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Ruas em movimento: As manifestações estudantis ano de 1968 no jornal

Diário de Natal.

Liliane Sonara de Sousa Gomes1


Marcílio Lima Falcão2

Resumo: O presente artigo objetiva analisar as representações das manifestações


estudantis durante o ano de 1968 no jornal natalense Diário de Natal. A chegada do
General Arthur da Costa e Silva a presidência da República em 1967, consolidou a
vitória do grupo linha dura no poder. Com o caminhar do regime militar, instituído
através do golpe civil-militar de 1964, os militares visavam o endurecimento do
regime, aumentando a repressão contra os opositores e contra os meios de
comunicação através da censura. O conturbado contexto de 1968, é palco de inúmeros
eventos políticos e sociais que abalaram as estruturas do regime militar. Entre esses
eventos, situa-se as manifestações estudantis que eclodiram pelo Brasil naquele ano,
tendo, a imprensa como um agente ativo na repercussão dessas movimentações
sociais.

Palavras-chave: Estudantes. Ditadura Militar. Imprensa. Repressão.

A Ditadura Militar brasileira compõem mais um capítulo do autoritarismo na


história contemporânea do Brasil. A chegada do General Arthur da Costa e Silva na
presidência da República consolida a vitória do grupo linha dura ao poder, conhecidos
como o grupo mais conservador e autoritário entre os militares (FICO, 2002, p. 255).
No conturbado contexto político brasileiro pós-golpe civil-militar de 1964,
1968 é denominado como “o ano que não terminou” (VENTURA, 1988, p. 7).
Naquele ano, com a edição do Ato Institucional nº 5, o Brasil caminhava para uma
escalada autoritária que colocou muitos dos atores sociais que haviam apoiado o
golpe contra João Goulart em uma situação difícil.
Os jornais, atuando como importantes personagens sociais e políticos,
expressavam os acontecimentos cotidianos. No Rio Grande do Norte, especificamente
em Natal, o jornal Diário de Natal, que pertencia a rede Diários Associados, tendo
por proprietário o jornalista Assis Chateaubriand, foi um dos principais veículos de
comunicação da cidade Natal naquele período, se constituindo como um importante
objeto e fonte para a análise do período autoritário.
De acordo com a historiadora Tânia Regina de Luca (2005), até meados da
década de 1970 eram poucos os trabalhos que utilizavam jornais como fonte histórica

1
Licenciada em História pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
2
Professor e doutor em História Social na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
(LUCA, 2005, p. 111). De acordo com Luca, por questões, em partes, ligadas a
tradição, acreditava-se que as fontes eram elementos essenciais para se chegar a
verdade buscada pelo pesquisador, e nesse caso os jornais eram julgados como pouco
efetivos para se estudar passado (LUCA, 2005, p. 112).
Somente no final do século XX, novas abordagens sobre o uso de fontes,
metodologias e objetos de pesquisas passaram a ser problematizadas e o trabalho
historiográfico foi visto sob novos olhares. Desse modo, de acordo com a discussão
historiadora Maria Helena Capelato (2015) sobre essas novas abordagens acerca do
uso dos impressos como fonte histórica, ela assevera que
a imprensa oferece amplas possibilidades para o estudo da história
porque nela fica registrada a vida cotidiana de uma sociedade em
seus múltiplos aspectos, o que permite ao historiador compreender
como viveram os indivíduos de outras épocas, não só os “ilustres”,
mas também os sujeitos anônimos. (CAPELATO, 2015, p. 115).

