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A NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO DA MORAL — ANÁLISE COMPARATIVA

DE DUAS PERSPETIVAS FILOSÓFICAS

INTRODUÇÃO

§ 1 – A necessidade de fundamentação da moral

Os seres humanos ao agirem produzem, através das suas ações, transformações no mundo.
Ora essas transformações têm efeitos sobre o mundo (podem torná-lo mais habitável ou
podem destruir o ambiente, por exemplo). Têm também efeitos sobre os outros com quem
partilhamos o mundo (podem, por exemplo, ajudá-los ou prejudicá-los, pondo em causa os
seus direitos).

Estas transformações que as nossas ações produzem implicam que o agente seja
responsabilizado eticamente. A responsabilidade ética implica pensar nos possíveis danos ou
benefícios que podem ser causados pelas nossas ações, tanto agora como no futuro.

Daqui surge um problema: como se justifica a nossa responsabilidade ética? A que teorias
morais podemos recorrer para avaliar e justificar as ações dos homens? Este problema é o da
necessidade de fundamentação da moral. Fundamentar uma perspetiva moral significa
encontrar razões que a justifiquem, de um ponto de vista universal, a perspetiva moral que
dá sentido e avalia as nossas ações.

Para responder a este problema vamos estudar duas perspetivas diferentes de fundamentação
da moral:

1. A ética consequencialista de Stuart Mill


2. A ética deontológica de Kant.

A ética consequencialista de Stuart Mill

§ 1 Caracterização geral da ética de Stuart Mill

A filosofia utilitarista, da qual Jeremy Bentham e John Stuart Mill são os principais
representantes, vai procurar um princípio objetivo da moralidade, o qual seria superior a
todas as normas morais, que permita resolver os possíveis conflitos entre normas morais. Esse
princípio permitiria distinguir, moralmente, o que é correto ou incorreto fazer, já que um
mesmo ato pode beneficiar certas pessoas e prejudicar outras. Antes, porém, de analisar esse
princípio objetivo da moralidade (princípio da utilidade ou princípio da maior felicidade)
vamos caracterizar a ética de Stuart Mill.

Antes do mais refira-se que os princípios que regem a ação moral não são obtidos a priori, de
modo puramente racional. O que se considera bem e mal só se pode determinar a partir da
observação e da experiência. Isto não impede Stuart Mill de defender que o comportamento
moral se deve fundamentar em princípios éticos adotados universalmente.

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A primeira característica da ética de Mill é que ela é uma ética utilitarista. A moralidade de
uma ação e o modo como devemos viver são avaliados pela possibilidade de gerar a maior
utilidade possível. A utilidade é medida pela capacidade de as ações maximizarem a felicidade
para o maior número. Para o utilitarismo a melhor coisa a fazer numa dada situação é aquela
que, de um ponto de vista imparcial, o bem-estar de todos aqueles que são afetados pela
ação.

Uma segunda característica é a se uma ética consequencialista. Isto significa que a avaliação
da bondade moral das ações não reside nas intenções ou nos motivos (como acontecia em
Kant, pois as intenções e os motivos expressavam-se na máxima da ação). Mill discorda que a
intenção do agente seja essencial para determinar o valor moral de uma ação.

Assim, podemos afirmar, em primeiro lugar, que o que torna uma ação moralmente boa são
as suas consequências. Independente dos motivos ou das intenções do agente, a ação é boa
se as suas consequências forem boas. Em segundo lugar, pode-se afirmar que, na perspetiva
do consequencialista, as ações não têm um valor moral intrínseco, mas esse valor moral
depende das consequências.

Para os consequencialistas, como Stuart Mill, só há uma razão para realizarmos as nossas
ações: o facto de elas terem as melhores consequências possíveis. O que é sempre eticamente
decisivo é a razão para promover o maior bem possível. Em resumo pode dizer-se que para
uma ética consequencialista um ato é certo ou permissível apenas no caso de não haver um
ato alternativo cujas consequências sejam melhores.

Uma terceira característica da ética de Stuart Mill é o hedonismo. Considera que que os
efeitos ou consequências de uma ação devem ser avaliados em termos de felicidade
proporcionada, de forma imparcial e ao maior número possível de pessoas. A fonte dessa
felicidade é o prazer e a ausência de dor. Chama-se hedonismo a esta conceção da felicidade.
O consequencialismo de Mill é, por este motivo, um consequencialismo hedonista. A esta
forma de consequencialismo chama-se utilitarismo.

§ 2 Princípios da ética de Stuart Mill: utilidade e impacialidade

Depois de compreender as características gerais da ética de Mill (utilitarismo,


consequencialismo e hedonismo), vamos analisar dois dos seus princípios.

Em primeiro lugar, o princípio da maior felicidade ou da utilidade. Esse princípio diz-nos:

O princípio da utilidade ou da maior felicidade afirma que as ações são boas ou más
na medida em que tendem a aumentar a felicidade ou a produzir o contrário da
felicidade. (Stuart Mill, Utilitarismo)

Uma análise atenta deste princípio permite-nos perceber o seguinte:

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1. Ele realiza duas características da ética de Mill. Realiza o utilitarismo, pois ordena as
ações em função da sua utilidade. Realiza o consequencialismo, pois avalia a
moralidade das ações a partir das suas consequências.

2. Implicitamente, realiza ainda o hedonismo, pois sabemos que, para Stuart Mill, a
felicidade é pensada como prazer e ausência de dor.

