gênero e raça”:
Patriarcado, Capitalismo, Imperialismo, são um só deus em três pessoas
como a Santa Trindade. Seu objetivo é o mesmo: exploração da energia
humana e natural com objetivo de lucro.114
112
Femmes. Exploitées, orpimées. Osons lutter. Cahiers pour le communisme. N.9 brochura, p.73.
113
Ibidem
114
[Panfleto] Pour les féministes révolutionnaires. Amorce de schéma de travail . Fundo Anne Zelensky. BMD
115
[Panfleto] Pour les feministes revolutionnaires . Idem.
139
Nesse mesmo texto, reflete-se que, se essas opressões se articulam, devem ser
combatidas de forma igualmente unificada. As lutas, que devem respeitar a especificidade de
cada forma de opressão, devem ser, ao mesmo tempo, “objetivamente solidárias” e
“convergentes”: “Seu objetivo comum é derrubar o ‘deus’ sob suas três formas e de
estabelecer relações de não-opressão. Todas essas lutas são a luta de classes”.116
Num outro texto de 1977, “Les féministes radicales face aux élections”117,
assinado por diferentes grupos que se reivindicam dentro dessa denominação, podemos
perceber uma série de tentativas, num único e curto texto, de formular a questão.
116
Idem.
117
Les féministes radicales face aux élections. Texto reproduzido em diferentes periódicos. Citaremos aqui
aquele publicado em Le Temps des Femmes, n.1, 1978.
118
Idem.
140
grande parte da esquerda que insistia em tudo subordinar à questão de classe que essa posição
deve ser compreendida. Nos EUA, como afirma Echols119, a tendência do “feminismo
radical” em subordinar classe e raça ao gênero e de falar hiperbolicamente sobre um
“sisterhood” universal, foi, em larga medida, àquelas posições presentes na esquerda. Na
França, para Lepinard, a necessidade do movimento feminista de emancipar-se de uma
extrema esquerda desejosa de colocá-lo sob sua tutela explicaria, em grande medida, por que
a categoria “mulheres” adquiriu centralidade estratégica, sendo mobilizada, muitas vezes, sem
uma problematização mais profunda de seu significado para a teoria e a ação feministas.120 As
editoras da revista Nouvelles questions féministes faziam, em 1980, uma autocrítica em
relação a essa postura: “ocupadas em resistir ao chapeamento (placage) das análises de classe
(...) nós privilegiamos os pontos comuns entre as mulheres”.121
119
ECHOLS, Alice. Daring to be bad: radical feminism in América 1967-1975.Minneapolis/Londres: University
of Minnesota Press, 1993, p.10.
120
LEPINARD, Éléonore. Malaise dans le concept. Différence, identité et théorie féministe. Cahier du genre,
n.39, 2005, p.114.
121
NOUVELLES QUESTIONS FEMINISTES. Editorial. Nouvelles Questions Féministes n.1, março de 1981,
p.12.
122
BILGE, Sirma. De l'analogie à l'articulation... Op. cit.
141
Capítulo 4
1
Para alguns cartazes produzidos pelo movimento ver: PAVARD, Bibia; ZANCARINI-FOURNEL, Michelle.
Luttes de femmes. 100 ans d’affiches féministes. Paris: Les Echappées, 2013.
2
CORINNE, App ; FAURE-FRAISSE, Anne-Marie ; FRAENKEL, Béatrice ; RAUZIER, Lydie Quarante ans
de slogans féministes. 1970/2010. Paris: Éditions iXe, 2011.
142
3
Um era assinado por “feministas, que como você deve ser adivinhado, são chamadas homossexuais
(homossexuelles); um outro assinado por “Mulheres do Movimento de Libertação das Mulheres que chamamos
de ‘heterossexuais’!” e um terceiro assinado por “Mulheres que vivem de outra forma”. Ver Bulletin Archives,
recherches et cultures lesbiennes, n.6, dez. 1987.
4
Todos as publicações francesas devem destinar um exemplar à Bibliotheque National de France. Para maiores
informações sobre o depósito legal, consultar o site da Bibliothèque National de France.
http://www.bnf.fr/fr/professionnels/depot_legal.html. Materiais como panfletos dependem frequentemente de
doações. Sobre a questão ver ZANCARINI-FOURNEL, Michelle. Tracts, presse et publications féministes.. .
Op. Cit.
5
DELPHY, Christine. Un féminisme matérialiste est possible. Nouvelles Questions féministes, n.4, 1982, p. 55.
143
6
KANDEL, Liliane. Liliane Kandel, Génération MLF. (entrevista realizada por Maruani Margaret e Mosconi
Nicole). Travail, genre et sociétés, n.24, 2010, p. 11.
7
ROTHENBURG, Marcia; STEPHENSON, Margaret; WITTIG, Gille; WITTIG, Monique. Combat pour la
libération de la femme. L’idiot international, n. 6, mai 1970. Republicado em: COLLECTIF, mlf//textes
premiers, Paris, Stock, 2009.
144
A segunda parte é composta por textos franceses. Essa parte começa com um
texto de Emmanuelle de Lesseps (que assina como Emmanuèle Durand) sobre o estupro –
provavelmente um dos primeiros relatos críticos do estupro publicado por uma mulher na
França –, que é seguido por diversos outros textos sobre aborto, frigidez feminina, um sobre
maternidade, além do artigo de Christine Dupont [Delphy] L’ennemi principal (O inimigo
principal). O texto original de Zelensky e Feldman, reduzido e transformado em artigo,
constituiria a terceira parte desse número. Por fim, uma quarta parte contém textos diversos:
sobre o trabalho doméstico Le travail invisible (O trabalho invisível), da argentina Isabel
Larguia, La révolution dans la révolution à Cuba (A revolução na revolução em Cuba),
assinado por Anne, além de dois textos assinados por Jean-François Godchaud, um militante
trotskista e único homem a figurar na publicação, por causas que desconhecemos. Para
Françoise Picq, esse número de Partisans já anunciava os grandes temas que norteariam o
feminismo nos anos 1970 na França. A segunda parte seria publicada sob a forma de livro
pela editora Maspero, em 1972.14
14
Partisans, n.57, jan.-fev.1971.
15
DELPHY, Christine. Nos amies et nous. Les fondements cachés de quelques discours pseudo-féministes
[1977]. In : DELPHY, Christine. L’ennemi principal 1... Op.cit., p. 166.
16
Ibidem, p.168.
146
Nesse jornal, não havia distinção entre teoria, testemunho, debate, experiência,
ficção, “tudo se mistura, se catapulta”.19 Qualquer mulher podia enviar textos, participar das
reuniões, criticar. Não havia um comitê editorial que selecionasse os artigos ou uma instância
central de decisão. “O jornal não é escrito por uma equipe de redação”, afirmam no jornal de
n.2, mas por “todas aquelas que tenham desejo de escrever e que podem fazê-lo”.20 Cada
número tem sua história e sua equipe. A periodicidade era incerta, ou, como elas próprias
definiam, era “menstrual”. A tiragem, segundo o boletim de n.2, era de 35.000 exemplares,
difundidos em bancas de revistas, em feiras, escolas e outros locais. Uma grande parte do
processo de confecção e difusão era feito pelas próprias militantes.
Esse jornal é bastante representativo do movimento nos seus primeiros anos. Ele
exprime um momento de hegemonia de uma certa concepção de estruturação do movimento,
que recusava organização, ordem, separação entre teoria e prática, compartimentação. É
também um retrato de um movimento que, apesar das divergências, conseguia construir ações
em comum.
A partir de 1974, o movimento entraria numa nova fase, e sua imprensa refletiria
esse novo contexto. Há uma ruptura de uma unidade anterior e, como afirma Picq21, “sobre a
decomposição da unidade desfeita” florescem as tendências e seus diversos jornais.22
Diferentes orientações do feminismo se exprimem na plêiade de revistas e jornais que
aparecem nesse contexto: Les Nouvelles Feministes, da Ligue du droit des femmes;
17
Partisans n. 68, nov.-dez. 1972.
18
Em 1973, a Maspero publicaria esses dois artigos em um livro intitulado La femme potiche et la femme
bonniche. Pouvoir bourgeois et pouvoir mâle.
19
PICQ, Françoise. Libération des femmes...Op. cit., p.144.
20
Comment les femmes torchonne. Torchon brûle, n.2, s.d. [data aproximada:1971]
21
PICQ, Françoise. Libération des femmes...Op. cit., p.246-247.
22
Antes de 1974, poucos eram os jornais/revistas/boletins feministas publicados na França: um boletim do grupo
anglófono NOW or Never, publicado a partir de 1973; a revista Choisir, a partir de abril de 1973 pelo grupo
homônimo criado por Gisele Halimi.
147
L’Information des Femmes e Le Temps des Femmes; os jornais ligados ao grupo “Psicanálise
e Política”: Le Quotidien des Femmes, Des Femmes en Mouvements e Des Femmes en
Mouvements Hebdo; os jornais da tendência “luta de classes”, dentre eles, Les Pétroleuses,
Femmes Travailleuses en Lutte e, mais tarde, Le Cahier du Féminisme; La Revue d’en Face
que congrega antigas militantes da tendência luta de classes mas também de outras
orientações; Questions Féministes “revista teórica feminista radical”; Elles Voient Rouge,
revista de mulheres comunistas; assim como diferentes boletins de grupos, como Nosotras, do
Grupo Latino-Americano de Mulheres, Herejias, igualmente produzido por mulheres latino-
americanas, Femmes algeriennes en lutte, dentre outros.23 Em sua grande maioria, esses
periódicos tiveram uma duração efêmera, em razão de dificuldades financeiras ou da
brevidade da existência dos grupos que os promoviam, particularmente pelo primeiro fator.
Uma grande parte dessa imprensa dos anos 1970 era de tipo tradicionalmente
militante, como afirma Kandel, pelo suporte adotado – trata-se frequentemente de boletins
mimeografados com periodicidade e apresentação variadas –, pela natureza do trabalho – isto
é, as militantes se ocupam não somente da redação, mas também da fabricação e da difusão –
e pelo lugar ocupado por essa publicação, normalmente um subproduto de um grupo. Esse
tipo de publicação enfrentou dificuldades de financiamento e de funcionamento. Trata-se de
uma imprensa que vive “exclusivamente do trabalho gratuito e anônimo das mulheres que
colaboram”24, sustentado, em grande medida, por assinaturas e vendas igualmente militantes.
Mas, não havia apenas essa imprensa “militante”. No polo oposto, Kandel
identifica produções de caráter mais institucionalizado e/ou profissional. Entre esses dois
polos, surgiu uma gama de publicações de caráter híbrido. Particularmente a partir do final
dos anos 1970, algumas revistas “militantes” se aproximam desse polo mais “profissional”,
sem, entretanto, perderem algumas de suas características originais.
23
PICQ, Françoise. Libération des femmes...Op. cit., 2011, p.246-248 e capítulo 22 “La galaxie féministe”.
24
KANDEL, Liliane. Des journaux et des femmes. Pénélope, n° 1, 1979.
148
algumas dessas revistas visavam suscitar uma reflexão teórica mais aprofundada no seio do
movimento e abrir espaço para a publicação de textos mais longos e densos.
Uma revista de esquerda que foi particularmente aberta ao MLF foi a revista Les
temps modernes. Nesta foram publicados diversos artigos sobre feminismo e temáticas que
lhes eram caras. No início de 1974 todo um número especial da revista foi escrito por
feministas, intitulado Les femmes s’entêtent. Esse tipo de publicação tinha uma certa abertura
para o movimento e para sua forma de se exprimir. Sobre esse número Beauvoir afirma:
A liberdade foi princípio que presidiu a reunião destes. Não estabelecemos
nenhum plano preconcebido. As mulheres – dentre as quais algumas
permaneceram anônimas – espontaneamente escolheram falar de temas que
lhes eram caros e nós acolhemos os seus escritos.26
25
STORTI, Martine. Je suis une femme pourquoi pas vous ? 1974-1979: Quand je racontais le mouvement des
femmes dans Libération. Paris: Ed Michel de Maule, 2010.
26
BEAUVOIR, Simone de. Preface. In: Les femmes s’entêtent. Paris: Gallimard, 1975, p.1.
149
27
Para a importância desses manifestos ver: SIRINELLI, J. Intellectuels et passions française. Manifestes et
pétitions au XXe siècle. Paris: Gallimard, 1996.
28
Para maiores informações sobre esse manifesto e sobre o perfil daquelas que o assinaram ver: PAVARD,
Bibia. Qui sont les 343 du manifeste de 1971? In: BARD, Christine. Les féministes de la deuxième vague.
Rennes: PUR, 2012.
29
Un appel de 343 femmes. Reproduzido em: COLLECTIF. COLLECTIF. MLF. Textes premiers. Paris: Stock,
2009, p. 176.
30
Para o relato de algumas dessas reações, ver: PISAN, Annie; TRISTAN, Anne. Histoires du MLF. Paris:
Calmann-Levy, 1977, p. 67-69.
31
LESSEPS, Emmanuelle de; HENNEQUIN, Claude. Trois ans de MLF. Actuel n. 25 (novembre 1972).
32
Ibidem.
33
Féministes Révolutionaires. Torchon brûle n.5, s.d., p.9 [data aproximada: primeiros meses de 1973].
150
Libération des femmes, que republica os textos da segunda parte do número especial da
Partisans de mesmo nome, evoca-se a ideia de criar uma coleção, e é anunciada a publicação
de um livro intitulado Révolte des femmes, para 1972. Sugere-se também o envio de
proposições e de manuscritos individuais ou coletivos para a caixa postal do movimento.
Todos esses elementos nos indicam a existência de diversos esforços para materializar, sob a
forma de livro, a reflexão que era realizada no seio do movimento. Entretanto, somente
algumas dessas tentativas foram efetivadas. De todos os livros mencionados34, além do Le
livre de l’oppression des femmes, apenas dois outros chegaram ao final do processo:
Maternité esclave35 (Maternidade escrava) e um livro de memórias, publicado em 1976,
Mémoires du MLF (Memórias do MLF)36.
Le livre de l’oppression des femmes37, publicado em 1972, foi escrito por diversas
feministas e era composto por textos, poemas e trocadilhos sobre diferentes temas. Elas
afirmam, nesse trabalho, que um livro sobre o trabalho doméstico seria lançado
posteriormente, o que não parece ter ocorrido. A ideia de publicar Maternité esclave surgiu
logo após o Manifesto das 343 mulheres que declaram ter abortado, no verão de 1971. A ideia
era escrever um livro coletivo sobre o aborto mas, durante as reuniões, surgiu a ideia de
escrever sobre a maternidade.
A maioria desses livros foi produzida de forma coletiva. Para algumas, como
aquelas que redigiram Maternité esclave, o caráter coletivo da produção de conhecimento é
uma consequência da própria organização do movimento, processo que não era desprovido de
dificuldades:
Nós nos recusámos a escrever sozinhas, nós nos encontrávamos para agir,
amar, rir, nós também queríamos escrever juntas. Escrever de forma
coletiva, em um grupo de dez pessoas não é fácil para pessoas que, como
todo mundo, aprenderam a escrever sozinhas e a ter inveja do que as pessoas
escrevem. Tínhamos reuniões regulares, nas quais discutíamos coletivamente
e, depois, aquelas que entre nós tinham vontade, escreviam um texto a partir
desses encontros e debates, outras reescreviam esse primeiro esboço, até que
o que capítulo fosse aprovado por todas.38
34
Infelizmente não encontramos traços dos manuscritos dos livros que não chegaram a ser publicados. Estes
tematizam questões chaves e poderiam contribuir de forma importante para a reconstituição das ideias desse
movimento, incluindo visões divergentes presentes no mesmo. Provavelmente alguns se perderam, mas a doação
de novos arquivos permitirá, talvez, que alguns desses textos sejam consultados posteriormente.
35
COLLECTIF. Maternité esclave, Paris, Union Générale d'Editions, 1975.
36
PISAN, Annie; TRISTAN, Anne. Histoires du MLF. Paris: Calmann-Levy, 1977.
37
COLLECTIF. Le Livre de l’oppression des femmes. Paris: Pierre Belfont, 1972.
38
Ibidem, p. 6.
151
39
COLLECTIF. Maternité esclave. Op. cit., p. 316.
40
Les collections de femmes: une utopie ?, Les Temps des Femmes, n.8, nov. 1978, p.14.
152
relação ao MLF: “Não se trata de uma editora ‘feminista’, não é a editora do MLF, mas a
editora das mulheres”.41
A maioria dos textos publicados nos primeiros anos do movimento não eram
assinados com os nomes verdadeiros de suas autoras, preferindo-se “mulheres”(des femmes),
“algumas militantes” (quelques militantes), “mulheres do MLF” (des femmes du MLF) ou
pseudônimos. Não há assinaturas nem no Le Torchon Brûle, nem no número especial de
Partisans (com exceção do texto Gaudchaud que não pertencia ao movimento e da escritora
Christine Rochefort, que sempre assinou seus textos).
41
DES FEMMES. Catalogue Des femmes, 1974-1979, p. 15.
42
Para algumas informações sobre essa editora e os títulos publicados consultar: KANDEL, Liliane. Une édition
féministe est-elle possible ? Clio. Histoire‚ femmes et sociétés. n.13, 2001.
43
COLLECTIF. Le sexe du travail. Grenoble : Presse Universitaire de Grenoble, 1984 ; BATTAGLIOLA,
Françoise ; COMBES, Danièle ; DAUNE-RICHARD, Anne-Marie, ; DEVREUX Anne-Marie ; FERRAND,
Michèle, LANGEVIN Anette. A propos des rapports sociaux de sexe. Parcours épistemologiques [1986]. Paris:
CSU, 1990.
44
Nos Estados Unidos, por razões próprias ao contexto desse país, no final dos anos 1960 e início dos anos 1970,
alguns livros seriam publicados por algumas de suas integrantes do movimento. Kate Millet publica, em 1970,
Sexual Politics, uma adaptação da sua tese de doutorado, considerado o primeiro trabalho acadêmico feminista
em crítica literária. O livro foi lido pelo movimento fundamentalmente como uma análise da opressão feminina
em termos de “patriarcado”. Firestone, no mesmo ano, publica The Dialectic of Sex. Esses livros tornaram-se
referências não somente movimento feminista estadunidense mas também circularam e foram traduzidos em
outras línguas e são frequentemente citados quando se trata de teoria feminista nos anos 1970.
153
individual, publicados. Uma produção deste tipo é composta, sobretudo, por traduções de
livros de diferentes países, particularmente uma produção anglófona.45
Temos como hipótese que esse quadro influenciou, de alguma forma, a formação
da categoria french feminism. A confusão entre “movimento feminista” e “teóricas
feministas” levou a uma identificação do primeiro com um conjunto de autoras que
publicaram livros durante os anos 1970, Julia Kristeva, Hélène Cixous e Luce Irigaray, que
não necessariamente tinham uma vinculação com o movimento. Mesmo após as inúmeras
críticas à ideia de um french feminism46, o termo continua presente em algumas obras dos
anos 2000.
45
Somente nos anos 1990 alguns dos artigos dispersos em diferentes revistas e livros foram reunidos e
publicados sob a forma de antologia. Sexe, race et pratique du pouvoir. L’idée de nature, publicado em 1992,
reunia textos de Colette Guillaumin publicado desde os anos 1970; L’anatomie politique o seria em 1991, La
construction sociale de l’inégalité des sexes. Des outils et des corps de Paola Tabet, em 1998. Christine Delphy,
que já havia publicado um livro desse gênero, em 1984, em inglês, Close to home: a materialist analysis of
women, publicaria finalmente, em 1998, uma antologia em dois volumes de textos publicados desde 1970.
46
DELPHY, Christine. DELPHY, Christine. L’invention du French Feminism: une démarche essentielle. [1996]
In: DELPHY, Christine. L’ennemi principal 2. Penser le genre. Paris: Syllepse, 2009; MOSES, Claire. La
construction du ‘French Feminism’ dans le discours universitaire américain. Nouvelles Questions Feministes,
vol. 17, n.1 ; VARIKAS, Eleni. Féminisme, modernité, postmodernisme: pour un dialogue des deux côtés de
l’océan. In: Futur Anterieur 1993.
47
BARD, Christine. Jalons pour une histoire des études féministes en France (1970-2002). Nouvelles Questions
Féministes, vol.22, 2003/1, p.22.
154
As revistas e jornais publicados nos anos 1960 e 1970 constituem uma fonte
privilegiada para se compreender as movimentações políticas desse período na França.49 Para
o feminismo, tratar-se-ia também de um instrumento por excelência de divulgação de suas
ideias sob a forma escrita, microcosmos para importantes debates e trocas que marcam a
reflexão feminista deste período, constituindo um objeto fundamental para reconstituir alguns
elementos da dinâmica dessas trocas, as sociabilidades intelectuais, mas também as tensões,
48
LAGRAVE, Rose-Marie. Recherches féministes ou recherches sur les femmes ? Actes de la recherche en
sciences sociales, 1990.
49
Ver, entre outros: FOREST, Philippe Histoire de Tel Quel (1960-1982). Paris : Seuil, 1995 ;
GOTTRAUX, Philippe. Socialisme ou Barbarie. Un engagement politique et intellectuel dans la France de
l'après-guerre. Laussane: Payot, 1997; MANTONTI , Frédérique. Intellectuels communistes. Essai sur
l’obéissance politique. La Nouvelle Critique (1967-1980). Paris, La Découverte, 2005, 414 pages.
155
conflitos e rupturas. No entanto, poucos são os trabalhos que procuraram analisar essa
produção.50
Algumas das peças que nos permitem reconstituir alguns traços da história da
revista foram forjados no momento do conflito e da controvérsia que provocou a cisão no seio
do coletivo de redação da revista, e que teve como consequência seu fim, em 1980. Esse
conflito deu origem a uma disputa jurídica em torno de uma nova publicação: Nouvelles
Questions Féministes, lançada em 1981 por três antigas integrantes da revista. As outras
integrantes de Questions Féministes consideravam que a publicação da nova versão da revista,
com formato e nome similares, constituía uma quebra do contrato firmado por suas
integrantes ao acabar com a publicação. É a partir dessa ruptura e da disputa jurídica que se
seguiu, que alguns materiais foram reunidos para serem anexados ao processo, dado que tal
processo girava em torno da nova publicação, Nouvelles Questions Féministes.52 Estas fontes
guardam, nesse sentido, marcas desse contexto e dessa disputa, que serão apresentados no
final do capítulo. Mas consultamos também outras fontes, oriundas de outros fundos de
50
No final dos anos 1970, ainda no bojo das movimentações da segunda onda, Liliane Kandel publica um
balanço da imprensa feminista francesas dos anos 1970. Após esse artigo, poucos são os trabalhos que
prosseguiram essa tarefa. O guia organizado pela BnF Des sources pour l’histoire des femmes, no item
“imprensa feminista” faz referência a três trabalhos sobre o tema, nenhum deles relativo à “segunda onda”.
Recentemente os Archives de Culture et Recherches lesbiennes produziram um guia bastante completo das
publicações feministas e lésbicas dos anos 1970 e 1980. Para um panorama da imprensa feminista neste período,
consultar: KANDEL, Liliane. Journaux en mouvement: la presse féministe aujourd’hui. Questions féministes n.
