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Experiências sonoras: reflexões sobre a tradição ocidentocêntrica e outras culturas musicais com Villa-

Lobos e Sepultura

Este inusitado encontro entre Heitor Villa-Lobos e a banda Sepultura tem um sentido: ambos utilizaram
elementos de musicalidades não-ocidentais nas suas composições "Floresta do Amazonas" e "Roots",
respectivamente. Tais obras podem nos ajudar em algumas reflexões sobre a produção artística em um
mundo globalizado, onde diferentes processos histórico-culturais inevitavelmente se comunicam e se
influenciam. Uma pergunta que podemos nos fazer, e que vai na mesma linha da pesquisa desenvolvida
por Flávio Garcia da Silva sobre o disco "Roots", do Sepultura, é se houve nesses casos uma verdadeira
troca de experiências que culmina numa obra "original", marcadora de um encontro entre culturas não-
hierarquizadas no seu valor e sua constituição; ou se são casos do que José Jorge de Carvalho chama de
"canibalização" de culturas não-ocidentocêntricas, sem outro objetivo que não de refrescar a indústria
cultural com um material exótico. Dito de outra forma: estamos lidando com uma antropofagia ou uma
canibalização de culturas estranhas ao cânone ocidental? Para refletir sobre as trocas culturais no mundo
contemporâneo, pretendo usar como referência as ideias desenvolvidas por Jos de Mul e Renee van de
Vall. Para desenvolver a noção de policentrismo cultural, pretendo seguir a linha de reflexão de Ella
Shohat e Robert Stam. Além destes, pretendo trabalhar com Anton Killin e Adrian Currie, para refletir
sobre as múltiplas possibilidades de abordar o tema da música; Flávio Pereira Senra, que traz uma boa
reflexão sobre a antropofagia e o disco "Roots"; e Mário Julio Sergl, que pensa na relação de Villa-Lobos
com a musicalidade ameríndia.

Vou começar esse texto com um "causo".

Tenho um irmão que dedica sua vida ao trabalho com os povos indígenas. É um indigenista, como diriam
aqueles que gostam de classificar. Certa feita, ele recebeu a missão de viabilizar a troca de sementes
entre o pessoal de duas terras, uma aqui do Sul, outra na divisa do atual Estado de Minas Gerais com a
Bahia. Seria sua primeira visita a essa terra do Brasil central. Depois de várias viagens, por vários meios,
ele chega ao destino. Uma comissão de anciãos e curiosos vem lhe receber. Encaminhadas as devidas
apresentações e esclarecimentos a respeito da natureza de sua missão, ele é orientado a tratar das
sementes com o responsável pela Opy (casa de reza). Lhe é apontada a direção e nada mais. Ele
caminha, pensando nas palavras que deve usar, no respeito humilde, na forma com que pode conquistar
a confiança. Chegando ao destino, vê que um homem trança algumas folhas na entrada da Opy. Parece
algo totalmente deslocado, mas esse homem guarani tem uma tatuagem do Sepultura no braço direito e
usa uma camiseta do Iron Maiden. Aproximando-se, meu irmão diz:

- Boa tarde, estou procurando o responsável pela Opy.

- Se estava, já não está mais. Sou eu mesmo.


O olhar do menino ocidental deveria parecer atônito e espantado. O homem ri alto.

- Essa é a casa de reza mais rock'n'roll que tu vai encontrar na vida!

Fenômenos de trocas culturais como o deste causo já não são tão surpreendentes. Os processos e
tecnologias que viabilizaram a atual fase da globalização estão de tal forma presentes na composição da
realidade que é difícil imaginar alguém que não tenha tido contato com eles. Porém, se a tecnologia e os
processos são, de certa forma, controlados pelos herdeiros de uma forma de civilização, seria de supor
que essa troca é muito mais uma imposição cultural do que uma relação dialógica estabelecida em pé de
igualdade. Quando pensamos na potência avassaladora da indústria cultural, sua canibalização de
culturas para refrescar a justificar a ânsia comercial e a ideologia do consumo, tendemos a ver o
processo como via de mão única. Neste confronto entre culturas, temos um ganhador e um perdedor;
aquele que se impõe e aquele que é apagado.

Mas será que as coisas são sempre assim? Será que entre essa dicotomia em preto e branco de
poderosos e dominados, não existe uma zona cinza; um lugar onde essas relações se tornam um pouco
mais complexas? Pontos de ruptura e pontos de resistência? Analisando dessa forma, não estaríamos
olhando o mundo pelas mesmas lentes que julgamos; não damos por descontado a superioridade de uns
sobre outros?

Fato é que encontros interculturais não são novidade no mundo. Muito pelo contrário: visto numa ampla
perspectiva, as trocas é que são a norma. Inclusive, como alertam Jos de Mul and Renée van de Vall,
"when we study history, we soon realize that cultures never have been homogeneous, self-contained
and unchanging wholes" (2011, p. 11). Sem negar a pressão que uma forma cultural pode exercer sobre
outra, muito menos as relações e interesses de poder implicadas no processo, acredito que nem toda
troca entre a cultura de massa ocidental e as culturas dos povos originários seja realizada na base do
roubo, da imposição ou do apagamento. É possível, como disse antes, que existam pontos de ruptura, de
desvio, de resistência. Pontos de uma combinação improvável, que aproximam personagens
improváveis, e resultam em experiências artísticas e estéticas que marcam todos os envolvidos, e tornam
difícil a análise dicotômica do dominante e dominado.

Para levar a cabo esta análise, vou buscar a referência em duas experiências artísticas musicais que se
dispõem a estabelecer o contato entre uma forma de produção ocidental com produções das culturas de
povos originários do que hoje é o Brasil.

Em 1996, a banda Sepultura lançou seu sexto disco de estúdio, chamado "Roots".

Globalização e seus constantes processos, mais intensos agora.


Antropofagia e semana da arte moderna, acho que vale a pena lembrar esse episódio e estabelecer
relações.

Antropofagia X canibalização

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