3. O princípio de utilidade ou de maior felicidade funciona, então, como o princípio


que permite avaliar a bondade moral de uma ação. Fornece-nos um critério de
avaliação.

4. Este princípio fornece ainda uma solução para casos onde existam conflitos entre
deveres objetivos contraditórios. Quando se apresentam ao agente dois deveres
objetivos (por exemplo, não mentir e salvar uma pessoa) mas que, na circunstância,
são contraditórios (se mentir salvo a pessoa, se disser a verdade a pessoa é
assassinada), o princípio de utilidade ou da maior felicidade fornece o critério para
tomar uma decisão. Devo praticar a ação que tende a aumentar a felicidade.

Um problema que se coloca à ética de Mill é o seguinte: não poderá o agente, ao calcular as
consequências da sua ação, procurar promover a sua felicidade, ou daqueles que lhe são
próximos, em detrimento da felicidade dos outros ou até do maior número? Não poderá o
hedonismo de Mill implicar um egoísmo?

Mill responde a este problema da seguinte forma:

O utilitarismo exige do indivíduo que seja rigorosamente imparcial. Fazer aos outros o
que gostaríamos que nos fizessem, amar o próximo como a nós mesmos, é pois a
máxima que constitui a perfeição ideal da moralidade utilitarista. (Stuart Mill,
Utilitarismo)

O princípio de imparcialidade é, deste modo, um elemento central na ética de Mill. Assim:

1. Para decidir o que se deve fazer e calcular as consequências de um ato, o agente


deve ter em conta a felicidade geral (do universo de pessoas afetadas pelo seu ato) e
não apenas a sua.

2. Este princípio de imparcialidade implica que o agente não abra exceções para si ou
para os que lhe são próximos. A exceção está excluída e a imparcialidade é obrigatória
na escolha da ação.

3. Com este princípio de imparcialidade, a filosofia de Mill mostra-se como um


altruísmo (ela visa o bem geral da humanidade; em cada caso, o bem geral de todos os
que são afetados pela ação) e não um egoísmo, onde o agente persegue a felicidade,
mas apenas a sua felicidade.

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O princípio da imparcialidade coloca um problema: não haverá um conflito entre a minha
felicidade pessoal e a felicidade do maior número? Muitas vezes a prática de uma ação que
contribui para a felicidade geral implica à infelicidade para o agente. Qual a argumentação de
Mill perante este problema?

1. Mill defende que a nossa consciência moral não é inata (não nasce connosco),
embora todos os seres humanos nasçam com uma disposição natural para ter uma
consciência moral.

2. Esta disposição natural, como as outras disposições naturais do homem (falar,


andar, etc.), pode ser educada e transformada numa consciência moral respeitadora
dos princípios do utilitarismo.

3. A educação e a opinião devem ser utilizadas para consolidar, em cada um, uma
associação indissolúvel entre a sua felicidade pessoal e a felicidade geral.

4. A educação tornaria o agente incapaz de adotar condutas contrárias ao interesse


geral (condutas meramente egoístas).

5. A educação ajudará o agente a harmonizar naturalmente a felicidade pessoal e a


felicidade geral.

§ 3 O hedonismo qualitativo de Stuart Mill

A felicidade, como vimos, é entendida como a experiência do prazer e a ausência de dor. Será
que todos os prazeres se equivalem? Jeremy Bentham defende que o valor intrínseco de um
prazer depende apenas da sua duração e intensidade. Quanto mais longo e intenso for o
prazer proporcionado por uma ação tanto melhor ela será. Esta perspetiva hedonista é
meramente quantitativa. Jeremy Bentham defende um hedonismo quantitativo.

Para os hedonistas quantitativos, a vida mais feliz será aquela que, descontada a dor, contiver
maior quantidade de prazeres. Por exemplo, em si mesmo o prazer da embriaguez não será
melhor nem pior do que o de ouvir música. A avaliação destes prazeres depende, na
perspetiva dos hedonistas quantitativos, da duração e da intensidade que proporcionam. A
embriaguez deve ser evitada, porém, porque conduzirá à doença e a experiências dolorosas. O
segundo deve ser cultivado pois, ao apurarmos a nossa sensibilidade musical, ficaremos aptos
a maior satisfação. Esta visão dos prazeres, porém, é meramente instrumental.

Mill discorda dela e argumenta a favor de um hedonismo qualitativo. O que significa isto?

1. Significa que o valor intrínseco de um prazer não depende da sua intensidade e


duração (quantidade), mas da sua qualidade.

2. Uma vida feliz é aquela que está ligada à fruição de prazeres de qualidade superior.

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3. O critério proposto por Mill para diferenciar qualitativamente os prazeres: De dois
prazeres, se houver um ao qual todos os que tiveram experiência de ambos darem
uma preferência decidida, independentemente de sentirem qualquer obrigação moral
para o preferir, então esse será o prazer mais desejável.

4. Deste critério, Mill retira a seguinte conclusão: é um facto inquestionável que


aqueles que estão igualmente familiarizados com ambos, e que são igualmente
capazes de os apreciar e de se deleitar com eles, dão uma preferência muito marcada
ao modo de existência que emprega as suas faculdades superiores.

