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Notícias Falsas, Comunicação Política e Modernidade:

boatos e produção de sentidos nos tempos da Revolução Francesa

Profa. Lucimar Gonçalves


Curso de Jornalismo | Centro Universitário Braz Cubas
2022

Resumo:

Partindo da importância que as fake news alcançaram no ecossistema comunicacional


contemporâneo, o presente artigo objetiva investigar parte de sua história, visando traçar
um paralelo entre o surgimento de notícias falsas e jornais no século XVIII,
particularmente no cenário da produção de discursos em comunicação política do período
pré-Revolução Francesa. Nessa direção, com base em referencial teórico sobre
comunicação e consumo na Modernidade e teorias da persuasão, propõe-se verificar
boatos com maior repercussão na desconstrução e difamação da imagem da corte à época,
publicados no jornal francês Le Canard Enchaîné e no jornal inglês The Morning Post,
destacando elementos retóricos utilizados na busca por legitimar e potencializar a
circulação destas narrativas.

Palavras-chave: Fake News. Comunicação Política. Retórica. Modernidade.

Introdução

O ecossistema comunicacional vem passando por profundas mudanças, tanto no


processo de produção da informação quanto nos resultados alcançados pelos discursos
que esse processo produz. Tais mudanças afetam diretamente o contexto da comunicação
política, que por conta de suas demandas e propósitos de consumo simbólico, ou seja, de
ideias, carece, inevitavelmente, da instância da mediação para atingir o público de seu
interesse.
É nesse cenário que surgem as fake news, consideradas importante fenômeno de
comunicação no contemporâneo. Meneses1 as define como “um documento
deliberadamente falso, publicado on-line, com o objetivo de manipular os receptores”.
Além disso, ainda segundo o autor, se inserem em um contexto mais amplo, que marca a
comunicação digital na segunda metade do século XXI: a desinformação. São,
verdadeiramente, os pilares desse cenário e não se estruturam apenas em textos, mas
também em imagens manipuladas em fotografia ou em vídeo.

O termo, apesar de recente (foi largamente utilizado pelo então candidato Donald
Trump à Presidência dos Estados Unidos, em 2016), reflete um conceito há muito
conhecido: “notícias falsas”, cuja trajetória se confunde com a história da Humanidade.
Há relatos de boatos espalhados propositalmente pelas pólis, desde a Antiguidade, mas
foi a partir da invenção da prensa, por Gutenberg, que os boatos encontraram espaços
para vestirem-se de notícias e atingir de forma ainda mais potente leitores de jornais, cuja
missão dupla refletia-se em confundir e vender-se.

Ainda que os objetivos não sejam explícitos, é possível perceber a edificação


discursiva que essas narrativas possibilitam, notadamente no terreno da comunicação
política desde a Antiguidade até os dias atuais. Altares (2018)2 nos mostra que a utilização
política das mentiras começou muito antes das redes sociais, e a construção de outras
realidades, não necessariamente comprometidas com a verdade, era uma constante na
Grécia antiga. Ainda conforme Altares:

A primeira vítima da guerra é a verdade, afirma um velho ditado


jornalístico. Embora o mais correto fosse dizer que a verdade é vítima
recorrente em qualquer sociedade organizada, porque a mentira política
é uma arte tão velha quanto a civilização. (ALTARES, 2018)3

De acordo com as palavras de um dos principais políticos do Partido Nazista Alemão na


década de 1940, Joseph Goebbels, “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”.
Assim, pode-se notar que as notícias falsas, nesse enquadramento, vão se amalgamando

1
MENESES, João Paulo. Sobre a necessidade de conceptualizar o fenómeno das fake news (CECS – Centro de
Estudos de Comunicação e Sociedade). Disponível em http://obs.obercom.pt/index.php/obs/article/view/1376/pdf.
Acessado em 15.12.22.
2
ALTARES, Guillermo. A longa história das notícias falsas in jornal El País. Disponível em
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/08/cultura/1528467298_389944.html. Acesso em 03.12.22.
3
Idem
e, no processo de fusão entre si, constituindo discursos ideologicamente importantes a
determinados projetos.

Apesar disso, é imprescindível destacar o volume de transformações pelas quais


passou a comunicação de massa nos últimos séculos. Em meio a elas, as notícias falsas
foram catapultadas a um outro patamar de circulação, utilizando, especialmente hoje, as
plataformas de redes sociais como suas maiores aliadas.