4, nov. 1978 e LAROCHE, Martine; LARROUY, Michèle. Le collectif des Archives Recherches Cultures
lesbiennes. Mouvements de presse des années 1970 à nos jours, luttes féministes et lesbiennes. Paris: éditions
ARCL, 2011.
51
Questions féministes (1977-1980). Paris: Syllepse, 2012.
52
A revista Nouvelles Questions féministes começa a ser publicada em. março de 1981.
156
arquivo, que nos forneceram elementos num quadro distinto, como os arquivos da biblioteca
da Maison des Sciences de L’homme, dentre outros.
53
DELPHY, Christine. La revue Nouvelles Questions féministes. (texto mimeografado), s.d. , p. 3. Dossiê
Christine Delphy. Archives Recherches Cultures lesbiennes.
54
KANDEL, Liliane. Un tournant institutionnel: le colloque de Toulouse. In: BASCH, Françoise ; BRUIT,
Louise ; PICQ, Françoise ; SCHMIDT, Pauline ; ZAIDMAN, Claude. (org.). 25 ans d'études féministes:
l'expérience Jussieu, Paris, Publications de l'Université Paris 7-Denis-Diderot, 2001.
55
Feminist review, por exemplo, propunha ser não somente um espaço para debater “perpectivas políticas e
estratégicas do Movimento”, mas também ser um “fórum para trabalhos em andamento, para pesquisas atuais e
debates no seio do women’s studies”. Contracapa. Feminist Review , n.1, 1979.
157
parte do FMA. As duas, além de Monique Wittig, participariam de reuniões das feministas
revolucionárias. Mas, num contexto mais universitário, outros encontros se desenvolveram.
56
Notas esparsas sem título e autor. Fundo Nicole-Claude Mathieu.
57
Procuramos registros nos arquivos da Université Paris 8- Vincennes-Saint-Denis desse curso, mas nada
encontramos nesse sentido.
58
Mathieu já havia publicado, no ano de 1974, num periódico do Centre universitaire de recherche sociologique
de Amiens o texto “Les catégories de sexe em sociologie”.
59
Bulletin du C.E.R.P.P n. 1, janeiro de 1975. Amiens Centre d’Étude et de Recherches Pluridisciplinaires em
Psychologie. Nos comentários ao processo menciona-se um buletim do CERPP cujo umário com quatro artigos
teria sido discutido em diversas reuniões.
158
60
GUILLAUMIN, Colette. Sexe, race et pratique du pouvoir. Op. cit., p. 5.
61
JENNY, Jacques. Rapports sociaux de sexe et autres rapports de dominance sociale: pour une intégration
conceptuelle des rapports sociaux fondamentaux. Cahiers du GEDISST, 1995, n° 13, p. 109.
62
Stevi Jackson cita também os nomes de Mary McIntosh mas não encontramos menção ao seu nome nos
documentos consultados. (1996, 29)
63
MSH Information. “ Catégories de sexe et catégories de classe ”, M.S.H Information. Bulletin de la Fondation
Maison des Sciences de L’homme, n.13, juin 1976 ; Documentos MSH (sobre o Groupe de travail franco-
britannique) . Paris, le 2 juin 1975. Archives de la Bibliothèque de la Maison des Sciences de l’homme.
159
67
MOLYNEUX, Maxine. “ Beyond the Domestic Labour Debate ”, New Left Review, n° 116, 1979, p.4.
68
Documentos MSH (sobre o Groupe de travail franco-britannique).
161
Uma terceira reunião teria sido realizada nos dias 12 e 13 de abril de 1976, na
MSH, com o tema “Em que medida as categorias e as práticas das instituições do Estado
estabelecem a noção de dependência econômica das mulheres casadas?”.71 A discussão teria
se apoiado em textos de Hilary Land e Jalna Hanmer.
Não temos registros de outras reuniões. Segundo uma carta de Christine Delphy à
M. Heller72, diretor à época da MSH, a última reunião teria sido realizada em março de 1977,
em Londres. Por falta de recursos financeiros da SSRC britânica, o grupo não pôde mais se
reunir, embora seus membros tenham continuado a manter contato informalmente. Trata-se de
um momento no qual os recursos destinados para pesquisas sobre a temática eram parcos.
69
MATHIEU, Nicole-Claude. “Paternité biologique, maternité sociale ”. In: MICHEL, Andrée (org.). Femmes,
sexisme et sociétés. Paris: Presses Universitaires de France, 1977. Este texto seria republicado em MATHIEU,
L’anatomie politique... Op. Cit.
70
GUILLAUMIN, Colette. Pratique du pouvoir et idée de Nature. Questions Féministes n.2, fevereiro de 1978 e
n.3 maio de 1978. Republicado em GUILLAUMIN. Sexe, race et pratique du pouvoir. Op. Cit.
71
MSH Information. Op. cit., p. 19.
72
Christine Delphy a M. Heller. 30 novembre 1978. (Fundo Nicole-Claude Mathieu)
162
artigo de Mathieu “Ignored by some denied by others: the social category in Sociology”, em
197773, e uma brochura de textos de Christine Delphy The Main Enemy também em 1977.74
Sobre um dos encontros que parece ter propiciado a criação do grupo franco-
britânico, Stevi Jackson conta que Christine Delphy e Diane Leonard se conheceram, em
1972, na International Sociological Association. Dois anos depois, Delphy participaria da
conferência da British Sociological Association (BSA), cujo tema era “Sexual division and
Society”, que seria coordenado por Leonard e que daria origem, em 1976, a uma publicação
na qual figuraria o texto “Continuities and discontinuities in marriage and divorce” – o
primeiro texto de Delphy publicado em inglês. Delphy teria uma longa parceria com Leonard,
com a qual publicaria, em 1992, o livro Familiar exploitation: A New Analysis of Marriage in
Contemporary Western Societies.
A ideia era criar um espaço de debate teórico, mas um debate numa perspectiva
teórico-política precisa: o feminismo radical. Essa corrente, fundada em “questionamentos
subversivos”, após ter “impulsionado todas as grandes campanhas feministas”76, estaria
abafada. O feminismo estaria ameaçado pela presença de uma dupla direita: a “recuperação
esquerdista” e a ideologia da “neo-feminilidade”. Essas duas correntes, “cada uma a sua
73
MATHIEU, Nicole-Claude. Ignored by some denied by others: the social category. In: Sociology Women's
Research and Resources Centre Publications, 1978.
74
DELPHY, Christine. The Main Enemy. Londres: WRRCP, 1977.
75
DELPHY, Christine. La revue Nouvelles Questions Féministes. Op. cit., p. 1.
76
QUESTIONS FEMINISTES. Variations sur des thèmes communs. Questions Féministes, n. 1, nov. 1977, p.6.
163
77
Ibidem, p.6.
164
A revista, que se identifica como “revista teórica feminista radical”, busca criar
um espaço para um debate teórico. A teoria, frequentemente apreendida como equivalente a
hermetismo, usada para designar textos inacessíveis e apanágio de uma classe social, ganha
uma definição “política” cujo objetivo é restituir seu verdadeiro sentido. Por teoria,
compreende-se “todo discurso, quaisquer que seja a linguagem, que tenta explicar as causas e
funcionamento da opressão das mulheres” e que “tenta tirar conclusões políticas, que propõe
uma estratégia ou uma tática ao movimento feminista”.78 A proposta é que o teórico seja um
problema de todas e que cada uma possa não somente consumir mas produzi-lo. Dentro dessa
proposta, a ideia é publicar panfletos, obras literárias, textos abstratos, que são colocados no
mesmo plano no intuito de elaborar uma “ciência feminista”.79
A crítica à ideologia naturalista assim como ideia que todas as mulheres fazem
parte de uma mesma classe são considerados como pré-requisitos do feminismo radical. Estes
são os dois pilares do texto em questão e constituem a base de união do coletivo de redação.
Uma grande parte do editorial constitui uma crítica virulenta à ideia de uma
natureza feminina e de uma “diferença entre os sexos”. As categorias “homens” e “mulheres”
são categorias historicamente construídas e, portanto, passíveis de serem historicamente
eliminadas através da destruição do sistema de relações que as constitui. “Destruir a diferença
78
Ibidem, p.3.
79
Ibidem, p.4.
80
Para versão em inglês ver: Editors of Questions feminists. Variations on some common themes. Feminist
Issues, vol.1, n.1, summer 1980.
166
de sexo”, afirmam, é “suprimir a hierarquia que existe atualmente entre dois termos no qual
um está em referência a outro e inferiorizado nessa comparação”.81
Essas análises são consideradas como insuficientes dado que situam a crítica das
mentalidades e instituições sexistas somente no plano das mentalidades. Uma análise
materialista deveria vincular “as mentalidades, as instituições, as leis sexistas às estruturas
sócio-econômicas que as sustentam”.84 Essas estruturas formam um sistema específico em
relação ao capitalismo: o patriarcado. Não há “feminilidade”, “mulher”, “eterno feminino”,
mas um grupo social cujos encargos são bem conhecidos (dupla jornada, baixos salários,
desqualificação social, encargo do cuidado de velhos, crianças e doentes, etc). O objetivo do
feminismo é justamente denunciar esse sistema de opressão, as relações sociais que são a base
81
QUESTIONS FEMINISTES. Variations sur des thèmes communs. Op. cit, p.5.
82
Ibidem, p.5.
83
Ibidem, p.6.
84
Ibidem, p.29.
167
O texto em questão foi escrito de forma coletiva, mas cada parte separadamente
por uma ou duas integrantes da revista. Na versão final não constam, entretanto, os nomes das
autoras de cada parte. Mas, na versão publicada em inglês87 podemos identificar, pelas
iniciais, quem escreveu cada uma. Algumas das variações terminológicas estão ligadas a esse
processo de produção do texto. Podemos citar como exemplo o uso dos termos “sexo” ou
“gênero”. A categoria “classes sociais de gênero” (classes sociales de genre)88 é empregada
por Christine Delphy e Monique Plaza. Nicole-Claude Mathieu prefere “classes sociais de
sexo” (classes sociales de sexe)89 e “sistema de sexos sociais”.90 Para além dessas variações,
encontramos também diferentes formas de abordar alguns conceitos que serão trabalhados
posteriormente. Embora o coletivo compartilhasse uma perspectiva teórica, há, obviamente,
diferenças no seio do grupo.
85
Ibidem, p.19.
86
Ibidem, p. 18.
87
Editors of Questions feminists. Variations on some common themes. Feminist Issues, vol.1, n.1, summer 1980.
88
QUESTIONS FEMINISTES. Variations sur des thèmes communs... Op. cit., p.6.
89
Ibidem, p.16.
90
Ibidem, p.18.
91
No jornal Le monde de 1 outubro de 1971 Beauvoir afirmava: “Assumi a direção do Idiot International do 14
de setembro ao 27 de abril de 1971 para me solidarizar com essa imprensa ‘de oposição’ e revolucionária’ cujo
papel eu considero necessário numa sociedade que restringe a liberdade de expressão e cujos jornais ordinários
camuflam ou calam a verdade”. Dossiê Simone de Beauvoir. BMD.
168
No caso de Questions féministes havia claramente uma proximidade teórica. Mas, isso não
implicou uma participação ativa no coletivo de redação. Seu nome não consta nos poucos
pareceres de artigo e, segundo membros do coletivo, ela não participava das reuniões da
revista. Não encontramos também nenhuma carta relativa à essa questão entre os anos de
1976 e 1978.92
Recepção da revista
92
Lettres- Simone de Beauvoir. BnF.
93
Storti Martine (1977). Questions à la revue Questions féministes. Libération, 24 novembre. Republicado em:
STORTI, Martine. Je suis une femme, pourquoi pas vous ? Op. cit., p 169.
94
Ibidem.
169
95
PICQ, Françoise. Féminisme, matérialisme, radicalisme. La revue d’en face, n.13, hiver 1983, p. 41.
96
Ibidem, p. 40.
97
N.H. Questions féministes. Histoire d’elles, n.3, 1977.
98
Texto não publicado. Fundo Nicole-Claude Mathieu
170
deveria ser caracterizada como uma grande simbiose mas como “questionamentos de nossas
contradições, como revelação das modalidades dissimuladas e perniciosas da opressão no
interior da nossa luta”.99 Nesse sentido, a crítica não deve ser tomada como um ataque
pessoal, o que seria alheio às intenções da revista. Um discurso se constitui socialmente,
afirma Plaza, e o que a interessava eram os “determinantes sociais”. Por isso, não se trata de
pensar no indivíduo, mas o “envelopamento” do autor nas regras, esquemas que lhe são
exteriores. A crítica deve ser pensada não como uma afronta à unidade, mas como uma forma
de construir verdadeiramente uma prática militante:
A crítica é positiva não somente quando permite a instauração de uma forma
não moralizadora de solidariedade política, mas também na medida em que
ela procede necessariamente de uma análise plena e positiva de nossa
opressão, de uma prática militante plena e positiva contra nossa opressão.100
Cabe ressaltar que o artigo de Plaza seria particularmente atacado. Para N.H, trata-
se de uma “critica impiedosa, para não dizer sangrenta, de Luce Irigaray”.101 Acusa-se até
mesmo de desonestidade intelectual no uso de citações.
99
PLAZA, Monique. À propos de la critique [1977]. In : QUESTIONS FEMINISTES. Questions féministes
1977-1980. Paris : Syllepse, p.117.
100
Ibidem, p.117.
101
N.H. Questions féministes. Histoire d’elles, n.3, 1977.
102
Processo comentado- Fundo Nicole-Claude Mathieu.
103
DELPHY, Christine. Trente ans de Nouvelles Questions Féministes. Nouvelles Questions Féministes, vol. 30,
n° 2, 2011, p. 7.
171
104
“Après la reunion ” [texto sem data e sem assinatura]. Fundo Nicole-Claude Mathieu. ARCL.
105
N.H. Questions féministes. Histoire d’elles, n.3, 1977.
106
Idem.
172
entre ambos os termos. “Não se pode reivindicar o ‘direito à diferença, dado que isso
significa, no contexto atual, o direito à opressão”.107
Temas de debate
107
De quoi est-il question(S) ? (Réponse à l’article sur Questions féministes). Fundo Nicole-Claude Mathieu.
ARCL.
108
Questions féministes. Rouge n.527, 18 décembre 1977, p.12.
109
Questions féministes. Cahiers du féminisme, n.2, dezembro de 1977, p. 42.
110
No primeiro número, foi traduzido o artigo “Violence et controle social des femmes” da pesquisadora inglesa
Jalna Hanmer; “Antagonisme des sexes dans le Herefordshire” de Ann Whitehead, publicado originalmente num
livro organizado por Diana Barker e Sheila Allen (nota), um artigo de Sally Maintyre “Qui veut des enfants?” no
n. 3, “Capitalisme, patriarcat et ségrégation professionnelle des sexes” de Heide Gartman, no número 4
publicado originalmente na revista Signs; novamente um artgo de Jalna Hanmer , escrito em colaboração com
Pat Allen “La Science de la reproduction – solution finale?” ; “Le développement contre les femmes” da
pesquisadora estadunidense Irene Tinker e duas traduções no último número.
173
Para além das questões mais “teóricas” e de fundo, podemos destacar alguns
temas como: trabalho, estupro, lesbianismo, reprodução artificial, prostituição, entre outros.
Alguns desses temas estão diretamente ligados à dinâmica do movimento no final dos anos
1970. Destacamos também temas inovadores como virilidade, delinquência das mulheres
assim como uma tentativa de lançar um debate sobre violência e terrorismo.
111
LESSEPS, Emmanuèle de. Héterosexualité et féminisme. In : QUESTIONS FÉMINISTES. Questions
féministes 1977-1980. Op. cit., p.838.
112
LESSELIER, Claudie. Les regroupements de lesbiennes dans le mouvement féministe parisien. Groupe
d’études féministes de l’Université Paris VII (1991) Crises de la société, féminisme et changement. Paris, Revue
d’en face/Éditions Tierce, p. 96.
174
O trabalho militante
Tal como a maior parte da imprensa feminista da época, a revista funcionava com
base no trabalho militante das suas integrantes. Mas, diferentemente de jornais como Torchon
brûle, parte do processo era realizado fora do núcleo central da revista. A revista foi
publicada, desde o primeiro número por uma editora militante, a editora Tierce ainda que uma
grande parte do trabalho de publicação era realizado pelas integrantes do coletivo de redação
da revista. Outro elemento importante é que, tal como muitas publicações feministas da
época, Questions féministes enfrentou dificuldades financeiras. Os pedidos de assinatura são
constantes e alguns documentos internos do coletivo mostram que a questão do financiamento
da revista colocou em risco a continuidade da publicação.
113
PLAZA, Monique. La rupture épistémologique fondamentale. Questions féministes (1977-1980). Paris:
Syllepse, p. 401.
175
Segundo Kandel115, a revista tinha uma tiragem de 3.000 exemplares. Para efeito
de comparação, podemos citar a quantidade de exemplares publicadas por outras revistas:
Cahiers du féminisme, Elles voient rouge, Revue d’en face tinham essa mesma tiragem.
Outras tinham uma difusão bem maior como Histoire d’elle 30.000 e Le quotidien des
femmes, publicado pela editora Des femmes, 60.000 exemplares.
Feminist Issues
A ideia de publicar uma versão da revista em inglês parece ter tomado corpo logo
após a publicação da versão francesa. Os contatos com Mary Jo Lakeland e Susan Wolf,
ambas residentes em Berkeley, começaram no ano de 1978. Monique Wittig, ao que tudo
indica, intermediou esse contato.117 As cartas mostram um grande entusiasmo pela publicação
em inglês da revista118 mas também as dificuldades para encontrar um editor e conseguir um
financiamento para a publicação.
114
30 DE NOVEMBRO DE 1978. Carta de Delphy à M. Heller.
115
KANDEL, Liliane. Des journaux et des femmes. Pénélope, n° 1, 1979.
116
Questions féministes workhop. Off our backs, vol. 10, n.1, jan. 1980.
117
28 de junho de 1978 (Carta) Mary Jo Lakeland e Susan Wolf à Colette, Christine, Emanuelle, Nicole-Claude
e Monique.
118
Bercley, january 24 1979. Carta Mary Jo Lakeland e Susan Wolf à Colette, Christine, Mano, Nicole e
Monique.
176
Imagem 4
177
119
Feminist Issues, vol. 1, n.3, verão de 1981.
178
Capítulo 5
Antinaturalismos feministas
1
Ver: DELPHY, Christine. Avant-Propos. In: DELPHY, Christine. L’ennemi principal 1. Paris: Syllepse, 2009.
2
KANDEL, Liliane. “Liliane Kandel, Génération MLF ” ,[Entrevista realizada por Maruani Margaret, e
Mosconi Nicole, Travail, genre et sociétés, n.24, 2010, p. 113.
3
Entrevista realizada com a autora em 2013 em Paris.
4
[Panfleto] sem data e sem título que termina com a seguinte frase “Mulheres de todas as condições, todas
irmãs, lutemos juntas por nossa libertação”. [data aproximada: primeiros anos dos anos 1970]. Fundo Anne
Zelensky. BMD
5
LÖWY, Llana; ROUCH, Hélène. Genèse et développement du genre: les sciences et les origines de la
distinction entre sexe et genre. Cahiers du Genre n. 34, 2003.
179
6
GUADILLA, Naty. Libération des femmes. Le MLF, PUF, 1981.
7
PICQ, Françoise. LIbération des femmes...Op. cit., p. 326.
8
COLLIN, Françoise. Diferença dos sexos (teorias da) [verbete]. In: HIRATA, Helena. LABORIE, Françoise et.
al. Dicionário Crítico do feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
9
PFEFFERRKON, Roland. Genre et rapports sociaux de sexe. Lausanne: Éditions page deux, 2012.
10
Questionário reproduzido em Politique Hebdo n.9, 3-9 dezembro de 1970.
180
para nos libertar das mulheres – domésticas, esposas, seres humanos, do sexo que concebe,
etc.11
11
Cathy Berheim [1983] apud FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL, Dominique. Controverses et anathèmes au sein
du féminisme français des années 1970. Cahiers du genre, n.39, 2005, p. 16.
12
TOSI, Lucia. Algunas reflexiones a proposito del articulo de Françoise Collin…. Nosotras, n.23/24,
novembro/dezembro de 1975.
13
DELPHY, Christine. Proto-féminisme et anti-féminisme. Les temps modernes, n. 376, mai 1975, p.1477.
14
Ibidem, p.1477.
15
Ibidem, 1477
181
Monique Wittig procura mostrar, tendo por base os argumentos desenvolvidos por
Colette Guillaumin sobre a raça, que a marca não preexiste à opressão, isto é, uma diferença
que é considerada como uma percepção direta e física não seria senão uma “construção
mística e sofisticada, uma ‘formação imaginária”16. Para Wittig, “a mulher” seria um “mito”
criado para “tornar as coisas mais confusas”. 17 Por isso, ela considera que uma das primeiras
tarefas do movimento era “dissociar cuidadosamente “as mulheres (a classe no interior da
qual combatemos) e ‘a mulher’ o mito. Para se constituir enquanto classe, as mulheres
deveriam “matar o mito da mulher” mesmo nos seus aspectos mais sedutores, forjar uma
consciência de classe e combater esse sistema que constrói esse sistema de classes.18
16
WITTIG, Monique. On ne naît pas femme... OP. cit., p. 46.
17
WITTIG, Monique. On ne naît pas femme... OP. cit., p.49.
18
Idem.
19
GUILLAUMIN, Colette. Question de différence. [1979]. GUILLAUMIN, Colette. Sexe, race et pratique
...Op. cit., p. 104.
20
Ibidem, p. 86.
21
QUESTIONS FÉMINISTES. Variations sur des thèmes communs. Questions Féministes, n. 1, p. 3-19, nov.
1977, p. 9.
22
Ibidem, p. 17.
182
Para Kandel, “se a ideia de uma diferença irredutível entre homens e mulheres
está presente, desde o início, em certos grupos do ‘MLF’”, o próprio termo será, entretanto, de
aparição tardia.24 A autora ressalta ainda que a questão da diferença, ainda que dificilmente
nomeada ou escrita, estava “presente no ar dos tempos e do tempo feminista”.25 Uma análise
dos documentos dos primeiros anos nos mostra que essa questão não constituía um tema
importante de debate no momento da constituição do MLF. Os primeiros embates do
movimento se deram por outras razões.
23
Idem, p. 17.
24
KANDEL,Liliane. Sur la differénce des sexes et celle des féminismes. Les Temps modernes, n.609 (junho-
julho-agosto 2000), p. 288.
25
Idem, p. 290.
183
explícita. Um texto publicado no boletim Le Torchon brûle n.5 nos fornece alguns elementos
desse tipo de reflexão:
Essa polarização ganharia contornos mais nítidos na segunda metade dos anos
1970. Para Françoise Picq a “profundidade da oposição” à Psicanálise e Política levaria a
formação de dois polos no lugar de “três tendências” (feminismo revolucionário, feminismo
luta de classes e Psicanálise e Política)29. De um lado, diferentes grupos feministas, da
tendência luta de classes, dissidentes da tendência diferencialista e “eternas rebeldes às
etiquetas”, que afirmariam, em uníssono, uma filiação feminista em contraposição a um outro
polo “antifeminista”.30
26
Avortement Contraception Sexualité . Le Torchon brûle n.5 s. d. [data aproximada: início de 1973]
27
La différence internée. Des femmes em mouvement, n.2, fevereiro de 1978.
