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SLOTE, Michael.

A importância da fenomenologia: o que a amabilidade e a frieza humana


podem nos ensinar sobre ética? In: WILLIGES, Flavio. FISCHBORN, Marcelo. COPP,
David. (Orgs.). O lugar das emoções na ética e na metaética. Pelotas: NEPFIL Online,
2018.

1. A Fenomenologia entendida como descrição do caráter sentido da experiência vivida é


importante para os campos ou disciplinas da ética, psicologia moral, epistemologia e
filosofia da mente.
2. A maioria dos especialistas em ética são racionalistas e pensam que nossos conceitos
morais e nossa aderência a normas morais pode estar fundada na razão. Sentimentos
como a solidariedade e a compaixão podem, às vezes, nos ajudar a fazer o que é nosso
dever moral fazer, mas o motivo do puro dever, da consciência, é considerado (por
muitos kantianos e outros racionalistas), em princípio, suficiente por si só para motivar
uma ação ou comportamento e, em qualquer caso, o que conta como certo ou errado é
considerado uma questão de razão (prática) e não depende constitutivamente de
quaisquer emoções ou sentimentos (ordinários), os quais o racionalista considera pelo
menos como tipicamente pouco fiáveis quando se trata de fazer as escolhas e ações
moralmente certas.
3. [Mas] Se alguém é amoroso, amável, parece ou age com afetividade para com os
outros, isto no mínimo sugere que esse alguém ou suas ações motivadas possuem uma
qualidade que podemos chamar apropriadamente de afetividade. Ora, esta ideia de
amorosidade pode ter se originado como uma metáfora em conexão com o calor e o
frio, físico ou sensorial. No entanto, a ideia de amabilidade pessoal é tomada hoje
como uma metáfora frívola. Desculpe-me, mas quando dizemos que alguém se sente
amável para com outra pessoa ou é uma pessoa amorosa, o que dizemos pode ser
literalmente verdadeiro.
4. O primeiro ponto que deve ser esclarecido aqui é que o tipo de amabilidade que
estamos falando é moralmente bom ou louvável. Isto é algo que Kant e muitos
kantianos negaram, alegando que a única fonte de bondade moral é uma vontade
conscientemente boa.
5. Um senso de dever pode muito bem ser capaz de nos levar a fazer alguma coisa
(embora isso possa exigir-nos mais e até mesmo uma análise fenomenológica), mas a
compaixão amável compreensivelmente também dá origem a várias ações
situacionalmente-relevantes, e embora esse seja um fato amplamente aceito e óbvio,
ele é um daqueles fatos que o kantismo tendeu a minimizar ou negar, com base nos
resultados não intuitivos abordados anteriormente.
6. Não existe apenas o fenômeno de pessoas agirem de modo amável e de estarmos
cientes de tais fatos, mas também de sermos tocados pela amabilidade dos outros
(outros agentes). Mas há também o fato correspondente, podemos tornar-nos frios
na/ou pela indiferença ou crueldade (novamente a amabilidade entra em cena) de uma
determinada pessoa ou agente. Estas reações ocorrem através de processos de empatia,
processos nos quais Hume foi a primeira pessoa (ao menos no Ocidente) a descrever
(embora ele não tivesse à disposição o termo “empatia.)
7. A empatia ocorre quando, como Bill Clinton descreveu, você sente a dor ou a alegria
de outra pessoa. Mas simpatia pela pessoa que, digamos, sente dor não obriga-nos a
sentir a sua dor e, por outro lado, essa é uma questão de querer a sua condição de
melhora (e esperar ou querer fazer algo para conseguir esse resultado). Mas de acordo
com grande parte da literatura recente acerca do desenvolvimento moral, a nossa
simpática ou benevolente preocupação para com ou sobre os outros depende
substancialmente de nossa capacidade de empatia.
8. A “empatia projetiva” envolve entrar na cabeça de alguém e ver as coisas do seu
ponto de vista. Há também o tipo de empatia mais emocionalmente receptiva, a
“empatia associativa”, que é basicamente uma questão de colocar-se no lugar da
outra pessoa (isto é, por vezes, descrito como contágio emocional ou osmose).
Acredita-se que os psicopatas são capazes de colocarem-se no lugar de outras pessoas
(para fins egoístas ou malignos), mas incapazes de sentirem a dor dos outros,
incapazes desse mesmo tipo de receptividade emocional ou empática. E, nessa
medida, também podemos dizer que os psicopatas são insensíveis (cold-hearted). Eles
não (receptivamente) empatizam com os sentimentos dos outros, não sendo (portanto)
capazes de benevolência afetiva, amabilidade ou compaixão em relação aos outros.