No entanto, apesar da notória diferença da capacidade de distribuição e circulação


da informação no decorrer da História, algumas questões se destacam: a estrutura
narrativa destes textos também foi afetada? Que recursos persuasivos foram e continuam
sendo utilizados para a convocação da audiência?

Buscando lançar luz sobre esses aspectos, o presente artigo tem como objetivo
observar a estrutura narrativa e persuasiva de notícias falsas de ataque à monarquia
francesa, publicadas no jornal francês Le Canard Enchaîné e no jornal inglês The
Morning Post, em meio a um cenário de preparação para a Revolução Francesa no século
XVIII.

Para tanto, recorremos às ideias de autores fundamentais para o estudo, entre eles
Eric Hobsbawn (2015), que oferecerá valioso arsenal teórico para a contextualização
histórica em que foram produzidas essas notícias; Ben Singer (2004) e suas ideias sobre
o novo sensacionalismo popular na modernidade; e Benjamin (1969), que contribuirá com
sua visão sobre jornais como “emblemas” sociais. Além destes, para fundamentar a
análise retórica das narrativas e, consequentemente, dos discursos em foco, buscaremos
as teorias de Aristóteles (2012) e de Charaudeau (2018).

A mais emblemática das Revoluções

A Revolução Francesa certamente não foi a única grande mudança pela qual a
humanidade passou nos últimos séculos, nem mesmo aconteceu de forma isolada no
século XVIII. No entanto, ao considerarmos sua potência transformadora, não só para a
França, mas também para outros países que nela se inspiraram, a Revolução Francesa
ocupa lugar de destaque nesse quesito. Suas demandas e consequências indicaram novos
horizontes para as da França e para muitas outras estruturas sociais da época.
Talvez possamos encontrar a justificativa disso em Hobsbawn (2015), quando
afirma que os ideias da Revolução tornaram-se importantes referências por refletirem os
anseios de muitos homens. De acordo com o autor:

Libertar o indivíduo das algemas que o agrilhoavam era o seu principal


objetivo: do tradicionalismo ignorante da Idade Média, que ainda
lançava sua sombra pelo mundo, da superstição das igrejas (distintas da
religião "racional" ou "natural"), da irracionalidade que dividia os
homens em uma hierarquia de patentes mais baixas e mais altas de
acordo com o nascimento ou algum outro critério irrelevante. A
liberdade, a igualdade e, em seguida, a fraternidade de todos os homens
eram seus slogans. No devido tempo se tornaram os slogans da
Revolução Francesa. (HOBSBAWN, p. 91, 2015)

Era, afinal, um tempo de crise para os regimes monárquicos da época, que já não
mais podiam sustentar-se no seio de uma classe burguesa em busca de maior
reconhecimento e espaço na estrutura política, e especialmente econômica, e no de um
país cujo povo enfrentava os desafios terríveis impostos pela miséria social.

Nesse mesmo sentido, Singer (2010) nos aponta que “a modernidade sugere um
desamparo ideológico de um mundo pós-consagrado e pós-feudal no qual todas as normas
e valores estão sujeitos ao questionamento. (SINGER, p. 95, 2010)

Apesar de não contar com líderes específicos ou partidos definidos, a Revolução


Francesa apoiou-se na firme estrutura ideológica de um grupo social bastante coerente,
que, segundo Hobsbawn (2015), deu ao movimento revolucionário uma unidade efetiva.
O grupo era a “burguesia”; suas ideias eram as do liberalismo clássico, conforme
formuladas pelos “filósofos” e “economistas”, e difundidas pela maçonaria e associações
informais.

Outrossim, Hobsbawn (2015) destaca o impacto positivo que as promessas da


Revolução imprimiam a esse cenário. De acordo com o autor, a apaixonada crença no
progresso que professava o típico pensador do Iluminismo refletia os aumentos visíveis
no conhecimento e na técnica, na riqueza, no bem-estar e na civilização que podia ver em
toda a sua volta e que, com certa justiça, atribuía ao avanço crescente de suas ideias.
Assim, “o que não se poderia esperar se os remanescentes obstáculos ao progresso, tais
como os interesses estabelecidos do feudalismo e da Igreja, fossem eliminados?”
(HOBSBAWN, p. 95, 2015).
Simmel (1973) salienta que o século XVIII conclamou o homem a que se
libertasse de todas as dependências históricas quanto ao Estado e à religião, à moral e à
economia. A Revolução Francesa é assim a revolução do seu tempo, e não apenas uma,
embora a mais proeminente, do seu tipo. Conforme Hobsbawn (2015), as singulares
mudanças advindas deste movimento alteraram de forma definitiva a forma de nos
organizarmos enquanto sociedade e de vermos o mundo ao nosso redor.

