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para o pequeno município de Durandé, no interior de Minas Gerais. Filho do dono de uma
pequena lanchonete no centro da cidade de 7 mil habitantes, e de uma dona de casa que
fazia doces por encomenda, a família dependia do movimento dos aposentados, que iam ao
centro sacar seus vencimentos, e do fluxo dos estudantes da única escola do município.
Com a abertura de novos núcleos escolares e agências bancárias na zona rural, os
rendimentos da lanchonete foram aos poucos se extinguindo. Técnico agrícola, o pai se
muda com a família para Viçosa (MG) para trabalhar, e depois Atibaia (SP).
Com os protestos de 2013 e o nascimento do filho, em 2014, passa a se politizar mais. “Era
aquela loucura de trabalho precário, de garçom, estudando, saindo da moradia estudantil,
porque não podia ter criança… Mas naquele contexto de 2014, chegava de madrugada
ainda com aquela adrenalina do trabalho, enchia uma bacia com água e sal para colocar os
pés e ia lendo os livros e conversando com minha companheira enquanto ela amamentava
o Artur”. Em 2015 decide se organizar, e opta pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB),
estruturando o núcleo do partido em Piracicaba e região.
Aos 32 anos, representa hoje o PCB como o pré-candidato mais jovem ao governo do
Estado de São Paulo. Engenheiro agrônomo com mestrado em Ecologia, Gabriel apresenta
as bandeiras de sua candidatura na primeira de uma série de entrevistas da Revista Opera
com pré-candidatos às eleições de 2022.
Revista Opera: O Estado de São Paulo, apesar de ter passado por um processo de
industrialização muito forte, apesar de ter como capital a maior metrópole do País, tem uma
produção agrícola bastante relevante, mas com muita concentração nessa produção –
basicamente 25 produtos são produzidos, cana-de-açúcar e laranja representando um
montante grande disso – e com uma concentração fundiária também bastante forte. Apesar
dessa relevância da produção agrícola paulista, nós temos hoje milhões de pessoas no
Estado passando fome. Queria saber justamente qual é o balanço que você faz dessa
agroindústria paulista e o que um eventual governo do Estado comunista teria como
proposta para essa questão. É possível avançar numa concepção de combater a grande
propriedade no campo?
Gabriel Colombo: Muito bom. Acho que quando vamos falar do agronegócio uma primeira
questão é desmistificar essa ideologia do “agro é tech, agro é pop, agro é tudo”. Há dois
elementos: primeiro, apesar de alguns setores terem um desenvolvimento científico-
tecnológico grande na produção, elevando a produtividade – mesmo em gêneros
alimentares importantes para a mesa dos brasileiros, como o arroz e o feijão, produtividade
essa que inclusive é o que nos permite ainda ter um pouco de arroz e feijão – nós temos
ainda uma enorme quantidade de áreas improdutivas. Terras que ficam para a
disponibilidade da especulação de terras, e terras que se tornaram desertificadas, tornaram-
se improdutivas, ou seja, terrenos que o capital desenvolveu ao máximo, sem incorporar
fertilização, sem ter preocupação com o desenvolvimento das terras a longo prazo,
tornando-as improdutivas. Todo mundo que anda pelo Estado de São Paulo percebe áreas
que são pastagens degradadas, aquele capim baixinho, geralmente cheio de cupim na
pastagem – isso é terra improdutiva, por mais que tenha uma ou outra cabeça de gado ali,
essa terra não está cumprindo o que seria um patamar de produtividade capaz de justificar
a função social da terra. Tudo isso pode ser desapropriado desde já.
Então é preciso desmistificar: por mais que tenha de fato um desenvolvimento tecnológico
no agronegócio, isso não significa pesquisa e desenvolvimento em todas as terras. As
terras do capitalismo, tanto pela especulação fundiária quanto pela dinâmica de
disponibilidade de terras no País – o Brasil é um país continental – nunca são pensadas em
termos de sua sustentabilidade a longo prazo. A lógica é sempre do esgotamento e
utilização máxima dos recursos.
No Brasil temos isso como uma característica histórica da nossa formação social, que é o
fato de que todas as lavouras primeiro começam do litoral. O Caio Prado Jr. inclusive cita
em sua obra um historiador que fala que o Brasil explorou sua terra como um caranguejo;
primeiro andando pela costa, lateralmente, e só depois entrando. E pra trás sempre vão
ficando as terras improdutivas. Aqui no eixo Rio-São Paulo dá para pensar o que foi isso
com as lavouras de café: nós vemos hoje na marginal Dutra, por exemplo, muitas áreas
improdutivas, que são resultado desse uso máximo pela agricultura sem uma preocupação
com a continuidade dessas terras.
Sintetizando: há um aumento de produtividade, mas que não abarca a totalidade das terras.
Então continuamos tendo o problema das terras improdutivas, seja por especulação, seja
por desertificação. Isso precisa ser enfrentado, é preciso fazer um processo de
democratização do acesso à terra no País, que é um debate que ficou lateralizado pela
esquerda e, no final da primeira década deste século foi deixado de lado, na ideia de que “a
questão não é assentar mais” – e política de assentamento já não é reforma agrária – “a
questão é modernizar os assentamentos que tem”. Então nunca se colocou em xeque a
grande propriedade da terra, se buscou atender aqueles que ocupavam a terra – uma
política de assentamentos, não uma política de reforma agrária.
Esse agronegócio não tem um vínculo direto da produção para a alimentação brasileira. Há
dois fatores nisso: um é o próprio capitalismo; para ele não importa atender uma
necessidade humana, atender uma necessidade social. Para o capital, o que vale é gerar
lucro. O segundo fator é que o agronegócio é vinculado à produção de commodities. Então
esse paradoxo, de produtividade alta mas com o povo passando fome, é escancarado na
aparência, mas não é um paradoxo para a burguesia, para o agronegócio: o centro para
eles é garantir o lucro, garantir a valorização do capital.
