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Resumo:
Introdução
O termo, apesar de recente (foi largamente utilizado pelo então candidato Donald
Trump à Presidência dos Estados Unidos, em 2016), reflete um conceito há muito
conhecido: “notícias falsas”, cuja trajetória se confunde com a história da Humanidade.
Há relatos de boatos espalhados propositalmente pelas pólis, desde a Antiguidade, mas
foi a partir da invenção da prensa, por Gutenberg, que os boatos encontraram espaços
para vestirem-se de notícias e atingir de forma ainda mais potente leitores de jornais, cuja
missão dupla refletia-se em confundir e vender-se.
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MENESES, João Paulo. Sobre a necessidade de conceptualizar o fenómeno das fake news (CECS – Centro de
Estudos de Comunicação e Sociedade). Disponível em http://obs.obercom.pt/index.php/obs/article/view/1376/pdf.
Acessado em 15.12.22.
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ALTARES, Guillermo. A longa história das notícias falsas in jornal El País. Disponível em
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/08/cultura/1528467298_389944.html. Acesso em 03.12.22.
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Idem
e, no processo de fusão entre si, constituindo discursos ideologicamente importantes a
determinados projetos.
Buscando lançar luz sobre esses aspectos, o presente artigo tem como objetivo
observar a estrutura narrativa e persuasiva de notícias falsas de ataque à monarquia
francesa, publicadas no jornal francês Le Canard Enchaîné e no jornal inglês The
Morning Post, em meio a um cenário de preparação para a Revolução Francesa no século
XVIII.
Para tanto, recorremos às ideias de autores fundamentais para o estudo, entre eles
Eric Hobsbawn (2015), que oferecerá valioso arsenal teórico para a contextualização
histórica em que foram produzidas essas notícias; Ben Singer (2004) e suas ideias sobre
o novo sensacionalismo popular na modernidade; e Benjamin (1969), que contribuirá com
sua visão sobre jornais como “emblemas” sociais. Além destes, para fundamentar a
análise retórica das narrativas e, consequentemente, dos discursos em foco, buscaremos
as teorias de Aristóteles (2012) e de Charaudeau (2018).
A Revolução Francesa certamente não foi a única grande mudança pela qual a
humanidade passou nos últimos séculos, nem mesmo aconteceu de forma isolada no
século XVIII. No entanto, ao considerarmos sua potência transformadora, não só para a
França, mas também para outros países que nela se inspiraram, a Revolução Francesa
ocupa lugar de destaque nesse quesito. Suas demandas e consequências indicaram novos
horizontes para as da França e para muitas outras estruturas sociais da época.
Talvez possamos encontrar a justificativa disso em Hobsbawn (2015), quando
afirma que os ideias da Revolução tornaram-se importantes referências por refletirem os
anseios de muitos homens. De acordo com o autor:
Era, afinal, um tempo de crise para os regimes monárquicos da época, que já não
mais podiam sustentar-se no seio de uma classe burguesa em busca de maior
reconhecimento e espaço na estrutura política, e especialmente econômica, e no de um
país cujo povo enfrentava os desafios terríveis impostos pela miséria social.
Nesse mesmo sentido, Singer (2010) nos aponta que “a modernidade sugere um
desamparo ideológico de um mundo pós-consagrado e pós-feudal no qual todas as normas
e valores estão sujeitos ao questionamento. (SINGER, p. 95, 2010)
Está posto que uma Revolução não se faz apenas com ideias, mas também com
palavras. Mais designadamente, por meio da firme construção de discursos. Além disso,
de acordo com Charadeau (2018), o discurso construído em arena política é, por
excelência, um lugar de jogo de máscaras. Toda palavra pronunciada no campo político
deve ser tomada ao mesmo tempo pelo que diz e pelo que não diz. Segundo o autor, “a
palavra jamais deve ser tomada ao pé da letra numa transparência ingênua, mas como
resultado de uma estratégia cujo enunciador nem sempre é soberano. (CHARAUDEAU,
p. 12, 2018)
Com vistas a destruir a imagem da monarquia, entre outros objetivos, boa parte
destas narrativas davam conta de boatos ou mesmo notícias falsas estruturadas, utilizadas
como ferramentas estratégias de um projeto político de profundas reformas.
A análise destes aspectos exige não só um olhar atento sobre o conteúdo destes
textos e seus recursos retóricos em busca de legitimação, mas principalmente no cenário
histórico e discursivo no qual estavam inseridos.