Narrativas como formas de legitimação de um novo sensorium

Está posto que uma Revolução não se faz apenas com ideias, mas também com
palavras. Mais designadamente, por meio da firme construção de discursos. Além disso,
de acordo com Charadeau (2018), o discurso construído em arena política é, por
excelência, um lugar de jogo de máscaras. Toda palavra pronunciada no campo político
deve ser tomada ao mesmo tempo pelo que diz e pelo que não diz. Segundo o autor, “a
palavra jamais deve ser tomada ao pé da letra numa transparência ingênua, mas como
resultado de uma estratégia cujo enunciador nem sempre é soberano. (CHARAUDEAU,
p. 12, 2018)

Por outro lado, ao compreendermos que no campo da política a interdiscursividade


é peça-chave para que uma ideia se estruture e ganhe as ruas, podemos inferir que um
discurso precisa de outros correntes no mesmo tempo e espaço para adquirir relevância e
entrar na disputa. Nesse sentido, o contexto é fundamental.

A legitimidade é outro fator determinante. O que chancela o discurso político não


é necessariamente a verdade, mas elementos que possam seduzir a audiência e com ela
estabelecer identidade. É nesse terreno que se inserem as sementes da retórica e de seus
elementos essenciais: o ethos, o pathos e o logos.

Para Aristóteles (2012), o caráter é o principal meio de persuasão, sendo o ethos


o primeiro elemento da sua teoria. Por conseguinte, a formação ética do enunciador, ou
seja, aquele que fala, determinará, de antemão, os resultados possíveis da narrativa
retórica. Já o pathos está intimamente associado à relação entre aquele que fala e sua
audiência e diz respeito ao conjunto de emoções e sentimentos suscitados e inerentes ao
processo persuasivo. O texto deve assumir diferentes abordagens afetivas e exaltar
diferentes reações emocionais no público, persuadindo através de uma ação mais
psicológica do que lógica ou racional. O logos, por sua vez, apela ao raciocínio
intelectual, evidente ou lógico na proposição de um discurso que obedeça a uma série de
regras argumentativas formais que permitam persuadir o auditório sobre determinada
perspectiva. Os argumentos devem partir de premissas já aceitas ou pré-existentes do
conhecimento do público, de forma a tornarem-se mais persuasivas (Aristóteles, 2012).

Nesse ponto, destacamos as observações de Charaudeau (2018), ao afirmar que a


ação política e discurso político estão indissociavelmente ligados. Além disso, o discurso
necessita de feixes narrativos que o sustentem. Construídas nos cafés, em meio a
conversas de revolucionários ou nos jornais distribuídos ao povo, essas narrativas foram
ganhando corpo e notoriedade, indicando novos modos de pensar o mundo, novas
ideologias. No entanto, a verdade nem sempre esteve no centro destes textos.

Com vistas a destruir a imagem da monarquia, entre outros objetivos, boa parte
destas narrativas davam conta de boatos ou mesmo notícias falsas estruturadas, utilizadas
como ferramentas estratégias de um projeto político de profundas reformas.

Mas, como funcionavam as notícias falsas sobre política na tumultuada França do


século XVIII? Que elementos da retórica mobilizavam? Qual o papel de periódicos
franceses nesse cenário e de que forma, por meio de notícias falsas, ajudaram a construir
novos sentidos e uma nova visão de mundo político naquele período?

A análise destes aspectos exige não só um olhar atento sobre o conteúdo destes
textos e seus recursos retóricos em busca de legitimação, mas principalmente no cenário
histórico e discursivo no qual estavam inseridos.

Jornais como novos veículos de (des)informação em escala no século XVIII

À medida em que a tecnologia da prensa de papel de Gutenberg ia sendo disseminada


e reproduzida, a publicação de livros e jornais tornava-se cada vez mais popular.

