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A obra Mein Kampf se torna best seller mais ou menos forjado (porque forçado e
artificial) justamente a partir de 1933 e, como observou Trotsky, é muito didática.
Entre outros motivos, porque a ideologia do movimento ali se encontra exposta em
toda a sua abrangência, ainda que de modo grosseiro, rudimentar e charlatanesco.
Como esta é a primeira aparição do fantasma do marxismo cultural, vale a pena
resgatar algumas das observações, diretrizes e critérios do Autor. É bom avisar
entretanto que o livro será citado a partir da tradução portuguesa 1, mas não
usaremos aspas porque não se respeitaram sintaxe nem terminologia lusitanas,
sem porém culpar o tradutor pelas dificuldades da tradução: como avisou Lion
Feuchtwanger2, o texto de Hitler tem cerca de 164 mil erros de gramática e sintaxe.
(É possível que Feuchtwanger não tenha incluído em seu cálculo as contradições –
à base do dizer e depois desdizer – que se multiplicam livro afora, para não dizer
nada das inconsequências, fraudes ostensivas e demais falhas que envergonhariam
qualquer escritor sério).
Esta breve seleção já evidencia que, para AH, judaísmo e marxismo estão em
simbiose, de modo que o combate a um é o combate ao outro. Mas cabe alertar que,
embora AH misture tudo, o trânsito de Socialdemocracia para bolchevismo contém
um pressuposto histórico: Socialdemocracia se refere à República de Weimar e
bolchevismo à Revolução de Outubro de 1917 e seus desdobramentos. O pesadelo e
objeto da fúria e do ódio do líder nazista são as experiências culturais
desenvolvidas por socialdemocratas e bolcheviques na Alemanha.
Este combate não precisou esperar pela chegada dos nazistas ao poder; já estava
em andamento quando da redação do livro e um dos desafios dos aguerridos
combatentes era explicar ao trabalhador alemão que o bolchevismo é um crime
horrendo contra a humanidade (p. 491). Uma tática eficaz muito utilizada foi a
conversão de “socialistas” e “comunistas”5 ao nazismo – troféus amplamente
ostentados (pp. 379 e 417).
Para AH, não pode haver engano: os nazistas combatem a esquerda por ser
marxista e a direita por ser covarde (p. 249). Sua convicção é a de que o povo
alemão tem uma missão atribuída pelo Criador e este é o critério para acatar ou
rejeitar qualquer tese (p. 160). Por exemplo: é dever do Estado evitar que o povo
caia nas mãos de maus educadores, ignorantes e mal intencionados. Por isso
também a imprensa tem que ficar sob controle. O Estado não pode cair na
armadilha da liberdade de imprensa, que precisa estar a serviço da nação (p. 181).
E como a maioria dos jornais – tanto os liberais quanto os marxistas – está nas
mãos dos judeus, esta imprensa deve ser destruída, inclusive a poder de granadas
(p. 182).
5
O emprego das aspas se explica pela dúvida a respeito das referidas “conversões”.
6
Desde que Hitler foi alçado à condição de dirigente máximo, o Partido passou a funcionar como
empresa, fato de que ele se jacta: passou a dar lucro! O mais importante, entretanto, foi a função
que ele assumiu: a partir de agora ele decide tudo e distribui tarefas, verticalmente, como em
qualquer empresa capitalista.
correspondia (p.136). Em tradução livre: mentir e falsear a realidade é uma regra,
ou até mesmo um princípio. Ao mesmo tempo, é preciso insistir à exaustão na tese
de que é o inimigo quem mente e calunia sempre. Isto também é uma regra
elementar. Um exemplo: a prova de que a obra Os protocolos dos sábios de Sião é
verdadeira está no fato de que a Frankfurter Zeitung [cujos proprietários são
judeus] diz que é uma fraude literária (p. 230). Um dos mantras do livro é
justamente este: em seus jornais os judeus mentem sempre; até uma verdade é
disfarce para uma falsidade e por isso também é mentira; o judeu é o maior mestre
da mentira; a mentira e a fraude são as únicas armas da sua luta (p. 262).
Não pode haver dúvida de que a doutrina nacional socialista tem o direito de se
impor a toda a nação alemã (p. 427) e cabe à propaganda cumprir esta tarefa (p.
