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RIBEIRO, Djalmila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.

A autora decide começar a abordagem através do feminismo negro. A autora apresenta o


discurso de Truth que, no século XIX, criticava a universalização da categoria mulher: há várias
formas de ser mulher. A autora destaca que mulheres negras com discursos feministas foram
inviabilizadas por muito tempo. Truth tecia críticas à constatação de que apenas mulheres de
classe social privilegiada pareciam ganhar visibilidade no movimento pelo sufrágio feminino.

“A voz da ativista não traz somente uma disfonia em relação à história dominante do
feminismo, mas também a urgência por existir e a importância de evidenciar que mulheres
negras historicamente estavam produzindo insurgências contra o modelo dominante e
promovendo disputas de narrativas.” (p. 16).

A autora usa Lélia González para explicitar como se construiu, por muito tempo, uma
hierarquização dos saberes a partir da classificação racial: o privilégio social está
intrinsecamente ligado a um privilégio epistêmico. Ela fala de uma ciência pautada em uma
ciência eurocristã. Lélia parece criticar aquelas que apenas buscam reproduzir um feminismo
branco e europeu.

Ela também utiliza bell hooks para demonstrar como as mulheres negras foram construídas
como ligadas ao corpo e desprovidas do “pensar”, explicitando a fusão entre sexismo e
racismo.

Lind Alcoff ressalta a importância de nos atermos à identidade social para evidenciar o projeto
de colonização do conhecimento. Ela também ressalta como essas lutas identitárias estão
inclusas na luta de classes.

“Ao persistirem na ideia de que são universais e falam por todos, insistem em falarem pelos
outros, quando, na verdade, estão falando de si ao se julgarem universais.” (p. 20).

• Mulher Negra: o outro do outro

Ao cunhar a categoria Outro, Simone de Beauvoir, utilizando da dialética hegeliana, afirma


que a relação que os homens mantém com as mulheres é a de submissão e dominação. Assim,
a filósofa estaria afirmando que a mulher estaria sendo definida não a partir de si mesma, mas
a partir do homem. A autora demonstra como o Mesmo e o Outros ao categorias presentes
desde a as sociedades antigas. Parece que se nutre uma hostilidade a qualquer outra
consciência.

“Para a filósofa francesa, a mulher foi constituída como o Outro, pois é vista como um objeto,
na interpretação que Beauvoir faz do conceito do ‘em si’ sartreano. [...] Se, para Simone de
Beauvoir, a mulher é o Outro por não ter reciprocidade do olhar do homem, para Grada
Kilomba, a mulher negra é o Outro do Outro, posição que a coloca num local de mais difícil
reciprocidade.” (p. 23).

Discordando da filósofa francesa, Kilomba afirma que a mulher branca, por ser branca, possui
um caráter oscilante, mas a mulher negra está sempre condicionada a ser o Outro. A autora
explicita que as mulheres negras são as que recebem os menores salários no Brasil.

“[...] É preciso focar nessa realidade, ou como as feministas negras afirmam há muito: nomear.
Se não se nomeia uma realidade, sequer serão pensadas melhorias para uma realidade que
segue invisível.” (p. 25).
A autora destaca que na década de 1980 muitas mulheres negras foram esterilizadas
forçadamente.

Simone de Beauvoir entende o Ser como tornar-se.

“Logo, definir-se é um status importante de fortalecimento e de demarcar possibilidades de


transcendência da norma colonizadora.” (p. 27).

Enquanto as mulheres brancas gritavam contra o “mito da fragilidade feminina”, afirmando


que precisavam tomar as ruas e trabalhar, as mulheres negras já trabalhavam há tempos, não
sendo tratadas como frágeis.

Djalmila destaca a importância de se lutar contra todas as formas de opressão.

“Carneiro nos mostra que o racismo determina as hierarquias de gênero em nossa sociedade,
sendo assim necessário que os movimentos feministas pensem maneiras de combater essa
opressão, caso contrário, também contribui por manter as relações entre as mulheres
hierarquizadas reproduzindo o discurso hegemônico.” (p. 29).

O feminismo negro estaria disposto a lutar contra todas as formas de opressão. Audre Lorde
destaca a importância de não hierarquizarmos as opressões. A importância que Audre Lorde
dá para a luta contra todas as opressões nos lembra bastante o que Nilma afirma como
necessário no final da obra Movimento Negro Educador.

