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7.

Críticas

Ao iniciarmos o estudo de Descartes, vimos que o seu objetivo era formular uma teoria do
conhecimento que só aceitasse como tal as crenças que fossem indubitáveis. Se Descartes,
como pretende, tiver sido bem sucedido, ele provou que as proposições fundamentais da
metafísica — o cogito, Deus e o mundo — são verdades indubitáveis, e está agora em
condições de deduzir delas os princípios fundamentais da sua física mecanicista.
Mas terá Descartes sido bem sucedido? Desde o início, os seus críticos chamaram a
atenção para dificuldades importantes no seu pensamento. A mais famosa é, sem dúvida, o
chamado Círculo Cartesiano. As outras objeções são de David Hume.

7.1 O Círculo Cartesiano

Esta objeção foi formulada pela primeira vez por Antoine Arnauld (1612–1694), um teólogo e
filósofo francês, contemporâneo de Descartes, nas objeções que escreveu às Meditações
sobre a Filosofia Primeira:

Resta-me apenas uma dificuldade, que é a de saber como o autor se pode defender de cometer um círculo,
quando diz que estamos certos de que as coisas que concebemos claramente e distintamente são verdadeiras
apenas porque Deus é ou existe.
Porque não podemos estar certos de que Deus existe a não ser porque nós concebemos isso muito claramente e
muito distintamente; portanto, antes de estarmos certos da existência de Deus, devemos estar certos de que as
coisas que concebemos claramente e distintamente são todas verdadeiras. (Antoine Arnauld, “Quatrièmes
objections” in René Descartes, Descartes: Oeuvres et lettres, Paris: Gallimard, 1992, p. 435 (trad. Álvaro Nunes).)

A objeção de Arnauld pode ser expressa em poucas palavras: Descartes afirma que Deus é a
garantia da verdade do que conhecemos com clareza e distinção, mas ao mesmo tempo usa a
clareza e distinção para provar a existência de Deus (uma vez que as premissas da sua prova
da existência de Deus são por ele consideradas claras e distintas). Descartes, deste modo,
raciocina em círculo e, portanto, comete uma falácia da petição de princípio.
Se esta objeção for correta, como muitos pensam, o seu efeito para a filosofia de Descartes
é devastador. Ao contrário do que afirma, Descartes não provou a existência de Deus nem a
verdade do que percebemos clara e distintamente e, portanto, não tem nenhum fundamento
absolutamente certo para o conhecimento. O seu projeto cai pela base.
7.2 A dúvida metódica é impossível

Como vimos, o projeto filosófico de Descartes começa pela dúvida. No entanto, para que a
dúvida seja eficaz, o seu alcance deve ser universal e estender-se tanto às nossas crenças
como às nossas faculdades racionais.15
Hume apresenta duas objeções a este projeto. Em primeiro lugar, diz ele, este ceticismo
extremo é impossível. Agir de acordo com os requisitos da dúvida metódica está para além
daquilo que os seres humanos são capazes. A dúvida metódica é, portanto, pura e
simplesmente impraticável. Em segundo lugar, mesmo que a dúvida fosse praticável, não
seria possível ir para além dela sem usar as faculdades racionais que a dúvida põe em
questão. Isto é, se a dúvida fosse praticável, seria inultrapassável, uma vez que qualquer
tentativa de a superar implicaria o uso das próprias faculdades a que a dúvida se aplica.
Hume conclui daqui que o projeto de Descartes não é de todo exequível.

7.3 Não temos provas da existência do eu

A crença na existência do cogito ou «eu penso» é fundamental ao projeto de Descartes. É


pela análise do eu, enquanto puro pensamento, que Descartes prova a existência de Deus e
recupera como verdades das quais está absolutamente certo — e não como meras crenças —
tudo o que a dúvida metódica pôs em questão. Ele pensa ter provado sem margem para
dúvidas, como condição de possibilidade da própria dúvida, que o eu existe. Hume está
também aqui em completo desacordo com Descartes. Hume pensa que não temos, nem
podemos ter, nenhuma ideia de eu. Segundo ele, todas as nossas ideias têm origem em
impressões. Contudo, não temos nenhuma impressão que possa estar na origem da ideia de
eu. Tudo o que encontramos quando olhamos para nós próprios é uma sucessão de perceções
particulares, de calor, de frio, de prazer e dor e nunca uma perceção do eu. Para Hume,
portanto, o eu, tal como o entendemos, não existe. De facto, ele pensa que, de acordo com a
experiência, tudo o que podemos dizer é que a mente, ou eu, é uma espécie de feixe ou
coleção de perceções. Se Hume tiver razão, o cogito é apenas uma ficção e, portanto, não
pode ter o papel absolutamente essencial que Descartes lhe atribui na sua filosofia.

7.4 Não é possível provar a existência do mundo

O último passo da filosofia de Descartes consistiu em provar a existência do mundo exterior


e ele julga tê-lo feito ao argumentar que as ideias cuja causa atribuímos a objetos físicos têm,
de facto, essa causa. No entanto, Hume nega que seja possível provar a existência do mundo
exterior. Ele aceita, como Descartes, a distinção entre a realidade e as nossas perceções, isto
é, entre o objeto físico e a sua representação mental, mas defende que só temos experiência
direta das representações na nossa mente, não dos objetos físicos, suas supostas causas, e,
que, portanto, não é possível ter experiência da relação causal entre as nossas representações
mentais e os objetos que supostamente elas copiam e representam. Deste modo, não temos
qualquer razão para afirmar que os objetos físicos são a causa das nossas perceções e,
portanto, que existem objetos físicos. Mesmo que admitamos a possibilidade da dúvida
metódica e a existência do cogito, se não for possível provar a existência do mundo físico, a
filosofia e a ciência de Descartes estão condenadas ao fracasso.
Se aceitarmos estas críticas, o projeto de Descartes está em sérias dificuldades. Um dos
interesses da filosofia de Descartes está no facto de constituir uma tentativa de construir
uma teoria do conhecimento com base no pressuposto de que uma crença tem de poder ser
justificada de forma indubitável para ser conhecimento. O seu fracasso é também o fracasso
desta conceção de conhecimento. Mas, não sendo possível ter conhecimento, não será
possível termos crenças racionalmente justificadas, isto é, crenças verdadeiras racionalmente
justificadas, embora não de forma indubitável? Os filósofos empiristas britânicos tendem a
pensar que sim. John Locke (1632–1704), por exemplo, restringe aquilo que podemos
conhecer a número muito limitado de crenças — a nossa existência, a existência de Deus e
alguns princípios fundamentais da ética, mas pensa que é possível com base na experiência
justificar as nossas crenças de forma provável. Terá Locke razão?

Álvaro Nunes

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