5. Os prazeres superiores são aqueles que resultam do exercício de capacidades


intelectuais e emocionais características dos seres humanos e que, dificilmente, se
encontram noutros animais. Os prazeres inferiores são aqueles que também são
acessíveis aos outros animais. Os prazeres superiores são os prazeres do espírito. Os
prazeres inferiores são os prazeres físicos.

6. Stuart Mill não nega os prazeres físicos. Afirma, porém, que os prazeres do espírito
são superiores e qualitativamente diferentes.
§ 4 O problema das regras morais em Stuart Mill

Será que as regras e normas morais em vigor na sociedade devem ser abandonadas, segundo a
ética de Mill? Haverá regras morais absolutas e incondicionais, tal como pensava Kant? Para
compreender a posição de Mill tenha-se em consideração o seguinte:

1. As regras e normas morais em vigor na sociedade (podemos chamar-lhes princípios


secundários) não têm de ser abandonadas para se seguir o utilitarismo.
Exemplifiquemos algumas dessas regas: respeitar os compromissos assumidos; não
mentir; não roubar; não matar; não maltratar as outras pessoas; recompensar quem
tem mérito, etc.

2. Estes princípios secundários em vigor na sociedade foram selecionados ao longo do


tempo. Na verdade, eles foram selecionados porque a sua aplicação trazia uma maior
felicidade geral. São o fruto de uma aplicação espontânea, na sociedade, do princípio
de utilidade. Por norma, conduzem a boas consequências e são fáceis de aplicar na
vida social.

3. Estas normas ou regras morais são mais fácies de aplicar que o próprio princípio de
utilidade. Este serve, fundamentalmente, para identificar quais as normas e regras
morais (princípios secundários) corretos.

4. O que a ética de Mill rejeita é a ideia de existirem normas ou regras morais


absolutas e que, por isso, têm de ser aplicadas independentemente das condições e
das consequências. Estes normas ou regras, por vezes, devem ser desrespeitadas, e
devemos seguir aquilo que o princípio de utilidade indica. Quando há conflitos entre

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regras e dilemas morais, o agente deve deliberar sobre a norma a seguir segundo o
princípio de utilidade.

5. Mill defende que não há regras morais absolutas. Não nega, porém, a existência de
princípios e regras morais objetivas. O princípio de utilidade é válido
independentemente das opiniões dos indivíduos. As regras morais também possuem
um valor objetivo. A regra “não mentir”, por exemplo, é válida objetivamente
independentemente da minha opinião sobre ela.

No entanto, esta regra não tem um valor absoluto. Posso ter de mentir para salvar
uma pessoa dos desejos criminosos de outra. Afirmar que não há regras morais
absolutas implica também afirmar que não há ações intrinsecamente boas. Uma ação
é moralmente correta ou incorreta conforme as consequências que dela resultem
numa dada situação, pelo que, para o utilitarista, não há deveres que devam ser
respeitados em todas as circunstâncias, isto é, não há deveres morais absolutos.

Em conclusão, há princípios e regras morais que possuem um valor objetivo, pois não
dependem das preferências do sujeito. No entanto, nenhuma regra moral tem um valor
absoluto. Depende das circunstâncias e das consequências de uma ação. Em caso de conflito
entre normas ou regras morais objetivas, o princípio de utilidade é o critério que permite ao
agente tomar uma decisão moralmente correta.

§ 5 Objeções à ética de Stuart Mill

A filosofia moral de Stuart Mill levanta um conjunto de objeções. Vamos tentar compreender
algumas dessas objeções.

1. O caráter utilitarista da ética de Sturt Mill torna-a uma ética do interesse. Esta
objeção afirma que o utilitarismo de Mill justifica a prática de ações imorais. Qual é o
argumento que suporta esta objeção? O argumento é o seguinte:

i. o utilitarismo dá apenas importância às consequências das ações enquanto


critério para avaliar a sua moralidade;
ii. assim, para os utilitaristas seria possível desrespeitar regras morais básicas e
mesmo assim agir moralmente, desde que essa ação proporcione uma maior
quantidade de felicidade a mais pessoas do que aquelas a quem a ação
provocou dor (seria correto matar um indivíduo inocente se se souber que a
morte desse indivíduo vai permitir salvar a vida a outras três pessoas).
iii. Ora, é inadmissível, moralmente, que seja permitido matar um inocente.

Resposta de Mill a esta objeção. A resposta que Mill poderia dar a esta objeção
desenvolve os seguintes argumentos:

i. Esta crítica é hipócrita, porque acusa o utilitarismo de uma prática comum


da sociedade. A sociedade considera que matar pessoas inocentes é errado,

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mas a verdade é que, em situações excecionais, as pessoas e as sociedades,
por vezes, têm de tomar decisões que conduzem à morte de pessoas inocentes
(casos de guerra, por exemplo). O utilitarismo não defende que as regras
morais não devam ser cumpridas. Apenas fornece um critério (o princípio de
utilidade) que, em caso de conflito de normas, se possa tomar a melhor
decisão do ponto de vista moral
ii. Por outro lado, esta objeção confunde utilidade com expediente. A
utilidade traz benefícios morais reais. O expediente consiste na infração de
uma regra moral para obter um benefício momentâneo. Assim, matar uma
pessoa para salvar outras três (imaginemos que essa pessoa é morta para lhe
retirarem órgãos que as outras três precisam para sobreviver) é um
expediente. Se isso acontecesse, haveria consequências negativas para toda a
sociedade, pois ficaria abalada a confiança na qual assenta toda a vida social.
Todo o ato que possa abalar a confiança em que assenta a sociedade é
recusado pelo utilitarismo.

