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Graca Graúna

CONTRAPONTOS DA
LITERATURA INDÍGENA
CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

M A SA
edições
i daliteratura indígena contemporânea no Brasil
!jB ra jB te 3 6 1 3 b y Graça Graúna
%dae osdinJIiu reservados

Revisão
Lourdes Nascimento

Capa
Túlio Oliveira sobre ilustração Veruschka Guerra

Projeto gráfico e diagramação


Anderson Luites - Casadecaba Design e Ilustração

MAZZA EDIÇÕES LTDA.


Rua Bragança, 101 - Pompeia
30230-410 Belo Horizonte - MG
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G774 Graúna, Graça.


Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil /
Graça Graúna. - Belo Horizonte; Mazza Edições, 2013,

200 p.; 16x23cm

lSBN;978-85-7160-591-6

1. Literatura indígena - Brasil. 2. Literatura indígena - História e critica.


I. Titulo.

CDD: 898.3
CDU: 821.8
A meus pois;

a Fabiano, Ano eAgnes - meus filhos;

oos meus netos, pelo direito de sonhor;

à Deo, Daniel Cruz, Mozzo, Poblo, Veruschko e Lourdes - pelo ombro amigo

00 guarani Sepé Tiaroju, símbolo da resistência e aos demais parentes


indígenas - na esperança de que os nossos direitos sejam respeitados.

dedico este livro.


SUMÁRIO

II
I

Prefácio..................................................................... 9
II
Iniciações................................................................. 15
|l

1. Nos rodapés da história............................................ 25


I
2. Identidades e u to pias.............................................. 43

I 3. Diáspora indígena................................................... 95

4. Contação de histórias; cumplicidades......................... 125

I Conclusão
"Multiplicando o cereal plantado” .............................. 169

Posfácio
A palavra indígena sempre existiu .............................. 173

I Anexos ...................................................................179

Referências............................................................. 185
PREFÁCIO
Rotand W alter
U FP E/C N P q

Nas Américas, a brutalizaçáo das pessoas é ligada à brutalização do es­


paço e estas brutalizaçóes são enraizadas no passado: o genocídio de tribos
indígenas, a escravidão e o sistema de plantação e as várias formas de explo­
ração da natureza, entre outros, caracterizaram as diferentes fases e processos
de colonização e ainda continuam a ter um impacto sobre o pensamento e o
agir das pessoas não somente em termos de como as pessoas se relacionam e
tratam os diversos outros (penso, por exemplo, no racismo e no sexismo em
suas formas tanto ideológicas quanto instintuais), mas de como as imagens
destes eventos traumáticos perseguem estes pensamentos e agenciamentos.
A representação do espaço é simbolizada por uma natureza nutrida pelos
corpos violados da história colonial, um engajamento literal com o que o
poeta caribenho Wilson Harris (1981, p. 90) chama “o fóssil vivo de cultu­
ras enterradas”^ Alego que esta dupla brutalização dos seres humanos e da
geografia (terra, paisagem, natureza, espaço, lugar) é interligada e constitui
de diversas maneiras o inconsciente sociocultural e ecológico da experiência
pan-americana - o fantasma deste holocausto recalcado que volta em resposta
à Verieugnung (negação) fazendo sentir sua presença tanto no nível da enun-
ciação quanto no da experiência vivida.

' Espaço nacional que, segundo o crítico Antonio Cornejo-Polar (2000, p. 147) é caracterizado por “hece-
rogeneidade conflituosa" como resultado da colonização imperialista. Para ele, as nações latino-americanas
são “traumaticamente desmembradas e cindidas”.
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

Se, segundo Milton Santos (2007, p, 81-82), “a cultura” como “forma


de comunicação do individuo e do grupo com o universo é uma herança,
mas também um reaprendizado das relações profundas entre o homem e o
seu meio, um resultado obtido por intermédio do próprio processo de viver”,
poder-se-ia argumentar que o cerne do problema identitário que diz respeito a
grupos multiétnicos pan-americanos em geral e, entre estes, as nações amerín­
dias especificamente é a relação com a origem num espaço onde diversos frutos
da colonialidade continuam a ter efeito sobre as relações intersubjetivas. Ter
uma identidade significa ter uma história inscrita numa terra. Ter uma his­
tória imposta contra a vontade, sem poder inscrevê-la na terra enquanto seu
dono, como no caso dos afrodescendentes pan-americanos, significa ter uma
não identidade. Ter uma história enraizada na terra roubada durante um pro­
cesso colonial, como no caso das primeiras nações indígenas pan-americanas,
significa ter uma não identidade. Ter uma história enraizada na terra roubada
durante um processo colonial, como no caso dos colonizadores e seus des­
cendentes, significa ter uma não identidade nutrida pelo remorso recalcado.
Refletida nestas não identidades - identidades fragmentadas e/ou alienadas
por condições de violência - é a importância da geografia e da memória en­
quanto elementos para se colocar como sujeito. Sem lugar a consciência e a
subjetividade do ser humano são inconcebíveis. Este lugar pode ser de natu­
reza geográfica e/ou linguística, religiosa, cultural - um lugar epistêmico. Para
povos colonizados e grupos marginalizados, o processo da descolonização e
desmarginalização significa que o lugar unheimlich —o lugar (e a correspon­
dente episteme cultural) da subalternização —tem que ser transformado num
lugar heimlich-, um lugar-lar onde a equação mundo/imagem do íe/jT(rompida
e distorcida pelo processo colonizador) é reestruturada com base no próprio
ethos e cosmovisáo. O lugar-lar e sua construção na língua, portanto, é um dos
meios pós-coloniais cruciais para lembrar (e assim juntar) os fragmentos de
uma cultura/história/identidade estilhaçada e parcialmente perdida nos traços
nômades entre mares e (não)lugares, bem como entre os muitos ditos e não
ditos de diversos discursos. Um outro meio, talvez o mais importante no caso
das nações ameríndias, é a luta jurídica pela posse/reconquista/não invasão da
terra, já que a questão da terra é crucial para a definição da episteme sociocul-
tural e a produção da subjetividade e identidade individual e coletiva, ou seja

10
PREFÁCIO

a maneira como o indivíduo vê a sua posição de sujeico numa dada sociedade


{ethos) e como, a partir desta posição, ele/ela vê o mundo (cosmovisáo). Em
cada cultura, a geografia (paisagem/ lugar/ espaço/ natureza/ terra) tem um
papel fundamental na constituição do imaginário cultural de um povo: ela é
tanto natural quanto cultural; uma entidade material e uma ideia/visâo mítica
que participa na definição identitária.
Qual é o papel da literatura e da crítica literária neste processo desco-
lonizador? Gostaria de ligar esta pergunta com duas outras: qual é o papel da
literatura no mundo? Qual a contribuição da literatura e dos estudos literários
em ligação com a ecocrítica pós-colonial para a compreensão do mundo e da
realidade? A literatura é um dos meios privilegiados de construção mitológica
coletiva. Como encruzilhada onde discursos e visões em conflito e competição
se encontram e entram num equilíbrio muitas vezes precário e contraditório,
a literatura constitui um lugar no qual diferentes valores, mitos, histórias e
traduções estão sendo negociados. E por meio da literatura enquanto espaço
mnemônico que escritores multiétnicos das Américas recriam os mitos neces­
sários para se enraizar como sujeitos autóctones. A reapropriação do espaço
via memória possibilita a colocação do sujeito na sua própria história. A re-
nomeação do seu lugar e da sua história significa reconstruir sua identidade,
tomar posse de sua cultura; significa, em última análise, resistir a uma violên­
cia epistêmica que, nas suas diversas formas e práticas continua até o presente.
Desta forma, a literatura molda idéias, crenças e ideais históricos e éticos con­
tribuindo para a constituição da episteme cultural coletiva. Mediante a crítica
literária e sua probíematização das representações culturais se ganham imights
dos diversos tipos de identidade cultural que constituem sociedades, tribos,
nações. Gostaria de traçar quatro tipos de insights\ a) insights sobre assunções
antropocêntricas (reflexão ética): a relação entre o senso de lugar e a consciên­
cia ética; b) insights sobre mimese e referência com respeito ao lugar habitado
(reflexão hermenêutica); c) insights sobre a episteme cultural/a experiência hu­
mana num dado lugar e processo histórico (reflexão ontológica/identitária);
d) insights sobre a relação entre a escrita, a vida e práticas pedagógicas (reflexão
ideológica). Neste sentido, dado o fato de que um dos problemas principais
a ser resolvido no século XXI é a coexistência de culturas radicalmente dife­
rentes e de que a literatura revela e problematiza os paradoxos e aporias da

11
Í W i B I P O ÍT O S DA LITERATURA INDÍGENACONTEMPORÂNEANO BRASIL

çsda mediante as suas representações, argumento que a essência ética da teoria


liieráiia é de constituir, junto com o seu objeto de estudo, a literatura, uma
cãéDoa da/para a \âda.
A valiosa obra de Graça Graúna se insere nesta essência ética por, pelo
moicK, duas razões fundamentais. Primeiro, o enfoque analítico é a literatura/
cultura ameríndia brasileira e segundo, implícito neste processo descoloniza-
dor, a contribuição para a constituição de um corpus crítico crescente sobre
esta literatura/cultura num país onde os indígenas constituem a margem inte­
rior da diferença cultural,
Como podemos explicar e analisar o paradoxo de que no Brasil o mul-
ticulturalismo, a mestiçagem e o racismo, a inclusão e a exclusão vivida de
grupos étnicos existem lado ao lado? Que impacto têm os diversos grupos
étnicos na construção da identidade brasileira? Como se explica o fato de que,
embora uma grande porcentagem da população brasileira apoie as reivindi­
cações territoriais e a preservação cultural das tribos indígenas,^ a maioria dos
brasileiros nega sua herança indígena? Em geral, os indígenas são sujeitados
a uma forma cultural de hegemonia baseada em cooptação e ressignificaçâo.
Barrando o acesso deles ao discurso oficial por causa de sua diferença cultural,
os grupos dominantes apropriam elementos culturais particulares deles, tradu­
zindo-os para versões nacionalistas da cultura nacional; hoje é muito lucrativo
(turismo) salvar a aparência de uma nação multicultural. Daí resulta que a sig-
nificância destes elementos não é definida dentro do conjunto de valores das
tribos indígenas, mas dentro daqueles dos grupos dominantes. Como pode­
mos definir uma nação que é paradoxalmente caracterizada por (e imaginada
como) um crisol, uma unidade em diferença —ou seja, por uma /wferação
multicultural e uma autodefinição que percebe e aceita a diferença cultural
como uma parte integral da sua estrutura social, ethos e cosmovisão —e por
uma diferença como separação em que questões de gênero, raça, etnicidade e
classe se entrelaçam e chocam? O outro étnico-racial, poder-se-ia argumen­
tar, ocupa um lugar intersticial no Brasil. O deslize entre inclusão e exclusão
define o entrelugar dos afro-brasileiros e indígenas como nacionais outrizados

“Ver: VEJA. v. 33, n. 15, p. 120-22, 12 abr. 2000.

12
PREFÁCIO

- um lugar onde aparecem e desaparecem. Neste sentido, a literatura indígena


e sua crítica literária são fundamentais em: a) afirmar e problematizar a cultu­
ra e os direitos indígenas e assim contribuir para a ampliação do processo da
construção nacional multicultural; e b) retificar as distorções do discurso he­
gemônico cujos estereótipos definem os indígenas por meio de uma categoria
de exotismo, primitivismo e/ou desumanidade. O trabalho de Graça Graúna
como escritora e crítica literária, portanto, abre uma zona de contato em que a
oralidade e a escrita indígena brasileira constituem um hífen enquanto fissura
e fusão —uma différance—que suplementa e subverte o discurso monocultura!
do cânone crítico-literário. Desta forma, contribui para a construção de uma
encruzilhada crítica e literária brasileira caracterizada por uma verdadeira plu­
ralidade cultural, identitária e étnico-racial.

REFERENCIAS
CORNEJO-POLAR, Antonio. O condor voa\ literatura e cultura latino-americanas.
Org. Mario J. Valdés. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.
HARRIS, Wilson. Explorations: a selection of talks and articles 1966-1981.
Mundelstrap: Dangeroo Press, 1981,
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Edusp, 2007.
VEJA, V. 33, n. 15, p . 120-22, 12 abr. 2000.

13
INICIAÇÕES
O povo, a escola, a mídia brasileira
estão de costas para os povos indígenas até hoje.
(Prei Beto)

A literatura indígena contemporânea é um lugar utópico (de sobrevi­


vência), uma variante do épico tecido pela oralidade; um lugar de confluência
de vozes silenciadas e exiladas (escritas) ao longo dos mais de 500 anos de
colonização. Enraizada nas origens, a literatura indígena contemporânea vem
se preservando na auto-história de seus autores e autoras e na recepção de um
público-leitor diferenciado, isto é, uma minoria que semeia outras leituras
possíveis no universo de poemas e prosas autóctones.
Nesse processo de reflexão, a voz do texto mostra que os direitos dos
povos indígenas de expressar seu amor à terra, de viver seus costumes, sua
organização social, suas línguas e de manifestar suas crenças nunca foram con­
siderados de fato. Mas, apesar da intromissão dos valores dominantes, o jeito
de ser e de viver dos povos indígenas vence o tempo: a tradição literária (oral,
escrita, individual, coletiva, híbrida, plural) é uma prova dessa resistência.
Nesta obra, essa tradição é abordada a partir de um conjunto de textos literá­
rios contemporâneos de autoria indígena (individual) de língua portuguesa,
em que se manifesta a literatura-assinatura de milhões de povos excluídos na
história há mais de 500 anos.
A luz do comparativismo, esta contribuição às investigações no campo
das chamadas literaturas periféricas e dos estudos culturais aborda os conceitos
e as especificidades da literatura indígena e propõe uma leitura das diferenças
com relação às vozes contemporâneas da literatura indígena no Brasil. Nessa

15
a»íTSAPONTO S DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

perspectiva, discute-se o lugar da literatura nas sociedades indígenas e a sua


n^ação com a literatura brasileira. O corpus pesquisado remete à transversali-
dade temática que se depreende da poesia e da narrativa indígena que foram
publicadas no período de 2000 a 2002, especificamente, os poemas de Eliane
Potiguara (veiculados na internet) e as narrativas que os próprios autores Da­
niel M unduruku, Yaguarê Yamã, Renê Kithãuiu e Olívio Jekupé classificam
de “contação de histórias”, embora suas narrativas sejam catalogadas como
literatura infanto-juvenü.
Nessa perspectiva, o texto literário convoca a uma leitura interdisciplinar
e, ao mesmo tempo, permite observar a relação entre identidade, auto-histó-
ria, deslocamento e alteridade entre outras questões que se depreendem da
poesia e da narrativa. Essa relação suscita uma leitura entre real e imaginário,
oralidade e escrita, ficção e história, tempo e espaço, individual e coletivo e de
outros encadeamentos imprescindíveis à apreensão da autonomia do discurso
e da cumplicidade multiétnica (diálogo) que emanam dos textos literários
(poemas, contos, crônicas) e da ecocrítica nos depoimentos, nas entrevistas,
nos artigos e outros textos de autoria indígena.
Procuramos reunir ao aporte teórico documentos, manifestos, e-mails e
o texto literário que, gerando a sua própria teoria, permite discutir os preceitos
“quinhentistas” que desalojaram o indígena de sua cultura. Com esse recurso,
buscamos identificar as especificidades e observar que aspectos da transver-
salidade temática parecem mais intensificadores na literatura indígena, Essa
proposta diante do texto literário fundamenta-se em modelos de análises re­
lacionadas às literaturas e às teorias que trafegam na contramão denominadas
também de literaturas híbridas, periféricas ou observadas como um “terceiro
espaço” (BERND, 1998, p. 259), entre outros pontos de reflexão à pesquisa
literária e aos estudos culturais.
O livro encontra-se dividido em quatro capítulos: o primeiro, “Nos
rodapés da história”, compõe-se de um breve panorama da resistência indí­
gena, pondo em relevo os acontecimentos que a mídia, em geral, não conta.
Daí uma incursão na história do movimento indígena no Brasil e em outros
países, com base também na reflexão da Campanha da Fraternidade junto à
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), na Semana dos Povos
Indígenas em 2002.

16
INICIAÇÕES

O segundo capírulo, “Identidades e utopias”, implica uma leitura das


diferenças com indagações que aprofundam o conceito de literatura e suas
especificidades, a partir do próprio texto literário indígena. Dentro dessa
perspectiva, buscamos as contribuições de pensadores indígenas que alguns
estudiosos chamam de ecocrítica.
Configuram aspectos-chaves à análise um conjunto de temas trans­
versais e as contribuições de estudiosos simpatizantes da cultura indígena
que compartilham do quadro teórico-crítico das Américas. Esse capítulo
traz uma reflexão acerca das vozes ancestrais e a sua exclusão na literatura
brasileira. Trata-se de uma leitura comparada de textos literários de autores
náo indígenas, com o intuito de mostrar um flagrante do marginalizado
na literatura brasileira,^ A ideia inicial foi apresentar essa reflexão na parte
destinada aos anexos; porém, devido ao tema e outras questões pertinentes
ao literário, optamos por sua inclusão no desenvolvimento deste trabalho.
Com essa perspectiva, abordamos o tema “Brasil: outros 500”, sugerido pelo
Jornal Porantim, aos seus leitores, em 1999. Daí nossa incursão nas vozes
exiladas no contexto da história e da literatura brasileira. A fundamentação
teórica remete às contribuições de Alfredo Bosi (1983 e 1992), Antonio
Cândido (1981), Aracy Lopes da Silva (1989) e Ariano Suassuna (1984),
entre outros. O objetivo é discutir a temática indígena na história da lite­
ratura brasileira e a formação dessa literatura, focalizando o problema da
colonização e a imagem preconceituosa e equivocada a respeito de índios
e de mestiços (quer sejam autores ou personagens) no cenário da literatura
brasileira.
O terceiro capítulo, “Diáspora indígena”, propõe uma análise compa­
rada da enunciaçáo na poesia indígena de autoria feminina. Nesse sentido, o
capítulo apresenta algumas reflexões sobre diáspora e a questão dos mais de
500 anos de colonização, entre outros aspectos que suscitam a poesia mapu-
che de Rayen Kvyeh analisada por J. A. Moens (1999) e a poesia de Eliane
Potiguara, que pesquisei inicialmente na internet entre 1999 e 2001. Em

^ Conferir o meu ensaio “Um flagrante do marginalizado na literatura brasileira” {Porantim, Brasília, n.
216, p. 5,jul. 1999).

17
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDIGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

2002, Potiguara reuniu seu exercício poético em Metade cara, metade más­
cara. Nessa instância, tecemos algumas considerações acerca da I Conferência
Internacional de Escritores Indígenas e Afro-descendentes 2003, organizada por
Eliane Potiguara.
I O quarto capítulo, “Contaçâo de histórias: cumplicidades”, apresenta
a cumplicidade na leitura do mundo e da palavra dos Filhos da Terra. Com
base nas contribuições de Georges Sioui (1989), Stuart Hall (1999) e ou­
tros, a análise enfoca a noçáo de auto-história, lugar e identidade narrativa
em Meu vô Apolinário'. um mergulho no rio da (minha) memória, de Daniel
M unduruku (2001). Em Puratig. o remo sagrado, de Yaguarê Yamâ (2001),
a abordagem trata da relação entre um narrador ancestral e outras vozes da
narrativa observando, a partir do próprio texto literário, a noçáo de palavra
e a questão da alteridade na visão de Bartomeu Meliá (2000). Com O saci
verdadeiro, de Olívio Jecupé (2000), a análise enfoca a questáo da diferença
segundo Betty Mindlin (2000), o problema da educação indígena, a relação
identidade/alteridade fundamentados em Zilá Bernd (1998) e Leopoldo 2ea
(1992), entre outros estudiosos da cultura indígena. Em Irakisu: o menino
criador, de Renê Kithãulu (2002), o estudo discute a relação entre cronista e
narrador fundamentando-se em Cornejo-Polar (2000) e a noção de círculo sa­
grado, conforme observamos em Sioui (1989) e outros estudiosos indígenas.
Os anexos reúnem textos eletrônicos de caráter informativo que pres­
supõem também exemplos práticos da relação “autor-texto-leitor”, quanto à
divulgação da literatura indígena no espaço da internet. Os anexos trazem
também um ementário que diz respeito ao trabalho com a literatura no meio
acadêmico indígena. Em síntese, o presente estudo (em aberto) tem por obje­
tivos; a) abordar o conceito de literatura indígena e as especificidades, a partir
de um conjunto de livros de autoria indígena contemporânea que configurou
o corpus da pesquisa; b) verificar a problematização dos temas transversais
que emanam do conjunto de textos literários de autoria indígena; c) abordar
o problema da diáspora na poesia de Eliane Potiguara; d) observar a relação
entre ancestralidade e vozes narrativas em Daniel Munduruku, Yaguarê Yamã,
Renê Kithãulu e Olívio Jecupé; e) contribuir para um remapeamento críti-
co-construtivo dos povos indígenas, com base em sua própria manifestação
artística.

18
INICIAÇÕES

LITERATURA INDÍGENA: CONCEITOS E OUTRAS Q UESTÕES EM


ABERTO

A literatura indígena continua se perguntando: em quanto tempo pas­


sam mais de 500 anos?
Identidades, utopia, cumplicidade, esperança, resistência, desloca­
mento, transculturação, mito, história, diáspora e outras palavras andantes^
configuram alguns termos (possíveis) para designar, a priori^ a existência da
literatura indígena contemporânea no Brasil, até onde pudermos apurar os
(des)entendimentos do(s) termo(s), como diria Acízelo de Souza ao questio­
nar que disciplina estuda as manifestações literárias.
Gerando a sua própria teoria, a literatura escrita dos povos indígenas
no Brasil pede que se leiam as várias faces de sua transversalidade, a começar
pela estreita relação que mantém com a literatura de tradição oral, com a
história de outras nações excluídas (as nações africanas, por exemplo), com
a mescla cultural e outros aspectos fronteiriços que se manifestam na litera­
tura estrangeira e, acentuadamente, no cenário da literatura nacional, Como
distinguir as especificidades da literatura indígena em meio ao processo de
transculturação? Como reconhecer a existência dessa literatura, em meio a
tantos “apagamentos”? Quais os pontos de confluência entre os diferentes sa-
beres sagrados dos povos indígenas no Brasil ou em Québec, no Paraguai ou
no México, na Guatemala ou no Chile, no Peru ou na Bolívia, levando em
conta o processo de hifenimçãói
Esse questionamento é um convite para repensar “a utopia em seu sen­
tido antropológico como toda possibilidade de sonhar um mundo melhor,
todo projeto coletivo, toda idéia que dê sentido à vida e às suas expressões
cotidianas”, como diz Luciana Tamagno (1999, p. 12). Esse convite deve es-
tender-se também à teoria da literatura, levando em conta que a literatura
indígena ainda é pouco estudada em seu aspecto contemporâneo e, particu­
larmente, em seus aspectos fronteiriços.
Pensemos, então, a escassez de estudos em torno do assunto como de­
corrência do preconceito. Daí a falta de reconhecimento da existência dessa

Uma expressão de Edoardo Galeano (1994).

19
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

literatura (seja ela contemporânea ou não). Por isso, considero oportuno res
saltar a contribuição de René Capriles (1987), no artigo “A força da poesi;
pré-colombiana”. Suas observações da história da literatura universal mostran
que a literatura indígena “foi sistematicamente negada até bem avançado <
século XX” (CAPRILES, 1987, p. 5). Embora classifique de pré-colombiano
os povos indígenas e considere que a discussão em torno da existência dess;
literatura esteja amplamente superada, sua análise mostra a que se deve a falt
de reconhecimento à literatura ameríndia:

O princípio no qual sempre se basearam os críticos dos valores dest


narrativa sempre foi a etnocentrista c discutível afirmação de que to
dos os povos do nosso continente desconheciam a linguagem escrit
fonética tal como ela é conhecida no mundo ocidental europeu des
de a sua invenção pelos fenícios e o seu aperfeiçoamento realizad'
pelos gregos (CAPRILES, 1987, p. 5).

