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MARCELINO, Douglas Attila.

Subversivos e pornográficos: censura de livros e


diversões públicas nos anos 1970. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2011.

Prefácio – Carlos Fico


A censura das diversões públicas já era praticada no Brasil desde 1945, com a criação
do Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) que, ao longo de anos, passou a
abarcar o teatro, a tevê e o rádio. Era um órgão vinculado do Ministério da Justiça,
contava com funcionários de carreira e estava marcado pelo éthos moralista e
conservador das classes médias urbanas. O SCDP continuou a funcionar depois do
golpe de 64, mas, com o endurecimento do regime, a partir de 68, os sistemas de
repressão criados nesse contexto enredaram o SCDP, que teve que interagir com os
órgãos de segurança e de informações. Nos anos 70, o SCDP se tornaria o DCDP,
ganham o status de Divisão. (p. 9)

“Entretanto, mesmo nessa fase, a agência nunca se afastou do que entendia ser sua
missão precípua, isto é, a censura de costumes, o combate à pornografia, a proteção dos
menores. A perspectiva moral foi usada como pretexto para a censura estritamente
política, mas a burocracia do órgão teve dificuldades em proibir a divulgação de obras
usando argumentos que não fossem a ‘defesa da moral e dos bons costumes’.” (p. 9-10)

Diferença entre o DCDP e o Setor de Imprensa do Gabinete (SIGAB) do diretor-geral


do Departamento de Polícia Federal (DPF), cuja missão era a censura política. É
necessário diferenças as duas censuras – suas motivações – e como se estruturaram. As
demandas de natureza moral, relativas à pornografia, à nudez, aos “excessos” da tevê,
eram encaminhadas à DCDP. Enquanto que as contestações ao regime, as críticas ao
governo, notícias sobre prisões etc., eram cuidadas pelo SIGAB.

Foi durante a abertura que houve um abrandamento da censura política, o que levou ao
incremento da atividade censória de cunho moral. Geisel, por meio de seu Ministro da
Justiça Armando Falcão, se concentrou sobre o controle da comunidade de segurança
(os setores que prendiam a torturavam), permitindo que a comunidade de informações
(serviços militares e civis de espionagem) se entrevisse com a censura. Foi Falcão quem
atendeu os reclamos de setores da sociedade por mais censura. (p. 10)
O que unificava os diferentes grupos que se instalaram no governo foi a adesão à
“utopia autoritária” segundo a qual seria possível transformar o Brasil em uma potência
mundial caso alguns obstáculos fossem eliminados. Houve uma dimensão “saneadora” e
uma dimensão “pedagógica” que caracterizam a forma como os militares aderiram a
essa utopia. A dimensão saneadora, dos grupos mais radicais, prezava pela necessidade
de eliminar o comunismo, a subversão e a demagogia. A solução era uma “grande
limpeza”. Assim, previa ações efetivas de repressão, justificando o uso de instrumentos
classificados como “revolucionários” por seu caráter excepcional, como a possibilidade
de prender sem mandato judicial. A dimensão saneadora englobava a espionagem,
polícia política, julgamentos sumários e censura da imprensa.

Por sua vez, a dimensão pedagógica previa a necessidade de suprir as “deficiências de


formação” da sociedade e protegê-la de “ideologias exóticas” ou outras formas de
corrupção do espírito. Englobava a censura das diversões públicas, ensinar os brasileiros
a serem limpos e civilizados, enfim, constituída a cara “legalizada” e, portanto,
praticada sem pudores. Tratava da censura moral, da propaganda política e das
chamadas “ações cataclíticas” do combate à corrupção. Era regulamentada por leis
aprovadas pelo Congresso Nacional. (p. 12)

Capítulo 1. Política, memória e historiografia: o SCDP e certa tradição censória


“De fato, a memória construída sobre os anos da ditadura, de modo geral, tende a
ressaltar somente a dimensão política da censura que existia no período. Na verdade, a
época é lida, como um todo, sobretudo a partir da chave política. Questões como a
sexualidade e outras relacionadas ao plano comportamental, quando mencionadas, são
tomadas apenas como epifenômenos de uma variante política fundamental. Assim, a
história do Brasil de 1964 e 85 tem sido reduzida à história política da ditadura militar
(...).” (p. 22)

