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CONTRAPONTOS DA
LITERATURA INDÍGENA
CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
M A SA
edições
i daliteratura indígena contemporânea no Brasil
!jB ra jB te 3 6 1 3 b y Graça Graúna
%dae osdinJIiu reservados
Revisão
Lourdes Nascimento
Capa
Túlio Oliveira sobre ilustração Veruschka Guerra
lSBN;978-85-7160-591-6
CDD: 898.3
CDU: 821.8
A meus pois;
à Deo, Daniel Cruz, Mozzo, Poblo, Veruschko e Lourdes - pelo ombro amigo
II
I
Prefácio..................................................................... 9
II
Iniciações................................................................. 15
|l
I 3. Diáspora indígena................................................... 95
I Conclusão
"Multiplicando o cereal plantado” .............................. 169
Posfácio
A palavra indígena sempre existiu .............................. 173
I Anexos ...................................................................179
Referências............................................................. 185
PREFÁCIO
Rotand W alter
U FP E/C N P q
' Espaço nacional que, segundo o crítico Antonio Cornejo-Polar (2000, p. 147) é caracterizado por “hece-
rogeneidade conflituosa" como resultado da colonização imperialista. Para ele, as nações latino-americanas
são “traumaticamente desmembradas e cindidas”.
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
10
PREFÁCIO
11
Í W i B I P O ÍT O S DA LITERATURA INDÍGENACONTEMPORÂNEANO BRASIL
12
PREFÁCIO
REFERENCIAS
CORNEJO-POLAR, Antonio. O condor voa\ literatura e cultura latino-americanas.
Org. Mario J. Valdés. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.
HARRIS, Wilson. Explorations: a selection of talks and articles 1966-1981.
Mundelstrap: Dangeroo Press, 1981,
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Edusp, 2007.
VEJA, V. 33, n. 15, p . 120-22, 12 abr. 2000.
13
INICIAÇÕES
O povo, a escola, a mídia brasileira
estão de costas para os povos indígenas até hoje.
(Prei Beto)
15
a»íTSAPONTO S DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
16
INICIAÇÕES
^ Conferir o meu ensaio “Um flagrante do marginalizado na literatura brasileira” {Porantim, Brasília, n.
216, p. 5,jul. 1999).
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CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDIGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
2002, Potiguara reuniu seu exercício poético em Metade cara, metade más
cara. Nessa instância, tecemos algumas considerações acerca da I Conferência
Internacional de Escritores Indígenas e Afro-descendentes 2003, organizada por
Eliane Potiguara.
I O quarto capítulo, “Contaçâo de histórias: cumplicidades”, apresenta
a cumplicidade na leitura do mundo e da palavra dos Filhos da Terra. Com
base nas contribuições de Georges Sioui (1989), Stuart Hall (1999) e ou
tros, a análise enfoca a noçáo de auto-história, lugar e identidade narrativa
em Meu vô Apolinário'. um mergulho no rio da (minha) memória, de Daniel
M unduruku (2001). Em Puratig. o remo sagrado, de Yaguarê Yamâ (2001),
a abordagem trata da relação entre um narrador ancestral e outras vozes da
narrativa observando, a partir do próprio texto literário, a noçáo de palavra
e a questão da alteridade na visão de Bartomeu Meliá (2000). Com O saci
verdadeiro, de Olívio Jecupé (2000), a análise enfoca a questáo da diferença
segundo Betty Mindlin (2000), o problema da educação indígena, a relação
identidade/alteridade fundamentados em Zilá Bernd (1998) e Leopoldo 2ea
(1992), entre outros estudiosos da cultura indígena. Em Irakisu: o menino
criador, de Renê Kithãulu (2002), o estudo discute a relação entre cronista e
narrador fundamentando-se em Cornejo-Polar (2000) e a noção de círculo sa
grado, conforme observamos em Sioui (1989) e outros estudiosos indígenas.
Os anexos reúnem textos eletrônicos de caráter informativo que pres
supõem também exemplos práticos da relação “autor-texto-leitor”, quanto à
divulgação da literatura indígena no espaço da internet. Os anexos trazem
também um ementário que diz respeito ao trabalho com a literatura no meio
acadêmico indígena. Em síntese, o presente estudo (em aberto) tem por obje
tivos; a) abordar o conceito de literatura indígena e as especificidades, a partir
de um conjunto de livros de autoria indígena contemporânea que configurou
o corpus da pesquisa; b) verificar a problematização dos temas transversais
que emanam do conjunto de textos literários de autoria indígena; c) abordar
o problema da diáspora na poesia de Eliane Potiguara; d) observar a relação
entre ancestralidade e vozes narrativas em Daniel Munduruku, Yaguarê Yamã,
Renê Kithãulu e Olívio Jecupé; e) contribuir para um remapeamento críti-
co-construtivo dos povos indígenas, com base em sua própria manifestação
artística.
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INICIAÇÕES
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CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
literatura (seja ela contemporânea ou não). Por isso, considero oportuno res
saltar a contribuição de René Capriles (1987), no artigo “A força da poesi;
pré-colombiana”. Suas observações da história da literatura universal mostran
que a literatura indígena “foi sistematicamente negada até bem avançado <
século XX” (CAPRILES, 1987, p. 5). Embora classifique de pré-colombiano
os povos indígenas e considere que a discussão em torno da existência dess;
literatura esteja amplamente superada, sua análise mostra a que se deve a falt
de reconhecimento à literatura ameríndia:
’ Cf. matéria publicajda pelo IBASE e divulgada no site GRUMIN. Disponível em: <www.grumin.hp
com.br>. Acesso em: 17 jun. 2002.
