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MOTTA. Rodrigo Patto Sá. A “Indústria” do Anticomunismo. Anos 90.

Revista do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Porto Alegre. Nº 15. 2001/2002.

Sem rejeitar a sinceridade de alguns atores, o autor se esforça por compreender as


práticas anticomunistas no Brasil, especialmente em seu viés oportunista e manipulador.
“Indústria do anticomunismo” foi uma expressão cunhada para designar a exploração
vantajosa do “perigo vermelho”. Industriais do anticomunismo eram aqueles que se
empenhavam em incutir o temor aos comunistas e supervalorizar a ameaça comunista, para
tirarem proveito dos resultados advindos daquele temor. Essa operação consistia em exagerar
a influência do Partido Comunista Brasileiro e dos supostos objetivos imperialistas da URSS,
criar e difundir estereótipos negativos acerca dos comunistas com o objetivo de criar uma
imagem propositadamente deformada da realidade.

Em muitas situações tratava-se não de criar, mas de explorar um medo já existente. O


objetivo dos industriais do anticomunismo era aproveitar-se do pavor gerado pelo comunismo
para legitimar a aplicação de determinadas medidas e convencer a sociedade de que eram os
únicos capazes de combater aquele mal. Os ganhos auferidos com a indústria anticomunista
podiam ser políticos, na forma de votos ou apoio a medidas de governo ou o crescimento do
prestígio de algumas instituições que se colocavam como combatentes do comunismo, como a
Igreja e a AIB. Havia também ganhos pecuniários, quando alguns grupos extorquiam setores
abastados com a promessa de combater os comunistas. Por fim, há que se mencionar o mais
óbvio que era o fato de a indústria do anticomunismo supervalorizar a força dos vermelhos a
fim de combatê-los.

Segundo Motta (2001 /2002) a AIB destacou-se entre as instituições que exploraram o
temor ao comunismo visando a ganhos financeiros e ao crescimento político. Desde o início
de suas atividades aquela organização se apresentou como uma combatente anticomunista.
Porém, reforçou sua propaganda após os eventos de 1935. ‘Tratava-se de aproveitar o estado
de espírito dos setores da sociedade atemorizados pela “Intentona”, colocando a AIB no papel
de campeã na luta contra os comunistas.’ p.76

A imprensa integralista procurava explorar ao máximo o anticomunismo, mesmo em


momentos em que arrefecia o interesse da imprensa em geral pelo tema. Numa clara tentativa
de manter o temor ao comunismo em voga, os veículos de propaganda da AIB chegavam a
publicar notícias que já haviam saído em edições anteriores. Convencer a sociedade da
iminência e da gravidade de ataques e/ou de uma revolução comunista reforçava a
importância da AIB, mantendo-a também sempre em voga.

No decorrer do ano de 1937, a campanha aumentou de tom, em decorrência da


disputa pela sucessão presidencial. A AIB tentou a todo custo manter-se em
evidência, fosse para concorrer às eleições com Plínio Salgado, fosse para participar
com vantagem nas confabulações golpistas então em andamento. Para este efeito,
era conveniente convencer a sociedade da gravidade do perigo (...), mesmo que na
ocasião o PCB se encontrasse inteiramente incapaz de representar ameaça.

O anúncio da “descoberta” do Plano Cohen foi amplamente utilizado pelos


integralistas, como se finalmente os fatos estivessem lhes dando razão. Evidentemente,
trataram de explorar ao máximo aquela “descoberta”, objetivando auferir prestígio político
para seu líder e sua organização.

A Igreja católica foi outra instituição a retirar benefícios da luta contra o


comunismo. Não se trata, é claro, de negar a sinceridade de seu repúdio às propostas
revolucionárias, elemento que de resto não faltava ao anticomunismo da AIB. Mas
há fortes indícios apontando para o caráter providencial, para utilizar linguagem
religiosa, da emergência da questão comunista. O aumento do temor ao comunismo,
nos anos 30, surgiu num momento em que a Igreja buscava reconquistar espaços
perdidos desde o início da República. O advento republicano foi acompanhado de
uma reação até certo ponto anticlerical, que implicou na redução do papel social
tradicionalmente ocupado pelas instituições católicas. A mobilização anticomunista
contribuiu para que tal tendência de declínio fosse revertida. p.78

Ao se apresentar como uma instituição capaz de neutralizar o proselitismo comunista a


Igreja, simultaneamente, credenciava-se a merecer o apoio do Estado e recuperava o prestígio
perdido entre setores das elites sociais. Portanto, a existência de uma ameaça comunista servia
à Igreja no sentido de cobrar apoio do Estado e tentar atrair novamente aqueles fieis afastados
da vivência religiosa.