Portanto, analisando o uso dos periódicos como fonte histórica, o Diário de


Natal se torna uma fonte histórica para estudarmos o período autoritário da ditadura
militar em seus exemplares.
Assim, em suas previsões para o ano de 1968, o Diário de Natal apontava um
clima de instabilidade e desconfianças, preocupando ao governo militar, cuja
preocupação maior, era divulgar as ações do Governo do presidente Costa e Silva
(ANO... 1968, p.3). Foi nesse clima frio e tenso que o jornal, posicionando-se como
representante da voz popular, expressava com desconfiança os sinais de esperança
apresentados pelo governo (ANO... 1968, p.3).
Os desafios políticos para os militares apareciam na inoperância da política
econômica em não solucionar os reais problemas das camadas mais pobres da
população. O desafio maior, no plano econômico, estava no combate aos altos índices
inflacionários, tendo, o combate da inflação como plano prioritário na economia para
aquele ano (GOVERNO... 1968, p.5).
Tal desconfiança por parte da população se dava, principalmente, pelo alto
custo de vida que assolava a vida cotidiana, devido às crescentes taxas da inflação,
que se caracterizava como o gerador da crise econômica brasileira (MACARINI,
2006, p. 2). Desse modo, a população mais pobre era quem mais sentia os efeitos da
ineficácia da política econômica adotada pelo regime.
Os militares tinham ciência que o aumento do custo de vida, ou qualquer
questão ligada a situação econômica, poderia vir a se tornar um problema a curto e
médio prazo, “já que a maior ou menor adesão política ao regime militar esteve
sempre ligada à percepção dos efeitos da política econômica sobre o cotidiano dos
negócios, do consumo e da sobrevivência” (NAPOLITANO, 2014, p. 151).
Questões ligadas as condições de sobrevivência não eram pautas de debate
somente da própria população, entidades e segmentos da sociedade que faziam
oposição ao regime também debatiam a questão, a exemplo da Igreja Católica, que
passou a realizar criticas acerca da realidade social que o país se encontrava, em
profundas desigualdades sociais e de uma política econômica que não era capaz de
sanar os reais problemas da população mais vulnerável. Os posicionamentos da Igreja
Católica acerca do âmbito político-social era resultado de mudanças que vinham
ocorrendo dentro da própria instituição desde o início daquela década
A partir da década de 1960, a Igreja inicia um profundo processo de
mudança. No âmbito externo, acontece o Concílio Vaticano II, que
buscou um direcionamento das ações eclesiásticas para uma maior
aproximação com camadas populares, a chamada “opção
preferencial pelos pobres”. Tais determinações vão ser retomadas
com grande ênfase na Conferência de Medellín (1968), que buscou
discutir a ação da Igreja católica na América Latina, frente aos
problemas relativos à justiça, à paz, à família, à demografia e à
pobreza desse Continente. (REIS, 2017, p. 42).

Para o filosófo Michel Löwy, as relações entre igreja e política pautavam-se


no “Cristianismo da libertação”. Segundo a explicação de Lowy (2016, p. 73), o
Cristianismo, ou a Teologia, da libertação “ [...] é a expressão de um vasto movimento
social que surgiu no começo da década de 1960, bem antes dos novos escritos
teológicos”. Tal movimento também ficou conhecida como “igreja dos pobres”
(LOWY, 2016, p. 74).
Desse modo, o Cristianismo da libertação tinha como por objetivo de
promover “a libertação das estruturas políticas, sociais e econômicas consideradas
injustas [...]” (KOPANYSHYN, Apud DELLA CAVA, 1985, p. 29). Portanto, o
movimento buscava o questionamento crítico da realidade vivida, para que os
oprimidos fossem agentes de sua própria libertação, que segundo Lowy, não seriam
apenas objetos de caridade (LOWY, 2016, p. 76).
Muitos líderes católicos se engajaram no debate sobre as condições de vida da
população mais pobre, e tornaram-se alvo de críticas dos militares, que teve por
resultado abalos na relação entre o clero e o governo federal, como demonstrado na
matéria veiculada em 4 de janeiro de 1968, que mostra a tentativa de diálogo entre a
Igreja Católica e o Governo militar. De acordo com a matéria, a intenção em
estabelecer um diálogo entre os setores, seria para tentar quebrar a apreensão entre
ambos setores, pois a situação já era considerada “grave e de consequências
imprevisíveis” caso não estabelecesse um equilíbrio (EMPENHADO... 1968, p.3)
Para o Governo militar, o impasse se encontrava no que diz respeito as
atividades realizadas pela Igreja no seio social e naquilo que o Governo julgava como
atividades subversivas as atividades realizada pela igreja (EMPENHADO... 1968,
p.3). O discurso da constante luta contra o comunismo era algo latente nas alas mais
conservadoras das Forças Armadas e da igreja Católica. A aproximação dos setores
progressistas do episcopado, representados principalmente pelos bispos Dom Helder
Câmara e José Tavóra, com as camadas mais pobres, era vista com desconfiança e foi
um dos motivos para os militares ampliam a repressão ao clero.
A circunstância se tornava alarmante na ótica militar, pois era, no mínimo,
surpreendente que as ideologias “subversivas” chegassem ao mais alto escalão de
uma instituição que tradicionalmente era defensora de valores comuns ao regime,
tornando-a uma aliada a luta anticomunista. Na ótica política, os militares temiam
pela rápida propagação das “novas ideias” anunciadas pela igreja, e principalmente
pela ampla adesão social, estudantil e política ao novo discurso propagado pelo clero
brasileiro (ATUAÇÃO... 1968, p.6). Dessa maneira, os desgastes na relação entre a
Igreja Católica e o governo militar iriam tomar proporções maiores ao decorrer dos
dias.
Para o Dom Nivaldo Monte, arcebispo da arquidiocese de Natal, sua posição
diante da realidade social é expressada na IX Assembleia de Bispos do Brasil, onde
ele afirma que “é fato consumado e aceito pelos bispos dos Brasil” que o país precisa
de “reformas corajosas de estruturas” (DOM... 1968, p. 3). Dom Nivaldo, em suas
palavras, denuncia as condições sociais vividas
“A maioria dos brasileiros passa fome. A estrutura capitalista está
esclerosada” - disse o arcebispo, procurando definir a situação atual
do país. Quanto aos métodos a serem usados, no sentido de imprimir
uma nova feição à pátria , os bispos “são inteiramente contrários a
violência, a não ser a violência moral. Se pudermos fazer pressão
moral, nós faremos”. (DOM... 1968, p. 3).