Eles são, afinal de contas, psicopatas. Então, simpatia, altruísmo e carinho genuíno em
relação aos outros requer o tipo receptivo de empatia que falta aos psicopatas.
9. A amabilidade exibida por um amigo em relação aos outros envolve ou requer a
empatia em relação à condição do amigo, por exemplo, com a sua dor ou seu
sofrimento. E assim a amabilidade e a empatia estão interligadas nos agentes. Uma
pessoa moralmente decente, ao ajudar um amigo, exibe uma amabilidade que depende
da sua capacidade para exibir o tipo de empatia receptiva que um psicopata é incapaz
de exibir. Tudo certo até aqui.
10. Mas se interesses afetivos ou amáveis em relação aos outros requerem uma empatia
associativa ou receptiva, pode-se precisar de empatia ao ser afetado pela amabilidade
de outra pessoa em relação a uma terceira. Ser afetado pela amabilidade de alguém é
uma espécie de amabilidade de segunda ordem, quando comparada com a amabilidade
de primeira ordem em que alguém sente amor ou uma ligação afetiva por seus amigos
e, com base nisso, quer ajudá-los. Mas os dois tipos de amabilidade (e a indiferença de
segunda ordem também) exigem o tipo de empatia receptiva que os psicopatas são
incapazes de ter. Assim, parece que a fenomenologia da amabilidade, da frieza ou da
indiferença (dizemos que os agentes são frios ou insensíveis, por que falamos deles
tornarem-se frios pela indiferença), pode desempenhar um papel importante para
ajudar-nos a compreender a motivação moral e a sua ausência.
11. Hume concebeu a aprovação e a reprovação como tendo uma espécie de
fenomenologia (e como sendo fenomenologicamente opostas uma a outra), e ele então
argumentou (estou falando de um modo muito superficial de toda essa discussão), que
expressamos ou descrevemos aprovação ou desaprovação quando dizemos que algo é
bom, certo ou errado. Talvez ele não devesse chamar o prazer e a dor de segunda
ordem de aprovação e reprovação, mas esses fenômenos não exigem, em si mesmos, a
feitura de afirmações morais (ou a posse de conceitos morais). Assim, não há
circularidade na utilização e na referência a eles como uma base para a compreensão
de enunciados morais reais.
12. Hume fala de sermos tocados pela amabilidade generosa que alguém mostra em
relação aos seus amigos ou amigas, e creio que a amabilidade de segunda ordem é
uma espécie de aprovação e também pode ser vista como constitutiva de uma base
plausível para termos ou conceitos morais positivos como “certo” ou “moralmente
bom”. E, então, indo além de Hume da maneira que indiquei anteriormente, creio que
ser empaticamente indiferente pela atitude de alguém insensível ou cujo
comportamento em relação a terceiros constitui uma espécie de desaprovação
(primordial) daquela atitude ou comportamento, pode ser usado como uma base sólida
para a compreensão de termos ou conceitos morais negativos. Assim, estou, como
Hume, concebendo a aprovação e a reprovação como atitudes de segunda ordem, mas
concebo-as como atitudes diferentes daquelas atitudes focadas e mencionadas por
Hume.
13. Acho que estes estados psicológicos, que não parecem pressupor conceitos ou juízos
morais, podem funcionar como uma base para fazermos juízos morais – e, muito mais
fortemente, podem fazê-lo de um modo que não irá minar a validade ou objetividade
dos juízos morais, ao menos não do modo que os tipos de metaética sentimentalista
que tem sido atribuída a Hume claramente fazem.
14. Se a empatia receptiva move-nos, ela nos move a ajudar, em vez de nos afastar de
alguém que precisa ou sente dor. E alguém que é capaz de ter empatia de segunda
ordem vai ser capaz de ter empatia de primeira ordem (embora eu esteja omitindo os
argumentos a favor dessa tese). Logo, se sou tocado pela generosidade amável de
alguém em relação a um amigo, estarei disposto a fazer essas mesmas coisas amáveis
e desprendidas, e isto acontece num sentido em que ser acolhido pela amabilidade de
alguém constitui uma atitude positiva em relação a essa pessoa e/ou às suas ações.
