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“Entretanto, mesmo nessa fase, a agência nunca se afastou do que entendia ser sua
missão precípua, isto é, a censura de costumes, o combate à pornografia, a proteção dos
menores. A perspectiva moral foi usada como pretexto para a censura estritamente
política, mas a burocracia do órgão teve dificuldades em proibir a divulgação de obras
usando argumentos que não fossem a ‘defesa da moral e dos bons costumes’.” (p. 9-10)
Foi durante a abertura que houve um abrandamento da censura política, o que levou ao
incremento da atividade censória de cunho moral. Geisel, por meio de seu Ministro da
Justiça Armando Falcão, se concentrou sobre o controle da comunidade de segurança
(os setores que prendiam a torturavam), permitindo que a comunidade de informações
(serviços militares e civis de espionagem) se entrevisse com a censura. Foi Falcão quem
atendeu os reclamos de setores da sociedade por mais censura. (p. 10)
O que unificava os diferentes grupos que se instalaram no governo foi a adesão à
“utopia autoritária” segundo a qual seria possível transformar o Brasil em uma potência
mundial caso alguns obstáculos fossem eliminados. Houve uma dimensão “saneadora” e
uma dimensão “pedagógica” que caracterizam a forma como os militares aderiram a
essa utopia. A dimensão saneadora, dos grupos mais radicais, prezava pela necessidade
de eliminar o comunismo, a subversão e a demagogia. A solução era uma “grande
limpeza”. Assim, previa ações efetivas de repressão, justificando o uso de instrumentos
classificados como “revolucionários” por seu caráter excepcional, como a possibilidade
de prender sem mandato judicial. A dimensão saneadora englobava a espionagem,
polícia política, julgamentos sumários e censura da imprensa.
Segundo o autor, a origem desta percepção do período deve ser buscada nos próprios
anos da resistência, em particular no que concerne ao processo de “abertura política”.
Durante este período, a denúncia da censura política era um “recurso essencial para
desestruturar de vez os mecanismos ditatoriais que ainda existiam, acabando por
generalizar-se a convicção de que havia somente esse tipo de censura”. A luta contra
essa faceta do regime acabou encobrindo a existência da censura de costumes. (p. 22)
A atuação do SCDP no plano da censura política deu-se mais intensamente no auge da
repressão (1968-73), mas não fez com que o órgão abdicasse de sua “função precípua”,
que era “zelar pela moralidade do povo brasileiro”. Esta função não foi abandonada pela
interferência das preocupações de natureza política. (p. 24)
O SCDP foi criado ainda nos anos 1940, com o objetivo de lidar com as questões
morais, substituindo o antigo Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo.
O DIP conjugava a censura de diversões públicas com a censura política, enquanto o
SCDP se dedicava à primeira. Sua ação estava inserida em uma “espécie de tradição que
sempre amparou a censura de costumes”. (p. 28)
“Entretanto, se a censura moral existia havia muito tempo, foi durante a ditadura militar
que o Serviço de Censura de Diversões Públicas ganhou mais consistência, já que, até
então, a censura nessa área operava com menos complexidade, numa ‘escala’ que ainda
não havia se confrontado com a produção massificada da ‘industria cultural’. Embora
ela já viesse, em anos anteriores, proibindo o que considerava imoral no plano da
produção cultural, sobretudo no que se refere ao cinema, foi a partir de meados da
década de 1960 que tivemos iniciativas mais rigorosas de centralização da censura em
nível nacional, de aumento do número de censores e do aperfeiçoamento daquele
‘serviço’, assim entendido como uma agência do governo que precisava ser
modernizada, evoluindo para acompanhar o desenvolvimento de meios de comunicação
como, por exemplo, a televisão.” (p. 29)
No final dos anos 60 consolida-se a perspectiva de centralização da censura de
diversões públicas na União, por meio do DPF. A Constituição de 67 atribui a tarefa de
organização uma polícia federal com o objetivo de realizar a censura de diversões
públicas. (p. 30)
Na maioria dos casos, o que parecia incomodar os setores sociais mais conservadores
era a “revolução de costumes”, consubstanciada em torno de algumas discussões morais
que ganhavam mais espaço na sociedade, como os direitos de certas “minorias”, os
métodos contraceptivos, a legalização do divórcio, uso de drogas, etc.
Existência de duas censuras de livros: “um voltada para os elementos políticos das
publicações e outra para aquelas que tratavam de temas referentes à moral e aos bons
costumes. Esta amparava-se no decreto-lei 1077 e em outras normas legais relacionadas,
obedecendo ao regime de verificação prévia, que deveria ser feita pela Polícia Federal.