2. O hedonismo de Mill reduziria o homem a uma vida similar à dos animais. Esta
objeção dirige-se, especificamente, à natureza hedonista do utilitarismo de Mill.
Analise-se o argumento:

i. A ética de Mill reduz a felicidade à maximização do prazer e à ausência de


dor.
ii. Isto significa que os homens reduziriam a ação moral à satisfação das
necessidades básicas resultantes dos seus corpos.

Resposta de Mill a esta objeção. O contra-argumento utilitarista de Mill afirmaria o


seguinte:

i. Se a crítica tivesse fundamento, então homens e animais teriam


precisamente o mesmo tipo de prazeres. Isso não é verdade.
ii. Os seres humanos têm faculdades mais elevadas que os apetites animais.
iii. desde que ganharam consciência das faculdades mais elevadas, nunca mais
se contentaram com uma felicidade que não implique o exercício das
faculdades superiores (inteligência, imaginação, sentimentos morais).
iv. O prazer ligado à felicidade não se pode avaliar do ponto de vista
quantitativo, mas qualitativo.
v. A objeção não faz sentido tendo em conta a natureza qualitativa do
hedonismo de Mill.

3. O utilitarismo implicaria padrões morais demasiado exigentes para os seres


humanos. Esta objeção dirige-se, especificamente, à natureza consequencialista do
utilitarismo e ao princípio de imparcialidade. Analise-se o argumento:

i. O princípio de imparcialidade exige que os interesses de todos os envolvidos


(sejam próximos, sejam estranhos) nas ações sejam considerados de modo

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igual;
ii. É difícil agir em todas as situações sem ter em conta aquilo que a pessoa é,
porque não nos comportamos da mesma forma em relação aos nossos amigos
e familiares como em relação a estranhos;
iii. Se seguíssemos em todas as nossas ações o critério utilitarista da
imparcialidade, correríamos o risco de destruir as relações pessoais que
mantemos com as pessoas de que mais gostamos, para além de podermos
destruir a nossa própria felicidade.
iv. O princípio de imparcialidade implica, então, uma consideração abstrata das
relações dos homens, ao não ter em conta a situação concreta do indivíduo e
da sua relação com os mais próximos.

Resposta de Mill a esta objeção. O contra-argumento de Mill afirmaria o seguinte:

i. Esta objeção confunde o princípio moral que nos permite reconhecer um


dever moral (o princípio de utilidade) com os motivos que nos podem levar a
agir.
ii. O sentimento de dever não é o único motivo que nos leva a agir; a grande
maioria dos nossos atos têm outros motivos e, mesmo assim, não deixam de
ser atos morais.
iii. A generalidade das nossas ações são pensadas tendo em conta o benefício
de indivíduos concretos e não um bem estar geral e abstrato do mundo.
iv. Deve-se ter apenas em conta ao agir, que não se está a violar,
indiretamente, direitos e expectativas legítimas de terceiros.
v. A objeção ao princípio de imparcialidade não faz sentido, pois o facto de
sermos imparciais não significa que descuremos a felicidade daqueles que nos
são próximos e para os quais dirigimos a generalidade dos nossos atos. Há que
ter o cuidado de não ferir os direitos de terceiros.

4. Impossibilidade de calcular todas as consequências das nossas ações. Esta objeção


dirige-se também à natureza consequencialista da ética de Mill. Analise-se o
argumento:

i. Ao agir, nem todos as consequências da ação são logo visíveis;


ii. Uma ação pode ter consequências inesperadas;
iii. Logo, efetuar o cálculo de todas as consequências de uma ação poderia
conduzir a: a) uma paralisação do agente, perante a incapacidade de
determinar as consequências da ação; b) uma incapacidade para determinar o
valor moral da ação que pretende levar a efeito.

Resposta de Mill a esta objeção. O contra-argumento de Mill afirmaria o seguinte:

i. Não é necessário efetuar o cálculo de todas as consequências de uma ação,


pois sabemos, através da experiência da humanidade, que há ações com
melhores consequências e outras com piores.

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ii. Sabemos isso porque a humanidade, através da sua experiência ao longo de
milénio, aplicou espontaneamente princípio de utilidade e considerou certas
ações como moralmente boas e outras como moralmente más. Podemos,
assim, utilizar esta seleção como padrão que nos dá uma informação
pertinente sobre as ações que pretendemos realizar.

Comparação entre a ética deontológica de Kant e a ética consequencialista de Mill

§1. Comparação relativa ao critério para avaliar moralmente uma ação.

Kant: O valor moral de uma ação depende da intenção com que ela é praticada. As
consequências das ações não são o critério de que depende a moralidade da ação. Uma ação
pode ter consequências boas e ainda assim não ser moralmente boa (cf. o caso do merceeiro
que não engana o cliente para não perder outros clientes). O que determina se uma ação é
moralmente boa é a intenção. Uma ação só é moralmente boa se a intenção for a de cumprir o
dever pelo dever.

Mill: A moralidade de um ato depende das consequências ou resultados desse ato para todas
as pessoas abrangidas por ele. Para Mill, a intenção com que a ação é praticada é irrelevante
para determinar o seu valor moral. As ações que mais promovem, de forma imparcial, a
felicidade, isto é, as que têm as melhores consequências, são, portanto, as ações moralmente
boas.

