A importância da fenomenologia: o que a amabilidade e a frieza humana
podem nos ensinar sobre ética? In: WILLIGES, Flavio. FISCHBORN, Marcelo. COPP, David. (Orgs.). O lugar das emoções na ética e na metaética. Pelotas: NEPFIL Online, 2018.
1. A Fenomenologia entendida como descrição do caráter sentido da experiência vivida é
importante para os campos ou disciplinas da ética, psicologia moral, epistemologia e filosofia da mente. 2. A maioria dos especialistas em ética são racionalistas e pensam que nossos conceitos morais e nossa aderência a normas morais pode estar fundada na razão. Sentimentos como a solidariedade e a compaixão podem, às vezes, nos ajudar a fazer o que é nosso dever moral fazer, mas o motivo do puro dever, da consciência, é considerado (por muitos kantianos e outros racionalistas), em princípio, suficiente por si só para motivar uma ação ou comportamento e, em qualquer caso, o que conta como certo ou errado é considerado uma questão de razão (prática) e não depende constitutivamente de quaisquer emoções ou sentimentos (ordinários), os quais o racionalista considera pelo menos como tipicamente pouco fiáveis quando se trata de fazer as escolhas e ações moralmente certas. 3. [Mas] Se alguém é amoroso, amável, parece ou age com afetividade para com os outros, isto no mínimo sugere que esse alguém ou suas ações motivadas possuem uma qualidade que podemos chamar apropriadamente de afetividade. Ora, esta ideia de amorosidade pode ter se originado como uma metáfora em conexão com o calor e o frio, físico ou sensorial. No entanto, a ideia de amabilidade pessoal é tomada hoje como uma metáfora frívola. Desculpe-me, mas quando dizemos que alguém se sente amável para com outra pessoa ou é uma pessoa amorosa, o que dizemos pode ser literalmente verdadeiro. 4. O primeiro ponto que deve ser esclarecido aqui é que o tipo de amabilidade que estamos falando é moralmente bom ou louvável. Isto é algo que Kant e muitos kantianos negaram, alegando que a única fonte de bondade moral é uma vontade conscientemente boa. 5. Um senso de dever pode muito bem ser capaz de nos levar a fazer alguma coisa (embora isso possa exigir-nos mais e até mesmo uma análise fenomenológica), mas a compaixão amável compreensivelmente também dá origem a várias ações situacionalmente-relevantes, e embora esse seja um fato amplamente aceito e óbvio, ele é um daqueles fatos que o kantismo tendeu a minimizar ou negar, com base nos resultados não intuitivos abordados anteriormente. 6. Não existe apenas o fenômeno de pessoas agirem de modo amável e de estarmos cientes de tais fatos, mas também de sermos tocados pela amabilidade dos outros (outros agentes). Mas há também o fato correspondente, podemos tornar-nos frios na/ou pela indiferença ou crueldade (novamente a amabilidade entra em cena) de uma determinada pessoa ou agente. Estas reações ocorrem através de processos de empatia, processos nos quais Hume foi a primeira pessoa (ao menos no Ocidente) a descrever (embora ele não tivesse à disposição o termo “empatia.) 7. A empatia ocorre quando, como Bill Clinton descreveu, você sente a dor ou a alegria de outra pessoa. Mas simpatia pela pessoa que, digamos, sente dor não obriga-nos a sentir a sua dor e, por outro lado, essa é uma questão de querer a sua condição de melhora (e esperar ou querer fazer algo para conseguir esse resultado). Mas de acordo com grande parte da literatura recente acerca do desenvolvimento moral, a nossa simpática ou benevolente preocupação para com ou sobre os outros depende substancialmente de nossa capacidade de empatia. 8. A “empatia projetiva” envolve entrar na cabeça de alguém e ver as coisas do seu ponto de vista. Há também o tipo de empatia mais emocionalmente receptiva, a “empatia associativa”, que é basicamente uma questão de colocar-se no lugar da outra pessoa (isto é, por vezes, descrito como contágio emocional ou osmose). Acredita-se que os psicopatas são capazes de colocarem-se no lugar de outras pessoas (para fins egoístas ou malignos), mas incapazes de sentirem a dor dos outros, incapazes desse mesmo tipo de receptividade emocional ou empática. E, nessa medida, também podemos dizer que os psicopatas são insensíveis (cold-hearted). Eles não (receptivamente) empatizam com os sentimentos dos outros, não sendo (portanto) capazes de benevolência afetiva, amabilidade ou compaixão em relação aos outros. Eles são, afinal de contas, psicopatas. Então, simpatia, altruísmo e carinho genuíno em relação aos outros requer o tipo receptivo de empatia que falta aos psicopatas. 