Segundo o autor, a origem desta percepção do período deve ser buscada nos próprios
anos da resistência, em particular no que concerne ao processo de “abertura política”.
Durante este período, a denúncia da censura política era um “recurso essencial para
desestruturar de vez os mecanismos ditatoriais que ainda existiam, acabando por
generalizar-se a convicção de que havia somente esse tipo de censura”. A luta contra
essa faceta do regime acabou encobrindo a existência da censura de costumes. (p. 22)
A atuação do SCDP no plano da censura política deu-se mais intensamente no auge da
repressão (1968-73), mas não fez com que o órgão abdicasse de sua “função precípua”,
que era “zelar pela moralidade do povo brasileiro”. Esta função não foi abandonada pela
interferência das preocupações de natureza política. (p. 24)

O autor comenta os trabalhos de Beatriz Kushnir, Inimá Simões e Alexando Ayub


Stephanou, mostrando como em todos eles afirma-se que a censura durante o regime
militar foi estritamente política. A moral e os bons costumes é considerada, no melhor
dos casos, um subterfúgio utilizado pelo órgão censor. (p. 26)

O autor questiona as perspectivas de autores que enquadram a censura em uma projeto


totalmente coerente de dominação, ou seja, na doutrina de segurança nacional. Esta teria
amparado as diversas medidas de que lançaram mão os militares durante a repressão.
No entanto, deixa de considerar as medidas mais conjunturais e as diferentes noções no
interior da corporação militar. (p. 27-28)

O SCDP foi criado ainda nos anos 1940, com o objetivo de lidar com as questões
morais, substituindo o antigo Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo.
O DIP conjugava a censura de diversões públicas com a censura política, enquanto o
SCDP se dedicava à primeira. Sua ação estava inserida em uma “espécie de tradição que
sempre amparou a censura de costumes”. (p. 28)

“Entretanto, se a censura moral existia havia muito tempo, foi durante a ditadura militar
que o Serviço de Censura de Diversões Públicas ganhou mais consistência, já que, até
então, a censura nessa área operava com menos complexidade, numa ‘escala’ que ainda
não havia se confrontado com a produção massificada da ‘industria cultural’. Embora
ela já viesse, em anos anteriores, proibindo o que considerava imoral no plano da
produção cultural, sobretudo no que se refere ao cinema, foi a partir de meados da
década de 1960 que tivemos iniciativas mais rigorosas de centralização da censura em
nível nacional, de aumento do número de censores e do aperfeiçoamento daquele
‘serviço’, assim entendido como uma agência do governo que precisava ser
modernizada, evoluindo para acompanhar o desenvolvimento de meios de comunicação
como, por exemplo, a televisão.” (p. 29)
No final dos anos 60 consolida-se a perspectiva de centralização da censura de
diversões públicas na União, por meio do DPF. A Constituição de 67 atribui a tarefa de
organização uma polícia federal com o objetivo de realizar a censura de diversões
públicas. (p. 30)

Alguns acontecimentos, como o curso para técnico de censura, a perseguição ao cinema


e ao teatro, por exemplo, são indicativos da importância que a questão política assumiu
no período, pelo menos no plano cinematográfico. A censura do SCDP assumiu, em
diversos momentos, uma conotação política. Os setores anticomunistas faziam uma
conexão entre a adoção de “novos” padrões de comportamento e os supostos objetivos
de subvertes a ordem política, mas essa era uma concepção bem menos difundida no
SCDP. (p. 32)

Na maioria dos casos, o que parecia incomodar os setores sociais mais conservadores
era a “revolução de costumes”, consubstanciada em torno de algumas discussões morais
que ganhavam mais espaço na sociedade, como os direitos de certas “minorias”, os
métodos contraceptivos, a legalização do divórcio, uso de drogas, etc.

“A chamada ‘revolução de costumes’, portanto, é um dos principais fatores que devem


ser considerados não apenas para compreender o enrijecimento da censura, mas também
para se explicar a demanda de maior rigor pelos segmentos moralmente mais
conservadores da sociedade (sem descuidar, é claro, da própria tradição da censura de
costumes, sempre muito ativa no caso brasileiro). Das “novas discussões”, o sexo era
um dos aspectos que mais preocupava as pessoas que pediam uma atuação mais
enérgica da censura, muitas delas visualizando uma ascensão ameaçadora do erotismo
nos programas de tevê, nas publicações editadas no país e em outros setores, como o
cinema nacional (...).” (p. 32-33) A conjugação entre avanço dos meios de
comunicação e o fenômeno da “revolução de costumes” ajudam a compreender a
demanda por maior rigor censório no final dos anos 70.