A utilização do anticomunismo se prestava também a reforçar outra frente de


combate da Igreja, a luta contra a “imoralidade” dos novos tempos. A licenciosidade
de costumes, o carnaval, o desregramento da moda, os vícios em geral, eram
denunciados pelo discurso religioso como a ponta de lança do trabalho de destruição
operado pelos revolucionários. Segundo essa perspectiva, combater o “relaxamento”
moral era dever dos partidários da manutenção da ordem, pois estariam lutando
contra o próprio comunismo.
Pode-se dizer que a ofensiva de “recristianização” operada nos anos 30, marcada
pela reintrodução do ensino religioso, aproximação entre Estado e Igreja e
crescimento da influência dos valores religiosos entre as elites sociais e intelectuais,
deveu parte de seu sucesso à afirmação da instituição católica no papel de guardiã da
ordem contra o comunismo. p.79

Grupos ligados ao aparato repressivo do Estado também foram responsáveis pela


criação de uma modalidade específica de indústria do anticomunismo. Com intuito de
valorizar sua presença no interior do Estado e de apresenta-la como indispensável ao mesmo,
policiais e militares ligados às atividades de repressão politica fabricava provas do aumento
das atividades comunistas, além de tentarem manter essa temática em evidência na imprensa.
Frequentemente essa estratégia atemorizava o empresariado, levando-o a destinar recursos às
pessoas e corporações envolvidas no trabalho anticomunista.

Os integralistas também fabricavam provas do aumento das atividades comunistas


visando angariar recursos e até mesmo extorquir setores do empresariado ainda relutantes em
contribuir financeiramente para a causa anticomunista. Uma estratégia utilizada foi a pichação
noturna dos muros das residências dos empresários de quem se pretendia angariar recursos.
Aqueles muros eram cobertos com pichações de natureza comunista, o que amedrontava os
alvos da extorsão.

A indústria do anticomunismo foi um fenômeno tão notório que até a grande imprensa
ocasionalmente denunciou aquela prática. Era comum, inclusive líderes anticomunistas
sentirem a necessidade de afirmarem publicamente a sinceridade de seus compromissos.
Vários foram os agentes que exploraram o anticomunismo: o próprio Estado, grupos e líderes
políticos, órgãos de repressão e também a Igreja.

Em 1962, por exemplo, o Jornal do Brasil abordou o tema num editorial de título
“Fantasmas Rendosos”. Analisando a mobilização anticomunista ocorrida durante as
eleições daquele ano, o editorialista comentou que o flagrante exagero da campanha
acabou por desmoralizar os responsáveis. De acordo com o texto jornalístico, o
desempenho eleitoral dos comunistas foi “(...) tão pífio que os industriais do
anticomunismo acabaram por se dominar, agora, de um pânico real: a
impossibilidade de continuarem a se nutrir do combate a um espantalho que se
desmoralizou e os desmoralizou”. p.72

A forma mais conhecida e também a mais importante assumida pela indústria


anticomunista tinha por objetivo legitimar ou criar condições favoráveis às intervenções
autoritárias na vida política nacional. O pretexto advogado era de que as instituições liberal-
democráticas não eram capazes de combater eficientemente o comunismo, fazendo-se
necessário a urgente adoção de medidas extraordinárias. Com algumas diferenças e
adaptações esse roteiro foi encenado no Brasil em dois diferentes golpes: aquele de 1937 que
instaurou o Estado Novo e o de 1964 que instaurou a ditadura civil-militar. Deve-se
considerar ainda os ensaios menores que não chegaram a ocupar o palco principal da política
brasileira. Seja como for, criavam-se discursos de polarização política dando a impressão da
existência de um grave confronto opondo comunistas a anticomunistas. O clima de beira do
abismo e risco iminente era criado e reforçado.

Outra importante faceta da indústria do anticomunismo consiste na tentativa de


macular adversários políticos e desafetos sociais ligando-os ao comunismo. Esse tipo de
prática tornou-se mais frequente, sobretudo, após 1935 em meio à onda anticomunista que se
seguiu à Intentona Comunista. Pululam exemplos nos arquivos policiais de indivíduos
comuns que se tornaram comunistas graças a denúncias motivadas não pelo temor do perigo
vermelho, mas pela satisfação de querelas de natureza pessoal. Em 1958 o DOPS resolveu
depurar seus arquivos sobre o PCB que reuniam, desde 1922, 800.000 fichas referentes a
comunistas. O objetivo era separar aqueles que de fato eram comunistas daqueles fichados
devido a vinganças pessoais, falsos testemunhos e chantagens.

‘Como notou um observador contemporâneo: “O título de communista (...) hoje é


um signal de ignomínia e até mesmo uma arma com que o inescrupulo dos homens
tenta tisnar a dignidade dos que odeiam”. Inúmeros homens públicos foram
acusados de envolvimento com o Partido Comunista por desafetos que, numa época
de caça às “bruxas”, pretendiam jogá-los às “feras”. p.74

Na campanha presidencial de 1937, mobilização em torno de um pleito que jamais


aconteceria, houve um fato risível. Os dois principais candidatos, Américo Martins e
Armando Salles, acusaram-se mutuamente de comunistas, no afã de se livrarem de quaisquer
suspeitas de simpatia com a “doutrina maldita”.
Havia também a prática de se utilizar com liberalidade o rótulo de comunista,
aplicando-o a todos os indivíduos com inclinações esquerdistas. A aplicação indiscriminada
do rótulo de comunista a indivíduos pertencentes as mais diversas matizes de esquerda,
fossem eles anarquistas, socialistas moderados, trabalhistas, a esquerda católica e, em
determinadas conjunturas, até mesmo os liberais avançados, tinha por objetivo desacreditar
toda e qualquer proposta de mudança social. Atemorizadas em função das sinistras imagens
divulgadas e cristalizadas ao longo dos anos, parte da população tendia a encarar com reservas
as propostas reformadoras e discursos progressistas.