28
Trecho original “Le féminisme de la non-différence – sexuelle, économique, politique – est l’atout maître du
gynocide” . Des femmes em mouvements Hebdo. n.28, 16-23 de maio de 1980, p. 12.
29
PICQ, Françoise. Libération des femmes. Op. cit., p. 321.
30
Ibidem.
184
31
A referência a esse número é de Le Doeuff. LE DOEUFF, Michèle. Colloque féministe à New York: Le
Deuxième sexe trente ans après”. Questions Féministes (1977-1980) Op. cit., p.883. Para o nome das
conferencistas foi consultado: The second sex – thirty years later. A Commemorative Conference ON Feminist
Tyeory. New York University, 1979.
32
LE DOEUFF, Michèle. Colloque féministe à New York. Op. cit., p.883.
33
Ibidem, p.883.
34
Ibidem, p.885.
35
O grand-mère que vous avec de beaux concepts ! C’est pour mieux vous arrièrer, mon enfant ! Des femmes en
mouvements hebdo, n.1, 9-16 novembro de 1979, p. 12.
36
Ibidem, p.12.
185
Luce Irigaray, nesse mesmo contexto, propõe continuar fiel à obra teórica e
prática de Beauvoir de justiça social e “não fechar o horizonte de liberação que ela abriu para
muitas mulheres, e homens”. Mas, ao mesmo tempo, o texto expõe uma crítica ao que ela
chama um “feminismo igualitarista”, compreendendo que a demanda de “igualdade, enquanto
mulheres” seria uma “expressão equivocada de um problema real”:
Uma análise pouco rigorosa das pretensões à igualdade mostra o seu bem
fundado no nível de uma crítica superficial da cultura, sua utopia como meio
de libertação das mulheres. A exploração desta tem por fundamento a
diferença sexual, ela não pode se resolver senão pela diferença sexual. Certas
37
Ibidem, p. 11.
38
Sutton, Nina. Colloque Le ‘Deuxième Sexe’ a trente ans. F Magazin,1979, p. 69.
39
Questions féministes workhop. Off our backs, vol. 10, n.1, 1980, p.9.
40
RODGERS, Catherine. Elle et Elle: Antoinette Fouque et Simone de Beauvoir. MLN, vol. 115, n. 4, 2000, p.
74.
41
Ibidem, p. 74.
186
O movimento de mulheres francês, entretanto, está vivo e bem. Mas ele está
em perigo constante devido à existência de grupos como Psych et Po que se
divulgam como o movimento de mulheres e exercem uma influência
considerável, graças à infeliz recepção calorosa que o público em geral deu a
sua ideologia – uma neo-feminilidade conveniente desenvolvida por
escritoras como Hélène Cixous, Annie Leclerc e Luce Irigaray, a maioria das
quais não é feminista, e uma parte delas é declaradamente antifeminista.
Infelizmente, este também é o aspecto do movimento de mulheres francês
mais conhecido nos EUA. (...) Por outro lado, uma das contribuições mais
interessantes para a real teoria do feminismo francês é a crítica radical-
feminista da neo-feminilidade que veio à tona, particularmente em Questions
Féministes (agora Nouvelles Questions Féministes).44
42
IRIGARAY. Égales ou diferentes? [tradução não publicada de um texto originalmente publicado no jornal
alemão TAZ]. Dossiês ARCL.
43
Ibidem.
44
BEAUVOIR apud MORGAN, R. (org.) Sisterhood is global…op. cit. ., p.235.
45
Essa categoria foi criticada em diferentes textos e artigos, entre os quais destacamos: MOSES, Claire. Made in
América: ‘French feminism’ in America. Feminist Studies, vol.24, n.2, 1998; MOSES, Claire. La construction
du ‘French Feminism’ dans le discours universitaire américain. Nouvelles Questions Feministes, vol. 17, n.1 ;
VARIKAS, Eleni. “Féminisme, modernité, postmodernisme: pour un dialogue des deux côtés de l’océan” In:
Futur Anterieur 1993 ; DELPHY, Christine. DELPHY, Christine. L’invention du French Feminism: une
démarche essentielle. [1996] In: DELPHY, Christine. L’ennemi principal 2. Penser le genre. Paris: Syllepse,
2009.
46
MOSES, Claire. Made in América: ‘French feminism’ in America. Feminist Studies, vol.24, n.2, 1998.
187
Essas autoras têm, em maior ou menor medida, afinidades com as ideias do grupo
“Psicanálise e Política”. Essa categoria foi duramente criticada por diversas autoras, entre elas
por Christine Delphy, Claire Moses e Eleni Varikas, que ressaltam o seu caráter redutor. Para
Varikas
47
VARIKAS, Eleni. Féminisme et postmodernité... Op. cit.
48
Usaremos também uma análise similar promovida por Nicholson. NICHOLSON, Linda. Interpretando o
gênero. Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 2, 2000.
188
uma “correspondência analógica entre sexo e gênero”, isto é, o gênero simboliza o sexo, ou,
nos termos utilizados por Delphy49, o sexo seria “continente” e o gênero “conteúdo”.
Essa posição foi adotada por amplos setores do movimento feminista nos anos
1960-1970. Em relação a essa perspectiva, Nicholson50 considera que, malgrado a crítica ao
determinismo biológico e às essencializações derivadas, ela não escapa do uso do biológico
para explicar o social. Segundo a autora, nesse caso, “o biológico foi assumido como a base
sobre a qual os significados culturais são constituídos. Assim, no momento mesmo em que a
influência do biológico está sendo minada, está sendo também invocada”.51 A essa
abordagem, Nicholson dá o nome de “fundacionalismo biológico”. O termo de Nicholson
parece captar o cerne da questão, desde que remete ao pressuposto da “antecedência do sexo
sobre o gênero”, que, como diz Delphy52, é um pressuposto “historicamente explicável”, mas
não “teoricamente justificável”, pois assume o sexo como invariável, natural, concebendo
apenas o gênero como histórica e socialmente construído.
Esse “paradigma” começou a ser questionado a partir do final dos anos 1970 por
feministas francesas e, posteriormente, por acadêmicas estadunidenses influenciadas pelo
“pós-modernismo”. Neste contexto, é questionada a própria naturalidade do sexo biológico.
Para Mathieu, haveria uma correspondência “sócio-lógica” entre sexo e gênero: o gênero
constrói o sexo. Nesta forma de conceber o problema, que inverte a ordem de determinação
em relação à primeira concepção, a diferença entre os sexos não é traduzida (como no modo
I) ou exprimida/simbolizada (como no modo II) através do gênero, mas é o gênero que
constrói o sexo.
49
DELPHY, Christine. Penser le genre: problèmes et résistances [ 1991] In: DELPHY,C. L’ennemi principal. 2
Penser le genre. Paris: Syllepse, 2009.
50
NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 2, 2000.
51
Ibidem, p.11.
52
DELPHY, Christine. Penser le genre... . Op.cit., p.241.
53
Ver cap. 6 “Sex and Gender ”. In: OAKLEY, Ann. Sex, Gender and society. Towards a new society. Lonres:
temple Smith, 1972.
189
referência: “The Traffic in Women: Notes on the ‘Political Economy’ of Sex”, publicado em
1975, no qual propõe o conceito de “sistema sexo/gênero” definido, preliminarmente afirma
Rubin, como um conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a
sexualidade biológica em produtos da atividade humana, e na qual estas necessidades sexuais
transformadas são satisfeitas”.54
54
RUBIN, Gayle. O tráfico de mulheres: notas sobre a ‘economia política’ do sexo. Recife: SOS Corpo, 1993,
p.2.
55
MATHIEU, Nicole-Claude. Identité sexuelle/sexuée/de sexe? Trois modes de conceptualisation du rapport
entre sexe et genre [1989]. In: MATHIEU, Nicole-Claude. L’anatomie politique...Op. cit., p. 213-214.
56
NICHOLSON, Linda. Op. cit., p. 12.
57
HARAWAY, D. ‘Gênero’ para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra. Cadernos Pagu,
n.22, jan./junho 2004.
58
VARIKAS, Eleni. Penser le sexe et le genre. Paris: PUF, 2006, p. 56.
59
Ibidem, p.55-56.
190
A crítica a uma reificação da biologia já estava presente, nos anos 1970, nos
trabalhos de Nicole-Claude Mathieu. Em 1974, ela critica o uso do conceito de “papéis
sexuais”, por pressupor uma separação entre biologia e social que constituiria um obstáculo a
uma definição sociológica do sexo. A ideia de “papéis” tem a vantagem de apresentar “os
fatos do sexo” como “sistema no qual ambas as categorias estariam envolvidas”. Entretanto,
60
DELPHY, Christine. Le patriarcat, le féminisme et leurs intellectuelles.[1981] L’ennemi principal 2 Penser le
genre. Paris: Syllepse, 2009: p.228.
61
O texto, apresentado no Congresso Mundial de Sociologia, em 1974, seria publicado em 1977. MATHIEU,
Nicole-Claude. “Paternité biologique, maternité sociale... ”. In: MICHEL, Andrée. Femmes, sexisme et société.
PUF: 1977, p.39.
62
PLAZA, Monique. Robert Stoller, Recherches sur l’identité sexuelle, Paris, Gallimard, 1978, coll.
‘Connaissance de l’inconscient. In: QUESTIONS FÉMINISTES. Questions féministes (1977-1980). Paris:
Syllepse, 2012, p. 783.
191
sexos não somente não era fatal e necessária, mas constituiria um empobrecimento. Para não
chegar a essa conclusão, ele é obrigado a “retomar com uma mão o que ele havia abandonado
com a outra, a saber, um certo peso de evidência do biológico”.63 Trata-se somente de uma
resenha, mas que indica algumas dimensões importantes da reflexão em torno da revista
Questions féministes.
Esse tipo de críticas a releituras desse passado recente que apaga autoras/es e
correntes nesse debate é também ressaltada por figuras importantes nesse debate como Gayle
Rubin e Jeffrey Weeks.65 Para Rubin, a ideia que Foucault teria sido o “criador da teoria da
‘construção social’ no campo da sexualidade, seria um erro que obscurece trabalhos pioneiros
como os de Mary McIntosh, Jeffrey Weeks, Kenneth Plummer dentre outros. Ela afirma:
63
Ibidem, p.781.
64
MATHIEU, Nicole-Claude. Sexe et genre [2000]. In:MATHIEU Nicole-Claude, L’anatomie politique 2,
Paris, La Dispute, 2014, p. 30.
65
Ver: WEEKS, Jeffrey. Le rôle homosexuel’ rente ans plus tard: retour sur le travail de Mary McIntosh .Genre,
sexualité & société, hors de serie n.1, 2001.
66
RUBIN, Gayle; BUTLER, Judith. Tráfico sexual – uma entrevista, Cadernos Pagu, n.21, 2003., p. 184.
192
ideias feministas e cabe compreender como, porquê e em que contexto algumas dessas
genealogias foram estabelecidas.
Para Guillaumin, algumas das análises que surgem a partir dos anos 1920 se
concentrariam na questão das “atitudes racistas” e não na “raça” em si. São as manifestações e
as fontes dessas atitudes racistas que constituem o foco de diversas pesquisas que se
desenvolvem nesse contexto. Nesse momento, a noção de raça não é objeto de
questionamento e se situa quase como uma evidência. Essas análises, portanto, não rompem
com a ideia de raça hegemônica no pensamento do século XIX, amalgamando características
físicas, mentais e sociais.
Nos próximos itens, o objetivo será analisar como Colette Guillaumin, Nicole-
Claude Mathieu, Christine Delphy e Monique Wittig, partindo de diferentes objetos e
temáticas, contribuíram para a construção de uma reflexão antinaturalista no feminismo
francês. O objetivo não é analisar toda a produção delas, mas, fundamentalmente, mostrar
como a questão permeia o trabalho dessas autoras e quais foram os caminhos trilhados.
Colette Guillaumin – Naturalização da raça e do sexo: duas faces de uma mesma lógica
69
Apud GUILLAUMIN, Colette. Sciences sociales et définition du terme race. Op. cit., p. 10.
70
Ibidem.
71
GUILLAUMIN, Colette. L’idéologie raciste. Paris: Gallimard, 2002, p.10.
194
biológica”. A racialização e a generificação (um termo que não é adotado pela autora)
compartilhariam uma lógica comum. Não se trata aqui somente de analogias, mas da
demonstração de um mecanismo comum de naturalização. Para compreender esse movimento
teórico da autora, começaremos pelos seus primeiros trabalhos, que datam do final dos anos
1960.
72
GUILLAUMIN, Colette. Un aspect de l’altérité sociale: le racisme, genèse de l’idéologie raciste et langage
actuel. Thèse 3ème cycle. Sociologie. Paris: E.P.H.E, VI section, 1969.
73
Ver dois balanços da época: MICHEL, Andrée. Tendances nouvelles de la sociologie des relations raciales.
Revue française de sociologie, vol. III, n.2, avril-juin 1962; BASTIDE, Roger. Les études et les recherches inter-
ethniques em France de 1945 à 1968. Etniques. , vol.1, 1971.
74
GUILLAUMIN, Colette. L’idéologie raciste. Paris: Gallimard, 2002 [primeira edição: 1972], p.12.
75
Idem. Je sais bien mais quand même” ou les avatars de la notion ‘race’ [1981]. In: GUILLAUMIN , Sexe, race
et pratique du pouvoir. Op. cit, p. 211.
76
Ibidem, p. 207.
195
77
GUILLAUMIN, Colette. L’idéologie raciste. Op. cit., p. 12.
78
Ibidem, p. 14.
79
Ibidem, p. 13.
80
Ibidem, p. 17.
196
Segundo Guillaumin, a noção atual de raça teria nascido num período preciso da
história, num contexto ideológico e concreto que é próprio ao século XIX ocidental. O final
do século XVIII e o início do século XIX seriam palco de uma profunda transformação social
e intelectual que alteraria a forma de se conceber o “outro”.83
81
Ibidem, p. 18.
82
Ibidem, p. 117. No momento no qual a autora escrevia esse texto, não havia se difundido ainda as noções de
“sexismo”, “chauvinismo masculino” ou outras que o movimento feminista forjaria no final dos anos 1960.
83
Ibidem, p. 24.
84
Sobre isso a autora afirma “Ao se referir aos Tártaros ou Mongóis, ele destina oito páginas a sua vida e
costumes sem nunca mencionar uma característica física. O editor moderno deste último se considerará obrigado
a incluir uma das descrições a precisão seguinte: ‘são os Merkits da raça mongol’ (Marco Polo disse
simplesmente ‘os habitantes são chamados Mékris). O contraste resume a mudança perceptiva que intervém no
universo mental do Ocidente”. Ibidem, p.28.
85
Ibidem, p. 32.
197
nesse sentido, o “mais moderno”, considera as variações de formas sociais a partir da noção
de “origem social”, sendo um dos primeiros a considerar a sociedade como formadora das
particularidades individuais. Malgrado a diferença entre esses autores, percebe-se que nenhum
deles autoriza a concepção de que uma cultura ou ser humano “fechado num determinismo de
tipo biológico”.86
86
Ibidem, p. 33.
87
Ibidem, p. 62.
88
GUILLAUMIN, Colette. Caractères spécifiques de l’idéologie raciste. Cahiers internationaux de sociologie.
n.53, 1972, p. 273.
198
Embora a raça seja uma noção de construção recente, essa é percebida como um
fato evidente e como uma possibilidade de explicação para uma série de fenômenos sociais. A
marca biológica é assim percebida como a “causa intrínseca do lugar que ocupa um grupo
numa relação social”.93 Guillaumin procura mostrar o equívoco desse raciocínio que introduz
uma “relação errônea entre os fatos”. Nessa forma de se conceber a questão, uma relação
social de dominação que “secreta a noção de natureza” é considerada como “produto de traços
internos ao objeto”.94
Guillaumin procura mostrar como esses grupos não existem fora dessas relações
e que são as relações sociais nas quais estão envolvidos (escravidão, casamento, etc.) que a
cada momento fabricam esses grupos: “Fora dessas relações sociais, eles não existem, eles
não podem nem mesmo ser imaginados. Eles não são dados da natureza, mas, antes, dados
naturalizados de relações sociais”.95
89
GUILLAUMIN, Colette. L’idéologie raciste... Op. cit., p.60.
90
Ibidem, p. 27.
91
Ibidem, p. 27.
92
Ibidem, p. 39.
93
Ibidem, p. 183.
94
Ibidem, p. 184-185.
95
GUILLAUMIN, Colette. Race et nature: système des marques, idée de groupe naturel et rapports sociaux.
[1977] In: GUILLAUMIN, Colette. L’ideologie raciste...Op.cit., p. 353.
199
Se, no caso dos escravos e antigos colonizados, não há mais apropriação material
direta, no caso das mulheres, a sexagem, isto é, a relação de apropriação das mulheres, é ainda
presente. As mulheres são não somente “coisas” na teoria, mas também na prática, como
resume a autora no trecho abaixo:
Cabe ressaltar que Guillaumin recusa a perspectiva que critica o racismo baseado
na ideia de que as raças não existem materialmente. Esse argumento supõe que a existência
96
GUILLAUMIN , Colette. Race et nature... Op. cit., p. 175.
97
GUILLAUMIN, Colette. Pratique du pouvoir et idée de nature. Op. cit., p. 80. Para versão em português ver:
FERREIRA, Verônica; ÁVILA, Maria Betânia; FALQUET, Jules; ABREU, Maira (org.) O Patriarcado
Desvendado: teorias de três feministas materialistas. Colette Guillaumin, Paola Tabet e Nicole-Claude Mathieu.
Recife: Edições SOS Corpo, 2016, p. 97.
98
GUILLAUMIN, Colette. “Pratique du pouvoir et idée de nature”. Op. cit., 50.
99
Ibidem, p.71
100
Ibidem, p. 78
200
material destas últimas pudesse ser a causa de um mecanismo social, o que seria um erro. Para
Guillaumin, “não é sustentável pretender que a categoria que é a causa direta, o primeiro meio
de morte de milhões de seres humanos não existe”.101 Este raciocínio seria a base de algumas
insuficiências e inadequações da luta antirracista.
A luta feminista teria por papel, justamente, criticar essas evidências, pensar
aquilo que é considerado como “conhecido”, sem significação, “natural”.106 Para os
apropriados, desprovidos de instrumentos teóricos, imersos na natureza e, nesse sentido, na
ideia de imutabilidade, caberia romper o círculo, forjar uma “consciência de classe” contra a
101
GUILLAUMIN, Colette. Je sais bien mais quand même... Op.cit., p. 216.
102
GUILLAUMIN, Colette. Race et nature: système des marques, idée de groupe naturel... Op. cit., p. 338.
103
GUILLAUMIN, Colette. Pratique du pouvoir et idée de nature. Op. cit. p. 61.
104
Ibidem, p. 77.
105
Ibidem, p.77.
106
Ibidem, p.79.
201
ideia de que “somos uma espécie natural”107. Esta última é um empecilho à percepção de que
longe da ideia de “espécie”, as mulheres constituem uma classe, e que é somente em relações
sociais concretas que se fabricam homens e mulheres. O combate feminista deve ter por
centro essas relações pois somente com superação das mesmas será possível pensar numa
outra forma de organização social e isso só pode ser feito coletivamente:
Para a autora, uma grande parte do seu trabalho teve por objetivo denunciar a
“ideologia da diferença”.111 A diferença seria a forma usualmente empregada para justificar a
desigualdade entre grupos, não somente entre os grupos ditos “de sexo”. Num texto de 2001,
ela considera que sua argumentação “anti-diferencialista” tem por base alguns pontos:
1) As diferenças são criadas para constituir grupos, mas são apresentadas como
fatos exteriores à ação da sociedade;
107
Idem, p. 82.
108
Ibidem, p. 28
109
Christine Delphy entra no CNRS, como “attaché de recherche” em 1970 no Centre d’Ethnologie Française.
Entre 1966 e 1970 ela foi colaboradora técnica no Groupe de Sociologie Rurale. Ellea se torna, em 1978, “chargé
de recherche” vinculada ao Groupe de Recherches Sociologiques (Université de Paris X- Nanterre) e, entre 1982
e 1986, no seio do Groupe d'études des rôles des sexes, de la famille et du développement humain.
110
DELPHY, Christine. Avant-Propos. In: DELPHY, Christine. L’ennemi principal. 1 Économie Politique du
Patriarcat. Paris: Syllepse, 2009, p.24.
111
DELPHY, Christine. Préface. Critique de la raison naturelle. In: DELPHY, Christine. L’ennemi principal 2.
Penser le genre. Paris: Syllepse, 2009, p.8.
202
reciprocidade (o que não é o caso para grupos racializados ou para as mulheres) e não implica
por si só uma hierarquia;
3) A hierarquia não intervém após os grupos serem postos em relação, mas, pelo
contrário, os grupos não preexistem às relações hierárquicas que os engendram.
112
DELPHY, Christine. L’invention du French Feminism: une démarche essentielle. [1996] In: DELPHY,
Christine. L’ennemi principal 2. Op. cit., p. 327.
113
Ibidem, p. 328.
114
Ibidem, p. 328
203
Delphy afirma ainda que, diante das constatações acima, procurou analisar quem
se beneficiaria dessa forma de opressão – “se havia dominação, havia um objetivo nessa
dominação”.117 A resposta a essa questão está diretamente vinculada ao contexto de
formulação das primeiras elaborações da autora. A resposta estaria na exploração econômica.
Ela afirma que estava “fortemente influenciada pelo paradigma marxista da luta de classes e
da extorsão de trabalho”.118 Essa referência marca profundamente suas primeiras reflexões,
que serão reformuladas ao longo das décadas seguintes.
115
Ibidem, p.26.
116
DELPHY, Christine. Le patriarcat: une oppression spécifique. (Entrevista feita por Louis Astre com a
participação de Liliane Kandel). [1988]. In: DELPHY, Christine. L’ennemi principal 2. Op. cit., p. 56.
117
Ibidem, p. 57.
118
DELPHY Christine, Fonder en théorie qu'il n'y a pas de hiérarchie des dominations et des luttes. [Entrevista
com Chirstine Delphy realizada por GIRAUD Véronique, JAMI Irène, SINTOMER Yves), Mouvements, no 35,
2004, p. 122.
204
É por essa razão que a autora considera que a ideia de “opressão” é a “base”, o
“ponto de partida de todo estudo, bem como de toda démarche feminista”.120 A renovação do
feminismo coincidiria com o uso desse conceito. Diferentemente de termos como “condição
feminina”, que remeteria a uma explicação naturalista, a uma realidade exterior e não
modificável pela ação humana121, o termo “opressão” remete ao caráter arbitrário, a uma
explicação e a uma situação que são “políticas”.
119
DELPHY, Christine. Pour un féminisme matérialiste [1975]. In: DELPHY, Christine. L’ennemi principal 1.
Op. cit., p.259.
120
Ibidem, p.260.
121
Ibidem, p. 260.
122
DELPHY, Christine. Préface. Critique de la raison naturelle. Op. cit., p.27.