§2. Comparação relativa à questão de saber se os fins justificam os meios.

Kant: Os fins nunca justificam os meios. Há ações que são moralmente erradas, quaisquer que
sejam as consequências que resultem delas. Para Kant não são as consequências que decidem
da moralidade de uma ação, mas a obediência ao imperativo categórico, a qual evita que se
violem deveres absolutos e direitos invioláveis.

Mill: Não há, à partida, nem direitos invioláveis nem deveres absolutos. Não há ações que seja
sempre obrigatório ou sempre errado fazer. As ações são erradas ou corretas em função das
suas consequências ou fins. Podemos, portanto, dizer que do ponto de vista de Mill os fins
justificam sempre os meios, porque é em função dos fins (consequências esperadas) que os
meios (as ações a praticar) são determinados. Para Mill não há deveres absolutos e uma
análise custo-benefício pode justificar uma ação que o senso comum tende a considerar
imoral.

§3. Comparação relativa à existência ou não de deveres absolutos.

Kant: As pessoas têm direitos que, em circunstância alguma, podem ser violados ou
infringidos. Estes direitos implicam deveres e estes deveres implicam restrições. Nem tudo é
permissível em nome do bem-estar geral ou da felicidade do maior número. Se maximizar o

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bem-estar implica violar esses direitos, a ação não é moralmente admissível. Há direitos
invioláveis e por isso há deveres absolutos.

Mill: As ações são moralmente corretas ou incorretas conforme as consequências: se


promovem imparcialmente o bem-estar, são boas. São as consequências que as tornam boas
ou más. Não há, pois, para o utilitarista, deveres que devam ser respeitados em todas as
circunstâncias. Para Mill, o dever fundamental é maximizar o bem-estar criando um melhor
estado de coisas no mundo. E, em circunstâncias especiais, o cumprimento deste dever pode
levar a ações que chocam com as nossas intuições de senso comum. Para Mill, não há direitos
invioláveis e por isso não há deveres absolutos.

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A ética deontológica de Kant

§ 1 Caracterização geral da ética kantiana

A ética de Kant é deontológica porque tem no seu núcleo central a importância de agir por
dever. Ela assinala ao agente que, em cada ação e para que essa ação tenha valor moral, ele
deve agir apenas motivado pelo cumprimento do dever e apenas do dever. O dever, como
uma obrigação moral, impõe-se ao agente independentemente das consequências da ação e
do interesse particular do agente.

Esta ética é racionalista. Porquê? Porque o fundamento das ações moralmente boas
encontra-se na razão e não na experiência. O que significa isto? Um exemplo ajuda a
compreender a perspetiva kantiana. Considere-se o dever de ser leal com os amigos, de não os
trair? De onde vem a obrigatoriedade de sermos leais? Não pode vir da experiência.

Imaginemos que, olhando para o mundo, não encontramos nenhum exemplo de alguém que é
leal ao seu amigo, imaginemos que descobrimos que aqueles que aparentam ser leais o fazem
por um interesse qualquer. Nesse caso, continuamos ou não a ter o dever de sermos leais com
os nossos amigos? Kant dirá que sim, mesmo que a experiência não nos dê nenhum exemplo
de lealdade, pois a nossa razão impõe, de forma incondicional, o dever de sermos leais. É a
razão que impõe o dever de lealdade e não a experiência.

A origem da lei moral que nos obriga a agir apenas por dever está na nossa razão . Como
salienta Anthony Kenny, a razão, segundo Kant, não nos foi dada para procurarmos a
felicidade, mas “para originar uma vontade boa não enquanto meio para outro fim qualquer,
mas boa em si. A vontade boa é o mais elevado bem e a condição de possibilidade de todos os
outros bens, incluindo a felicidade.”

A ética kantiana é uma ética da autonomia. O ser humano é dotado de uma vontade. O que
significa ter uma vontade? Significa que o homem é um ser racional que tem de agir segundo a
representação das leis. Para entender isto podemos comparar a ação dos homens com os
movimentos e acontecimentos produzidos por seres não humanos.

A Lua, por exemplo, ao girar à volta da Terra fá-lo segundo uma lei exterior e sem ter
consciência do que está a fazer (a Lua não representa na consciência a lei que a leva a
girar em torno da Terra).

Um animal não humano pode ter um certo comportamento causado por um desejo,
pelo instinto, por uma necessidade biológica. Mas a produção desse acontecimento
não deriva de uma representação na consciência do animal.

O homem, contrariamente aos outros seres conhecidos, tem a capacidade de


representar na sua consciência o princípio que o leva a agir. Só o homem possui
consciência do que que quer realizar e sabe que tem essa consciência. Só o homem

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tem a capacidade de agir segundo a representação (na sua consciência) das leis que a
razão lhe dita. Isto é, só o homem tem uma vontade.

A vontade dos homens pode ser, contudo, determinada a agir por dois tipos de causas:

Pode ser determinada a agir por inclinações empíricas (interesses, paixões, desejos,
inclinações naturais). Neste caso, a vontade está submetida a essas inclinações
empíricas que lhe são estranhas. Nessas situações a vontade não é livre, não é
autónoma.