Foi no contexto da abertura política que a preocupação com a censura de diversões


públicas ganhou muito espaço. O ministro de Geisel, Armando Falcão, tentou aprovar
uma lei que unificasse os critérios de censura. Entre 74 e 85 ocorreram diversas seleções
para o cargo de técnico da censura. A grande preocupação da censura foi com a
programação da tevê, a partir de fins dos anos 70, por conta de seu grande
desenvolvimento técnico e maior alcance de público. (p. 33-34).

Capítulo 2. As duas censuras de publicações da ditadura militar: estruturação e


desmonte
Alfredo Buzaid – promulgação em 1970 do decreto lei 1077, primeiro instrumento
legislativo pós-golpe que possibilitou a efetivação da censura prévia de publicações que
abordavam temas relacionados aos costumes. Sua grande novidade, em termos
censórios, foi a verificação prévia de livros e revistas, que ficaria a cargo da PF. A
censura prévia a outros médios de comunicação, como rádio e tevê, já existia desde
antes. (p. 40-41)

Existência de duas censuras de livros: “um voltada para os elementos políticos das
publicações e outra para aquelas que tratavam de temas referentes à moral e aos bons
costumes. Esta amparava-se no decreto-lei 1077 e em outras normas legais relacionadas,
obedecendo ao regime de verificação prévia, que deveria ser feita pela Polícia Federal.
Já a censura prévia de caráter político dos livros e revistas nunca teve amparo
consistente na legislação do período, de modo que a proibição e a apreensão só podiam
ser executadas depois que os materiais fossem publicados, com base no ato institucional
n. 5 ou na Lei de Segurança Nacional.” (p. 42)

Debate sobre as ambiguidades na legislação da ditadura e a polêmica historiográfica em


relação ao decreto 1077 e à censura prévia. (p. 43-45)

“Por ser feita com base na Lei de Segurança Nacional, a censura política de livros, além
de precisar der efetuada a posteriori, deveria, necessariamente, passar pela apreciação
do Ministério Público Militar, com vistas a uma provável ação penal, levando à
necessidade de que a proibição viesse acompanhada de um parecer com certa
consistência jurídica (praticamente impossível de ser encontrada nas análises
proibitórias). Para que fosse possível o enquadramento no artigo da LSN que
disciplinava o assunto, era preciso comprovar que o material editado constituiria de
‘crime contra a segurança nacional’, algo por si só bastante difícil de demonstrar,
tratando-se de uma simples publicação.” (p. 45)
A censura moral, por sua vez, era mais aceita pela população e tendia a ser mais eficaz,
por ser feita antes da publicação do material, acarretando menores custos políticos, e
porque era mais dificilmente contestada na Justiça. (p. 45)

No governo Médici, Buzaid teve o papel de promulgar a legislação que amparou a


censura prévia de publicações, enquanto que, no governo Geisel, algumas iniciativas
bem ousadas foram tomadas. (p. 46) Por exemplo, o controle das publicações que
chegavam do exterior por meio de “fiscalização aduaneira”. (p. 47) Outra iniciativa
importante do Ministério da Justiça foi a censura nos correios, para identificar um foco
de difusão e apreender o material (p. 48-49).

A censura prévia das publicações encontrava resistência tanto da sociedade, quanto dos
próprios militares, pelos custos políticos que implicava. Assim, havia uma série de
dificuldades e limitações: fragilidade da legislação existente, novas tendências políticas
à “abertura”, lentidão dos processos daquela pasta, falta de pessoal. (p. 50)

A escolha de Armando Falcão para o Ministério da Justiça foi uma estratégia de Geisel
para contrabalancear suas iniciativas em favor da abertura política, ou seja, uma
negociação com a linha dura. (p. 54)