205
conduziram a uma inversão da forma como tradicionalmente se concebia a relação entre sexo
anatômico, gênero e dominação:
Essa forma de conceber a questão seria, para Delphy, uma consequência lógica
da ideia de que a dominação masculina é um fenômeno político e da adoção de uma
“problemática de classe”. Não é o “papel” de cada grupo que é essencial, mas “a relação entre
os papéis, entre os dois grupos”, relação que seria caracterizada por uma hierarquia que
explicaria o conteúdo de cada um desses papéis e não o inverso.124 É a hierarquia que cria o
gênero e o gênero que cria o sexo, afirma Delphy. Os grupos não preexistem às relações de
dominação, mas são, na verdade, um resultado dessa relação. A distinção física não tem,
portanto, nenhum sentido fora dessas relações. Ela elabora essa perspectiva em pouco mais de
duas páginas e a apresenta como uma hipótese que demandaria um aprofundamento.
123
DELPHY, Christine. Le patriarcat, le féminisme et leurs intellectuelles. In: DELPHY, Christine. L’ennemi
principal 2. Op. cit., p.229.
124
Ibidem, p.229.
125
DELPHY, Christine. Penser le genre: problèmes et résistances [1991]. Op. cit., p.241.
206
conceituação de “papéis sexuais”. Diversos trabalhos realizados ao longo dos anos 1950 e
1960, entre eles os de Viola Klein, Mirra Komarovsky, Alva Myrdal e Andrée Michel,
adotando uma perspectiva parsoniana, usavam o conceito de “papéis sexuais”. Essas análises,
ao trabalharem com a ideia de papéis masculinos e femininos, teriam dado um grande passo
“rumo à desnaturalização das posições e ocupações respectivas dos sexos”.126 Estas últimas
seriam um avanço em relação a análises da antropóloga Margareth Mead que, ainda segundo a
visão Delphy, naturalizava a divisão do trabalho e a hierarquia entre homens e mulheres. O
conceito de gênero seria um herdeiro direto da ideia de “papéis sexuais”. Mas, em alguns dos
primeiros trabalhos a usar a categoria “gênero”, como em Oakley, certos aspectos presentes
nas teorizações anteriores perdem sua centralidade, entre eles a noção de assimetria e
hierarquia. Para Delphy, esses elementos devem ser reintegrados a esse conceito.
Para Delphy, é necessário abandonar esse pressuposto. Para isso ela propõe a
hipótese de que o gênero precede o sexo, isto é, o sexo seria “simplesmente um marcador da
divisão social; ele serve para reconhecer e identificar os dominantes dos dominados, ele é um
sinal”.127
Neste texto, Delphy propõe abolir não somente a “hierarquia” mas também a
própria distinção. Muitas das análises existentes propõem abolir os “conteúdos” mas não o
que contém. Para Delphy, “poucos parecem prontos a se contentar com uma simples diferença
sexual, nua, não assinalada por um reconhecimento ou marcadores sociais”.128 Desta forma,
parte-se da ideia que as diferenças viriam antes e a hierarquia depois. O masculino e feminino
são “criações culturais” de uma sociedade fundada, entre outras hierarquias, numa hierarquia
de gênero. A estrutura social determina o conteúdo de cada uma dessas categorias (homem e
126
Ibidem, p. 243.
127
Ibidem, p.249.
128
Ibidem, p. 252.
207
mulher) e não somente sua relação. Para “pensar o gênero”, seria necessário “imaginar o não-
gênero”, isto é, a utopia de uma sociedade sem gênero.
Entre 1960 e 1965, ela estava vinculada a um laboratório que, apesar do nome,
Groupe d’ethnologie sociale, pode ser localizado como estando fundamentalmente no campo
sociológico. Após um período como redatora da revista da Unicef Les Carnets de l’enfance e
uma passagem pelo Centre d’études sociologiques, em 1971, Mathieu finalmente entra no
Laboratoire d’anthropologie sociale, dirigido, na época, por Claude Lévi-Strauss, na função
de secretária de redação da revista L’homme.130
129
MATHIEU, Nicole-Claude. Ma vie. In: MATHIEU, Nicole-Claude. L’anatomie politique 2. Usage,
déreliction et résilience des femmes. Paris : La Dispute, 2014, p.8.
130
Nicole-Claude Mathieu (1937-2014), segundo o seu C.V., trabalhou, entre 1960 e 1965, no Groupe
d’Ethnologie Sociale. Entre 1970 e 1971, foi assistente de pesquisa no Centre d’Études sociologiques e, em
março de 1971, ela entra no Laboratoire d'Anthropologie sociale como redatora chefe da revista L’homme e, em
seguida, da coleção « Les Cahiers de l'Homme ». En 1990, ela se torna professora ( Maître de conférences) na
École des Hautes Études en Sciences Sociales, à Paris (EHESS).
131
MATHIEU, Nicole-Claude. Notes pour une définition sociologique des catégories de sexe. [1971]. In:
MATHIEU, N. L’anatomie politique. Paris: Éditions ixe, 2013, p.19.
208
Outro problema desse tipo de trabalho é tratar uma categoria de forma isolada da
outra, desconsiderando que, dessa maneira, essas categorias perdem sua inteligibilidade:
137
Ibidem, p.36.
138
Ibidem, p.36-37.
139
Ibidem, p. 29.
140
Ibidem, p. 29 (nota 1).
141
MATHIEU. Nicole-Claude. Paternité biologique, maternité sociale [1977]. In: MATHIEU, Nicole-Claude.
L’anatomia politique. Op. cit., p.59.
210
Mathieu ressalta como uma problemática sociológica dos sexos não poderia surgir
espontaneamente. A autora considera que a problemática das classes sociais e de idade só
puderam emergir a partir da aparição e da consciência de uma realidade social. As análises de
classe de Saint-Simon e Marx tomaram corpo com o desenvolvimento da grande indústria e a
formação da classe operária. O surgimento de uma sociologia da juventude estaria ligado a
uma série de processos sociais que marcariam a emergência desse grupo, tendo como palco o
contexto do pós-guerra; a velhice, por usa vez, também só se constitui em campo de
investigação social a partir do momento em que, em algumas sociedades, uma parte da
população se retira da produção num certo momento. Em relação ao sexo, Mathieu evoca um
“fenômeno de consciência novo”, a generalização de uma consciência de “serem socialmente
determinadas como mulheres”, assim como um mal-estar entre certos homens em usar o
masculino como universal, visível particularmente no discurso de alguns homens políticos e
na imprensa. Embora ela não mencione explicitamente a importância do movimento feminista
para a emergência dessa questão neste texto de 1971, ela ressaltaria em outros textos a
ligação, aceita ou não pelos próprios autores, entre uma nova literatura científica e os
movimentos feministas de países ocidentais e não-ocidentais.143
Nos anos 1970 e até 1998, trabalhar sobre as relações sociais de sexo e, além
disso, ser feminista eram extremamente mal vistos na EHESS: os
pesquisadores que se enquadravam nesses critérios eram julgados menos por
seus valores científicos que por seus engajamentos militantes. Nicole-Claude
se localizava inegavelmente nessa categoria enquanto antropóloga engajada
no combate pelos direitos das mulheres e se esforçando, fora de organização
política e sindical, de lutas contra as injustiças sociais no interior como no
exterior de sua instituição.144
142
MICHEL, Andrée (org.). Femmes, sexisme et sociétés. Paris: PUF, 1977.
143
MATHIEU, Nicole-Claude. Critiques épistémologiques de la problématique des sexes dans le discours ethno-
anthropologique [1985]. In: MATHIEU, Nicole-Claude. L’anatomie politique. Op. cit., p.71.
144
HANDEMAN, Marie-Élisabeth. Nicole-Claude Mathieu (1937-2014). L'Homme, n.213, 2015, p. 21.
211
150
MATHIEU, Nicole-Claude. Critiques épistémologiques de la problématique des sexes dans le discours ethno-
anthropologique [ 1985]. In: MATHIEU, Nicole-Claude. L’anatomie politique. Op. cit., p. 70
213
A autora continuaria esse esforço de crítica feminista às ciências sociais. Nos anos
1990, sua crítica se voltaria também para algumas teorizações identificadas como “pós-
modernas” e “queers”. Para Mathieu, nessas teorizações, “os aspectos simbólicos, discursivos
e paródicos do gênero são privilegiados em detrimento da realidade material e histórica das
opressões sofridas pelas mulheres”.154 Em diferentes contextos, Mathieu procurou afirmar
que, para além de um pensamento antinaturalista, seria necessário pensar em termos de
relações sociais:
151
Ibidem, p. 84.
152
Ibidem, p. 93.
153
Ibidem, p. 94.
154
MATHIEU, Nicole-Claude. Sexe et genre [2000]. In:MATHIEU Nicole-Claude, L’anatomie politique 2,
Paris, La Dispute, 2014, p.30.
214
Desde os seus primeiros textos, Wittig empreende uma crítica do que ela chama
de “pensamento dominante”, e, posteriormente, em uma abordagem modificada, de
“pensamento straight” (que poderíamos traduzir também como “pensamento heterossexual”).
O pensamento dominante tem como fundamento o primado da diferença sexual e a ideia de
que esta precede a sociedade. Esse pensamento pode assumir formas diversas: um approche
métaphisique, que considera que “antes de todo pensamento, antes de toda sociedade, há dois
sexos, de fato, duas categorias de indivíduos nascidos com uma diferença constitutiva, uma
diferença que tem consequências ontológicas”; um approche scientifique, que, por sua vez,
considera que, antes mesmo de qualquer pensamento, ordem social, haveria “sexos ”
biologicamente, hormonalmente, geneticamente diferentes, e que essa diferença teria
consequências sociológicas; um approche marxiste, que igualmente considera que, antes de
qualquer pensamento, ordem social, haveria uma “divisão natural do trabalho na família, uma
divisão do trabalho que não é originalmente senão a divisão do trabalho no ato sexual”.
Apesar das variações, todos essses approches têm em comum a ideia de uma ordem natural,
de algo que preexiste às relações sociais e que inviabiliza uma explicação a partir dessas
últimas.157
155
MATHIEU Nicole-Claude, « Prologue. Allocution pour un doctorat honoris cause », in MATHIEU Nicole-
Claude, L’anatomie politique 2, Op. cit., p. 10.
156
Monique Wittig (1935-2003) foi escritora, autora de diversos romances como L'Opoponax (1964) que
ganhou o Premio Médicis, Les Guérillères (1969), Le Corps lesbien (1973)dentre outros. Participou dos
momentos fundadores do MLF e também do grupo lésbico Gouines Rouges. Em 1976 Wittig se muda para os
Estados Unidos, onde escreve a maior parte dos seus escritos teóricos. Ela deu aulas em diferentes universidades
neste país.
157
WITTIG, Monique. La categorie de sexe [1982]. In: WITTIG, Monique. La pensée straight. Paris:
Amsterdam, 2007, p.38.
215
O feminismo do século XIX “não pôde jamais resolver suas contradições no que
concerne aos temas natureza/cultura, mulher/sociedade”.158 Essas mulheres teriam se unido
enquanto grupo e consideravam, com razão, que todas as mulheres tinham traços de opressão
comum. Mas, essa posição estava ancorada mais em características biológicas que em fatos
sociais.159 Dessa forma, elas continuavam a pensar, “como os homens”, que a causa e origem
da sua opressão residia nessa diferença. Essas “primeiras feministas” não conseguiam
enxergar a história como um “processo dinâmico que se desenvolve a partir de conflitos de
interesse”.160 Ao defenderem a ideia de “igualdade na diferença”, elas continuavam refém do
“mito da mulher”.
158
WITTIG, Monique. On ne naît pas femme [1980]. In: WITTIG, Monique. La pensée straight. Paris:
Amsterdam, 2007,p. 48.
159
Ibidem, p.48.
160
Ibidem, p.48.
161
Ibidem, p. 44
216
O que mostra uma análise materialista é que o que nós tomamos por causa
ou por origem da opressão não é, na verdade, senão a marca que o opressor
impõe aos oprimidos: o ‘mito da mulher’ naquilo que nos concerne, além
dos seus efeitos e suas manifestações materiais nas consciências e corpos
apropriados das mulheres. A marca não preexiste à opressão.164
162
Ibidem, p.47.
163
WITTIG, Monique. La catégorie de sexe. In: WITTIG, Monique. La pensée straight. Op. cit., p.38.
164
Idem. On ne naît pas femme. Op. cit., p.45
165
Ibidem, p.49.
166
Ibidem, 49.
167
WITTIG, Monique. La pensée straight [1980]. In: WITTIG, Monique. La pensée straight. Op. cit., p.59.
217
Para Wittig, a existência de homens e mulheres não faz sentido senão dentro de
sistemas de pensamento e econômicos heterossexuais. Por esse motivo, ela afirma que não se
pode dizer que “as lésbicas, vivem, associam-se, fazem amor com mulheres” porque, “as
lésbicas não são mulheres”170. “’Lésbica’ seria o “único conceito que estaria para além das
categorias de sexo porque o sujeito que o termo designa não seria mulher, nem
economicamente, nem politicamente e nem ideologicamente”. Para Wittig, as lésbicas
expressariam trânsfugas de sua classe:
Essa é provavelmente a frase mais citada de Wittig e também aquela que mais
gerou polêmicas. Para Diana Fuss172, o conceito de lésbica elaborado por Wittig seria a mais
provocativa e problemática de suas categorias. Tal ideia foi alvo de diversas controvérsias
168
Dentre outras autoras, criticam a forma como Butler isola Wittig de outros trabalhos de feministas
materialistas JAMI, I. Sexe et genre: les débats des féministes dans les pays anglo-saxons (1970-1990). Cahiers
du genre, n.34, 2003, p. 143.
169
WITTIG, Monique. Paradigmas [1979]. In: WITTIG, Monique. La pensée straight. Op. cit., p. 83.
170
Idem. On ne naît pas femme. Op. cit., p 52.
171
WITTIG, Monique. La pensée straight. Op. cit., p.54.
172
FUSS, Diana. Essentially speaking. Feminism, nature & difference. New York/London: Routledge, 1989,
p.42.
218
dentro do movimento feminista. Como lembra Teresa de Lauretis173, Wittig foi acusada de
utopismo, essencialismo, dogmatismo separatista e até mesmo de ‘idealista clássica’. Mas,
essas propostas não podem ser compreendidas desvinculadas do contexto mais geral dos
debates feministas e lésbicos do final dos anos 1970, que serão abordados no capítulo 7.
***
Se o conceito de gênero, como afirma Haraway, “foi desenvolvido para contestar
a naturalização da diferença sexual em campos de luta múltiplos”, podemos identificar esse
mesmo esforço nos conceitos de “sexo social”, “classe de sexo”, “relações sociais entre os
sexos” e, posteriormente, “relações sociais de sexo” formulados no contexto francês. Quando
o conceito de “gênero” começa ser utilizado de forma mais frequente no meio feminista
(lembrando que Ann Oakley propõe o conceito em 1972, mas, o texto de Rubin que marca um
começo de popularização do conceito data de 1975), na França havia uma série de outros
conceitos existentes com objetivos similares, ligados a diferentes tradições disciplinares.
É a partir dos anos 1990 que um debate sobre o mesmo ganha corpo.175 Diversas
são as razões para que o conceito não tivesse uma aceitação imediata. Inicialmente podemos
mencionar as objeções de ordem linguística, que apontam para o caráter intraduzível do termo
173
DE LAURETIS, Teresa.Quand les lesbiennes n’étaient pas des femmes : sur la portée épistemologique de la
Pensée Straight et du Corps Lesbien des années 80 à nos jours. In : BOURCIER, Marie-Hélène ; ROBICHON,
Suzette. Parce que les lesbiennes ne sont psa des femmes. Autour de l’oeuvre politique, théorique et litteraire de
Monique Wittig. Paris : Éditions Gays et Lesbiennes, 2002.
174
WITTIG, Monique. Introduction [2001]. In: WITTIG, Monique. La pensée straight. Paris: Amsterdam, 2007
p. 15.
175
MÖSER, Cornelia. Féminismes en traductions. Théories voyageuses et traductions culturelles. Paris:
Éditionsdes archives contemporaines, 2013.
219
Para outras autoras, a distinção entre sexo e gênero, uma vez que compreenderia
uma dicotomia entre biológico e cultural, acarretaria uma reificação da biologia, ocultando
assim seu caráter ideológico e histórico. Nicole-Claude Mathieu segue esse fio de
argumentação. Um outro motivo, vinculado ao exposto acima, é que o conceito de gênero
estaria ligado a um determinado paradigma teórico179, o “pós-modernismo” ou “pós-
estruturalismo” recusado, por exemplo, pelas feministas materialistas francesas. Por fim, vale
ainda lembrar outro argumento, relacionado à crítica anterior: o entendimento de que o
conceito de gênero eufemizaria as relações de poder, a ideia de antagonismo social
correspondente a um sistema de exploração e dominação, ideia que seria central no conceito
de relações sociais de sexo.
No Brasil, o conceito de gênero se estabeleceu, não sem gerar alguns debates, nos
anos 1990. Mas, como lembra Heilborn e Sorj, o termo relações sociais de sexo esteve “muito
176
“Gênero” seria um estrangeirismo desnecessário para algumas autoras chegando ao ponto de considerá-lo
como “tão somente um anglicismo irritante”. Ver por exemplo Ozouf e Sohn apud OFFEN. Le gender est-il une
invention américain? Clio n.24, 2006.
177
Para consultar o documento ver anexo do livro de Eleni Varikas Penser le sexe et le genre... Op. cit.
178
VARIKAS, Eleni. Conclusion. In: Fougeyrollas-Schwebel, Dominique. Et. al. (org). Le Genre comme
catégorie d’analyse. Sociologie, histoire, littérature. Paris: Harmmatan, 2003.
179
A ligação entre algumas discussões presentes nos estudos de gênero e o ideário “pós-estruturalista” ou
“desconstrutivista” é apontada por diversas autoras/es: “As autoras que se engajaram nas críticas aos
pressupostos presentes na distinção sexo/gênero, entre as que se contam teóricas que elaboraram re-formulações
do conceito de gênero, revelam a influência de referenciais teóricos fortemente influenciados pelo que podemos
chamar de aproximações desconstrutivistas”. PISCITELLI, Adriana. Re-criando a (categoria) mulher? Textos
Didáticos, n.48, novembro 2002, p.25.
180
LÖWY, Llana; ROUCH, Hélène. Genèse et développement du genre: les sciences et les origines de la
distinction entre sexe et genre. Cahiers du Genre, n.34, 2003.
220
181
HEILBORN, Maria; SORJ, Bila. “Estudos de gênero no Brasil”. In: MICELI, Sérgio. O que ler na ciência
social brasileira (1970-1995). Sociologia (volume II). São Paulo: Editora Sumaré: ANPOCS; Brasílio: CAPES,
1999, p.196.
221
Capítulo 6
Materialismos feministas
Feminismo e a esquerda
Estes trechos ilustram uma concepção bastante difundida no seio das organizações
comunistas e, de uma forma mais geral, de esquerda, entre o final do século XIX e uma
grande parte do século XX. A ideia subjacente a essa concepção é a diluição da “questão
feminina” nas relações de classe (estas últimas frequentemente tomadas como relações de
propriedade), de modo a negar uma especificidade da questão e a necessidade de instrumentos
mediatórios para a superação dessa forma de dominação. Toda atividade militante, deveria,
portanto, ser canalizada para a abolição do sistema capitalista. Segundo tal concepção, o
movimento feminista é incapaz de levar até as últimas consequências o seu princípio
norteador, que não seria realizável senão numa sociedade pós-revolucionária. Ao se
concentrar nos “interesses mais mesquinhos do mundo feminino”, como afirma Zetkin, o
1
ZETKIN, Clara. La cuestion femenina y la lucha contra el reformismo. Barcelona, Anagrama, 1976, p.107.
2
KRUPSKAIA apud HEINE. De la I à la III Internationale, la question des femmes. Critique Communiste,
Paris, dezembro 1977/janeiro 1978, p.109.
3
DUMONT, Yvonne (org.). Les communistes et la condition de la femme etude de la Commission Centrale de
Travail du Parti Communiste Français Parmi les Femmes. Paris: Editions Sociales, 1970, p. 129.
222
Para uma grande parcela do movimento feminista do final dos anos 1960 e início
dos anos 1970, a proposta feminista era uma radicalização das lutas de esquerda. Os exemplos
dessa concepção são vários. Para Ellis Willis, fazendo referência aos Estados Unidos:
com poucas exceções, aquelas de nós que primeiro definiram o feminismo
radical pressupuseram que radical implicava em um posicionamento
antirracista, anticapitalista e anti-imperialista. Nós nos víamos como
radicalizando a esquerda por expandir a definição de radical para incluir
feminismo.4
4
WILLIS, Ellis. Radical feminism and feminist radicalism. In: SAYRES, S. et. al. The 60’s without apology,
Minneapolis: Univ. of Minnesota, 1988 p.93.
5
FIRESTONE, Shulamith. A dialética do sexo... Op. cit., p.51.
6
Kate Millet foi militante do New York NOW e do New York Radical Women. ECHOLS, Alice. Daring Op. cit,
p.383.
7
MILLET, Kate. La politique du mâle. Paris: Stock, 1971, p. 393.
8
RUBIN, Gayle; BUTLER, Judith. Tráfico sexual – uma entrevista. Cadernos Pagu. no.21, 2003, p. 158.
9
DELPHY, Christine. Féminisme et marxisme. In: MARUANI, M. (org.) Femmes, genre et sociétés. Paris: La
Découverte, 2005, p. 32.
223
10
Ver Françoise Picq. LIbération des femmes. Op. cit.
11
FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL, Dominique. Controverses et anathèmes au sein du féminisme français des
années 1970. Cahiers du genre, n.39, 2005
12
FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL, Dominique. Le féminisme des années 1970. In: FAURÉ, Christine (org.)
Encyclopédie politique et historique des femmes. Paris: PUF, 1997, p. 735.
13
BEAUVOIR, Simone de. France: Feminism – Alive, Well, and in Constant Danger. In: MORGAN, Robin.
Sisterhood is Global. The International Women’s Movement Anthology., Nova York: Garden City, 1984
14
QUELQUES MILITANTS. Présentations. Partisans (Libération des femmes. Annee zero), n.54-55, julho-
outubro de 1970, p. 6.
224
Muita tinta correu nos anos 1970 procurando fomentar um “casamento entre
feminismo e marxismo”. Essas tentativas, empreendidas por feministas de diferentes países e
orientações políticas, dariam origem a uma série de conceitos e perspectivas. Essas teorias
ganharam múltiplas denominações: feminismo socialista, feminismo marxista, feminismo luta
de classes, feminismo materialista, etc. Não é possível aqui retomar todas essas teorizações,
contemplando sua diversidade. No entanto, antes de nos concentrarmos na perspectiva que
nos interessa mais particularmente, cabe aqui mencionar, em linhas gerais, algumas trilhas
abertas por esses debates.
Para algumas autoras, a explicação para a subordinação das mulheres teria origem
nas relações de produção (seja nos termos de uma análise marxista mais ortodoxa, que a
atribui ao capitalismo, seja a partir da consideração de que o processo de produção gera tanto
relações capitalistas como patriarcais). Outras enfatizavam a “reprodução” (por exemplo,
Michele Barret), entendida, muitas vezes, como reprodução biológica, como em Firestone.17
Outras ainda buscavam explicar a subordinação em termos ideológicos, tal como Juliet
Mitchell, em Feminismo e psicanálise.18
15
DOCUMENTS. Résumé du texte des hollandaises féministes-socialistes. Questions féministes n° 2, fev. 1978,
p. 93.