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INtCSAÇÕES
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CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
aspectos, mas ressalva que “uma literatura indígena, se tiver de vir, virá a
seu tempo. Quando os próprios índios estiverem prontos para produzi-la”
(MARIATEGUI apud RAMA, 2001, p. 300). Na distinção entre literatura
indígena e indigenista feita por Mariátegui, a primeira refere-se “à produção
intelectual e artística realizada pelos índios, conforme seus próprios meios e
códigos, [a segunda implica a] vasta criatividade que, com base em outras
posições sociais e culturais [no lado ‘ocidental’] busca informar sobre o
universo e o homem indígenas” (CORNEJO-POLAR, 2000, p. 194).
Mais uma questão se coloca, com o objetivo de conclamar a sociedade
para repensar as origens da literatura no Brasil, Por que enfatizar a literatura
indígena? A pergunta vem de Eliane Potiguar a, no site do Ibase, ao estender,
para este trabalho, a sua ideia da / Conferência Internacional de Escritores In
dígenas e Afro-descendentes. Na sua percepção, as articulações em torno desse
Encontro configuram mais uma porca que se abre na História indígena ou
mais um caminho para combater o preconceito literário e o descaso com que
a literatura indígena é tratada no Brasil.
A quem interessar possa entrar nessa luta, os manifestos literários de
Potiguara se transformam em convite, para que nos tornemos “multiplicado
res de idéias que marcam a sua passagem no planeta TERRA e que buscam
contribuir para o avanço da cultura da paz, da ética, do amor, numa grande
corrente transformadora de idéias”.®Tecendo seu próprio relato, respeitande
as diferenças, salvaguardando a Mãe-Terra, os escritores indígenas avançam
a cada página - pelo prazer do texto que implica também uma literatura de
combate, como sugere a poesia de Eliane Potiguara, no Literatura indíge
na: um pensamento brasileiro. Nesse sentido ela expõe sua indignação:
‘ Cf. depoimento pessoal de Eliane Potigura. Literatura indígena-, um pensamento brasileiro. Disponíve
em: <e[ianepotiguara@terra.com.br>. Acesso em; 12 jun. 2002,
22
INICIAÇÕES
^Idem.
23
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
24
1.
A verdade dos mitos (história) vem de muito longe (no tempo), muito
antes de Cabral chegar aqui ‘com um punhado de aventureiros e marginais,
[quando] pegou os habitantes dessa terra de surpresa. A primeira resistência
foi a desconfiança e a gozação diante dos estranhos”.®No palco da história,
os “novos tempos” marcam as fronteiras provocando no indivíduo uma busca
incessante por seu lugar no mundo. O chamado “progresso” agride, fragmen
ta, desloca traçando caminhos contrários aos sonhos das sociedades indígenas.
Seria impossível isolarmos da literatura indígena a história da sociedade
na qual está inserida. Seus leitores se multiplicam: estudantes, professores(as),
advogados (as), escritores (as), lideranças, pajés (homens e mulheres) que lutam
por uma educação diferenciada, pela demarcação e posse de seus territórios
e pelo reconhecimento de suas manifestações artísticas. Nessa perspectiva.
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CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
’ No que diz respeito ao aspecto linguístico, procuramos manter a convenção sugerida pela Associação
Brasileira de Antropologia (ABA), em 1953, isto é, não pluralizar os nomes dos povos e as línguas indí
genas. No entanto, sem desmerecer as normas da ABA, mantém-se a grafia dos nomes como aparecem
no conjunto de textos de autoria indígena.
26
NOS RODAPÉS DA HISTÓRIA
" Cf. CIMI. Um breve histórico sobre o Movimento Indígena. Disponível em: <http://www.dmi.org.br/>.
-Anesso em; 7 maio 2002.
“ Conforme dados do CIMI, o número de candidatos indígenas cresceu nas eleições de 2000. Em
média, participaram 279 candidatos indígenas, de 71 povos diferentes. Nas eleições de 1996, aproxima
damente “80 candidatos se inscreveram para os cargos eletivos. O CIMI elaborou subsídios didáticos
27
. I\r ^ t u I I
(Tem político na aldeia e Tem aldeia na política), estimulando a reflexão do voto consciente” (Cf. Poran-
tim, out, 2000, p. 14).
C f ISA. Organizações indígenas. Disponível em: <http://www.socioambiental.org/website/pib/por-
tugues/org/sobreorg.hlm>. Acesso em: 26 maio 2002.