Convém esclarecer que essa noção de pré-colombiano anda superada m


contexto da classificação reformulada pelos povos indígenas. E coisa do pas
sado, afirma a jornalista Flávia Mattar (2002) na matéria que trata do Fórun
Permanente para Povos Indígenas no Sistema da O N U , realizado em mai'
de 2002. Segundo Mattar, “Graças à luta para a elaboração e aprovação d
Declaração Universal dos Direitos Indígenas, todos os povos originários d
cada nação com língua, cultura, tradição e espiritualidade diferenciadas d
sociedade em que vivem são considerados indígenas”.^
Século XXI; a literatura indígena no Brasil continua sendo negada, d
mesma forma como a situação dos seus escritores e escritoras continua send
desrespeitada. A situação não é diferente com relação aos escritores negros
afrodescendentes. Essa questão ainda não se livrou do prisma etnocentrist;
Como se pode ver, a discussão não parece superada.
A situação do(a) escritor(a) negro(a) e indígena, por exemplo, não est
desapartada da sua escrita. A sua história de vida (auto-história) configura-í

’ Cf. matéria publicajda pelo IBASE e divulgada no site GRUMIN. Disponível em: <www.grumin.hp
com.br>. Acesso em: 17 jun. 2002.

20
INtCSAÇÕES

como um dos elementos intensíficadores na sua crítica-escritura, levando em


conta a história de seu povo. Sendo assim, as especificidades da literatura
indígena, tanto quanto as particularidades da literatura africana, devem ser
respeitadas em suas diferenças. No entanto, em alguns estudiosos o trata­
mento dado à questão parece contraditório quando aplicado, por exemplo, à
literatura negra. Nesse sentido, a visão de Jean-Paul Sartre (1989) em torno
do Que é a literatura? pode ser um exemplo. Ele comenta que uma obra de arte
representa um “ato de confiança na liberdade dos homens” e afirma - con­
tradito riamente - que não existe literatura negra, justificando que uma obra
“pode se definir como uma apresentação imaginária do mundo, na medida
em que exige a liberdade humana [pois] por mais sombrias que sejam as cores
com que se pinta o mundo, pinta-se para que homens livres experimentem
[...] sua liberdade” (SARTRE, 1989, p. 51). Convém esclarecer que essa con­
tradição em Sartre não implica um pensamento racista, mas não seria o caso
de repensar as diferenças?
Em outubro de 1988, no México, quando intelectuais e historiadores
latino-americanos se reuniram para discutir questões como identidade, in-
terculturalismo, mestiçagem, discurso indígena e marginalidade no simpósio
sobre os 500 anos de história na América Latina, o equatoriano Carlos Pala-
dines (1991, p. 120) apresentou um estudo intitulado “Discurso indígena y
discurso de ruptura”, no qual observa que “lo indígena deja de ser tema de
antropólogos, etnólogos, de algunos cientistas sociales o de pintores, nove­
listas y escultores (indigenismo’) para passar a ser assumido por los mismos
indígenas (‘indianismo’)”. O conceito de indianismo e indigenismo em Pala-
dines difere do significado desses mesmos termos empregado no Brasil. Em
outras palavras, indianismo refere-se à literatura de temática indígena escrita
por autores(as) não indígenas e ao indianismo literário escrito por autores (as)
de descendência indígena chamados(as) também de mestiços(as). O termo
refere-se ainda à literatura inspirada em temas da vida dos índios na América.
De acordo com Antonio Cornejo-Polar (2000, p. 194), “a produção
indigenista se instala no cruzamento de duas culturas e de duas sociedades”,
portanto distingue-se da produção literária que implica uma parte do universo
da propriedade intelectual dos povos indígenas. José Carlos Mariátegui traz
para o estudo da literatura, em 1928, a problematização em torno desses

21
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

aspectos, mas ressalva que “uma literatura indígena, se tiver de vir, virá a
seu tempo. Quando os próprios índios estiverem prontos para produzi-la”
(MARIATEGUI apud RAMA, 2001, p. 300). Na distinção entre literatura
indígena e indigenista feita por Mariátegui, a primeira refere-se “à produção
intelectual e artística realizada pelos índios, conforme seus próprios meios e
códigos, [a segunda implica a] vasta criatividade que, com base em outras
posições sociais e culturais [no lado ‘ocidental’] busca informar sobre o
universo e o homem indígenas” (CORNEJO-POLAR, 2000, p. 194).
Mais uma questão se coloca, com o objetivo de conclamar a sociedade
para repensar as origens da literatura no Brasil, Por que enfatizar a literatura
indígena? A pergunta vem de Eliane Potiguar a, no site do Ibase, ao estender,
para este trabalho, a sua ideia da / Conferência Internacional de Escritores In­
dígenas e Afro-descendentes. Na sua percepção, as articulações em torno desse
Encontro configuram mais uma porca que se abre na História indígena ou
mais um caminho para combater o preconceito literário e o descaso com que
a literatura indígena é tratada no Brasil.
A quem interessar possa entrar nessa luta, os manifestos literários de
Potiguara se transformam em convite, para que nos tornemos “multiplicado­
res de idéias que marcam a sua passagem no planeta TERRA e que buscam
contribuir para o avanço da cultura da paz, da ética, do amor, numa grande
corrente transformadora de idéias”.®Tecendo seu próprio relato, respeitande
as diferenças, salvaguardando a Mãe-Terra, os escritores indígenas avançam
a cada página - pelo prazer do texto que implica também uma literatura de
combate, como sugere a poesia de Eliane Potiguara, no Literatura indíge­
na: um pensamento brasileiro. Nesse sentido ela expõe sua indignação:

o paternalismo vê nas histórias e cultura indígenas, um objeto d(


estudo antropológico e nunca literário, político ou até mesmo, es­
piritual, caso o pensamento parta de um líder espiritual. E todo:
nós sabemos que paternalismo é uma forma sutil de racismo e po
der. Observem quando vocês usam sua paternidade ou maternidad*

‘ Cf. depoimento pessoal de Eliane Potigura. Literatura indígena-, um pensamento brasileiro. Disponíve
em: <e[ianepotiguara@terra.com.br>. Acesso em; 12 jun. 2002,

22
INICIAÇÕES

para aplicar o pater/maternalismo. Seus filhos tomam-se mimados


e errantes... Seu poder oprime o educando e em breve ele vai se
revelar. E assim que a ciência tem tratado a essência e a filosofia
indígenas (POTIGUARA, 2002).^

A questão da especificidade da literatura indígena no Brasil implica


um conjunto de vozes entre as quais o (a) autor (a) procura testemunhar a sua
vivência e transmitir “de memória” as histórias contadas pelos mais velhos,
embora muitos vezes se veja diferente aos olhos do outro. Nesse sentido, a
escritora indígena Darlene Taukane (1999, p. 17) fala da experiência que foi
o seu deslocamento da aldeia para completar os estudos na cidade, levando-a
mais tarde a transformar em livro a história do seu próprio povo, os Kurâ
-Bakairi (MT); “quando senti que tinha firmeza em reproduzir e transformar
de memória aquilo que ouvia [dos mais velhos], pude então sair e conversar
com outras pessoas”. Essa percepção da memória, da auto-história e da alteri-
dade configura um dos aspectos intensificadores do pensamento indígena na
atualidade. Observamos, na auto-história de Taukane, que a noção de deslo­
camento não constitui um ato voluntário. Nesse sentido, ela comenta:

Foram vários os momentos em que me vi diante dos outros e senti


necessidade de auto-afirmação. Senti necessidade de ser ouvida, de
que acreditassem e conhecessem a riqueza tão vasta de uma cultura
indígena. Talvez tenha sido a minha meta, de que os povos indíge­
nas falem por eles mesmos (TAUKANE, 1999, p. 18).

Essas observações permitem identificar algumas características da lite­


ratura indígena que, a priori, sugerem problematizaçóes associadas aos seis
temas transversais que foram escolhidos e elaborados pelos professores indí­
genas e seus consultores para o Referencial Curricular Nacional para as Escolas
Indígenas (RCNEI) e reiterados no Caderno de apresentação (2002), um docu­
mento complementar do RCNEI, de 1998. São eles; 1) Terra e conservação
da biodiversidade; 2) Autossustentação; 3) Direitos, lutas e movimentos; 4)
Ética; 5) Pluralidade cultural; 6) Saúde e educação. As implicações em torno

^Idem.

23
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

dessa temática permitem compreender o aspecto da auto-história e a sua rela­


ção com a oralidade e a escrita, entre outras questões identitárias que emanam
da literatura contemporânea de autoria indígena.
Parece evidente que a discussão em torno da literatura indigeita no
Brasil está apenas começando, embora duvidem também de sua existência,
alegando que essa expressão literária só existe se a cultura de seus autores for
“baseada unicamente [e obrigatoriamente] na existência do livro [‘branco’] tal
como 0 conhecemos na atualidade” (CAPRILES, 1987, p. 5).

24
1.

Nos rodapés da história


Não aceito esse negócio de milênio, nós aqui, comemorando o ano
2000 depois de Cristo. Os índios comemoram o quê? Um milhão? As
pedras comemoram o quê? O ano 1 trilhão? As águas, que ano estão
comemorando? Ora, ora, ora, diria o Teotônio Vilela.
(HENFIL, 2002, p. 36)

1.1 UM PANORAMA DA RESISTÊNCIA INDÍGENA

A verdade dos mitos (história) vem de muito longe (no tempo), muito
antes de Cabral chegar aqui ‘com um punhado de aventureiros e marginais,
[quando] pegou os habitantes dessa terra de surpresa. A primeira resistência
foi a desconfiança e a gozação diante dos estranhos”.®No palco da história,
os “novos tempos” marcam as fronteiras provocando no indivíduo uma busca
incessante por seu lugar no mundo. O chamado “progresso” agride, fragmen­
ta, desloca traçando caminhos contrários aos sonhos das sociedades indígenas.
Seria impossível isolarmos da literatura indígena a história da sociedade
na qual está inserida. Seus leitores se multiplicam: estudantes, professores(as),
advogados (as), escritores (as), lideranças, pajés (homens e mulheres) que lutam
por uma educação diferenciada, pela demarcação e posse de seus territórios
e pelo reconhecimento de suas manifestações artísticas. Nessa perspectiva.

' Cf. Porantim, abr. 2000, p. 2.

25
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

seria igualmente impossível náo mencionar a história dos povos Nambikwara,


Guarani, Saterê Mawé, M unduruku e Potiguara’ a que pertencem os escritores
relacionados ao corpus pesquisado.
Comecemos pela década de 1970. Este período marca o surgimento
das organizações e movimentos em defesa dos direitos e interesses dos po­
vos indígenas. A presença da mulher indígena manifesta-se na política e na
literatura, no mesmo período em que surge a União das Nações Indígenas
(UNI): a primeira articulação do movimento pensado por um grupo de jo­
vens estudantes indígenas, liderado por Marcos Terena. Embora não tenha
alcançado abrangência nacional, a U N I inspirou o surgimento da UNl-Acre e
Sul do Amazonas e de outras organizações indígenas que, na década de 1990,
elegeram, como seu porta-voz, o criador do Movimento Indígena no Brasil:
Marcos Terena, atual representante dos direitos dos povos indígenas na Fun­
dação Nacional do índio —FUNAI.
Reportando-nos a 1979-1985, último período do regime militar no
Brasil, o palco da história traz à cena a expansão estrangeira em terras indíge­
nas. Cresce o domínio de mineradores, madeireiros, construções de rodovias
e hidroelétricas e de assassinatos em terras indígenas. Em meio ao estado de
opressão o movimento indígena realizou o seu primeiro encontro em 1974,
quando reuniu 16 lideranças indígenas, representantes de 9 tribos que “parti­
ciparam de quase todos os 12 Encontros realizados até 1979”, como observa
Zilda Márcia Gricoli lokoi (1999, p. 41):

Na década de 1980, a relação entre o governo e os povos indíge­


nas torna-se cada vez mais tensa. O líder Kaingang Ângelo Kretã,
da aldeia Mangueirinha (PR), foi morto numa emboscada, em 29
de janeiro de 1980, por defender a terra dos Guarani. Em 1982,
a mobilização dos Pataxó marcou a retomada das terras indígenas
ocupadas por fazendeiros, na Bahia. Em 1983, a abertura de terras
indígenas à mineração no regime de Figueiredo resulta na morte de

’ No que diz respeito ao aspecto linguístico, procuramos manter a convenção sugerida pela Associação
Brasileira de Antropologia (ABA), em 1953, isto é, não pluralizar os nomes dos povos e as línguas indí­
genas. No entanto, sem desmerecer as normas da ABA, mantém-se a grafia dos nomes como aparecem
no conjunto de textos de autoria indígena.

26
NOS RODAPÉS DA HISTÓRIA

mais uma liderança, dessa vez em Mato Grosso: terra do Marçal de


Souza, um guarani que foi assassinado quando lutava pela demarca­
ção de dois md hectares de terra no Piraquá.

No histórico que faz do Movimento Indígena, o CIM I (2002) mostra


um painel da política etnocida que foi o período de 1985-1990, no governo de
Sarney. À semelhança dos seus antecessores, Sarney reforça as “concepções mi­
litares de Segurança Nacional, da fase da ditadura e prioridade aos interesses
econômicos de seus aliados regionais, constituídos por latifundiários, mine-
radores, madeireiros”d° Em contraponto, foram intensos os debates voltados
à elaboração da Constituição de 1988. Inúmeras as campanhas contra uma
série de invasões no território Yanomami que foi transformado em palco de
operações militaristas e constantes as denúncias contra a “escalada de saque
promovida pelas madeireiras [e] a venda da madeira [...] promovida pela pró­
pria FUNAI” (ROCHA, 2000, p. 217-226).
A repercussão em torno da política etnocida acelerou a inclusão dos
Direitos Indígenas na Constituição brasileira de 1988 e, consequentemente, o
avanço do Movimento Indígena. Nesse sentido, o artigo 232 da Constituição
assegura que “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas
para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o
Ministério Público em todos os atos do processo”. Com o avanço do movi­
mento surgem as representações. Existem cerca de trezentas associações ou
organizações inchgenas, das quais, aproximadamente, 25% são registradas em
cartório. A existência dessas representações (com uma base tão diversa) é um
convite à reflexão do descaso da FUNAI com os povos indígenas que, até
hoje, continuam desamparados nas dificuldades, sobretudo, diante do pre­
conceito que sofrem no cotidiano. Uma prova disso não estaria relacionada às
eleições de 2002, para deputado, quando os candidatos indígenas não conse­
guiram se eleger?”

" Cf. CIMI. Um breve histórico sobre o Movimento Indígena. Disponível em: <http://www.dmi.org.br/>.
-Anesso em; 7 maio 2002.
“ Conforme dados do CIMI, o número de candidatos indígenas cresceu nas eleições de 2000. Em
média, participaram 279 candidatos indígenas, de 71 povos diferentes. Nas eleições de 1996, aproxima­
damente “80 candidatos se inscreveram para os cargos eletivos. O CIMI elaborou subsídios didáticos

27
. I\r ^ t u I I

Comentando a evolução do Movimento Indígena, Lux Vidal (2000,


p. 201) observa que os avanços “devem-se às pressões cada vez mais orga­
nizadas dos próprios índios e ao trabalho de apoio das O N G s e diferentes
entidades ligadas à causa indígena.” Egon Heck e Benedito Prezia (1998,
p. 5) também consideram que o movimento tem revelado há três déca­
das “importantes lições e registrado avanços significativos, especialmente
na demarcação e garantia das terras, conquista dos direitos assegurados pela
Constituição de 1988 e nos processos de luta, articulação e organização”.
Para o Instituto Socioambiental (ISA), a história das organizações indígenas
no Brasil mostra “uma tendência volátil e dispersa”, levando em conta que
a diversidade (demográfica, linguística, espacial) influi na representação po­
lítica entre os índios. Conforme o ISA, essa tendência mostra uma situação
peculiar;

se comparada, por exemplo, à situação na Bolívia (onde 57% da po­


pulação nacional é indígena), no Peru (40%) ou no Equador (30%).
Aqui, a política propriamente indígena, autônoma e permanente, é
uma realidade fundamentalmente local (de cada aldeia, comunida­
de ou família), faccional (no caso, por exemplo, de aldeias onde
a organização social está baseada em metades rituais à cada qual
corresponde um chefe) e descentralizada (sem o reconhecimento de
um centro de poder).

A encenação de mudanças no período de Collor (de 1990 a 1992) foi


uma tentativa de “recuperar o prestígio do País no exterior, abalado pelas
denúncias de devastação de florestas e do péssimo tratamento dispensado
aos povos indígenas” (VIDAL, 2000, p. 198). Nesse cenário, um grupo de
deputados federais do chamado Bloco Amazônico instalou uma Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) para discutir a Internacionalização da Ama­
zônia com o objetivo de fazer oposição ao Movimento Indígena.

(Tem político na aldeia e Tem aldeia na política), estimulando a reflexão do voto consciente” (Cf. Poran-
tim, out, 2000, p. 14).
C f ISA. Organizações indígenas. Disponível em: <http://www.socioambiental.org/website/pib/por-
tugues/org/sobreorg.hlm>. Acesso em: 26 maio 2002.

28
M05 RODAPÉS DA HISTÓRIA

No início de 1992, em Brasília, o Movimento realizou o segundo gran­


de encontro para discutir a demarcação das terras. A mobilização reuniu 350
lideranças de 101 povos e 55 organizações indígenas em todo o país. Nesse
mesmo ano, surgiu o Conselho de Articulação dos Povos e Organizações In­
dígenas do Brasil (CAPOIB).
Alvo de preconceito, a mobilização indígena em fóruns nacionais e
mundiais ainda causa estranhamento em alguns setores da mídia. Consti­
tui um exemplo o descaso à participação de Marcos Terena na Conferência
Mundial dos Povos Indígenas sobre Território, Meio Ambiente e Desenvolvi­
mento, em maio de 1992, no Rio de Janeiro. O encontro reuniu mais de 800
lideranças indígenas do mundo. Nesse sentido, o artigo “Imprensa e ques­
tão indígena: relações conflituosas”, de Priscila Siqueira (2000) ilustra bem
a questão. A indignação do líder Terena prova como a imprensa brasileira
(em geral) se alimenta do preconceito (disfarçado); ‘A imprensa Nacional não
prestigia a nossa causa; a luta indígena no país só recebe apoio da Imprensa
Internacional” (TERENA apud SIQUEIRA, 2000). Solidários a Terena, os
articuladores da Conferência manifestaram-se contra a presença de jornalistas
brasileiros- Conforme Siqueira:

Por pouco, a entrevista coletiva realizada [com Terena] na abertura


dos trabalhos do evento só teria a presença de jornalistas estran­
geiros, Foi toda uma negociação mostrando aos indígenas que esta
seria a oportunidade de expor na Imprensa Nacional suas reivin­
dicações e projetos. [...] Entretanto, duas semanas após o início da
Conferência dos Povos Indígenas, já em pleno andamento da Rio
92 e do Fórum Global sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente,
todas as telas de TV e manchetes de jornais de nosso país noti­
ciavam um fato ocorrido então com cerca de um mês de atraso:
o estupro de uma garota atribuída ao índio Paulinho Paiacá. Será
coincidência a forma diferenciada no tratamento dessas duas no­
tícias relacionadas com o assunto, isto é, a causa indígena no país?
(SIQUEIRA, 2000, p. 227).

A desatenção aos projetos e reivindicações indígenas foÍ uma constante


no governo de Fernando Henrique Cardoso, ou FH C (1995-2002). À seme­
lhança dos antecessores, a política de FH C revelou-se na falta de diálogo com

29
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

OS povos indígenas, reforçando a arquitetura do preconceito da FUNAI, no


sentido de manter a tutela sobre os índios. Desse período, não podemos es­
quecer as cenas de violência que marcaram os 500 anos de colonização: “[na]
omissão e [na] violação dos direitos dos povos indígenas; [no tratamento]
dispensado as comemorações oficiais dos 500, [que] está longe de ser indica­
tivo de uma postura de reconhecimento e revisão das relações de dominação”
{Porantim^ dez. 2000, p. 8-9).
Não podemos esquecer que um índio foi morto, enquanto dormia,
numa parada de ônibus prõxima ao prédio da FUNAI, em Brasília. Exposto
ao preconceito de cinco jovens de classe média que atearam fogo em seu cor­
po, o Pataxó Galdino foi assassinado na madrugada de 20 de abril de 1997.
Galdino estava em Brasília para reivindicar a demarcação do território Pataxó
que foi invadido por fazendeiros na localidade de Pau Brasil, na Bahia {Poran-
tim, maio 2001, p. 8). Essa tragédia retrata a deficiente política de combate
aos crimes cometidos contra os povos indígenas e que se revelou, mais uma
vez, no dia 20 de maio de 1998, quando o Movimento Indígena perdeu mais
uma liderança: o Cacique Xicão Xukuru, assassinado por fazendeiros, em Pes­
queira (PE).
A desastrosa falta de diálogo de Fernando Flenrique Cardoso com as
lideranças indígenas não impediu a marcha do Movimento de Resistência
Indígena Negra e Popular na contracomemoração dos 500 anos do “desco­
brimento”. No dia 13 de abril de 2000, em Brasília, 1.500 representantes
indígenas realizaram atos públicos; várias lideranças indígenas flecharam o
relógio da TV Globo. Esse gesto (concreto) foi “mais um jeito de dizer que
aquela contagem [...] ‘fajuta’ agredia a memória de seus povos” {Porantim,
maio 2000, p. 6).
Em Cabrália (BA), no dia 22 de abril de 2000, os Guarani, os Kaiová,
os Kadiwéu, os Camba, os Terena, os Kinikinau, os Ofaié, os Aticum, os Gua-
tó, os Laiana e os Guaicuru entre milhares de representantes indígenas (cerca
de 3.600) gritaram a construção do futuro para outros 500. A polícia baiana
impediu os integrantes do Movimento Negro de chegarem ao local da Confe­
rência Indígena. “Gildo Terena seguiu de joelhos e com os braços abertos, em
direção à tropa de choque [.,.] tentando evitar o lançamento de bombas contra
os manifestantes, foi derrubado e pisoteado. Sentado no asfalto, ele chorou”

30
fJOS RODAPÉS DA HISTÓRIA

[Porantim, maio 2000, p. 13). No gesto de GildoTerena, interpreta-se a espe­


rança dos povos indígenas na construção de um outro mundo possível. Com
esse espírito, o Movimento Indígena reuniu mais de 600 lideranças indígenas
no I Fórum Social Mundial (FSM), 2001, em Porto Alegre (RS).
Em contraponto ao Fórum Econômico de Davos (Suíça), o Fórum de
2001 reuniu 18 mil pessoas, “num espaço que buscou construir formas alterna­
tivas para um desenvolvimento ecologicamente sustentável, economicamente
viável e socialmenie justo para todos os habitantes da Terra” {Porantim^ jan./
fev. 2001, p. 16).
Em julho de 2001, no Rio de Janeiro, a Conferência Nacional Contra
o Racismo e a Intolerância reuniu representantes dos povos indígenas que
debateram o fim do estado de relativa incapacidade civil e de tutela do índio,
entre outros pontos defendidos no Código Civil Brasileiro e no Estatuto do
índio (1973). A Conferência no Rio de Janeiro foi uma preparação para a 3^
Conferência das Nações Unidas Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a
Xenofobia e a Intolerância, realizada na África do Sul, entre 31 de agosto e 7
de setembro de 2001.
O II Fórum (2002), em Porto Alegre, mobilizou mais de 40 mil pes­
soas para manifestar o respeito às diferenças. Lideranças indígenas de toda a
América afirmaram “[a vontade e o compromisso] de trabalhar em conjunto
com outros povos e setores afetados pelas mesmas realidades” {Porantim, mar.
2002, p. 8).
Junto ao Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e outras organizações
de apoio aos povos indígenas, a CNBB realizou a Campanha da Fraternidade
(CF), enfatizando o mito Guarani: “Em busca da terra sem males”, tema da
Semana dos Povos Indígenas (2002). Embora alguns setores da Igreja vejam na
pessoa do índio um ser pitoresco, ingênuo, incapaz, selvagem, dissimulado e al­
goz, entre outros predicativos, são evidentes os aspectos positivos da Campanha.
O subsídio didático estimulou a reflexão do tema nas escolas, em contraponto
à postura de algumas paróquias que não souberam aproveitar ou trabalhar o
material, desperdiçando a oportunidade de aprofundar as palavras de reparação
referente ao martírio dos povos indígenas na América.
A exemplo dos anos anteriores, o Fórum de 2003 mobilizou milhares
de manifestantes em Porto Alegre. Representantes nacionais e estrangeiros e

31
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

lideranças indígenas pediram ao novo governo do Brasil e ao Congresso


um plebiscito oficial sobre a ALCA (Área de Livre Comércio das Amé­
ricas) e discutiram, entre outras questões, o problema da permanência
de invasores em seus territórios. O M ovimento Indígena chorou a morte
de mais um parente assassinado por um grupo de jovens brasileiros de­
socupados. Dessa vez, um velho Kaingang; Leopoldo Crespo, 77 anos,
assassinado em 8 de janeiro, a chutes e pedradas enquanto dormia na rua,
em Miraguaí/RS.