Entretanto, é preciso ressaltar, e fazer lembrar, que não existia uma


homogeneidade dentro clero brasileiro, segundo Reis “os bispos estavam agrupados
em mais ou menos três alas [...]” (REIS, 2017, p. 46). Essas alas eram divididas entre
progressistas, conservadores e moderados. Uma clara representação dessa divisão no
clero brasileiro, pode ser percebida pelo posicionamento de tom conservador, do Dom
Eugênio Sigaud:

“Veio dar ao presidente a afirmação de que a maioria dos bispos e


do clero brasileiro, apoia o governo, tanto no seu trabalho de
promoção, como na preservação dos princípios da vida democrática,
na colaboração harmônica entre a igreja e o Estado.” (DOM... 1968,
p.1)

Com a radicalização do regime “a Igreja Católica se converteu em uma


influente força de contestação política ao regime ditatorial e conflitou abertamente
com os governo militares em assuntos relacionados aos direitos humanos e promoção
da justiça social” (CANCIAN, 2016, p. 96). Com tudo, ao analisarmos a trajetória da
Igreja Católica e suas relações com o Estado, essa, “deve ser compreendida em termos
de complexidade” (CUBAS, 2014, p.13).
Com as escaladas autoritárias dos militares durante os primeiros anos do
regime, alguns adeptos do golpe tiveram a percepção , após sentirem a repressão do
governo, que a situação tomara outros rumos. Com a decretação dos primeiros Atos
Institucionais, com as cassações de mandatos, a prisão e perseguição de opositores,
como também a censura aos meios de comunicação e a imprensa, o caráter autoritário
do regime e as formas de resistência aos militares se fizeram notórios e presentes no
cotidiano das instituições democráticas a ponto de ocuparem um lugar para as
“grandes utopias libertárias” diante de um “violento estado policial” (NAPOLITANO,
2014, p. 91-92).
Foi com essa guinada repressiva que as alianças firmadas em 1964 se diluíram
com mais intensidade e, juntamente com a eclosão de manifestações estudantis contra
os arbítrios do regime, deixaram ainda mais evidente o caráter autoritário de um
governo que afirmava não ceder a pressões interpretadas como extremistas (COSTA...
1968, p. 1).

Estudantes nas ruas

Os estudantes são os grandes protagonistas do ano de 1968 em várias partes do


mundo. Foram os estudantes que proporcionaram importantes reivindicações que
promoveram mudanças significativas no tecido social e cultural do final do século XX
através dos protestos realizados pelas ruas de vários países. Como exemplo, o
movimento da Contracultura nos EUA e o Maio parisiense na França. O movimento
estudantil brasileiro, também teve seu protagonismo dentro do quadro nacional, como
afirma Valle:

Assim como nos demais países, o movimento estudantil se


destaca e as suas manifestações devem ser analisadas à luz do
contexto em que se desenrolam. Seus protestos coincidem com
as lutas internacionais, lembradas, aqui, na fala dos estudantes.
Revolução, transformação radical, corte, ruptura, no
comportamento, na música, na escola, nas relações pessoais.
(VALLE, 2017, p. 100).