Benjamin (1969) nos oferece auxílio para a visada sobre a crescente importância dos
jornais nesse período. De acordo com o autor, em 1824, havia em Paris 47 mil assinantes de
jornal, em 1836, havia 70 mil, em 1846, 200 mil. Nesse contexto, Benjamin (1969) destaca
que a notícia precisava de pouco espaço. Ela é que ajudava o jornal a ter uma aparência nova
a cada dia, principalmente por conta de alterações na paginação. E precisava ser
constantemente renovada. Por isso, “boatos da alta sociedade, intrigas do mundo teatral, (...)
constituíam suas fontes prediletas. Desde os primeiros momentos já se podia perceber essa
elegância barata que se torna tão característica do folhetim. (BENJAMIN, p. 58, 1969)

Desta forma, misturadas à notícia apurada, boatos eram rotineiramente publicados por
periódicos franceses e ingleses para ratificar ou alterar o senso comum e consolidar a
necessidade de mudanças. Produzidas com o objetivo explícito de causar danos a algo ou
alguém, boatos e notícias falsas, no cenário da política, parecem possuir propósito
singular: a destruição de uma imagem, de um ethos que o povo esteja acostumado a
respeitar. Ao mesmo tempo, é a construção sutil de uma ideia contrária, uma vez que, no
contexto das notícias falsas, tão importante quanto o que é dito é o que não é dito.

Apesar de autores como Darnton (2017) afirmarem que as fake news sempre
existiram, torna-se relevante nesse ponto apresentar a distinção conceitual entre false
news e fake news. Notícias falsas – as chamadas barrigas, no jargão jornalístico – por
vezes acabam por compor a história da imprensa, e denotam, especificamente, distorções
informacionais ou modos do fazer jornalístico até meados do século XX. Nesse aspecto,
é possível afirmar que sempre existiram e, por conta da permanente possibilidade de
imprecisão no procedimento jornalístico deste ou daquele profissional, continuarão a
existir.

Para compreendermos o enquadramento das notícias falsas na Inglaterra, no


período que precedeu a Revolução Francesa, destacamos os apontamentos de Darnton
(2017)4, indicando que a produção destes textos teve seu apogeu na Londres do século
XVIII, quando os jornais aumentaram sua circulação. Em 1788, a cidade tinha 10 jornais
diários, 8 que saíam três vezes por semana e 9 semanários, e as notícias que publicavam
costumavam consistir em apenas pequenas notas, formadas por um parágrafo, escritas
pelos chamados “homens do parágrafo”, que se inteiravam das fofocas nos cafés,
escreviam algumas frases em um papel e o levavam aos impressores, que eram também
editores e que normalmente o incluíam no primeiro espaço que tivessem disponível.
Alguns gazeteiros recebiam dinheiro pelos parágrafos; outros se conformavam em
manipular a opinião pública a favor ou contra uma personalidade, uma obra de teatro ou
um livro.

4
DARNTON, Roberto. A verdadeira história das notícias falsas. Publicado na edição online do jornal El
País de 30 de abril de 2017. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/28/cultura. Acesso
em 03.12.22.
Além disso, Darnton (2017)5 explica que, na França, os chamados canards também
desempenharam um papel essencial. Textos na maioria de autoria desconhecida, com
poucas páginas, impressos em material barato e com pouca frequência ilustrados,
consistiam em brochuras vendidas a baixo custo nas esquinas das grandes cidades
francesas, como Paris e Lyon.

Voltados à divulgação de eventos marcantes, como calamidades,


milagres, fenômenos sobrenaturais, nascimentos de monstros e crimes,
os canards surgem ainda antes do lançamento de uma imprensa
periódica na França. Estes opúsculos foram impressos de 1525 até o
século XIX, alcançando seu apogeu nas duas primeiras décadas do
século XVII, quando o número de narrativas criminais chega a
ultrapassar os sempre populares relatos relativos ao universo
religioso.(Darton, 2017)6

Um dos canards de maior circulação na França do século XVIII foi o Le Canard


Enchaîné, um semanário parisiense especializado em “revelações políticas exclusivas”.
Desde a fundação, o jornal é conhecido, segundo seu historiador, Laurent Martin, pelo
não-conformismo, republicanismo, pacifismo, anticlericalismo, antimilitarismo e por
resquícios ainda presentes de um suave anarquismo. Publicado até os dias de hoje, suas
edições denunciam escândalos e alfinetam políticos de forma rotineira.
Periódicos como o Le Canard Enchaîné encontraram na efervescente sociedade francesa
do século XVIII um cenário perfeito para circularem: a insatisfação da burguesia com a
estrutura política e econômica e as precárias condições em que vivia a população. Esse
contexto sem dúvida favoreceu em grande medida a destruição da imagem da corte na
busca por impulsionar profundas reformas. Durante a Revolução, por exemplo, os
ilustradores do jornal inseriam o rosto da impopular rainha Maria Antonieta nas
publicações. Darnton (2017)7 diz que o canard ganhou assim uma nova vida, como
propaganda política intencionalmente falsa. “Embora seu impacto não possa ser medido,
certamente contribuiu para o ódio patológico à rainha, o que levou à sua execução em 16
de outubro de 1793.” (Darnton, 2017)8