9. A amabilidade exibida por um amigo em relação aos outros envolve ou requer a empatia em relação à condição do amigo, por exemplo, com a sua dor ou seu sofrimento. E assim a amabilidade e a empatia estão interligadas nos agentes. Uma pessoa moralmente decente, ao ajudar um amigo, exibe uma amabilidade que depende da sua capacidade para exibir o tipo de empatia receptiva que um psicopata é incapaz de exibir. Tudo certo até aqui. 10. Mas se interesses afetivos ou amáveis em relação aos outros requerem uma empatia associativa ou receptiva, pode-se precisar de empatia ao ser afetado pela amabilidade de outra pessoa em relação a uma terceira. Ser afetado pela amabilidade de alguém é uma espécie de amabilidade de segunda ordem, quando comparada com a amabilidade de primeira ordem em que alguém sente amor ou uma ligação afetiva por seus amigos e, com base nisso, quer ajudá-los. Mas os dois tipos de amabilidade (e a indiferença de segunda ordem também) exigem o tipo de empatia receptiva que os psicopatas são incapazes de ter. Assim, parece que a fenomenologia da amabilidade, da frieza ou da indiferença (dizemos que os agentes são frios ou insensíveis, por que falamos deles tornarem-se frios pela indiferença), pode desempenhar um papel importante para ajudar-nos a compreender a motivação moral e a sua ausência. 11. Hume concebeu a aprovação e a reprovação como tendo uma espécie de fenomenologia (e como sendo fenomenologicamente opostas uma a outra), e ele então argumentou (estou falando de um modo muito superficial de toda essa discussão), que expressamos ou descrevemos aprovação ou desaprovação quando dizemos que algo é bom, certo ou errado. Talvez ele não devesse chamar o prazer e a dor de segunda ordem de aprovação e reprovação, mas esses fenômenos não exigem, em si mesmos, a feitura de afirmações morais (ou a posse de conceitos morais). Assim, não há circularidade na utilização e na referência a eles como uma base para a compreensão de enunciados morais reais. 12. Hume fala de sermos tocados pela amabilidade generosa que alguém mostra em relação aos seus amigos ou amigas, e creio que a amabilidade de segunda ordem é uma espécie de aprovação e também pode ser vista como constitutiva de uma base plausível para termos ou conceitos morais positivos como “certo” ou “moralmente bom”. E, então, indo além de Hume da maneira que indiquei anteriormente, creio que ser empaticamente indiferente pela atitude de alguém insensível ou cujo comportamento em relação a terceiros constitui uma espécie de desaprovação (primordial) daquela atitude ou comportamento, pode ser usado como uma base sólida para a compreensão de termos ou conceitos morais negativos. Assim, estou, como Hume, concebendo a aprovação e a reprovação como atitudes de segunda ordem, mas concebo-as como atitudes diferentes daquelas atitudes focadas e mencionadas por Hume. 13. Acho que estes estados psicológicos, que não parecem pressupor conceitos ou juízos morais, podem funcionar como uma base para fazermos juízos morais – e, muito mais fortemente, podem fazê-lo de um modo que não irá minar a validade ou objetividade dos juízos morais, ao menos não do modo que os tipos de metaética sentimentalista que tem sido atribuída a Hume claramente fazem. 14. Se a empatia receptiva move-nos, ela nos move a ajudar, em vez de nos afastar de alguém que precisa ou sente dor. E alguém que é capaz de ter empatia de segunda ordem vai ser capaz de ter empatia de primeira ordem (embora eu esteja omitindo os argumentos a favor dessa tese). Logo, se sou tocado pela generosidade amável de alguém em relação a um amigo, estarei disposto a fazer essas mesmas coisas amáveis e desprendidas, e isto acontece num sentido em que ser acolhido pela amabilidade de alguém constitui uma atitude positiva em relação a essa pessoa e/ou às suas ações. Obviamente, a aprovação é também uma atitude positiva, mas esse é justamente o meu ponto. O que estamos dizendo em relação à empatia de primeira e a de segunda ordem e a amabilidade empática torna claro que a amabilidade de segunda ordem é um tipo de atitude positiva que não é de todo implausível considerar como equivalente ou igual a (o que consideramos ser) atitude positiva de aprovação moral. E nossas reações indiferentes de segunda ordem serão direcionadas ao comportamento que, dadas as nossas disposições empáticas ou amáveis de primeira ordem, estaremos inclinados ou dispostos a não reproduzir, e, nessa medida, também, portanto, faz sentido identificar a nossa reação de indiferença empática à frieza da atitude ou comportamento de outra pessoa com uma atitude negativa de desaprovação. 