Ou seja: é necessário voltar a pautar a reforma agrária, e uma reforma agrária popular, com
democratização do acesso à terra, com garantia de produção de alimentos a partir do
Estado, uma volta a um projeto de pesquisa e desenvolvimento que busque atender às
demandas internas, ao abastecimento interno. Com a quantidade de terras que temos em
São Paulo, podemos cumprir um papel nacional, com garantia de sustentabilidade, de
proteção da nossa biodiversidade, de amplificação da biodiversidade, conservação dos rios,
etc. E é necessário cumprir essa tarefa de demonstrar e denunciar o que é isso que se
chama de “agronegócio”, que na verdade não nos alimenta.
Gabriel Colombo: O que a gente vinha defendendo, não só no processo eleitoral, mas
também nas lutas, era uma frente única dos trabalhadores; um momento em que se
unificassem os partidos da esquerda revolucionária, e que os socialistas, social-democratas,
reformistas, sociais-liberais estivessem em uma frente única dos trabalhadores. Ou seja,
que mesmo com as divergências, fosse consolidado um campo que apontasse um
programa para enfrentar o legado Bolsonaro-Temer nacionalmente. Isso é, que enfrentasse
o teto de gastos, a reforma trabalhista, a reforma da previdência, a lei da terceirização, as
privatizações. É um conjunto de medidas mínimas, tranquilas para as organizações que
buscam representar a classe trabalhadora, para serem apresentadas em conjunto – não só
nas eleições, defendemos isso na retomada das ruas contra Bolsonaro no ano passado,
debatemos isso durante o período de pico da pandemia.
É um debate que vem desde que Bolsonaro vai para o segundo turno e ganha: como
enfrentá-lo? Frente ampla ou frente única dos trabalhadores? Nós trabalhamos para isso,
não só no âmbito dos partidos, mas sobretudo nas organizações populares, nos
movimentos sociais, para tentar atrair para a ideia de uma unidade de esquerda no
enfrentamento ao governo Bolsonaro – mas não o Bolsonaro só como uma figura, e sim
como um programa que ele expressa e representa. Porque é assim que temos que
entender: Temer e Bolsonaro são peças no tabuleiro da burguesia em um momento de
ofensiva mundial dela contra os trabalhadores. Que repete em todos os países um mesmo
padrão que enfrentamos aqui. Trabalhávamos essa ideia de frente única dos trabalhadores
até para que nossa resposta não se limitasse às eleições, mas que nós conseguíssemos
expressar, com mobilizações, com greves, essa insatisfação.Vimos jornadas de luta
fortíssimas no Chile, na Colômbia, agora no Equador, que deram resultados – no caso de
Chile a ponto de derrubar a Constituição do Pinochet; no caso da Colômbia elegendo
Gustavo Petro, inclusive eleição que traz aí o aprendizado de que não é necessário
conciliar, no cargo de vice, com a direita; e agora no Equador, conseguindo reverter o
aumento do preço dos combustíveis. Então nós queríamos, antes das eleições, já derrotar
Bolsonaro e já derrotar esses programas. Não tínhamos uma lógica de quietismo, de
“vamos aguardar as eleições”, nem uma proposta de ir às ruas só para desgastar
Bolsonaro. Não: achávamos possível derrotá-lo.
Infelizmente diversas organizações não toparam entrar nisso de cabeça; levavam seus
dirigentes, mas não mobilizavam as bases. Algo que, olhando hoje, acho que não cabe a
mais ninguém, cabe a nós, que nos identificamos com o campo da esquerda revolucionária,
porque o que me parece é que com essa frente ampla, na medida que recua cada vez mais,
vamos ter muita dificuldade de mobilizar. Temos expressões disso, inclusive: até o
momento, o que tenho percebido é que, por mais que a adesão eleitoral ao nome de Lula
no primeiro turno seja muito forte, os comitês populares, por exemplo, que expressariam
isso na base, não decolaram. Não vejo uma renovação política do PT, por exemplo, nos
movimentos de juventude, nos movimentos sociais e nos sindicatos. Me parece que é uma
coisa que ficou tão deslocada, focada nas eleições, que não tem sequer esse “caldo” de se
expressar na luta de classes, quase uma expressão só eleitoral e institucional. E isso não
nos permite sair do buraco em que a gente se encontra.
O momento eleitoral se apresenta como um momento tático em que mais pessoas estão
abertas a ouvir tanto um programa quanto uma perspectiva de País, e não poderíamos nos
isentar de disputar esse momento. Sempre faço a analogia, frente a críticas mais à
esquerda, do tipo “vocês estão disputando eleições burguesas”, que é que as candidaturas
representam algo como um panfletaço, uma distribuição de jornais em larga escala. É um
momento em que nós conseguimos amplificar as nossas pautas, porque não estamos
rebaixando nada: não deixamos de falar de revolução socialista quando estamos no
processo eleitoral; não deixamos de falar de poder popular; não deixamos de falar que
temos de entender que a burguesia é nossa inimiga e que não é possível conciliar com ela,
porque são os burgueses que matam, encarceram em massa, colocam nas periferias em
situações subumanas de moradia a nossa população; de superexploração de trabalho nos
empregos, sem perspectiva de futuro para nossa juventude. Eles não fazem isso porque
não sabem conduzir um País: fazem isso porque esse é o projeto de País deles. É uma
minoria que enriquece muito, que até na pandemia enriqueceu muito: o número de
bilionários e sua riqueza aumentou em 30% durante os dois anos de pandemia, enquanto a
renda de 90% da população reduziu.
A posição da frente ampla seria abrir mão de fazer esse debate público para já ir
conciliando numa perspectiva institucional e eleitoral: olhar as pecinhas, quem tem peso
parlamentar, e dizer “ah, tem que trazer o PSB aqui, junto com PT, joga nesse bolo e traz a
reboque o PSOL, coloca também a REDE e o PCdoB e vamos fazendo um grande arranjo
parlamentar eleitoral que vai dar viabilidade para isso nas eleições”. Isso foge totalmente ao
debate de que programa vai ser esse, que projeto vai ser esse. E por mais que seja
permitido, nas eleições, que Lula fale – como já fez – sobre legalização do aborto, teto de
gastos, reforma trabalhista, essa coligação cria um abismo entre o que ele fala e o que vai
ser feito. Porque a correlação de forças que ele está criando para isso não vai sustentar
essas afirmações; não é uma correlação de forças fundamentada na mobilização popular, é
fundamentada justamente na correlação de representação parlamentar e institucional.