430): a Pátria em primeiro lugar; em segundo o Partido (p. 446). Todos os demais
pontos de vista, sejam partidários, religiosos, humanitários etc. devem ser
impiedosamente eliminados (p. 452).
Como já ficou dito, os princípios acima devem ser tratados da mesma forma que a
religião faz com seus dogmas; o objetivo é constituir uma fé política (p. 281), pois o
futuro do movimento nazista depende do fanatismo e da intolerância com que seus
adeptos o defendem como a única causa justa e muito superior a quaisquer outros
7
AH declara ainda que aprendeu a técnica com a propaganda britânica na Primeira Guerra Mundial
e Goebbels elaborou a fórmula: “Com suficiente repetição e conhecimento da psicologia popular, é
possível provar que um quadrado na verdade é um círculo. São apenas palavras e palavras podem
ser buriladas até serem capazes de mascarar uma ideia.” (Apud CHOMSKY, N. Propaganda and the
Public Mind. Chicago: Haymarket Books, 2nd ed., 2015, p. 161).
esquemas de caráter semelhante (p. 260). A grandeza de toda organização política
que corporifique uma ideia está no fanatismo religioso e na intolerância com que
hostiliza todas as outras, pois seus adeptos estão convencidos de que só eles estão
com a razão. Por isso mesmo os nazistas não temem a inimizade do adversário;
pelo contrário, consideram-na como condição essencial de sua própria existência.
Antes desejam o ódio dos inimigos, porque na manifestação deste ódio só há
mentira e calúnia (p. 261). Ainda sobre este interesse em despertar o sentimento
de ódio nos inimigos, AH é muito claro: a função do discurso e da ação nazistas,
pelo conteúdo e pela forma, é provocar a réplica do adversário, quanto mais
emocional [leia-se irracional], melhor. A combatividade brutal dos homens da
segurança (p. 356) é uma necessária força auxiliar.
Assim como a imprensa judaico-marxista deve ser destruída desde já, a arte
bolchevique deve ser proibida em todas as suas manifestações: representações
teatrais, exposições de arte etc. (p. 194), pois elas são uma destruição sistemática
dos fundamentos da cultura, são a preparação intelectual para o bolchevismo
político. Seus apóstolos são degenerados, descarados e embusteiros (p. 196).
Uma vez no poder, o nazismo efetivamente desencadeou a mais vasta guerra de que
se tem notícia contra todas as manifestações culturais que rotulou de bolchevismo
cultural ou arte degenerada. Esta guerra cultural atingiu os intelectuais, os artistas
e as obras que fizeram a paisagem da República de Weimar, nacionais e
estrangeiras, com destaque para as de origem soviética, mas sem prejuízo de
franceses, ingleses e estadunidenses. Artistas foram presos, conduzidos a campos
de concentração e assassinados ou, quando tiveram sorte ou a devida sagacidade,
partiram para o exílio. Obras de arte foram confiscadas de museus e destruídas 8 e
livros foram queimados em sucessivos espetáculos públicos de bibliocausto. O
regime nazista produziu uma série de listas negras, tanto com os nomes dos seus
inimigos, quanto com os títulos de obras banidas, a serem destruídas. Só da
biblioteca do Instituto de Pesquisa Sexual foram sequestrados 25 mil volumes, que
alimentaram a primeira fogueira realizada em Berlim pelos estudantes nazistas.
Naquele espetáculo macabro, Goebbels disse, solenemente, entre outras
barbaridades, que “vocês, jovens, já têm a coragem de encarar o brilho cruel, de
superar o medo da morte e reconquistar o respeito pela morte – é esta a tarefa
desta nova geração. Fazemos muito bem de lançar às chamas o demônio do
passado.”9
8
O filme de Peter Cohen, Arquitetura da destruição, de 1989, dá notícia pormenorizada da
exposição Arte degenerada (Entartete Kunst), para a qual foram sequestradas de museus em toda a
Alemanha mais de 16 mil obras. Pelo menos 4 mil foram queimadas.