Já a censura prévia de caráter político dos livros e revistas nunca teve amparo
consistente na legislação do período, de modo que a proibição e a apreensão só podiam
ser executadas depois que os materiais fossem publicados, com base no ato institucional
n. 5 ou na Lei de Segurança Nacional.” (p. 42)
“Por ser feita com base na Lei de Segurança Nacional, a censura política de livros, além
de precisar der efetuada a posteriori, deveria, necessariamente, passar pela apreciação
do Ministério Público Militar, com vistas a uma provável ação penal, levando à
necessidade de que a proibição viesse acompanhada de um parecer com certa
consistência jurídica (praticamente impossível de ser encontrada nas análises
proibitórias). Para que fosse possível o enquadramento no artigo da LSN que
disciplinava o assunto, era preciso comprovar que o material editado constituiria de
‘crime contra a segurança nacional’, algo por si só bastante difícil de demonstrar,
tratando-se de uma simples publicação.” (p. 45)
A censura moral, por sua vez, era mais aceita pela população e tendia a ser mais eficaz,
por ser feita antes da publicação do material, acarretando menores custos políticos, e
porque era mais dificilmente contestada na Justiça. (p. 45)
A censura prévia das publicações encontrava resistência tanto da sociedade, quanto dos
próprios militares, pelos custos políticos que implicava. Assim, havia uma série de
dificuldades e limitações: fragilidade da legislação existente, novas tendências políticas
à “abertura”, lentidão dos processos daquela pasta, falta de pessoal. (p. 50)
A escolha de Armando Falcão para o Ministério da Justiça foi uma estratégia de Geisel
para contrabalancear suas iniciativas em favor da abertura política, ou seja, uma
negociação com a linha dura. (p. 54)
“Como já destacamos em outros momentos, parece notório que a censura dos anos 1970
não tinha condições de avaliar todas as publicações que circulavam no país, mesmo que
essa exigência se restringisse àquelas sobre temas relacionados ao sexo e aos costumes.
Inexistia, como de se esperar, o controle ou conhecimento das inúmeras obras que
foram editadas naquela conjuntura, fazendo com que também não houvesse
regularidade nos meios pelos quais a censura tomava conhecimento de muitas delas. No
caso da censura política, conforme já analisamos, grande parte dos livros proibidos foi
alvo da vigilância e das pressões advindas dos órgãos de informações. Já no âmbito da
censura de costumes, as autoridades censórias contavam, ainda, com a contribuição de
uma parcela da população empenhada em denunciar autores e obras tidos como imorais.
(p. 128)
Das obras analisadas pelo autor até o momento neste capítulo, o lesbianismo
aparece em todos, ou quase todos, os pareceres da censura. Poderíamos ver como
uma questão entre muitas, mas parece significativa sua constante presença nos
pareces, seguida de termos como depravação sexual. Considerando que as obras
chegavam ao DCDP por denúncias de civis, podemos observar aí o controle social
sobre a sexualidade, a repulsa à lesbianidade, o reforço da heterossexualidade
compulsória.
“E, de fato, no ‘exame censório’, tanto os estudos sobre sexualidade quanto os manuais
mencionados eram, muitas vezes, tratados de modo semelhante, sendo vistos como
meras explorações da imoralidade e da pornografia. Impulsionados por uma concepção
bastante conservadora sobre as representações do ato sexual, os censores da DCDP
encontravam lascívia tanto em textos que exploravam o sexo de modo cabalmente
desabrido, quanto em estudos acadêmicos e manuais ou revistas de orientação sexual.”