Essa nunca vai ser uma perspectiva para a classe trabalhadora. Porque parte do princípio
de que a correlação de forças é estática, e só cabe gerenciar melhor o Estado dentro dessa
correlação, para massacrar um pouco menos a classe trabalhadora. Não dava para
entrarmos rendidos nesse processo eleitoral. Esse é o primeiro ponto.
E o segundo é compreender que a eleição no Brasil tem dois turnos. Não dá para entrarmos
no primeiro usando a mesma lógica do segundo. No segundo, sim, podemos ir para a lógica
do menos pior: ninguém aqui é da linha do “quanto pior, melhor”, ninguém diz que as
questões objetivas e as demandas imediatas da nossa classe não importam. Nós nunca
falamos isso. Podemos escolher as condições com as quais a gente sabe que vai lutar
depois. Mas o que precisamos no primeiro turno é entender que quanto mais fortalecidos
nós sairmos em termos de expressão de votos, mais fortalecidos nós estaremos depois.
Entendemos como um momento de expressão de forças de projeto: quanto mais peso
tivermos ali, na votação, mais peso teremos depois na luta de classes. Mais gente que
estaremos mobilizando junto. O nosso único poder é a organização, e a eleição portanto
tem sempre de estar vinculada a esse convite, esse chamado, à organização coletiva e à
sua mobilização.
Agora, assim como antes nós defendíamos uma frente única dos trabalhadores, há espaço
para nós defendermos uma perspectiva ainda mais radical aqui em São Paulo, que é
expressar nas eleições uma frente de esquerda socialista, anticapitalista e antiimperialista,
que aglutine um polo para além do PCB. Em São Paulo nós temos como demonstrações a
favor disso: nos resultados que nós já temos nas pesquisas, e como se nacionalizou a
disputa pela prefeitura de São Paulo em 2020, em que a coligação do Boulos no primeiro
turno era PSOL, PCB e Unidade Popular (UP). Agora nós temos conversado, essa semana
eu estive em conversas junto à Unidade Popular (UP), nós temos feito esse convite, de
sairmos com uma frente de esquerda socialista aqui nestas eleições, com o mote de “pelo
poder popular e pelo socialismo”. É uma linha que temos de fortalecer em São Paulo,
porque acho que vai nos preparar muito para o que vai vir após as eleições, considerando
que podemos fortalecer a experiência do que foi e é a Frente Povo na Rua, por exemplo,
que conseguiu garantir uma ida às ruas contra Bolsonaro. É garantir que vai ter mobilização
também contra os governos de conciliação de classe.
Não podemos cometer o mesmo erro que o conjunto das organizações da classe
trabalhadora cometeu em 2002, de apassivar a nossa classe, dizendo que “isso é o que dá
para fazer no âmbito do governo”. Sem problemas se é o que dá pra fazer lá no âmbito do
governo, mas isso não nos contenta, então temos que lutar e mobilizar. Porque é isso
inclusive o que vai mudar as condições para que, lá no governo, consigam fazer mais.
Então nós defendemos sim isso, que é muito importante, e para isso nos propomos a abrir
mão da nossa pré-candidatura ao Senado, papel que hoje o camarada Tito [Flávio Bellini]
cumpre, para que a Vivian [Mendes, pré-candidata ao Senado pela Unidade Popular] venha
como pré-candidata ao Senado numa chapa que haja só um pré-candidato ao Senado. O
vice também poderia ser da Unidade Popular para que a gente cumpra essa tarefa, uma
avenida aberta que não é só do PCB, mas de todos os que se identificam com esse campo
revolucionário, socialista, radical e popular em São Paulo.
Revista Opera: Uma das grandes marcas das últimas duas décadas de governos do PSDB
aqui em São Paulo tem sido o avanço das privatizações no Estado. Temos um processo de
privatizações diretas mesmo, desde o começo dos anos 2000 – o Banco do Estado de São
Paulo (BANESPA), a Companhia Energética de São Paulo (CESP), etc., – mas tem-se
avançado também um processo de concessões privadas – linhas de metrô, rodovias – e as
chamadas “Parcerias Público-Privadas”, a concessão da administração de uma série
aparelhos públicos para empresas ou as chamadas “Organizações Sociais”. Que balanço
você faz desse processo de privatização no Estado – sejam diretas ou indiretas, por meio
dessas concessões – e, se eleito, como um governo comunista lidaria com isso? Barraria
por completo as privatizações, encamparia a reversão de algumas privatizações, estimularia
a criação de empresas públicas?
Mas temos diversas outras empresas privatizadas. A distribuição de energia, que fica a
cargo dos Estados, também. A CPFL, que é o caso da minha região; na cidade de São
Paulo a Eletropaulo. São umas seis distribuidoras de energia no Estado de São Paulo, e
todas elas foram privatizadas, e a gente vê hoje o alto valor que pagamos de energia em
consequência disso. Nesse processo de privatização dos serviços nos setores estratégicos,
se coloca, entre um serviço que é essencial e fundamental para toda a população paulista,
o lucro dos empresários, do capital privado. Isso tem que acabar, a gente tem que retomar
essas empresas. E essas concessões, que têm prazo, podem ter revisões de contrato –
geralmente elas não cumprem uma série de questões, como interesse social, ou mesmo
termos do contrato, o que permite a encampação. Nós estamos estudando ainda, porque é
nítido em concessões como as de rodovias, do transporte público, do Metrô e da CPTM,
mas poderia ser aplicável também à concessão e privatização das distribuidoras de energia.
Mas nós vamos trabalhar pela sua reestatização.