Obviamente, a aprovação é também uma atitude positiva, mas esse é justamente o meu
ponto. O que estamos dizendo em relação à empatia de primeira e a de segunda ordem
e a amabilidade empática torna claro que a amabilidade de segunda ordem é um tipo
de atitude positiva que não é de todo implausível considerar como equivalente ou igual
a (o que consideramos ser) atitude positiva de aprovação moral. E nossas reações
indiferentes de segunda ordem serão direcionadas ao comportamento que, dadas as
nossas disposições empáticas ou amáveis de primeira ordem, estaremos inclinados ou
dispostos a não reproduzir, e, nessa medida, também, portanto, faz sentido identificar a
nossa reação de indiferença empática à frieza da atitude ou comportamento de outra
pessoa com uma atitude negativa de desaprovação.
15. A empatia é uma noção causal, mas o sentimento amável empaticamente-derivado
combina um fator causal (ou origem) com uma experiência fenomenológica (ou
resultado). Isto é mais fenomenologia do que aqueles que pensam que a aprovação já
exige um juízo moral ou algum conceito consentido; trata-se de uma mistura de
fenomenologia com outros fatores, e é interessante notar que, se apenas isso já é
suficiente para reconhecer que o que estamos dizendo aqui não é tão extremado como
se poderia pensar inicialmente. A aprovação e a desaprovação não são só uma questão
de fenomenologia, [pois comporta uma lição moral normativa sobre o que se pode ou
não fazer/agir].
16. Certos filósofos argumentaram que a desaprovação é uma questão de se estar com
raiva e dado que a raiva tem uma fenomenologia, nós realmente precisamos considerar
se seria melhor (com base em razões fenomenológicas e possivelmente outras razões
filosóficas) conceber a desaprovação em termos de raiva e não em termos de
insensibilidade empática de segunda ordem. Mas, curiosamente, aqueles que têm
procurado identificar a desaprovação com a raiva nem sequer consideraram a
possibilidade alternativa de que a desaprovação é ou envolve uma reação empática
insensível.
16.1 Poderíamos, então, dizer que a desaprovação (ao contrário da aprovação?) pode
ser baseada e identificada com dois estados mentais diferentes (assim como existem
dois tipos muito diferentes de jade), e pode acontecer que o estado do qual estive
falando, o
estado de insensibilidade de segunda ordem, seja mais útil para usar na explicitação
(negativa) da linguagem moral do que a ideia ou a experiência de raiva.
17. Nós não apenas absorvemos os sentimentos dos outros, mas também atitudes e
opiniões ou crenças, e assim parece que a empatia associativa ou receptiva pode
receber (trocadilho proposital!) não apenas sentimentos, mas também atitudes e
opiniões. Logo, é possível empatizar com o ponto de vista, com os argumentos, com
as crenças, teorias, etc., das outras pessoas, e isto parece ser necessário, se alguém for
descrito como tendo uma mente-aberta frente aos pontos de vista das outras pessoas,
etc.
18. Anteriormente distinguimos entre o tipo de empatia associativa que envolve
involuntariamente ou receptivamente assumir os sentimentos (ou opiniões) das outras
pessoas e uma empatia projetiva que coloca a si mesma na situação mental da outra
pessoa sem necessariamente ter qualquer sentimento a acompanhando. Se esta última
forma de empatia é suficiente para ter uma mente aberta, é difícil ver como essa
virtude (ter mente aberta ou justa, etc.) poderia depender de sentimentos ou emoções.
19. a capacidade de colocar-se no lugar das outras pessoas sem sentir o que elas sentem é
característica dos psicopatas, e é tão plausível supor que a simples capacidade de ter a
mente aberta tem muito em comum com eles? Talvez a mente aberta exige que
sejamos capazes de sentir algo que é relevante para as crenças, argumentos e pontos de
vista dos outros. Talvez isto exija um grau de simpatia intelectual com o que os outros
acreditam, discutem, etc. E se isso acontecer, então a mentalidade aberta envolverá,
pelo menos, um elemento sentimental. Será que a mentalidade aberta exige tais
reações sentimentais ou a disposição de ter tais reações? a capacidade de colocar-se no
lugar das outras pessoas sem sentir o que elas sentem é característica dos psicopatas, e
é tão plausível supor que a simples capacidade de ter a mente aberta tem muito em
comum com eles? Talvez a mente aberta exige que sejamos capazes de sentir algo que
é relevante para as crenças, argumentos e pontos de vista dos outros.