9
Não chega a ser propriamente coincidência o fato do tema da morte atravessar de modo obsessivo
a obra do filósofo do nazismo, Heidegger, como demonstrou Adorno (cf. Adorno, T. La ideología
como lenguaje)
Para se ter ideia de quem eram os inimigos da “cultura” alemã, tal como entendida
pelos nazistas, enumeremos alguns dos mais conhecidos no Brasil: Sigmund Freud,
Albert Einstein, Bertolt Brecht, Kurt Weill, Arnold Schoenberg, Stefan Zweig, Franz
Kafka, Lasar Segall, Marc Chagall, Henri Matisse, Van Gogh, Picasso, obviamente
Marx, Engels, Lenin, Trostky, Kautsky, Rosa Luxemburg, Theodor Adorno, Walter
Benjamin, Ernst Bloch, Herman Hesse, Thomas Mann, o já citado Lion
Feuchtwanger, Romain Rolland, Marcel Proust, Helen Keller, Marlene Dietrich... 10
Para encerrar esta primeira parte, registrem-se alguns destinos dos protagonistas
da infame operação nazista, começando por lembrar que as tropas aliadas que
ocuparam e dividiram Berlim queimaram mais de 30 mil volumes de livros nazistas
que haviam escapado dos bombardeios que destruíram a cidade.
II
O fantasma do marxismo cultural, já com este nome, teve uma segunda encarnação
nos Estados Unidos do início dos anos de 1990, coincidindo com a publicação de
10
A lista completa pode ser encontrada em diferentes verbetes da Wikipedia em inglês, como Nazi
book burnings. Ver também bibliocaust, e cultural bolshevism, entre outros.
11
Entre inúmeros filmes que expõem cenas documentando este julgamento, está o interessante
Proibido!, de Samuel Fuller (1959).
estudos críticos e denúncias sobre as ações americanas de contrainsurgência – ou
combate a comunistas – principalmente na América Central 12, e em especial na
Colômbia. Mas sua pré história é análoga à alemã e também remonta ao período
que se seguiu à Revolução de Outubro de 1917. Como já tratamos deste episódio em
outro lugar13, aqui nos limitaremos a referir a lei que deu início à perseguição de
militantes de esquerda, o Espionage Act, aprovado em 1917, assim que os Estados
Unidos decidiram participar da rapina da Primeira Guerra Mundial (e enviar
tropas para combater a revolução soviética). Esta lei marca o início daquilo que
ficou conhecido como o primeiro red scare14. Em 1918, por exemplo, foi aprovada
uma nova lei, o Smith Act, que autorizava todo tipo de violências contra as
organizações dos trabalhadores e, sob as ordens do Procurador Geral da República,
um certo Palmer, foram realizadas batidas (que ficaram conhecidas como Palmer
Raids), prisões, deportações etc.. A literatura a respeito deste primeiro red scare dá
o ano de 1921 como o do seu encerramento oficial, mas um fato histórico muito
posterior – a execução de Sacco e Vanzetti no dia 23 de agosto de 1927 – é o
verdadeiro ponto final desta campanha.
16
Esta Comissão existiu oficialmente até 1975, mas a do Senador Joseph McCarthy, como ficou dito,
roubou-lhe a cena a partir de 1950.
17
Este tema também foi desenvolvido com mais pormenores no livro Panorama do Rio Vermelho,
acima citado. Nos últimos anos, a bibliografia sobre o tema ganhou novos títulos no Brasil.
18
O diálogo foi reconstituído no filme genial de Tim Robbins, Cradle will Rock, de 1999.
of American Ideals (por Walt Disney, entre outros). Do primeiro panfleto alertando
para 0 perigo da propaganda comunista subliminar, destacamos alguns dos seus
mandamentos: 1) não caluniar o sistema da livre iniciativa; 2) não caluniar
empresários; 3) não caluniar a riqueza; 4) não caluniar a busca do lucro; 5) não
divinizar os pobres; 6) não glorificar o coletivo. (Temos boas razões para acreditar
que este hexálogo continua em vigor pelo menos no cinema, na televisão e nos
jornais americanos). Data deste início da Guerra Fria a transformação em tabu de
palavras como marxismo, socialismo e comunismo nos Estados Unidos. Pelo
menos duas gerações se formaram sem ouvir menção a estas palavras e a
universidade americana até hoje, em sua esmagadora maioria, não dispõe de
professores críticos do capitalismo em seus cursos de economia.