• O que é lugar de fala?

A autora utiliza a palavra discurso no sentido foucaultiano, isto é, como um sistema que
estrutura determinado imaginário social. Dialogando com o modo como o termo “lugar de
fala” era usado pela imprensa popular, a autora nos traz a constatação de que, ao trabalhar
com diferentes públicos, a imprensa constrói sua credibilidade de maneiras distintas.

“Percebemos, então, a tentativa de analisar discursos diversos a partir da localização de


grupos distintos e mais, a partir das condições de construção do grupo no qual funciona,
existiria uma quebra de uma visão dominante e uma tentativa de caracterizar o lugar de fala
da imprensa popular de novas formas. Interessante notar as similaridades com o que iremos
nos focar.” (p. 33).

O termo teria surgido em discussões feministas, mas sua origem é imprecisa. A autora nos
apresenta como Patricia Hill Collins que é uma das principais teóricas do “ponto de vista
feminista” (standpoint; termo que também é constantemente traduzido como lugar de fala) ,
pensando a intersecção das diferentes desigualdades e afirmando que há diferentes formas de
ser mulher. O “ponto de vista feminista” teria como base as experiências historicamente
compartilhadas e baseadas em grupos.

“quando falamos de pontos de partida, não estamos falando de experiências de indivíduos


necessariamente, mas das condições sociais que permitem ou não que esses grupos acessem
lugares de cidadania. [...] Não se trataria de afirmar as experiências individuais, mas de
entender como o lugar social que certos grupos ocupam restringem oportunidades.” (p. 35).

“Seria preciso entender as categorias de raça, gênero, classe e sexualidade como elementos da
estrutura social que emergem como dispositivos fundamentais que favorecem as
desigualdades e criam grupos em vez de pensar essas categorias como descritivas da
identidade aplicada aos indivíduos.” (p. 35).
“O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir. Pensamos lugar de
fala como refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes consequente da
hierarquia social. [...] Quando falamos de direito à existência digna, à voz, estamos falando de
locus social, de como esse lugar imposto dificulta a possibilidade de transcendência.
Absolutamente não tem a ver com uma visão essencialista de que somente o negro pode falar
sobre racismo, por exemplo (p. 37).

Collins tece duras críticas àqueles que buscam pensar isso apenas na questão individual,
porque estariam ignorando as experiências comuns (altas taxas de encarceramento de homens
negros).

A autora destaca como as medidas que prejudicam os grupos invisibilizados somente ganha
atenção quando passa a se estender aos demais grupos. Um indivíduo ser negro não quer dizer
que ele refletirá criticamente sobre o racismo, mas pode até mesmo negar a existência dele.
Lembremos de Fanon e Albert Memmi.

“Por isso, seria igualmente um equívoco dizer que essa teoria perde validade pela existência
de indivíduos reacionários pertencentes a grupos oprimidos. E assim seria porque Collins não
está negando a perspectiva individual, mas dando ênfase ao lugar social que ocupam a partir
da matriz de dominação.” (p. 39).

“Seria mais responsável e ético discutir o fato de que a cada 23 minutos um jovem negro é
assassinado no Brasil, o que mostra que indivíduos negros compartilham experiências de
violência estatal pelo fato de pertencerem ao grupo negro (locus social), do que perder energia
em falar das experiências individuais distintas como se isso não fosse próprio do humano.” (p.
39).

Promover uma multiplicidade de vozes pretende quebrar o discurso supostamente universal.

Lembremos das críticas de Simas, Nilma, Luiz Rufin, etc. ao pensamento monocultural e
monorracional.

Luiza Barros desconstrói a ideia de uma hierarquia das opressões, afirmando que há
opressões sofridas de “lugares diferentes” e reforça que mulher é uma categoria histórica e
socialmente determinada. A partir da constatação que essas formas de opressão são
estruturais, entende-se a necessidade de não dividi-las, mas entender que é preciso lutar
contra elas de forma indissociável.

Spivak, intelectual indiana, afirma a dificuldade dos franceses em pensar esse Outro como
sujeito, porque pensam que o Sujeito estaria ligado à Europa: eles têm a Europa como centro
de análise.