15. A empatia é uma noção causal, mas o sentimento amável empaticamente-derivado combina um fator causal (ou origem) com uma experiência fenomenológica (ou resultado). Isto é mais fenomenologia do que aqueles que pensam que a aprovação já exige um juízo moral ou algum conceito consentido; trata-se de uma mistura de fenomenologia com outros fatores, e é interessante notar que, se apenas isso já é suficiente para reconhecer que o que estamos dizendo aqui não é tão extremado como se poderia pensar inicialmente. A aprovação e a desaprovação não são só uma questão de fenomenologia, [pois comporta uma lição moral normativa sobre o que se pode ou não fazer/agir]. 16. Certos filósofos argumentaram que a desaprovação é uma questão de se estar com raiva e dado que a raiva tem uma fenomenologia, nós realmente precisamos considerar se seria melhor (com base em razões fenomenológicas e possivelmente outras razões filosóficas) conceber a desaprovação em termos de raiva e não em termos de insensibilidade empática de segunda ordem. Mas, curiosamente, aqueles que têm procurado identificar a desaprovação com a raiva nem sequer consideraram a possibilidade alternativa de que a desaprovação é ou envolve uma reação empática insensível. 16.1 Poderíamos, então, dizer que a desaprovação (ao contrário da aprovação?) pode ser baseada e identificada com dois estados mentais diferentes (assim como existem dois tipos muito diferentes de jade), e pode acontecer que o estado do qual estive falando, o estado de insensibilidade de segunda ordem, seja mais útil para usar na explicitação (negativa) da linguagem moral do que a ideia ou a experiência de raiva. 17. Nós não apenas absorvemos os sentimentos dos outros, mas também atitudes e opiniões ou crenças, e assim parece que a empatia associativa ou receptiva pode receber (trocadilho proposital!) não apenas sentimentos, mas também atitudes e opiniões. Logo, é possível empatizar com o ponto de vista, com os argumentos, com as crenças, teorias, etc., das outras pessoas, e isto parece ser necessário, se alguém for descrito como tendo uma mente-aberta frente aos pontos de vista das outras pessoas, etc. 18. Anteriormente distinguimos entre o tipo de empatia associativa que envolve involuntariamente ou receptivamente assumir os sentimentos (ou opiniões) das outras pessoas e uma empatia projetiva que coloca a si mesma na situação mental da outra pessoa sem necessariamente ter qualquer sentimento a acompanhando. Se esta última forma de empatia é suficiente para ter uma mente aberta, é difícil ver como essa virtude (ter mente aberta ou justa, etc.) poderia depender de sentimentos ou emoções. 19. a capacidade de colocar-se no lugar das outras pessoas sem sentir o que elas sentem é característica dos psicopatas, e é tão plausível supor que a simples capacidade de ter a mente aberta tem muito em comum com eles? Talvez a mente aberta exige que sejamos capazes de sentir algo que é relevante para as crenças, argumentos e pontos de vista dos outros. Talvez isto exija um grau de simpatia intelectual com o que os outros acreditam, discutem, etc. E se isso acontecer, então a mentalidade aberta envolverá, pelo menos, um elemento sentimental. Será que a mentalidade aberta exige tais reações sentimentais ou a disposição de ter tais reações? a capacidade de colocar-se no lugar das outras pessoas sem sentir o que elas sentem é característica dos psicopatas, e é tão plausível supor que a simples capacidade de ter a mente aberta tem muito em comum com eles? Talvez a mente aberta exige que sejamos capazes de sentir algo que é relevante para as crenças, argumentos e pontos de vista dos outros. 