(p. 139)
O autor ressalta que a proibição ou liberação de muitos livros ficou sujeita, em grande
medida, ao caráter moralmente mais ou menos conservador dos técnicos da censura que
os examinavam. Não havia critérios sólidos que orientassem a atividade censória com o
objetivo de diminuir o elevado grau de subjetividade que implica a análise de uma obra
literária. (p. 141)
Há uma visão de que a sociedade não estava preparada para lidar com a imoralidade, o
que legitima a própria necessidade da censura de costumes no país. A instituição de
censura é, assim, colocada em um patamar superior e seus funcionários seriam capazes
de “alcançar a ‘verdadeira mensagem’ das obras examinadas”. (p. 144)
Além da questão sexual, o tema do uso de drogas também foi alvo do exame dos
técnicos da DCDP. Muitas vezes os técnicos encontravam um sentido apologético em
livros simplesmente educativos ou informativos. Além disso, também ressoava a ideia
de que certas discussões não deveriam chegar ao grande público, tido como incapaz de
compreendê-las. (p. 146-147)
“Os exames que os técnicos de censura fizeram delas [obras de Cassandra Rios]
ilustram de modo substancial como o tema da homossexualidade era um dos que mais
atraíam a violência da DCDP, auxiliando na percepção do choque de valores existente
entre o avanço das perspectivas de liberalização sexual e os padrões culturais prezados
pelos setores moralmente mais conservadores da sociedade.” (p. 152)
O autor analisa alguns pareces da censura. Nos trechos citados, chama atenção a estreita
associação entre lesbianismo e patologia... (p. 152-153)
Armando Falcão teve seu mandato no Ministério da Justiça marcado por algumas
importantes ações: a criação de um “grupo permanente de trabalho” para sugerir
critérios de proibição aos livros considerados atentatórios à segurança nacional; a
extensão da censura às publicações estrangeiras; a advertência recorrente aos
responsáveis de publicações periódicos, visando coibir sua circulação; intensificação da
DCDP no controle da exposição de revistas eróticas em bancas de jornal. (p. 167)
O autor destaca que o apoio que a censura moral recebia releva um traço marcante da
conformação histórica brasileira: o apreço de parte da população de uma postura
paternalista pelos dirigentes de Estado. A concepção de que cabe ao Estado “tutelar” as
camadas populares em campos como a moralidade é defendida por setores da população
desde longa data. (p. 168)
A DCDP foi alvo de constantes reclamações por contas das revistas “pornográficas” que
eram vendidas nas bancas de jornal. (p. 169-170) Muitas reclamações a partir do fim da
década de 70 relacionam-se com o paulatino desmonte da censura de publicações. As
constantes perdas na Justiça, as denúncias por inconstitucionalidade de algumas normas
legislativas e a saída de Falcão levaram à determinação no fim da censura prévia e a
impossibilidade de proibir a venda das publicações atentatórias à moral. (p. 171)
No final do capítulo, o autor reflete sobre quem seriam os remetentes das cartas
enviadas ao DCDP. Considerando que a maioria provinha das principais capitais
brasileiras e os traços discursivos comuns às cartas, o autor considera que boa parte das
cartas tenha vindo das classes médias urbanas. Esse argumento se fortalece ao
considerarmos que em importantes momentos históricos do país esse setor autodeclarou
“guardião” dos valores tradicionais da “família cristã ocidental”, além de ter se
mobilizado pela defesa de valores conservadores, como nas Marchas da Família com
Deus Pela Liberdade. (p. 182-183)
Essa associação já era mobilizada pelos discursos de grupos conservadores nos anos
1960, por exemplo na simbologia das Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Os
próprios militares se utilizavam de um discurso moralista que destacava a necessidade
de uma intervenção saneadora nas instituições, em prol do “reerguimento moral” do
país.
“Enfim, não era somente através da repressão política que se poderia salvaguardar a
família cristã ocidental. Eram necessárias ações mais eficazes no plano dos costumes;
tinha-se que congelar o processo de mudanças comportamentais que se acelerava a
partir de fins dos anos 1960. Para tanto, não bastava a existência de um órgão censório
pouco atuante, sendo preciso uma instituição mais eficaz no combate à imoralidade nos
meios de comunicação e que pudesse perceber os perigos políticos encobertos pelas
falsas beneses do mundo moderno.” (p. 188)
“De fato, algumas dessas entidades religiosas não somente demandavam uma ação mais
enérgica das autoridades para uma ‘depuração dos costumes’, mas, muitas vezes,
associavam o combate à imoralidade à manutenção da ordem política.” (p. 195)
No caso dos militares, o sentimento anticomunista era o que motivava as suas ações e
clamor por maior rigor censório. A censura moral, para esse segmento, poderia ter
fundamentos político-ideológicos mais profundos, respaldados na concepção de que o
processo de “dissolução dos costumes” fazia parte de investidas do movimento
comunista internacional para “desfribrar a juventude” e tomar o poder político. (p. 202)
Outro tema comum nas avaliações dos órgãos de informações era a homossexualidade,
considerada, igualmente, estratégica para os “grupos esquerdistas”. O autor cita uma
análise de um artigo da revista Isto é e a divulgação de eventos relacionados ao
movimentos homossexual. (p. 216)
Informação n. 87/74, 24/04/74, fundo DSI, Arquivo Nacional, série Diversos, subsérie
Avulsos, caixa 42-7117
Informação n. 24/78, da DSI/MJ, 11/01/78. Processo n. 100045/78, MC/P, caixa
618/05284
Informação n. 0880/971, SNI/AC, 05/05/71.