1.2 ORGANIZAÇÕES DAS M ULHERES INDÍGENAS

Na História indígena, as organizações têm propiciado o surgimento de


líderes e novas formas de aliança, mobilizando as comunidades locais e mos­
trando a necessidade de se constituírem representações indígenas regionais.
Algumas se articulam era um só povo, outras em uma categoria.
Segundo Leonardo BoíF(2001, p. 142-145), existem 73 organizações
indígenas registradas em cartório e 24 organizações náo governamentais de
apoio aos povos indígenas, isto é, indigenistas ou comandadas por náo índios.
Ele classifica o GRUM IN no quadro das O NGs indigenistas. No entanto,
convém notificar que o grupo foi fundado juridicamente em 1986, por Elia-
ne Potiguara: uma remanescente dos Potiguara. Aparecera também no jornal
Porantim referências ao GRUM IN como entidade indigenista ou de apoio à
causa indígena. Considerando a história do grupo e as raízes de sua fundado­
ra, tal classificação parece equivocada.
Contudo, 0 critério mais aceito para dizer se uma pessoa ou uma orga­
nização é ou não indígena, é ou não indígena-descendente encontra respaldo
em Mellati, alertando-nos para um aspecto-chave que é a “autoidentificação”.
Nesse sentido. Melo observa:

Atualmente, o mais aceito é o da auto-identificaçáo {sic) étnica,


segundo o qual o que classifica ou não um grupo de indivíduos
como indígenas “é o fato de eles próprios se considerarem índios
ou não e de serem considerados índios ou não pela população que
os cerca”, como define o antropólogo Julio César Mellati (MELO,
2000, p. 6).

32
WOS RODAPÉS DA HISTÓRIA

As informações de Grupioni, Melo e outros estudiosos confirmam a


existência de aproximadamente 300 organizações indígenas “muito diferen­
tes entre si [que podem] representar membros de um povo ou parte dele (só
as mulheres ou professores, por exemplo) ou vários povos de uma região”
(MELO, 2000, p, 7). Se as organizações representadas pelos homens indíge­
nas sâo entidades relativamente recentes, as dezesseis representações formadas
pelas mulheres indígenas sáo mais recentes ainda.
Denunciando o genocídio mascarado na esterilização, construindo
caminhos contra todo tipo de preconceito, combatendo as discriminações
dentro da própria sociedade em que vivem, representando comitês de saúde,
educação e política, compartilhando as suas reivindicações, o Movimento das
Mulheres Indígenas “ganhou visibilidade e respaldo a partir da década de 90,
[Essa] energia está, aos poucos, se fortalecendo em todo país. Sáo caminhos
que apontam para a verdadeira luta dos povos indígenas, principalmente para
as mulheres indígenas” {Porantim, mar. 2002, p. 15).
O QUADRO 1 permite ilustrar a força desse Movimento:

QUADRO 1. Representações das mulheres indígenas no Brasil


A D M IR A s s o c ia ç ã o D e s e n v o lv ir n e n t o d a s M u lh e r e s In d íg e n a s d e R o ra im a RR

AMA M o v im e n t o A rt ic u la d o d a s M u lh e r e s d a F lo re sta A m a z ô n ic a AC

AMAI A s s o c ia ç ã o d a s M u lh e r e s d e A s s u n ç ã o d o Iç a n a AM

A M IA R N A s s o c ia ç ã o d a s M u lh e r e s In d íg e n a s d o A lto R io N e g r o AM

A M IC O P A s s o c ia ç ã o d a s M u lh e r e s In d íg e n a s d o C e n t r o -O e s t e P a u lista SP

A M !D A s s o c ia ç ã o d a s M u lh e r e s In d íg e n a s d o D istrito d e la u a re té AM

A M IK A s s o c ia ç ã o d a s M u lh e r e s In d íg e n a s K a m e b a AM

A M IM S A s s o c ia ç ã o d a s M u lh e r e s In d íg e n a s d o M é d io S o l im õ e s AM

A M IS M A s s o c ia ç ã o d a s M u lh e r e s In d íg e n a s S a t e r é - M a w é AM

A M IT R U T A s s o c ia ç ã o d a s M u lh e r e s In d íg e n a s d e T a ra c u á , R io U a p é s e T iq u ié AM

AMP A s s o c ia ç ã o d a s M u lh e r e s Pareci MT

AMP A s s o c ia ç ã o d a s M u lh e r e s P a ta x ó MG

AOMP A s s o c ia ç ã o O r r id io n a d a s M u ih e r e s P a re si MT

G R U M IN G r u p o M u l h e r - E d u c a ç ã o In d íg e n a RJ

O M IR O r g a n iz a ç ã o d a s M u lh e r e s in d íg e n a s d e R o ra im a RR

UNAMl U n iã o N a c io n a l d a s M u lh e r e s In d íg e n a s PR

33
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDlGENA COTíTEMPORÃNEA NO BRASIL

Vem de Roraima um exemplo das mulheres indígenas que se mobilizam


para “fortalecer as lutas dos povos Macuxi, Wapixana, Taurepang, Ingarikó,
Wai Wai e Yanomami e contribuir para a coesão do movimento indígena e
para as conquistas dos direitos territoriais” {Porantim, mar. 2001, p. 14). Com
esse espírito, as indígenas enfrentaram em Roraima, no ano de 1992, os “mo­
mentos difíceis para os índios de Raposa/Serra do Sol. Quando os garimpeiros
e a PM tentaram desbloquear a barreira feita na aldeia Machado, em 1992,
as mulheres tomaram a frente dos maridos e conseguiram fazer com que as
forças recuassem” {Porantim, abr. 2001, p. 6).
Em defesa dos seus direitos, as mulheres indígenas de Minas Gerais,
Espírito Santo e Bahia participaram do primeiro encontro estadual, em 1996.
No ano seguinte, em Roraima, um grupo de mulheres indígenas liderou a
campanha contra o consumo de bebida alcoólica na aldeia. Nessa luta, duas
Tuxauas ganharam destaque: Diva de Souza, eleita a primeira mulher cacique
na aldeia, e Lindalva Peixoto, que assumiu, em 1998, a secretaria do Movi­
mento. Nesse mesmo ano, mais um encontro de mulheres indígenas reuniu
lideranças Tupinambá e Pataxó (BA), Maxakali, Xakiãabá, Krenak, Pankararu
e Araná (MG), Tupinikim e Guarani (ES).
Na contracomemoração dos 500 anos, o artigo de Maninha Xukuru,
publicado no jornal Porantim (mar. 2002, p. 4), “Marcha: uma resposta à
fúria do opressor”, mostra o sentido de existência do pensamento indígena.
Preocupação semelhante observamos nos ensaios críticos de Darlene Taukane
e nas entrevistas de Eliane Potiguara, entre outras lideranças no campo das
representações de mulheres indígenas. De Eliane Potiguara destacamos um
trecho de sua entrevista ao IBASENET, em 2002, na qual ela discute a situa­
ção da mulher indígena na cidade e na aldeia:

As mulheres indígenas, aos olhos da sociedade, estão abaixo do


último degrau que compõe as camadas da sociedade. Indígenas, po­
bres, discriminadas, excluídas, invisíveis. São mão-de-obra escrava
em plantios de cana-de-açúcar, algodão e outros. Se estão próximas a
mineradoras, são objeto sexual de garimpeiros ou mineradores. Se es­
tão nas cidades, empurradas por alguma razão social e política de sua
nação, tornam-se prostitutas, objeto de tráfico internacional de mu­
lheres, empregadas domésticas ou operárias mal-remuneradas {sic).

34
*JOS RODAPÉS DA HISTÓRIA

Dentro das aldeias urge um trabalho de conscientização contra a


violência sexual, o estupro, o assédio, o alcoolismo que resulta nas
violências interpessoais, nas intrigas, nos distúrbios psicológicos,
nos suicídios. Um programa imediato referente aos direitos repro­
dutivos e saúde integral deve ser implantado pelo governo e pelas
ONGs. Urge um trabalho de conscientização nessas nações que
mais sofreram com a neocolonizaçâo, ao lado dos povos Ressurgidos
e dos Quilombolas.^^

Em síntese, reportando-nos às mobilizações consagradas ao Dia Inter­


nacional da Mulher, no Brasil, observamos a inclusão desse dia no calendário
indígena. Em 1999, a líder Kaingang Ana da Luz Fortes do Nascimento/
Fendó, foi matéria de capa, no Porantim}^ No dia 8 de março de 2001, as or­
ganizações indígenas denunciaram o caso da esterilização de mulheres Pataxó
Hã-hã-hãe, ocorrido na Bahia, em 1994. A agonia das Pataxó (que é tema,
também, de poesia de Eliane Potiguara) revela-nos “a terrível angústia causada
pela ameaça dos Direitos Humanos desses povos, ocasionando a perda da
identidade, a migração e o racismo” (POTIGUARA, 2002, cf. site do Ibase).

1.3 CAM INHO S DA AM ERÍN DIA

Na Argentina, as utopias não se perderam, isto é, elas se materializam


“toda vez que as pessoas lutam para superar a alienação a que são submetidas
pelo capital, pelo mercado e agora pelo marketing”, observa Liliana Tamagno
(1999, p. 12), a respeito do povo Toba da Associação Civil Ntaunaq Nam
Qom de La Piara. Tamagno enfatiza que, apesar da globalização, os Toba se
organizam e vêm resgatando “o sentido de existência contínua e memória
coerente [o que] permite afirmar que o povo Toba [...] não perdeu sua iden­
tidade” (TAMAGNO, 1999, p. 12), porque se reconhecem indígenas no
direito de construir seu próprio relato e um lugar onde possam viver juntos.

Cf. Educação diferenciada-, respeito à cultura e tradiçáo. Entrevista do Ibase com Eliane Potiguara.
Disponível em; <http://rvww.ibase.br/paginas/potiguara.html>. Acesso em: 12 mar. 2002.
’■*Cf. Porantim, mar./abr. 1999, p. 12. Ver as palavras de Fendó na epígrafe que abre o quarto capítulo
deste trabalho.

35
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

Entre os Pehuenche (localizados no Alto Bio Bio, ao Sul do Chüe), a


luta contra o neoliberalismo também é contínua. Em março de 1999, a líder
Nicolasa Quintreman manifestou sua indignação contra a hidrelétrica que se
alastra “nas limitadas terras [...] que sobraram do processo de colonização de
que são vítimas [os Mapuche e os Pehuenche] desde 1541” {Porantim, mar./
abr. 1999, p. 8). Suas palavras atestam a história de resistência dos povos in­
dígenas no mundo:

Não me interessa o dinheiro, nem uma casa com cozinha. Tenho


o meu lugar, meu fogão e minha terra para trabalhar. Tampouco
quero a luz que me oferecem, para isso tenho o sol... com isso es­
tou bem. [...] a barragem não melhora a qualidade de vida, como
disse o presidente. Tirar uma pessoa como se fosse um animal para
um lugar que náo lhe serve, que não conhece, isso não é qualidade
de vida. Viver bem é permanecer na mesma casa onde eu nasci. A
terra nos pertence, temos que cuidar dela, da mesma forma que a
madeira, o rio e o capim que os porquinhos, as ovelhas e os cabritos
comem. [...] não vou amolecer, [...] meu futuro será sempre o mes­
mo, náo vou mudá-lo. Morrerei na minha terra {Porantim, mar./
abr. 1999, p. 8).

Na história ameríndia, a solidariedade do Comitê Clandestino Revo­


lucionário Indígena ao Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN)
configura milhares de vozes tribais que ecoaram em 1° de janeiro de 2001,
no sétimo aniversário do levante indígena no Estado de Chiapas (México).
Centrada no respeito às diferenças, na luta contra a globalização e o neolibe­
ralismo, a história da resistência ameríndia vai se multiplicando:
• no III Congresso Latino-americano de Organizações do Campo re­
alizado em Tlapan (México), que reuniu, em agosto de 2001, “mais
de 300 representantes [indígenas e camponeses] de 37 organizações
procedentes de 18 países da América Latina [para] discutir os efeitos
nefastos do neoliberalismo”. Na mesma época, as mulheres indígenas
no Paraguai denunciaram o “difícil caminho da sobrevivência num
país, [onde se veem] três vezes discriminadas por serem mulheres,
indígenas e pobres” {Porantim, set. 2001, p. 12);

36
RODAPÉS DA HISTÓRIA

• na luta de Rigoberta Menchú (Guatemala), de Blanca Chancoso


(Equador) e de outras líderes na Ameríndia. No Brasil, durante o II
Fórum Social Mundial/2002 (em Porto Alegre), Blanca e Rigoberta
atuaram como mediadoras de uma série de conferências relacionadas
aos conflitos em Chiapas, na Colômbia, no Pais Basco e na Palestina.
Na opinião de Rigoberta Menchú (Prêmio Nobel da Paz), esse Fó­
rum representa “uma voz étnica [...] um protesto da dignidade [que]
convoca a sermos multiculturais, pluriétnicos” [Porantim, mar. 2002,
p. 9). Essa mesma preocupação observamos em Blanca Chancoso, ao
enfatizar “que a paz com justiça, que a paz não de cemitério, seja o
novo atalho para um outro mundo possível, plural e diverso” {idem)\
• nas manifestações de três mulheres Mixtecas perseguidas pela “jus­
tiça” mexicana. Trata-se de Jaquelina López Almazán, Soledad Ortíz
Vásquez e Maria dei Carmen López Almazán, membros do Comitê
de Defesa dos Direitos dos Povos (CODEP) de Oaxaca (México).
Cruzando fronteiras na Europa, as três Mixtecas usam da guitarra e
do cântico em defesa dos parentes indígenas do mundo.
No contexto populacional da América, o numero maior do contingente
indígena que sobreviveu ao genocídio aparece em cinco países: Bolívia, com
68,1%; Guatemala, com 63,3%; Equador, com 60,0%; Peru, com 30,5%; e
México, com 14,2%. Abaixo de 2,0% encontra-se o Canadá, onde 1,5% da
população é indígena. Nos Estados Unidos, constam 0,6%. O Brasil ocupa
o 28° lugar, ou seja, do total de 147.404.0000 habitantes, 3% (ou 378 mil
habitantes) são indígenas. Em último lugar (31°) aparece Trinidad eTobago,
com a população de 200 indígenas. O reduzido número da população indí­
gena resulta de um processo histórico, dos inúmeros rastros da colonização;
marcas que perduram até hoje, e de forma não menos ^ressiva, com a indus­
trialização, a exploração dos recursos dos territórios ameríndios e as condições
de vida nas reservas.

^ Cf. BoletinAbya-Yala Especial OaxacayWaümapu, do f^omtté InternacionalistaArco íris (COINARIR)


Disponível em: <http;//ww\v.coinarir.org>. Mensagem enviada pelo Grupo de Literatura Indígena.
Disponível em: <literaturaindigena@yahoogrupo5,com.br>. Acesso em: lldez. 2002.

37
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDiGENACCííTEMPORÂNEA NO BRASIL

Apesar da violência e da repressão, “voltamos a crescer”, afirmam Prezia e


Hoornaert (2000, p. 222), enfatizando que os “povos indígenas estão reagindo
[...] fazendo prevalecer seus direitos [...] um reflexo desse processo é o vigoroso
crescimento populacional dos povos indígenas [porque eles] perderam o medo
e assumiram sua identidade indígena”. O levante indígena no México, as mani­
festações no Chile, na Guatemala e na Venezuela confirmam o fortalecimento
da luta pelos direitos e culturas indígenas; o direito de preservar a cultura mi­
lenar que se renova na modelagem do barro; na indianidade estampada nas
cerâmicas, no trançado das palhas, nos corpos pintados, nos cânticos sagrados,
no fogão de barro e em outras manifestações identitárias que se expandem como
fonte de resistência contra as decepções acumuladas ao longo dos 500 anos. O
QUADRO 2 sugere um mapeamento da resistência, considerando o total da
população indígena sobrevivente do genocídio na América.

QUADRO 2. População indígena das Américas (1990-1999)


P a ís P o p u la ç ã o t o ta l P o p u la ç ã o in d íg e n a %

B o íív ia 7 .19 3.0 00 4 .9 0 0 .0 0 0 68,1

G u a t e m a la 11 .520.000 7 .60 3.0 00 66,3

Equador 10.4 60.00 0 6 .27 6.0 00 60,0

P e ru 2 2 .3 32.00 0 6 .81 0.0 00 30,5

M é x ic o 8 4 .4 98.00 0 12.0 00.00 0 14,2

H o n d u ra s 5.26 1.0 00 7 2 0 .0 0 0 13,7

B e lize 188.000 21.0 00 11,2

S u r in a m e 4 2 2 .0 0 0 30.0 00 7,1

Panam á 2.370.000 145.000 6,1


El S a lv a d o r 5.20 7.0 00 2 9 3 .0 0 0 5,5

G u ia n a 1.024.000 56.3 00 5,5

C h ile 13.1 73.00 0 6 4 2 .0 0 0 4,9

G u ia n a F r a n c e sa 1 0 0.000 4 .00 0 4,0

N ic a r á g u a 3 ,8 7 1 .0 0 0 153.000 3.9

D o m in ic a 8 2 .0 0 0 2.000 2,4

C o lô m b ia 3 5 .8 86.00 0 7 2 8 .0 0 0 2,0

P a ra g u a i 4 .2 7 7 .0 0 0 7 9 .0 00 1,8

Canadá 2 2 .5 00.00 0 3 5 0 .0 0 0 1,5

Baham as 2 5 0 .0 0 0 3.000 1,2

38
»(0S RODAPÉS DA HISTÓRIA

e ■ 1.000 1,2
P A n t ig u a e B a r b u d a 8 5 .0 00

1 L C o s ta R ica 2 .9 5 9 .0 0 0 3 5 .0 0 0 1,2

1 1 G u a d a lu p e 3 6 0 .0 0 0 4 .0 0 0 1,1

1
1
R

R
A rg e n t in a

B a rb a d o s
3 1 .9 2 9 .0 0 0

2 8 0 .0 0 0
3 4 2 .0 0 0

3.000
1,1

1,1

1 1

R
M a rtin ic a

V e n e z u e la
3 5 9 .0 0 0

19.2 45.00 0
1.000

1 4 0.560
0,3

0,7

1 E s t a d o s U n id o s 2 4 8 .7 0 9 .8 7 3 1.418.000 0,6

1 1 B rasil 1 4 7 .404 .0 00 3 7 8 .0 0 0 0,3

1 1 P o rto R ic o 3 .60 0.0 00 700 0,02

1 1 U ru g u a i 3.09 4.0 00 400 0,01

1 1 T r in r d a d e T o b a g o 1.234.000 200 0,02

1 T o ta l; 4 3 .1 3 9 .1

F o n te : P re z ia ; H o o r n a e r t (2 0 0 0 , p. 240).

1.4 O IBGE E O CENSO INDÍGENA

O problema do recenseamento indígena no Brasil exige uma leitura


em contraposição ao censo que tem negado até então a existência dos povos
ressurgidos. Nesse sentido, nos apoiamos em Heck (2002) para alertar que os
dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
configuram um quadro preocupante.
Em sua análise de conjuntura “Os índios no censo do IBGE; números,
máscaras e esperança”, Heck {Porantim, jun./jul., 2002, p. 3) chama a nossa
atenção para o crescimento populacional indígena: 138,5%. Acontece que a
população indígena de 294.135 em 91 passa para 701.462, no ano de 2002,
ou seja, “uma diferença de mais de 700, diante da previsão de população
indígena zero, feita pelo amigo e assessor de campanha de FHC, o sociólogo
Hélio Jaguaribe, em 1994” (HECK, 2002, p. 3). Ajudando-nos a entender
esses números, Heck mostra quatro fatores responsáveis por esse fenômeno e
explica o que esse crescimento significa:
• uma vitória da esperança indígena sobre a sentença de seus algozes
de 500 anos;
• reconhecimento dos povos ressurgidos que, (re)negados ao longo da
História oficiosa, agora se reconhecem “era suas origens e identidades
indígenas”;

39
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

• OS índios que se viram obrigados a deixar as suas terras ou que se


dispersaram nas metrópoles, “passaram a constar nos dados oficiais
do IBGE”;
• a inclusão do censo da população indígena no censo geral do país,
a partir de 1990, é fruto da história de resistência indígena. O utro
ponto importante, segundo Heck, foi “a Campanha da Fraternidade,
Por uma Terra sem Males, [que] contribuiu para que se aumente ain­
da mais a esperança e se reflita na conquista de novos espaços de vida
e autonomia” (HECK, 2002, p. 3).
A análise de Heck a respeito do mascaramento estatístico reporta-nos à
situação de enfrentamento dos Pankararu, deslocados na cidade de São Paulo.
Estranhamente, o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas
(RCNEI) parece não reconhecer a existência dessa situação. Tanto assim, que
alguns “tropeços” são notórios no documento complementar do RCNEI, no
qual se afirma que “Não há informações sobre índios urbanizados, embora
muitos deles preservem suas línguas e tradições” (RCNEI, 1998, p. 9, grifo
nosso). Na verdade, mediante a inclusão do censo indígena no IBGE (em
1994), existem aproximadamente 150.891 índios vivendo nas cidades. Esses
dados são, também, confirmados pelo ISA:

Só na Grande São Paulo são 1.571 índios em situação de misé­


ria; 531 Guarani Mbyá nas aldeias Jaraguá, Barragem, Krukutu e
Rio Branco; 600 Pankararu nas favelas Real Parque e Madalena,
além de outros 400 Pankararu e 40 Fulni-ô, também desaldea-
dos. Os Pankararu e os Fulni-ô têm características de migrantes
nordestinos: fugindo da seca, vêm trabalhar em São Paulo como
faxineiros, pedreiros ou vigilantes. Em tempos de crise, sofrem
com o desemprego.*^

N a retrospectiva dos trinta anos do CIMI, o jornal Porantim (dez.


2002, Encarte) ressalta que o crescimento populacional indígena resulta tam ­
bém do papel que essa entidade tem desempenhado junto a diferentes etnias.

FERREIRA, Mariana K. Leal. Fome ameaça povos indígenas em São Paulo. Disponível em: <http://www.
sodoambicnial,org/website/parabolicas/edicoes/edicao46/reportag/pg5.íitm>. Acesso em; 7 maio 2002.

40
fiOS RODAPÉS DA HISTÓRIA

Em outras palavras, o “que antes era visto como trabalho missionário, hoje é
encarado como luta por uma vida digna”. Em síntese, os dados mais recentes
mostram:

Década de 1950 - Cerca de 100 mil indígenas


Fonte: Darcy Ribeiro (1995a),

1 9 8 0 -2 2 7 .8 0 1
Fonte: Porantim, out. 1980 - Egydio Schwade

1 9 9 1 -2 9 4 .1 3 5
Fonte: censo do IBGE —Porantim, out. 1989, p. 8

1996 - 325.652
Fonte: Documento da Presidência da República: Sociedades Indígenas e
a Ação do Governo

2000 - 701.462
Fonte: IBGE —Censo 2000 (publicado em 2002)

41
2.