Nesta nova conjuntura, a HUAC volta à ativa, agora ávida do sangue dos aliados da
véspera. Seu momento de maior visibilidade foi o capítulo conhecido como “Os dez
de Hollywood”, uma lista de roteiristas convocados para depor perante a comissão
e, principalmente, responder à pergunta “o senhor é ou foi filiado ao Partido
Comunista?” Dentre os convocados, atualmente um dos mais conhecidos no Brasil
é Dalton Trumbo, que recentemente teve livro e filme dedicados a esta amarga
experiência de denunciado e condenado a um ano de prisão, mais a proibição de
trabalhar na indústria cinematográfica (que foi devidamente contornada pelo
recurso aos “testas de ferro” – pessoas que se dispunham a emprestar seus nomes
para os roteiros que continuaram a ser escritos). Produziu-se neste contexto uma
lista negra com cerca de três centenas de “suspeitos”. Para ficar nos mais
conhecidos entre nós, limitemo-nos aos seguintes: Howard Koch (roteirista de
Casablanca, de 1942), Bertolt Brecht, Hans Eisler, Jules Dassin (diretor de Nunca
aos domingos, filmado já no exílio, em 1960), Edward G. Robinson, Orson Welles,
Joseph Losey (diretor de Galileu, de 1975, baseado na peça de Brecht e filmado na
Inglaterra, país que Losey adotou), Charlie Chaplin, Elia Kazan, Lillian Hellmann,
Stella Adler, Leonard Bernstein, Dashiel Hammet, Dorothy Parker, Marc Blitztein,
Lena Horne, Langston Hughes, Arthur Miller e Harry Belafonte. Ainda merecem
destaque, por seus feitos posteriores ao mar de lama anticomunista, Ring Lardner
Jr., que escreveu o roteiro de M.A.S.H., filme de 1970 dirigido por Robert Altman, e
Martin Ritt, diretor de Testa de ferro por acaso (1976), cujo roteiro foi escrito por
Walter Bernstein, igualmente vítima da caça aos “comunistas” em Hollywood e
participante da tática dos “testas de ferro”.
Como ficou dito, este período de caça às bruxas, que se encerrou oficialmente em
1975, acabou tendo nome próprio – macartismo – em parte porque o senador
aprofundou os métodos da difamação, dos constrangedores interrogatórios
televisionados, das inferências hostis e das falsas acusações. 19 Este episódio do red
19
Sobre este senhor ainda vale a pena registrar (a título de vingança literária) que era alcoólatra e
viciado em morfina. Seu vício foi financiado pelo Federal Bureau of Narcotics, de 1950 até sua
scare merece ser encerrado com duas de suas derrotas. A primeira é moral. Em
1953 o ator acima referido, Lionel Stander, fez à HUAC o seguinte pronunciamento,
ainda hoje válido:
Esta última encarnação (esperando que seja mesmo a última) do red scare se
caracteriza pelo mesmo baixo nível do nazismo, do palmerismo e do macartismo.
Segundo Richard D. Wolff22, os mais proeminentes porta-vozes atuais do combate
ao marxismo cultural (agora assim designado) são Steve Bannon e o canadense
Jordan Peterson. Por seu papel estratégico nas nossas eleições presidenciais de
morte, cuja causa declarada foi “hepatite aguda” (por honra da firma). Sua carreira durou apenas
quatro anos, em parte porque atirou no próprio pé ao seguir o palpite de seu assistente, Roy Cohn, e
deu corda a uma denúncia de homossexualismo no alto comando das Forças Armadas. Quanto a
Roy Cohn, o filme Citizen Cohn (1992, Frank Pierson) trata deste e demais episódios de sua carreira
torpe. Não custa lembrar que foi advogado de Donald Trump nos anos de 1980.
20
Cf. BELTON, John. A Theory of Justice. 4th. ed., McGraw-Hill, 2013, p. 309. Apud Wikipedia,
verbete Lionel Stander.
21
Segundo Paul Krugman, no New York Times, este presidente é a primavera dos trapaceiros. (Cf.
Folha de São Paulo, 10/09/2019).
22
Criador do site Democracy at Work e autor do livro de mesmo nome, além de professor marxista
de economia muito conhecido nos Estados Unidos.