28
M05 RODAPÉS DA HISTÓRIA
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CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
30
fJOS RODAPÉS DA HISTÓRIA
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CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
32
WOS RODAPÉS DA HISTÓRIA
AMA M o v im e n t o A rt ic u la d o d a s M u lh e r e s d a F lo re sta A m a z ô n ic a AC
AMAI A s s o c ia ç ã o d a s M u lh e r e s d e A s s u n ç ã o d o Iç a n a AM
A M IA R N A s s o c ia ç ã o d a s M u lh e r e s In d íg e n a s d o A lto R io N e g r o AM
A M IC O P A s s o c ia ç ã o d a s M u lh e r e s In d íg e n a s d o C e n t r o -O e s t e P a u lista SP
A M !D A s s o c ia ç ã o d a s M u lh e r e s In d íg e n a s d o D istrito d e la u a re té AM
A M IK A s s o c ia ç ã o d a s M u lh e r e s In d íg e n a s K a m e b a AM
A M IM S A s s o c ia ç ã o d a s M u lh e r e s In d íg e n a s d o M é d io S o l im õ e s AM
A M IS M A s s o c ia ç ã o d a s M u lh e r e s In d íg e n a s S a t e r é - M a w é AM
A M IT R U T A s s o c ia ç ã o d a s M u lh e r e s In d íg e n a s d e T a ra c u á , R io U a p é s e T iq u ié AM
AMP A s s o c ia ç ã o d a s M u lh e r e s Pareci MT
AMP A s s o c ia ç ã o d a s M u lh e r e s P a ta x ó MG
AOMP A s s o c ia ç ã o O r r id io n a d a s M u ih e r e s P a re si MT
G R U M IN G r u p o M u l h e r - E d u c a ç ã o In d íg e n a RJ
O M IR O r g a n iz a ç ã o d a s M u lh e r e s in d íg e n a s d e R o ra im a RR
UNAMl U n iã o N a c io n a l d a s M u lh e r e s In d íg e n a s PR
33
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDlGENA COTíTEMPORÃNEA NO BRASIL
34
*JOS RODAPÉS DA HISTÓRIA
Cf. Educação diferenciada-, respeito à cultura e tradiçáo. Entrevista do Ibase com Eliane Potiguara.
Disponível em; <http://rvww.ibase.br/paginas/potiguara.html>. Acesso em: 12 mar. 2002.
’■*Cf. Porantim, mar./abr. 1999, p. 12. Ver as palavras de Fendó na epígrafe que abre o quarto capítulo
deste trabalho.
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CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
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RODAPÉS DA HISTÓRIA
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CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDiGENACCííTEMPORÂNEA NO BRASIL
S u r in a m e 4 2 2 .0 0 0 30.0 00 7,1
N ic a r á g u a 3 ,8 7 1 .0 0 0 153.000 3.9
D o m in ic a 8 2 .0 0 0 2.000 2,4
C o lô m b ia 3 5 .8 86.00 0 7 2 8 .0 0 0 2,0
P a ra g u a i 4 .2 7 7 .0 0 0 7 9 .0 00 1,8
38
»(0S RODAPÉS DA HISTÓRIA
e ■ 1.000 1,2
P A n t ig u a e B a r b u d a 8 5 .0 00
1 L C o s ta R ica 2 .9 5 9 .0 0 0 3 5 .0 0 0 1,2
1 1 G u a d a lu p e 3 6 0 .0 0 0 4 .0 0 0 1,1
1
1
R
R
A rg e n t in a
B a rb a d o s
3 1 .9 2 9 .0 0 0
2 8 0 .0 0 0
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3.000
1,1
1,1
1 1
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M a rtin ic a
V e n e z u e la
3 5 9 .0 0 0
19.2 45.00 0
1.000
1 4 0.560
0,3
0,7
1 E s t a d o s U n id o s 2 4 8 .7 0 9 .8 7 3 1.418.000 0,6
1 T o ta l; 4 3 .1 3 9 .1
F o n te : P re z ia ; H o o r n a e r t (2 0 0 0 , p. 240).
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CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
FERREIRA, Mariana K. Leal. Fome ameaça povos indígenas em São Paulo. Disponível em: <http://www.
sodoambicnial,org/website/parabolicas/edicoes/edicao46/reportag/pg5.íitm>. Acesso em; 7 maio 2002.
40
fiOS RODAPÉS DA HISTÓRIA
Em outras palavras, o “que antes era visto como trabalho missionário, hoje é
encarado como luta por uma vida digna”. Em síntese, os dados mais recentes
mostram:
1 9 8 0 -2 2 7 .8 0 1
Fonte: Porantim, out. 1980 - Egydio Schwade
1 9 9 1 -2 9 4 .1 3 5
Fonte: censo do IBGE —Porantim, out. 1989, p. 8
1996 - 325.652
Fonte: Documento da Presidência da República: Sociedades Indígenas e
a Ação do Governo
2000 - 701.462
Fonte: IBGE —Censo 2000 (publicado em 2002)
41
2.
Identidades e utopias
[...] desenvolví uma visão maior que o normal, uma visão de índio,
um olfato de índio, uma audição de índio.
(HENFIL, 2002, p. 31)
Tema da minha Conferência na Semana dos Povos Indígenas, NEI/CAC/UFPE, abr. 1999/2000.
Cf. o meu artigo “Um flagrante do marginalizado na literatura brasileira” {Porantim, jul. 1999, p. 5).
43
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
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IDENTIDADES E UTOPIAS
Joáo Ubaido e o besteirol dos 500 anos. O Estado de S.Paulo, 23 abr. 2000.
