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Resenha crítica do artigo “Emotion and Evil in Kant”, de Michael Rolf

Este trabalho consiste numa resenha crítica a respeito do artigo “Emotion and Evil in
Kant”, de Michael Rolf. O objetivo é acompanharmos os passos desenvolvidos pelo autor
para defender seu argumento de que Kant nos apresenta uma teoria cognitivista fraca em
relação ao papel das emoções na ética kantiana. A ideia central é de que as emoções não estão
ligadas diretamente aos julgamentos morais, já que uma ação moral é unicamente aquela que
obedece ao dever moral dado pela nossa racionalidade. Neste ponto, as emoções serviriam
somente para nos desviar da moralidade racionalmente entendida, que virá a ser aquilo que
Kant chama de mal. Por outro lado, existem emoções que podem sim desempenhar um papel
positivo, porém esses sentimentos são uma resposta aos julgamentos morais, ou seja, eles têm
um papel indireto na nossa tomada de decisão.
O texto começa, então, com um balanço do que seria uma leitura “comum” de Kant
no que se refere às emoções. Rolf mostra que, nessa leitura, os sentimentos, desejos e
inclinações são “elementos puramente não-racionais da nossa natureza”, que concorrem para
“embaçar nosso julgamento, limitar nossa liberdade, minar nossa prudência e dominar nossa
motivação moral”. Essas emoções, ligadas à nossa natureza animal, estariam em
contraposição com a nossa faculdade racional, única responsável por nossa moralidade que,
em última instância, se apresenta como um controle da racionalidade sobre nossa natureza
sensível.
Segundo Rolf, essa interpretação da ética kantiana, que praticamente divide nossa
subjetividade em natureza sensível e faculdade racional, sendo a moralidade uma luta da
última para controlar a primeira, está baseada em vários textos bem conhecidos do filósofo de
Königsberg. Ele inicia citando a primeira sessão da ​Fundamentação,​ onde o famoso exemplo
do filantropo ilustra a ideia de que uma ação só tem valor moral quando motivada pelo dever
à lei moral, e não por uma inclinação ou simpatia pela pessoa que necessita de ajuda. Nas
palavras de Kant: “é precisamente aí que se estriba o valor do caráter, que é moralmente, sem
qualquer comparação, o mais alto, e que consiste em fazer o bem, não por inclinação, mas por
dever” (2006, p. 26). Sendo que Rolf lembra que a simpatia é uma inclinação como qualquer
outra, ou seja, não é portadora de valor moral. A explicação para essa ausência de valor moral
das inclinações pode ser buscada na ​Crítica da Razão Prática​, onde encontramos a ideia de
que as inclinações são “cegas e servis", além de serem incapazes de nos trazer felicidade, pois
quando seguidas produzem “um vazio maior do que aquele que pensamos ter preenchido”.
De acordo com essa linha interpretativa, teríamos que Kant apresenta uma teoria
não-cognitivista das emoções, ou seja, elas fazem parte da nossa natureza sensível e estão em
oposição a nossa faculdade racional quando se trata da moralidade.
A seguir, Rolf apresenta outras possíveis interpretações, que se colocariam no campo
de uma teoria cognitivista das emoções. De uma forma geral, uma interpretação cognitivista
enxerga as emoções como uma forma de suporte à razão no desenvolvimento de ações
morais, onde a consciência do dever nos levaria a “moldar nossa natureza sensível de forma
que inclinações como a simpatia nos ajudem a identificar e realizar ações com valor moral”.
Rolf divide o campo dessa interpretação em “teoria cognitivista forte”, que vê as inclinações
como percepções ou reações à justeza de uma ação, funcionando da mesma forma que o
dever como motivação para a ação moral; e “teoria cognitivista fraca”, que vê as inclinações
não como reações diretas à justeza de uma ação, mas como reações indiretas a julgamentos
sobre a justeza das ações. Nessa segunda interpretação, da teoria cognitivista fraca, fica
mantida a posição do dever como único móbil de valor moral para as ações, porém,
acrescenta a possibilidade de que inclinações bem cultivadas venham a auxiliar na
identificação de ações que requerem um julgamento moral.
Rolf se coloca, então, como defensor dessa teoria cognitivista fraca, onde as emoções
se apresentam como respostas dos julgamentos morais, não sendo elas próprias as julgadoras,
ou as responsáveis por apontar uma escolha moralmente válida. Porém, segundo ele, essas
emoções estão relacionadas não necessariamente ao que nos faz agir corretamente, mas ao
que nos faz agir de forma errada, ou seja, estão relacionadas ao mal radicado na natureza
humana que, segundo Kant, se expressa quando damos prioridade ao amor próprio em
relação à lei moral na construção de nossas máximas. Para entendermos este argumento,
precisamos antes definir o que Kant entende por emoções, principalmente a diferenciação que
ele faz entre afetos e paixões. Rolf coloca, então, que “as principais diferenças entre afetos e
paixões, na visão kantiana, são que os afetos são sentimentos de curta duração e privados de
pensamento, enquanto paixões são desejos de longa duração que refletem pensamentos”.
Dessa forma, apenas os afetos entrariam na conta das inclinações “cegas e servis”, se
ajustando à ideia de que são irracionais e capazes de embaçar nosso julgamento moral. As
paixões, por outro lado, entrariam em relação com nossa racionalidade, por lançarem raízes
mais profundas na nossa subjetividade e se estenderem no tempo. E é justamente por essa
maior profundidade e intimidade com a razão que as paixões seriam uma maior ameaça à
liberdade do que os afetos, já que “as paixões resultam de uma escolha ou máxima de
escravizar a si mesmo (isto é, sua razão) a alguma inclinação ou inclinações”. Na Introdução
à Doutrina da Virtude (2008, p. 250), Kant explica por que as paixões estão mais relacionadas
ao mal que os afetos:

“Afetos e paixões são essencialmente diferentes uns dos outros. Os afetos concernem ao
sentimento, na medida em que, precedendo a reflexão, impossibilitam esta ou a tornam mais
difícil. (...) Uma paixão é um sentimento sensível que se transformou numa inclinação
duradoura ou permanente (por exemplo, o ódio em contraposição à ira). A calma com que
alguém se entrega a ele admite reflexão e permite que a mente construa princípios sobre ele e,
assim, se a inclinação se ilumina sobre alguma coisa contrária à lei, incuba-la, enraiza-la
profundamente e assim erigir o mal (como algo premeditado) em sua máxima. E o mal é
então propriamente mal, isto é, um verdadeiro vício”.

Rolf coloca então que, para Kant, “o mal consiste na propensão natural dos seres
humanos em subordinar a lei moral aos incentivos do amor próprio ou inclinações”. Ou seja,
não são as paixões (ou inclinações) em si que representam o mal, mas a nossa incapacidade
de subordiná-los à lei moral dada pela razão. É partindo desse conceito, de mal como
incapacidade de subordinar as paixões e inclinações à lei moral, que podemos identificar
diferentes graus dessa maldade (Kant identifica três graus), além da possibilidade de uma
“mudança no coração”, isto é, uma mudança na disposição do entendimento para que a lei
moral ganhe preponderância sobre as paixões ou inclinações nas máximas de nossa ação.
Na terceira parte do artigo, Rolf volta sua atenção para o conceito de virtude, que é
justamente essa decisão de priorizar a lei moral sobre as inclinações. Ele usa esse conceito
para deixar ainda mais clara a posição de que as inclinações não são um mal em si, já que
temos uma espécie de “fragilidade natural em nossos corações” que faz com que se
apresentem essas inclinações, que são como obstáculos que devemos transpor para agir
moralmente. De certa forma, podemos entender a moralidade como uma eterna luta entre os
deveres éticos e as inclinações. A virtude e o vício aparecem na nossa disposição em seguir
um ou outro caminho. Como diz Rolf, “virtude é a força de nos opormos a nossa propensão
natural para o mal - isto é, não nos opormos às inclinações em si, mas à nossa tendência em
priorizar a satisfação das inclinações sobre a lei moral. (...) Vício, por outro lado, não é
apenas uma fraqueza em cumprir o dever, mas sim a adoção de máximas que são opostas à lei
moral”. Um bom exemplo utilizado por Rolf para ilustrar essa questão é a oposição entre
inveja e benevolência. Como vemos na ​Doutrina da Virtude​, a benevolência é um dos
deveres morais. Ora, se a inveja consiste no desgosto experimentado pela felicidade alheia,
fica claro que ela se opõe frontalmente ao dever moral de amar os outros seres humanos e
buscar sua felicidade. Dessa forma, sempre que se apresentar uma situação que envolva
inveja e a possibilidade de ajudar o outro, teremos essa luta interna, onde o virtuoso
conseguirá suprimir sua inveja em favor da lei moral de fazer o bem e contribuir para a
felicidade dos outros. Assim, fica claro que não é a inveja em si um mal, mas a disposição de
priorizá-la em detrimento da lei moral.
Essa situação, de constante luta e atenção interna, se aplica, inclusive, na presença de
inclinações que seriam aparentemente positivas. Rolf cita o exemplo do desejo de vingança
como uma paixão que é análoga ao desejo por justiça, situação em que se entrelaçam
máximas da razão e máximas do amor-próprio. Ele explica assim essa relação:

“O desejo de estar em um Estado e em relação com outros seres humanos, de tal forma que
cada um possa ter a parte que a justiça lhe confere, certamente não é uma paixão, mas apenas
o terreno determinado da livre escolha através da razão prática. Mas a excitação desse desejo
através do simples amor-próprio, isto é, apenas para sua própria vantagem, não para o
propósito da legislação para todos, é o impulso sensível do ódio, não o ódio à injustiça, mas o
ódio àquele que é injusto com a gente. Já que esta inclinação (de perseguir e destruir) está
baseada em uma ideia, embora reconhecidamente uma ideia aplicada de forma egoísta, ela
transforma o desejo de justiça contra o ofensor na paixão por retaliação, que é
frequentemente violenta ao ponto da loucura”.