2018, o primeiro dispensa apresentações; Jordan Peterson é uma boa síntese do
intelectual conservador: dispõe-se, por exemplo, a debater marxismo sem ter lido
uma única obra de Marx, como ficou mundialmente evidenciado em recente debate
com Slavoj Zizek (disponível no You Tube). Para Richard Wolff, em Jordan
Peterson é evidente a constrangedora combinação de ignorância e pretensão, pois
todas as suas proposições a respeito de Marx e do marxismo são simplesmente
falsas.
Quanto à expressão “marxismo cultural”, como já ficou dito, seu uso data do início
da década de 1990. Seus primeiros usuários são cristãos fundamentalistas,
ultraconservadores, supremacistas – enfim, a extrema direita estadunidense. Uma
das mais eloquentes manifestações da tendência é o movimento Dark
Enlightenment (que não se perca pelo nome)– antítese assumida do iluminismo,
que prega a moral vitoriana do século XIX, uma ordem tradicionalista e teocrática,
declara guerra aberta a todo conhecimento científico e, em primeiro lugar, ao
marxismo cultural. Os objetos mais imediatos de sua fúria conservadora são o
feminismo, a ação afirmativa, a liberação sexual, a igualdade racial, o
multiculturalismo, os direitos LGBTQ e o ambientalismo23.
23
Para mais detalhes, procurar na Wikipedia o verbete Dark Enlightenment.
24
A tese frontalmente oposta é a da preponderância programática do anticomunismo na mídia
hegemônica estadunidense. A obra Manufactoring Consent, de Noam Chomsky e Edward Herman
(NY: Pantheon Books, 2002; 1ª ed. 1988), a expõe e demonstra minuciosamente. Na página 29
deste livro encontra-se a afirmação de que “anticomunismo é a religião dominante nos Estados
Unidos”. Adicionalmente, Chomsky alerta para o fato de que naquele país os liberais são
frequentemente acusados de comunismo para que permaneçam na defensiva. Isto não nos soa
agora familiar?
Em 1999, o professor Martin Jay (conhecido no Brasil por seu livro sobre a história
da Escola de Frankfurt, A imaginação dialética) caiu numa armadilha montada
por William Linch, um militante da causa reacionária: de boa fé, gravou um
depoimento para um programa televisivo sobre a Escola de Frankfurt.
Devidamente adulterado, este depoimento foi utilizado para “demonstrar” as teses
a respeito do marxismo cultural. Esta experiência chocante é por ele relatada em
detalhes no ensaio Dialetics of Counter-Enlightenment: The Frankfurt School as
Scapegoat of the Lunatic Fringe25. Dentre os capítulos mais eloquentes da
campanha obscurantista, e lembrando que Marcuse foi mesmo o pensador favorito
das publicações da New Left, destaquem-se do relato de Martin Jay as seguintes
referências: Patrick Buchanan publicou em 2001 o livro The Death of the West, no
qual, reciclando as teses do bolchevismo cultural, afirma que a Escola de Frankfurt
propaga o marxismo cultural; em 1992, Michael Minnicino publicou no jornal
Fidelio o artigo New Dark Age: Frankfurt School and Political Correctness; e, por
último, o próprio “documentário” televisivo do qual Martin Jay participou. Detalhe:
William Linch dirigia na ocasião o Center for Cultural Conservatism.
Para Martin Jay, a tese fundamental destes reacionários é a de que todos os males
da cultura – feminismo, ação afirmativa, liberação sexual, direitos LGBTQ,
decadência da educação tradicional e ambientalismo – são responsabilidade da
insidiosa influência da Escola de Frankfurt. Lukács e Gramsci também são
responsáveis, mas têm peso menor porque não imigraram para os Estados Unidos.
Os adeptos do marxismo cultural são acusados de ensinar sexo e homossexualismo
às crianças, promover a destruição da família, controlar os meios de comunicação e
promover o engodo de massas, esvaziar as igrejas e promover o consumo de
bebidas. Enfim: marxismo cultural seria a própria subversão da cultura ocidental.
Como se pode ver, a maior parte destas acusações – observa Martin Jay – provém
de um pântano de demagogos de extrema direita, totalmente desinformados e
muito deficientes no quesito lógica. Sua especialidade é disseminar disparates,
absurdos e despropósitos. É evidente a semelhança entre o que dizem e o que dizia
seu protoguru Adolf Hitler. A Escola de Frankfurt foi promovida a bode expiatório
de uma compreensão completamente arruinada do mundo, de uma visão patética e
desorientada. Acrescentemos: pautada por uma insaciável sede de vingança dos
típicos desiludidos do american dream que se voltaram exatamente contra aqueles
que sempre o denunciaram.