Devo essa ínterlocuçáo ao colega Alexandre Furtado {professor da UPE),
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CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENACONTEMPORÂNEANO BRASIL
Uma coisa é dizer que o Brasil foi descoberto no dia 22 de abril de 1500
e outra coisa é contar que “o Brasil foi introduzido de maneira violenta, na
cultura ocidental; foi o primeiro golpe da nossa história [...]; os índios náo sa
biam nem o que era golpe ainda, coitados. Levaram um, logo de cara”, afirma
Ariano Suassuna (1994, p. 24) em muitas de suas aulas. Fatídico dia em que
foi instaurado no Brasil o começo de um modelo mercantilista. Dos equívo
cos que se aprende nos manuais literários, convém grifar a afirmação de que a
carta de Caminha significou para a nossa História “uma autêntica certidão de
nascimento”. Que essa carta é um dos mais importantes registros do processo
da transfiguração étnica^** com a chegada dos portugueses ao “Novo M undo”
é um fato; que se trata de um texto bem elaborado e bastante persuasivo, é
incontestável; que tem uma estreita relação com o discurso literário, náo resta
dúvida.
Todavia, há outras manifestações que autenticam a existência da arte
nativa para o mundo. Basta um olhar sobre as itacoatiaras, e aguçar a sensi
bilidade para ouvir as histórias de tradição oral e escrita dos povos indígenas
e africanos. A este respeito, as escolas em geral não contam. Trabalhar o mito
(realidade/história) pode não ser uma tarefa fácil; mas, a partir dele, é possível
fazer o (re)conhecimento da nossa identidade sufocada nesses mais de 500
anos. Quem teve a oportunidade de ler os mitos indígenas adaptados por Ciça
Fittipaldi para o público infanto-juvenil da cidade grande sabe que o “po-
rantim” é o principal símbolo da cultura Saterê Mawé, isto é, trata-se de um
remo onde está gravada/escrita toda a história mítica dos filhos do guaraná.
Na língua Saterê Mawé, “porantím” significa: remo, arma e memória; significa
uma expressão escrita de vida e espírito que existe muito antes da chegada dos
portugueses em Pindorama; ou como queiram: ao Brasil, Brazil, Brasis.
O estudo da representação do negro e do índio na literatura requer uma
abordagem específica. Da maneira como o assunto vem sendo trabalhado,
sobretudo nas escolas dominantes, o processo de formação política, social,
™A transfiguração étnica, segundo Darcy Ribeiro (1995a, p. 30), “se dá pela gestação de uma etnia
nova, que foi unificando, na língua e nos costumes, os índios desengajados de seu viver gentílico, os
negros trazidos de África, e os europeus aqui querenciados. Era o brasileiro que surgia, construindo com
os tijolos dessas matrizes à medida que elas iam sendo desfeitas”.
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IDENTIDADES E UTOPIAS
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CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDiGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
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IDENTIDADES EUTOPLAS
A imagem da transfiguração em Marabá revela uma das interfaces do parco da nação brasileira, sobre
tudo a cara mestiça, como diz Darcy Ribeiro (1995a, p. 448), ao referir-se às “mulheres negras e índias,
muitíssimas, com uns pouquíssimos brancos europeus que nelas se multiplicaram prodigiosamente”.
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CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
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IDENTIDADES E UTOPIAS
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CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDlGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
Livro composto de mitos, adivinhações, história, cosmologia e outros saberes sagrados da civilização
Maia.
52
IDENTIDADES E UTOPIAS
A linguagem é a história
e a história
é a fúria agora.
Para Antonio Hohlfeldt (1998, p. 15-16), esse poema abarca “em sua
síntese amplificada as contradições e as afirmações de um povo que, oprimi
do ao longo dos séculos, marginalizado da história, sempre encontrou, em si
mesmo, motivos de sobrevivência e resistência”. Em outras palavras, a fala do
Guarani, em SandAnna, configura um exemplo das raras exceções em que os
povos indígenas aparecem na literatura brasileira como sujeitos da própria his
tória. Tomamos de empréstimo as seguintes palavras de Aracy Lopes da Silva
(1989) para afirmar que são raros:
Lema do “Fórum Social Mundial”. Um evento que se realiza, anualmente, em Porto Alegre e que
tem por objetivo geral: opor-se à globalização excludente e militarista representada pelo neoliberalismo.
53
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
pode dar à questão são postas, aqui, como mais uma possibilidade de leitura.
Portanto, não se trata de uma leitura essencialista, do contrário cairiamos nas
armadilhas do “texto de autoridade” em detrimento do texto de alteridade.
Essa perspectiva nos aproxima de Bhabha (1998, p. 19) na argumentação do
local da cultura, mostrando-nos que a “Nossa existência hoje é marcada por
uma tenebrosa sensação de sobrevivência, de viver nas fronteiras do presente’,
para as quais não parece haver nome próprio além do atual e controvertido
deslizamento do prefixo pós’: pós^modernismo, pós-colonialismo, pós-feminis-
mo...” (grifo do autor).
Os textos literários contemporâneos de autoria indígena mostram, cla
ramente, que a palavra indígena sempre existiu; que a “palavra foi nova para
os que tinham perdido a memória, mas para vocês [os parentes indígenas e ín-
dio-descendentes] não é nova nossa palavra porque já a caminhavam desde os
mais antigos avós,” diz a Carta do Comitê Revolucionário Indígena (CCRI)
aos participantes do Fórum Nacional em Chiapas. Escrita em 1988 e publica
da na antologia organizada por Massimo Di Felice e Cristobal Munoz (1998),
essa carta do CCRI expressa o pensamento do sub comandante Marcos junto
ao Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN).