Na parte das concessões, acho que a mais escandalosa que temos hoje é a da CPTM, que
foi apelidada de “Via Calamidade”, mas também as obras do Metrô… A linha 6 do Metrô,
está prometida desde 2008, pô. Foi o José Serra (PSDB) que prometeu entregar em 2012,
estamos em 2022, e a previsão agora é acabar em 2025. É um absurdo. Nos casos da linha
8 e 9, os trens parando fora das estações, a população tendo que descer; trens descendo
juntos, sobrecarregando as estações – houve até aquele episódio em que a população ficou
revoltada e quebrou tudo na estação do Grajaú. E nas rodovias os reajustes absurdos e
abusivos nas tarifas de pedágio. E tem um processo inclusive de expansão das rodovias
para o interior, com duplicações e melhorias. Aconteceu aqui; estou em Piracicaba, São
Pedro é uma cidade próxima e tem muita gente que mora lá e vem trabalhar aqui. Tinha
uma demanda por duplicação há muito tempo. O Estado fez isso; investiu, duplicou,
melhorou… E depois concedeu e a empresa que ganhou a licitação só colocou a praça do
pedágio. É um absurdo: quem pagou foi o Estado! E isso tem acontecido muito em uma
série de rodovias que estão sendo expandidas pelo interior e depois concedidas. E nesses
casos é muito tranquilo fazer a encampação. Isso já é dado. E outra questão que entra
nisso é a retomada da Fepasa (Ferrovia Paulista S/A), reestatizar a Fepasa, rever os
contratos que foram concedidos dos trilhos, e diversificar os modais de transportes em São
Paulo. No País e aqui temos uma concentração muito grande na malha rodoviária, e
precisamos repensar o papel das ferrovias; para o interior, recuperá-las seria algo
fantástico, tanto no sentido de conectar mais às capitais quanto de facilitar o fluxo de
pessoas e mercadorias. Isso aquece a economia de uma maneira enorme, e até para a
gente, que tem o trabalho revolucionário, favorece a logística. Pegar um trem em São Paulo
e sair distribuindo jornal e a Revista Opera, parando em todo o Estado [risos]. Teria uma
facilitação do próprio trabalho revolucionário [risos]. Isso é melhoria na qualidade de vida do
trabalhador, redução no custo logístico do transporte – que impacta diretamente na redução
do preço de mercadorias e serviços para a população em geral.
Quanto aos serviços, o Haddad foi inclusive essencial para a implantação dessas Parcerias
Público-Privadas, ele foi o formulador disso quando era secretário de Política Econômica no
Ministério da Fazenda, ainda no governo Lula – e inclusive se orgulha disso, para poder
dialogar com o empresariado paulista tem enfatizado esse papel dele, como fez na sua
entrevista no Roda Viva. Isso serviu para abrir espaço para um sucateamento dos serviços.
Na saúde isso é muito expressivo, com as Organizações Sociais da Saúde (OSS), que vão
impondo uma lógica empresarial em que o hospital, a Unidade Básica de Saúde (UBS)
passam a entender tudo como um custo, um gasto, e a saúde se distancia daquilo que
deveria ser um direito que todos deveriam acessar universal e integralmente. Reduzem a
equipe… Muita gente não sabe: há uma revolta na população pelos médicos muitas vezes
mal olharem no olho para atender do paciente, por exemplo. É porque o cara tem uma meta
de atendimento por hora para cumprir que não permite a ele te fazer um atendimento de
qualidade.
Gabriel Colombo: Na rede pública, exatamente, com administração privada! As OSSs hoje
gerem mais de 60% dos serviços de saúde pública do SUS em São Paulo, que vai impondo
essa lógica. Um dos impactos dessa “racionalização” da saúde como um gasto é a redução
de quase 10 mil leitos no Estado de São Paulo entre 2011 e 2020. É dramático, fez que
entrássemos muito mal na pandemia, e que, uma vez nela, fossem criados muitos leitos de
campanha ou provisórios que, assim que melhorou a situação, foram fechados.
É claro que falando na parte racional e operacional, tudo parece muito fácil. Mas isso
demonstra a viabilidade de um projeto radical, que mesmo dentro das condições da
democracia burguesa já é possível ter conquistas, mas que não tem como ser vitorioso sem
apontar para um processo de ruptura. Mesmo para arrancar essas vitórias imediatas e
sobretudo para uma ruptura, só pode ser realizado de forma concomitante à construção do
poder popular. Não é buscando maioria parlamentar, é buscando a maioria da população
organizada politicamente.
Revista Opera: Uma outra área onde esse processo de privatização tem avançado,
especialmente com as Parcerias Público-Privadas, é a habitação. Só na região
metropolitana do Estado, se pegarmos preço dos aluguéis, quantidade de domicílios
precários, coabitação e adensamento excessivo, temos um déficit de moradia de mais de
um milhão de moradias. Como um governo comunista lidaria com isso no Estado, partindo
do pressuposto de que o que houve aqui neste sentido ficou muito dependente do Minha
Casa, Minha Vida – que está praticamente paralisado para moradia popular? E um outro
aspecto: como o Estado lida com as ocupações que eventualmente ocorrem. Talvez aqui o
símbolo maior disso seja o Massacre do Pinheirinho. Como você, se eleito governador,
lidaria com essa questão, tendo em vista que quem manda desapropriar é o Judiciário? Ou
seja, teria aí um certo conflito entre poderes…
Gabriel Colombo: Conflito com Poder do Estado burguês é o que a gente mais quer, e
estando no governo para fazer isso, nos dá força. Tenho brincado que eu seria como o
[Eduardo] Suplicy (PT), e acho que todo governador de esquerda tem que assumir esse
compromisso; quando ele era vereador em São Paulo, Haddad era prefeito, e em uma área
da prefeitura o Alckmin autorizou que a polícia fizesse uma reintegração de posse. O
Suplicy foi lá e se deitou no chão, teve que sair carregado pela polícia. Isso é um peso
político que se faz, e demonstra que mesmo estando cumprindo cargos e papéis dentro do
Estado, nossa preocupação é com destruir este Estado burguês, não mantê-lo.