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DARNTON, Roberto. A verdadeira história das notícias falsas. Publicado na edição online do jornal El
País de 30 de abril de 2017. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/28/cultura. Acesso
em 03.12.22.
6
Idem
7
Idem
8
Idem
No entanto, pouco antes, às vésperas do movimento, a circulação de rumores
maldosos, ratificados pelos canards, levou à queda do ministério do Conde de Maurepas,
secretário de estado, do rei Luís XVI. A queda do ministério de Maurepas, em 1749,
alterou significativamente o panorama político francês, sendo considerada uma das
causas da Revolução Francesa de 1789.

Todavia, como vimos anteriormente, os jornais franceses não eram os únicos a


trilhar por essas veredas informacionais. Nesse tempo, a Inglaterra também era um terreno
fértil para a publicação de inverdades. Darnton (2017)9 observa que a produção de
"fragmentos falsos, semi-falsos e verdadeiros, porém comprometedores, de notícias
alcançou um pico na Londres do século XVIII, quanto os jornais começaram a circular
entre um público amplo."

Nesse sentido, os cafés, espaços públicos em que eram produzidos esses boatos,
que depois se transformariam em “parágrafos”, também exerciam função fundamental.
Benjamin (1969) nos mostra que o horário e o modo de funcionamento dos cafés
(verdadeiros “celeiros” destes textos) “treinou os redatores para o ritmo do noticiário
jornalístico, antes mesmo que a aparelhagem deste estivesse bem desenvolvida.”
(BENJAMIN, p. 59, 1969)

Ataques à Maria Antonieta

Particularmente sobre Maria Antonieta, outras inverdades também foram


decisivas para a destruição de sua imagem e a produção de um novo sentido político. A
célebre frase “Se não têm pão, que comam brioches!” na verdade nunca foi proferida por
ela e sim por Jean Jacques Rousseau, em um trecho da obra “Confissões”. Contudo, foi
atribuída à rainha de forma tão contundente, que até hoje acredita-se no contrário.

A imprensa inglesa também fortaleceu a construção discursiva, oferecendo


respaldo a essas e a outras acusações, a fim de exaltar a potência da Revolução. Hobsbawn
(2015) nos apresenta um trecho de um editorial publicado pelo jornal The Morning Post
sobre o momento político pelo qual passava a França:

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DARNTON, Roberto. A verdadeira história das notícias falsas. Publicado na edição online do jornal El
País de 30 de abril de 2017. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/28/cultura. Acesso
em 03.12.22.
Um inglês que não se sinta cheio de estima e admiração pela maneira
sublime com que está agora se efetuando uma das mais
IMPORTANTES REVOLUÇÕES que o mundo jamais viu deve estar
morto para todos os sentidos da virtude e da liberdade; nenhum de meus
patrícios que tenha tido a sorte de presenciar as ocorrências dos últimos
três dias nesta grande cidade fará mais que testemunhar que minha
linguagem não é hiperbólica. — The Morning Post, 21 de julho de 1789,
sobre a queda da Bastilha (Hobsbawn, p. 61, 2015)

Fundado em 1772, pelo reverendo Henry Bate, o The Morning Post era uma
sucessão de parágrafos sobre notícias distintas, quase todas falsas. Em 13 de dezembro
de 1784, por exemplo, esse jornal publicou um parágrafo sobre um prostituto que prestava
seus serviços a Maria Antonieta: “A rainha francesa tem afeição pelos ingleses. De fato,
a maioria de seus favoritos procede desse país; mas quem mais prefere é o senhor W. É
sabido que esse cavalheiro tinha sua carteira vazia quando chegou a Paris e, no entanto,
agora leva uma vida cheia de elegância, bom gosto e moda. Mantem suas carruagens,
seus uniformes e sua mesa sem economizar gastos e com todo o esplendor”.