No “Prefácio cúmplice” dessa antologia, o poeta Pedro Casaldáliga
(1998, p. 9) —Bispo do Araguaia —mostra-nos que é “hora mesmo dever tam
bém no Brasil —ai. Brasil, tão pouco latino-americano ainda! - esta antologia
zapatista, disparar a palavra, a indignação, a mais legítima das reivindicações”.
Orientando-nos que é chegada a hora da nossa indig(e)Nação, essa antologia
sugere os caminhos (subsídios) que, por muito tempo, desejei encontrar para
compreender o universo da literatura indígena no Brasil; “subsídios de sonho,
de alternatividade, de co-responsabilidade, que podem nos estimular a essas
novas formas de luta”, como diz Casaldáliga (1998, p. 10, grifo do autor), ca
minhos visionários para reafirmar o lugar da palavra nas sociedades indígenas,
em contraponto ao lugar dessa literatura na sociedade não indígena.
54
IDENTIDADES E UTOPIAS
Em depoimento pessoal, o pesquisador Gatti informa que esse artigo é uma versão do que foi pu
blicado em; VIAU, Robert (Dir.). La création littéraire dans le contexte de 1'exiguité. Beauporc; MNH,
55
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASiL
55
I
IDENTIDADES £ UTOPIAS
57
COMTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTÍMPORANEA NO BRASIL
^ “Por aculturación se quiere significar el processo de trânsito de una cultura a outra y sus repercusiones
sociales de todo genero. Pero transculturación es vocablo más apropiado” (cf. ORTIZ, 1978, p. 93).
58
IDENTIDADES E UTOPIAS
Nesses termos, uma coisa é afirmar que uma pessoa não tem cultura (ig
norar sua existência) e outra coisa é reconhecer que as sociedades tradicionais
sofreram o impacto a partir da chegada do sujeito dominante. É possível di
zer —dentro da percepção indígena —que o índio não deixa de ser ele mesmo
em contato com o outro (o nlo índio), ainda que o (a) indígena more numa
cidade grande, use relógio tjeans, ou se comunique por um celular; ainda que
uma parabólica pareça, ao outro, um objeto estranho ou incompatível com a
comunidade indígena; ainda que nos deparemos com o indígena nos cami
nhos da internet, em plena construção de aldeias (aparentemente) virtuais;
mesmo assim, a indianidade permanece, porque o índio e/ou a índia, onde
quer que vá, leva dentro de si a aldeia. Os que ficam sabem que vão junto, no
sangue do parente, na pele, na consciência, no cotidiano da história e da me
mória do parente que não deixa de ser e/ou reconhecer-se filho legítimo pelo
amor à terra. Portanto, diferente do outro (o não índio). Essas questões são
claramente expostas por Daniel M unduruku, Ailton Krenak, Marcos Terena,
Darlene Taukane e Renê Kithâulu, entre outros pensadores indígenas.
Existe “desindianização” nos Pankararu que estão deslocados/desalo-
jados em São Paulo? Ao que me consta, continuam iguais na indianidade,
parentes dos Pankararu que, pela força das circunstâncias, deixaram em Per
nambuco. O mesmo sentimento e consciência ocorre com os M unduruku
(em São Paulo ou no Pará), com os Saterê-Mawé, os Potiguara, os Guarani e os
Terena, por exemplo. Negar essa existência, essa resistência significa contrariar
o pensamento indígena que rejeita a ideia de aculturação. Nessa perspectiva,
parece-nos igualmente válido rejeitar a ideia de “desindianização” apresentada
em Ribeiro e em Canclini, conforme observamos anteriormente.
Ao retomar em Guilherme Bonfil Batalla os conceitos de diferença e
“subordinação”, Canclini dá como exemplo de desindianização ou aculturação
as comunidades camponesas de mestiços que - no seu entender —perderam
59
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
60
IDENTIDADES E UTOPIAS
C’itaçáo de Georges Sioui: “a América branca perdeu a briga cultural que cravou contra os Amerín
dios” (Cf. BOUDREAU, 1993, p. 99).
Basil Johnscon é doutor em Educação pela Universidade de Toronto, Canadá.
^ Em 1979, por iniciativa de cinco caciques representantes de cinco povos indígenas, foi criada a revista
O.Mensagriroí uma publicação bimensal que circula, também, pela internet. Com o apoio do CIMI,
essa revista é dirigida aos povos indígenas, mas conta também com a participação de leitores não índios.
A proposta dos seus organizadores é levar “a palavra do índio para o índio” e ser um veículo de inter
câmbio entre aldeias.
61
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
62
IDENTIDADES E UTOPIAS
literário pelo viés da ecocrítica (tanto quanto o seu objeto de estudo) implica
um olhar discernidor no que se refere também a estética dos excluídos. Nessa
perspectiva; a sabedoria dos pajés, por exemplo, não parece dissonante aos
ensaios críticos sobre o meio ambiente e a qualidade de vida e às denúncias
contra a segregação racial e a indiferença. Essa questão merece ser refletida.