Com o início da administração de Abi-Ackel, que substituiu Petrônio Portela (assumiu a


pasta depois de Falcão, mas morreu menos de um ano depois), houve uma reunião, no
começo de 1980, das autoridades da DCDP com editores de revistas que tratavam de
temas referentes aos costumes. Extinguiu-se a censura prévia, no entanto uma série de
exigências foram mantidas e o Código Penal e a Lei de Imprensa foram evocados para
manter a obediência. “Mais do que um simples ato de vontade do ministério, essa
atitude parecia ser a única forma de continuar mantendo algum controle, haja vista as
constantes manifestações no âmbito da Justiça ressaltando a ilegalidade que cercava a
prática da verificação prévia de publicações. Agora, com o crescente desmantelamento
do regime autoritário, o Poder Judiciário conseguia alcançar um grau mais elevado de
autonomia, tornando mais evidente a fragilidade legislativa que embasava a manutenção
de determinados mecanismos, como o da censura prévia” (p. 50-51)

Capítulo 5. Em defesa dos bons costumes: a censura moral


Foi na gestão de Armando Falcão no Min. Justiça que houve um aumento substancial de
livros censurados, cujo decréscimo se deu com o fim do governo de Geisel. Tanto
autores mundialmente conhecidos como autores/autoras nacionais, foram censurados.
(p. 121-122)

“Impulsionados por uma postura geralmente muito conservadora em termos


comportamentais, os funcionários do órgão que fazia a censura de diversões públicas
não se constrangiam em fazer adjetivações virulentas sobre as obras, muitas vezes
chegando ao ponto de avaliar aspecto que, em tese, não deveriam passar pelo exame
censório, como a estruturação lógica do texto ou o grau de sofisticação do português
empregado. De fato, esse é um aspecto que apenas tende a confirmar aquilo que já
vínhamos destacando sobre a falta de critérios mais sólidos nas avaliações feitas no
âmbito do SCDP, algo bastante agravado pela falta de preparo dos censores
encarregados da análise dos livros naquela conjuntura.” (p. 123)

Os censores da DCDP colocavam-se numa posição de superioridade, capazes de


discernir o que é de bom ou mau gosto, decente ou indecente, com ou sem valor
literário, pornográfico, saudável, útil ou inútil. (p. 124-125)

“Como já destacamos em outros momentos, parece notório que a censura dos anos 1970
não tinha condições de avaliar todas as publicações que circulavam no país, mesmo que
essa exigência se restringisse àquelas sobre temas relacionados ao sexo e aos costumes.
Inexistia, como de se esperar, o controle ou conhecimento das inúmeras obras que
foram editadas naquela conjuntura, fazendo com que também não houvesse
regularidade nos meios pelos quais a censura tomava conhecimento de muitas delas. No
caso da censura política, conforme já analisamos, grande parte dos livros proibidos foi
alvo da vigilância e das pressões advindas dos órgãos de informações. Já no âmbito da
censura de costumes, as autoridades censórias contavam, ainda, com a contribuição de
uma parcela da população empenhada em denunciar autores e obras tidos como imorais.
(p. 128)

Das obras analisadas pelo autor até o momento neste capítulo, o lesbianismo
aparece em todos, ou quase todos, os pareceres da censura. Poderíamos ver como
uma questão entre muitas, mas parece significativa sua constante presença nos
pareces, seguida de termos como depravação sexual. Considerando que as obras
chegavam ao DCDP por denúncias de civis, podemos observar aí o controle social
sobre a sexualidade, a repulsa à lesbianidade, o reforço da heterossexualidade
compulsória.

A partir da segunda metade dos anos 70 houve um aumento substantivo no número de


livros examinados e vetados pela DCDP, especialmente no que se refere a obras
consideradas contrárias à moral e aos bons costumes. “Sua análise, portanto, torna-se
fundamental à compreensão dos conflitos morais que se manifestavam entre os padrões
comportamentais defendidos pelos funcionários do órgão que fazia a censura de
diversões públicas e aqueles presentes nos livros examinados, sejam eles considerados
obras de grande valor literário ou publicações que exploravam o sexo com objetivos
meramente comerciais.” (p. 132)

De maneira recorrente os técnicos de censura argumentavam pela interdição de uma


obra por ela ter como objetivo corromper a juventude. Existia a convicção de que certas
obras estavam sendo publicadas com este objetivo precípuo, e não o de explorar
comercialmente o sexo. (p. 135)

Nem mesmo obras consagradas internacionalmente ou de grande valor artístico foram


poupadas pela tesoura censória. O que predomina nos pareceres é a grande adjetivação
de autores e obras, que não foram poupados. (p.136-137)