O rei Luís XVI também foi alvo de boatos. Ao assumir o trono em 1774, teve que
lidar com a reputação manchada do avô, o rei Luís XV, que por sofrer de lepra, fora
acusado de matar crianças para banhar-se com o sangue delas.

De acordo com Prado (2013), ao analisarmos um texto, é possível deduzir qual o


contrato de comunicação colocado por um enunciador dirigido a um enunciatário, “um
leitor idealizado e buscado pelo texto, com o qual, em menor ou maior escala, os leitores
efetivos se identificarão”. (PRADO, 2013, p.45). Assim, de acordo com Prado (2013),
os mecanismos de convocação determinam lugares-sujeitos demarcados e específicos
para expectadores e, em um chamado genérico, interpela o leitor a ocupar um determinado
papel discursivo.

Por outro lado, considerando o cenário de ruptura de confiança política como um


ambiente propício à disseminação de notícias falsas, torna-se relevante observar a
estrutura narrativa destes textos, que parece encaixar-se perfeitamente a um dado contexto
histórico-social e apresentar recursos de retórica que seduzem e convocam a audiência,
combinando informação noticiosa aparente com apelos da comunicação política-
simbólica ao cidadão comum francês.
O desfecho vivido pela monarquia francesa em meio à Revolução pode ter sido
ademais construído pelos afetos causados na população diante dos boatos publicados nos
jornais. A fomentação do ódio ao rei e à rainha, apresentados nesses textos como bons
vivants em meio à miséria do povo, incendiou desejos de derrubada e de transformação.

Levando-se em conta que a potência convocatória só pode se realizar por meio da


cuidadosa construção de uma narrativa que apresente elementos performativos da
linguagem capazes de persuadir a audiência, a utilização de recursos de retórica pode, em
grande parte das vezes, se fazer necessária para o alcance deste objetivo. Nesse caso, os
conceitos de ethos, pathos e logos, propostos por Aristóteles (2012), podem ser aqui
devidamente engendrados na produção de uma trama comunicacional persuasiva
necessária à convocação, quer seja por meio de símbolos linguísticos ou visuais. Para
Aristóteles (2012), o caráter é o principal meio de persuasão, sendo o ethos o primeiro
elemento da sua teoria de persuasão.

Ao analisarmos os elementos retóricos utilizados nas falsas narrativas sobre a


monarquia francesa, é possível considerar por um lado o suposto ethos do enunciatário,
nesse caso, os jornais em foco que, apesar de serem conhecidos como difusores de boatos,
desfrutavam de um lugar de fala privilegiado na sociedade francesa do século XVIII. Por
outro lado, havia um ethos a ser destruído, aquele edificado pelas figuras monarcas,
alçadas, por séculos, a um patamar olimpiano de honra e nobreza.

Ainda no enquadramento da análise, logos e pathos parecem misturar-se,


especialmente quando verificamos que não há argumentos que prescindam totalmente da
importante capacidade de afetar a audiência.

No caso das notícias falsas produzidas contra os monarcas, a apresentação de um


caráter absolutamente questionável constitui-se, ao mesmo tempo, em argumento
irrefutável e elemento de comoção da audiência, tornando o efeito final irreversível. O
apelo à emoção mostra-se explícito. Nesse sentido, o uso do pathos tem destino certo e
se torna possível mediante meticuloso conhecimento da audiência à qual se destina a
mensagem persuasiva, considerando crenças, opiniões, valores, personalidades, entre
outros.

Considerações Finais
A própria história oferece testemunho sobre a utilização de boatos e de notícias
falsas na produção de sentidos, especialmente quando inseridas em discursos políticos.
Narrativas entrelaçadas parecem constituir tijolo a tijolo estes discursos, os quais, uma
vez legitimados e aceitos pelo povo, representam ideias e visões de mundo difíceis e, por
vezes e em um dado tempo, irreversíveis.

Vimos que, no período de preparação da Revolução Francesa, estas narrativas


atingiram seu mais caro objetivo: definir, na mente dos cidadãos, a necessidade de
mudanças fundamentais em meio a um suposto descalabro ético e moral apresentados por
elas.