16
JACKSON, Stevi. Marxisme et féminisme. Op. cit...
17
FIRESTONE, Shulamith. A dialética do sexo: um manifesto da revolução feminista. Rio de Janeiro: Labor do
Brasil, 1976.
18
JACKSON, Stevi. Marxisme et feminisme. Op. cit.
225
19
DUPONT, Christine. L’ennemi principal. Partisans n. 54-55, julho-out. 1970, p.157-158.
226
patriarcado, dentre outros, não tiveram influência da academia.20 Sobre o seu percurso
acadêmico, cabem alguns comentários.
O modo de circulação de bens que ela chama de “patrimonial” seria oposto àquele
de mercado, pois não é caracterizado pela troca, mas pela dádiva, os seus atores não são
intercambiáveis, mas têm posições definidas por regras de parentesco, e, por fim, essa
circulação não depende desses atores. Esse estudo lhe permitiu analisar um aspecto do
econômico que não era tematizado pela economia política, pois considerado como não-
econômico por definição. Retrospectivamente, Delphy considera que este trabalho forneceu
instrumentos teóricos para analisar a opressão feminina, permitindo-lhe “desmistificar” a
centralidade pressuposta do mercado para a análise das relações de produção cair na piège
classique de uma oposição entre valor de uso e valor de troca. Na sua visão, essa perspectiva
teria aprisionado algumas das autoras com preocupações similares à sua, como Benston e
Larguia, levando-as a um impasse teórico.23
20
Delphy afirmava em 1981”Não é por um acaso que em nenhum momento falei da minha especialidade
profissional ou da universidade em relação ao conceito de patriarcado: é que a Universidade não teve nenhum
papel na criação desse conceito assim como de nenhum outro conceito político, tal como igualmente não exerceu
nenhum papel na emergência do movimento social, o feminismo, que elaborou análises e conceitos sobre os
quais falamos”. DELPHY Christine. Le patriarcat, le féminisme et leurs intellectuelles. Nouvelles Questions
féministes. n° 2, 1981,p. 66.
21
DELPHY, Christine. Expose de titres et travaux [relatório] 20 de dezembro de 2000.
22
DELPHY, Christine. Le patrimoine français ou la double circulation des biens dans l’espace économique et le
temps social. Revue française de sociologie, n.spécial sur les faits économiques, 1969.
23
DELPHY, Christine. Avant-propos. In: DELPHY, Christine. L’ennemi principal 1. Economie politique du
patriarcat. Paris: Syllepse, 2009.
227
superestruturais para explicar a persistência da opressão feminina, uma análise que a autora
considera idealista e não-marxista. Essa visão seria um freio para o movimento e não
responderia a uma “dupla exigência, teórica e política” do feminismo: encontrar razões
estruturais para a insuficiência da abolição das relações de produção para a libertação das
mulheres e constituir-se como força autônoma.
24
DUPONT, Christine. L’ennemi principal. Partisans n. 54-55, juillet-octobre 1970, p. 170.
25
Ibidem, p. 171.
228
Esse texto foi um marco na reflexão feminista na França. Para Louis Astre,
“L’ennemi principal” constituiria uma “referência para a história do movimento feminista”.29
Este exprimiria uma renovação teórica e prático-estratégica do feminismo, projetando uma
nova perspectiva analítica para abordagem da opressão das mulheres e iluminando territórios
de relações marginalizados no campo da esquerda, como a família e o trabalho doméstico.
26
Ibidem, p. 171.
27
Ibidem, p. 171.
28
Ibidem, p.171.
29
Louis Astre ; Delphy, Christine. Le patriarcat: une oppression spécifique [1988] . In: DELPHY, Christine.
L’ennemi principal 2 Penser le genre. Paris: Syllepse, 2009, p. 55.
229
Essas referências ao importante papel histórico desempenhado por esse texto não
devem, no entanto, ser lidas como uma análise de sua recepção. Com efeito, o texto foi alvo
de diversas críticas, oriundas tanto de setores mais próximos da esquerda, dentro e fora do
feminismo, como de outros, teórica e politicamente mais distantes do campo da esquerda.
Para Léger [1976], o artigo teria “provocado e continua a provocar muita polêmica”.32 Como
afirma Françoise Picq, “ele parecia apolítico para aquelas que, tornando-se feminista, não
queriam renegar a consciência de classe adquirida na militância; para aquelas que rompiam
com o esquerdismo ela podia parecer, ao contrário, como uma adesão desviada dos princípios
os quais cabia superar”.33 Assim, enquanto “Anne (la grande)”, em 1970, em um boletim
artesanal, distingue sua abordagem daquela da autora do “Inimigo principal” justamente por
considerar que o marxismo não pode servir de “referência teórica para a liberação”34, outras,
como Barrett e McIntosh35 pensavam que, apesar de partir de uma perspectiva marxista, esse
texto promove uma apropriação problemática do quadro conceitual marxista e que sua análise
não seria suficientemente marxista ou materialista. Essas críticas serão abordadas mais
detalhadamente mais adiante.
30
PICQ, Françoise. Féminisme, matérialisme, radicalisme... Op. cit., p. 53.
31
GALERAND, Elsa ; Kergoat, Danièle. Les apports de la sociologie du genre à la critique du travail. La
nouvelle revue du travail, n.4, 2014, p.5.
32
DELPHY Christine, LÉGER Danièle. Débat: capitalism, patriarcat et lute des femmes. Revue Premier Mai,
n.2, 1976, p.82-83.
33
PICQ Françoise. Féminisme, matérialisme, radicalisme. La revue d’en face, n.13, hiver 1983, p. 42.
34
Anne (“la grande “) A propos de la discussion sur le texte de Christine L’ennemi principal. Bulletin du
Mouvement de Libération des femmes, n.2 (10 décembre 1970).
35
BARRETT, Michèle ; McIntosh, Mary. Christine Delphy: vers un féminisme matérialiste ? [1979]. Nouvelles
Questions Féministes, n. 4, 1982.
230
36
DUPONT Christine. L’ennemi principal. Op. cit., p. 158.
37
A referência não aparece na versão publicada em livro. DELPHY, Christine. L’ennemi principal. In :
DELPHY, Christine. L’ennemi principal 1. Op. cit.
38
DUPONT Christine. L’ennemi principal. Partisans n. 54-55, juillet-octobre 1970, p. 158
39
GUILLAUMIN Colette, Margaret Benston’s ‘Political Economy of Women’s Liberation’. International
Impact. Canadian Woman Studies, vol.13, n.2
40
QUELQUES MILITANTS. Présentations. Partisans (Libération des femmes. Annee zero), n.54-55, julho-
outubro de 1970, p.8.
41
BENSTON, Margaret. Pour une économie politique de la libération des femmes. Partisans n. 54-55, juillet-
octobre 1970, p.23.
231
definem o grupo mulheres”.42 Nesse sentido, com o intuito de produzir uma conceituação
adequada dessa categoria social, a autora argumenta que seria necessário partir do trabalho
que lhes é atribuído, isto é, do trabalho doméstico.
A autora destaca duas condições essenciais para a libertação das mulheres: acesso
de mulheres e homens aos trabalhos fora de casa e a conversão do trabalho doméstico em
parte constitutiva da “economia pública”. Essas seriam as condições estruturais necessárias à
superação da discriminação das mulheres, suprimindo sua “base material”. Mas, o processo de
superação definitiva da discriminação seria mais longo, uma vez que a ideia da inferioridade
das mulheres está “profundamente enraizada na sociedade”.49
42
Ibidem, p.24.
43
Ibidem, p. 23.
44
Ibidem, p. 25.
45
Ibidem, p. 30.
46
Ibidem, p. 23.
47
MITCHELL, Juliet. Women: the longest revolution. New Left Review, n.40, 1966.
48
BENSTON, Margaret. Pour une économie politique... Op. cit., p. 26.
49
Ibidem, p. 29.
232
Isabel Larguia, uma feminista argentina, outra autora citada por Delphy, num
texto traduzido e igualmente publicado em Partisans, “Le travail invisible”, acusa a falta de
uma “teoria científica adequada à evolução atual das mulheres”50, o que teria deixado um
vazio teórico que foi ocupado por elucubrações “psicobiológicas” e liberais. Para a autora, era
fundamental deslocar a primazia explicativa dos fatores biológicos ou psicológicos e
estabelecer uma plataforma teórica orientada para a análise da “estrutura da sociedade de
classes” e, fundamentalmente, da “divisão do trabalho”.
50
LARGUIA, Isabel. Contre le travailinvisible. Partisans (Libération des femmes. Annee zero), n.54-55, julho-
outubro de 1970, p.206.
51
Ibidem, p. 210.
52
“Manifeste FMA”, sem data (provavelmente entre 1969 e início de 1970). Fonds Annne Zelensky. Biblithèque
Marguerite Durand.
53
ROTHENBURG Marcia, STEPHENSON Margaret, WITTIG Gille, WITTIG Monique, “Combat pour la
libération de la femme ”, L’idiot international, n. 6, mai 1970. Este texto foi republicado numa antologia de
textos do MLF: COLLECTIF. MLF. Textes premiers. Paris: Stock, 2009.
54
WITTIG, Monique. Monique Wittig raconte... Prochoix n.46, 2008, p. 67.
233
oprimida” e propõe analisar “nossas relações com os meios de produção e o sistema que nos
controla ”.55 A função econômica da “servidão” das mulheres no seio da família é ressaltada.
Essa função seria “ cuidadosamente dissimulada ” das mulheres e é vista como algo que faria
a força dessas últimas e como um elemento que seria uma ameaça à “ordem estabelecida”.56
A afirmação de que existem relações sociais que não são redutíveis às relações de
classe marca uma “virada” nas reflexões feministas. Trata-se de um elemento fundamental
que distingue essas reflexões das análises precedentes, modificando completamente a forma
de apreender o problema. Antes de tudo, permite sustentar a existência de uma “opressão” ou
“exploração” específica das mulheres, especificidade que começa a permear até mesmo as
análises que ainda localizam no capital a causa última dessa “opressão”. É somente a partir do
momento no qual a opressão específica das mulheres é separada, no plano da análise, das
relações de classe, que toda tentativa de articular relações sociais torna-se possível.
55
ROTHENBURG Marcia, et al. Combat pour la libération de la femme. Op.cit., p.35.
56
Ibidem, p. 32.
57
LESSEPS Emmanuelle de, Hennequin Claude. Trois ans de MLF. Actuel n. 25 (novembre 1972), p.6.
58
Ibidem.
234
numa situação onde isso salta aos olhos e na qual são tiradas vantagens
consideráveis das mulheres.59
Uma resenha sobre o número de Partisans (Libération des femmes année zero) foi
publicada na revista marxista L’homme et la société61 e nos fornece alguns elementos para
compreender as interlocutoras.es dessas teorizações. Este número seria composto por dois
tipos de análise: aquele cuja ênfase recaía sobre a “situação econômica da mulher” e aquele de
artigos que abordavam a “opressão sexual” como algo a que a mulher estaria submetida por
conta do “chauvinismo masculino”. Se as análises do primeiro tipo são consideradas, em sua
maioria, como “notáveis”, aquelas do segundo tipo são criticadas como abordagens que visam
a relação homem-mulher ”destacada de seu contexto social”62, de modo que “não se percebe
mais sobre o que [a opressão] repousa”.63
Seria justamente para mostrar sobre o que essa opressão repousa que se
desenvolveu essa perspectiva. Ela deve, portanto, ser encarada, em certo sentido, como uma
resposta a um conjunto de críticas provenientes da esquerda. Liliane Kandel ressalta que,
naquela época, era fundamental provar, faceando as provocações oriundas da extrema
esquerda, que “as mulheres não eram somente acossadas e maltratadas, mas que elas eram
64
trabalhadoras, tanto quanto os proletários”. Nesse sentido, não deve surpreender que,
inicialmente, a resposta a essa doxa fosse, em geral, formulada nos termos da própria
esquerda. Assim, as primeiras tentativas de explicação a partir de uma base material da
opressão das mulheres foram vazadas frequentemente em termos econômicos. Alguns títulos
são bastante explícitos em relação à importância dada ao fator econômico: “L’interdiction de
l’avortement, exploitation économique” (A proibição do aborto, exploração econômica),
assinado por “algumas militantes” (que Delphy identifica como C. Hennequin, E. de Lesseps
e ela própria), publicado em 1970, ou ainda a dissertação de mestrado (maîtrise) Le divorce
59
GUILLAUMIN Colette. Sexes: nous avons dit classes...(entrevista). Partis pris n.8, mars 1978, p.10.
60
DELPHY, Christine. Avant-Propos. In: DELPHY, Christine. L’ennemi principal 1. Op. cit., p. 8.
61
ROLLE, Christiane; ZAGNOLI, Nello. “Revue des revues”. L’homme et la société, vol. 19, n.1, 1971.
62
Ibidem, p. 218.
63
Ibidem, p. 220.
64
DELPHY, Christine. Le patriarcat: une oppression spécifique. (Entrevista feita por Louis Astre com a
participação de Liliane Kandel). [1988]. In: DELPHY, Christine. L’ennemi principal 2. Op. cit, p.58.
235
Delphy afirma, numa entrevista em 2004, que estaria, na época, “sob influência de
uma versão mais economicista do paradigma marxista”.65 Tratar-se-ia, de certo modo, de uma
resposta a um marxismo economicista, orbitando, até certo ponto, seus próprios termos. Pode-
se dizer que o fundamento econômico da opressão feminina, para recuperar as palavras de
Delphy a propósito de outra teoria, tinha uma “utilidade retórica, uma força de convicção em
relação a um público preciso, em um contexto histórico e social preciso”.66
Cabe ressaltar que outras tentativas de encontrar uma base material da opressão
feminina se desenvolveram em setores ligados à tendência “luta de classes”. Mas essa base
era, muitas vezes, identificada ao capitalismo. O editorial do primeiro número do jornal
Pétroleuse (1974) ilustra bem essa posição:
Nós nos separamos de outras correntes do MLF por nossa análise da
opressão das mulheres: esta, para nós, não tem raízes na ‘perversidade’ dos
65
GIRAUD, Véronique ; JAMI, Irène, SINTOMER, Yves. Fonder en théorie qu'il n'y a pas de hiérarchie des
dominations et des luttes. [Entrevista com Christine Delphy], Mouvements, n (no35), 2004, p. 123.
66
Uso aqui as palavras de Delphy em relação a teoria da mais-valia. DELPHY, Christine. Pour une théorie
générale de l’exploitation. Des différentes formes d’extorsion de travail aujourd’hui. Paris: Syllepse, 2015,
p.86.
67
Féministes Révolutionaires. Torchon brûle n.5, s.d., p.8 [data aproximada: primeiros meses de 1973].
68
GIRAUD, Véronique ; JAMI, Irène, SINTOMER, Yves. Fonder en théorie...[Entrevista com Christine
Delphy] Op. cit., p. 121.
236
Aqui se recusa também a ideia de uma opressão que estaria no plano das
“mentalidades”, mas a base não é um outro modo de produção ou um sistema distinto do
capitalismo. Trata-se de um dos pontos de divergência entre o feminismo revolucionário e o
feminismo luta de classes. Se a crítica ao naturalismo e a ideia que a opressão “faz sistema”
eram objeto de consenso, o mesmo não pode ser dito em relação à origem da opressão e a
identificação dos beneficiários principais dessa opressão (para as primeiras seriam os homens
enquanto classe enquanto para as segundas seria o sistema capitalista).
69
PETROLEUSES, sem título, Pétroleuses, n° 0, s.d., p. 2.
70
Delphy se referia fundamentalmente ao PCF como esquerda reformista e a diferentes setores trotskistas,
maoístas como extrema esquerda.
71
DELPHY, Christine ; LÉGER Danièle. Débat: capitalism, patriarcat et lute des femmes. Revue Premier Mai,
n.2, 1976, p. 37.
72
DALLA COSTA, Mariarosa; JAMES, Selma. Le pouvoir des femmes et la subversion sociale. Genève:
Librairie Adversaire, 1973.
237
1971. Este texto se insere claramente num ideário marxista e entretém um diálogo constante
com a esquerda. A autora, que recusa a separação entre “luta de classe” e “luta feminista”,
tenta propor novas alternativas ao nascente movimento.
73
Ibidem, p.12.
74
Ibidem, nota p. 64.
75
Ibidem, p.11.
76
Idem, p.9.
77
Ibidem, p.9.
78
Ibidem, p.9.
238
Como solução, Dalla Costa recusa a ideia de inserção das mulheres no mercado
de trabalho: “Nenhuma de nós acredita que a emancipação, a libertação se efetua pelo
trabalho, em casa ou fora dela. A autonomia salarial significa somente que se é um ‘indivíduo
livre’ para o capital, e isso não é menos válido para as mulheres do que para os homens”80. As
mulheres não precisariam passar pelo assalariamento do sistema capitalista como etapa rumo
a uma “libertação” 81, o que equivaleria, segundo a autora, a trocar a escravidão da pia da
cozinha pela escravidão da linha de montagem.82
79
Ibidem, p. 55.
80
Ibidem, p.68.
81
A autora faz um paralelo interessante entre a situação dos países do Terceiro Mundo e das mulheres do
Primeiro Mundo:“La planification capitaliste offre au Tiers-Monde de se ‘développer’: c’est-à-dire d’ajouter au
purgatoire présent les souffrances du purgatoire de la contre-révolution industrielle. C’est la même ‘aide’ qu’on a
offerte aux femmes de la métropole. (…) Nous devons refuser le développement qu’on nous propose ”. Ibidem,
p. 95.
82
Ibidem, p.68.
83
Para maiores informações sobre esse movimento, consultar: TOUPIN Louise, Le salaire au travail ménager.
Chronique d’une lutte féministe internationale (1972-1977), Montréal, Remue-ménage, 2014.
84
Ibidem, p.14.
85
COLLECTIF L’INSOUMISE. Le foyer de l’insurrection: textes sur le travail pour le travail ménager,
Genève, Collectif l’insoumise, 1977, p. 99.
239
Outra linha de reflexão que emerge nesse contexto ficaria conhecida como
domestic labour debate. Esse debate recobre diferentes temas, tais como o caráter produtivo
ou não do trabalho doméstico, a produção de mais-valia, a existência de diversos modos de
produção etc. Kaluzynska listava, em 1980, mais de cinquenta artigos sobre essas questões
publicados nos EUA e Inglaterra, durante os anos 1970. É importante ressaltar que esse
debate se desenvolveu, sobretudo, na imprensa de esquerda, em periódicos como New Left
Review (que publicou diferentes artigos sobre a questão), Montly review, Capital and Class,
Bulletin of the Conference of Socialist Economists e teve início no final dos anos 1960,
concentrando-se particularmente nos dois países mencionados e durou de forma mais intensa
pouco mais de dez anos.
O trabalho doméstico era pouco tematizado nos trabalhos marxistas. É a partir dos
debates feministas que se desenvolvem nesse momento que este tipo de trabalho ganha um
estatuto teórico, particularmente no campo marxista. Nesse campo, a família era
frequentemente tomada somente na sua dimensão superestrutural, tendo perdido suas funções
86
Ibidem, p. 14.
240
Se, para Dalla Costa, como vimos, o trabalho não produz somente valor de uso,
mas seria um trabalho produtivo “no sentido marxista do termo”, isto é, um “trabalho que
produz mais-valia”87, para muitas outras, o trabalho doméstico não produz nem mercadoria,
nem mais-valia (Harrison, 1973, Seccombe, 1975). Em outras abordagens, a questão se
desloca do produto para as relações de produção. Torna-se possível, então, pensar que, mesmo
que o trabalho doméstico não seja fonte de produção de valor, ele produz, não obstante, um
excedente específico desse tipo de trabalho, o qual constitui um modo de produção à parte. As
mulheres, enquanto trabalhadoras domésticas, sofrem uma exploração que difere daquela da
classe trabalhadora88. Em um sentido amplo, pode-se dizer que todas essas teorias foram
tentativas de encontrar uma explicação “materialista” para a opressão das mulheres.
Esses textos, apesar das diferentes orientações teóricas e políticas, têm, como
ponto em comum, a centralidade do trabalho doméstico nas suas explicações. Elas procuram
também mostrar que a opressão feminina tem uma base material e tentam produzir, como
afirma Molyneux, uma “teoria da economia política das mulheres”.89 Esse debate mais teórico
tinha consequências muito claras de ordem estratégica para o movimento. Se algumas análises
procuravam aproximar o trabalho doméstico do capital para “mostrar a base material,
incitando a uma unidade estratégica de luta para a libertação das mulheres e a luta por uma
revolução proletária”90outras afirmavam, ao contrário, a autonomia de dois sistemas,
patriarcado e capitalismo, uma autonomia que justificaria a “necessidade de um movimento
autônomo”.91 Na impossibilidade de tratar todo esse complexo debate em todas as suas
nuances, apresentaremos somente um dos textos como forma de ilustrar alguns dos pontos
presentes na discussão desencadeada.
87
DALLA COSTA, Mariarosa; JAMES, Selma. Le pouvoir des femmes et la subversion sociale . Op. cit., p.64.
88
Delphy, 1970 ; Harrison 1973 ; MOLYNEUX, Maxine. 'Más allá del debate sobre el trabajo doméstico [1979].
In: RODRIGUEZ, Dinah; COOPER, Jennifer (org.). Cidade do México: UNAM, 2005.
89
Ibidem, p. 14.
90
COULSON, Margaret; MAGAS, Branka; WAINWRIGHT, Hilary. La femme au foyer et son travail dans le
système capitaliste. Critique communiste, n° 4, 1975 / 1976, p. 59
91
DUPONT, Christine. L’ennemi principal. Partisans. Op. cit., p.158.
241
“The housewife and her labour under capitalism” de Wally Seccombe foi um dos
primeiros a serem publicados dentro desse debate em 1973 na revista New Left Review.
Segundo o autor, a dificuldade da análise do trabalho doméstico reside, em primeiro lugar, em
que o produto do trabalho da dona de casa se corporifica em outra pessoa. Em segundo lugar,
embora contribua para a criação de riqueza, não tem uma relação direta com o capital, não é
“explorada” em termos marxistas, pois não produz valor excedente. Por fim, a ausência de
pagamento (assalariamento) desfavorece sua apreensão em termos econômicos (sendo
apreendido como vocação, obrigação etc.).
A partir de meados dos anos 1970, Mathieu, Guillaumin assim como as outras
citadas na primeira parte do trabalho – Delphy, Lesseps, Hennequin – se encontrariam em
alguns espaços de discussão que serviram de base para iniciar as discussões do projeto de
lançar a revista Questions féministes. Nesses debates, como procuramos mostrar no capítulo 4,
dois eixos de reflexão emergem com força: a crítica ao naturalismo e a proposta de articular
uma análise materialista da opressão. A revista agrupa feministas com trajetórias e
engajamentos distintos. As escolhas temáticas e conceituais assim como o peso dado a
algumas questões traduzem essas diferenças. Se algumas procuram saber de que forma o
biológico é político94, outras se focam na questão da materialidade da opressão.