Os despejos são operações de guerra. O Pinheirinho foi um dos mais brutais, mais violentos
e maiores em termos de população na América Latina. Eu acompanhei, estive dentro de um
despejo aqui em Piracicaba, em maio de 2020, nma escala muito menor: ali devia ter 100-
150 pessoas. E já foi uma operação de guerra: [Batalhão de] Choque, BAEP (Batalhão de
Ações Especiais de Polícia) – que foi criado inclusive depois do Massacre do Pinheirinho, e
é especializado em reintegrações de posse, repressão de greves e manifestações e
operações em favelas, ou seja, escancara o papel da Polícia Militar. Nesta operação houve
apoio do helicóptero Águia, Tropa de Choque, cachorros, os policiais com todos os
equipamentos possíveis; escudos, aquela roupa de Robocop, etc. E usaram, dentro dessa
ocupação, aquela tática do Caldeirão de Hamburgo, tática que ficou conhecida, em que
fecham todos os lados, não dando alternativa para quem está no meio. E ali havia crianças,
idosos, duas ou três mulheres mais velhas desmaiaram. Isso tudo pela manhã. É
inadmissível, e ter figuras públicas nestes despejos é fundamental para ao menos reduzir e
constranger – não quer dizer que vai acabar com essa violência, mas vai constranger.
Não é muito claro, na cabeça do senso comum, mas quem está na ocupação são
trabalhadores e trabalhadoras. Porque se o cara tem dois filhos e recebe 3 mil reais, o
salário já não aguenta pagar aluguel, comprar comida e pagar tudo. E muitas vezes ele vai
para a ocupação. Quem está lá, na ocupação, é quem aceitou por um momento viver
debaixo de um barraco, em geral com a família, porque não tem outra condição. O Estado
não pode chegar lá e falar: “não, aqui você não pode ficar”. E se chegar pra falar isso, em
casos por exemplo das chuvas, de terrenos irregulares, muito íngremes, próximos aos rios,
o Estado tem que chegar e garantir moradia em outra área, sem risco. Mas despejar
violentamente e sem dar alternativa? É um absurdo. É um absurdo despejar violentamente
e é absurdo despejar sem dar alternativa. Não pode acontecer.
Qualquer pessoa de esquerda, ocupando um cargo público ou não, tem que estar do lado
de quem está ocupando. Não tem nem o que pensar. É um direito fundamental, que é o
direito à moradia, que nós temos que defender. E desenvolver inclusive mais o trabalho das
ocupações. Então essa questão: como enfrentar, estando no cargo? Vamos enfrentar, pô,
não tem problema nenhum. Ali está um setor muito importante dos trabalhadores.
E, ao mesmo tempo, a frase que já é conhecida: tanta gente sem casa, tanta casa sem
gente. Assim como falamos na agricultura, a produção de moradias atende mais à produção
de valor de troca do que à produção do que seria seu objetivo social, ou seja, ser um teto
para alguém. Há no centro de São Paulo, há aqui em Piracicaba, muitos vazios urbanos.
Áreas ou prédios que estão esperando para que se especule; estão esperando que valorize
para fazer um loteamento, ou mesmo fazer um prédio, e nesse ínterim esses proprietários
nem pagam IPTU, ficam acumulando dívidas. É necessário enfrentar isso, fazer, a partir do
governo do Estado, uma exigência de que todas as prefeituras implementem o IPTU
progressivo, e que realizem a desapropriação das áreas ociosas. Porque se há dívida no
IPTU, muitas vezes não é preciso nem pagar para desapropriar, só assume. É exigir e
confiscar, e destinar para habitação.
Mas há um outro problema, que é a lógica de produção de habitação tendo como fim o lucro
e a valorização da renda da terra. Que passa por um circuito de atender os interesses das
empreiteiras e da construção civil enquanto indústria. Tem que desvincular a moradia deste
circuito, criar uma lógica de controle de preço dos aluguéis, porque o que permite também
que a especulação imobiliária avance é que uma determinada área, valorizada porque
passou a ter um Metrô, um equipamento público, um parque, o cara, numa situação de
precariedade e instabilidade de emprego, pense a vender essa casa, que passou a valer
mais, e vai mais para a periferia. Então sem mudar a lógica de especulação imobiliária é
impossível enfrentar o problema da moradia..
Revista Opera: Entrando um pouco no tema da segurança pública. Nós temos no Estado,
por um lado, uma Polícia Militar que historicamente é reconhecida pela sua truculência –
com a participação em uma série de chacinas e massacres, desde o Carandiru, passando
pelos Crimes de Maio, até as chacinas da Grande São Paulo em 2015 – e que, apesar da
queda recente da letalidade por conta das câmeras, ainda mata muito, e no geral é vista
com muita desconfiança pelas classes populares, especialmente pela juventude. Por outro
lado, temos, especialmente nos últimos anos, um número crescente de crimes como
roubos, furtos e homicídios, especialmente na Região Metropolitana do Estado. Qual é seu
programa para a questão da segurança pública, tendo em vista essas duas coisas? E uma
outra questão: há uma discussão sobre o quanto o governador tem de controle sobre a
tropa da PM, com muitos argumentando que não há controle nenhum, que a PM funciona
quase que de forma autônoma. O que na sua visão deveria ser feito em relação à redução
da violência policial? E como você planejaria impor eventuais mudanças, considerando o
poder que essa corporação tem?
Gabriel Colombo: Bom, esse é um dos temas que mais nos tira voto, digamos assim
[risos]. Mas nós temos que começar a pavimentar esse debate novamente. Acho que foi
outra coisa que ficou naturalizada para a esquerda; a esquerda que defendeu e
implementou as UPPs, por exemplo. Não pautam o problema da violência policial. No
Estado da Bahia, com Rui Costa (PT), é onde há uma das maiores taxas de violência
policial, um governador que, na Chacina do Cabula, que teve doze mortos, falou que o
policial é igual um artilheiro na linha do gol, ou seja, matar pro cara é como fazer um gol.
Afirmações absurdas, e no Estado de São Paulo nem se fala – o Dória, no “bolsodória”,
falou que bandido não vai pra cadeia, vai pro cemitério; coisas absurdas.