Uma vez que estamos falando do compromisso também com a teoria, Bhabha
rraz mais um argumento:
63
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDfGENACOlíTEMPORÃNEA NO BRASIL
64
IDENTIDADES E UTOPIAS
o chinês, sendo uma língua tonal, de quatro tons, não pode ser
reproduzida por nenhuma língua ocidental. Essa dimensão sofis
ticada faz com que a poesia chinesa soe sempre como um canto.
[Desse modo, Campos propõe] reimaginar essa tonalidade na for
ma de orquestração, transformando aquilo em verso livre, usando
eventualmente uma rima, reproduzindo em português os jogos de
organização gramatical [idem).
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muito evocado por grupos étnicos deslocados que sentem uma conexão com
e lugar de origem. Esse sentimento de conexão deve ser forte o suficiente para
lesistirem ao processo de deslocamento, perda e distanciamento. A noção e
O sentimento em torno do processo diaspórico podem ser “traduzidos” ou
possivelmente explicados com base na tensão de viver em determinado local,
mas com o pensamento voltado para o lugar de origem. Em princípio, é o
que sugere Clifford. Porém, ao tentar estabelecer uma relação entre diáspora e
tribo, ele pergunta: “quanto tempo uma pessoa leva para se tornar indígena?”.
Não se trata de uma pergunta política, como ele pretende, mas uma questão
capciosa, essencialista, que se confirma no conceito de raízes que ele procura
formular subestimando a relação entre ídentidade/alteridade no que se refere
aos povos indígenas.
A visão de Clifford parece excludente ao considerar que o senso de
raízes que tem o indígena (referindo-se às primeiras nações) é precisamente
o que falta nos grupos diaspóricos. Em suas contradições, ele admite que a
oposição entre diáspora e tribo não é absoluta, pois não é possível definir
quando ocorre diáspora, claramente. Em suas afirmações, esse processo não
existe na cultura indígena. Em outras palavras, “Tribal cultures are not dias-
poras”^^ (CLIFFORD, 1997, p. 254), Se esta é uma noção pós-moderna,
pós-colonialista de cultura, que outros “ismos” devemos utilizar para (re) defi
nir o “caminho de volta” que alguns povos indígenas no Brasil estão fazendo,
“recuperando narrativas tradicionais e resgatando [...] o modo antigo de ver e
interpretar o mundo”?^^ Onde estão as raízes?
A noção de diáspora, infelizmente, atinge tanto os indígenas quanto os
judeus, africanos, muçulmanos e outros povos excluídos. Isso também quer
dizer que “todas as culturas são de fronteira” (CANCLINI, 1998, p. 348).
Essa questão nos permite aplicar à luz de Ortiz e Ribeiro (quanto aos con
ceitos de transculturação e transfiguração) o termo hifenização para explicitar
os possíveis efeitos positivo e negativo do processo. No campo da literatura
Cf. CLIFFORD, 1997, p. 254: “{Precísely how tong it takes to become indígenous is always a po-
litical question.) Tribal cultures are not diasporas; their sense of rootdness in the !and is precisely whaC
diasporic pcoples have lost.”
« MUNDURUKU, 2000a, p. 71.
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p. 43). Nessa perspectiva, mais uma pista nos oferece a abordagem periférica
para compreender as formas de exclusão, ou seja:
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Cf. Rodrigo Montoya Rojas escreveu esse artigo a convite da Profa. Dra. Janice Ibeodoro e da equipe
de História virtuaJ do Departamento de História da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Uni
versidade de São Paulo, em novembro de 1998.
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Cf. Montoya, o poeta Garcilaso de la Vega era fiüio “ilegítimo” de um‘ nobre andaluz conquistadoi
de uma princesa da alta aristocracia inca.
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^ No Canadá, a Constituição só reconhece a existência de ttés grandes grupos indígenas: Os Inuit, que
vivem em pequenas comunidades no Ártico; os Métis (descendentes da miscigenação entre os nativos e
os franceses) que habitam as províncias de Manitoba, Sashatchwan e Âlberta; c os índios, também de
nominados de First Nations. Dessas naçóes, aproximadamente 60% vive em reservas e 40% em centros
urbanos (O Mensageiro, n. 110, p. 9).
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^ Cf. intcrlocução da Professora Silvia Cortez durante a minha defesa do presente estudo, em 12 mar.
2003.
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colonizador dos índios” (SILVA, S. C., 1995, p. 50). O fato é que a noção
do eleito em Freyre configura um parâmetro racista e aristocrático. Em ou
tras palavras: “há índios e índios, como há negros e negros, [„.] há judeus e
judeus [...]. O sudanês foi, sem dúvida, o negro eleito! O u seja, dos negros o
melhor!” (SILVA, S. C., 1995, p. 50). A percepção de Silva acerca do tempo
e da história na referida obra de Freyre revela uma grande e triste metáfora: “a
senzala [é] a grande excluída [...]. Ausente do texto freyriano não pode deixar
para a posteridade as suas tristes vivências: foi um navio negreiro ancorado em
terra (SILVA, S. C., 1995, p. 57, grifo da autora).