Pode ser determinada na ação apenas pela razão (pela lei moral que a razão impõe),
sem qualquer condicionamento empírico estranho à razão e à vontade. Neste caso, a
vontade é autónoma, pois rege-se pelas leis que ela própria (enquanto razão prática)
dá a si mesma. Sendo assim, a vontade é livre pois só está submetida a si mesma (isto
é, à razão) e não às inclinações empíricas (interesses, paixões, desejos, inclinações
naturais).

Percebemos, então, que o que está em questão na ética kantiana é a liberdade, entendida
como autonomia da vontade. Vamos observar, mais de perto, o argumento kantiano. Para tal
analisaremos os conceitos de Boa Vontade, de Dever, de Imperativo Categórico, de Imperativo
Hipotético, de Autonomia e de Heteronomia da Vontade.

§ 2 A boa vontade

Do ponto de vista moral, segundo Kant, o que é mais valioso é uma boa vontade. Só ela é boa
sem qualquer limitação. Assim:

A boa vontade, tem deste modo, um valor intrínseco: vale por si mesma e apenas por
si mesma.

A boa vontade tem também um valor incondicional. O que significa isto? Significa que,
sejam quais forem as circunstâncias e as condições, uma boa vontade é boa em si
mesma.

Há outras coisas valiosas (coragem, inteligência, saúde, riqueza, perseverança,


etc.). Mas não têm um valor incondicional. O agente pode usá-las para praticar
o mal, caso não tenha uma boa vontade.

Não será, por exemplo, a felicidade também um bem com valor incondicional?
Kant diz que não. Ela só é boa caso seja merecida. É preciso que sejamos
moralmente dignos de felicidade. A felicidade de alguém que pratica
sistematicamente o mal não é uma coisa valiosa, pois pode advir do prazer
desse mal praticado.

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O que é uma boa vontade? Uma boa vontade é aquela que está apenas determinada a
realizar uma ação por dever e apenas por dever.

A boa vontade está assim ligada ao cumprimento do dever pelo dever. Precisamos então de
compreender o que é o dever.

§ 3 O dever

Para esclarecer o que é o dever, Kant distingue e analisa três tipos de ações:

1. Ações contrárias ao dever: são aquelas que contrariam a lei moral dada pela razão.
Por exemplo, matar, mentir, recusar-se a ajudar os outros, ser egoísta, não ser
imparcial nas decisões, etc.

2. Ações em conformidade com o dever: são ações que, na aparência cumprem o


dever, mas que são feitas por outro motivo. Nelas, o agente age por uma qualquer
inclinação empírica. Por exemplo, a pessoa que não mente porque tem medo de ser
descoberta e ganhar a fama de mentirosa; a pessoa que não engana um cliente
porque é prudente ser honesto para não perder clientes; a pessoa que faz o bem
porque acredita que existe uma outra vida onde pode ser recompensada. Em todos
estes casos, a ação está em conformidade com o dever mas não é feita por dever.

3. Ações realizadas por dever: ações que são realizadas apenas porque esse é o dever
do agente. A única coisa que determina o agente, neste caso, a agir é cumprimento do
dever e apenas do dever.

O dever é então aquilo que a lei moral, proveniente da razão, impõe, sem qualquer outra
condição, ao agente. Só aquele que age apenas por dever possui uma vontade boa.

§ 4 Tipos de deveres

Kant não diz quais são os nossos deveres morais. Não estabelece uma tábua de mandamentos
que devemos cumprir. Dá-nos antes, através do imperativo categórico (ver mais à frente), a
forma que devem ter as nossas ações para possuírem valor moral.

No entanto, Kant apresenta, nas suas obras, alguns exemplos de deveres e classifica-os
segundo dois critérios. Esses critérios têm, cada deles, dois pólos:

Critério 1: deveres para com os outros e deveres para connosco.


Critério 2: deveres perfeitos e deveres imperfeitos.

Tipos de
Deveres para connosco Deveres para com os outros
deveres
Deveres perfeitos Não cometer suicídio. Não fazer promessas

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enganadoras.
Desenvolver as nossas Promover a felicidade dos
Deveres imperfeitos
capacidades. outros

Percebe-se intuitivamente a diferença entre deveres para connosco e deveres para com os
outros.

Os deveres perfeitos dizem-nos o que não de devemos praticar certas ações. Têm um caráter
negativo. São proibições morais absolutas. Seja qual for a circunstância, não devemos
cometer suicídio ou roubar outra pessoa. Pode-se, deste modo, definir a ética kantiana como
uma deontologia absolutista.

Os deveres imperfeitos dizem que há certas ações que devemos obrigatoriamente realizar.
Temos a obrigação de cultivar a nossa razão, de desenvolver as nossas capacidades, assim
como temos a obrigação de contribuir para a felicidade dos outros.

A fórmula de humanidade do imperativo categórico ordena-nos que as nossas ações tenham


uma forma tal que respeitem tanto os deveres para connosco como os deveres para com os
outros, tanto os deveres perfeitos como os imperfeitos. Repare-se no seu conteúdo: Age de tal
maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro,
sempre e simultaneamente como um fim e nunca simplesmente como um meio. Temos o
dever, em qualquer ação que pratiquemos, de respeitar a humanidade na nossa pessoa
(deveres para connosco) e na pessoa de qualquer outro (deveres para com os outros).