Então acho que temos de retomar esse debate sobre a Polícia Militar. E aí o que
defendemos é, de fato, o fim da Polícia Militar. Dá para fazer isso numa gestão? Não dá. É
tarefa de um processo revolucionário, sem dúvida. Mas dá para irmos desmilitarizando a
segurança pública. Porque tudo em termos de segurança pública nesse período neoliberal
foi respondido com militarização. Inclusive sem ter qualquer tipo de preocupação de
entender quais tipos de violência ocorrem na sociedade e como nós enfrentamos cada uma.
Se perguntarmos, por exemplo, qual é o papel da Polícia Militar no combate à violência
contra a população LGBT, sobretudo com as pessoas trans, é de se imaginar que essas
pessoas não vão sentir muita segurança do lado da Polícia Militar. Qual o papel da Polícia
Militar no enfrentamento ao racismo? O papel é na promoção do racismo, porque a
letalidade policial está onde? Na juventude negra e periférica. Até no que ela promove, na
política de encarceramento em massa, o principal grupo encarcerado, privado de liberdade
no País, é a juventude negra.
Então não dá para pensar como resposta, em termos de segurança pública, em segurança
da vida, na militarização. A militarização é uma resposta para a defesa da propriedade
privada, para a defesa das classes dominantes. Não é uma resposta para a segurança da
vida e da maioria da população. Basta pensarmos: a Polícia Militar está mais equipada,
mais treinada, tem mais armas. A população está se sentindo mais segura? Não sente.
Inclusive temos um aumento dos assaltos, dos roubos, que apontam para outro elemento:
que uma das formas principais de enfrentamento à violência e garantia à segurança pública
é o enfrentamento à desigualdade social. Os pequenos furtos e roubos seriam, grande parte
deles, resolvidos aí. E mesmo na lógica de quem não está preocupado em resolver a
desigualdade social, quando vai enfrentar o roubo de celular, por exemplo, faz a lógica mais
burra que existe: coloca a polícia na rua, o que não resolve nada. Tenho sempre usado o
exemplo do celular; quando tive o meu roubado em São Paulo, falaram: “se formos na rua
Santa Efigênia amanhã é provável que a gente compre seu celular de volta, os caras podem
não ter desmontado ainda”. Porque há um circuito, que é conhecido: o celular vai ser
revendido, ou desmontado, para as peças serem reutilizadas no mercado paralelo. Então
tem que enfrentar o circuito. Primeiro, não tem que existir a figura da pessoa que precisa
roubar o celular – seja para consumir drogas, seja por necessidades econômicas, de ter
acesso ao básico, que sabemos que está ocorrendo muito, pelos preços, pela inflação dos
alimentos. Isso não vai ser enfrentado pela lógica da militarização.
O poder da Polícia Militar acho que é evidente até no debate. Todos os pré-candidatos ao
governo fazem questão de falar do valor da Polícia Militar, o Haddad fala em plano de
carreira vinculado a metas – me pergunto que meta é essa; vai ser quantos mata? Quantos
encarcera? Ele fala de resolução de crime; mas que crime? Não esclarece, o que me deixa
muito preocupado, para um partido que já apoiou as UPPs e que tem Rui Costa, o que isso
pode significar aqui no Estado de São Paulo. Então, de fato, é algo que tem peso, que tem
força, é um grande contingente de 80 mil policiais atualmente. Mas acho que há de ser feito
esse trabalho da desmilitarização.
Agora, o outro lado, em termos de governo: é óbvio que vai ter reações. Nós vimos isso no
Ceará, em que os policiais se insurgiram, houve aquele episódio com o Cid Gomes, e a
possibilidade disso acontecer é real. Mas é isso: todos os governos fazem sempre o que?
Injetam recursos na Polícia, pensam na militarização como resposta. É preciso ir mudando
essa dinâmica: não investir mais, não abrir mais concurso para polícia. Vamos abrir para
professor, que está desde 2013 sem concurso no Estado de São Paulo. Ir criando lógicas
de enfraquecimento dessa dinâmica [de militarização]. Fazer um debate público, a
mobilização em defesa das lutas contra o racismo, acabar com a política de
encarceramento em massa. 80% da população carcerária do Estado de São Paulo é presa
por porte de drogas – alguns enquadrados como tráfico, outros não – e por furto. Não são
atentados contra a vida. Essas pessoas não têm que estar presas. Então é necessário fazer
um debate para mudar essa legislação, e fazer uma política de desencarceramento:
mutirões jurídicos que vão permitir que as pessoas saiam da prisão. Não dá para naturalizar
termos 200 mil pessoas presas no Estado de São Paulo.
E há a questão das condições carcerárias. Fui o único pré-candidato que esteve numa
manifestação que houve em fevereiro, por melhores condições carcerárias, em várias
cidades do Estado. Fui no ato aqui de Hortolândia, e são questões que foram anunciadas
na mídia, relatórios da Defensoria Pública, organizações de direitos humanos: na pandemia,
nos presídios houve pena de fome, foram proibidas as visitas, racionamento de água – não
por faltar água, mas como pena, para constranger e controlar a população carcerária. Essa
questão das visitas, me emocionei ao ver lá em Hortolândia várias crianças da idade do
meu filho que falavam: “estou há dois anos sem ver meu pai”. E a questão da alimentação,
além da pena de fome – que consistia em deixar a população carcerária de 12 a 20 horas
sem comer, segundo o levantamento que as organizações tinham – é muita comida
estragada; 20% dos presídios que foram visitados pela Defensoria Pública não serviam
proteína alguma. Pô, o cara está encarcerado, não é para ele ser tratado em condições
subumanas. Mesmo dentro da lógica punitivista, a ideia é que o cerceamento da liberdade
criaria as condições de ressocialização. As prisões no Brasil hoje não cumprem esse papel.
E acho que, neste tema, é necessário falar do equívoco que é chamar Alckmin (PSB) para
ser chamado de companheiro. Porque ele foi um dos grandes responsáveis em São Paulo
pela política do encarceramento em massa, pelo aumento da violência policial, do aumento
do número de homicídios praticados por policiais. O Mário Covas (PSDB), quando assume
em 1995 – o Alckmin era o vice –, eles assumiam com o legado do Massacre do Carandiru.