Com o anseio por mudanças, os estudantes brasileiros eram ativos no debate


político em busca de transformar suas realidades em meio a uma violenta ditadura que
os perseguiam e violentavam. “Os estudantes e o movimento estudantil eram muito
visados pelos órgãos de informação do regime” (FICO, 2001, p. 187), pois eram
vistos comumente como agentes subversivos a serviço do comunismo. Mesmo diante
das perseguições do regime aos estudantes, o movimento estudantil brasileiro
promoveu grandes realizações que foram capazes de abalar o regime autoritário
vigente.
Os primeiros atos do movimento estudantil ocorridos no ano de 1968, visava a
ampliação do acesso a universidade e a ampliação de direitos e verbas direcionadas
para a educação, afim de garantir melhorias no sistema de ensino brasileiro. Mas, na
grande maioria de suas mobilizações, eram constantemente mirados pelas forças
policiais que realizavam invasões aos campus universitários e locais de reuniões,
como aconteceu no 30º Congresso da UNE em um sitio de Ibiuna no estado de São
Paulo em outubro de 1968, onde ocorreu diversas prisões de líderes estudantis e
violência policial contra os estudantes.
Um dos mais trágicos ocorridos na história das manifestações estudantis,
talvez o mais conhecido do período, foi a morte do jovem estudante Edson Luís,
morto em 28 de março por policiais que praticaram uma ação contra estudantes que
realizavam uma manifestação próximo no restaurante Calabouço no centro da
Guanabara. Após a triste e violenta morte do estudante, uma eclosão de protestos
contra as arbitrariedades praticadas pela polícia se espalhou por todo o Brasil. No
Diário de Natal, é apresentado as razões do conflito que resultou na morte do jovem
estudante:
Sabe-se, agora, que a razão do conflito, em que faleceu o
estudante Hilton Luíz [o jornal veiculou o nome errado do
estudante], foi a organização de uma passeata de protesto contra
a paralização das obras dos restaurantes. Contudo, a polícia,
segundo o relato das ocorrências feitas na Assembléia
Legislativa, pelo gen. Niemyer, representante legal do sr. Dário
Coelho, Secretário de Segurança, a passeata seria um protesto
contra a guerra do Vietnam. Disse o general que tentou negociar
com os rapazes a realização do protesto dentro, exclusivamente,
do páteo do restaurante que fica nas proximidades do aeroporto
Santos Dumont, mas não foi atendido. Os estudantes saíram e
logo de inicio apedrejaram a fachada da Embaixada dos Estados
Unidos, que é tôda de vidro “rayban”. Dai instalou-se o conflito,
quando, segundo o gen Niemyer, um desconhecido fêz o
primeiro disparo. Nisto vários tiros foram disparados ferindo
inumeros policiais. (MANIFESTAÇÃO... 1968, p.1).

O Diário de Natal, noticia um discurso que reforça a versão da polícia,


culpando os estudantes pelo ocorrido, onde a polícia teria apenas agido em resposta a
ação dos estudantes. Na narrativa apresentada pelo jornal, os estudantes aparecem
como os causadores da desordem, enquanto os policiais seriam as vitimas no episódio
violento envolvendo os estudantes. Na cidade de Natal, segundo o jornal, os
estudantes natalensses protestaram pacificamente a morte do jovem Edson Luís
(ESTUDANTES... 1968, p.6).
A morte do jovem Edson Luís se caracteriza como “o primeiro acontecimento
a sensibilizar a população para a luta estudantil” (VALLE, 2017, p. 102), além que “a
história do menino que veio do Pará para estudar no Rio de Janeiro mexeu até com
empedernidos conservadores e anticomunistas” (NAPOLITANO, 2014, p. 89). A
comoção em torno da morte do jovem estudante, fica ainda mais evidente em seu
sepultamento que reuniu cerca de 40 mil pessoas. Os discursos pronunciados em torno
de sua morte são de preocupação e lamentação, como nas palavras do reitor da UFRN,
o sr. Onofre Lopes da Silva:

Só temos que lamentar. É uma notícia realmente grave.