Não se pode descartar, porém, a possibilidade de que alguns setores anticomunistas


acreditassem realmente no suposto vínculo da esquerda moderada com o
comunismo. Quanto mais radicais as posições conservadoras e reacionárias, tanto
maior a tendência a execrar qualquer mudança como “coisa de comunista”. E o fato
de comunistas e progressistas possuírem determinados valores em comum, por
exemplo, entusiasmo pelas propostas nacionalistas e insatisfação com respeito ao
domínio tradicional da Igreja, tornava mais fácil o estabelecimento de uma
percepção que fundia num só corpo identidades essencialmente distintas. p.75

Os progressistas acreditavam que a sobrevivência da classe política que despontava


com a democratização de 1946 exigia concessões, transigências e principalmente o
atendimento de certas demandas populares. Esse grupo defendia então que os políticos
tradicionais deveriam se abrir às demandas populares, passando por um processo de
amadurecimento político. Um elemento que unia sem maiores problemas os grupos
progressistas era o interesse que dispensavam ao desenvolvimento sobre bases nacionais, ou
resumidamente, o desenvolvimento nacional, a industrialização e a condenação ao latifúndio.
Mas os progressistas dividiam-se em dois blocos, os liberais, interessados somente no
aprofundamento do capitalismo industrial e os reformistas sociais (ou nacionalistas-
econômicos). Logo, os progressistas concentravam-se majoritariamente no PTB, mas
espalhavam-se por diversas outras legendas partidárias, a exemplo dos conservadores e
ruralistas da UDN e PDS1. Mesmo cientes de quem eram os progressistas e quais as propostas
que defendiam:

Não se pode descartar, porém, a possibilidade de que alguns setores anticomunistas


acreditassem realmente no suposto vínculo da esquerda moderada com o

1
Estas são as definições sobre os progressistas sugeridas por MOREIRA (2003) ao estudar o governo JK.
comunismo. Quanto mais radicais fossem as posições conservadoras e reacionárias,
tanto maior a tendência a exagerar qualquer mudança como “coisa de comunista”. E
o fato de comunistas e progressistas possuírem determinados valores em comum,
por exemplo, entusiasmo pelas propostas nacionalistas e insatisfação com respeito
ao predomínio tradicional da Igreja, tornava mais fácil o estabelecimento de uma
percepção que fundia num só corpo identidades essencialmente distintas. p.75

É comum a bibliografia sobre o anticomunismo reduzir o tema apenas a sua faceta


oportunista. De fato, houve mistificação do perigo comunista, que foi apresentado de maneira
claramente exagerada, bem como houve também oportunismo. Contudo, essa é uma visão
simplista, uma vez que não considera todas as motivações e facetas do anticomunismo. É
insuficiente caracterizar os anticomunistas, de um lado, como líderes aproveitadores e, de
outro, ou como uma massa de fanáticos e tolos que se deixavam enganar pelos primeiros. É
certo que o comunismo não se limitava a um fantasma criado e manipulado por
“espertalhões” interessados tão somente em conduzir uma massa ingênua. O perigo vermelho
guardava algo de real e o temor a ele, certamente, era concreto.

Muitas vezes, prevalece uma visão simplista sobre os anticomunistas, que tende a
uniformizá-los, como se eles compusessem um só bloco. Pouca atenção tem sido
prestada a suas convicções diferenciadas, que em muitos casos revelam um repulsa
convicta e coerente ao comunismo. Veja-se o caso dos católicos fiéis. É natural e
compreensível que pessoas cuja formação espiritual e moral tenha sido estruturada
com base no catolicismo enxergassem no comunismo um inimigo. Os comunistas de
fato pretendiam destruir a Igreja e atacar seus valores essenciais, substituindo-os por
uma moral comunista ou “proletária”. Embora em algumas conjunturas os PCs
tenham estabelecido políticas de “mão estendida” na direção dos católicos, a
realidade de perseguição aos religiosos e fiéis nos países sob governo comunista não
era de molde a inspirar confiança nos seguidores da Igreja romana. E o mesmo
raciocínio pode ser feito para os liberais: o comunismo realmente significava o fim
da propriedade privada e a implantação de ditaduras políticas. p.87

Portanto, os diversos grupos anticomunistas entendiam ter motivos lícitos para recusar
o modelo soviético, cuja implantação no Brasil temiam com sinceridade. Nos momentos em
que o temor ao comunismo era maior nem todos os atores anticomunistas estavam
dissimulando. Frequentemente os grupos anticomunistas e militantes anticomunistas atacavam
aqueles que desdenhavam do perigo vermelho, tachando aqueles que não acreditavam nas
potencialidades comunistas como ingênuos. Neste sentido, o temor de muitos agentes sociais
ao comunismo era sincero e não instrumental.

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