É bem verdade que esta operação (em andamento) de guerra ideológica declarada
ainda contou com os bons serviços da Santa Madre Igreja, que desde os anos de
1990 desfraldou para todo o mundo a bandeira do combate à ideologia de gênero,
num assalto similar ao realizado pelos nazistas ao repertório marxista e análogo ao
combate travado contra a “ideologia comunista” por nossa penúltima ditadura
(1964-85). Um dos mais importantes ideólogos desta empreitada foi o cardeal
Joseph Ratzinger, depois Papa Bento XVI, que de 1981 a 2005 comandou uma
importante divisão do Vaticano historicamente conhecida como Inquisição e mais
recentemente denominada Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Saiu da
forja da reação católica a tese de que “ideologia de gênero” é um conjunto de ideias
falsas, marxistas, que objetivam aniquilar a “família natural”, para tanto
fomentando a libertinagem, a união homoafetiva, a pedofilia [como se eles mesmos
não fossem seus mais contumazes praticantes]...27
Para enfrentar esta pouco surpreendente aliança entre extrema direita católica,
extrema direita evangélica e extrema direita propriamente dita (ou neofascismo)
em guerra declarada às expressões culturais da multissecular luta pelo
esclarecimento e pelo socialismo, estamos desafiados a apresentar as nossas armas.
26
Assim como AH, nossos autores não cultivam boas relações com a língua materna. Nem devem
saber o significado da expressão “concordância verbal”.
27
Estas e outras informações podem ser encontradas no ensaio de Ivanderson Pereira da Silva
(UFAL-Arapiraca) publicado na Educação em revista (Belo Horizonte, 2018; disponível na internet)
com o título “Em busca dos significados para a expressão ‘ideologia de gênero’”. É uma pesquisa de
fortuna crítica sobre o tema.
III
Sobre marxismo ocidental e materialismo cultural, vale a pena fazer uma pausa,
pois a nossa hipótese é que os luminares do “marxismo cultural-espectral”
assaltaram a obra de Perry Anderson30, assim como a produção dos discípulos
angloamericanos de Raymond Williams. Anderson subsume ao conceito de
marxismo ocidental autores como Gramsci, Lukács, Escola de Frankfurt... Não são
os mesmos mobilizados pela versão fantasmática? Outra demarcação do marxista
inglês: os integrantes do marxismo ocidental atuariam de preferência no âmbito da
cultura e do debate teórico (exceção feita a Gramsci, um dos fundadores do Partido
Comunista Italiano, cuja principal contribuição ao marxismo cultural – incluídas as
reflexões sobre Maquiavel – foi produzida no cárcere fascista e, por isto mesmo, à
revelia), enquanto os marxistas tout court (os clássicos: Marx, Engels, Plekhanov,
Lenin, Rosa Luxemburg, Trotsky...), além de debaterem amplamente as questões
culturais, também eram ligados à militância revolucionária, ou seja, vinculados a
partidos, tanto da tradição socialista quanto da comunista 31, o que não se aplica aos
integrantes da Escola de Frankfurt.
Dando continuidade a esta primeira pausa, não é demais lembrar uma outra
consideração de Engels a propósito da luta de classes em todas as frentes, inclusive
a cultural: “todas as lutas históricas, quer se processem no domínio político,
religioso, filosófico, ou qualquer outro campo ideológico, são na realidade apenas a
expressão mais ou menos clara de lutas entre as classes sociais”32.
33
Os excertos publicados no volume Literatura e vida nacional são de extremo interesse para quem
tem que se haver com os atuais descendentes do infamíssimo padre Bresciani, jesuíta grosseiro e
fanático (1798-1862) que cultivava um espírito de vingança reacionária e caprichava na polêmica
áspera, atropelando o interlocutor. Na opinião de De Sanctis, ele era pouco dotado, de caráter
vulgar, desprovido de espírito, rancoroso, dado a encenar paixões que não sentia, dedicado a
mentir, caluniar e odiar. Não é coincidência a semelhança entre estes traços de falta de caráter e as
atitudes dos nossos adversários políticos.
exemplo do que fez Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas,
desmascaram os comportamentos da classe dominante.