Na ética de Kant, os deveres perfeitos têm prioridade sobre os deveres imperfeitos. Por isso,
não é moralmente aceitável cumprir um dever imperfeito através da violação de um dever
imperfeito. Por exemplo, não é moralmente aceitável que um médico, para promover a
felicidade de um doente, lhe minta sobre o seu estado de saúde.

§ 5 O Imperativo Categórico

O imperativo categórico é, para Kant, o princípio que fundamenta todos os nossos deveres.
Ele não nos diz o que devemos fazer em concreto. Dá-nos a forma que devem ter as nossas
ações para terem valor moral.

Para compreendermos o imperativo categórico vamos começar por analisar o imperativo


hipotético. Um imperativo hipotético determina que uma ação é boa para atingir um
determinado fim. Por exemplo, “se queres ser feliz, deves contribuir para a felicidade dos
outros” (neste caso, a felicidade dos outros não é um fim em si mesmo, mas um meio para eu
realizar a minha); “se desejas passar de ano, então estuda” (aqui o estudo não é um fim em si
mesmo, mas uma forma de realizar um desejo pessoal).

Os imperativos hipotéticos ordenam-nos ações na condição (ou seja, na hipótese) de


possuirmos certos desejos ou inclinações. Não nos ordenam a ação por si mesma. A ação só é
valiosa para realizarmos a condição (por exemplo, ser feliz ou passar de ano). A vontade,

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quando determinada por um imperativo hipotético está submetida à condição desse
imperativo, está submetida a uma inclinação ou um desejo empíricos. Se se reparar com
atenção, todas as ações praticadas em conformidade com o dever obedecem a imperativos
hipotéticos.

Veremos que o imperativo categórico, ao contrário do imperativo hipotético, ordena


incondicionalmente a realização de uma ação pelo valor intrínseco desta ação e não apenas na
hipótese de com ela querer atingir algum fim que é estranho à própria ação. Vamos estudar
duas fórmulas do imperativo categórico. O facto de haver várias fórmulas do imperativo
categórico não significa que existam várias imperativos categóricos. Significa que o mesmo
imperativo categórico é formulado de maneiras diferentes.

A Fórmula da Lei Universal

Esta fórmula do imperativo categórico diz-nos o seguinte:

Age apenas segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que ela se
torne lei universal.

Vamos analisar o conteúdo desta proposição, na qual se exprime uma das fórmulas do
imperativo categórico:

Em primeiro lugar, é preciso compreender o conceito de máxima: máxima é o princípio


subjetivo segundo o qual a pessoa pratica uma certa ação. Dito de outra maneira, é a
regra subjetiva da vontade, a partir da qual a pessoa determina uma ação.

Exemplo de máxima: Uma pessoa que estava em apuros financeiros e


precisava de dinheiro, pediu esse dinheiro a um amigo prometendo que lhe
pagaria no fim do mês. A pessoa sabia que não podia cumprir a promessa
quando a fez. Qual foi a máxima da sua ação? A máxima foi a seguinte: para
atingir um fim desejado (obter dinheiro emprestado), faço uma falsa promessa.

Em segundo lugar, é necessário perceber o que Kant pretende dizer quando diz que o
agente deve querer que a máxima da sua ação se torne lei universal. Isto significa que
eu possa querer que todos os outros ajam segundo uma máxima idêntica. O
imperativo categórico ordena apenas que ajamos segundo uma máxima (um princípio
subjetivo) que possamos querer universalizar, uma máxima que possa tornar-se lei
universal a que todos devem estar submetidos. Vejamos dois exemplos:

Exemplo 1: Será que podemos querer universalizar a máxima referida mais


acima (para atingir um fim desejado (obter dinheiro emprestado), faço uma
falsa promessa.)? Não podemos querer que ela se torne em lei universal, isto
é, que toda a gente, nas mesmas circunstâncias, aja segundo essa máxima.
Porquê? Porque o ato de prometer deixaria de ter sentido. Saber-se-ia, pois a
falsa promessa tornar-se-ia uma lei universal, que quando alguém fizesse uma

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promessa, esta seria falsa. Dito de outro modo, a instituição da promessa
desapareceria.

Exemplo 2: Uma pessoa que esteja bem na vida e a quem alguém em


dificuldades peça ajuda pode cair na tentação de responder "Que me interessa
isso? Que todos sejam tão felizes quanto os céus quiserem ou quanto o
conseguirem; não o prejudicarei, mas também não o ajudo". Esta pessoa não
pode querer que esta máxima seja universalizada porque pode surgir uma
situação na qual ela própria precise do amor e da simpatia de outras. (Anthony
Kenny)

A partir desta análise do Imperativo Categórico, na sua Fórmula de Lei Universal, descobrimos
o que dá a uma ação um caráter moral. O que dá esse caráter moral às ações é o facto das
suas máximas poderem ser universalizáveis, tornarem-se leis universais pelas quais todos
deveriam agir. Assim, podemos afirmar o seguinte:

1. Nas ações contrárias ao dever (fazer falsas promessas, não ajudar os outros, roubar,
matar, suicidar-se, etc.), eu não posso querer universalizar a máxima. Posso querer
abrir um exceção para mim (posso querer mentir para sair de apuros, mas não posso
querer que os outros me mintam). As máximas das ações contrárias ao dever são
sempre particulares (são exceções) e nunca se podem universalizar.