Identidades e utopias
[...] desenvolví uma visão maior que o normal, uma visão de índio,
um olfato de índio, uma audição de índio.
(HENFIL, 2002, p. 31)

2.1 VOZES ANCESTRAIS E EXCLUSÃO NA LITERATURA


BRASILEIRA

- Vamos brincar de Brasil?


Mas sou eu quem manda
Quero morar numa casa grande
... Começou dessejeito a nossa história.
(Raul Bopp, Cobra Norato)

Para uma abordagem da história social da tradição literária dos povos


nativos (filhos e filhas da terra) e da atual situação do escritor indígena no Bra­
sil, é necessário que se faça uma revisão, ainda que sucinta, da influência e da
representação do índio na literatura ocidental. Esta abordagem remete ao meu
artigo “Um flagrante do marginalizado na literatura brasileira”,'^ publicado
em 1999, no jornal Porantim.

Tema da minha Conferência na Semana dos Povos Indígenas, NEI/CAC/UFPE, abr. 1999/2000.
Cf. o meu artigo “Um flagrante do marginalizado na literatura brasileira” {Porantim, jul. 1999, p. 5).

43
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

N a história da literatura brasileira, o preconceito literário contra os


povos indígenas tem alimentado o imaginário e o interesse de gerações e ge­
rações da sociedade dominante que “queria ver [e quer ver ainda] com seus
próprios olhos o povo estranho, implantado nas praias, recebendo navios
cheios de bens preciosíssimos” (RIBEIRO, 1995a, p. 43-44). Os discursos
equivocados a respeito dos povos indígenas reportam-nos à literatura dos
jesuítas, aos diálogos de Ambrósio Fernandes Brandão, às crônicas de Pero
de Magalhães Gândavo, à poesia bucólica de Basílio da Gama e de Santa
Rita Durão e aos romances de José de Alencar, entre outros exemplos que se
seguem; em que o índio é visto superficialmente em sua identificação étnica.
Sempre um marginalizado.
Nesses moldes, a literatura brasileira tem se revelado mais excludente
do que se caracterizado pela convivência solidária na abordagem de temas
relacionados ao índio, ao negro, ao judeu, à mulher, à criança, ao homosse­
xual e ao idoso, entre outros segmentos que a sociedade dominante rotula
de minorias. Passando o olhar pela geografia dos excluídos, por exemplo, as
minorias são os milhões de desempregados, maiores e menores abandonados
sem-teto, sem-terra, sem vez, sem voz, espalhados pelo país.
Quanto à imagem do índio na literatura e na cultura brasileira, a teoria
da cultura e da literatura indígena alerta-nos para vários equívocos: um deles
refere-se ao nome Pindorama, ou Terra das Palmeiras, assim denominada pe­
los índios da nação Tupi. Terra à vista: nos atropelos em torno da criação de
um nome para legitimar a posse do lugar, os colonizadores chamaram-no de
Monte Pascoal: um “monte mui alto e redondo” habitado por aborígenes. Ace­
lerando o processo de desterritorialização, os portugueses batizaram o lugar,
uma suposta Ilha, em 22 de abril de 1500. Deram-lhe o nome de Vera Cruz.
Posteriormente, por ordem de D. Manuel, mudaram o nome para Terra de
Santa Cruz. Por fim, decidiram chamar o lugar de Brasil.
Ao longo de sua história, a literatura brasileira (em muitos casos) tem
maltratado as vozes exiladas e a imaginação criadora com que os nativos
nomeiam os lugares, as pessoas e os elementos sonhados. Para ilustrar a
questão, poucos se dão conta do preconceito que perpassa um discurso do
escritor João Ubaldo Ribeiro, em torno do nome Pindorama. O escritor
afirma o seguinte:

44
IDENTIDADES E UTOPIAS

teria tido até um nome nativo, já proposto, pelos mais exaltados,


para substituir “Brasil”: Pindorama, designação supostamente dada
pelos índios ao nosso país. Não sou historiador, mas também não
sou tão burro assim para acreditar que os índios tinham qualquer
noção geopolítica, ou alguma idéia de que pertenciam a um “país”
chamado Pindorama. Não havia qualquer país, é claro, nem sequer
a palavra Pindorama devia fazer sentido para os ocupantes que os
portugueses encontraram aqui, se é que ela era usada mesmo. No
máximo, significaria o único mundo conhecido deles.^^

Que noção geopolítica adota o famoso escritor em relação ao lugar


chamado Brasil? Não teria esta noção uma marca do olhar eurocêntrico? De
fato, a ideia ou a construção de país poderia não haver no todo, mas o que
pode garantir a João Ubaldo que Pindorama não fazia sentido aos primeiros
habitantes? Até porque, não teria a concepção “deste país” um recorte genera­
lizado? O sentido da expressão “no máximo” denega ao índio a consciência de
nação, locação e deslocaçáo.^®
Aos nativos cabe também o direito de imprimir sua licença poética que,
surpreendentemente, continua causando estranhamento ao outro. Criada a
poesia, fundamentada a História, o universo indígena pede que se leia: Pin­
dorama (Terra das palmeiras), Quarup (Festa dos mortos), Nhanderú (Deus),
Ikoé (Ser diferente), Nhemokyriri (Calar-se). Nomes e elementos sonhados
numa sociedade diferente. Metáforas do tempo de Yvi Marãey (Terra sem
males), uma metáfora feliz.

2.1.1 Interfaces da Carta de Caminha


Uma metáfora enganosa, porém, estaria por vir na redação oficiosa de
Pero Vaz de Caminha: uma escritura de posse, um manuscrito que serviu
de guia prático para os turistas da colônia fomentarem a briga de Portugal e
Espanha; um roteiro extraordinário para legitimar a expansão portuguesa. Eis
uma das interfaces da Carta do escrivão Caminha.

Joáo Ubaido e o besteirol dos 500 anos. O Estado de S.Paulo, 23 abr. 2000.
Devo essa ínterlocuçáo ao colega Alexandre Furtado {professor da UPE),

45
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENACONTEMPORÂNEANO BRASIL

Uma coisa é dizer que o Brasil foi descoberto no dia 22 de abril de 1500
e outra coisa é contar que “o Brasil foi introduzido de maneira violenta, na
cultura ocidental; foi o primeiro golpe da nossa história [...]; os índios náo sa­
biam nem o que era golpe ainda, coitados. Levaram um, logo de cara”, afirma
Ariano Suassuna (1994, p. 24) em muitas de suas aulas. Fatídico dia em que
foi instaurado no Brasil o começo de um modelo mercantilista. Dos equívo­
cos que se aprende nos manuais literários, convém grifar a afirmação de que a
carta de Caminha significou para a nossa História “uma autêntica certidão de
nascimento”. Que essa carta é um dos mais importantes registros do processo
da transfiguração étnica^** com a chegada dos portugueses ao “Novo M undo”
é um fato; que se trata de um texto bem elaborado e bastante persuasivo, é
incontestável; que tem uma estreita relação com o discurso literário, náo resta
dúvida.
Todavia, há outras manifestações que autenticam a existência da arte
nativa para o mundo. Basta um olhar sobre as itacoatiaras, e aguçar a sensi­
bilidade para ouvir as histórias de tradição oral e escrita dos povos indígenas
e africanos. A este respeito, as escolas em geral não contam. Trabalhar o mito
(realidade/história) pode não ser uma tarefa fácil; mas, a partir dele, é possível
fazer o (re)conhecimento da nossa identidade sufocada nesses mais de 500
anos. Quem teve a oportunidade de ler os mitos indígenas adaptados por Ciça
Fittipaldi para o público infanto-juvenil da cidade grande sabe que o “po-
rantim” é o principal símbolo da cultura Saterê Mawé, isto é, trata-se de um
remo onde está gravada/escrita toda a história mítica dos filhos do guaraná.
Na língua Saterê Mawé, “porantím” significa: remo, arma e memória; significa
uma expressão escrita de vida e espírito que existe muito antes da chegada dos
portugueses em Pindorama; ou como queiram: ao Brasil, Brazil, Brasis.
O estudo da representação do negro e do índio na literatura requer uma
abordagem específica. Da maneira como o assunto vem sendo trabalhado,
sobretudo nas escolas dominantes, o processo de formação política, social,

™A transfiguração étnica, segundo Darcy Ribeiro (1995a, p. 30), “se dá pela gestação de uma etnia
nova, que foi unificando, na língua e nos costumes, os índios desengajados de seu viver gentílico, os
negros trazidos de África, e os europeus aqui querenciados. Era o brasileiro que surgia, construindo com
os tijolos dessas matrizes à medida que elas iam sendo desfeitas”.

46
IDENTIDADES E UTOPIAS

econômica e cultural imposto aos povos indígenas e africanos continuará sen­


do ignorado. A expressão artística do ameríndio e do africano sugere uma
leitura das diferenças, pois o ato de conhecer o outro implica o ato de interio­
rizar a história, a auto-história, as nossas raízes.
A abordagem que se faz do índio na história da literatura brasileira não
é indígena, mas indigenista ou indianista. A contribuição do Padre José de
Anchieta (indevidamente classificada como literatura informativa) inaugura o
que se pode chamar de cenário oficial da literatura brasileira, mas a sua poesia
e o seu teatro de intenção pedagógica e moralizante marginalizam o nativo.
“O auto da Festa de São Lourenço” (representado em 1583) é um exemplo do
discurso dominante sobre a conversão do índio e sua edificação com o branco,
como observa Bosi (1983). Nesse auto, umTamoio representa o espírito ruim
(Guaixará) que atacou os lusitanos em São Sebastião do Rio de Janeiro no ano
de 1566. O texto de Anchieta endossa a doutrina do Padre Manuel da Nóbre-
ga ao alegar a necessidade de “pôr termo à antropofagia, que só cessará, [diz
Nóbrega], pondo fim à boca infernal de comer tantos cristãos” (RIBEIRO,
1995a, p. 50).
Em Anchieta, eis uma imagem do índio:

Quem sou eu?


Eu sou conceituado,
sou o diabáo assado,
Guaixará chamado, por aí afamado.
[...]

De enfurecer-se, andar matando,


comer um ao outro, prender tapuias,
amancebar-se, ser desonesto, espião adúltero,
não quero que o gentio deixe.

Para uma visão panorâmica da literatura jesuíta, vale consultar o pensa­


mento de Bosi (1983) em sua História concisa da literatura brasileira-, contudo,
em Dialética da colonização, Bosi oferece uma leitura mais profunda do ponto
de vista poético e crítico sobre o assunto, como sugerem os capítulos “An­
chieta ou as flechas opostas do sagrado” e “Vieira ou a cruz da desigualdade”.

47
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDiGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

Nessa perspectiva, apreende-se em Bosi, que no Período Barroco, a Coroa


portuguesa reclama do Padre Antônio Vieira menos atençáo aos nativos que
eram vendidos como escravos. Em 1653, no “Sermão da Primeira Dominga
da Quaresma”, Vieira propõe que os nativos sejam “tomados em justa guerra,
da qual serão juizes o governador de todo o estado, o ouvidor geral, o vigário
do Maranhão ou Pará e os prelados das quatro religiões. Carmelitas, Francis-
canos, Mercedários” (BOSI, 1992 p. 114) e da Companhia de Jesus, à qual
pertencia Vieira.
A respeito dos negros e seus senhores. Vieira diz em 1653, no “Sermão
IV do Rosário”, que “Eles mandam e vós servis; e dormem e vós velais; eles
descansam, e vós trabalhais; eles gozam do fruto de vossos trabalhos, e o que
vós colheis deles é um trabalho sobre outro”. Por melhores que tenham sido
as intenções de Vieira, o fato é que, em sua oratória, o índio continua mais
cativo e o negro mais escravo.
Em Gregório de Matos, a visão do índio também não é consoladora.
Ainda que tenha procurado converter a realidade em poesia, o “Boca do In­
ferno” não escondeu seu desprezo pelos mestiços e sua cobiça pelas mulatas,
como sugerem alguns de seus poemas satíricos.
No Arcadismo, a duvidosa tentativa de imprimir uma cor local ao ce­
nário luso-brasileiro remete aos poemas “Uraguai”, de Basílio da Gama, e
“Caramuru”, de Santa Rita Durão. Com “Uraguai”, nota-se, em primeiro
plano, a louvação de Basílio da Gama ao seu protetor, o déspota Marquês de
Pombal, representante da Corte no século XVIII; em segundo plano, o herói
Cacambo, que agoniza na luta entre jesuítas e íuso-castelhanos. No poema de
Santa Rita Durão, o personagem foi construído para honra e glória de Diogo
Álvares, um colonizador travestido de Caramuru: deus do trovão. Tanto no
poema “Uraguai”, quanto no poema “Caramuru”, resta a imagem do índio
perdedor, considerado por Frei de Santa Rita Durão como subespécie.

2.1.2 Marabá; filha da e(r)va


A morte de Lindoia (em “Uraguai”) e de Moema (em “Caramuru”)
pressagia a marginalização da mulher em José de Alencar e em Gonçalves
Dias. Na prosa e na poesia romântica indianista, essa particularidade revela-se
na construção de personagens-metáfora da transfiguração étnica e da condição

48
IDENTIDADES EUTOPLAS

feminina ou as dores do parto^^ da história de uma nação, de um país. Pelo


menos é o que sugere a exclusão estampada em Iracema: personagem-título,
anagrama de uma América mecejana (abandonada), romanceada por José de
Alencar ou mesclada na imagem da mulher de dois sangues, no grito de uma
nação mestiça no poema “Marabá”. Conforme se lê e se sente nos Últimos cari'
tos do mestiço Gonçalves Dias (2001, p. 115-116), a Filha das ervas, a Filha
da mistura do branco com o índio continua se perguntando:

EU VIVO SOZINHA; ninguém me procura!


Acaso feitura
Não sou de Tupá!
[...]
‘Teus olhos são garços,’
Respondo anojado, mas és Marabá;
‘Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes,
‘Uns olhos fulgentes,
‘bem pretos, retintos, náo cor d’anajá.’
[...]
‘Quero antes um rosto de jambo corado
‘Um rosto crestado
‘Do sol do deserto, não flor de cajá.’
1...]
‘Eu vivo sozinha
chorando mesquinha,
que sou Marabá!

No segundo volume da obra Formação da literatura brasileira, Antonio


Cândido (1981, p. 84) diz que esse poema é um “cock-tail de medievalismo,
idealismo e etnografia fantasiada [que] nos aparece como construção lírica e
heróica, de que resulta uma composição nova para sentirmos os velhos temas
da poesia ocidental”. Contrariando a noção de “etnografia fantasiada” em­
pregada por esse estudioso, convém notificar alguns aspectos necessários à

A imagem da transfiguração em Marabá revela uma das interfaces do parco da nação brasileira, sobre­
tudo a cara mestiça, como diz Darcy Ribeiro (1995a, p. 448), ao referir-se às “mulheres negras e índias,
muitíssimas, com uns pouquíssimos brancos europeus que nelas se multiplicaram prodigiosamente”.

49
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

compreensão do enfoque identitário no poema e a sua relação com a vida do


autor. Como nos aparece:
• da biobibliografia do poeta Gonçalves Dias não consta que ele tenha
procurado adotar uma postura de especialista da disciplina Etnogra-
fia;
• embora tenha sido consultor de D. Pedro II e defendido o falar bra­
sileiro e não o falar indígena como língua nacional, o poeta não foi
desatento á questão do deslocamento do indivíduo no quadro de
exclusão social no Brasil do século XIX;
• o cidadáo-poeta Gonçalves Dias não fantasiou a Etnografia, mas
estudou-a, à medida que vivenciou o entrelugar no seu exílio em
Portugal;
• autodidata no estudo e na descrição dos povos indígenas (sua língua,
religião e manifestações materiais de sua atividade), o poeta trava
contato com essa disciplina com o intuito de imprimir um efeito de
realidade ao texto;
• o cerne do poema não se prende ao aspecto exótico e ao pitoresco,
mas a uma das faces da exclusão (seja na sociedade dominante, ou na
sociedade indígena);
• com respeito ao recurso inventivo denominado de licença poética,
Gonçalves Dias não fantasiou a etnografia. Ele problematizou (nas
entrelinhas) a sua condição de mestiço, considerando que o seu pai
era português e a sua mãe uma índia mestiça ou cafuza (negro + ín­
dio). Na opinião de Bosi, “o poeta se dizia descendente das três raças
que formaram a etnia brasileira” (BOSI, 1983, p. 114),
Apesar do rótulo “etnografia fantasiada” dado ao poema, o crítico Anto-
nio Cândido vê em “Marabá” um belo exemplo de quasímodos (monstros) e
de construção da personagem largada ao desamparo amoroso e social, ou seja:

a admirável utilização da mulher de dois sangues, que traz ao lirismo


uma ressonância mais pungente do sentimento de incompreensão
amorosa. A marabá é desses monstros diletos do romantismo [...],
postos pela fatalidade aquém da plenitude afetiva: só que, neste
caso, monstro extremamente belo e, por isso, mais trágico no seu
desamparo (CÂNDIDO, 1981, p. 84).

50
IDENTIDADES E UTOPIAS

Cândido também observa que o poema “I-Juca Pírama^^”, de Gonçal­


ves Dias, traz “um recurso inesperado e excelente: o lamento do prisioneiro,
caso único em nosso indianismo, que rompe a tensão monótona da bravura
tupi graças à supremacia da piedade filial” (CÂNDIDO, 1981, p. 85-86).
Não seria também o lamento da índia-descendente que é Marabá um caso
único em Gonçalves Dias? Até que ponto o grito de Marabá corresponde ao
grito das mulheres indígenas e de todos os excluídos? As frustrações amorosas
dessa personagem sáo menores que o fardo de ser mestiça, pois a sociedade lhe
nega um lugar definido. Na literatura brasileira, essas questões se manifestam
na transculturaçáo (branca-negra-índia) dessa nação mestiça romanceada em
Macunaíma, de Mário de Andrade.
Poucos sáo os estudos que buscam no poema “Marabá” o suporte teó­
rico para repensar a questão do hibridismo cultural. Curiosamente, o referido
poema/personagem e o seu autor raramente sáo mencionados em estudos des­
sa natureza. Enquanto sua exclusão é notória nos estudos do indianista Darcy
Ribeiro, outros estudiosos mostram a figura de Marabá associada à constru­
ção de símbolos nacionais, como se vê na contribuição de Valéria Lamengo
(1992), nos Anais do IVSeminário Nacional, sobre mulher e literatura.
Marabá configura a atualidade do texto em Gonçalves Dias ao retratar a
“nossa” condição de filhos da mistura, filhos da erva (na visão indígena), filhos
de Eva (na visão ocidental cristã); filhos marginalizados, espoliados, excluídos.

2.1.3 Do Goitacá ao Popol Vuh dos tem pos m odernos


Um dos flagrantes da marginalidade do brasileiro revela-se ainda na
triste figura de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. Nesse romance, o per­
sonagem central ora encarna um Goitacá,^^ ora encarna o quixotesco major
Policarpo Quaresma. Este último que pede às autoridades a inclusão do tupi
como língua oficial; no sentido de valorizar esse conhecimento e respeitar a

^ Significa “aquele que deve morrer”.


^ Era costume entre os Goitacá e os Tupinambá as saudações lacrimosas. Em Lima Barreto, a seguinte
passagem sugere esse código de relaçáo; Eis aí! Vocês não têm a mínima noção das cousas da nossa
terra. Queriam que eu apertasse a mão. Isto não é nosso! Nosso cumprimento é chorar quando encon­
tramos os amigos, era assim que faziam os mpinambás” (BARRETO, 1981, p. 43).

51
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDlGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

identidade do outro. Para melhor compreender essa noçáo de utopia, vamos


a Paulo Freire:

é exatamente esta vontade de ser nós mesmos, e este desejo forte,


alentados pela UTOPIA tão necessária quanto viável, que marcha­
mos os progressistas e as progressistas desta Terra de América para
a concretude, a realização dos sonhos dos Vascos, de Quiroga y Tu-
pac, dos Bolívares, dos San Martins, dos Sandinos, dos Tiradentes,
dos Ches, dos Romeros. O futuro é dos povos e não dos Impérios
(FREIRE, 2000, p. 76).

Com os tempos de global-colonização, repensar o utópico é uma traje­


tória possível; ainda que a história mostre sua fiíria, como se vê (adiante) na
fala de um Guarani, em AíFonso Romano de SandAnna (1998, p, 36). A voz
do texto revela que na grande taba há uma grande alma que se pergunta como
e para onde foi

o corpo de um sempre poeta morto


dessangrando
sobre as lombadas da história?

Na poética de SandAnna, assim fala o Guarani, fragmentado na fúria,


diante do choque cultural. (Essa visão manifesta o receio de náo conhecer,
mais de perto, o que ainda resta do cheiro do mato e da água; do cheiro de
uma aldeia onde se lê a terra sangrando por dentro. Meio-igual aos outros [os
não índios?], esse moderno Popol Vuh^^ também procura “um texto que [lhe]
salve e [lhe] exaspere” das chamas onde se arderam Giordano Bruno, Galileu,
os judeus e outros tantos que —ao longo da História e de um tempo mais re­
cente - se arderam. Sob uma marquise no Planalto Central, em 19 de abril de
1997, um Pataxó foi morto. Em SandAnna (1998, p. 46), a linguagem com
seus símbolos atesta que:

Livro composto de mitos, adivinhações, história, cosmologia e outros saberes sagrados da civilização
Maia.

52
IDENTIDADES E UTOPIAS

A linguagem é a história
e a história
é a fúria agora.

Para Antonio Hohlfeldt (1998, p. 15-16), esse poema abarca “em sua
síntese amplificada as contradições e as afirmações de um povo que, oprimi­
do ao longo dos séculos, marginalizado da história, sempre encontrou, em si
mesmo, motivos de sobrevivência e resistência”. Em outras palavras, a fala do
Guarani, em SandAnna, configura um exemplo das raras exceções em que os
povos indígenas aparecem na literatura brasileira como sujeitos da própria his­
tória. Tomamos de empréstimo as seguintes palavras de Aracy Lopes da Silva
(1989) para afirmar que são raros:

os autores que se identificam com o pensamento indígena e, respei­


tando-o, nele exercitam sua própria capacidade de criação literária;
raros também sáo os que se contentam em transmitir os textos mí­
ticos sem adulterá-los ou “corrigi-los” segundo o que consideram
moral ou ideologicamente correto e adequado a seus leitores (SIL­
VA, A. L , 1989, p. 317-318).

2.2 “CRIATURAS LITERÁRIAS, A N IM A IS PO LÍTICO S”

Exemplos significativos da literatura indígena contemporânea nos


aguardam no terceiro e quarto capítulos, dedicados ao pensamento de Elia-
ne Potiguara, Daniel Munduruku, Renê Kithãulu, Yaguarê Yamá e Olívio
Jekupé: autores, entre outros, que apresentam em suas obras perspectivas de
construção de outro mundo posstvel^'^ Enquanto isso, tomemos de empréstimo
e grifemos também a expressão criaturas literárias, animais políticos, de Homi
Bhabha (1998), para desenvolver a nossa leitura das diferenças.
Com base em teorias que têm sido batizadas de pós-coloniais, periféri­
cas, plurais e não eurocêntricas, entre outras noções, permitimo-nos abordar
uma literatura de sobrevivência: a literatura indígena. As designações que se

Lema do “Fórum Social Mundial”. Um evento que se realiza, anualmente, em Porto Alegre e que
tem por objetivo geral: opor-se à globalização excludente e militarista representada pelo neoliberalismo.