Profundamente grave. Qualquer que tenha sido o motivo, qualquer
que tenha sido a razão para a manifestação estudantil, a polícia não
pode “espingardear” estudantes. (REITOR... 1968, p. 3).

Para os militares, o imaginário do jovem estudante, alternava “como passíveis


de serem manobrados, em outros eram vistos como capazes de elaborar estratagemas
sofisticados, com o fim de engrossar as fileiras das organizações clandestinas.”
(FICO, 2001, p. 189). Desse modo, se em determinados momentos, os jovens eram
vulneráveis a influência de ideologias subversivas, em outros, eram hábeis em
elaborar e liderar planos ardilosos para promoção do comunismo e da desordem.
Sendo assim, as mobilizações estudantis eram vistas como atividades que
promoviam ideologias comunistas e perturbação a ordem, na visão dos militares. Isso
se comprova nas palavras do ministro da marinha, ao comentar sobre uma série de
manifestações realizadas no dia 1 de abril em protesto pela morte de Edson Luís, ao
afirmar em nota oficial que o movimento estudantil “usa técnica nitidamente
comunista de lançar os estudantes contra as autoridades e professore [..]”
(MINISTRO... 1968, p.1)
Entretanto, o acirramento do conflito entre estudantes e o regime seria a partir
de junho daquele ano. O evento de maior visibilidade realizado pelos estudantes
naquele mês foi a conhecida passeata dos Cem mil. Cerca de 100 mil estudantes
saíram pelas ruas do Rio de Janeiro contando com a presença de artistas, intelectuais,
mães de estudantes e populares de todas as categoriais profissionais (CEM... 1968,
p.1). O Diário de Natal narrou como ocorreu a passeata ressaltando as falas do padre
Eduardo e do líder estudantil Vladimir Palmeira:

O encaminhamento do movimento estudantil será definido domingo


próximo, durante a assembleia geral da UNE em lugar secreto. O
clero solidarizou-se com as reivindicações estudantis e dos artistas,
segundo declarou o padre Eduardo, da paroquia de Copacabana,
presente à passeata. O reverendo frisou “estaremos onde o povo
estiver, lutando por suas causas”. Falando rapidamente à imprensa
sobre o número menor de manifestantes, ontem, Vladimir Palmeira,
declarou serem os participantes de agora “uma classe definida nos
seus propósitos políticos, participando ativamente, ontem, hoje e
amanhã, haja ou não repressão”. E acrescentou: “Daqui, partiremos
para o comando do processo de união de todos os estudantes do
Brasil, visando a mudança da política educacional do Governo e a
libertação dos presos” (CEM... 1968, p. 1).

A passeata dos Cem mil pode ser compreendida como uma expressão maior
adesão popular a favor dos estudantes, juntamente com o apoio de representantes do
clero, artistas e intelectuais, que se constituíam como agentes influentes da população,
expondo assim, a oposição a violência da ditadura contra os estudantes.
Entretanto, o regime intensifica suas ações repressivas contra o movimento
estudantil, como a violenta invasão policial na Universidade de Brasília em 29 de
julho de 1968 que foi amplamente noticiada pelos jornais do país. Segundo a matéria
vinculada pelo jornal Diário de Natal, a invasão na universidade foi motivada para
cumprir o mandado de prisão do líder estudantil Honestino Guimarães e mais quatro
estudantes universitários, contando com a presença de agentes do Departamento de
Ordem Política e Social (Dops) (INVASÃO... 1968, p. 6).
Segundo a matéria do Diário de Natal, os policiais usaram bala, bomba e gás
lacrimogênio para investir contra os estudantes, que logo reagiram a ação com
pedradas e pedaços de pau (INVASÃO... 1968, p. 6). Vários estudantes foram feridos
pela ofensiva policial, assim como professores e funcionários da universidade, sendo
alguns, com ferimentos graves, como o estudante de engenharia Waldemir Alves
Silva Filho, que foi agredido e ferido violentamente com um tiro no supercílio
esquerdo (INVASÃO... 1968, p. 6).
Ainda de acordo o jornal, segundo um relatório encaminhado por
parlamentares do MDB, algumas ocorrências que ocorreram durante a invasão
policial, demonstraram que os danos causados pela violência policial não foram
apenas a integridade física dos estudantes, mas também materiais:

O relatório manifesto repulsa pela ação policial que destruiu,


inclusive, um espectrofotometro, no valor aproximado de 4 mil e
seiscentos dólares e outros aparelhos de pesquisa, além de causar
ferimentos em estudantes, três desses, em estado grave, socorridos
no Hospital Distrital (INVASÃO.. 1968, p. 6).