A realidade vivida pela população acolhia de bom grado esses falsos conteúdos e
as terríveis necessidades pelas quais passava o povo francês os legitimavam de forma
inconteste. Com um contexto favorável e a identificação imediata dos enunciatários, estas
narrativas solaparam qualquer possibilidade de apoio à monarquia, uma vez que situações
de crise, futuros incertos e choques coletivos representam terreno fértil para a propagação
de notícias falsas. (RECUERO, 2021) 10

Diante disso, o papel do cidadão comum no processo e nos resultados da


Revolução Francesa parecem espelhar muito bem essa proposição e sinalizam que as
falsas notícias alcançaram, assim, seu necessário grau de legitimidade para a conquista
de seus objetivos. Nesse sentido, salientamos as ideias de Charaudeau (2018) ao indicar
que “a legitimidade social é importante porque dá a toda instância de palavra uma
autoridade de dizer”. (CHARAUDEAU, p. 65, 2018).

Outrossim, considerando o conceito de contrato comunicacional, apresentado por


Prado (2013), os enunciados analisados nos levam a inferir sobre que “leitor idealizado”
é buscado por essas narrativas e que irá por elas sentir-se representado. Falsas narrativas,
nesse sentido, oferecem pistas quanto ao contrato de comunicação proposto pelos
enunciatários em questão. Conscientes dos valores com os quais seus eleitores se
identificam, apresentam uma mensagem que possa mantê-los no cenário de sedução e
envolvimento, ainda que os conteúdos não sejam absolutamente verdadeiros. Este

10
RECUERO, Raquel e SOARES Felipe B. O Discurso Desinformativo sobre a Cura do COVID-19 no
Twitter: Estudo de caso. Revista E-Compós. Disponível em https://www.e-compos.org.br/e-compôs.
Acessado em 22/11/22.
também parece representar um lugar importante e possível para a utilização de recursos
retóricos que potencializem os ideais de persuasão.
Entretanto, as narrativas de nada valeriam se não pudessem aproveitar-se de um
mecanismo mediador forte e, nesse ponto, os jornais passam não só a compor o quadro
como a defini-lo em larga escala, o que nos leva a compreender o papel dos meios de
comunicação na disseminação de notícias falsas. Responsáveis em grande medida pela
produção de sentidos na Modernidade, especialmente em um tempo de efervescência
social, econômica e política, os jornais trataram de sedimentar seu poder de não só
produzir informação e ideias e legitimá-la, mas também, e principalmente, de vendê-las,
em uma espécie de dupla missão. Nesse sentido, é possível concordar com Altares (2018)
sobre o fato de “os dividendos políticos das notícias falsas serem elevado e elas sempre
que necessitarem de um bom caldo de cultivo.” (Altares, 2018)11

Assim, as notícias falsas demonstram ser, portanto, potentes ferramentas


estratégicas, notadamente na construção de discursos político-ideológicos de uma época.
Isto nos leva às palavras de Charaudeau (2018), ao afirmar que precisamos deixar de
acreditar que são as ideias que governam o mundo. De acordo com o autor, as ideias
“apenas valem pela maneira como são transmitidas de uns para outros, pela maneira como
circulam entre os grupos e como influenciam uns e outros, ganhando em contrapartida
sua consistência”. (Charaudeau, p. 46, 2018). Nos tempos da Revolução Francesa ou no
contemporâneo, estas afirmações mostram-se capazes de se confirmarem por si só.

Referências:

ALTARES, Guillermo. A longa história das notícias falsas in jornal El País. Disponível
em https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/08/cultura/1528467298_389944.html.
Acesso em 03.12.22.
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse
Alberto e Abel do Nascimento Pena. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
BENJAMIN, Walter. Sociologia. Rio de Janeiro, Zahar, 1969.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. São Paulo: Contexto, 2018.

11
ALTARES, Guillermo. A longa história das notícias falsas in jornal El País. Disponível em
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/08/cultura/1528467298_389944.html. Acesso em 03.12.22.
DARNTON, Roberto. A verdadeira história das notícias falsas. Publicado na edição
online do jornal El País de 30 de abril de 2017. Disponível em
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/28/cultura. Acesso em 03.12.22.
HOBSBAWN, Eric J. A Era das Revoluções 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
MENESES, João Paulo. Sobre a necessidade de conceptualizar o fenómeno das fake
news (CECS – Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade). Disponível em
http://obs.obercom.pt/index.php/obs/article/view/1376/pdf. Acessado em 15/05.22.
PRADO, J. L. A. Convocações biopolíticas dos dispositivos comunicacionais. São
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