Os escritores indígenas no Brasil vêm, por muito tempo, expondo sua
visão de um vasto mundo que, em geral, todos desconhecemos. Isso faz ver que
a necessidade de falar e escrever em seu próprio nome é também um mecanis
mo de defesa contra “intermediários e intérpretes indesejáveis ou mesmo pouco
atentos”, como observa lokoi (1999, p. 42), acerca do discurso de Marcos Te-
rena. Uma vez que “os índios foram obrigados a defender a sua concepção de
cultura, de identidade e de visão de mundo,” as próprias comunidades indígenas
procuraram investir na formação de seus parentes, mesmo que essa formação
seja realizada “na lógica da culmra branca, como foi o caso de Marcos Terena
[...] Ailton Krenak” e de muitos outros, observa lokoi (1999, p. 42).
Fruto das preocupações de Marcos Terena, o Instituto Indígena Brasi
leiro de Propriedade Intelectual —INBRAPP® foi criado em maio de 2002.
Participam dessa organização os escritores Darlene Taukane e Daniel Mun-
duruku, entre outros defensores dos direitos linguísticos, literários e humanos
dos povos indígenas. O surgimento do INBRAPI faz crer na possibilidade de
que as ONGs e os missionários estrangeiros deixem de interferir nas socieda
des indígenas da forma que têm feito até hoje. Por isso mesmo, os pensadores
O Instituto Indígena Brasileiro da Propriedade Intelectual é uma O NG que foi criada em maio de
2002 e dirigida por indígenas de diferentes etnias. Sua proposta principal é a defesa do conhecimento
tradicional e o combate à biopirataria. Sua diretoria está assim organizada: Presidente; Vilmar Guarany
—Advogado; Vice: Darlene Taukane - Mestre em Educação; Secretária; Lúcia Fernanda Kaingang —
Advogada; R. Públicas: Daniel Munduruku - Filósofo. O INBRAPI conta com o apoio de mais de 100
pajés e caciques de diversas etnias. Seu conselho é composto por nomes conhecidos nadonal e interna
cionalmente como; Ailton Krenak, Marcos e Jorge Terena, Getúlio Kaiowá, entre outros. Sua sede é em
Brasília. Disponível em: <inbrapi@uol.com.br>. Acesso em: 12 dez. 2002.
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tro inter-reÜgioso que reuniu duzentos lideres religiosos de todo o mundo. Por meio do Instituto Nova
Tribo, em parceria com a Fundação Peirópolis, coordena uma ação de educação em valores humanos da
sabedoria indígena para os povos urbanos.
Cf. IstoÊ, 21 jul, 1999.
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pelo direito de expor sua arte, pelo direito à saúde, pelo direito de escrever o
outro lado da história e outras questões pertinentes ao universo indígena.
Respeitando as diferenças, pode-se dizer que as manifestações literárias
indígenas são reveladoras de uma convergência temática, sobretudo no que
diz respeito à Mãe Terra e, com frequência, vêm abordando a relação autor-
texto-leitor e, ao mesmo tempo, denunciando a exclusão e as várias faces da
globalização, do (neo) colonialismo e do analfabetismo'*'* na América.
Não menos preocupante é a situação do escritor no Chile, onde poetas
indígenas não escaparam também desse mal que atinge os chamados “poe
tas marginais” da sociedade letrada: a triste realidade de lerem a si mesmos,
como observa o poeta mapuche Jaime Huenún (2002), em sua entrevista ao
jornalista José Osório, do jornal El Siglo. Huenún observa, ainda, que são
abundantes os eventos e concursos literários na América Latina, no Chile,
principalmente; mesmo assim, o público leitor de obras indígenas ainda é
uma minoria. Segundo Huenún, essa situação revela:
No Brasil, a reduçáo na taxa de analfabetismo, revelada pelo Censo 2000, mostra —por outro lado -
que 13,63% da população com mais de 15 anos é analfabeta; ultrapassando a taxa dos países vizinhos
Na Argentina, a taxa de analfabetismo é de 3%; no Chile, 4%; na Venezuela, 7%. Na Colômbia, c
analfabetismo atinge 8% da população com mais de 15 anos de idade.
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Ff
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No artigo “Primeiros passos para uma gramática pedagógica da Síngua Kaxinwá” {Boletim Axeuvyru),
a linguista Adair Palácio registra a permanência de Joaquim Mana na UFPE (de setembro a dezembro
de 1991), sob os auspícios da CPI/AC, da Pró-Reiroria Comimiráiia da UFPE. Conforme Palácio, o
kaxinwá Mana teve a oportunidade de conviver com estudantes, frequentar o Núcleo de Estudos Indi-
genistas do Departamento de Letras da UFPE, a fim de aprofundar estudos a respeito de sua língua e
vivendar uma Universidade.
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da tabela em que Almeida situa as etnias que publicaram livros, até 1997.