92
MATHIEU, Nicole-Claude. Homme-culture et femme-nature ? L'Homme, 1973, tome 13, n°3, p. 101.
93
GUILLAUMIN, Colette, Pratique du pouvoir et idée de Nature. L'appropriation des femmes. Questions
féministes, n° 2, 1978, p. 7.
94
QUESTIONS FEMINISTES. Variations sur des thèmes communs. Questions Féministes, n. 1, nov. 1977, p.
16.
243
95
QUESTIONS FEMINISTES. Variations sur des thèmes communs. Questions Féministes, n. 1, nov. 1977, p.7.
96
Ibidem, p.6.
97
Ibidem, p. 16.
98
Ibidem, p. 7-8.
244
99
C. D., Pour un féminisme matérialiste. L’Arc, n° 61, 1975, p. 62.
100
DELPHY, Christine. Le patriarcat, le féminisme et leurs intellectuelles. Nouvelles Questions féministes, n° 2,
1981, p. 66.
101
GUILLAUMIN, Colette. Nature et histoire. A propos d’un ‘matérialisme’. In: POLIAKOV, Léon. Le
racisme, mythes et sciences. Bruxelles: Éditions Complexe, 1981, p.56.
102
WITTIG, Monique. On ne naît pas femme. In: WITTIG, Monique. La pensée straight. Paris: Editions
Amsterdam, 2007, p. 45
103
Ibidem, p. 45.
245
Sexagem
Se Delphy utiliza como “modelo” para pensar a “classe das mulheres” as relações
de produção capitalista, Guillaumin se remete a relações de produção pré-capitalistas. A
apropriação da força de trabalho das mulheres no quadro da família não é suficiente para
explicar a opressão das mulheres, para Guillaumin. A classe das mulheres “sofre não somente
o açambarcamento da sua força de trabalho, mas uma relação de apropriação física direta”,
isto é, é o corpo , “a unidade material produtora da força de trabalho que é tomada em mãos, e
não apenas a força de trabalho.104A autora propõe chamar esse sistema de “ sexagem ”.
O conceito de sexagem foi proposto, pela primeira vez, por Colette Guillaumin
em “Pratique du pouvoir et idée de nature”, publicado em 1978, na revista Questions
féministes. Para Guillaumin, a “natureza específica da opressão das mulheres” é a
apropriação. Mas, para a autora, não é somente a força de trabalho que é apropriada, como
propõem muitas feministas. Para além disso, a unidade material produtora da força de
trabalho é inteiramente “açambarcada”. A apropriação da força de trabalho das mulheres no
quadro do casamento não seria suficiente para explicar sua opressão, na medida em que as
mulheres estão submetidas também a “uma relação de apropriação física direta”, como na
escravidão ou na servidão. Ela denomina esse processo de “sexagem” (sexage) por analogia
com a servidão (servage) e a escravidão (esclavage):
104
GUILLAUMIN, Colette. Pratique du pouvoir et idée de nature. [1978], Op. citl, p.19. [Versão brasileira :
FERREIRA, Verônica; ÁVILA, Maria Betânia; FALQUET, Jules; ABREU, Maira (org.) O Patriarcado
Desvendado: teorias de três feministas materialistas. Colette Guillaumin, Paola Tabet e Nicole-Claude Mathieu.
Recife: Edições SOS Corpo, 2016, p. 34.
105
Ibidem.
106
FERREIRA, Verônica; ÁVILA, Maria Betânia; FALQUET, Jules; ABREU, Maira (org.) O Patriarcado
Desvendado. Op. cit.
246
A apropriação física direta não seria, portanto, uma característica somente das
relações entre os sexos. Ela seria a base da escravidão e da servidão. Um longo processo
histórico foi necessário para que somente a força de trabalho fosse apropriada e não a própria
unidade material produtora dessa força de trabalho. A venda da força de trabalho é, assim,
uma forma particular do seu uso e emerge num momento histórico preciso. Atualmente, ao
menos nas sociedades ocidentais, a servidão e escravidão fazem parte do passado, mas, a
apropriação física continua sendo a base das relações entre os sexos:
107
Ibidem, p. 38. [Versão brasileira Idem, p.53-54]
108
Ibidem, p. 20. [Versão brasileira, p. 35]
109
Ibidem.
247
Guillaumin considera que existem duas formas de uso físico sexual, uma que
se dá num quadro de um contrato não monetário, o casamento, e outro, diretamente
remunerado, a prostituição. A oposição aparente é relativa à intervenção ou não de um
pagamento, isto é, a uma medida desse uso físico. A venda limitaria o uso físico a um uso
somente sexual. No casamento o uso físico é estendido a todas as formam possíveis desse uso
e um uso central seria a relação sexual, que constitui uma obrigação no contrato de
casamento.
110
Ibidem, p. 22 [Versão brasileira, p. 37].
111
Idem, p. 36 [Versão brasileira, p.52].
248
expressão do direito dos homens de propriedade sobre a classe das mulheres. Por fim, o
arsenal jurídico fixaria as modalidades da apropriação privada das mulheres.
Delphy afirmou, no início dos anos 1970, que o conceito de “classe das mulheres”
poderia incluir homens, dado que não é a biologia que definiria os membros da mesma. Outra
crítica endereçada ao conceito de patriarcado e de classe das mulheres da mesma autora, é que
estes se concentrariam excessivamente na família, como veremos no próximo item. A teoria
de Guillaumin permite superar os dois problemas indicados. Mas, cabe ressalvar, o papel da
“anatomia sexual” nas teorizações de Guillaumin, não é vista a partir de um prisma
biologizante. A autora procura mostrar como é em certas relações sociais que essas
112
Ibidem, p.49.
113
Ibidem, p. 81.
114
C.G., Odile DHAVERNAS, Droit des femmes, pouvoir des femmes, Paris, Ed. Du Seuil, 1978c, 398 p. (coll.
« Libre à elles »). [resenha], Questions Féministes, n° 4, 1978c, p. 102.
249
características anatômicas são eleitas como relevantes e como fator de hierarquização. Tal
como a raça, o sexo não pode ser compreendido fora dessas relações. Negar a existência de
uma essência racial ou sexual não implica, assim, pensar que a simples crítica à biologização
é suficiente para superar o racismo e a sexagem. Não se trata de algo que se localiza somente
no plano das ideias. O materialismo aparece aqui como uma forma de superar tanto o
naturalismo como uma concepção “idealista” da opressão, que desconsidera as relações
sociais concretas sobre as quais se constroem essas relações.
Cabe ainda ressaltar que Monique Wittig também seria crítica ao conceito mas por
outras razões. Num artigo de 1981ela afirma, ela o critica por seu caráter straight:
Ele supõe pais e, portanto, mães, um poder dos pais sobre as mães (...). Ele
escamoteia a heterossexualização, a heterossexualidade como sistema de
dominação. Faz que as mulheres sejam inicialmente e antes de qualquer
coisa (e somente) definidas como mães e forçadas a sê-lo. ‘Patriarcado’
supõe uma ordem natural.115
A proposição de Wittig se insere num debate mais amplo, marcada por uma crítica
da heterossexualidade como regime político e a emergência de uma mouvance “lésbica
radical” que serão abordadas no próximo capítulo.
Marxismo e marxismos
Uma grande parte desses debates ganha corpo dentro de um campo amplo que
podemos chamar de forma vaga como “esquerda” e contrapõem diferentes visões sobre a
origem da opressão, as formas de transformação social, estratégias para levar a cabo essas
mudanças etc. Trata-se frequentemente de um embate no interior do marxismo, tomado aqui
num sentido amplo.
O que seria uma teoria feminista marxista ou não era uma questão que
provocava polêmicas nos anos 1970, e algumas disputas incidiam sobre o perímetro do que
deveria ser considerado como parte dessa perspectiva. São frequentemente polêmicas em
torno de uma ideia ortodoxa do marxismo. Muitas feministas foram, nesse contexto, acusadas
115
WITTIG, Monique. Les questions féministes ne sont pas des questions lesbiennes. Amazones d'hier,
lesbiennes d'aujourd'hui, vol. 2, n° 1, 1983, p.11.
250
É justamente por essa forma de utilizar o marxismo que Delphy afirma ter lançado
a fórmula “materialismo”, que vincula essas teorizações ao marxismo mas que não adere a
todas as análises e usos do marxismo:
O emprego do termo “materialista” (e não “marxista”) tem por objetivo
indicar que, se mantenho os grandes princípios gerais da análise marxista,
recuso as aplicações particulares, incluindo aquelas de Marx.117
116
DELPHY, Christine. Féminisme et marxisme. In : DELPHY, Christine. Un universalisme si particulier.
Feminisme et exception française (1980-2010). Paris : Syllepse, 2010, p. 84.
117
DELPHY, Christine. Avant-propos. L’ennemi principal... Op. cit., p.25.
118
WITTIG, Monique. On ne naît pas femme [1980]. Op. cit., p.49.
119
ERGAS, Yasmine. Le sujet-femme. Le féminisme des années 1960-1980. In: DUBY, George; PERROT,
Michèlle. Histoire des femmes en Occident, vol. 5. Paris: Plon, 1990, p. 509.
251
A ideia de que as mulheres seriam uma classe foi utilizada por feministas
pertencentes a diferentes tradições teóricas e adquiriu múltiplas acepções. Para exemplificar
formas distintas de uso dessa categoria, começaremos por alguns textos escritos por
feministas radicais estadunidenses, publicados em Notes from second year120 em 1969,
particularmente os manifestos de grupos, alguns deles traduzidos para o francês e publicados
no número especial de Partisans (Libération des femmes. Année zero).
Firestone, que fez parte do grupo supracitado, procura definir de forma mais
precisa a ideia de “classes sexuais”. Para a autora, haveria uma “desigualdade fundamental”
fundada pela natureza, entre homens e mulheres.124 “A natureza” afirma “criou essa
desigualdade fundamental – a metade dos humanos deve portar e criar os filhos do conjunto
da espécie – que mais tarde foi reforçada e institucionalizada em benefício dos homens”.125
120
Notes from the Second Year: Radical Feminism. (cuja editora responsável era Shlamith Firestone. Anne
Koedt era editora associada), 1969.
121
THE FEMINISTS. The Feminists: A Political Organization to Annihilate Sex Roles .Notes from second year.
Op. cit., p.114.
122
Ibidem, p.117.
123
A. K. Politics of the Ego: A Manifesto For N.Y. Radical Feminists. Notes from second year. Op. cit., p.124.
124
FIRESTONE, Shulamith. La dialectique… Op. cit, p.261
125
Ibidem, p. 261.
252
Ela propõe usar o “método analítico” de Marx e Engels para analisar o sistema
de classes sexuais e elaborar uma “concepção materialista da história” que teria como base a
categoria “sexo”.126 A crítica de Firestone ao marxismo aponta para a insuficiência deste para
analisar a dinâmica desse sistema, dado que suas categorias se voltariam exclusivamente para
a apreensão da realidade econômica e não chegariam às “raízes psicossexuais da noção de
classe”.127 Mas, para Firestone, não se trata de rejeitar o marxismo mas de ampliá-lo. Para
abolir todos os sistemas de classe, a autora propõe uma “revolução sexual” que inclua uma
revolução socialista, mas vá além desta. Essa revolução teria como condição básica um
controle sobre o processo reprodutivo:
Assim como para abolir as classes econômicas a revolta da classe inferior (o
proletariado) é necessária, com a apropriação dos meios de produção durante
uma ditadura temporária, a supressão das classes sexuais necessita da revolta
da classe inferior (as mulheres) e sua apropriação da reprodução.128
Ainda traçando analogias com a revolução socialista, a autora afirma que tal como
a revolução social teria como objetivo, para além da supressão dos privilégios de classe, a
abolição da distinção de classe, uma revolução feminista visaria, para além da supressão dos
“privilégios masculinos”, a eliminação da discriminação entre os sexos, o que implica que “as
diferenças genitais entre os seres perderiam sua importância social”.129 É somente em certo
momento histórico, marcado por grande evolução técnica, que essa revolução, essa liberação
das mulheres da sua biologia130, seria possível.
126
Ibidem, p.18.
127
Ibidem, p.23.
128
Ibidem, p.22.
129
Ibidem, p.23.
130
Ibidem, p. 263.
131
Atkinson foi inicialmente membro do NOW com o qual rompe por divergências políticas. Posteriormente
faria parte do grupo The feminists. Alguns dos seus ensaios seriam reunidos na coletânea Amazon Odyssey em
1974 e traduzido no ano seguinte para o francês como Odyssée d’une amazone. Paris: des femmes, 1975.
132
Ibidem, p. 57.
133
Ibidem, p.69.
134
Ibidem, p.70
253
O uso desse conceito nos termos acima causou um incômodo particular em setores
ligados à extrema esquerda. Em 1979, algumas militantes afirmavam que “a noção de classes
135
Ibidem, ,p.71.
136
DELPHY, Christine; LÉGER Danièle. Débat: capitalism, patriarcat et lute des femmes. Revue Premier Mai,
n.2, 1976, p.38-39.
254
de sexos é ‘tabu’ para várias militantes que passaram pela extrema- esquerda”.137 Para
Molyneux, os marxistas em geral se oporiam “à ideia de que as mulheres formam uma classe
distinta, em parte porque nenhuma posição de classe, ao mesmo tempo específica e comum a
todas as mulheres foi convincentemente estabelecida”.138
Para Alzon, o uso do conceito de classe para caracterizar a situação das mulheres,
escamotearia o fato do sexo ser determinado pela biologia:
Ao considerar as mulheres, todas as mulheres, como exploradas, pode-se
fazer uma classe misturando duas noções, sexo e classe que não tem nada a
ver uma com a outra, porque o sexo é determinado pela biologia, e a classe
pelo lugar que ocupa no processo de produção.141.
137
Parti pris. mars 79.
138
MOLYNEUX, Maxine. Más allá del debate sobre el trabajo doméstico [1979]. In: RODRIGUEZ, Dinah;
COOPER, Jennifer (org.). Cidade do México: UNAM, 2005, p.29.
139
PICQ, Françoise. Féminisme, matérialisme, radicalisme. La revue d’en face, n.13, hiver 1983, p. 45.
140
Idem.
141
ALZON, Claude. La femme potiche et la femme bonniche. Pouvoir bourgeois et pouvoir mâle. Paris:
Maspero, 1973, p. 19-20.
142
VINTEUIL Frédérique, Capitalisme et patriarcat, questions de méthode , Critique Communiste, n° 4,
décembre75-janvier.76, p.37.
255
Delphy se defendeu desse tipo de crítica afirmando que não tinha por intenção
elaborar um teoria que explicasse toda a opressão. Ela afirma que quando propôs uma
“analise materialista da opressão econômica das mulheres” não pretendia “explicar todos os
aspectos da opressão” mas ressaltar que outros aspectos, como a sexualidade, teriam a sua
importância mas estavam “fora do campo” da sua análise.149 Nesse mesmo sentido, ela
considera que as alusões ao fato da sua teoria não explicar tudo feitas por Barrett e McIntosh
não se sustentam porque “ eu nunca tive a ambição de tudo explicar”.150
143
MOLYNEUX, Maxine. Más allá del debate sobre el trabajo doméstico [1979]. Op. cit., p. 2.
144
Idem.
145
Ibidem, p. 19
146
BARRETT, Michèle ; McIntosh, Mary. Christine Delphy: vers un féminisme matérialiste ? [1979].
Nouvelles Questions Féministes, n. 4, 1982, p. 46.
147
Ibidem, p. 46.
148
Ibidem, p. 48.
149
DELPHY, Christine. Un féminisme matérialiste est possible [1980]. In : DELPHY, Christine. L’ennemi
principal 2. Op. cit., p. 141.
150
Ibidem.
256
Esse ponto será considerado como uma grande limitação da sua teoria. Tanto nas
análises como de Benston, Seccombe e Dalla Costa haveria, segundo Coulson etl.al.,
promoviam uma quase equação entre “mulheres” e “donas de casa”. Mesmo que Delphy
tenha incluído também as mulheres em situação de divórcio sua definição está vinculada ao
casamento.
Nem todas as mulheres são submetidas nas relações conjugais, e nem todos
os contratos e práticas de casamento são idênticos. Ao contrário, eles podem
variar significativamente entre as diferentes sociedades e trazer obrigações
de trabalho muito diferentes, tanto para mulheres como para homens.152
151
DELPHY, Christine. Permière journée. [debate com falas de diversas feministas]. ELLES VOIENT ROUGE.
Féminisme et marxisme. Jornées ‘elles voient rouge’, 29 et 30 novembre 1980. Paris : Éditions Tierce, p. 45.
152
MOLYNEUX, Maxine. 'Más allá del debate sobre el trabajo doméstico” [1979] Op. cit., p.18.
153
ARTOUS, Antoine. Système capitaliste et oppression des femmes. Critique Communiste. Paris, décembre
1977/janvier 1978, p.73.
257
Patriarcado e capitalismo
154
DREVEUT, Danièle. Quel travail, quel salaire ? Revue d’en face n.2, nov. 1977, p.19.
155
DELPHY, Christine. Fonder en théorie qu'il n'y a pas de hiérarchie des dominations et des luttes. Entretien
avec Christine Delphy. (entrevista realizada por Giraud Véronique, Jami Irène, Sintomer
Yves), Mouvements, no35, 2004, p. 123.
156
PICQ, Françoise. Féminisme, matérialisme, radicalisme. La revue d’en face, n.13, hiver 1983, p. 45
258
Diversas outras críticas foram endereçada ao uso dessa categoria. Uma delas
considerava que o termo seria inapropriado para caracterizar o que pretendia. Rubin, dentre
outras, considera que este remete a uma conceituação já existente, centrada na figura do
pai.159 Outra crítica é que seria um conceito universal e a-histórico, que, além disso,
obscureceria hierarquias de classe e de raça. Por fim, cabe mencionar também que algumas
dessas teorizações foram acusadas de centrar-se no caráter estruturador dessa forma de
dominação, impedindo a possibilidade de vislumbrar uma saída desse sistema. Andrée Michel
localiza uma série de autoras feministas como Benston, Rowbotham, Mitchell Gardine e
Delphy como utilizando um quadro conceitual que “tende a acentuar o aspecto estático da
estrutura e a negligenciar a mudança”.160 Daune-Richard e Devreux, consideram, num sentido
similar, que essa teoria deixa pouco espaço para a mudança pois estaríamos diante de um
“sistema aparentemente fechado no qual mal se vê como poderia emergir alguma outra coisa
que não fosse o idêntico: a reprodução é vista como interna ao sistema”. Essa forma de se
conceber a questão não prevê “nenhuma forma de contradição interna como externa ao
sistema”.161
157
BARRETT, Michèle ; McIntosh, Mary. Christine Delphy: vers un féminisme matérialiste ? [1979], p. 40.
158
Ibidem, p. 42.
159
RUBIN, Gayle. O tráfico de mulheres: notas sobre a ‘economia política’ do sexo. Recife: SOS Corpo, 1993.
160
MICHEL, Andrée. Sociologia da família... Op. cit., p. 26.
161
BATTAGLIOLA, Françoise ; COMBES, Danièle ; DAUNE-RICHARD, Anne-Marie, ; DEVREUX Anne-
Marie ; FERRAND, Michèle, LANGEVIN Anette. A propos des rapports sociaux de sexe. Parcours
épistemologiques. Paris,:CSU, 1990, p. 148.
162
THÉRY, Irene. Sexage : une théorie au-dessus de tout soupçon. Revue d’en face. La Revue d’en face, no 9/10,
1981 [texto fotocopiado na França sem a paginação. Esta citação está no item “Le féminisme: une aberration de
l’histoire”]
259
emancipação. Essa crítica é, em alguns casos, acompanhada por uma crítica à vitimização das
mulheres, que são tratadas como passivas diante dessa forma de dominação, ao mesmo tempo
em que os homens são responsabilizados por ela.
Mas, apesar dessas tomadas de posição, podemos dizer que há, nas análises de
Delphy, uma preeminência do patriarcado e poucas tentativas de uma real articulação com o
sistema capitalista. Como afirmava Evelyne Le Garrec, em 1972, seria “muito difícil articular
163
DREVEUT, Danièle. Quel travail, quel salaire ? . Revue d’en face n.2, nov. 1977, p. 18.
164
DUPONT, Christine. L’ennemi principal. Op. cit., p. 171.
165
DELPHY, Christine ; LÉGER, Danièle, Débat: capitalism, patriarcat et lute des femmes”. Op. cit., p.38.
166
DELPHY Christine, LEONARD Diana, Familiar exploitation: a new analysis of marriage in contemporary
western societies, Cambridge, Polity press, 1992, p. 47.
260
a luta de classes e a luta das mulheres”. O problema estaria colocado, mas “a teoria ainda está
por construir”167 e muitos foram os debates em conto dessa questão.
Mesmo por aqueles que reconheciam uma “exploração”, alguns consideravam que
esse elemento não seria suficiente para explicar a opressão das mulheres como um todo. Para
Molyneux, “a estreiteza do enfoque sobre a apropriação do trabalho no matrimônio também
reduz o problema da opressão das mulheres a interesses meramente econômicos”.174
175
THÉRY, Irene. Sexage : une théorie au-dessus de tout soupçon. Revue d’en face.Op. cit.
176
Ibidem.
262
reflexão em questão pode ser interpretada como uma alternativa ao feminismo luta de classes
e feminismo radical. A ideia de “articulação” entre duas esferas foi o seu ponto de partida.
Um texto considerado um marco, nesse sentido, foi publicado por Danièle Kergoat,
em 1978, na revista Critique de l’economie politique, intitulado “Operárias=operários?
Proposições por uma articulação teórica entre duas variáveis: sexo e classe social”. Como o
próprio título indica, a autora procura articular duas “variáveis” que são frequentemente
tratadas como separadas, sexo e classe social. Para Anne Marie Devreux e Anne Marie
Richard, esse texto constitui uma ruptura epistemológica entre os anos 1970 e 1980. A autora
teria conseguido articular uma série de questões que tinham sido abordadas de forma isolada e
em contextos teóricos específicos. Kergoat considera que “a divisão técnica do trabalho se
justapõe intimamente à divisão sexual do trabalho” e que, nesse sentido, “uma análise
necessita, portanto, no plano metodológico, que toda abordagem do trabalho feminino seja
feita conjuntamente à análise do estatuto e do lugar das mulheres no universo da
reprodução”.177 Ela propõe uma problemática que articule classes sociais e categorias de sexo,
colocando em xeque as rupturas tradicionais que fazem uma cisão da vida social e da qual a
teoria sociológica acaba por incorporar: vida privada-vida pública, trabalho –lazer, produção-
reprodução.178
Em outros espaços esses questionamentos também tomam corpo. Em 1977, no seio do
Colóquio da ACSES sobre “Trabalho” se constituiu um atelier “Trabalho doméstico”. A
preparação para esse atelier originou um grupo de discussão sobre o tema que reuniu, entre
outros, Dominique Fouygerollas, Bruno Lautier e Danièle Chabaud. Essas discussões foram a
base para a produção de dois textos publicados na revista Critique de l’économie politique:
em 1977 “Forme de production capitaliste et procès de travail domestique” de Bruno Lautier e
em 1978 “Travail domestique et famille du capitalisme” por Françoise Bourgeois, Dominique
Foygerollas, Jacqueline Brener, Danièle Chabaud, Annie Cot, Dominique Rougeyrollas,
Monique Haicault e Andrée Kartchevsky-Bulport. Este último texto constituiu uma crítica das
tentativas de abordar o trabalho doméstico no campo da economia política. Essas análises “ou
o rejeitam para fora do espaço capitalista ou, ao buscarem sua articulação com a produção em
termos de valor, se defrontam com a impossibilidade de colocar em equivalência uma forma
de não-valor com uma forma de valor”.179 Elas são particularmente críticas em relação ao
177
KERGOAT, Danièle. Ouvriers=Ouvrières ?. In : KERGOAT, Danièle. Se battre, disent-elles. Paris : La
dispute, 2012.