Dessa forma, sempre que invertemos a procura pelo bem geral (lei moral) pelo que
Rolf chama de amor-próprio (eu diria uma finalidade egoísta), encontramos a possibilidade
de sucumbir aos fins propostos pelas paixões. E é aqui que os afetos também podem ter um
papel maior, e mais negativo, do que simples emoções passageiras que turbam nosso juízo
moral. Como coloca Rolf, “dada nossa propensão para o mal como descrita por Kant, afetos
proporcionam uma abertura para que o amor-própio desenvolva paixões”, que podem entrar
em concorrência com a lei moral em nossa disposição subjetiva e fazer com que o vício
supere a virtude. Dessa forma, Rolf sustenta que “Kant pode ser lido como tendo uma visão
cognitivista fraca até mesmo sobre (alguns) afetos”. Isso significa que paixões e afetos não
são os responsáveis por ações morais (essas são apenas aquelas guiadas pela lei moral e os
deveres de virtude), mas representam um papel negativo no momento de decisão a respeito
das ações, ou seja, se apresentam como a alternativa que pode nos desviar da virtude e
encaminhar para escolhas relacionadas ao mal.
Essa teoria cognitivista fraca que Rolf percebe na ética kantiana, está ligada, como
vimos pelos exemplos, ao que ele chama “caráter social do mal”. Isso acontece porque é na
arena social, na nossa relação com outros seres humanos, que se apresentam as situações que
podem servir como gatilho para nossa propensão ao mal. É nesse sentido que Kant fala a
respeito da longa caminhada humana na direção de nos tornarmos seres morais, isto é, do
processo de cultivo da nossa razão para que ela se sobreponha, primeiro, aos instintos, depois
às inclinações (afetos e paixões), para que sejamos cada vez mais livres nas escolhas e
possamos promover um “mundo moral”, como coloca Rolf. Neste processo de cultivo da
razão, também está inserido o domínio de certas inclinações e o “cultivo de certos
sentimentos e inclinações que são propícios ao trabalho da razão, enquanto se eliminam que
entram em conflito com ela (especialmente afetos e paixões)”.
Na última parte do artigo, Rolf fala, então, a respeito desses sentimentos e inclinações
que, segundo Kant, representam um papel positivo na vida moral. Ele começa por aquilo que
Kant chama de “sentimento moral”. Na Doutrina da Virtude, Kant se refere assim a esse
sentimento:

“É a suscetibilidade de sentir prazer ou desprazer meramente a partir de estar ciente de que


nossas ações são compatíveis ou contrárias à lei do dever”. ( 2008, p. 242)

Essa descrição é importante porque mostra bem o que Rolf entende por uma “teoria
cognitivista fraca” presente na ética kantiana. Ao longo do texto, vimos que os sentimentos
(afetos e inclinações) que prejudicam nossa capacidade de julgamento, ou que apresentam ao
nosso julgamento alternativas opostas à lei moral, estão relacionados ao mal presente na
nossa natureza e que se manifesta na arena social em que vivemos. Isso significa que esses
sentimentos estão presentes, ou exercem sua influência sobre nós, antes do ato do julgamento,
tendo a capacidade de nos desviar do cumprimento do dever moral ditado pelas máximas
desenvolvidas pela razão.
Já os sentimentos que devemos cultivar, dos quais o sentimento moral é o exemplo
central, são aqueles que provamos após o julgamento, ou seja, são o resultado das ações que
tomamos de seguir as máximas da lei moral ou nos deixarmos levar pelas máximas egoístas
influenciadas pelas paixões. Dito de forma simples, é o prazer que sentimos em saber que
agimos certo (de acordo com a lei moral), ou o desprazer que provamos ao agir contra essa lei
do dever.
Isso significa que esses sentimentos (Rolf cita alguns: amor pelos outros seres
humanos, respeito por si mesmo, satisfação com o bem-estar dos outros, etc...), que são
sentidos como uma resposta interior ao cumprimento do dever moral, devem ser cultivados,
pois a sua experiência (sentir esses sentimentos) significa que estamos seguindo uma
moralidade de acordo com os deveres ditados pela razão.

BIBLIOGRAFIA

KANT, Immanuel. ​Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos​. São


Paulo : Martin Claret, 2006.

KANT, Immanuel. ​A Metafísica dos Costumes​. Bauru : Edipro, 2008.

ROHLF, Michael. “EMOTION AND EVIL IN KANT.” ​The Review of Metaphysics,​ vol. 66,
no. 4, 2013.

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