“Além da crença no objetivo precípuo de ‘corromper a juventude’, perceptível nesse e


em outros pareceres que já destacamos, outro aspecto bastante presente nas avaliações
dos censores era a convicção de que as publicações eróticas levariam de fato à prática
do ato sexual. Em outras palavras, os funcionários da DCDP não somente estavam
convencidos de que essa publicações poderiam deixar lúbricos seus leitores, mas, às
vezes, pareciam dotá-las de uma desproporcional capacidade de conduzi-los à imitação
das relações sexuais ali descritas ou ilustradas.” (p. 137)

“E, de fato, no ‘exame censório’, tanto os estudos sobre sexualidade quanto os manuais
mencionados eram, muitas vezes, tratados de modo semelhante, sendo vistos como
meras explorações da imoralidade e da pornografia. Impulsionados por uma concepção
bastante conservadora sobre as representações do ato sexual, os censores da DCDP
encontravam lascívia tanto em textos que exploravam o sexo de modo cabalmente
desabrido, quanto em estudos acadêmicos e manuais ou revistas de orientação sexual.”
(p. 139)

O autor ressalta que a proibição ou liberação de muitos livros ficou sujeita, em grande
medida, ao caráter moralmente mais ou menos conservador dos técnicos da censura que
os examinavam. Não havia critérios sólidos que orientassem a atividade censória com o
objetivo de diminuir o elevado grau de subjetividade que implica a análise de uma obra
literária. (p. 141)

Em alguns pareceres sobre estudos de sexologia aparece a percepção de cada país


possui seus próprios padrões morais, os quais poderiam ser imaculados pela infiltração
de valores advindos de outros países. Assim, o Brasil era geralmente percebido como
um país em que a moral e os bons costumes seguiam padrões mais recatados, que
deveriam ser preservados, ao passo que outros países apareciam como excessivamente
liberais em questão de costumes sexuais. (p. 141-142)

Há uma visão de que a sociedade não estava preparada para lidar com a imoralidade, o
que legitima a própria necessidade da censura de costumes no país. A instituição de
censura é, assim, colocada em um patamar superior e seus funcionários seriam capazes
de “alcançar a ‘verdadeira mensagem’ das obras examinadas”. (p. 144)

Além da questão sexual, o tema do uso de drogas também foi alvo do exame dos
técnicos da DCDP. Muitas vezes os técnicos encontravam um sentido apologético em
livros simplesmente educativos ou informativos. Além disso, também ressoava a ideia
de que certas discussões não deveriam chegar ao grande público, tido como incapaz de
compreendê-las. (p. 146-147)

Ademais, o tratamento dado à homossexualidade foi outro tema caro à DCDP.


Cassandra Rios foi a autora mais censurada, tendo 36 livros interditados durante a
ditadura. Seus livros eram obras baratas, de caráter popular. A autora era bastante
conhecida, tendo atingindo a marca de um milhão de livros vendidos. Dos livros
censurados, pelo menos 14 foram feitos entre 1975 e 1978. Todos os pareceres sobre
seus livros são desse período, o que corrobora a hipótese de que a censura de
publicações atentatórias a moral se intensificou naquele momento, apesar de já
anunciada a “distenção” do regime. A retirada da censura prévia de caráter
político das redações de jornais do país foi apenas uma medida governamental
nesse plano, pois a repressão à publicações imorais acabou se intensificando. (p.
151)

“Os exames que os técnicos de censura fizeram delas [obras de Cassandra Rios]
ilustram de modo substancial como o tema da homossexualidade era um dos que mais
atraíam a violência da DCDP, auxiliando na percepção do choque de valores existente
entre o avanço das perspectivas de liberalização sexual e os padrões culturais prezados
pelos setores moralmente mais conservadores da sociedade.” (p. 152)

O autor analisa alguns pareces da censura. Nos trechos citados, chama atenção a estreita
associação entre lesbianismo e patologia... (p. 152-153)

Além da negativa caracterização do lesbianismo, a censura contra os livros de


Cassandra Rios era justificada pela “pregação” da naturalidade dos atos, as descrições
sexuais feitas com muitos detalhes, a baixa qualidade literária e a presença de
comportamentos indevidos, como o uso de drogas. (p. 153-155)