Então tinham que impor uma série de medidas de controle das tropas. Recomendo
acompanharem o Ponte Jornalismo, que faz uma descrição de como o Alckmin, a partir de
quando ele assume, em 2001, retira vários desses mecanismos. É a primeira vez em que
São Paulo chega ao número de 900 pessoas mortas, nos primeiros três anos após essas
medidas tomadas pelo Alckmin. Ele foi responsável por isso, além do Massacre do
Pinheirinho, por ter na sua conta diversas chacinas, e por ser o criador do BAEP. Então é
alguém que fez, e fez muito, para matar os nossos, para torturar os nossos, para prender os
nossos; não dá para ser chamado de companheiro e ser colocado de democrata.
Revista Opera: Por fim, pegando as demandas e os temas mais importantes para a
população hoje, a questão da educação. Historicamente no Estado a educação enfrenta,
digamos, um esvaziamento, e a coisa tem piorado muito na última década, e especialmente
nos últimos 4-8 anos o ataque à escola pública foi muito forte. E há inclusive alguns
estudiosos que, olhando para o que foi feito em termos de privatização no resto do Estado,
olhando às Parcerias Público-Privadas e a questão das Organizações Sociais, acham que o
próximo alvo, o próximo foco de privatização, vai ser a educação. Como você vê o
sucateamento da educação estadual, e o que você proporia, quebrando com essa lógica de
privatização?
Gabriel Colombo: Dentro da lógica das privatizações, sucatear é sempre o passo que
antecede. E no caso dos serviços públicos em que nós temos uma classe trabalhadora
muito pobre, muito explorada, nem todos podem pagar pela educação privada – então você
mantém o serviço público de má qualidade para forçar essa demanda, de colocar o filho
numa escola particular. Assim como é com a questão do plano de saúde. Isso fecha muito
bem nessa lógica de não privatizar totalmente, mas criar diversas formas de privatização,
sucateando sempre o público para que o sonho, o desejo, a alternativa que o conjunto da
sociedade vai buscar é o privado. E quem ficar na pública é só quem não conseguir pagar.
O meu filho está na escola pública – eu não teria condição de pagar, mas é também por
uma questão ideológica, de disputar, entender e lutar pela educação pública.
Diversas formas de privatização foram sendo impostas. Hoje o material escolar, com o
Plano Nacional do Livro Didático, que é o que fundamenta a distribuição, a intermediação
com as prefeituras e também nos Estados, é feito na base da Parceria Público-Privada.
Quem está fornecendo material, estes grandes conglomerados da educação, todos eles têm
editora. E o conteúdo tem se tornado cada vez mais apostilado, cada vez mais mastigado,
ao ponto da figura do professor se tornar inclusive complementar: o que dita o conteúdo e a
aula é a apostila, não o professor, com base em um apoio de material didático. Isso leva a
um ponto – vale abrir um parêntesis – que é que cada vez mais se pode precarizar a
formação desses professores, porque a lógica é que nem querem um professor muito
pensante, crítico, criativo. Primeiro, ele não deve ter tempo pra isso: querem que ele vá lá e
dê o máximo de aula que puder, para explorarem ele, pagarem o menos que puderem.
Segundo, querem que ele siga o conteúdo fechadinho: não querem correr o risco de algum
professor formando uns revolucionários por aí nas escolas, sobretudo nas periferias do
Brasil.
Revista Opera: Chegou-se a um nível em que muitas vezes o cara se forma para ser
professor, mas a precarização é tão forte que ele acaba indo atuar em outra área, a ponto
de agora o Estado estar querendo permitir que professores de outras áreas dêem aulas de
Geografia e História – além do governador Rodrigo Garcia (PSDB) declarando, frente ao
fato de 20% das aulas não terem ocorrido por falta de professores, que “temos que ver pelo
lado bom, que são as 80% de aulas que aconteceram”.
Gabriel Colombo: É um absurdo, e se torna aceitável falar absurdos. E de fato, agora entra
também a lógica do “notório saber” no Ensino Médio, que está começando a ser
implementada em alguns lugares. Que antes se pensava que poderia ser algo que
caminharia junto do Escola Sem Partido, ou seja, abrir espaço para a extrema-direita dentro
da sala de aula, mas que na prática, hoje, tem cumprido um papel de cobrir um déficit de
contratações.
Agora, com o Projeto de Lei Complementar 3 de 2022 do Dória, há outros elementos que
mudam a situação do professor da categoria O. A questão da aula dia, por exemplo: você
dá cinco aulas em um dia, mas se falta em uma delas, a primeira ou a última, porque
morreu alguém da sua família ou o que quer que seja, o professor perde todo o dia de
pagamento. Se ele não chega a tempo da primeira aula, ele pode até dar as outras quatro,
mas perde o dia de pagamento. E outro elemento na saúde: restringe a um só dia de
afastamento por saúde e uma hora para consulta médica. Quem consegue fazer consulta
médica em uma hora? Mesmo se o postinho for do lado da sua casa. Isso levou agora,
nesta quarta onda de Covid, a que muitos professores fossem trabalhar contaminados, com
Covid. Porque não poderiam perder o pagamento de cinco dias ou de quatro dias, se
tivessem ainda o direito de afastamento de um dia. Isso foi denunciado, mas não ganha
espaço na imprensa. É um absurdo um negócio desses!