Entretanto, a partir daquela conjuntura, o incomodo dos militares estava,


principalmente, na reação que estes acontecimentos vinham causando na classe
política e na sociedade em geral, pois “a ameaça de encontro das duas frentes de
protesto, a político-parlamentar e a massiva, era tudo que o governo não desejava.”
(NAPOLITANO, 2014, p. 88). Desse modo, os militares temiam a uma ampla
oposição movida pelos estudantes e os parlamentares.
Segundo Bryan Pitts, acerca da percepção da violência policial contra os
estudantes entre a classe política e social, anunciava “um sinal de que o regime estava
fora de controle” (PITTS, 2014, p. 42). Se o governo mostrava-se favorável a uma
violência contra jovens estudantes, que eram vistos como os futuro da nação, não
restava duvidas sobre o evidente caráter autoritário do regime que caminhava para o
fortalecimento de um Estado ainda mais violento e opressor amparado pela legalidade
jurídica.
Desse modo, a defesa da classe política aos estudantes se constituía como um
problema para os militares. Segundo Pittes (2014), a defesa dos estudantes pela classe
política, tanto por membros da oposição quanto por membros aliados ao regime, se
dava porque “num país no qual a educação universitária era ainda um privilégio de
poucos, os estudantes protestando nas ruas eram “nossos filhos, nossos irmãos, nossos
parentes” (PITTES, 2014, p. 43). Dessa forma, a classe estudantil e a classe política
estava ligadas por laços familiares e também representavam um reflexo de projeções
idealistas da classe política daquele período. Ainda nas suas considerações, Pittes
afirma que
A repressão aos estudantes gerou tamanha indignação porque os
deputados poderiam se identificar com eles de um modo
profundamente pessoal. Idealistas por natureza, os estudantes
eram “generosos, impulsivos, nobres e patrióticos”, e os mais
velhos lhes deviam “um pouco de compreensão”. Eles eram a
“parcela ... mais esclarecida da população brasileira ... que
possui um preparo cultural e humanístico muito superior ao da
média” (PITTES, 2014, p. 45).

Para os militares, a imprensa era a principal responsável por trazer


conhecimento acerca da violência praticada pelas forças policiais contra os
estudantes, o que teria influenciado a comoção e adesão social a favor dos estudantes
(VALLE, 2017, p. 104). Não reduzido a imprensa, a “pedra” de incomodo no sapato
dos militares, seria os discursos dos congressistas no Congresso Nacional, com
discursos de protesto contra a crescente onda de violência por parte do regime contra
os estudantes. O Congresso seria um dos principais afetados pela solução autoritária
através do AI-5, sendo inclusive, considerado culpado para o desfecho dos
acontecimentos. Segundo Marcos Napolitano:

O pior dos cenários para o governo parecia estar armado: a


radicalização estudantil e operária, alimentada pelo
oposicionismo crescente da classe média e pela pregação
esquerdista de artistas e intelectuais. Só faltavam os políticos da
oposição entrarem em cena, o que não tardaria a acontecer.
(NAPOLITANO, 2014, p. 93).