“Essa citação de Spivak nos ensina sobre como grupos subalternos não têm direito a voz, por
estarem num lugar no qual suas humanidades não foram reconhecidas. [...] Mas, ao mesmo
tempo, Spivak enxerga a necessidade da tarefa intelectual e política para a mulher. Para a
autora, o postulado subalterno evidencia um lugar silenciado.” (p. 42).

Collins e Kilomba veem como problemática a afirmação de Spivak se esse silêncio do


subalterno for tomada como uma declaração absoluta que afirmaria uma incapacidade de
transcender.

“Os saberes produzidos pelos indivíduos de grupos historicamente discriminados, para além de
serem contra discursos importantes, são lugares de potência e configuração do mundo por
outros olhares e geografias. Spivak, entretanto, se posiciona de forma a criticar a romantização
dos sujeitos que resistem.” (p. 43).

Através da figura de Anastácia, mulher negra escravizada que era formada a permanecer com
uma máscara que tampava sua boca, a autora aborda assuntos que atravessam o
silenciamento causado pela normativa.

“Necessariamente, as narrativas daquelas que foram forçadas ao lugar do Outro, serão


narrativas que visam trazer conflitos necessários para a mudança. O não ouvir é a tendência a
permanecer num lugar cômodo e confortável daquele que se intitula poder falar sobre os
Outros, enquanto esses Outros permanecem silenciados.” (p. 44).

“A tomada de consciência sobre o que significa desestabilizar a norma hegemônica é vista


como inapropriada ou agressiva porque aí se está confrontando poder.” (p. 45).

• Todo Mundo tem Lugar de Fala

“Um dos equívocos mais recorrentes que vemos acontecer é a confusão entre lugar de fala e
representatividade. Uma travesti negra pode não se sentir representada por um homem
branco cis, mas esse homem branco cis pode teorizar sobre a realidade das pessoas trans e
travestis a partir do lugar que ele ocupa.” (p. 47).

“[...] Falar a partir de lugares é também romper com essa lógica de que somente os
subalternos falem de suas localizações, fazendo com que aqueles inseridos na norma
hegemônica sequer se pensem. [...] pensar lugar de fala é uma postura ética, pois ‘saber o
lugar de onde falamos é fundamental para pensarmos as hierarquias, as questões de
desigualdade, pobreza, racismo e sexismo’.” (p. 47).

“Assim, entendemos que todas as pessoas possuem lugares de fala, pois estamos falando de
localização social. E, a partir disso, é possível debater e refletir criticamente sobre os mais
variados temas presentes na sociedade. O fundamental é que indivíduos pertencentes ao
grupo social privilegiado em termos de locus social consigam enxergar as hierarquias
produzidas a partir desse lugar e como esse lugar impacta diretamente na constituição dos
lugares de grupos subalternizados.” (p. 48).

“Estamos dizendo, principalmente, que queremos e reivindicamos que a história sobre a


escravidão no Brasil seja contada por nossas perspectivas também e não somente pela
perspectiva de quem venceu, para parafrasear Walter Benjamin, em Teses sobre o conceito de
história. Estamos apontando para a importância de quebra de um sistema vigente que
invisibiliza essas narrativas.” (p. 48).

Utilizando uma citação de Grada Kilomba, a autora explicita como a epistemologia dominante
inválida outras formas de conhecimento.

Episteme: conhecimento. Logos: ciência. Epistemologia: ciência da aquisição de


conhecimento. Há uma tentativa de silenciar as vozes negras que buscam transgredir com a
epistemologia dominante, deslegitimando qualquer produção de conhecimentos advinda da
crítica destas vozes com relação à epistemologia dominante.

“Não há aqui a imposição de uma epistemologia de verdade, mas um chamado à reflexão. As


obras apresentadas pelas diversas autoras desvelam as opressões sofridas por diferentes
grupos conforme elas continuam a agir de modo a restringir direitos. Não é um dever ser, mas
há aí um desvelamento dos processos históricos que colocam determinados grupos em
posições subalternas.

Pensar lugar de fala seria romper com o silêncio instituído para quem foi subalternizado, um
movimento no sentido de romper com a hierarquia, muito” (p. 50-51).

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