É assim que temos basicamente dois momentos nesta produção cultural: a da luta
contra a escravidão propriamente dita – em especial a dos africanos, mas no caso
de países de continentes como o americano também a dos nativos – e a da luta
contra a escravidão salarial (esta é uma das expressões que Marx utiliza em
diversas obras, inclusive O Capital). A causa pela qual lutamos é libertar o
proletariado das relações de produção capitalistas – nunca é demais insistir –, e
desde que foi fundada a Internacional Comunista (1919), um desdobramento que
sintetiza estas pautas é a luta contra a dominação colonial. Portanto, aos marxistas
culturais interessam todos os episódios de confronto com o colonialismo e o
imperialismo, a começar pela Revolução do Haiti (1791-1804), até as vitoriosas
guerras que os vietnamitas travaram contra Japão, França e Estados Unidos,
passando por revoluções como a cubana e pelas guerras de libertação de Angola,
Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau, entre outras. E só para adiantar um
tópico: você sabia que o sucesso mundial de 1967, Pata pata, de Miriam Makeba,
apoiada por Harry Belafonte, serviu para arrecadar fundos para tirar lutadores
contra o apartheid das prisões sul africanas? Eis uma das milhares de histórias que
interessam a um militante comunista do autêntico marxismo cultural!
Marxismo cultural pode muito bem servir de senha para nos voltarmos ao que
realmente interessa no plano cultural. Enumeremos alguns exemplos para começo
de conversa. Como estamos no Brasil, nossa primeira prioridade é a luta de
resistência dos africanos às condições de escravidão, cuja figura mais antiga é o
quilombo34. Palmares e Zumbi são ainda hoje fonte inesgotável de inspiração.
Marxistas culturais brasileiros têm em Zumbi uma espécie de ancestral e já contam
com respeitável tradição de abordagens da sua luta, com erros e acertos. Neste item
entram evidentemente Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo, autores
da obra prima Upa, neguinho!, gravada por Elis Regina e integrante do espetáculo
Arena conta Zumbi. Mas não podemos nos esquecer de que foi Abdias
Nascimento35 quem abriu os olhos do jovem Augusto Boal para importância desta
questão.
Para encerrar este primeiro passeio, cabe fazer uma homenagem a Augusto Boal,
também discípulo de Paulo Freire, enumerando alguns nomes daqueles que
podemos chamar de integrantes do arco-íris do marxismo cultural sem precisar
pensar duas vezes (desde já insistindo: é lista de memória e sem pretensão de ser
exaustiva).
Dentre os brasileiros, além dos já citados, temos Jorge Amado, Graciliano Ramos,
Oswald de Andrade, Patrícia Galvão, Joracy Camargo (todos escritores-militantes),
Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Carlos Drummond de Andrade,
Paulo Emílio Sales Gomes, Antonio Candido, Florestan Fernandes, Emília Viotti,
Fernando Novais, Anatol Rosenfeld, Chico de Assis, Joaquim Pedro de Andrade,
Glauber Rocha, Ruy Guerra (este foi importado de Moçambique, mas se
abrasileirou rapidamente), Eduardo e Lauro Escorel, Leon Hirszman, Oduvaldo
Vianna Pai e Filho, Solano Trindade, João das Neves, Clóvis Moura, Chico
Buarque, Flávio Império, Michel Löwy, Roberto Schwarz, Maria Bethânia, Ivone
Lara, Clementina de Jesus, Carolina Maria de Jesus...
37
Interessados em mais detalhes podem ler o livro publicado em 2018 pela editora Expressão
Popular: LUNATCHARSKI, A. Revolução, arte e cultura.
38
Há vários textos destas e de outras mulheres no livro SCHNEIDER, Graziela (org.). A revolução
das mulheres. São Paulo: Boitempo, 2017. Ver, sobre o mesmo assunto, GOLDMAN, Wendy. A
libertação das mulheres e a Revolução Russa. In JINKINGS, Ivana e DORIA, Kim (orgs.). 1917 – o
ano que abalou o mundo. São Paulo: Boitempo, 2017.
39
Cf. o ensaio “O autor como produtor”, disponível em várias edições.