53
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

pode dar à questão são postas, aqui, como mais uma possibilidade de leitura.
Portanto, não se trata de uma leitura essencialista, do contrário cairiamos nas
armadilhas do “texto de autoridade” em detrimento do texto de alteridade.
Essa perspectiva nos aproxima de Bhabha (1998, p. 19) na argumentação do
local da cultura, mostrando-nos que a “Nossa existência hoje é marcada por
uma tenebrosa sensação de sobrevivência, de viver nas fronteiras do presente’,
para as quais não parece haver nome próprio além do atual e controvertido
deslizamento do prefixo pós’: pós^modernismo, pós-colonialismo, pós-feminis-
mo...” (grifo do autor).
Os textos literários contemporâneos de autoria indígena mostram, cla­
ramente, que a palavra indígena sempre existiu; que a “palavra foi nova para
os que tinham perdido a memória, mas para vocês [os parentes indígenas e ín-
dio-descendentes] não é nova nossa palavra porque já a caminhavam desde os
mais antigos avós,” diz a Carta do Comitê Revolucionário Indígena (CCRI)
aos participantes do Fórum Nacional em Chiapas. Escrita em 1988 e publica­
da na antologia organizada por Massimo Di Felice e Cristobal Munoz (1998),
essa carta do CCRI expressa o pensamento do sub comandante Marcos junto
ao Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN).
No “Prefácio cúmplice” dessa antologia, o poeta Pedro Casaldáliga
(1998, p. 9) —Bispo do Araguaia —mostra-nos que é “hora mesmo dever tam­
bém no Brasil —ai. Brasil, tão pouco latino-americano ainda! - esta antologia
zapatista, disparar a palavra, a indignação, a mais legítima das reivindicações”.
Orientando-nos que é chegada a hora da nossa indig(e)Nação, essa antologia
sugere os caminhos (subsídios) que, por muito tempo, desejei encontrar para
compreender o universo da literatura indígena no Brasil; “subsídios de sonho,
de alternatividade, de co-responsabilidade, que podem nos estimular a essas
novas formas de luta”, como diz Casaldáliga (1998, p. 10, grifo do autor), ca­
minhos visionários para reafirmar o lugar da palavra nas sociedades indígenas,
em contraponto ao lugar dessa literatura na sociedade não indígena.

2.2.1 Literatura e auto-história


A busca da palavra, mais precisamente a luta dos povos indígenas
pelo direito à palavra oral ou escrita configura um processo de (trans)for­
mação e (re)conhecimento para afirmar o desejo de liberdade de expressão

54
IDENTIDADES E UTOPIAS

e autonomia e (re)afirmar o compromisso em denunciar a triste história da co­


lonização e os seus vestígios na globalização ou no chamado neocolonialismo
com a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) que vêm impedindo a
paz desejada no universo das sociedades indígenas. Desse pressuposto, outras
questões se colocam como relevantes ao estudo da propriedade intelectual
indígena contemporânea no Brasil; indianidade, hibridismo, auto-história,
diáspora, assimilações, preconceitos e perdas, entre outras questões.
Para uma melhor compreensão desses aspectos, convém averiguar o
que se depreende da relação querer/ser/saber/fazer no contexto da litera­
tura indígena. Um dos aspectos intensificadores desta análise prende-se ao
problema que é definir/conceituar literatura. Não nos parece uma tarefa
fácil, se considerarmos que o conceito de Literatura está sujeito a polêmicas.
Em outras palavras, são os desentendimentos que geram e determinam a
noção de Literatura, ou como observa Massaud Moisés (1985): uma noção
“comanda todas as divergências: a do conceito de Literatura, porquanto, a
rigor, a escolha dos critérios depende do conceito básico que cada um tem”’
(DANZIGE á/íWtíí MOISÉS, 1985, p. 310). Em se tratando de literatura in­
dígena, as definições, os conceitos esbarram na questão do reconhecimento,
no preconceito literário estampado no mascaramento das polêmicas dou­
trinais. No cânone, essa literatura não aparece mencionada; seu lugar tem
sido, até agora, a margem. Poucos se dão conta de sua pulsação.
Apesar da falta do seu reconhecimento na sociedade letrada, as vozes
indígenas não se caiam. O seu lugar está reservado na história de um outro
m undo possível. Visando à construção desse mundo, os textos literários
de autoria indígena tratam de uma série de problemas e perspectivas que
tocam na questão identitária e que devem ser esclarecidos e confrontados
com os textos não indígenas, pois trata-se de uma questão muito delicada
e m uito debatida hoje entre os escritores indígenas. Com efeito, a ques­
tão identitária vem sendo debatida por autores não índios, diz Maurízio
G atti (2001), no artigo “Être auteur autochtone au Québec aujourd’hui”.^^

Em depoimento pessoal, o pesquisador Gatti informa que esse artigo é uma versão do que foi pu­
blicado em; VIAU, Robert (Dir.). La création littéraire dans le contexte de 1'exiguité. Beauporc; MNH,

55
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASiL

Seguindo essa orientação, apresentamos alguns conceitos para auxiliar a nos


sa leitura acerca de questões que, a priori, nos parecem intensificadores no
textos literários de autoria indígena relacionados ao corpus pesquisado. Sá
eles; transculturaçáo (Ortiz), auto-liistória (Sioui), indianidade (Boudreau'
hibridismo (Canclini e Bernd), deslocamento (Hall) e identidade literárií
entre outros aspectos.
A questão do lugar e da identidade na literatura indígena não est
dissociada da noção de deslocamento. Em Stuart Hall (1999), esse proceí
so remete à diáspora; experiência do judeu e de outros povos dispersos n
mundo, devido a perseguições religiosas, políticas e outras questões. N a pej
cepção de Ana Carolina D. Escosteguy (2001), o conceito de deslocament
(em Hall) apresenta uma estreita relação entre identidade e diáspora e impl
ca uma nova configuração de identidades culturais; pois, conforme Hall,
migração resultou ser o evento histórico-mundial da modernidade tardia,
clássica experiência pós-moderna revela-se ser a experiência diaspórica” (Eí
COSTEGUY, 2001, p. 142). Nessa direção, ela enfatiza duas modalidadt
do processo: o temporal e o espadai. O primeiro refere-se ‘a permanência c
uma ligação com o passado - mesmo que possa estar associado a ruínas. Pc
essa razão. Hall vai discutir a formação de novas formas de identidade ligad;
ao re-contar o passado através da memória e à afirmação da diferença” {idem
O segundo aspecto do deslocamento mostra o ser estrangeiro, um outi
ou quase-ele-mesmo no entrelugar; entre saídas e chegadas. Escosteguy ilusti
muito bem esse processo, mostrando ao leitor um aspecto do deslocament
vivenciado por Hall. A esse respeito, ele mesmo conta de sua experiência r
Inglaterra e na Jamaica, onde a educação colonial lhe imprimiu uma identid
de híbrida; daí não se reconhecer completamente desses lugares e isso, con
ele próprio confessa, “é exatamente a experiência diaspórica, distante o sui
ciente para experienciar o sentimento de exílio e perda, próximo o suficien
para entender o enigma de uma chegada sempre adiada” (ESCOSTEGU
2001, p. 142).

2000. p. 183-194 (Coll. Écrits de la frandcé). Disponível em; <mau.gatti@katamail.com>. Acesso e


16 maio 2002.

55

I
IDENTIDADES £ UTOPIAS

As noções de deslocamento (Hall) nos aproximam da experiência indí­


gena, pois se nos reportarmos tanto ao passado quanto ao presente factuais (a
contar do “descobrimento” até o desalojamento dos povos indígenas de seus
territórios pelas hidrelétricas, mineradoras, etc.), nos aparece outra face ou
terceira margem do deslocamento em âmbito mundial: a diáspora indígena.
Isto se vê e se sente também nos personagens ou identidades literárias (pode
ser um eu lírico social de autoria feminina com cara de índio(a), um narrador-
contador de histórias de índios e índias) deslocados na cidade grande, como se
observa no espaço da narrativa de Daniel M unduruku, Olívio Jekupé e Renê
Kithãulu, A poesia de EUane Potiguara, a auto-história de Marcos Terena, por
exemplo, dâo pistas da construção de suas identidades literárias para denun­
ciar como e por que as diferenças foram constituídas desde a colonização.
Sabendo-se diferente, a identidade literária na poesia e na prosa indíge­
na problematiza claramente essas questões, refletindo a consciência do autor
(cidadão indígena), da autora (cidadã indígena). A manutenção da diferença
é um recurso também da neocolonizaçáo para dominar os grupos indígenas,
como diría Canclini (1998, p. 250). O nível dessa dominação se deu a ferro
e fogo, conforme a articulação de alguns jesuítas (principalmente o mentor
do não diálogo com os “gentios”, o padre Manuel da Nóbrega). O projeto de
escravidão incluía, sobrerudo, o extermínio daqueles que não pareciam ter
sido feitos do mesmo barro, como nos mostra Darcy Ribeiro (1995a, p. 57)
em sua crítica ao projeto salvacionista atrelado à invasão.
Marcados pela diferença, os índios não tiveram muita escolha, limi­
tando-se a uma “triste vida de catecúmenos, suportável apenas diante da
alternativa que era caírem cativos nas mãos do colono” (RIBEIRO, 1995a,
p, 60). Como teriam salvação? As missões jesuítas endossaram “as campanhas
de extermínio dos Potiguara do Rio Grande do Norte, em 1599, e no século
seguinte, a Guerra dos Bárbaros e as guerras na Amazônia os índios jamais
estabeleceram uma paz estável com o invasor, exigindo dele um esforço conti­
nuado, ao longo de décadas, para dominar cada região” (RIBEIRO, 1995a, p.
33). A poesia de Elíane Potiguara mostra isso e mais: a desmitificaçâo do apa-
gamento dos Potiguara e de outros povos indígenas. Neste sentido, podemos
afirmar que a literatura dos ressurgidos compõe uma das faces do movimento
literário indígena no Brasil.

57
COMTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTÍMPORANEA NO BRASIL

Um estudo da noção de diáspora associada aos povos indígenas seria


presumivelmente mais adequado no viés de várias perspectivas: literárias,
históricas, antropológicas e culturais, entre outras. No presente estudo, a pers­
pectiva comparada permite um relacionamento da noção de deslocamento
com outros aspectos-chaves. Nesse sentido, partindo de Ortiz (1978), supo­
mos que será válido acolher o termo transcuhuração que, segundo o próprio
Ortiz, parece mais apropriado que o vocábulo aculturação^^ para designar/
explicar o processo de trânsito de uma cultura a outra e suas repercussões so­
ciais de todo gênero. O termo transculturaçâo foi criado por Ortiz, em 1940,
para expressar a complexidade desse processo “indispensable para comprender
la historia de Cuba y, por análogas razones, la de toda America”, diz Ángel
Rama (1985, p. 32). Foi Ortiz que deu à luz “o termo afro-cubano (do qual
derivaram [os vocábulos] afro-americano e afro-brasileiro”, afirma Guillermo
Cabrera Infante (1996, p. 80).
Observamos em Canclini (1998) que a aproximação do colonizador
com as sociedades indígenas provocou uma ruptura da identidade étnica
original, que ele chama de “desindianização”. A mesma ideia foi posta por
Darcy Ribeiro (1995b). Ele diz que somos filhos do “desfazimento” pela
multiplicação, pela mistura entre brancos, negros e índios e enfatiza: “Foi
desindianizando o índio, desafricanizando o negro, deseuropeizando o europeu
e fundindo suas heranças culturais que nos fizemos” (RIBEIRO, 1995b,
p. 13). Nesses termos, a noção de transfiguração em Ribeiro é semelhante à
desindianização em Canclini, ou seja, um processo que decorre da colonização
alcançando, assim, como afirma Ribeiro, “paradoxalmente, condições ideais
para a transfiguração étnica pela desindianização forçada dos índios” {iderri). No
entanto, o pensamento de Ortiz vai mais longe. Ao rejeitar o termo aculturação,
ele mostra que o indivíduo não perde a identidade, não deixa de ser ele mesmo
em contato com outro. De acordo com o pensador cubano:

el vocablo transculturación expresa mejor Ias diferentes fases dei


proceso transitivo de una cultura a otra, porque éste no consiste

^ “Por aculturación se quiere significar el processo de trânsito de una cultura a outra y sus repercusiones
sociales de todo genero. Pero transculturación es vocablo más apropiado” (cf. ORTIZ, 1978, p. 93).

58
IDENTIDADES E UTOPIAS

solamente en adquirir una cultura, que es lo que en rigor indica


la voz anglo-americana aculturación, sino que el proceso implica
también necesariamente la pérdida o desarraigo de una cultura
precedente, lo que pudiera decirse una parcial desculturación de
nuevos fenômenos culturales que pudieran denominarse neocultu-
ración (ORTÍZ apud^J\ÍAA, 1982, p. 32-33, grifos do autor).

Nesses termos, uma coisa é afirmar que uma pessoa não tem cultura (ig­
norar sua existência) e outra coisa é reconhecer que as sociedades tradicionais
sofreram o impacto a partir da chegada do sujeito dominante. É possível di­
zer —dentro da percepção indígena —que o índio não deixa de ser ele mesmo
em contato com o outro (o nlo índio), ainda que o (a) indígena more numa
cidade grande, use relógio tjeans, ou se comunique por um celular; ainda que
uma parabólica pareça, ao outro, um objeto estranho ou incompatível com a
comunidade indígena; ainda que nos deparemos com o indígena nos cami­
nhos da internet, em plena construção de aldeias (aparentemente) virtuais;
mesmo assim, a indianidade permanece, porque o índio e/ou a índia, onde
quer que vá, leva dentro de si a aldeia. Os que ficam sabem que vão junto, no
sangue do parente, na pele, na consciência, no cotidiano da história e da me­
mória do parente que não deixa de ser e/ou reconhecer-se filho legítimo pelo
amor à terra. Portanto, diferente do outro (o não índio). Essas questões são
claramente expostas por Daniel M unduruku, Ailton Krenak, Marcos Terena,
Darlene Taukane e Renê Kithâulu, entre outros pensadores indígenas.
Existe “desindianização” nos Pankararu que estão deslocados/desalo-
jados em São Paulo? Ao que me consta, continuam iguais na indianidade,
parentes dos Pankararu que, pela força das circunstâncias, deixaram em Per­
nambuco. O mesmo sentimento e consciência ocorre com os M unduruku
(em São Paulo ou no Pará), com os Saterê-Mawé, os Potiguara, os Guarani e os
Terena, por exemplo. Negar essa existência, essa resistência significa contrariar
o pensamento indígena que rejeita a ideia de aculturação. Nessa perspectiva,
parece-nos igualmente válido rejeitar a ideia de “desindianização” apresentada
em Ribeiro e em Canclini, conforme observamos anteriormente.
Ao retomar em Guilherme Bonfil Batalla os conceitos de diferença e
“subordinação”, Canclini dá como exemplo de desindianização ou aculturação
as comunidades camponesas de mestiços que - no seu entender —perderam

59
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

contato com a língua de origem, que abandonaram a indumentária tradi­


cional. Canclini demonstra reconhecer que o universo simbólico subsiste
nas comunidades mestiças. O vínculo com a tradição subsiste nos “traços da
‘cultura material, das atividades produtivas, dos padrões de consumo, da or­
ganização familiar e comunitária, das práticas médicas e culinárias e de grande
parte do universo simbólico” (CANCLINI, 1998, p. 250). Com efeito, não
podemos deixar de ver que essa questão remete aos temas transversais confi­
gurando um dos elementos intensificadores da literatura dos ressurgidos. No
entanto, Canclini reforça o conceito de aculturação quando afirma que “a
desindianização provoca nesses grupos ‘a ruptura da identidade étnica origi­
nal’, mas continuam tendo consciência de ser diferentes ao se assumir como
depositários de um patrimônio cultural criado ao longo da história por essa
mesma sociedade” (CANCLINI, 1998, p. 250).
O que resta, hoje, em termos de cultura que se possa falar de uma lite­
ratura indígena? Segundo Boudreau (1993), a literatura escrita do ameríndio
é um fenômeno cultural recente porque surge das decepções acumuladas após
a invasão europeia. Esse fenômeno opõe-se a todas as tentativas de assimilação
e dominação pelas quais os povos indígenas vêm passando atualmente. Dessa
forma, assegura Boudreau, os autores ameríndios expressam a sua visão de
mundo e a valorização de sua “indianidade”, exercitada há séculos, no amor à
terra. E desse amor que a literatura indígena se alimenta para configurar um
espaço de denúncia contra os dirigentes políticos e as forças multinacionais
que continuam ignorando as nações ameríndias (BOUDREAU, 1993, p. 4).
Com efeito, essa noção de “fenômeno recente” só pode conceber-se pela
história de resistência e luta dos índios na América, mas não por analogia
aos conceitos, às definições, às características (de escolas literárias, estilos de
épocas) de literatura, segundo os moldes da sociedade letrada. Em Boudreau,
a indianidade implica a consciência dos autores ameríndios sobre o desejo e
o poder de afirmar, de expressar sua identidade cultural e social. A literatura
indígena não reproduz os modelos reconhecidos pela instituição letrada, não
procura o reconhecimento institucional a todo preço. Nela, os(as) autores(as)
procuram expressar sua identidade/aiteridade. Nesse sentido, ela implica uma
literatura de sobrevivência para as nações indígenas e de resistência para os
“brancos” (BOUDREAU, 1993, p. 15-16).

60
IDENTIDADES E UTOPIAS

Na percepção de Georges Sioui (1989), um ameríndio da nação Huron


(Canadá), a auto-história tem um significado peculiar. E diferente de auto­
biografia (na visão ocidental). A auto-história implica a crítica/escritura, a
história/memória do indivíduo da nação indígena. Ciente da própria história,
Sioui afirma que “EAmérique blanche a perdu le combat culturel qu elle a
iivré contre le peuple amérindien”^®(SIOUI íí/ iwí/BOUDREAU, 1993).
No Canadá, os autores de literatura que descende da tradição oral são
considerados polimorfos e mestiços, pois trata-se de um escritura que póe em
relevo a vontade de sobreviver, e as formas que lhe revestem correspondem
à realidade ameríndia (Boudreau). Resistência, sobrevivência: essa particula­
ridade é própria da literatura que trafega na contramão, a exemplo da atual
manifestação literária de autoria indígena e de seus descendentes no Brasil.
No panorama indígena-descendente, circula em Goiás, por exemplo, o livro
do brasiguaio Brígido Ibanhes (1999), descendente dos Guarani, no Paraguai.
Ibanhes é autor de contos em que os personagens mestiços falam dos costu­
mes peculiares das fronteiras entre Brasil e Paraguai.
A literatura indígena contemporânea no Brasil pode e deve ser lida
na interface da auto-história, da luta e da literatura ameríndia. Essa relação
pode ser observada na entrevista de Basil Johnston^^ (um índio Anishinaube/
Canadá) publicada no Brasil pela revista O Mensageiro.^ A sua visão da
natureza, da educação, do sagrado, da política e da cultura, por exemplo,
mostra uma confluência com o pensamento indígena no Brasil. É uma
confluência natural, pois, sendo filhos da terra, trabalham para manter
o equilíbrio da Mâe-Terra, como sugere o pensador Daniel M unduruku
(2000b, p. 38): muitos pajés “estão chacoalhando o maracá para manter o
[equilíbrio da terra.] E não são apenas os pajés indígenas, não. São todos

C’itaçáo de Georges Sioui: “a América branca perdeu a briga cultural que cravou contra os Amerín­
dios” (Cf. BOUDREAU, 1993, p. 99).
Basil Johnscon é doutor em Educação pela Universidade de Toronto, Canadá.
^ Em 1979, por iniciativa de cinco caciques representantes de cinco povos indígenas, foi criada a revista
O.Mensagriroí uma publicação bimensal que circula, também, pela internet. Com o apoio do CIMI,
essa revista é dirigida aos povos indígenas, mas conta também com a participação de leitores não índios.
A proposta dos seus organizadores é levar “a palavra do índio para o índio” e ser um veículo de inter­
câmbio entre aldeias.

61
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

aqueles homens e mulheres que vivem nos quatro cantos do planeta e


acreditam na possibilidade de viver em paz”,
O pensamento indígena circunscreve-se no Círculo Sagrado da vida
(Sioui), na persistência de uma relaçáo ideológica própria do sistema de va­
lores das sociedades autóctones. Entretanto, uma interpretação ocidental da
realidade espiritual e cultural dos ameríndios exphca muito pouco a com­
plexa relaçáo entre a realidade e o símbolo (BOUDREAU, 1993, p. 62).
Sioui esclarece que é próprio do ser ameríndio reconhecer a interdependência
universal de todos os seres (físico e espiritual). Ciente dessa interdependên­
cia, o ameríndio procura, por todos os meios, se organizar para estabelecer
um contato intelectual e emocional, a fim de assegurar a todos os parentes
a abundância, a igualdade e a paz. É o círculo sagrado de vida que se opóe à
concepção evolucionista do mundo, de acordo com o qual os seres diferentes
são frequentemente ignorados e constantemente empurrados e substituídos
por outros que parecem adaptados à evolução (SIOUI, 1989, p. 3). Essa con­
cepção vai ao encontro também do pensamento de Kaka Werá Jecupé (1994),
firmado no “compromisso de traduzir da vermelha escrita-pintura [do] corpo
para o branco corpo [da] pintura escrita. Cumprindo a tarefa nesse relato,
para tingir o que até então no mundo tem parecido intingível (ric), a mistura
do vermelho sobre o branco resultando na cor da vida” OECUPÉ, 1994, p. 8).
Manter o sagrado é preservar a identidade que Werá Jecupé procura
transmitir aos parentes indígenas e aos não índios, conforme observamos
em outros livros de sua autoria mostrando o outro lado da história do Brasil
na visão do índio. Seu pensamento reporta-nos à visão indígena de Sioui e
outros parentes; em Johnston, por exemplo, “a cultura indígena apesar de
ser primitiva em tecnologia, não é nada primitiva em pensamento, nem nas
instituições, conhecimentos, percepções, relacionamentos, atitudes, códigos,
éticas” O O H N STO N , 1998, p. 8).
Utilizando o conceito de literatura mundial em Homi Bhabha (1998,
p. 33), é possível dizer que o estudo da auto-história pressupõe “o estudo da
literatura mundial [que] pode ria ser o estudo do modo pelo qual as culturas
se reconhecem através de suas projeções de alteridade”. Esse entendimento
do outro oferece subsídios para remodelar o estudo da teoria da literatura e
apreender o(s) significado(s) das diferenças, se considerarmos que o estudo

62
IDENTIDADES E UTOPIAS

literário pelo viés da ecocrítica (tanto quanto o seu objeto de estudo) implica
um olhar discernidor no que se refere também a estética dos excluídos. Nessa
perspectiva; a sabedoria dos pajés, por exemplo, não parece dissonante aos
ensaios críticos sobre o meio ambiente e a qualidade de vida e às denúncias
contra a segregação racial e a indiferença. Essa questão merece ser refletida.
Uma vez que estamos falando do compromisso também com a teoria, Bhabha
rraz mais um argumento:

É um sinal de maturidade política aceitar que haja muitas formas


de escrita política cujos diferentes efeitos são obscurecidos quando
se distingue entre o “teórico” e o “ativista”. Isso não significa que o
panfleto utilizado na organização de uma greve seja pobre em teoria,
ao passo que um artigo especulativo sobre a teoria da ideologia deva
ter mais exemplos ou aplicações práticas. Ambos são formas de dis­
curso e nessa medida produzem, mais do que refletem, seus objetos
de referencia (BHABHA, 1998, p. 46).

Não precisamos ir muito longe para entender que a falta de reco­


nhecimento em torno do pensamento indígena parece mesmo enraizada
na ausência de solidariedade das sociedades imaginadas como nacionais.
Por isso, Darcy Ribeiro (1995b, p. 14) expõe a sua indignação com ironia:
“Somos uma nação etnicamente unificada e coesa, sem qualquer contin­
gente oprimido a disputar autodeterminação”. Se alcançarmos o estágio de
reconhecer o outro reconhecendo a nós mesmos, é provável que nos tor­
nemos “criaturas literárias” e/ou “animais políticos”, como sugere Bhabha,
lembrando-nos que “devemos nos preocupar com a compreensão da ação
humana e do mundo social como um momento em que algo está fora do
controle, mas não fora da possibilidade de organização’^ (BHABHA, 1998, p.
34, grifo do autor).
Essa problematização vem reforçar a noção de abordagem periférica
acerca do entrelaçamento literatura/história na estética dos excluídos: espe­
cificamente, a literatura indígena que, por sua natureza, pode ou não ser lida
entre as manifestações dos chamados pós-modernismo, pós-coionialismo e
outros tantos pós- e pré-fixos que, via de regra, vêm se instalando no arca­
bouço teórico dos textos literários ocidentais. De fato, o modernismo e o

63
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDfGENACOlíTEMPORÃNEA NO BRASIL

colonialismo náo deixaram de existir. O modernismo e o colonialismo conti­


nuam fazendo as suas travessias, sacralizando a arquitetura do preconceito, ou
como nos ensina Eliana Lourenço de Lima Reis (1999, p. 14): “a chamada li­
teratura pós-colonial náo consegue, assim, escapar ao neo-colonialismo”, mas
os estudos críticos “mais recentes” tendem a considerar que:

o prefixo pós de pós-colonialismo náo significa o fim do colonialismo,


mas a inserção num contexto de internacionalização do mercado —
inclusive do mercado de bens culturais. Afinal, depois do processo de
globalização iniciado pelo imperialismo, não há como separar a histó­
ria das antigas metrópoles das histórias dos povos colonizados e nem
se manter o antigo conceito de Estado-nação (REIS, 1999, p. 14).