178
DAUNE-RICHARD Anne-Marie, DEVREUX Anne-Marie. Rappports sociaux de sexe et conceptualisation
sociologique. Recherches féministes, vol.5, n.2, 1992, p. 62.
179
BOURGEOIS, F.; BRENER, J.; CHAMBAUD, D.; COT, A., FOUGEYROLLAS, D.; HAICAULT, M.;
263
conceito de modo de produção doméstico proposto por Christine Delphy. A categoria modo
de produção implicaria “a existência em seu seio de condições de sua própria reprodução,
condições que são exteriores ao trabalho doméstico no capitalismo”.180 Considerar o trabalho
doméstico como exterior ao espaço capitalista seria um erro. A proposição principal do texto
pode ser resumida pelo seguinte trecho:
A ruptura com o economicismo, ao nos permitir considerar o trabalho
doméstico como simultaneamente específico (exterior ao domínio do
valor) e capitalista (definido no seio de relações sociais constitutivos
do capitalismo), abre a problemática das relações entre produção e
reprodução a novos questionamentos, que tratar-se-á agora de dar
maior precisão.181
Em diversos espaços, entre o final dos anos 1970 e início dos anos 1980 esse debate se
amplia. Podemos citar alguns congressos que constituíram momentos privilegiados de
encontro: Les femmes et la classe ouvrier (Vincennes, dezembro de 1978); Familles et
pouvoirs, (Aix, junho de 1979); Le travail des femmes (Lyon, dezembro 1979); Instituition
familiale et travail des femmes, Jornadas de Estudo da Sociedade Francesa de Sociologia
(Nantes, junho de 1980), X Congresso Mundial de Sociologia no qual se formou um grupo
intitulado “Production et reproduction” (México, agosto de 1982); Colloque Femmes,
féminisme et recherches (Toulouse, dezembro de 1982) assim como os seminários
organizados pela Unité de recherche Division Sociale et sexuelle du travail que
posteriormente se transformaria no GEDISST (Groupe d’étude sur la division sociale et
sexuelle du travail). Cabe mencionar que esses debates se beneficiaram de um contexto no
qual começa uma abertura da academia francesa a esse tipo de temática. Um marco nesse
sentido foi o congresso mencionado acima realizado em Toulousse em 1982, financiado pelo
CNRS. Essa agência de pesquisa, juntamente com o Ministério dos Direitos da Mulher,
lançaria, em 1983, uma ATP (Action thémathique programmée) intitulada “Recherches sur les
femmes et recherches feministes”, com duração de quatro anos (1983-1987) que financiaria
diversas pesquisas sobre o tema.
Como nos sugerem os títulos dos congressos mas também das comunicações
apresentadas nesses eventos, havia uma intenção de articular “instituição familiar” e “trabalho
feminino”, “produção mercantil” et “não mercantil”, “família” e “trabalho”, “produção” e
“reprodução”. Essas iniciativas se opõem à ideia de que a base do patriarcado poderia ser
182
BATTAGLIOLA, Françoise ; COMBES, Danièle ; DAUNE-RICHARD, Anne-Marie, ; DEVREUX Anne-
Marie ; FERRAND, Michèle, LANGEVIN Anette. A propos des rapports sociaux de sexe. Parcours
épistemologiques. Paris,:CSU, 1990, p.73.
265
coletivo para “forjar novos instrumentos”183que permitissem apreender aquilo que constituiria
a essência das relações sociais: o seu dinamismo, superando, dessa forma um mal-estar
semântico ligado às limitações dos conceitos existentes, num esforço coletivo de
desconstrução e reconstrução das categorias do pensamento.
Danièle Combes e Monique Haicault propõem também renovar o debate “colocando
um fim à busca, inútil na nossa visão, de um inimigo principal: patriarcado ou capitalismo; ou
de esferas e relações sociais principais e secundárias”. Elas criticam a ideia de circunscrever
a relação capital-trabalho no domínio da produção e “a relação social antagônica entre os
sexos” na reprodução.184 As “relações entre os sexos” e as “relações de classe” são presentes
nas duas esferas, produtiva e reprodutiva. Não se tratava de pensar em termos de extensão das
relações de classe à reprodução ou de relações de sexo à produção mantendo uma “separação
original e uma estruturação autônoma de cada um dos campos”185. Assim como a relação
social capital/trabalho não se esgota na produção, a relação social entre os sexos não estaria
circunscrita à família:
Insistimos, portanto, na necessidade de substituir as teses de um princípio
diretor por aquelas que restituem às relações sociais o papel motor da
formação social considerada.186
183
KERGOAT, Danièle. Playdoyer pour une sociologie des rapports sociaux [1984] In : KERGOAT, Danièle. Se
battre, disent-elles. Paris: La Dispute, 2012, p. 97.
184
COMBES, Danièle ; HAICAULT, Monique. « Production et reproduction, rapports sociaux de sexes et de
classes ». In: COLLECTIF. Le sexe du travail. Grenoble: Presse Universitaire de Grenoble, 1984, p. 160
185
Ibidem, p.167.
186
Idem.
266
Mas, como encontramos em diversos textos do final dos anos 1980, tratava-se de
um conceito ainda “em construção”.188 Muitos seriam os momentos de encontro com o
objetivo de afiná-lo. Como exemplo podemos citar a publicação, em 1986, de A propos de
rapports sociaux de sexe. Parcours épistemologique, preparado a partir de 1984 por uma
grande equipe: Françoise Battagliola, Danièle Combes, Anne-Marie Daune-Richard, Anne
Marie Devreux, Michele Ferrand e Annette Langevin ; o congresso realizado em 1987 “ Les
rapports sociaux de sexe: problématiques, méthodologies, champs d’analyse ” publicado no
Cahiers de l’APRE n.7 (avril-mai 1988). Cabe mencionar ainda uma jornada de estudos
realizada em 14 de junho de 1990 pelo GEDISST e publicada no Cahiers du GEDISST n.3 de
1992. Outros textos individuais, como os de Danièle Kergoat, Danièle Combes e Anne Marie
Devreux caminhavam também no sentido de dar maior precisão conceitual à essas reflexões.
187
BATTAGLIOLA, Françoise et. al. A propos des rapports sociaux de sexe. Op. cit., p.74.
188
Ibidem, p. 75.
189
GEDISST. Rapport scienfique. Groupe d’étude sur la division sociale et sexuelle du travail. CES-CNRS,
1983, p. 11.
190
GEDISST. Groupe d’études sur la Division sociale et sexuelle du travail. Rapport d’activité. 1983-1987.
Paris: Iresco, CNRS, p.88.
267
entre dois domínios que deve ser tratada mas fundamentalmente a dinâmica que cada um dos
polos introduz no outro.191
Cabe ainda mencionar que toda essa discussão apresentada neste item teve um
impacto considerável na constituição dos estudos de gênero no Brasil. Embora não tenha a
mesma importância que adquiriu no contexto francês, a questão do “trabalho feminino” foi
um dos “primeiros temas através dos quais as feministas marcam presença na vida
universitária no final dos anos 1970”.193 Ainda nesse mesmo sentido, Bruschini considera que
participação feminina no trabalho industrial teria sido a “porta de entrada dos estudos sobre
mulher na academia brasileira”.194 Essa produção tem uma forte marca das reflexões que se
desenvolviam no contexto francês. Diversos dos nomes que compõem a literatura de
referência sobre “gênero e trabalho” passaram pela França e sofreram a influência desses
debates. Além disso, Helena Hirata participou ativamente da construção do GEDISST e foi
certamente um elemento chave nessas trocas.
Essa reflexão produziu importantes conceitos e constitui ainda hoje uma dimensão
importante dos estudos de gênero na França. Entretanto, na impossibilidade de
desenvolvermos de forma aprofundada, neste momento, uma análise dessas teorizações,
deixaremos para trabalhos futuros.
191
Ibidem.
192
TOPALOV, Christian. Centre de recherche. Le Centre de sociologie urbaine (CSU). Politix, vol.5, n.20,
1992, p.197.
193
HEILBORN, Maria Luiza; SORJ, Bila. “Estudos de gênero no Brasil”. In: MICELI, Sergio (org.). O que ler
na ciência social brasileira. São Paulo: Editora Sumaré: ANPOCS/Brasília: Capes, 1999, p. 205.
194
Bruschini apud CASTRO, Nadya. LEITE, Marcia. A sociologia do trabalho industrial no Brasil: desafios e
interpretações. BIB, n.37, 1º. Semestre 1994, p. 42.
268
Capítulo 7
Questões feministas e questões lésbicas: notas sobre um conflito
Em 1980, após publicar oito números, a revista Questions féministes tem fim. O
conflito que provocou esse desfecho foi resultado de um debate em torno da questão lésbica e
do engajamento feminista. Um elemento chave nesse contexto foi a emergência de uma
corrente intitulada “lesbianismo radical”.1 Baseando-se em grande parte nas premissas do
feminismo radical, entre elas a ideia de “classes sexuais”, essa mouvance se estrutura
centralmente em torno da crítica à heterossexualidade, pensada como sistema político, e da
ideia da lesbianismo concebida como uma forma de resistência a esse regime e como ponto de
vista a partir do qual se construir uma reflexão teórico-política. Essa reflexão, de caráter
proteiforme, toma corpo numa série de coletivos que se constituem entre 1979 e os primeiros
anos da década de 1980. Sua emergência provocaria polêmicas e debates tensos. A Revue
d’en face fala em “querela do lesbianismo radical”: “coletivos se desfaziam, amigas se
ofendiam, textos circulavam. Todo um não-dito emergia (de forma dolorosa)”.2
No seio da revista em questão, esse conflito ganhou uma grande virulência. Como
lembram algumas daquelas que participaram desses eventos, foi um “choque intelectual e
político” e um “trauma afetivo”.3 “Todo mundo foi violento nesse episódio”, afirma uma
outra integrante da revista, “pois a clivagem política era muito profunda e as estratégias muito
contraditórias para que esses dois movimentos (...) pudessem coabitar ou se separar em uma
calma sororidade”.4
Como em todo conflito político, esses eventos não podem ser explicados somente
a partir de um único fator. Mas, enfatizaremos, sobretudo, a dimensão teórica dessa
controvérsia, que com frequência foi considerada como um elemento fundamental pelas
próprias envolvidas nesse debate.
1
Opto por traduzir “lesbianisme” por “lesbianismo” dado em português, no mesmo período, usava-se
correntemente o termo “lesbianismo”.
2
Original: “des collectifs éclataient, des amies s’injuriaient, des textes circulaient. Tout un non-dit venait au jour
(dans la douleur) ». Débat: hétérosexualité et lesibanisme. La Revue d’en face, no 9/10, primeiro trimestre de
1981, p.66.
3
NOUVELLES QUESTIONS FÉMINISTES. Editorial. Nouvelles Questions Féministes. n. 1, nov. 1981.
4
Monique. À propôs de l’antilesbianisme des lesbiennes féministes. Front des lesbiennes radicales. Textes de la
rencontre des 14 et 15 novembre 1981. Esse material foi digitado por Marion Page, que fez uma brochura
disponível no ARCL. Nesta versão, ver p. 27.
269
algo nesse sentido. Mas, para compreender a discussão que nos interessa nesta tese,
partiremos de alguns textos produzidos pelo movimento (sobretudo panfletos e textos de
revista) para apresentar algumas grandes linhas das movimentações homossexuais e lésbicas
nos anos 1970.
8
Para maiores informações sobre esse grupo ver: JACKSON, Julian. Arcadie. La vie homosexuelle em France,
de l’après-guerre à la dépénalisation. Paris: Autrement, 2009.
9
Ver, por exemplo: MASSIMO, Prearo. Le moment 70 de la sexualité: de la dissidence identitaire en milieu
militant. Genre, sexualité & société. n.3, 2010.
10
Esta lista não pretende ser exaustiva. Para um rápido panorama das movimentações homossexuais nessa
década ver: GIRARD, Gabriel “Homosexualités”. In: ARTOUS, Antoine et. al. La france des années 1968.
Paris: Syllepse, 2008.
11
WITTIG, Monique. Monique Wittig et les lesbiennes barbues.[Entrevista de Monique Wittig à revista Actuel]
Actuel , 1973.
271
“negligenciado por razões de estratégia nos anos 1970, começa a se pensar em termos
políticos no início dos anos 1980”.12
12
TURCOTTE, Louise. Féminisme /Lesbianisme: la nécessité d’une pensée radicale. CHETCUTI, Natacha ;
MICHARD, Claire. Lesbianisme et féminisme. Histoires politiques. Paris: L’Harmattan, 2003 p.36.
13
GIRARD, Gabriel. Homosexualités. In: ARTOUS, Antoine et. al. La france des années... Op. cit., p. 418.
14
FHAR. Rapport contre la normalité. Paris: Edition Champ Libre, 1971.
15
Quelques réflexions sur le lesbianism comme position révolutionnaire. In: FHAR. Rapport contre la
normalité... Op. cit.
16
[Panfleto] Gouines Rouges. Fundo Anne Zelensky.
272
refusons les rôles d’épouse et de mère, l’heure est venue, du fond du silence il nous faut
parler” (Mulheres que recusam os papéis de esposa e mae, a hora chegou. Do fundo do
silêncio é necessário falar).17 O grupo teve uma existência efêmera e acabou sendo extinto,
em 1973. Após o final desse grupo, houve uma tentativa, em 1974, de formar um Front
lesbien international, mas a iniciativa não chegou a se concretizar.
Numa segunda fase, a partir de 1975, vê-se a criação de novos grupos, como o
Groupe de lesbiennes féministes (GLF) – que atua entre 1975 e 1977 e publica um boletim, e
o Groupe de lesbiennes du Centre de femmes de Lyon. Trata-se do início de um processo de
autonomização com relação ao movimento homossexual masculino e ao movimento
feminista. Mas, permaneceria ainda uma vinculação com o movimento feminista. Citamos,
nesse sentido, dois trechos que mostram não somente essa ideia, mas também uma mudança
de vocabulário:
O lesbianismo é um termo que é próprio às mulheres; para nós
trata-se também e, sobretudo, de um modo de vida, de uma nova forma de
amar ... (...). Além disso, preferimos empregar os termos lésbicas e
lesbianismo. Nós somos feministas, porque somos mulheres, lutamos ao lado
de outras mulheres pela abolição do sistema falocrático, ainda que, por
vezes, certas problemáticas não nos diga diretamente respeito. Não temos,
pois, uma posição com relação ao “Movimento das Mulheres”, todas nós
somos o Movimento.18
17
[Panfleto] UN GROUPE DE LESBIENNES. Femmes qui refusons les rôles d’épouse et de mère. L’heure est
venue du fond du silence il nous faut parler. (Distribuído em maio de 1972 durante as Jornadas de denuncia de
crimes contra as mulheres)
18
GROUPE DES LESBIENNES FEMINISTES [1976]. Apud TRITON, Suzette. Masques, n.9/10, verão de
1981.
19
MARIE-JO. Le lesbianisme. Vivre et s’aimer entre femmes. Libération, março de 1976. Reproduzido em:
Archives, recherches et cultures lesbiennes, n.6, 1987.
273
ideia de um “continuum lésbico”, proposta por Adrienne Rich20. Percebe-se assim que, em
meados dos anos 1970, há ainda um discurso de união entre todas as mulheres e o movimento
feminista permanece sendo o local por excelência no qual a luta deve ser organizada.
Mas, críticas ao movimento feminista começam a surgir nos últimos anos dessa
década. No ano de 1977, encontramos alguns posicionamentos críticos ao feminismo, assim
como questionamentos sobre se o movimento de mulheres seria realmente uma resposta para
as lésbicas, como indica o título de um panfleto21.
20
RICH, Adrienne. La contrainte à l’hetérosexualité et l’existence lesbienne . Nouvelles Questions Feministes,
n.1, março de 1981.
21
[Panfleto] Le mouvement des femmes a-t-il été une réponse pour les lesbiennes ?, abril de 1977, assinado por
Guénolée, Nitrate, Stéphanie, Triton. ACRL
22
Ibidem.
23
Para maiores informações ver: PICQ, Françoise. Libération des femmes… Op. cit., capítulo 19 “Ras le viol!”
24
Apud Martel, MARTEL, Frédéric. Le Rose et le noir: Les homosexuels en France depuis 1968, Paris, Éditions
du Seuil, 1996, p. 172.
25
Publicado em La folie encerclée. Apud PLAZA, Monique. Nos dommages et leurs intérêts. Questions
féministes, n.3, maio de 1978.
274
posição parece ter contribuído, em alguma medida, para marcar uma certa diferença em
relação aos homossexuais homens e às dificuldades em articular um movimento em torno de
uma homossexualidade masculina e feminina.
Os temas propostos para discussão no encontro apontam alguns dos temas chave
para o lesbianismo radical, tais como:
26
Groupe de Lesbiennes féministes, Bulletin n.2
27
Uso aqui o título de um artigo publicado no jornal trotkista Rouge de 27 avril 1977 “Le mouvement des
femmes a-t-il été une réponse pour les lesbiennes ?” assinado por Guénolée, Nitrate, Stéphanie et Triton.
28
[Panfleto] COLLECTIF POUR UN FRONT LESBIEN. Quand les lesbiennes manifestent les masses tiquent
aux fenêtres, 7-8 mars 1981.
29
LESSELIER, Claudie. Les regroupements de lesbiennes dans le mouvement féministe parisien: positions et
problèmes 1970-1982. In: GEF, Crises de la société, féminisme et changement, Éditions Tierce, 1991.
275
Para a preparação dos debates previstos nesse encontro de junho de 1980, quatro
textos são difundidos: um primeiro, assinado por Monique, um segundo, por Icamiaba, ambos
sem título, um terceiro por “Lésbicas do Coletivo de luta contra o estupro” e um quarto, sem
assinatura, intitulado “Opression, déterminisme et liberté. À propos de la collaboration”
(Opressão, determinismo e liberdade. Sobre a colaboração). Esses textos foram reproduzidos,
parcialmente ou integralmente, em diversas revistas31, como exemplo da posição lésbica
radical. É necessário enfatizar que a Monique que assina o texto citado acima não é Monique
Wittig.
30
[Panfleto] Chères goudous de partout. ACRL.
31
La Revue d’en face, no 9/10, premier trimestre 1981; , Nouvelles Questions Féministes, n.1, março de 1971.
32
Esse texto foi divulgado sob a forma de panfleto. Para facilitar, citaremos aqui a versão publicada em
Nouvelles Questions féministes. Monique. In: DOCUMENTS. Quel feminisme. Nouvellels Questions féministes,
n.1, março de 1981, p. 78.
276
Lesbien Radical, podemos encontrar também exemplos dessa posição. Num encontro de 1981
foi discutida a participação de “solteironas” (vieilles filles) que não se reivindicam como
lésbicas.
33
Idem.
34
Opression, déterminisme et liberté. À propos de la collaboration. In: DOCUMENTS. Quel féminisme ? Op.
cit., p. 83
35
ICAMIABA. In: DOCUMENTS. Quel féminisme ? Op. cit., p. 79.
277
deixadas pelo sistema, ele é pensado como uma forma concreta de resistência ao regime
heterossexual e patriarcal.36
Havia não somente uma crítica a estratégia usada por alguns grupos
estadunidenses mas também à base naturalista de algumas dessas reflexões. A separação não
poderia ter por base uma visão biológica sobre a diferença entre homens e mulheres. Na
esteira do feminismo radical, muitas lésbicas consideravam que a opressão masculina não era
algo que pertencia a uma essência dos homens e por isso o foco da luta deveria ser a
construção de uma sociedade sem classes de sexo.
36
Opression, déterminisme et liberté. À propos de la collaboration... Op. cit., p. 83.
37
Homophonie, mars 1983, reproduzido em: LAROCHE Martine, LARROUY Michèle, Le collectif des
Archives Recherches cultures lesbiennes, Mouvement de presse des années 1970 à nos jours, luttes féministes et
lesbiennes. Paris: éditions ARCL, 2011, p.88.
278
Mas o que mais marcou o desenrolar desses debates foram algumas frases que
ganharam os muros do encontro do FLR, em junho de 1980. Cito algumas: “Une femme qui
aime son oppresseur, c’est l’oppression. Une ‘féministe’ qui aime son oppresseur, c’est la
collaboration” ; “En temps de guerre des sexes, l’hétéro-féminisme est la collaboration de
classe”; “hétéro-‘féministes’ = kapos du patriarcat”. (Uma mulher que ama o seu opressor, é
opressão. Uma ‘feminista’ que ama seu opressor, é colaboração”; “Em tempos de guerra de
sexos, o heterofeminismo é a colaboração de classe”; “heterofeministas = kapos do
patriarcado”).
38
[Panfleto] mars 1980. Apud Bulletin Archives, recherches et cultures lesbiennes n.6, decembre 1987.
39
LESSELIER, Claudie. Les regroupements de lesbiennes... Op. cit., p. 96.
40
Entrevista- Michele Larrouy.
41
Rencontre des lesbiennes radicales, 20-21 juin 1981, reproduzido em Nouvelles Questions féministes, n.2, out.
1981, p.124.
279
feminista radical, realizado em novembro de 1980, chamado por feministas radicais de Lille e
Caen.
42
[Panfleto] DES LESBIENNES RADICALES DE JUSSIEU DU MOUVEMENT DE LESBIENNES
RADICALES. A CAEN, on fête les Saints, et les Morts ou: pour se radicaliser, le féminisme extirpe sa racine.
43
Idem.
44
Idem.
280
45
Idem.
46
QUESTIONS FÉMINISTES. Variations sur des thèmes communs. Op. cit. p. 5.
281
homossexualidade não era vista como uma verdadeira questão. O fim das classes de sexo
implicaria na desaparição das noções de heterossexualidade e homossexualidade.
A questão aparece também em textos de caráter mais literário como “Un jour mon
prince viendra”, de Monique Wittig, e “La rupture fondamentale”, de Molina Poquez,
publicados respectivamente nos números 2 e 4 da revista. Cabe também mencionar o texto de
Colette Guillaumin “Prática do poder e ideia de natureza”, no qual a “obrigação sexual”
constitui um elemento da sexagem.