Houve declarações públicas, em grandes meios de comunicações, de diretores e chefes


do DCDP em relação à homossexualidade e à lesbianidade, as quais foram contestadas
pelo GGB e Triângulo Rosa. (p. 155) Em 1985, foi baixada uma instrução normativa
assinada por Coriolano Fagundes, diretor do DCDP, que versava sobre a apresentação
de travestis, homossexuais e lésbicas na televisão. (p. 156)

Capítulo 6. O guardião dos bons costumes: Armando Falcão e as “publicações


eróticas”

Ao contrário do que a memória social consolidou, nem toda a sociedade brasileira


combateu ou condenou a censura. Principalmente a censura relacionada à moral e aos
bons costumes recebeu apoio de grande parcela da população, por exemplo, por meio do
envio de cartas pedindo mais rigor censório ou elogiando alguma medida tomada. A
maior aceitação que a censura de costumes possuía socialmente foi utilizada, inclusive,
para interditar obras consideradas politicamente contrárias ao regime. (p. 166-167)

Armando Falcão teve seu mandato no Ministério da Justiça marcado por algumas
importantes ações: a criação de um “grupo permanente de trabalho” para sugerir
critérios de proibição aos livros considerados atentatórios à segurança nacional; a
extensão da censura às publicações estrangeiras; a advertência recorrente aos
responsáveis de publicações periódicos, visando coibir sua circulação; intensificação da
DCDP no controle da exposição de revistas eróticas em bancas de jornal. (p. 167)

O autor destaca que o apoio que a censura moral recebia releva um traço marcante da
conformação histórica brasileira: o apreço de parte da população de uma postura
paternalista pelos dirigentes de Estado. A concepção de que cabe ao Estado “tutelar” as
camadas populares em campos como a moralidade é defendida por setores da população
desde longa data. (p. 168)

A censura moral estimulava manifestações dos setores mais conservadores da


sociedade, geralmente defendendo-a, ao mesmo tempo em que servia como um meio
eficaz para conseguir sua empatia. Por ser mais aceita socialmente, a censura moral não
necessitava ser escamoteada. (p. 169)

A DCDP foi alvo de constantes reclamações por contas das revistas “pornográficas” que
eram vendidas nas bancas de jornal. (p. 169-170) Muitas reclamações a partir do fim da
década de 70 relacionam-se com o paulatino desmonte da censura de publicações. As
constantes perdas na Justiça, as denúncias por inconstitucionalidade de algumas normas
legislativas e a saída de Falcão levaram à determinação no fim da censura prévia e a
impossibilidade de proibir a venda das publicações atentatórias à moral. (p. 171)

O autor levanta a hipótese de que apregoar a formação de uma “cruzada” contra a


imoralidade funcionava, naquele período, como uma forma de tentar acumular capital
político. O jurista Paulo Brossard, que assumiu o Ministério da Justiça no governo
Sarney, apesar de suas convicções mais liberais, também lançou sua “cruzada contra a
violência”. Sua atuação, como a de Abi-Ackel, correspondeu a uma intensificação da
atuação censória, visando, principalmente, um controle mais rígido da tevê. (p. 172-173)
“Além da conveniência de continuar auferindo o apoio de determinados setores mais
moralistas que diziam defender os bons costumes e o tradicionalismo, havia toda a
engrenagem legislativa que dava sustentação à existência daquela atividade. Por outro
lado, existia também o desgaste político advindo da manutenção de uma prática que já
era prontamente associada à censura política, embora não se confundisse
completamente com ela, o que deixava o ministro numa situação bastante vulnerável,
sofrendo pressões de ambos os lados.” (p. 173)

“O discurso da necessidade de proteger as crianças e os jovens da imoralidade era, sem


dúvida, o argumento mais persuasivo daqueles que demandavam mais rigor censório, e
aparecia em diversas cartas. Mesmo nesse aspecto, portem, ficava sempre difícil
discernir o que cabia ao Estado e o que era tarefa da educação dada no ambiente
doméstico.” (p. 177)