2.2.2 (Rejimaginações: confluêndas


Os aspectos inrensificadores da literatura indígena contemporânea no
Brasil remetem à auto-história de resistência, à luta pelo reconhecimento dos
direitos e dos valores indígenas, à esperança de um outro mundo possível, com
respeito às diferenças. O reconhecimento desses aspectos perpassa na contribui­
ção de escritores (as), pesquisadores(as) e artistas que se identificam com a causa
indígena, particularmente, aqueles (as) que se empenham em transmitir e “tra­
duzir” com apurada sensibilidade a poética de tradição oral dos povos indígenas
no Brasil e na Ameríndia. Nesse contexto, temos Aracy Lopes da Silva, Aryon
Rodrigues, Bartomeu Meliá, Berta Ribeiro, Betty Mindlin, Curt Nimuendaju,
João Pacheco de Oliveira, Júlio Cezar Melatti e Nunes Pereira, entre outros. As
suas contribuições são prova de uma leitura náo equivocada sobre as diferentes
sociedades indígenas. Sem dúvida, havería uma lacuna na história indígena se
não fosse o olhar diferenciado desses estudiosos acerca do pensamento indígena.
No que diz respeito ao trabalho de tradução e/ou de adaptação do tex­
to extraocidental ou texto literário indígena, o poeta e ensaísta Haroldo de
Campos (1999) explica em que consiste esse processo que ele denomina de
“transcri(a)ção” e, em casos específicos, de “(re)imaginação”. Ao mostrar que
a literatura é feita de literatura, o ensaísta observa que esse processo se aplica
à poesia indígena, africana e chinesa, ressaltando que essas literaturas devem
participar do contexto da tradição brasileira, da poesia em geral.

64
IDENTIDADES E UTOPIAS

No caso da transcri(a)ção, o poeta afirma que não se trata de uma tradu­


ção despreocupada com o original, mas de um processo de tradução “hiperfiel”
ao original. Essa fidelidade não é apenas ao conteúdo original, mas ao aspecto
formal microestrutural desse conteúdo, a tudo que está semalizado. Nesse
processo reside “uma organização interna, jogos sonoros, correspondências
gramático-morfológicas que devem ser recriados”, diz Campos (1999, p. 25)
ressaltando adiante que emprega o termo reimagi nação em casos bastante es­
pecíficos, isto é, como ele sugere que deva ser na tradução da poesia chinesa,
“uma coisa mais paraftásica”. Campos observa que:

o chinês, sendo uma língua tonal, de quatro tons, não pode ser
reproduzida por nenhuma língua ocidental. Essa dimensão sofis­
ticada faz com que a poesia chinesa soe sempre como um canto.
[Desse modo, Campos propõe] reimaginar essa tonalidade na for­
ma de orquestração, transformando aquilo em verso livre, usando
eventualmente uma rima, reproduzindo em português os jogos de
organização gramatical [idem).

As adaptações de mitos e lendas indígenas oferecem um repertório


vastíssimo, embora algumas pareçam mais propícias em atender ao mercado
editorial destinado ao público infanto-juvenil. Em geral, resultam no discurso
fólclorizado em torno da tradição oral indígena nos chamados livros paradi-
dáticos. Dos trabalhos de tradução e de adaptação das narrativas indígenas
que se aproximam da reiraaginaçáo e da transcri(a)câo teorizada em Campos,
cumpre sublinhar por exemplo: os mitos Yânomami metamorfoseados em
poemas na antologia organizada por Mário Chamie (1978), poeta do concre-
tismo brasileiro responsável pela coordenação de edição, título e adaptação
desses mitos. Outro exemplo remete ao enfoque identitário nos livros de Luis
Galdino (1985), à reimaginação que brota do trabalho semiótico de Ciça
Fittipaldi, na sua adaptação dos mitos amazônicos, e à imaginação criadora de
Aline Bittencourt (1984), ao narrar as aventuras do herói Tapirapé.
E mais ainda: temos a reimaginação do “quarup” (festa dos mortos)
em Antonio Calado (1984), os mitos e cantos sagrados dos índios Guarani,
em Pierre Clastres (1990), a poesia Guarani traduzida, melhor dizendo, rei-
maginada por Josely Vianna Batista e Luli Miranda (1996). No repertório de

65
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

expressão portuguesa de “além-mar”, uma transcri(a)çáo se destaca; a poesia


ameríndia revisitada por Herberto Heider (1997).

2.2.3 [ndianidade e díáspora


Justifica-se rotular de subiiterários os mitos indígenas? Até que ponto a
literatura indígena pode ser considerada um fenômeno cultural recente? Por
que as literaturas indígena, afro-brasileira e mestiça reivindicam um lugar e
rejeitam o dogmatismo e a visão eurocêntrica? Quando saímos do lugar de
origem, jogamos nossas raízes ao vento?
Nos códigos das cidades letradas,^^ a literatura indígena e a literatura
africana (oral, ou escrita) náo ocupam as vitrines porque problematizam as
diferenças, subvertem a noção predominante que é a de rotular as literaturas
extraocidentais de discurso “subliterário”. No estruturalismo, trata-se de um
“discurso efetuado por microssociedades de tipo arcaico (ou por grupos sobre­
viventes)”, como definem Greimás e Courtés (s.d, p. 263). Em contraponto à
visão etnocêntrica, as literaturas indígena, afro-brasileira e africana de expres­
são portuguesa redefinem as funções do contador de histórias, denunciando a
diáspora, a opressão linguística e cultural como fazem os narradores na “con-
tação de histórias” de Daniel M unduruku, Olívio Jekupé, Renê Kithâulu,
Yaguarê Yamã e a voz indígena na poética do exílio em Eliane Potiguara e
tantos outros que compartilham do diálogo multiétnico.
A diversidade cultural, as fronteiras, os deslocamentos e os seus contra­
pontos dão conta de que uma das funções da contralireratura (literatura das
minorias?) é interpretar a consciência coletiva e nacional e convocar a uma
solidariedade ativa, como sugere Zilá Bernd (1988) em seu estudo dedicado
à literatura negra. Essa desobediência aos paradigmas permite “que venha à
tona o homem concreto e sua denúncia, [embora a tendência seja a de se
manter] nas fronteiras da marginalidade, se náo completamente marginais”
(BERND, 1988, p. 42-45).
Nessa instância, as fronteiras do texto dão conta de um processo cru­
cial: a diáspora indígena. O termo diáspora, segundo James ClifFord (1997), é

Expressão usada pelo uruguaio Ângel Rama (1985).

66
IDENTIDADES E UTOPIAS

muito evocado por grupos étnicos deslocados que sentem uma conexão com
e lugar de origem. Esse sentimento de conexão deve ser forte o suficiente para
lesistirem ao processo de deslocamento, perda e distanciamento. A noção e
O sentimento em torno do processo diaspórico podem ser “traduzidos” ou
possivelmente explicados com base na tensão de viver em determinado local,
mas com o pensamento voltado para o lugar de origem. Em princípio, é o
que sugere Clifford. Porém, ao tentar estabelecer uma relação entre diáspora e
tribo, ele pergunta: “quanto tempo uma pessoa leva para se tornar indígena?”.
Não se trata de uma pergunta política, como ele pretende, mas uma questão
capciosa, essencialista, que se confirma no conceito de raízes que ele procura
formular subestimando a relação entre ídentidade/alteridade no que se refere
aos povos indígenas.
A visão de Clifford parece excludente ao considerar que o senso de
raízes que tem o indígena (referindo-se às primeiras nações) é precisamente
o que falta nos grupos diaspóricos. Em suas contradições, ele admite que a
oposição entre diáspora e tribo não é absoluta, pois não é possível definir
quando ocorre diáspora, claramente. Em suas afirmações, esse processo não
existe na cultura indígena. Em outras palavras, “Tribal cultures are not dias-
poras”^^ (CLIFFORD, 1997, p. 254), Se esta é uma noção pós-moderna,
pós-colonialista de cultura, que outros “ismos” devemos utilizar para (re) defi­
nir o “caminho de volta” que alguns povos indígenas no Brasil estão fazendo,
“recuperando narrativas tradicionais e resgatando [...] o modo antigo de ver e
interpretar o mundo”?^^ Onde estão as raízes?
A noção de diáspora, infelizmente, atinge tanto os indígenas quanto os
judeus, africanos, muçulmanos e outros povos excluídos. Isso também quer
dizer que “todas as culturas são de fronteira” (CANCLINI, 1998, p. 348).
Essa questão nos permite aplicar à luz de Ortiz e Ribeiro (quanto aos con­
ceitos de transculturação e transfiguração) o termo hifenização para explicitar
os possíveis efeitos positivo e negativo do processo. No campo da literatura

Cf. CLIFFORD, 1997, p. 254: “{Precísely how tong it takes to become indígenous is always a po-
litical question.) Tribal cultures are not diasporas; their sense of rootdness in the !and is precisely whaC
diasporic pcoples have lost.”
« MUNDURUKU, 2000a, p. 71.

67
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

e dos estudos culturais, o hífen pode adquirir outras configurações, pois já


não se trata simplesmente de um sinal gráfico horizontal que une e/ou separa
palavras; mas trata-se do interdito configurando uma zona de conflito, de
intermediação. As entrelinhas do texto literário dão conta de que a hifeniza-
ção (em contraposição ao sentido denotado nos dicionários e nas gramáticas)
sugere um signo de múltiplas significações, de hibridaçóes.
Se, por um lado, a hibridação alude à negatividade que revela o deslo­
camento resultante do aparato tecnológico, globalizante e dos podres poderes
oblíquos (CANCLINI, 1998, p. 345), por outro, parece criar laços, se pensar­
mos na positividade do diálogo multiétnico. Mas os poderes se alastram por
territórios (indígenas) e subsolos, visando à sua comercialização. As tramas
desse processo, em termos globalizadores, vêm intensificado o neoliberalismo
e o neoconservadorismo aos quais estão expostos os povos indígenas e outros
excluídos.
O lado positivo do processo, embora apresente uma composição di­
ferenciada de fronteiras, tende a configurar outros recursos: a reunião, a
reorganização, o reconhecimento e o ressurgimento dos povos indígenas, por
exemplo. Pode ser utopia, mas esse mundo possível se daria pelo diálogo (sem
hífens, isto é, com o apagamento de fronteiras). Assim nos parece esse aspecto
da hifenização no caminho de volta dos povos ressurgidos, entre estes: os Po-
tiguara no Ceará; os Katoquim, em Alagoas; os Kambiawá, em Pernambuco
e outros ressurgidos nos últimos 25 anos, de acordo com os dados do CIMI.
Apesar da ALCA e de outras forças contrárias, os excluídos marcham e mul­
tiplicam-se na luta pelo direito à terra (propriedade coletiva) e à palavra porque
a palavra também fertiliza a terra. Perdê-las (a palavra e a terra) “significaria
perder a própria história coletiva, a própria identidade, enfim, o próprio sig­
nificado que orienta as relações sociais do indivíduo dentro do grupo e da
comunidade em relação às demais e em relação ao próprio mundo simbólico”
(Dl FELICE; M UI^O Z, 1998, p. 20). Diáspora, transculturação, hibridis­
mo, hifenização. Os contrapontos mostram que o diálogo deve ser o critério
revelador, “pois em toda fronteira há arames rígidos e arames caídos”, diz
Canclini (1998, p. 349). Como distinguir, então, os contrapontos em meio à
travessia? O diálogo entre literatura e os diferentes saberes sugerem que as coi­
sas “só têm sentido se ungidas pelo Homem” (LUKÁCS íípWDIMAS, 1987,

68
IDENTIDADES E UTOPIAS

p. 43). Nessa perspectiva, mais uma pista nos oferece a abordagem periférica
para compreender as formas de exclusão, ou seja:

Essa travessia por algumas transformações pós-modernas do mer­


cado simbólico e da cultura cotidiana contribui para entender por
que fracassam certas maneiras de fazer política baseadas em dois
princípios da modernidade: a autonomia dos processos simbólicos,
e a renovação democrática do culto e do popular. Pode ajudar-
nos a explicar, da mesma forma, o êxito generalizado das políticas
neoconservadoras e a falta de alternativas socializantes ou mais
democráticas adequadas ao grau de desenvolvimento tecnológico
e à complexidade da crise social. Além das vantagens econômicas
dos grupos neoconservadores, sua ação é facilitada por ter capta­
do melhor o sentido sociocultural das novas estruturas de poder
(CANCLINI, 1998, p. 345).

No Brasil, os estudos do pensamento indígena com relação aos mi­


tos estão quase sempre incluídos no domínio da Antropologia. No campo
das Letras, cresce o interesse de se conhecer o pensamento indígena e o afro
-brasileiro, entre outros povos excluídos dos estudos literários. Contudo, isso
não quer dizer que o preconceito em torno dessas questões tenha acabado.
Em verdade, diz José Carlos Leal (1985, p. 10), “hoje, as coisas não mu­
daram muito, embora já se note algumas diferenças. As universidades ainda
prosseguem tímidas com respeito a abrir as suas portas francamente para este
produto marginalizado”, ou seja, o conto popular, a literatura de tradição oral
(africana ou indígena).
Pensemos a palavra com outros saberes, como possibilidade de apro­
fundar o estudo da literatura indígena. Nessa perspectiva, convém sublinhar
o trabalho de Almeida (1999), autora da primeira tese de Doutorado relacio­
nada à atual literatura de autoria indígena no Brasil. Ela afirma a existência do
movimento político-literário indígena, relacionando-o às manifestações dos
escritores das nações Krenak, Maxakali, Pataxó, Xacriabá e de outros povos
indígenas. A sua pesquisa enfoca a relação entre oralidade e escrita na poesia e
na prosa, especificamente, o aspecto coletivo dos textos que os autores de dife­
rentes etnias escreveram ao longo dos Cursos de Capacitação para Professores
Indígenas (sob a sua coordenação), em Minas Gerais.

59
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

Um dos traços caracterizadores da literatura indígena converge à noção


de auto-história, fundamentada por Sioui. Na tipologia do gênero (ocidental),
a noção de auto^história (extraocidental) tende a configurar um recorte do hí­
brido, isto é, uma categoria à qual pertencem ou nela estão inseridos os ensaios,
os textos autobiográficos, os artigos, os depoimentos, os relatos, as entrevistas,
as cartas, as ilustrações, até os e-mails e outras formas de expressão que os(as) es-
critores(as) indígenas e descendentes utilizam para falar das diferenças culturais,
imprimindo vez e voz aos seus personagens, a sua indianidade.
Neste trabalho que pretende um encontro com a literatura indígena,
a cumplicidade é o método; a solidariedade é ritmo; a disciplina, paixão; o
profetismo, denúncia; a realidade, utopia; um caminho a seguir, se quisermos
e desejarmos realmente compartilhar com as vozes proféticas e periféricas que
denunciam o racismo e toda forma de segregação e apartheid que se espalha
pelo mundo. Portanto, ouvir/intuir a voz do outro é reconhecer-se no proces­
so identidade/alteridade e perceber que “a intuição é a mensageira da alma”,
como afirma Eliane Potiguara em depoimento pessoal. Essa cosmovisão póe
em relevo a ancestralidade - uma linha de força que se estende contra o está­
tico, a indiferença e a repressão.
Tratando-se de diálogo e dessa outra linha de força que é a capacidade
visionária ou intuição, ousamos perguntar: o que é ser poeta, pajé, contador^
contadora de histórias, irmáos-de-luta no contexto das sociedades indígenas:
Ao contrário do que se pensa, é esse conjunto de capacidade visionária qut
vem mantendo a tradição oral e organizando-se, também, por meio d;
literatura escrita. Convém sublinhar que é dessaforma, também, que se "traduz
0 oral na escrita. O que se depreende desse processo junta-se a outros temas (
situações identitárias que fomentam o diálogo nas pequenas e grandes aldeia
e nos textos teóricos e literários dos (as) escritores (as) indígenas e descendente;
que representam essas aldeias. Um exemplo dessa capacidade configura-si
nos manuscritos do subcomandante Marcos. Da convivência em Chiapas, o
pesquisadores Di Felice e Munoz (1998) constataram que nos manuscrito,
desse visionário se juntam:

diferentes estilos literários, mas sobretudo linguagens heterogê


neas, que unem a simbologia mítica dos descendentes dos maia

70
SDENTIDADES E UTOPIAS

aos estilos literários latino-americanos e europeus. Shakespeare,


Pavese, Gabriel Garcia Marquez, Pablo Neruda, Federico Garcia
Lorca se misturam com os contos do ‘Velho Antonio’, um
velho pajé indígena que conta mitos da cosmogonia maia, e com
a narração do cotidiano das comunidades, do estilo de vida e dos
valores que orientam os zapatistas (Dl FELICE; MUNOZ, 1998,
p. 22-23).

Essa visão do mundo acerca dos excluídos em Chiapas permite abordar


a dinâmica da hifenização que implica, segundo Walter (1999a, p. 77), “um
desafio enorme para as ciências culturais”, visto que o desafio é construir um
espaço à focalização não essencialista das diferenças culturais. Nessa orien­
tação, portanto, vamos ao encontro das vozes ancestrais e contemporâneas
nos textos literários de autoria indígena no Brasil, porque o trabalho com a
literatura (indígena ou não) exige “o abandono de modos de pensar univer­
sal istas e a revisão daqueles métodos nos quais a transferência intercultural é
ainda caracterizada pelo intercâmbio entre nações delimitadas, cada uma re­
presentando um espaço integrado a um poder central e uma unidade mental”
{idem).

2.2.4 Diálogo multiétnico


Ao longo da história, os povos indígenas vivendaram a impossibilidade
de escrever livremente em sua própria língua. Na questão dos mais de 500
anos, “a memória oral continuou sendo o único caminho para [o amerín­
dio] guardar, pelo menos, parte da história”, afirma Rodrigo Montoya Rojas
(1998), no artigo “Fiistoria, memória y olvido en los Andes Quechuas”.’^ Ele
comenta que a coexistência de elites indígenas dentro do império colonial
abriu possibilidades ainda que restritas para que uma parte da memória oral
dos povos americanos fosse escrita pelos primeiros mestiços e por alguns
quíchuas.

Cf. Rodrigo Montoya Rojas escreveu esse artigo a convite da Profa. Dra. Janice Ibeodoro e da equipe
de História virtuaJ do Departamento de História da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Uni­
versidade de São Paulo, em novembro de 1998.

71
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

Garcilaso de la Vega, el Inca,^^ Guamán Poma de Ayala e Titu C uí


Yupanqui sâo exemplos notáveis da historiografia andina. Exilado na Espa
nha, onde morreu em 1609, o Inca mestiço escreveu o outro lado da históri
indígena contrapondo o que fora narrado pelos cronistas que receberan
a incumbência da coroa espanhola para mostrar os Incas como selvagení
pagáos, sodomitas e indignos de respeito, a monarquia proibiu a leitura d
história escrita por De la Vega e, consequentemente, o uso do quíchua e da
vestimentas da época incaica. Em 1781, os quíchuas são levados à pobrez
e ao analfabetismo forçado com a morte do líder Túpac Amam (ROJAÍ
1998).
H á milhares de anos, a vocação enunciativa dos povos indígenas eco
como sinal de sobrevivência e continuará ecoando contra os conflitos geradc
pela cultura dominante. Com essa preocupação, o ativista Cacique Georg
Manuel reagiu ao Projeto de cidadania canadense reunindo milhares de voze
tribais em Port AJberny, no ano de 1975, quando foi proclamada a seguint
Declaração Solene dos Povos Indígenas do Mundo (PREZIA; HECK, 199í
p. 75):

Nós, povos indígenas do mundo, unidos numa grande


assembléia de homens sábios, declaramos a todas as nações:

Quando a terra-máe era o nosso alimento


quando a noite escura formava o nosso teto,
quando o céu e a lua eram nossos pais,
quando todos éramos irmãos e irmãs,
quando nossos caciques e anciãos eram grandes líderes,
quando a justiça dirigia a lei e sua execução,
aí outras civilizações chegaram!
Com fome de sangue, de ouro, de terra e de todas as suas riquezas
trazendo numa mão a cruz e na outra a espada,
sem conhecer ou querer aprender
os costumes de nossos povos,
nos classificaram abaixo dos animais.

Cf. Montoya, o poeta Garcilaso de la Vega era fiüio “ilegítimo” de um‘ nobre andaluz conquistadoi
de uma princesa da alta aristocracia inca.

72
IDENTIDADES E UTOPIAS

Roubaram nossas terras e nos levaram para longe delas,


transformando em escravos os “Filiios do Sol”.

Entretanto, nâo puderam nos eliminar, nem nos fazer


esquecer o que somos,
porque somos a cultura da terra e do céu
porque somos de uma ascendência milenar e somos milhões.

Mesmo que nosso universo seja destruído,


NÓS VIVEREMOS,
por mais tempo que o império da morte!

Tecida na solidariedade, a poética declaração que acabamos de observar


é expressão viva contra o projeto canadense de cidadania aos ameríndios, nâo
menos desastroso que o projeto brasileiro. O primeiro está associado ao surgi­
mento do Livro branco^ em 1969. O seu objetivo é neutralizar definitivamente
a pessoa do Ameríndio (BOUDREAU, 1993, p. Il4 ). Nesse livro, o governo
do Canadá redefine sua política excludente, propondo igualdade, liberdade e
cidadania canadense aos nativos que ocupam o território desde muito antes da
chegada dos franceses e ingleses colonizadores. Isso significa a perda da indiani-
dade, a assimilação e a extinção progressiva dos direitos adquiridos.
Muito embora o surgimento do Livro branco tenha abalado as associa­
ções políticas e ameríndias e venha gerando, ainda, inúmeras discussões sobre
o assunto, Boudreau (1993) considera que o despertar literário do ameríndio
acontece após a liberação desse livro.
No Brasil, o projeto governamental de 1978 propôs também aos
nativos (filhos e filhas da terra) uma política semelhante à do governo ca­
nadense, ou seja, uma proposta indecorosa de converter os indígenas em
cidadãos brasileiros, especificamente aqueles “que estivessem mais próximos
de nossa cultura, numa segunda edição da política do Marquês de Pombal.

^ No Canadá, a Constituição só reconhece a existência de ttés grandes grupos indígenas: Os Inuit, que
vivem em pequenas comunidades no Ártico; os Métis (descendentes da miscigenação entre os nativos e
os franceses) que habitam as províncias de Manitoba, Sashatchwan e Âlberta; c os índios, também de­
nominados de First Nations. Dessas naçóes, aproximadamente 60% vive em reservas e 40% em centros
urbanos (O Mensageiro, n. 110, p. 9).

73
CONTRAPONTOS DA LiTERATURAINDÍGENACONTEMPORÂNEA NO BRASIL

Se no século XVIII a conseqüência desta medida foi desastrosa, em nossos


dias seria o atestado de óbito de um grande numero de nações” (PREZIA;
HOORNAERT, 2000, p. 207).