20. Significa que a outra pessoa tem uma visão favorável em relação a um determinado
argumento ou teoria, e que a pessoa de mente aberta, ou, como podemos dizer, a
pessoa intelectualmente simpática, vê as coisas, pelo menos momentaneamente, na
mesma perspectiva favorável em que aquela outra pessoa vê aquele argumento ou
teoria. Mas isso significa que uma pessoa que sustenta uma teoria ou que
(sinceramente) avança ou advoga um argumento veja aquelas coisas numa perspectiva
favorável, favorecendo-as acima de todos os outros (possíveis) argumentos ou teorias;
em tal caso, se segue que crer nas teorias ou argumentos como tais envolve uma
atitude favorável, algum sentimento positivo ou emoção. E disso resulta que não há tal
coisa como uma crença puramente intelectual ou uma opinião.
21. Para que se possa ter uma opinião favorável, para que se possa favorecer uma coisa
em detrimento de outra, envolve-se o sentimento tanto quanto quando se favorece um
candidato político ou uma criança em relação a outra. Mas quando imaginamos que as
crenças podem ser puramente intelectuais ou não emocionais, nós esquecemos, nós
ignoramos, os sentimentos positivos que realmente temos com relação a todas essas
coisas.
22. Se a crença é considerada como um estado puramente intelectual ou estritamente
cognitivo, então ela mesma pode parecer não estar relacionada com a motivação e
ação humanas. Mas independentemente de todos os argumentos racionalistas contra
esta hipótese, o fato de que a crença envolve emoção pode fazê-la parecer relevante
para a ação e a motivação humanas, de uma forma que, de outro modo, poderia não
ser. Sentimentos (por exemplo) de ciúme, inveja ou gratidão, fazem-nos querer fazer
certas coisas, e por isto não são apenas desejos, mas também sentimentos que mais
comumente entendemos como imediatamente ou diretamente relevantes e ativos em
nossas motivações e ações. Deste modo, o fato de que o sentimento está envolvido
com a crença pode tornar mais fácil a compreensão de como a crença pode motivar
ações e fazer isto, em certa medida, independentemente das considerações racionais
que filósofos como Nagel ou Scanlon invocam para conectar as nossas crenças (ou
apreensões racionais) com a motivação relevante e (às vezes, mas nem sempre) à ação.
23. Deste modo a estranheza do que J. L. Mackie chamou de “prescritividade objetiva”,
isto é, a estranheza aparente de assumir que a apreciação racional de uma crença em
certos fatos pode ipso facto constituir uma (mais ou menos eficaz) motivação ou razão
para a ação, pode parecer menos estranha se conseguirmos mostrar – como temos
procurado demonstrar aqui – que a crença em si tem o tipo de carga emocional que
consideramos mais fácil de conectar com a motivação e a ação motivada. (Sou grato
neste ponto a Elijah Chudnoff). Deste modo, a ênfase na fenomenologia aqui pode
realmente tornar mais fácil para o racionalista tornar o processo de conectar a crença e
a ação motivada, embora eu mesmo quereria rejeitar o racionalismo e argumentar, em
contrapartida, que a crença pode relacionar-se ou ser relevante à motivação e ação
simplesmente através da sua conexão com a emoção e pelo fato de que podemos
facilmente entender como os estados emocionais podem motivar.
24. A maioria das coisas que eu vejo (e vamos nos concentrar na visão) parecem-me
extrair sua realidade do modo como as percebo, e isto significa, em particular, que a
tendência a crer não é algo adicional ou existente ao lado de certas experiências
perceptivas ordinárias, mas está contido nelas mesmas11. Se isto é assim, então se a
crença também implica uma certa quantidade de emoção positiva, a relação entre a
experiência perceptiva ou a percepção e a crença será análoga à ligação que os
racionalistas esboçaram entre a apreensão racional de certos fatos e nossa motivação
ou razões para agir (uma conexão que parece mais provável de ser válida se alguém
reconhece fenomenologicamente a conexão entre a crença e a emoção, positiva e, às
vezes, suave). E isso pode, dessa forma, revelar, muito surpreendentemente, que a
percepção envolve o afeto positivo e a motivação de uma forma intrínseca.
25. E se é preciso de tais outras crenças para derrubar ou neutralizar o nosso sentido de ou
nossa crença na realidade do que percebemos, então, dada a fenomenologia da nossa
percepção do mundo que nos rodeia, podemos dizer que há uma ligação essencial
entre tal experiência e a tendência a crer na realidade do que ela é “de” (seu objeto) e
entre a experiência e as crenças reais relevantes para essa experiência (onde estas
incluem algumas crenças que não estão relacionadas diretamente à fenomenologia).

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