No final do capítulo, o autor reflete sobre quem seriam os remetentes das cartas
enviadas ao DCDP. Considerando que a maioria provinha das principais capitais
brasileiras e os traços discursivos comuns às cartas, o autor considera que boa parte das
cartas tenha vindo das classes médias urbanas. Esse argumento se fortalece ao
considerarmos que em importantes momentos históricos do país esse setor autodeclarou
“guardião” dos valores tradicionais da “família cristã ocidental”, além de ter se
mobilizado pela defesa de valores conservadores, como nas Marchas da Família com
Deus Pela Liberdade. (p. 182-183)

Capítulo 7. Pátria, família, religião: quando moral e política se misturam


“A associação entre moral e política, entre pornografia e subversão, entre obscenidade e
comunismo estava presente nas convicções de muitas pessoas, quer tenha sido utilizada
apenas de maneira estratégica, como meio de propaganda política contra os setores
adversários, quer tenha sido empregada devido a temores reais de uma possível ação,
planejada em escala internacional, dos ‘inimigos da pátria e da religião’.” (p. 188)

Essa associação já era mobilizada pelos discursos de grupos conservadores nos anos
1960, por exemplo na simbologia das Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Os
próprios militares se utilizavam de um discurso moralista que destacava a necessidade
de uma intervenção saneadora nas instituições, em prol do “reerguimento moral” do
país.

“Enfim, não era somente através da repressão política que se poderia salvaguardar a
família cristã ocidental. Eram necessárias ações mais eficazes no plano dos costumes;
tinha-se que congelar o processo de mudanças comportamentais que se acelerava a
partir de fins dos anos 1960. Para tanto, não bastava a existência de um órgão censório
pouco atuante, sendo preciso uma instituição mais eficaz no combate à imoralidade nos
meios de comunicação e que pudesse perceber os perigos políticos encobertos pelas
falsas beneses do mundo moderno.” (p. 188)

O autor analisa as cartas enviadas à DCDP ou a autoridades responsáveis pela censura


durante os anos 1970, principalmente por organizações religiosas, grupos de militares e
pessoas desvinculadas de qualquer entidade. Demandavam um enrijecimento da
censura, associando a expressiva liberalização sexual apresentada nos meios de
comunicação e uma suposta ação de segmentos contrários ao regime político. No
imaginário anticomunista, havia forte associação entre comunismo e imoralidade. (p.
188-189)

Grupos conservadores viam a Divisão de Censura como o órgão do governo militar


responsável pelo combate à imoralidade e ao comunismo nos meios de comunicação.
Era necessário alertar a DCDP para o perigo da propagação de valores como
relacionados à “liberalização sexual” e “pornografia”, pois, em ultima instância,
possuíam finalidades subversivas. Assim, as preocupações católicas no âmbito da
moralidade ganhavam consistência discursiva e encontravam um terreno fértil. (p. 191)

Grupos católicos, em particular as entidades femininas comandadas por esposas de


militares (União Cívica Feminina, Movimento de Arregimentação Feminina, etc.),
tiveram um papel ativo na doutrinação anticomunista e no alerta ao perigo da
imoralidade. Conjugando anticomunismo, patriotismo e moralismo, as entidades
ressaltavam a importância de estar em conformidade com o ideal patriótico de formar o
caráter do jovem brasileiro. (p. 192-193)
“Associando o processo de ‘dissolução dos costumes’ a uma estratégia comunista, a
Confederação Nacional das Congregações Marianas do Brasil demandava atitudes
enérgicas para ‘um combate sem tréguas às publicações e espetáculos imorais’. A
entidade acabava dando mostras, também, do quanto algumas de suas preocupações
eram semelhantes às ideias apregoadas na propaganda governamental do regime militar,
a qual, durante anos, pautou-se na projeção da grandeza do país, apontando sempre para
uma realização plena num futuro glorioso.” (p. 195)

“De fato, algumas dessas entidades religiosas não somente demandavam uma ação mais
enérgica das autoridades para uma ‘depuração dos costumes’, mas, muitas vezes,
associavam o combate à imoralidade à manutenção da ordem política.” (p. 195)