Antes da leitura do referido quadro, convém observar o “conceito mais prag
mático de literatura”, que ela descreve;
A rara, A s h e n in k a , K a t u t in a d o A cre , P o y a n a w a , Y a m in a w á , Y a w a n a v á ,
A c re
K a tu k in a , K a x in a w á (Peru)
Am apá W a iâ p i
Am azonas S a te ré -M a w é , T ik u n á T orá, M u n d u r u k u , Y a n o m a m i
B a h ia Kiriri, P a ta x ó h á h ã h ã e , T u xá
B a ka iri, B o ro ro , K a la p a lo , K a m a y u r á , P a re s í,T a p ir a p é ,X a v a n te ,
M a to G ro sso
K a d iw é u , K a ya b í, K a y a p ó , C in ta -L a rg a , N a m b ik w á r a
M a to G ro sso S u l K a d iw é u
M in a s G e ra is K re n a k , M a x a k a li, X a k ria b á , P a ta x ó
P ará M u n d u ru ku
P a ra n á G u a r a n i- N h a n d e v a , G u a r a n i- M 'B iá , K a in g á n g
R io G ra n d e d o S u l K a in g á n g
R o n d ô n ia K a r ip ú n a , T u p a rí, C in ta -L a rg a , N a m b ik w á r a
R o ra im a Yanom am i
S a n t a C a ta rin a X o k ie n g , G u a r a n i- M 'B iá , K a in g á n g
S ã o P a u lo G u a r a n i- M 'B iá ,
T o c a n t in s K ra h ó
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A distinção entre livro subsidiado ou não por órgãos oficiais nos pare
ce uma ideia de rejeição impregnada no rótulo “o livro com cara de índio”
que observamos em Almeida. Isto faz ver que o pensamento indígena e o
pensamento indígena-descendente publicados fora do cânone não atendem
aos critérios institucionais. Se o purismo for o critério para designar a excep-
cionalidade do “livro com cara de índio”, esse mesmo livro pode não abrir
as páginas para os seus descendentes. N a verdade, são os preconceitos que
desautorizam os livros de autoria indígena-descendente de serem designados,
também, de excepcionais. Até que ponto os livros indígenas subsidiados por
instituições governamentais promovem o reconhecimento dos autores indí
genas e autores indígena-descendentes? Nosso questionamento parte de uma
constatação: com base na tabela original apresentada por Almeida (1999, p.
15-16), observamos que os Potiguara e outros povos do Nordeste não apare
cem na tabela das etnias que publicaram livros no período que foi estudado
pela autora. Observamos, ainda, que na bibliografia do referido estudo consta
apenas uma breve referência à obra de M unduruku (1996) e de Potiguara
(1994).
Considerando que a prática da literatura (de autoria individual) é uma
ponta do iceberg em movimento, no contexto da grande história das letras
indígenas, o nosso questionamento é uma forma de reiterar o pensamento do
escritor Ailton Krenak, ao enfatizar que todos estão “sendo intimados a criar
novas respostas para um grande número de perguntas que não são tão novas
assim” (KRENAK ALMEIDA, 1999, p. 14). Tais perguntas são neces
sárias à apreensão do conceito de escritura coletiva que, em Almeida, implica
uma “expressão do que é comum, ou de um consenso em torno do quem
somos” (1999, p. 18). Essa noção do coletivo nos aproxima do dialogismo em
Bakhtin e, dessa maneira, nos permite também observar que o texto indígena
de autoria individual implica um tecido de vozes, pois “todo texto verbal [...]
apresenta como dimensão constitutiva múltiplas relações dialógicas com ou
tros textos”, diz Aguiar e Silva (1988, p. 624).
No período da pesquisa de Almeida, os povos indígenas de outras regiões
(em Pernambuco, por exemplo) publicaram livros, embora Almeida (1999, p. 18)
afirme que “a supremacia da produção intelectual indígena brasileira está com a
região Norte (Amazonas, Tocantins, Pará, Roraima, Rondônia, Amapá, Acre)”.
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Cf. as obras de Marcos Terena, Kaka Werá Jecupé, Daniel Munduruku, Olívio Jecupé, Renè Nambi-
kwara e Yaguarê Yamã, entre outros.
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' Cf. anexo com o ementário de literatura aplicado no 3° Grau Indígena da UNEMAT.
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escolar) ainda muita reflexão”, afirma Rosa Helena Dias da Silva (2000, p.
62'75) a respeito do movimento dos professores indígenas do Amazonas, de
Roraima e do Acre. Nessa perspectiva, o educador D ’Angelis discute no artigo
“Contra a ditadura da escola” o problema do estereótipo e a falta de clareza
política no tratamento da temática indígena. Ele atualiza a discussão do cur
rículo escolar, alertando para a necessidade de combater o “império do senso
comum”, considerando que não há um padrão de escolas indígenas. Segundo
D ’Angelis, existe uma diferenciação;
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A possível leitura de que fala Bernd nos remete ao livro de Olívio Jeku-
pé (2000), O Saci verdadeiro, no qual a questão do híbrido aparece associada
a dois personagens que carregam nomes semelhantes e a imagem do outro é
problematizada na escola, mas do ponto de vista de um garoto indígena: o
personagem Karaí. Situando a biblioteca da escola náo indígena como um
entrelugar no espaço da narrativa, o escritor Jekupé questiona a relação da
escola dominante com as comunidades indígenas. Essa situação mostra que a
ped^ogia da diferença (Meliá) implica o reconhecimento dos saberes negados
ao longo da crucial história da colonização, ressaltando que “a ação pedagó
gica para a alteridade não é uma descoberta feita pela sociedade ocidental e
nacional para oferecer aos povos indígenas, muito pelo contrário: é o que os
povos indígenas podem ainda oferecer à sociedade nacional” (MELIÁ, 2000,
p. 16). Dessa perspectiva, D ’Angelis ressalta:
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