Tudo indica que a ideia de fazer um número especial sobre o tema já teria sido
pautada antes que o primeiro texto de Monique Wittig fosse publicado no n.7. Wittig, numa
carta endereçada ao coletivo de redação, após ser convidada para fazer parte do grupo,
menciona essa idéia mas considera que seria mais coerente inseri-la de forma permanente na
revista.47
Para Wittig, o lesbianismo não deve ser tratado como um tema a parte, uma
questão ou um problema em si, mas como ponto de vista que deve ser também um ponto de
partida. Conhecida por seus textos literários, a autora começa a redigir textos de caráter mais
“teórico”, num sentido mais estrito. Nessa época, a autora já residia nos Estados Unidos e
aceita integrar à distância o coletivo de redação da revista. Seus primeiros textos publicados
em francês foram inicialmente apresentados em conferências ou cursos ministrados nesse
país. A boa recepção da obra literária de Wittig em alguns meios estadunidenses certamente
facilitou sua entrada nos debates feministas dos EUA.
“La pensée straight” foi, nesse sentido, inicialmente apresentado, em 1978, num
congresso organizado pela Modern Langage Association e, posteriormente, em abril de 1979,
em Nova York, numa conferência intitulada “The future of difference”. Este texto foi objeto
de múltiplas interpretações, sobretudo a sua última frase “As lésbicas não são mulheres”.
Neste texto, Wittig denuncia o “pensamento straight”, também chamado de “pensamento da
dominação”. Para a autora, a crítica antinaturalista teria deixado intacto um “núcleo de
natureza” que escapa à análise48: a relação heterossexual. É a heterossexualidade, pensada
como regime político, que cria as categorias de sexo. Ela propõe uma transformação política
de conceitos chave a partir da “ciência da nossa opressão”. Nesse sentido, “homem” e
“mulher” devem ser compreendidos são conceitos políticos e devem desaparecer
47
Carta de Monique Wittig ao coletivo de redação.16/11/1978. ARCL.
48
WITTIG, Monique. La pensée straight. Questions Féministes, n° 7, 1980, p.49.
282
O texto parece ter tido uma boa recepção no contexto estadunidense. Pouco
menos de um ano depois, Wittig continua sua reflexão com o texto “On ne naît pas femme”,
apresentado no congresso “Second sex, thirty years later. A Commemorative Conference on
Feminist Theory”, realizado na Universidade de Nova York, em setembro de 1979, para
comemorar os trinta anos de publicação de O segundo sexo. Esse congresso reuniu diferentes
feministas dos dois lados do Atlântico, para debater a herança da obra de Beauvoir, entre elas:
Gayle Rubin, Audre Lorde, Carol Vance, Ti-Grace Atkinson, H. Cixous assim como algumas
integrantes do coletivo de redação de Questions féministes: Christine Delphy, Nicole-Claude
Mathieu, Monique Wittig, Colette Guillaumin e Emmanuelle de Lesseps.
Christine Delphy apresentou uma versão do texto que ela tinha publicado num
número especial sobre Beauvoir da revista L’Arc, “For a materialism feminism”.51 O texto de
Wittig, “One is not born a woman”, é uma versão muito próxima daquela que seria publicada
em 1980. Wittig propõe uma análise “em termos materialistas” da opressão das mulheres.
Para ela, é necessário distinguir as mulheres, “a classe no interior da qual nós combatemos” e
“a mulher”, o mito. Enquanto “a mulher” não teria uma existência senão imaginária, “as
mulheres” seriam fruto de uma relação social. Wittig propõe uma total reavaliação conceitual
do mundo social, a criação de novos conceitos “desenvolvidos do ponto de vista da
opressão”.
49
Ibidem. , p.53.
50
Ibidem. Na versão publicada publicada em La pensée straight, não consta esse PS no final do texto.
51
DELPHY, Christine. For a materialism feminism. The second sex – thirty years later. A commemorative
Conference On Feminist Theory. Septembre 27-29, 1979. New York University – Loeb Student Center. Uma
versão em francês deste texto foi publicada, em 1975 na revista L’Arc.
283
Para Wittig, a ideia de que as lésbicas não são mulheres é uma consequência
lógica da definição de classe das mulheres. Voltaremos a essa questão no final deste capítulo.
Por ora, gostaríamos somente de destacar que as ideias de Wittig já eram conhecidas entre os
membros do coletivo de QF e, apesar do seu caráter polêmico, não parecem ter suscitado uma
grande oposição no seio do grupo. Michèle Le Doeuff, no texto já citado, comenta a
intervenção “notável” de Wittig e afirma que a sua publicação estaria prevista em QF. As
polêmicas apareceriam, sobretudo, no momento do debate coletivo desses textos e em relação
às movimentações políticas da mouvance lésbica radical.
Dois debates são previstos para discutir esse número. O anúncio é feito no número
8. Não encontramos registros escritos desses debates. Mas, aparentemente, eles marcaram
uma divisão mais aberta do movimento em relação à questão do lesbianismo e do
engajamento feminista. Trata-se de um momento particular para o MLF. Dez anos após suas
primeiras manifestações públicas, este mostra sinais de fadiga e retração, visíveis nos
balanços publicados nesse contexto. É justamente nesse momento que as lésbicas radicais
52
WITTIG, Monique. One is not born a woman. The second sex – thirty years later. A commemorative
Conference On Feminist Theory. Septembre 27-29, 1979. New York University – Loeb Student Center, p.74-75.
53
Questions féministes n.7, fevereiro de 1980, p. 83.
284
Uma das primeiras tomadas de posição pública data de dezembro de 1980, pouco
mais de um mês após a dissolução do grupo. Nessa carta, assinada por N. B. C. G., N.-C. M.,
M. P. et M. W., uma parte do coletivo de redação da revista explica que a cisão no seio do
grupo foi tão violenta, que não foi possível redigir uma carta comum. Uma segunda carta,
conhecida como a “carta lilás”, cujo título é “Lettre au mouvement féministe”, data de 1° de
março de 1981 e é assinada por “Des lesbiennes féministes radicales de l’ex-Collectif QF”.
Essas duas cartas constituem as duas principais tomadas de posição pública dessa parte do
coletivo.
54
DES LESBIENNES FÉMINISTES RADICALES DE L’EX-COLLECTIF Q.F. Lettre au mouvement
féministe. Paris, 1er mars 1981, p.1.
285
política radical”55. Essa crise se explica pela recusa do movimento de “levar até as últimas
consequências a lógica da sua radicalidade”56. O primeiro editorial de QF teria proposto uma
“análise teórica das relações de opressão entre os sexos” sem, entretanto, problematizar a
questão das estratégias de luta:
Evocamos a necessidade de suprimir a hierarquia, de denunciar a ideologia
da Diferença dos sexos que remete à opressão a uma Natureza. Mas como se
concretizam as relações de poder às quais as mulheres estão submetidas,
senão pela coerção de viver com o opressor, pela coerção à
heterossexualidade? Qual estratégia pode ser utilizada para suprimir as
classes de sexo: manter de alguma forma relações com a classe dos homens
ou, de forma radical, considerar essa classe como a classe inimiga?57
55
N.B ; C.G ; N.M ; M.P. ; M.W. Chères lectrices de Questions féministes. (dez. 1980), p.1.
56
Idem.
57
DES LESBIENNES FÉMINISTES RADICALES DE L’EX-COLLECTIF Q.F. Lettre au mouvement
féministe. Paris, 1er mars 1981, p.7
58
Idem.
59
Idem.
286
suspenso no nosso editorial e que produziam esclarecimentos para nossas vidas e nossas
teorias”.
60
NOUVELLES QUESTIONS FEMINISTES. Editorial. Nouvelles Questions Féministes n.1, março 1981, p. 6.
61
Ibidem, p. 6.
62
Ibidem, p.6.
63
Ibidem, p.8.
64
Ibidem, p.9.
287
representaria também uma mudança importante de foco cujo objetivo “não seria mais lutar
contra a opressão, mas expressar a não-opressão”65. A experiência imediata seria neste caso
colocada no centro da política, em detrimento da análise e do projeto político.
65
Ibidem, p.10.
66
BEAUVOIR, Simone. Sur quelques problèmes actuels du féminisme (entrevista). La Revue d’en face, no 9/10,
premier trimestre 1981.
67
WITTIG, Monique. Les questions féministes ne sont pas des questions lesbiennes. Amazones d'hier,
lesbiennes d'aujourd'hui, vol. 2, n° 1, 1983, p.11.
288
Imagem 4. ARCL
289
Imagem 5. ARCL
290
Este conflito traz questões ainda atuais para o feminismo. Como se opor ao
patriarcado? Como não se centrar na vitimização, mas pensar também na agência das
mulheres? Como os dominados consentem com a opressão? Como articular gênero e
sexualidade? Infelizmente essas e outras questões colocadas sobre a mesa não puderam
realmente se desenvolver. Para Claudie Lesselier “o debate rapidamente desapareceu, tendo
em vistas as suas configurações, assim como o período de crise e de refluxo no qual entrou o
conjunto do Movimento das mulheres”.68 Somente um trabalho sobre o movimento lésbico e
feminista nos anos 1980 permitirá saber como essas questões foram recolocadas (ou não) pelo
movimento, nos períodos subsequentes aos fatos analisados aqui.
O lesbianismo radical trouxe para os debates uma série de questões-chave para o
movimento feminista. É em grande medida a centralidade da crítica à heterossexualidade
como regime político que provocou um deslocamento de olhar, e criou um terreno fértil para
questionamentos e reformulações teóricas. Propomos finalizar este capítulo com um dos
debates que marcou esse conflito, sobre o conceito de “classe das mulheres”.
Esse conceito é amplamente utilizado no contexto francês. A conceituação proposta
por Delphy foi retomada pela revista e torna-se um conceito chave para o feminismo
materialista. Esse conceito foi fundamental, como procuramos mostrar, para pensar a opressão
feminina num quadro teórico não naturalista e sem diluir tal opressão nas relações de classe.
A extração gratuita da força de trabalho feminina no seio da família é um elemento
fundamental dessa definição.
A emergência de uma reflexão lésbica radical denuncia esse “auréola conjugal-
familial” que marcariam algumas reflexões feministas materialistas.69 Elementos dessa crítica
já estavam presentes em Guillaumin – que propôs, no lugar do conceito de patriarcado, a ideia
de “sexagem” –, e em Monique Wittig. Para essa autora, patriarcado pressuporia a noção de
que há pais e mãe, e um poder dos pais sobre as mães escamoteando “a heterossexualização, a
heterossexualidade com um sistema de dominação”. Essa noção “faz com que as mulheres
sejam antes e, sobretudo (e somente), definidas como mães e forçadas a o serem.
‘Patriarcado’ supõe uma ordem natural”.70 O conceito patriarcado seria, nesse sentido, um
conceito straight?
68
LESSELIER, Claudie. Les regroupements de lesbiennes... Op. cit. , p. 95.
69
MOREAU, Noëlle. Le féminisme matérialiste: symponie inachevée ou oeuvre impossible ? (mimeo.) Dossiê
Noelle Bisseret. ACRL.
70
WITTIG, Monique. Les questions féministes ne sont pas des questions lesbiennes. Op. cit., p. 11.
291
É nesse sentido que proponho interpretar a frase de Monique Wittig “Les lesbiennes ne
sont pas des femmes”, como uma crítica à definição de classe das mulheres como centrada na
família e a consequente não problematização da heterossexualidade. O objetivo seria levar até
as últimas consequências o argumento de Delphy para mostrar as suas deficiências. Isto é, se
continuarmos a definir as mulheres a partir da família, as lésbicas estão excluídas dessa
definição e não seriam, portanto, mulheres. Trata-se certamente de uma interpretação pouco
convencional da frase de Wittig, já inúmeras vezes discutida.
292
Considerações finais
Procuramos analisar, ao longo deste trabalho, como uma reflexão materialista tomou
corpo no seio do feminismo e se desenvolveu em meio à grande efervescência feminista dos
anos 1970 e início dos anos 1980. Essas reflexões produziram importantes aportes teóricos
que marcaram profundamente as teorizações feministas francesas. Alguns conceitos como
patriarcado, sexagem, modo de produção doméstico, sexo social e relações sociais de sexo são
formulados ou afinados. Outros conceitos mais tradicionais das ciências sociais são objeto de
reformulação como classe, produção, reprodução, exploração e trabalho, para se tornarem
instrumentos para essa reflexão feminista. Procuramos analisar essas elaborações no contexto
no qual se desenvolveram, mostrando sua conflitualidade teórica inerente e restabelecendo
alguns dos debates que lhes serviram de base. Nesta conclusão, propomos analisar alguns dos
mecanismos de construção de tendências dentro do feminismo e, mais particularmente, como
se deu a construção do que é hoje reconhecido como uma corrente, o “feminismo
materialista”.
71
Ver, por exemplo: TOPALOV, Christian. Les usages stratégiques de l’histoire des disciplines. Le cas de
l’‘école de Chicago’ en sociologie. In: HEILBRON, Johan et al. Pour une histoire des sciences sociales.
Hommage à Pierre Bourdieu. Paris: Fayard, 2004.
293
O marxismo, nas suas diferentes variações, foi um ponto de referência para esses
diferentes setores do movimento. Se consideramos “materialismo” como sinônimo de
“marxismo”, podemos reconhecer uma pluralidade de análises “materialistas” no seio do
feminismo dos anos 1970. Mas, no contexto francês, esse termo foi usado para fazer
referência a um grupo preciso de autoras.
Partiremos de algumas definições formuladas a partir dos anos 2000. Num manual de
introdução aos estudos de gênero bastante utilizado no contexto francês, Introduction aux
études sur le genre, o feminismo materialista é definido como uma “corrente teórica do
feminismo que se desenvolve nos anos 1970, notadamente no quadro da revista Questions
féministes”, e cujas principais representantes seriam Christine Delphy, Colette Guillaumin,
Nicole-Claude Mathieu, Paola Tabet e Monique Wittig. Elas seriam herdeiras do método
marxista e, nesse quadro, analisam a sociedade “em termos de classes antagonistas
historicamente constituídas, que não preexiste, portanto, à sua relação de oposição”. A
72
SKINNER, Quentin. Visões da política. Sobre os métodos históricos. Algés: Difel, 2005, p. 121.
294
opressão e exploração das mulheres teria um “fundamento econômico”, mas não seria
derivada do sistema capitalista.
Outros autores, como Stevi Jackson, Roland Pferferkorn, entre outros, utilizam o
termo em sentido similar. Entretanto, alguns desses autores, como Pferferkorn, incluem
Danièle Kergoat e a reflexão em termos de rapports sociaux de sexe nessa perspectiva
materialista, o que é reivindicado pela própria autora nos últimos anos. Para Elsa Galerand e
Danièle Kergoat, haveria dois momentos do feminismo materialista. Um primeiro momento
seria marcado pela “teorização das relações sociais de sexo enquanto relações de produção ou
exploração, irredutíveis ao capitalismo” (são citadas Delphy e Guillaumin como
representantes desse momento). O trabalho doméstico é caracterizado como trabalho
explorado e há uma ruptura com as conceptualizações dominantes de “trabalho” e de
“exploração”. Um segundo momento é caracterizado pela teorização do “sexo do trabalho
assalariado” que conduz à noção de transversalidade e de divisão sexual do trabalho assim
como de consubstancialidade de diferentes relações sociais de exploração.75
Essas definições emergem num contexto específico, os anos 2000, e é preciso
relacioná-las com esse momento da reflexão feminista. Mas o que intitulamos hoje
“feminismo materialista” sofreu variações de conteúdo e também de nomeação ao longo dos
últimos 40 anos.
construir uma unidade. No final desse processo, podemos afirmar que a ideia de um
“feminismo materialista” como corrente de pensamento com os contornos que conhecemos
hoje é, em grande medida, uma construção retrospectiva, constituída no contexto dos anos
1990 em reação à emergência de um feminismo dito “pós-moderno”.
Nos anos 1970, a ideia de uma “análise materialista” tem como principal foco a crítica
a uma certa forma de se conceber a opressão feminina predominante nos meios de esquerda.
Contrapondo-se a uma subsunção total dessa forma de opressão nas relações de classe,
diversas autoras propõem partir de uma base material para explicar a opressão, sem, contudo,
identificar essa base com relações de classe. Essas primeiras tentativas de fornecer uma
“análise materialista” da opressão feminina atribuíram-lhe, no entanto, sobretudo, um sentido
econômico, dentro de um contexto no qual um marxismo mais economicista era bastante
presente. Na França, algumas dessas autoras eram identificadas como “feministas
revolucionárias”.
Na segunda metade dos anos 1970, o contexto é outro. Com o crescimento das
tendências biologizantes, dentro e fora do movimento, cria-se um polo de oposição ao
naturalismo no seio do feminismo. Esse polo teria como uma das suas mais importantes
expressões a revista Questions féministes, que reúne feministas com diferentes trajetórias que
compartilhavam a necessidade de produzir uma crítica ao naturalismo. Essa questão ganha
uma preeminência em relação às discussões sobre a materialidade da opressão, embora
coexista com as mesmas. A questão da materialidade da opressão não é abandonada mas
ganha outras formas. Não é mais em termos estritamente econômicos que esta última é
pensada. Embora alguns conceitos como “classes de sexo” continuem a ser empregados, o seu
significado ganhou um sentido mais amplo, como procuramos mostrar.
Podemos localizar um terceiro momento, mais recente e que não foi abordado neste
trabalho, no qual se desenvolvem uma série de teorias, notadamente no contexto
estadunidense, identificadas como “pós-modernas” ou queer. A chegada dessas teorizações
provocaria transformações na configuração dos estudos de gênero na França. Nesse contexto,
a questão da materialidade da opressão, não nos mesmos termos propostos no debate no
início dos anos 1970, ganha força. Mas, o materialismo defendido aqui remete à centralidade
das relações sociais e não a uma exploração econômica. É nesse contexto que a ideia de uma
corrente de pensamento estruturada e com os contornos que conhecemos se desenvolve e o
epíteto “feminismo materialista” começa a ser usado com mais frequência.
296
No final dos anos 1970 e nos anos 1980, referia-se à Questions féministes sobretudo
em termos de “feminismo radical”. Os balanços da produção teórica feminista publicados
nesse época apresentam as autoras da revista como estando na base de rupturas fundadoras
sem mencionar a existência de uma corrente ou escola e o “feminismo materialista” não é
nomeado.81
Uma das primeiras propostas nesse sentido parece ter sido feita por Danièle Juteau e
Nicole Laurin na Revue Canadienne de Sociologie et Anthropologie em 1988.82 Elas
consideram que as “bases do feminismo materialista” foram explicitadas por Christine Delphy
em “Pour um féminisme matérialiste” e esta ganhou expressão na revista Questions
féministes. Os textos de Bisseret, de Ferchiou, de Guillaumin, Mathieu et Wittig traduziriam
as prepcupações dessa perspectiva.83
76
BARRETT, Michèle; McINTOSH, Mary. Christine Delphy, towards a materialist feminism ? Feminist
Review, n.1, 1979 ; DELPHY, Christine. A materialist feminism is possible . Feminist Review, n° 4, 1980.
77
DELPHY, Christine. Le patriarcat, le féminisme et leurs intellectuelles . Nouvelles Questions féministes, n.2,
outubro 1981.
78
WITTIG, Monique. La pensée straight. Questions Féministes, n° 7, 1980, p. 77.
79
PICQ, Françoise. Féminisme, matérialisme, radicalisme. La revue d’en face, n.13, hiver 1983, p. 140.
80
Ver, por exemplo: JACKSON, Stevi. The world and his wife. Trouble & Strife, n° 27, 1993.
81
DEVREUX Anne-Marie. De la condition féminine aux rapports sociaux de sxes: repères pour une évolution
de la définition sociologique des catégories de sexe. BIEF, n.16, mai 1985; BATTAGLIOLA, Françoise ;
COMBES, Danièle ; DAUNE-RICHARD, Anne-Marie ; DEVREUX, Anne-Marie ; FERRAND, Michèle ;
LANGEVIN, Anette. A propos des rapports sociaux de sexe. Parcours épistemologiques [1986], Paris, CSU,
1990.
82
JUTEAU Danielle, LAURIN Nicole. L’évolution des formes de l’appropriation des femmes: des religieuses
aux ‘mères porteuses. Revue canadienne de Sociologie et d’Anthropologie, n. 25, vol. 2, 1988.
83
Ibidem, p. 188.
297
Mas, é fundamentalmente nos anos 1990, que a ideia de uma corrente materialista
realmente se constitui como uma categoria corrente.84 São os debates dos anos 1990 e 2000
que lhe dá sentido. A partir da publicação de Gender Trouble e de outros trabalhos feministas
identificados como “pós-modernos”, as discussões no seio do feminismo francês assumem
novas colorações. Na França, muitas se insurgem contra o que elas consideram como “o
abandono da análise das relações sociais concretas ”85, isto é, “os aspectos simbólicos,
discursivos e paródicos do gênero são privilegiados, em detrimento da realidade material e
histórica de opressões sofridas pelas mulheres”.86 Na obra de Mathieu essa tendência é
visível. O termo “materialismo” ausente nas suas reflexões dos anos 1970 é utilizado a partir
dos anos 1990 para definir sua perspectiva. Durante o seu pronunciamento no momento da
entrega do título de doutorado honoris causa a essa autora, em 1996, ela reivindica participar
do “feminismo materialista” que parte das “relações de classe entre os sexos”. O sexismo,
afirma, não é uma questão de “mentalidades” ou “ideologia”, mas tem como fundamento uma
“exploração concreta e material”, que seria “mais tenaz que as mentalidades”.87
Nesse contexto, outras autoras, com outras trajetórias teóricas, como Danièle Kergoat
e Anne Marie Devreux, se apresentam mais recentemente como “feministas materialistas”.88
O elemento-chave dessa polarização não é a questão da “diferença sexual”, mas a
“materialidade” da opressão. Há, portanto, um retorno à centralidade dos debates sobre a
materialidade, compreendidos num sentido diferente daquele presente nos primeiros debates
dos anos 1970.
Pouco a pouco se construiu uma oposição entre uma análise materialista e outras
teorias, oriundas do contexto anglo-saxão e identificadas como “pós-modernas”. Nos anos
2000, essa polarização transforma-se num dos grandes debates no seio dos estudos de gênero
e estudos queer na França. Diversos autores procuraram tematizar as diferenças e afinidades
84
ADKINS, Lisa; LEONARD, Diana. Sex in question. French materialist feminism. Londres/Bristol, Taylor &
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85
MATHIEU, Nicole-Claude. Dérive du genre/stabilité des sexes [1994].In MATHIEU Nicole-Claude,
L’anatomie politique 2, Paris, La Dispute, 2014,p. 323.
86
MATHIEU, Nicole-Claude. Sexe et genre [2000]. In MATHIEU Nicole-Claude, L’anatomie politique 2,
Paris: La Dispute, 2014,p. 29-30.
87
MATHIEU, Nicole-Claude. Prologue. Allocution pour un doctorat honoris cause. In: MATHIEU Nicole-
Claude. L’anatomie politique 2, Paris: La Dispute, 2014, p.10.
88
KERGOAT, Danièle. Se battre, disent-elles, Paris: La dispute, 2012 ; DEVREUX, Anne-Marie. Les propriétés
formelles des rapports sociaux de sexe. Mémoire pour l’habilitation à diriger des recherches, Université Paris 8,
2004.
298
entre essas duas perspectivas, tal como Paul Bourcier, Elsa Dorlin e Sophie Noyé.89 Os
debates estão em andamento e constituem, por si só, objeto para uma tese.
89
Ver, por exemplo: BOURCIER, Marie-Hélène. La fin de la domination masculine. Pouvoir des genres,
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