Isso na educação básica; então é necessária uma reabertura dos concursos públicos,
assumir publicamente a produção de materiais didáticos – isso tem de ser feito junto das
universidades; tem que ser parte do papel de formação das escolas de Letras, Educação,
produzirem os materiais didáticos. Por outro lado, comentei sobre o papel da alimentação
escolar no combate à fome, a importância da contratação da merendeira. A merendeira é
inclusive uma figura de lembrança carinhosa da nossa infância. Até isso perde o papel,
porque agora é uma terceirizada. Provavelmente numa mesma semana não vai ser nem a
mesma merendeira, no ano certamente não vai ser a mesma. Até esse vínculo afetivo foi
destruído. E é necessário atuar pela revogação da reforma do Ensino Médio. Porque além
das questões de conteúdo, de esvaziamento da parte de humanas – Geografia, Sociais,
etc., – tem o elemento de impôr na escola, e muito, uma lógica de ideologia
empreendedora, a ideia do “projeto de vida”, que acabam por responsabilizar a juventude
pela situação de desemprego e de baixa condição de vida em que se encontra. Esse é um
projeto criminoso, é um absurdo, inaceitável. Com o Ensino Médio organizado com essa
reforma, se criam os “itinerários interativos”; você vai ter o itinerário em Ciências, o itinerário
de Letras, etc., e junto com esses há os “itinerários profissionalizantes”. E o aluno pode
substituir, por exemplo, o itinerário de ciências por um itinerário profissionalizante – o
estudante não vai ter acesso ao conteúdo básico, que é inclusive requerido no ENEM, para
substituir por alguma coisa para ele supostamente se formar profissionalmente. Mas nesse
itinerário profissionalizante há desde cursos básicos de mídias sociais, curso básico de
Excel, até coisas de estética; cabeleireiro, pedicure, etc. Mas tem coisas absurdas, alguns
camaradas estavam denunciando itinerários profissionalizantes para o estudante fazer bolo
de pote. Ou seja, se vai naturalizando a divisão social do trabalho, é dizer “você não precisa
nem estudar, meu amigo, universidade não é para você. Você precisa é se profissionalizar
logo nisso aqui para contribuir com a renda da sua família”.
Gabriel Colombo: Exatamente, a própria escola afirmando isso. Isso é cruel. A escola
afirmando isso, em um momento de desemprego altíssimo, os salários desvalorizados. Para
a família do jovem, ou para ele mesmo, ele pensa “poxa, é a maneira de eu ganhar meu
dinheirinho, minimamente ir num rolê, ajudar minha mãe a comprar um gás, comprar a
cesta que ela não está conseguindo”. É cruel porque no imediato tem tido adesão da própria
juventude. Porque o conteúdo é sucateado, não têm o mesmo professor o ano todo, em
algumas matérias até falta o professor, a apostila lida com ele como se ele fosse um burro,
o conteúdo rebaixado, não atrai ninguém – esses projetos acabam tendo adesão do
estudante. Parece que ninguém liga para a escola: o estudante vai, a merenda é ruim, os
prédios estão depredados, a bola que ele vai jogar futebol está toda surrupiada. Se
ninguém liga, para quê o estudante vai ligar? Se ele sabe que vai se formar e a
possibilidade de ter um emprego por ter se formado é baixíssima? Que o que importa é só
mais ou menos saber ler e escrever e, agora, saber mexer em redes sociais? Então é cruel.
A reforma do Ensino Médio foi implementada pelo Temer, o ministro da Educação era o
Rossieli Soares, que é o atual secretário da Educação – era do Dória, agora se mantém
com o Rodrigo Garcia. E a reforma do Ensino Médio veio pouco depois da tentativa de
reorganização do Alckmin aqui no Estado. Não dá para falar em educação no Estado de
São Paulo sem falar no papel importantíssimo da luta dos secundaristas no final de 2015,
que em uma semana explodiu em 200 ocupações de escolas em São Paulo. Foi algo que
mobilizou o conjunto da sociedade, fez com que o Alckmin revisse a política, demitisse o
secretário estadual de educação – mas também levou isso para o plano nacional. Eles
pensaram lá em cima, digamos assim: “precisamos fazer alguma coisa, porque a juventude
vem forte”. A reforma do Ensino Médio tem essa base; em 2016, quando foi aprovada,
também houve ocupações de escolas, mas não com a mesma força e capacidade – já tinha
vindo o golpe, já tinha outra conjuntura que jogou para baixo o movimento e não permitiu
uma vitória ali.
Esta é a lógica dessas reformas e do Programa Ensino Integral (PEI). Há até uma polêmica,
perguntam: “então vocês defendem o ensino integral?” Sim, nós defendemos, mas no
modelo do que foram os CIEPS do Brizola, no Rio, não esse PEI, que hoje é inclusive uma
promotora da invasão escolar. No Estado, mais da metade dos municípios têm só uma
escola estadual. Se a escola desses municípios adota o PEI, o estudante que trabalha em
algum período não têm alternativa: não vai conseguir trabalhar mais, ou vai ter de deixar a
escola e trabalhar. Então é necessário dar força à luta pela revogação da reforma do Ensino
Médio. E é bom lembrar que essa reforma foi uma pauta do “Todos pela Educação”, que é
um absurdo. Quando falaram do balcão de negócios dos pastores no Ministério da
Educação o que pensei é que ninguém fala que o Ministério da Educação é balcão de
negócios há muito tempo – inclusive com o Haddad – dos setores privados da educação.
Não só os conglomerados de faculdade, mas também o Todos pela Educação, Fundação
Lehmann, Instituto Ayrton Senna, Fundação do Bradesco, do Itaú. Foram estes os que
ditaram esses itinerários profissionalizantes, disseram: “meu amigo, o que a gente precisa é
só Português, Matemática, redes sociais, saber planilhar algumas coisas e saber atender
bem no telefone. É isso que precisamos para explorar essa juventude”. Em um mercado
precário, flexível. Um absurdo, um escândalo.
Agora, não é possível dar esse caráter para a universidade, para a educação pública
estadual, e mesmo pensar em uma universalização do acesso à creche integral, não é
possível pensar nada disso fora de um processo revolucionário. A nossa burguesia não tem
nenhum interesse em, digamos, aproveitar bem o material humano que há na nossa
sociedade. O vínculo dela é só garantir uma exploração e uma superexploração da força de
trabalho, e passam longe de uma perspectiva de reindustrialização e desenvolvimento do
Brasil enquanto um país soberano em que as necessidades da maioria da população sejam
atendidas. É muito fácil entender, por exemplo, que o vestibular é só um funil. Mas na
prática isso demanda um enfrentamento àqueles que impõem esse funil, que é a burguesia
brasileira. Então todas essas propostas não são nada se não tivermos uma perspectiva de
poder político, de tomada de poder pela classe trabalhadora e construção do poder popular
e da revolução brasileira.