Benjamin (1969) nos oferece auxílio para a visada sobre a crescente importância dos
jornais nesse período. De acordo com o autor, em 1824, havia em Paris 47 mil assinantes de
jornal, em 1836, havia 70 mil, em 1846, 200 mil. Nesse contexto, Benjamin (1969) destaca
que a notícia precisava de pouco espaço. Ela é que ajudava o jornal a ter uma aparência nova
a cada dia, principalmente por conta de alterações na paginação. E precisava ser
constantemente renovada. Por isso, “boatos da alta sociedade, intrigas do mundo teatral, (...)
constituíam suas fontes prediletas. Desde os primeiros momentos já se podia perceber essa
elegância barata que se torna tão característica do folhetim. (BENJAMIN, p. 58, 1969)
Desta forma, misturadas à notícia apurada, boatos eram rotineiramente publicados por
periódicos franceses e ingleses para ratificar ou alterar o senso comum e consolidar a
necessidade de mudanças. Produzidas com o objetivo explícito de causar danos a algo ou
alguém, boatos e notícias falsas, no cenário da política, parecem possuir propósito
singular: a destruição de uma imagem, de um ethos que o povo esteja acostumado a
respeitar. Ao mesmo tempo, é a construção sutil de uma ideia contrária, uma vez que, no
contexto das notícias falsas, tão importante quanto o que é dito é o que não é dito.
Apesar de autores como Darnton (2017) afirmarem que as fake news sempre
existiram, torna-se relevante nesse ponto apresentar a distinção conceitual entre false
news e fake news. Notícias falsas – as chamadas barrigas, no jargão jornalístico – por
vezes acabam por compor a história da imprensa, e denotam, especificamente, distorções
informacionais ou modos do fazer jornalístico até meados do século XX. Nesse aspecto,
é possível afirmar que sempre existiram e, por conta da permanente possibilidade de
imprecisão no procedimento jornalístico deste ou daquele profissional, continuarão a
existir.
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DARNTON, Roberto. A verdadeira história das notícias falsas. Publicado na edição online do jornal El
País de 30 de abril de 2017. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/28/cultura. Acesso
em 03.12.22.
Além disso, Darnton (2017)5 explica que, na França, os chamados canards também
desempenharam um papel essencial. Textos na maioria de autoria desconhecida, com
poucas páginas, impressos em material barato e com pouca frequência ilustrados,
consistiam em brochuras vendidas a baixo custo nas esquinas das grandes cidades
francesas, como Paris e Lyon.
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DARNTON, Roberto. A verdadeira história das notícias falsas. Publicado na edição online do jornal El
País de 30 de abril de 2017. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/28/cultura. Acesso
em 03.12.22.
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No entanto, pouco antes, às vésperas do movimento, a circulação de rumores
maldosos, ratificados pelos canards, levou à queda do ministério do Conde de Maurepas,
secretário de estado, do rei Luís XVI. A queda do ministério de Maurepas, em 1749,
alterou significativamente o panorama político francês, sendo considerada uma das
causas da Revolução Francesa de 1789.
Nesse sentido, os cafés, espaços públicos em que eram produzidos esses boatos,
que depois se transformariam em “parágrafos”, também exerciam função fundamental.
Benjamin (1969) nos mostra que o horário e o modo de funcionamento dos cafés
(verdadeiros “celeiros” destes textos) “treinou os redatores para o ritmo do noticiário
jornalístico, antes mesmo que a aparelhagem deste estivesse bem desenvolvida.”
(BENJAMIN, p. 59, 1969)
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DARNTON, Roberto. A verdadeira história das notícias falsas. Publicado na edição online do jornal El
País de 30 de abril de 2017. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/28/cultura. Acesso
em 03.12.22.
Um inglês que não se sinta cheio de estima e admiração pela maneira
sublime com que está agora se efetuando uma das mais
IMPORTANTES REVOLUÇÕES que o mundo jamais viu deve estar
morto para todos os sentidos da virtude e da liberdade; nenhum de meus
patrícios que tenha tido a sorte de presenciar as ocorrências dos últimos
três dias nesta grande cidade fará mais que testemunhar que minha
linguagem não é hiperbólica. — The Morning Post, 21 de julho de 1789,
sobre a queda da Bastilha (Hobsbawn, p. 61, 2015)
Fundado em 1772, pelo reverendo Henry Bate, o The Morning Post era uma
sucessão de parágrafos sobre notícias distintas, quase todas falsas. Em 13 de dezembro
de 1784, por exemplo, esse jornal publicou um parágrafo sobre um prostituto que prestava
seus serviços a Maria Antonieta: “A rainha francesa tem afeição pelos ingleses. De fato,
a maioria de seus favoritos procede desse país; mas quem mais prefere é o senhor W. É
sabido que esse cavalheiro tinha sua carteira vazia quando chegou a Paris e, no entanto,
agora leva uma vida cheia de elegância, bom gosto e moda. Mantem suas carruagens,
seus uniformes e sua mesa sem economizar gastos e com todo o esplendor”.