“Tomando a família como a instituição fundamental na qual se alicerçaria o Estado


como organização social, o discurso da Comunidade Católica de Jaú amparava-se em
um elemento recorrente do ideário conservador de legitimação da censura. Esta era uma
tese frequente nas cartas enviadas à DCDP pedindo mais proibições e também se
alimentava das concepções difundidas pelos governos militares, sempre ciosos em
resguardar os valores tradicionais da ‘família cristã ocidental’. Não foi outro o motivo
pelo qual, durante o período da ditadura, o Dia da Família foi lembrado anualmente e
saudado em discursos do presidente da República nos meios de comunicação (...).” (p.
197)
Associação entre a solidez da instituição familiar e a do Estado – retórica do
regime militar, presente em discursos e propagandas
“Sem dúvida, a identificação entre moral familiar e estabilidade social estava bastante
presente no discurso de grupos religiosos naquele período. Vivenciando o que muitos
deles percebiam como um momento de ‘crise moral’, é provável que esses segmentos,
em parte, mobilizassem tais ideias para ter suas demandas atendidas: a associação entre
a solidez do sentimento de pertencimento à família e ao Estado nacional poderia servir
de aviso, àqueles que detinham o poder, de que a manutenção dos padrões morais
tradicionais era fundamental para a estabilidade do regime político. Não se pode
descartar, portanto, uma certa ‘instrumentalização’ do político por parte desses setores
moralmente mais conservadores da sociedade.” (p. 198)
Ao relacionar a conservação dos padrões morais com a estabilidade do regime, esse
discurso encampava a ideia de que o processo de mudança comportamental poderia
estar sendo arquitetado por grupos inimigos do Estado cujo objetivo era tomar o poder
político. Portanto, a concepção de que o Estado se fundamenta nos valores da família
permitia a propagação do “imaginário anticomunista”. (p. 198-199)

O autor chama a atenção para a importância do discurso religioso como um aspecto


relevanta para compreender a ação censória. Ainda que os grupos religiosos não
formulassem os critérios ou diretrizes de censura, suas demandas foram levadas em
consideração pela DCDP, bem como for utilizadas para afirmar a legitimidade de sua
atuação do âmbito dos costumes. (p. 200)

No caso dos militares, o sentimento anticomunista era o que motivava as suas ações e
clamor por maior rigor censório. A censura moral, para esse segmento, poderia ter
fundamentos político-ideológicos mais profundos, respaldados na concepção de que o
processo de “dissolução dos costumes” fazia parte de investidas do movimento
comunista internacional para “desfribrar a juventude” e tomar o poder político. (p. 202)

Para as entidades católicas, a família parecia ser o alvo principal da estratégia


comunista, enquanto que, para os militares, a defesa da pátria era o que estava em
jogo. A partir dos anos 1960, o discurso anticomunista dos militares reforçava a ideia de
uma “guerra revolucionária” que era travada em todas as frentes – nas décadas
anteriores, comparava-se o comunismo a um “vírus exótico” que infectaria o corpo
social. (p. 203)

Sobre a comunidade de informações:


O termo designa os “diversos órgãos que tiveram atividade intensa durante quase todo o
regime militar, a expressão refere-se a uma estrutura formada, basicamente, pelo
Serviço Nacional de Informações (SNI), que encabeçava o sistema de informações, pelo
Centro de Informações do Exército (CIE), pelo Centro de Informações da Marina
(Cenimar), pelo Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa), pelas
Divisões de Segurança e Informações (DSI), alocadas nos ministérios civis, e pelas
Assessorias de Segurança e Informações (ASI), localizadas nas empresas estatais e
autorarquias.” (p. 213)
Trata-se de órgãos civis, mistos ou exclusivamente militares, que constituíam uma “voz
autorizada” dentro de regime, propagando um discurso extremista, por meio do qual
tentavam influenciar o posicionamento dos outros escalões do governo militar. Foram
importantes propagadores do imaginário anticomunista. Esses setores veicularam
diversas ideias-força com o objetivo de pressionar a DCDP para promover uma censura
de natureza política nos meios de comunicação. (p. 213-214)

Outro tema comum nas avaliações dos órgãos de informações era a homossexualidade,
considerada, igualmente, estratégica para os “grupos esquerdistas”. O autor cita uma
análise de um artigo da revista Isto é e a divulgação de eventos relacionados ao
movimentos homossexual. (p. 216)
Informação n. 87/74, 24/04/74, fundo DSI, Arquivo Nacional, série Diversos, subsérie
Avulsos, caixa 42-7117
Informação n. 24/78, da DSI/MJ, 11/01/78. Processo n. 100045/78, MC/P, caixa
618/05284
Informação n. 0880/971, SNI/AC, 05/05/71.

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