O episódio que seria de fato a gota d’água para os militares foi protagonizado
pelo parlamentar emedebista Márcio Moreira Alves em discurso que antecedeu as
comemorações da independência:
Senhor presidente, Senhores deputados. Todos reconhecem, ou
dizem reconhecer, que a maioria das Forças Armadas não
compactua com a cúpula militarista, que perpetra violências e
mantem este país sob regime de opressão. Creio haver chegado,
após os acontecimentos de Brasília, o grande momento da união
pela democracia. Este é também o momento do boicote. As mães
brasileiras já se manifestaram. Todas as classes sociais clamam por
esse repúdio à violência. No entanto, isso não basta. É preciso que
se estabeleça, sobretudo por parte das mulheres, como já começou a
se estabelecer nesta Casa por parte das mulheres parlamentares da
Arena, o boicote ao militarismo. Vem aí o Sete de Setembro. As
cúpulas militaristas procuram explorar o sentimento profundo de
patriotismo do povo e pedirão aos colégios que desfilem juntos com
os algozes dos estudantes. Seria necessário que cada pai e cada mãe
se compenetrasse de que a presença de seus filhos nesse desfile é
um auxílio aos carrascos que os espancam e metralham nas ruas.
Portanto, que cada um boicote esse desfile. (Rádio Câmara, 1968).
O discurso resultou na solicitação da cassação de seu mandato a partir da
acusação de ofensa às Forças Armadas, no entanto, “o discurso do parlamentar não
teve grande notoriedade nos veículos de informação, entretanto, foi o suficiente para
os militares usar como alegação para o endurecimento do regime” (AQUINO, 1999,
p. 206).
De acordo com o jornal Diário de Natal, em Natal, os políticos locais eram
contrários a cassação do parlamentar (EM NATAL... 1968, p.3). Nas palavras do
deputado arenista, Asclepíades Fernandes: “um desrespeito à vontade soberana do
povo, pois se foi eleito em pleito democrático, foi escolhido conforme os ideais desta
população, merecendo, portanto, a sua confiança” (EM NATAL... 1968, p.3).
Segundo o Diário de Natal, o pedido de cassação parlamentar de Márcio
Moreira chegaria no dia 5 de novembro, mas já havendo uma prévia conclusão,
segundo o deputado arenista Fernando Magalhães, de que o pedido seria negado.
Informou que de acordo com levantamento que procedeu, chegou à
conclusão de que a Câmara não concederá a medida solicitada, até
porque antes de pensar no caso de um parlamentar ameaçado de
perda do mandato, deve manter incólume o princípio da
inviolabilidade parlamentar com o que está resguardado o Poder
Legislativo e pugnando pela sua própria sobrevivência. (PEDIDO...
1968, p.1).

A derrota emplacada pelo congresso a solicitação da cassação do deputado,


que “negou a licença do deputado por 216 votos contra 141. No Diário de Natal é
noticiado que, dos 369 deputados presentes, apenas 132 era do MDB
(CONTRARIANDO... 1968, p.1). A situação política ficou complexa no momento
em que parte da Arena votou contra o governo, sinalizando a perda de controle do
“sistema político” (NAPOLITANO, 2014, p. 93). O retorno dos militares para aquele
episódio não tardaria a chegar.
Diante do contexto marcado pelos atritos entre as Forças Armadas,
encasteladas no poder, e os congressistas, a negativa parlamentar à punição de Márcio
Moreira Alves fez do episódio “o ponto mais alto do isolamento político dos militares,
que responderam com a edição do AI-5” (MOTTA, 2021, p. 202). Com a derrota na
Câmara dos Deputados, os militares julgaram aquela decisão como um ato de
negligência por parte da classe política, sendo, inclusive, acusada de ser responsável
pelo desfecho da crise (DIFICULDADE... 1968, p. 3).
O desfecho entretanto, não se deu de maneira democrática, mas findou no
decreto do Ato Institucional Nº 5, em 13 de dezembro daquele ano, que sucumbiu
com as esperanças, e em alguns casos, a própria vida daqueles que lutaram por dias
melhores e mais democráticos.
Fontes

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<http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=028711_01&pagfis=22541>.
Acesso em: 20 jun. 2022.

ATUAÇÃO social do clero preocupa SNI. Diário de Natal. Natal, 16 jun. 1968.
Disponível em: <http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?
bib=028711_01&pagfis=23452>. Acesso em: 20 jun. 2022.

CEM mil estudantes na manifestação: GB. Diário de Natal. Natal, 3 jul. 1968.
Disponível em: <http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?
bib=028711_01&pagfis=23551>. Acesso em: 20 jun. 2022.

COSTA e Silva não cederá as pressões extremista. Diário de Natal. Natal, 24 out.
1968. Disponível em: <http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?
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CONTRARIANDO Governo câmara negou licença para processar Marcio. Diário de


Natal. Natal, 12 dez. 1968. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=028711_01&pagfis=24531>.
Acesso em: 20 jun. 2022.

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