20. Significa que a outra pessoa tem uma visão favorável em relação a um determinado argumento ou teoria, e que a pessoa de mente aberta, ou, como podemos dizer, a pessoa intelectualmente simpática, vê as coisas, pelo menos momentaneamente, na mesma perspectiva favorável em que aquela outra pessoa vê aquele argumento ou teoria. Mas isso significa que uma pessoa que sustenta uma teoria ou que (sinceramente) avança ou advoga um argumento veja aquelas coisas numa perspectiva favorável, favorecendo-as acima de todos os outros (possíveis) argumentos ou teorias; em tal caso, se segue que crer nas teorias ou argumentos como tais envolve uma atitude favorável, algum sentimento positivo ou emoção. E disso resulta que não há tal coisa como uma crença puramente intelectual ou uma opinião. 21. Para que se possa ter uma opinião favorável, para que se possa favorecer uma coisa em detrimento de outra, envolve-se o sentimento tanto quanto quando se favorece um candidato político ou uma criança em relação a outra. Mas quando imaginamos que as crenças podem ser puramente intelectuais ou não emocionais, nós esquecemos, nós ignoramos, os sentimentos positivos que realmente temos com relação a todas essas coisas. 22. Se a crença é considerada como um estado puramente intelectual ou estritamente cognitivo, então ela mesma pode parecer não estar relacionada com a motivação e ação humanas. Mas independentemente de todos os argumentos racionalistas contra esta hipótese, o fato de que a crença envolve emoção pode fazê-la parecer relevante para a ação e a motivação humanas, de uma forma que, de outro modo, poderia não ser. Sentimentos (por exemplo) de ciúme, inveja ou gratidão, fazem-nos querer fazer certas coisas, e por isto não são apenas desejos, mas também sentimentos que mais comumente entendemos como imediatamente ou diretamente relevantes e ativos em nossas motivações e ações. Deste modo, o fato de que o sentimento está envolvido com a crença pode tornar mais fácil a compreensão de como a crença pode motivar ações e fazer isto, em certa medida, independentemente das considerações racionais que filósofos como Nagel ou Scanlon invocam para conectar as nossas crenças (ou apreensões racionais) com a motivação relevante e (às vezes, mas nem sempre) à ação. 23. Deste modo a estranheza do que J. L. Mackie chamou de “prescritividade objetiva”, isto é, a estranheza aparente de assumir que a apreciação racional de uma crença em certos fatos pode ipso facto constituir uma (mais ou menos eficaz) motivação ou razão para a ação, pode parecer menos estranha se conseguirmos mostrar – como temos procurado demonstrar aqui – que a crença em si tem o tipo de carga emocional que consideramos mais fácil de conectar com a motivação e a ação motivada. (Sou grato neste ponto a Elijah Chudnoff). Deste modo, a ênfase na fenomenologia aqui pode realmente tornar mais fácil para o racionalista tornar o processo de conectar a crença e a ação motivada, embora eu mesmo quereria rejeitar o racionalismo e argumentar, em contrapartida, que a crença pode relacionar-se ou ser relevante à motivação e ação simplesmente através da sua conexão com a emoção e pelo fato de que podemos facilmente entender como os estados emocionais podem motivar. 24. A maioria das coisas que eu vejo (e vamos nos concentrar na visão) parecem-me extrair sua realidade do modo como as percebo, e isto significa, em particular, que a tendência a crer não é algo adicional ou existente ao lado de certas experiências perceptivas ordinárias, mas está contido nelas mesmas11. Se isto é assim, então se a crença também implica uma certa quantidade de emoção positiva, a relação entre a experiência perceptiva ou a percepção e a crença será análoga à ligação que os racionalistas esboçaram entre a apreensão racional de certos fatos e nossa motivação ou razões para agir (uma conexão que parece mais provável de ser válida se alguém reconhece fenomenologicamente a conexão entre a crença e a emoção, positiva e, às vezes, suave). E isso pode, dessa forma, revelar, muito surpreendentemente, que a percepção envolve o afeto positivo e a motivação de uma forma intrínseca. 25. E se é preciso de tais outras crenças para derrubar ou neutralizar o nosso sentido de ou nossa crença na realidade do que percebemos, então, dada a fenomenologia da nossa percepção do mundo que nos rodeia, podemos dizer que há uma ligação essencial entre tal experiência e a tendência a crer na realidade do que ela é “de” (seu objeto) e entre a experiência e as crenças reais relevantes para essa experiência (onde estas incluem algumas crenças que não estão relacionadas diretamente à fenomenologia).