2.3 ESCRITOR(A) INDÍGENA: TEMA E SITUAÇÕES

Uma de nossas preocupações é abordar a propriedade intelectual indíge­


na, por isso consideramos oportuno observar alguns aspectos da periodÍ2açáo
da literatura indígena e a situação dos escritores no Brasil; o papel que eles
desempenham, como são vistos pela sociedade envolvente, como seus livros
passaram a integrar a sociedade industrial e de consumo no país e como vivem
diante da realidade que os cerca.
Estudar a periodização das literaturas indígenas, dicionarizar seus auto­
res é uma perspectiva futura. A priori, permitimo-nos afirmar que o conjunto
de manifestações literárias de autoria indígena produzido no Brasil sugere dois
momentos singulares: o período clássico referente à tradição oral (coletiva)
que atravessa os tempos com as narrativas míticas e o período contempo­
râneo (de tradição escrita individual e coletiva) na poesia e na “contação de
histórias” com base em narrativas míticas e no entrelaçamento da história (do
ponto de vista indígena) com a ficção (em fase de experimentalismo).
Comecemos pela década de 1970, período de gestação da literatura
indígena contemporânea no Brasil e no qual praticamente não se falava da
existência de manifestações literárias de autoria individual indígena. Falava-
se do discurso indígena, tema dos mais estudados, no âmbito da linguística.
Dessa área, permitimo-nos citar as contribuições de três professores da Uni­
versidade Federal de Pernambuco, onde há vários anos (ao longo das décadas
de 80 e 90) dedicamo-nos ao estudo do pensamento indígena junto ao Núcleo
de Estudos Indigenistas - NEI/UFPE. Dos pesquisadores, cabe mencionar
Adair Pimentel Palácio, que estudou os Guató; Gilda Maria Lins de Araújo,
que analisou a fala de Mário Juruna, Ailton Krenak e Raoni (três lideranças
indígenas), Francisco Gomes de Matos, voltado aos Direitos Linguísticos, e
Núbia Borges, que, junto ao NEI, incentivou estudos acerca da cultura dos
povos indígenas; nesta perspectiva, o acervo do NEI foi indispensável para
trilharmos o caminho da militância em prol da causa indígena. Nessa época, a

74
IDENTIDADES E UTOPIAS

literatura contemporânea de autoria indígena era praticamente desconhecida.


Na busca de textos de autoria indígena, isto é, dos historicamente excluídos, a
quantidade de artigos e livros referentes à história e à cultura indígenas mos­
traram uma rajada do preconceito.
O artigo “Literaturas contam história de duas Américas”, de Norma
Kouri (2000), traz um elenco de obras e autores; entre estes, alguns brasileiros.
Apresentando um breve histórico dos acontecimentos, Kouri discute o pro­
blema da depressão dos Estados Unidos entre a Primeira e a Segunda Guerra
Mundiais, traça um perfil dos anos 1960 e observa que o Brasil não teve a
geração beat, ressaltando que esse movimento, entre outros, foi determinante
nos questionamentos acerca do lugar do outro na literatura americana. Daí
uma “literatura marcada por guetos; judeus, gays, índios, mulheres, negros e
étnicos {sic). Os guetos viraram subguetos e subdividiram-se num mar de plu­
ralidade cultural”, diz Kouri (2000). Ora, se não tivemos uma geração beat,
tivemos uma geração de perseguidos, torturados e desaparecidos nos “anos
dourados” que a mídia globalizada não conta. Canclini aborda com clareza
política essa questão:

Seriam dois milhões, de acordo com as cifras mais tímidas, os


sul-americanos que por perseguição ideológica e sufocamento eco­
nômico abandonaram nos anos 70 a Argentina, o Chile, o Brasil
e o Uruguai? Não é por acaso que a reflexão mais inovadora sobre
a desterritorialização esteja se desenvolvendo na principal área de
migrações do continente, a fronteira do México com os Estados
Unidos (CANCLINI, 1998, p. 312).

No panorama brasileiro, Kouri (2000) observa que tivemos “uma de­


pressão permanente aliviada por milagres econômicos como o dos anos 70
— que, afinal, era mentira. [Os brasileiros viveram] de 1968 até quase os
anos 80 sob censura”. Pesaram tipos de censura: “a leve, [...] a psicológica,
a troglodita e, quando terminou, viveram durante muito tempo os efeitos
da autocensura”, diz Kouri (2000), observando que a produção literária nas
Américas, mesmo feita dentro de um mesmo continente, apresenta profundas
diferenças nas quais se reflete a história dos movimentos. Nesse sentido, eia
considera que:

75
CONTRAPONTOS DA LITERATUR/i, INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

[os] movimentos construíram a literatura americana e a brasileira,


racharam ou aproximaram as duas Américas, a de cima quase sem­
pre influenciando, mas ignorando a de baixo. A que teve a sorte
de nascer em língua inglesa espalhou-se pelo mundo, a de origem
lusitana com pitadas indígenas e africanas confinou-se aos próprios
mitos (KOURI, 2000).

Ocorre, porém, que no artigo de Kouri a única referência a escritores


indígenas vai para o índio americano N. Scott Momaday. Considerando a data
em que foi escrito, o artigo apresenta algumas contradições e, ao mesmo tem­
po, prova a omissão e/ou a falta de (re)conhecimento da autora no que diz
respeito às obras de literatura indígena no Brasil, publicadas nesse período. Esse
artigo reflete o que ela mesma ignora: “a [literatura] de cima quase sempre in­
fluenciando, mas ignorando a de baixo”. E mais ainda: o preconceito literário
confirma-se, claramente, na passagem em que a autora declara que “O Brasil
não teve a geração beat, mas é um mundâo, explicado por Gilberto Freyre a
partir de Casa Grande & Senzala, antropologia com estilo literário” (KOURI,
2000). Concordo com a noção de Kouri no que diz respeito ao estilo literário de
Freyre na referida obra que é considerada um marco da cultura brasüeira. Con­
tudo, esse marco configura, infelizmente, outra forma sutil de racismo e poder.
Para Silvia Cortez Silva (1995), o mais perigoso preconceito é o da in­
diferença.^^ Na polêmica análise que faz da referida obra de Gilberto Freyre, a
professora Silva mostra que o Mestre de Apipucos subestima índios e negros,
judeus e mestiços. Os estereótipos incapaz, molengo e movediço mostram, cla­
ramente, o tipo de respeito que Gilberto Freyre dispensa ao índio. E a exceção
no tratamento, qualquer que seja o eleito, parece falsa, diz Silva questionando
os contrapontos desse tratamento que se estende no duvidoso reconhecimen­
to dos bandeirantes quanto ao “ardor guerreiro” dos povos indígenas que lhes
prestaram serviços (SILVA, S. C., 1995, p. 58).
A visão excludente de Freyre eleva o negro “a uma condição semelhante
ao português colonizador. O escravo africano colonizado, [torna-se] agente

^ Cf. intcrlocução da Professora Silvia Cortez durante a minha defesa do presente estudo, em 12 mar.
2003.

76
IDENTIDADES E UTOPIAS

colonizador dos índios” (SILVA, S. C., 1995, p. 50). O fato é que a noção
do eleito em Freyre configura um parâmetro racista e aristocrático. Em ou­
tras palavras: “há índios e índios, como há negros e negros, [„.] há judeus e
judeus [...]. O sudanês foi, sem dúvida, o negro eleito! O u seja, dos negros o
melhor!” (SILVA, S. C., 1995, p. 50). A percepção de Silva acerca do tempo
e da história na referida obra de Freyre revela uma grande e triste metáfora: “a
senzala [é] a grande excluída [...]. Ausente do texto freyriano não pode deixar
para a posteridade as suas tristes vivências: foi um navio negreiro ancorado em
terra (SILVA, S. C., 1995, p. 57, grifo da autora).
Os escritores indígenas no Brasil vêm, por muito tempo, expondo sua
visão de um vasto mundo que, em geral, todos desconhecemos. Isso faz ver que
a necessidade de falar e escrever em seu próprio nome é também um mecanis­
mo de defesa contra “intermediários e intérpretes indesejáveis ou mesmo pouco
atentos”, como observa lokoi (1999, p. 42), acerca do discurso de Marcos Te-
rena. Uma vez que “os índios foram obrigados a defender a sua concepção de
cultura, de identidade e de visão de mundo,” as próprias comunidades indígenas
procuraram investir na formação de seus parentes, mesmo que essa formação
seja realizada “na lógica da culmra branca, como foi o caso de Marcos Terena
[...] Ailton Krenak” e de muitos outros, observa lokoi (1999, p. 42).
Fruto das preocupações de Marcos Terena, o Instituto Indígena Brasi­
leiro de Propriedade Intelectual —INBRAPP® foi criado em maio de 2002.
Participam dessa organização os escritores Darlene Taukane e Daniel Mun-
duruku, entre outros defensores dos direitos linguísticos, literários e humanos
dos povos indígenas. O surgimento do INBRAPI faz crer na possibilidade de
que as ONGs e os missionários estrangeiros deixem de interferir nas socieda­
des indígenas da forma que têm feito até hoje. Por isso mesmo, os pensadores

O Instituto Indígena Brasileiro da Propriedade Intelectual é uma O NG que foi criada em maio de
2002 e dirigida por indígenas de diferentes etnias. Sua proposta principal é a defesa do conhecimento
tradicional e o combate à biopirataria. Sua diretoria está assim organizada: Presidente; Vilmar Guarany
—Advogado; Vice: Darlene Taukane - Mestre em Educação; Secretária; Lúcia Fernanda Kaingang —
Advogada; R. Públicas: Daniel Munduruku - Filósofo. O INBRAPI conta com o apoio de mais de 100
pajés e caciques de diversas etnias. Seu conselho é composto por nomes conhecidos nadonal e interna­
cionalmente como; Ailton Krenak, Marcos e Jorge Terena, Getúlio Kaiowá, entre outros. Sua sede é em
Brasília. Disponível em: <inbrapi@uol.com.br>. Acesso em: 12 dez. 2002.

77
1
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INOlGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

indígenas continuam se perguntando a respeito dos 5 milhões de parentes


desaparecidos, cerca de novecentos povos. Hoje, sáo 350 mil, afirma Terena,
enfatizando o descaso do governo com os povos indígenas:

O governo brasileiro tem uma grande dívida com os povos indí­


genas. Imprescritível e impagável. Como a gente vai ressuscitar os
novecentos povos que desapareceram? Entáo, a gente olha pro siste­
ma de governo e a gente vê que ele cria um ministério pra onça, pro
jacaré, ele cria um ministério para os sem-terra, um ministério pro
esporte. E para os índios? Ele dá uma Funai desse tamanhozinho e
anualmente os recursos da Funai sáo cortados em 60 por cento. A
Funai é o único sistema de governo que trabalha com 180 línguas
indígenas e ela só tem um indigenista, um lingüista. Quem domina
a língua indígena no Brasil sáo as organizações americanas missio­
nárias através de uma instituição chamada Instituto Lingüista de
Verão. [...] - Summer Language Institute. [...] Se você quiser apren­
der a falar xavante, vai lá que tem um americano que vai te ensinar
xavante, se você quiser aprender nhambiquara, vai lá que tem um
alemão que vai te ensinar o nhambiquara. [...o trabalho deles] é
basicamente religioso, tradução da Bíblia.^®

Na década de 1970, uma geração de poetas brasileiros foi rotulada


de marginal por contestar o marasmo ou o mar asmático das academias e
de outras representações do meio literário, digamos, dominante. À margem
desse movimento de vanguarda, a escritora indígena Eliane Potiguara mostrou
também a “cara” da poesia indígena no Brasil. Na época, muitos dos parentes
de sua etnia e de etnias diferentes ignoravam e alguns desconhecem, ainda
hoje, a existência de sua poesia. Contudo, a história de resistência de sua
família e de outros parentes indígenas e índios-descendentes foi a gota
d’água para Eliane Potiguara expor o poema “Identidade indígena”, escrito
em 1975.
É possível dizer que o referido poema inaugurou o movimento li­
terário indígena contemporâneo no Brasil e continua sugerindo um grito

Entrevista de Marcos Terena à revista Caros Amigos. Disponível em: <http;//www,uo[,com.br/carosa-


migos/edicao/ed37/entrevísta,html>. Acesso em; 12 out. 2002.

78
IDENTIDADES E UTOPIAS

indígena em meio aos contrapontos da palavra em 1975; ano da morte do


jornalista Vladimir Herzog e da primeira manifestação pública de contes­
tação depois do AI-5. Partindo desse panorama, era plena ditadura militar,
a poesia de Eliane Potiguara pode e deve ser considerada como a 3^ mar­
gem da chamada poesia marginal e de outros movimentos libertários que
propiciam o surgimento de novos leitores e poetas independentes, ou seja,
“independentes na batalha pela divulgação de seus trabalhos: poemas [...]
democraticamente expostos nas ruas e nas praças, em cordas estendidas,
atraindo leitores, transeuntes, curiosos” (HOLANDA, 1982, p. 8), Hoje,
a situação dos escritores e escritoras indígenas (independentes) continua
muito difícil. E mais ainda: levando em conta também o alto índice de
analfabetismo no Brasil, os escritores leem a si mesmos.
O utro ângulo da situação do escritor indígena reside na crônica “ín ­
dio nietzscheano”, de Daniel M unduruku (1996). Ele fala da intolerância,
com base em uma de suas experiências, durante a sua visita aos parentes
Guarani, ao Sul de São Paulo, onde mora o escritor Olívio Jekupé. Da­
niel refere-se à noite que passou com os Guarani em vigília, “dançando,
cantando, pintando e ouvindo as vozes dos deuses, que se manifestavam
por intermédio do pajé que batizava as crianças e confirmava os adultos”
(M UNDURUKU, 1996, p. 37) e que, no dia seguinte, após uma manhã e
uma tarde tranquilas, a aldeia foi perturbada por uma “santa bagunça” de
um grupo de evangélicos. Como náo foram autorizados pelos Guarani a
entrar na aldeia, os crentes foram convidados a se retirar. O pastor agrediu
com palavras que tornaram os Guarani e o convidado mais arredios ao seu
argumento. O fragmento que segue remete ao diálogo entre o pastor e o
guaranietzscheano Olívio Jekupé:

O diálogo foi mais ou menos assim:


OLÍVIO: Você náo tem o direito de vir até aqui para pregar em
nome de um Deus que já está morto. Aqui nós seguimos um Deus
vivo que nos oferece a vida.
PASTOR: é mentira. Vocês sáo ignorantes. Nós temos a salvação.
Nosso Deus é capaz de dar a salvação para vocês. Por isso estamos
aqui, para pregar a verdadeira porta que deve ser aberta para a
salvação.

79
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

OLÍVTO; Felizmente não precisamos acreditar nisso que você cha­


ma de salvação. Bem se vê que você não entende nada sobre o que
prega. Você precisa ler mais. Precisa fazer filosofia. Há uma multi­
dão de pensadores contrários a tudo isso que você diz aí. Tudo isso
é bobagem, Nietzsche já comentou que esse Deus que você prega
está morto e foram vocês que o mataram. Portanto não venha pregar
coisas velhas pra nós. Vá embora daqui, que é a melhor atitude que
você pode tomar.

Achei muito interessante a coragem do jovem filósofo em enfrentar argu­


mentos religiosos com outros tão racionais. Acredito que Olívio venceu a parada
mais pela ira santa que o assolou na defesa da cultura guarani do que pelas idéias
do velho Nietzsche. De qualquer maneira, o pastor nunca mais voltou à aldeia
Morro da Saudade para importunar a comunidade. Graças, talvez, à força da
palavra do franzino guarani de nome Olívio (MUNDURUKU, 1996, p. 37).
A discriminação e o preconceito que latejam das inquisições urbanas sáo
uma forma de inibir os escritores e escritoras indígenas que vêm conquistando,
aos poucos, o seu lugar no mundo. Parece que o tempo da inquisição não pas­
sou. Mas devemos, ao contrário desse tempo, nos situar, pois:

[as] Inquisições urbanas condenaram os primeiros moradores da


terra brasilis ao fogo. Condenaram sua boa fé. Das terras indígenas
pouco sobrou. E o povo que sofreu (e sobreviveu) com a gripe e a
sífilis se fez forte. Já náo se envaidece com as bugigangas dos bran­
cos. E precisa contar a sua versáo da História do indígena no Brasil.
A Terra Dos Mil Povos, de Kaka Werá Jecupé, da editora Fundação
Peirópolis, faz isso.'*®

Essa referência á visão dos mil povos, especificamente ao segundo livro


de Kaka Werá Jecupé,^’ mostra - apesar de pouco reconhecido o lugar dos

® Cf. Correio Braziliense, 26 maio 1998,


Kaka Werá Jecupé c filho de pais Tapuia, ou Txucarramáe. Nasceu em 1964, próximo à represa Billin-
gs, limite da zona sul de São Paulo. De 1989 a 1992 atuou na Aldeia Morro da Saudade em Sáo Paulo,
apoiando os Guarani na Construção do Cenuo de Cultura Indígena. Em 1996 foi convidado pela
Universidade de Oxford (Inglaterra) para falar sobre a religiosidade indígena, e em 1997, a convite da
Universidade de Stanford (Estados Unidos), discursou religiosidade ancestral indígena, em um encon-

80
IDENTIDADES E UTOPIAS

escritores indígenas no mercado editorial dominante - uma das faces da evo­


lução do movimento literário indígena no Brasil. Essa evolução revela-se em
muitos aspectos: na propriedade intelectual de autores indígenas que atuam,
também, como articuladores de fóruns sobre a questão de gênero e direitos
indígenas e de eventos literários, conforme observamos em Eliane Potiguara;
na editoria dos próprios livros e/ou dos livros que os parentes da mesma etnia
e/ou de etnias diferentes escrevem, conforme observamos no projeto “Palavra
de índio”, um selo editorial do escritor Daniel Munduruku.
Não é à toa que os(as) escritores (as) indígenas apareçam no mercado
editorial, em produções teatrais, em documentários mostrados em vídeo, em
fundações culturais e organizações não governamentais representativas, com
0 objetivo de consolidar o resgate e a difusão da sabedoria atual e milenar dos
povos indígenas no Brasil e, por extensão, difundir o saber ancestral e con­
temporâneo dos parentes indígenas na América. Desse modo, o escritor Kaka
Werá Jecupé fundou, em 1992, com Roman Ketchua, Daniel Munduruku
e outros parentes uma comissão intertribal para lutar pela cidadania cultural
indígena.
Em 1994, W. Jecupé criou a Nova Tribo, sem perder de vista os princí­
pios difundidos pela comissão intertribal. Nesse mesmo ano, publicou o seu
primeiro livro, Todas as vezes que dissemos adeus, e realizou uma peregrinação
ao norte do país, ampliando a sua busca, à luz da sabedoria dos parentes in­
dígenas amazônicos e dos cerrados. Em outras palavras, a situação do escritor
indígena no Brasil pode ser lida dentro de uma perspectiva que nos remete aos
mais de 500 anos de desencontros, pois “a semente do distanciamento entre
brancos e índios está na estrutura das sociedades: uma cultua o ter e a outra
o ser”, diz o escritor Kaka Jecupé.^ Reiterando essas observações, permitimo-
nos situar em alguns raros recortes da mídia para lembrar que o livro indígena
não configura uma ameaça às tradições:

tro inter-reÜgioso que reuniu duzentos lideres religiosos de todo o mundo. Por meio do Instituto Nova
Tribo, em parceria com a Fundação Peirópolis, coordena uma ação de educação em valores humanos da
sabedoria indígena para os povos urbanos.
Cf. IstoÊ, 21 jul, 1999.

81
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDIGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

Apesar de nunca ter vencido por completo o medo do genocídio,


Kaka conseguiu amenizá-lo quando compreendeu o porquê de tan­
tos séculos de perseguição. As respostas estavam menos nos ensaios
acadêmicos que se habituara a devorar e mais, muito mais, nos ensi­
namentos de pajés que recolheu em andanças pelo país.'*^

Kaka Werá jecupé é um caso raríssimo de escritor no Brasil. índio


tapuia ou txucarramáe (guerreiro sem arma), como ele prefere, fi­
lho legítimo dos ancestrais habitantes das terras “descobertas” pelos
portugueses, resolveu romper o silêncio de cinco séculos e escrever
a história vista pela ótica dos que habitavam o Novo Mundo há mi­
lhares de anos. O resultado é o belíssimo livro poético-mitológico A
Terra dos Mil Povos, publicado pela editora Peirópolis.”*^

Educado em escolas de “branco”, o Txukarramáe Kaka Werá Jecupé


registrou as memórias de seus antepassados no livro A Terra dos Mil
povos —História Indígena do Brasil Contada por um Índio. [...] Os
relatos foram parar no teatro, num curioso e colorido espetáculo. Em
cartaz no Centro Cultural, Oca utiliza os recursos da animaçáo para
mostrar à garotada a origem do universo segundo lendas inchgenas.'*^

As teorias que procuramos interpretar ao longo deste trabalho remetem


a situações híbridas vivenciadas pelos autores e, ao mesmo tempo, permitem
ilustrar um ângulo da questão identitária relacionada ao deslocamento e ao
lugar, por exemplo. Constatamos no paratexto das obras indígenas que alguns
autores se autodenominam índto-descendentes; outros se reconhecem índio
-brasileiro, guarani-paraguaio, mestiço, nativo(a) (filho(a) da terra).
Apoiando-nos em Bernd (1988) e em Canclini (1998), foi possível
observar que as diferentes literaturas indígenas citadas aqui trafegam na con­
tramão, porque são obras que surgem nos lugares explorados pela colonização.
Isto significa “novas possibilidades de alianças que reconhecem suas especifici-
dades e diferenças intrínsecas” (WALTER, 1999a, p. 264). Assim nos parecem

Cf. Folha de S. Paulo, 03 abr. 1998.


C f nota n. 21.
45 I
' C f Veja, 21 jui. 1999.

82
IDENTIDADES E UTOPIAS

alguns dos lugares da literatura indígena contemporânea no Brasil, uma lite­


ratura marcada pela inevitável hifenização ou transfiguração que une e separa,
ao mesmo tempo, a literatura indígena de língua portuguesa:
• Brígido Ibanhes é de origem Guarani. Nasceu no Paraguai e vive
numa cidade grande, em Goiás, e se autodenomina brasiguaio.
• Daniel M unduruku nasceu no Pará. Como ele próprio afirma, nas­
ceu índio e tem orgulho de ser índio, mas vive em São Paulo.
• Darlene Taukane pertence ao povo Bkurâ-Bakairi (MT). Estudou
fora da sua aldeia, desde a adolescência. Vive atualmente no perí­
metro urbano de Cuiabá (MT). Embora não tenha voltado à aldeia,
Taukane nunca esteve separada do seu povo.
• Eliane Potiguara sofreu a migração. Com o desaparecimento do avó,
por questões de terra, a família deslocou-se da Paraíba para o Rio de
Janeiro, onde ela vive até hoje. Embora não tenha nascido na aldeia,
Eliane nunca deixou de ser Potiguara.
• Kaka Werá Jecupé, filho de Tapuias, nasceu em São Paulo, onde foi
iniciado (batizado) pelos Guarani e se autodenomina Txukarramâe,
em alusão aos guerreiros sem arma da família Kaiapó, no Alto Xingu.
• Olívio Jekupé, índio descendente, mora na Aldeia Krukutu, ao sul
de São Paulo. Pelo sangue baiano do lado paterno e com o sangue
materno de origem Guarani, ele se considera mestiço.
• Renê Kitháulu nasceu no Município de Comodoro (MT). É Nambi-
kwara e vive entre os Guarani, em São Paulo.
• Yaguarê Yamã nasceu na fronteira - entre os estados do Amazonas
e do Pará. Fez universidade em São Paulo. Continua Saterê Mawé.
No contexto contemporâneo, as manifestações literárias dos povos indíge­
nas na América apresentam semelhanças temáticas, principalmente, na questão
relativa aos mais de 500 anos de colonização e outros problemas relacionados
aos chamados temas transversais. No tratamento dado ao tema, pouco se tem
falado da situação dos escritores e escritoras indígenas. Sua situação não é -
como se imagina - um assunto menos importante que outras questões indígenas,
se considerarmos que os autores e autoras (de diferentes etnias) são formadores de
opinião; guardadores dos costumes, do conhecimento ancestral; atuantes, entre
outros, na luta pela demarcação de territórios, na luta pela educação diferenciada.