O rei Luís XVI também foi alvo de boatos. Ao assumir o trono em 1774, teve que
lidar com a reputação manchada do avô, o rei Luís XV, que por sofrer de lepra, fora
acusado de matar crianças para banhar-se com o sangue delas.
Considerações Finais
A própria história oferece testemunho sobre a utilização de boatos e de notícias
falsas na produção de sentidos, especialmente quando inseridas em discursos políticos.
Narrativas entrelaçadas parecem constituir tijolo a tijolo estes discursos, os quais, uma
vez legitimados e aceitos pelo povo, representam ideias e visões de mundo difíceis e, por
vezes e em um dado tempo, irreversíveis.
A realidade vivida pela população acolhia de bom grado esses falsos conteúdos e
as terríveis necessidades pelas quais passava o povo francês os legitimavam de forma
inconteste. Com um contexto favorável e a identificação imediata dos enunciatários, estas
narrativas solaparam qualquer possibilidade de apoio à monarquia, uma vez que situações
de crise, futuros incertos e choques coletivos representam terreno fértil para a propagação
de notícias falsas. (RECUERO, 2021) 10
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RECUERO, Raquel e SOARES Felipe B. O Discurso Desinformativo sobre a Cura do COVID-19 no
Twitter: Estudo de caso. Revista E-Compós. Disponível em https://www.e-compos.org.br/e-compôs.
Acessado em 22/11/22.
também parece representar um lugar importante e possível para a utilização de recursos
retóricos que potencializem os ideais de persuasão.
Entretanto, as narrativas de nada valeriam se não pudessem aproveitar-se de um
mecanismo mediador forte e, nesse ponto, os jornais passam não só a compor o quadro
como a defini-lo em larga escala, o que nos leva a compreender o papel dos meios de
comunicação na disseminação de notícias falsas. Responsáveis em grande medida pela
produção de sentidos na Modernidade, especialmente em um tempo de efervescência
social, econômica e política, os jornais trataram de sedimentar seu poder de não só
produzir informação e ideias e legitimá-la, mas também, e principalmente, de vendê-las,
em uma espécie de dupla missão. Nesse sentido, é possível concordar com Altares (2018)
sobre o fato de “os dividendos políticos das notícias falsas serem elevado e elas sempre
que necessitarem de um bom caldo de cultivo.” (Altares, 2018)11
Referências:
ALTARES, Guillermo. A longa história das notícias falsas in jornal El País. Disponível
em https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/08/cultura/1528467298_389944.html.
Acesso em 03.12.22.
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse
Alberto e Abel do Nascimento Pena. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
BENJAMIN, Walter. Sociologia. Rio de Janeiro, Zahar, 1969.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. São Paulo: Contexto, 2018.
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ALTARES, Guillermo. A longa história das notícias falsas in jornal El País. Disponível em
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/08/cultura/1528467298_389944.html. Acesso em 03.12.22.
DARNTON, Roberto. A verdadeira história das notícias falsas. Publicado na edição
online do jornal El País de 30 de abril de 2017. Disponível em
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/28/cultura. Acesso em 03.12.22.
HOBSBAWN, Eric J. A Era das Revoluções 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
MENESES, João Paulo. Sobre a necessidade de conceptualizar o fenómeno das fake
news (CECS – Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade). Disponível em
http://obs.obercom.pt/index.php/obs/article/view/1376/pdf. Acessado em 15/05.22.
PRADO, J. L. A. Convocações biopolíticas dos dispositivos comunicacionais. São
Paulo: Educ; São Paulo: Fapesp, 2013.
RECUERO, Raquel e SOARES Felipe B. O Discurso Desinformativo sobre a Cura
do COVID-19 no Twitter: Estudo de caso. Revista E-Compós. Disponível em
https://www.e-compos.org.br/e-compôs. Acessado em 22/11/22.
SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental in VELHO, Otávio Guilherme (org). O
fenômeno urbano Rio de Janeiro, Zahar, 1973.
SINGER, Bem. Modernidade, Hiperestímulo e o Início do Sensacionalismo Popular
in CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa R. O cinema e a reinvenção da vida
moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2004.