83
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

pelo direito de expor sua arte, pelo direito à saúde, pelo direito de escrever o
outro lado da história e outras questões pertinentes ao universo indígena.
Respeitando as diferenças, pode-se dizer que as manifestações literárias
indígenas são reveladoras de uma convergência temática, sobretudo no que
diz respeito à Mãe Terra e, com frequência, vêm abordando a relação autor-
texto-leitor e, ao mesmo tempo, denunciando a exclusão e as várias faces da
globalização, do (neo) colonialismo e do analfabetismo'*'* na América.
Não menos preocupante é a situação do escritor no Chile, onde poetas
indígenas não escaparam também desse mal que atinge os chamados “poe­
tas marginais” da sociedade letrada: a triste realidade de lerem a si mesmos,
como observa o poeta mapuche Jaime Huenún (2002), em sua entrevista ao
jornalista José Osório, do jornal El Siglo. Huenún observa, ainda, que são
abundantes os eventos e concursos literários na América Latina, no Chile,
principalmente; mesmo assim, o público leitor de obras indígenas ainda é
uma minoria. Segundo Huenún, essa situação revela:

[que] Los poetas siguen leyéndose a sí mismos porque, además de


otras razones, existen más de tres millones de personas que no han
completado la ensenanza básica; más de 64.000 mil ninos y jóvenes
desertan dei sistema educacional cada ano y un altísimo porcentaje
de chilenos es incapaz de comprender y redactar textos sencillos.
El panorama de la creación y la producdón literaria, tal vez sea
mejor en términos cuantitativos respecto dei que existia en nuestra
“temporada en el infierno” (más libros editados al ano, más gêneros
cultivados), pero en términos socialmente cualitativos decrece cada
dia más, porque no hay interlocutores para esos libros. Creo que
la calidad de un texto no sólo tiene que ver con sus valores literá­
rios intrínsecos sino también con Ia capacidad de interlocución y
diálogo crítico que pueda generar a nivel social. Son muchos loí
factores que influyen en este orden de cosas, sobre todo aquellos
que se dejan caer desde la ‘alta política’ y desde el poder econômico
imperante (HUENÚN, 2002, p. 172).

No Brasil, a reduçáo na taxa de analfabetismo, revelada pelo Censo 2000, mostra —por outro lado -
que 13,63% da população com mais de 15 anos é analfabeta; ultrapassando a taxa dos países vizinhos
Na Argentina, a taxa de analfabetismo é de 3%; no Chile, 4%; na Venezuela, 7%. Na Colômbia, c
analfabetismo atinge 8% da população com mais de 15 anos de idade.

84
Ff
IDENTIDADES EUTOPIAS

Ao estabelecer uma comparação entre os poetas da geração 80 e os da


geração 90, no Chile, Huenún observa que a poesia da década de 1980 man­
tém uma estreita relação com a história e a política; enquanto a década de
1990 mostra uma geração mais conhecedora da poesia. O foco de atenção é o
írazer poético, o trabalho cora a linguagem, diz Huenún; acrescentando que o
panorama literário no seu país tem se democratizado, considerando que “cada
poeta tíene una voz diferente y tiene que aportar su visión, su sensibilidad,
su escritura. Al mismo tiempo, se ha producido una elitización de ia poesia,
sobre todo en el circuito de poetas universitários”.^^

2.3.1 Movimento literário indígena


A linha de caracterização observada por Huenún pode ser associada
às idéias estéticas da literatura indígena contemporânea no Brasil, particu­
larmente na década de 1990 e no período 2000/2002 com a produção de
textos individuais, como podemos observar nas obras relacionadas ao corpus
pesquisado.
A produção de texto coletivo de autoria indígena que caracteriza o
movimento literário analisado por Almeida (1999) continua nos anos subse­
quentes, com edições e reedições de obras resultantes de projetos que propõem
resgatar narrativas míticas e, entre outros aspectos, problematizar a questão
dos 500 anos. São exemplos: o exercício de escrita dos autores indígenas do
Acre orientado por Antonieta Lindemberg Monte e a produção de textos in-
terculturais que se verifica no cruzamento da poesia Xacriabá com a literatura
de cordel (em Minas Gerais), sob a coordenação de Almeida.
No Brasil, o trabalho com a literatura indígena está apenas (re)come-
çando. O resultado mostra-se proveitoso numa série de publicações coletivas,
em geral, subsidiadas pelo MEC e com a participação da FUNAI, e as publi­
cações do CIM I e do Centro de Cultura Luiz Freire entre outras organizações
de apoio aos povos indígenas.

Cf. HUENÚN, Jaime, Entrevista ao jornal E l Sigio, do Centro de Documentacion Mapuche, n.


172, 2002: “cada poeta tem uma voz diferente, uma voz própria, [cada poeta] contribui com sua visão
de mundo, sua sensibilidade, seu fazer poético. Ao mesmo tempo, se tem produzido uma elicização da
poesia, principaimente no circuito universitário.”

85
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDfGENA CONTEMPOEÍÂNEA NO BRASIL

O conceito de propriedade intelectual indígena implica um conjunto


de diferentes manifestações de diferentes etnias. No campo literário, as mani­
festações apresentam uma dinâmica que se instala ora no fazer coletivo, ora no
fazer individual dos textos. Essa dinâmica alude à passagem entre a oralidade e
a escrita que alguns estudiosos preferem classificar de orãture^ isto é, oratura —
um termo adaptado, em 1991, à língua portuguesa. Antonio Houaiss chama
de oratura o “conjunto de saberes, fazeres e crenças retidos oral e mneumo-
nicamente pelas sociedades primitivas, como se de literatura se tratasse, mas
antes do advento das letras e suas decorrências na história do homem. ETIM
ora{lidadè) + {literd)tura, à feição do fr. orature” (HOUAISS, 2001, p. 2075,
grifo do autor).
Ao identificar em sua tese a existência do Movimento Polítíco-Literário
Indígena, Almeida (1999) traça algumas características a partir dos textos que
foram elaborados à luz das propostas do RCNEI e que foram publicados pelo
MEC, na década de 1990. As origens desse movimento sinalizam o final dos
anos 1970, quando a Comissão Pró-Indio do Acre (CPI/AC) criou a primeira
Escola de Formação de Professores Indígenas com o projeto “Uma experiência
de autoria”. Sob a coordenação de Joaquim Mana Kaxinawá,'*® esse projeto
ganhou formato de livro com Shenipabu Miyui\ história dos antigos, junto à
Organização dos Professores Indígenas do Acre - OPIAC (2000). A luz dessa
experiência, Almeida acompanhou a produção coletiva de textos literários dos
Krenak, Maxakali, Pataxó, Xakriabá, em Minas Gerais.
A prática da literatura entre os povos indígenas no Acre e em Minas
Gerais propiciou o surgimento de uma geração de escritores e escritoras in­
dígenas em outros estados brasileiros, mas só os livros de autoria indígena
“subsidiados por órgãos oficiais [...] só em casos excepcionais publicados por
editoras privadas, os livros de autoria indígena fazem parte de um movimento
político/literário” (ALMEIDA, 1999, p- 14). O QUADRO 3 é uma síntese

No artigo “Primeiros passos para uma gramática pedagógica da Síngua Kaxinwá” {Boletim Axeuvyru),
a linguista Adair Palácio registra a permanência de Joaquim Mana na UFPE (de setembro a dezembro
de 1991), sob os auspícios da CPI/AC, da Pró-Reiroria Comimiráiia da UFPE. Conforme Palácio, o
kaxinwá Mana teve a oportunidade de conviver com estudantes, frequentar o Núcleo de Estudos Indi-
genistas do Departamento de Letras da UFPE, a fim de aprofundar estudos a respeito de sua língua e
vivendar uma Universidade.

86
IDENTIDADES E UTOPIAS

da tabela em que Almeida situa as etnias que publicaram livros, até 1997.
Antes da leitura do referido quadro, convém observar o “conceito mais prag­
mático de literatura”, que ela descreve;

[a] literatura indígena no Brasil configura um movimento literário,


na medida em que pode ser observado nos seus aspectos coerentes c
sistemáticos, como um grande texto que se dá a ler. Seus escritores
representam uma população de cerca de 350.000 indivíduos [...]
um movimento [...] intencionalmente produzido pelas lideranças
intelectuais, e professores indígenas e por intelectuais e professores
“brancos” que têm claramente se posicionado a favor da emancipa­
ção dos povos autóctones. Sua pertinência para os estudos literários
consiste sobretudo em que seu produto principal, “o livro com cara
de índio” é o resultado de um processo de edição. Esta constatação
faz admitir a autoria coletiva e assumir um conceito mais pragmáti­
co de literatura (ALMEIDA, 1999, p. 13-17).

QUADRO 3. Povos indígenas


E sta d o P o v o s in d íg e n a s

A rara, A s h e n in k a , K a t u t in a d o A cre , P o y a n a w a , Y a m in a w á , Y a w a n a v á ,
A c re
K a tu k in a , K a x in a w á (Peru)

Am apá W a iâ p i

Am azonas S a te ré -M a w é , T ik u n á T orá, M u n d u r u k u , Y a n o m a m i

B a h ia Kiriri, P a ta x ó h á h ã h ã e , T u xá

B a ka iri, B o ro ro , K a la p a lo , K a m a y u r á , P a re s í,T a p ir a p é ,X a v a n te ,
M a to G ro sso
K a d iw é u , K a ya b í, K a y a p ó , C in ta -L a rg a , N a m b ik w á r a

M a to G ro sso S u l K a d iw é u

M in a s G e ra is K re n a k , M a x a k a li, X a k ria b á , P a ta x ó

P ará M u n d u ru ku

P a ra n á G u a r a n i- N h a n d e v a , G u a r a n i- M 'B iá , K a in g á n g

R io G ra n d e d o S u l K a in g á n g

R o n d ô n ia K a r ip ú n a , T u p a rí, C in ta -L a rg a , N a m b ik w á r a

R o ra im a Yanom am i

S a n t a C a ta rin a X o k ie n g , G u a r a n i- M 'B iá , K a in g á n g

S ã o P a u lo G u a r a n i- M 'B iá ,

T o c a n t in s K ra h ó

Fonte: ALMEIDA, 1999, p. 15-16.

87
CONTRAPONTOS DA LITERATURA IN DÍG ENA CONTEM PORÂNEA NO BRAS! L

A distinção entre livro subsidiado ou não por órgãos oficiais nos pare­
ce uma ideia de rejeição impregnada no rótulo “o livro com cara de índio”
que observamos em Almeida. Isto faz ver que o pensamento indígena e o
pensamento indígena-descendente publicados fora do cânone não atendem
aos critérios institucionais. Se o purismo for o critério para designar a excep-
cionalidade do “livro com cara de índio”, esse mesmo livro pode não abrir
as páginas para os seus descendentes. N a verdade, são os preconceitos que
desautorizam os livros de autoria indígena-descendente de serem designados,
também, de excepcionais. Até que ponto os livros indígenas subsidiados por
instituições governamentais promovem o reconhecimento dos autores indí­
genas e autores indígena-descendentes? Nosso questionamento parte de uma
constatação: com base na tabela original apresentada por Almeida (1999, p.
15-16), observamos que os Potiguara e outros povos do Nordeste não apare­
cem na tabela das etnias que publicaram livros no período que foi estudado
pela autora. Observamos, ainda, que na bibliografia do referido estudo consta
apenas uma breve referência à obra de M unduruku (1996) e de Potiguara
(1994).
Considerando que a prática da literatura (de autoria individual) é uma
ponta do iceberg em movimento, no contexto da grande história das letras
indígenas, o nosso questionamento é uma forma de reiterar o pensamento do
escritor Ailton Krenak, ao enfatizar que todos estão “sendo intimados a criar
novas respostas para um grande número de perguntas que não são tão novas
assim” (KRENAK ALMEIDA, 1999, p. 14). Tais perguntas são neces­
sárias à apreensão do conceito de escritura coletiva que, em Almeida, implica
uma “expressão do que é comum, ou de um consenso em torno do quem
somos” (1999, p. 18). Essa noção do coletivo nos aproxima do dialogismo em
Bakhtin e, dessa maneira, nos permite também observar que o texto indígena
de autoria individual implica um tecido de vozes, pois “todo texto verbal [...]
apresenta como dimensão constitutiva múltiplas relações dialógicas com ou­
tros textos”, diz Aguiar e Silva (1988, p. 624).
No período da pesquisa de Almeida, os povos indígenas de outras regiões
(em Pernambuco, por exemplo) publicaram livros, embora Almeida (1999, p. 18)
afirme que “a supremacia da produção intelectual indígena brasileira está com a
região Norte (Amazonas, Tocantins, Pará, Roraima, Rondônia, Amapá, Acre)”.

88
IDENTIDADES E UTOPIAS

Considerando o trabalho pioneiro de Nietta Monte, iniciado em meados da


década de 1970, com os povos indígenas dessas regiões, a noção de supremacia
fãz sentido: um exemplo vem à í Antologia da floresta, que é fruto do diálogo
de diferentes etnias nos Cursos de Formação de Professores Indígenas do Acre
( 1997), sob a coordenação de Nietta Monte. Considerada o primeiro livro de
literatura criado e pensado por autores indígenas, essa antologia divide-se em
três partes: a primeira é dedicada aos textos em prosa de autoria indígena. A
segunda (em verso) e a terceira (em prosa) reúnem uma seleção de textos de
Mário de Andrade, Rubem Braga, Manoel de Barros, José de Alencar e outros
nomes da literatura brasileira,
A produção do material didático de apoio às escolas indígenas que foi
editada pelo MEC na década de 1990 mostra uma progressão qualitativa dos
textos que resultaram de atividades didáticas na área de Literatura nos cursos
de formação de professores indígenas junto à Secretaria de Educação Funda­
mental. Ainda é pequeno o percentual de Uvros de literatura indígena que
foram editados pelo MEC, considerando que nesse período um grupo de
autores'*^ indígenas enfrentou o mercado editorial, por conta própria. Nes­
se contexto, há uma semelhança entre escritores indígenas e não indígenas
(considerados marginais) que bancam o próprio livro. Dessa forma, o escritor
indígena é levado pelas circunstâncias a produzir uma literatura alternativa,
independente ou, para sermos mais precisos, uma literatura de sobrevivência,
considerando esta uma das características do movimento literário indígena
nos anos 1990.
O catálogo de apoio ao livro didático do RCNEI não informa aos usuá­
rios acerca de outros autores indígenas (ainda que independentes), atendo-se,
apenas, aos onze livros que foram editados na década de 1990. Entre estes
constam apenas dois livros classificados como Literatura: O tempo passa e a
história fica, dos Xacriabá (1997), e Txopai e Itôhã, dos Pataxó (1997),
incluídos por Almeida no contexto do movimento político-iiterário indíge­
na. O utras referências à literatura indígena aparecem na resenha do livro

Cf. as obras de Marcos Terena, Kaka Werá Jecupé, Daniel Munduruku, Olívio Jecupé, Renè Nambi-
kwara e Yaguarê Yamã, entre outros.

89
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

Aprendendo português nas escolas da floresta, da CPI/AC (1997), no qual se


menciona que as “57 publicações [de diferentes áreas representam] uma nova
literatura indígena em sua fase atual de aquisição e uso da escrita com a con­
comitante valorização dos mecanismos tradicionais de oralidade” (RCNEI,
1998, p. 32). Com exceção dos livros de literatura entre os 57 que foram
mencionados na resenha, o estudo de geografia dos Ticuna com O livro das
árvores (1997) nos aproxima da surpresa estilística dos hai-kais. Com a fauna e
a flora da região ilustradas pelos próprios autores, os Ticuna foram premiados
pela Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil (FNLIJ) como autores do
melhor livro informativo e melhor projeto editorial, em 1997.
No Brasil, o saldo positivo dos projetos políticos e pedagógicos pen­
sados e gestados junto às comunidades indígenas e aos grupos de apoio
configura uma resposta à política de assimilação; uma resposta para garantir
os direitos indígenas assegurados no artigo 232, da Constituição brasileira de
1988, propiciando o surgimento dos cursos de formação de professores e o
ingresso de estudantes indígenas, em busca de um espaço diferenciado, nas
universidades.^®

2.3.2 Desafios da escola indígena


A construção de um referencial curricular diferenciado deve definir os
compassos de uma escola. E nessa perspectiva que a edição 49 do Caderno
Cedes (2000) atualiza as questões relacionadas ao RCNEI, ao focalizar a
interculturalidade entre os aspectos-chaves discutidos pelos educadores
Bartomeu Meliá, Wilmar da Rocha D ’AngeIis, Gilvan Müller de Oliveira,
Héctor Munoz Cruz, Rosa Helena Dias da Silva e Paulo Humberto Porto
Borges, entre outros, na edição organizada e apresentada por Angel Corbera
Mori.
Uma leitura das diferenças. Eis a questão ou uma das questões per­
tinentes à autonomia no ensino/aprendizagem nas escolas indígenas e que
exige “dos próprios índios (e também de nós, pesquisadores, assessores, alia­
dos nesse processo de construção e garantia de sistemas indígenas de educação

' Cf. anexo com o ementário de literatura aplicado no 3° Grau Indígena da UNEMAT.

90
IDENTIDADES E UTOPIAS

escolar) ainda muita reflexão”, afirma Rosa Helena Dias da Silva (2000, p.
62'75) a respeito do movimento dos professores indígenas do Amazonas, de
Roraima e do Acre. Nessa perspectiva, o educador D ’Angelis discute no artigo
“Contra a ditadura da escola” o problema do estereótipo e a falta de clareza
política no tratamento da temática indígena. Ele atualiza a discussão do cur­
rículo escolar, alertando para a necessidade de combater o “império do senso
comum”, considerando que não há um padrão de escolas indígenas. Segundo
D ’Angelis, existe uma diferenciação;

bastante grande [...] que em sua maioria, as escolas indígenas estão


em grande descompasso com as necessidades das comunidades em
que se encontram e que [...] substituir uma escola ruim com um
vasto currículo por uma boa escola que ensine só e simplesmente a
ler (e náo silabar), a escrever e bem contar é a melhor forma de con­
tribuir efetivamente para a autonomia das comunidades indígenas
(D’ANGELIS, 2000, p. 22).

A esse tipo de descompasso, o referido educador chama de cruza­


da, de epidemia educacional, um processo no qual se procura “enfiar toda a
cultura para dentro da escola”. Por muito que pareça estranho, esse descom­
passo decorre, em parte, da massiva presença de missionários, garimpeiros,
indigenistas, antropólogos, historiadores, professores, especialistas, O NGs e
multinacionais, entre outros, que têm criado obstáculos à autonomia dos po­
vos indígenas; particularmente os garimpeiros, dos quais os índios Yanomami
foram e continuam sendo as grandes vítimas. Prova disso são as hidrelétricas
e hidrovias que, em nome do progresso, estão afetando diferentes etnias de
norte a sul do país. Como se não bastasse, “as igrejas fundamentalistas que
atuam nas áreas indígenas vêm convencendo esses povos a abandonar suas tra­
dições e seus rituais” (PREZIA; HOORNAERT, 2000, p. 240). Em números,
a presença massiva significa, aproximadamente, um assessor para cada 70 ou
80 índios, do total aproximado de 250 mil índios, em 1995 (D ’ANGELIS,
2000, p. 23-25).
N a América totalizam 43.139.160 indígenas; cerca de 378.000 indí­
genas sobrevivem no Brasil em luta contínua para sustentar o mundo com
seus ritos, seus mitos, sua poesia, seus cantos. As evidências comprovam o

91
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CO^rrEVPORÂNEA NO BRASIL

conservadorismo dos programas escolares, pois enquanto a literatura brasilei­


ra e a portuguesa sáo trabalhadas nas escolas de educação indígena, a tradição
oral e os livros de autoria indígena percorrem, salvo algumas exceçóes, os
corredores da exclusão nas escolas brasileiras. Embora pareça redundante per­
guntar sobre o lugar do índio na história e na literatura brasileiras, o que se
segue é frequente nas escolas dominantes e são muitos os que propagam o
estereótipo. Canclini (1998, p. 165) cita um exemplo: “quando a ordem é
transgredida, os professores costumam dizer que na escola ‘não devemos nos
comportar como selvagens’; para passar do pátio do recreio para a sala de aula
alega-se que acabou a hora do índio”. Por essas e outras, os projetos pedagó­
gicos dominantes devem ser repensados, de maneira que haja, também, mais
espaço para leitura e produção de textos. Nesse sentido, o exercício de cidada­
nia depende também do trabalho continuado da escrita e da leitura.
Apesar dos (des)compassos entre o RCN e o RCNEI, “a produção de
textos para as escolas indígenas concretiza-se com a publicação de livros de
qualidade, que resultam diteta ou indiretamente dos cursos de formação de
professores indígenas” (RCNEI, 1998, p. 7). Infelizmente, nas escolas domi­
nantes prefere-se o caminho mais curto e, por isso mesmo, mais nocivo. O
famigerado livro do professor com respostas que constituem um desrespeito
não à “autoridade”, mas à alteridade do aluno e do professor. Desse ponto de
vista e para tornar a questão mais esclarecedora, convém sublinhar o pensa­
mento de Meliá (2000, p. 16): “«io há um problema de educação indígena, há
sim uma solução indígena ao problema da educação”.
Retomando essa última consideração, entendemos que o trabalho com
a literatura na área da educação indígena sugere uma tipologia de textos que
comportam, em princípio, uma série de produção de textos culturais e textos
literários de perfil mais “indianizado” que “indigenizado”. Em geral, híbridos
porque empreendem, entre outras tarefas, a de historicizar na linguagem de
hoje os saberes ancestrais. Esse recorte do híbrido na educação e na literatura
indígena não desqualifica o trabalho de educadores, nem a vocação enuncia-
tiva dos escritores nativos (filhos e filhas da Terra) que a representam; pois “a
História pode admitir mais de uma interpretação, permanecendo aberta a
outras possíveis leituras”, diz Bernd (1988, p. 1.5) na direção do pensamento
de Walter Benjamin (1993).

92
IDENTIDADES E UTOPIAS

A possível leitura de que fala Bernd nos remete ao livro de Olívio Jeku-
pé (2000), O Saci verdadeiro, no qual a questão do híbrido aparece associada
a dois personagens que carregam nomes semelhantes e a imagem do outro é
problematizada na escola, mas do ponto de vista de um garoto indígena: o
personagem Karaí. Situando a biblioteca da escola náo indígena como um
entrelugar no espaço da narrativa, o escritor Jekupé questiona a relação da
escola dominante com as comunidades indígenas. Essa situação mostra que a
ped^ogia da diferença (Meliá) implica o reconhecimento dos saberes negados
ao longo da crucial história da colonização, ressaltando que “a ação pedagó­
gica para a alteridade não é uma descoberta feita pela sociedade ocidental e
nacional para oferecer aos povos indígenas, muito pelo contrário: é o que os
povos indígenas podem ainda oferecer à sociedade nacional” (MELIÁ, 2000,
p. 16). Dessa perspectiva, D ’Angelis ressalta:

os desafios de criar escolas indígenas tem produzido experiências


importantíssimas que, aos poucos, vão permitindo um certo acú­
mulo de conhecimento nessa área bastante nova, mas em nenhum
caso pode-se afirmar com segurança que já se construiu uma “escola
indígena”. O que temos conseguido são escolas mais, ou menos, in-
dianizadas (por vezes, mais indigenizadas do que indianizadas). Na
esmagadora maioria dos casos, são tentativas de “tradução” da escola
para o contexto indígena (D’ANGELIS, 2000, p. 22).

O estereótipo implica um posicionamento discriminatório que se apoia


no que Homi Bhabha (1998) chama de repúdio de diferenças-, quer sejam dife­
renças raciais, históricas, culturais ou literárias. As perspectivas pedagógicas e
literárias que problematizam a alteridade, a indianidade e o hibridismo, entre
outros aspectos relacionados à questão dos 300 anos, constituem exemplos de
uma leitura das diferenças para uma melhor compreensão dessa utopia indi-
vidual/coletiva (mito, auto-história, realidade em prosa e verso) que é a atual
literatura indígena no Brasil.

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