2. Nas ações em conformidade com o dever (por exemplo, eu não mato uma pessoa
de que não gosto (trata-se de omitir uma ação), pois tenho medo de ser preso)
também não são universalizáveis. Porquê? Porque o cumprimento do dever está
dependente de uma condição. Neste caso, eu só não mato porque tenho medo das
consequências para mim do meu ato. Na ausência dessas condições, se eu tivesse a
certeza de não ser descoberto, eu não me sentiria obrigado a cumprir o dever. Não
posso universalizar uma máxima que implica uma condição para cumprir o dever.
Porquê? Porque, neste caso, as pessoas que sentissem que não eram descobertas
acabariam por matar.

3. Nas ações realizadas apenas por dever (eu não mato apenas porque esse é o meu
dever), eu posso universalizar a máxima e torná-la lei universal? Posso. Eu quero uma
lei universal que diga que qualquer agente está impedido de matar. Mesmo que na
sociedade, haja homicídios todos os dias, eu posso querer uma sociedade onde o
homicídio não possa acontecer. Se uma sociedade não é assim, ela deveria tornar-se
assim através da moralidade.

A Fórmula da Humanidade

Podemos perguntar, tendo em conta a fórmula do Imperativo Categórico estudada atrás, qual
é a finalidade da moral kantiana. Podemos afirmar que essa finalidade é o respeito pela
dignidade dos seres humanos, enquanto seres dotados de razões. Para percebermos isso,
temos de analisar a Fórmula de Humanidade do Imperativo Categórico:

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Age de tal maneira que uses a humanidade tanto na tua pessoa, como na pessoa de
qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como
meio.

Como podemos então descobrir que o que está em causa na ética de Kant é o respeito pela
dignidade do homem? Observemos os pontos seguintes:

1. Na fórmula de humanidade, Kant diz-nos que não podemos usar nem a nossa
pessoa nem as outras pessoas apenas como meios. Se o fizéssemos estávamos a
reduzir os outros e nós mesmos a meras coisas, a instrumentos dos nossos desejos e
inclinações empíricas.

2. Como se manifesta, então, o respeito pela dignidade da pessoa? Manifesta-se ao ser


moralmente obrigatório, em todas as circunstâncias, tratar a humanidade na nossa
pessoa e nas pessoa de qualquer outro também como um fim. O que significa
considerar o ser humano um fim em si mesmo? Significa que ele tem uma valor
intrínseco (vale por si mesmo). Esse valor intrínseco é-lhe dado pelo facto de ser um
ser racional. Os seres racionais são fins em si mesmos. É nisso que reside a sua
dignidade. Não são coisas que se utilizem apenas para se atingir um fim.

3. Como podemos ligar as duas fórmulas do Imperativo Categórico? Se eu não posso


universalizar a máxima da minha ação isso significa que eu estou a tratar o outro (ou a
mim mesmo) como uma mera coisa. Se eu faço, a um amigo, uma falsa promessa para
que ele me empreste dinheiro, eu estou a usá-lo como um instrumento para os meus
desejos. Não o estou a respeitar na sua dignidade.

Em resumo, a moral Kantiana ordena-nos, através do Imperativo Categórico, que respeitemos


a dignidade dos seres humanos, pois eles são seres racionais, fins em si mesmos, que, por
serem dotados de razão, determinam por si mesmos os seus próprios fins, ao contrários dos
objetos e até dos animais (não tendo uma razão não conseguem determinar os seus próprios
fins; os fins dos animais são-lhes dados pelo homem ou pela natureza, mas não por eles
mesmos).

§ 6 O Autonomia e Heteronomia da Vontade

Para compreender a ideia de autonomia da vontade vamos começar por estudar um conceito
que surge, na filosofia kantiana, em contraposição ao conceito de autonomia da vontade.
Trata-se do conceito de heteronomia da vontade.

A heteronomia da vontade significa que a lei moral não é dada a si mesmo pelo
próprio agente. Nesta perspetiva, a lei moral seria recebida como uma imposição
exterior à nossa razão. Por exemplo, que a lei moral fosse uma imposição de Deus ou
da sociedade. Nesses casos, o agente seria constrangido (obrigado) a agir moralmente
por uma causa exterior.

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Se se pensar bem, o cumprimento do dever, nesta situação, corresponderia a ações
em conformidade com dever. Por exemplo, não minto, porque Deus (ou a sociedade,
etc.) impõe que eu não minta. Eu não cumpro o dever pelo dever, mas segundo um
imperativo hipotético (cumpro o dever para obedecer algo que me é exterior). Nesta
perspetiva, a minha vontade é heterónoma pois recebe a lei moral de outro, vinda de
fora.

Se a minha vontade é heterónoma, então eu não sou livre. Sou coagido por uma força
exterior a agir de determinada maneira. A minha vontade está dependente da
vontade de outros.

Agora podemos compreender mais facilmente a autonomia da vontade. Para isso, é preciso
compreender quem dá a lei moral ao agente, já que este, para ser livre (a dignidade dos seres
racionais implica que eles sejam livres) não pode receber a lei moral de outrem.

O agente dá a lei moral a si mesmo. Como? Seguindo o imperativo categórico.


Escolher máximas que podem tornar-se leis universais. Ao escolher máximas segundo
o critério do imperativo categórico, é o agente que dá a lei moral a si mesmo. Somos
nós que somos os legisladores (que fazemos a lei moral).

A lei moral não é, desse modo, imposta por outrem, não vem de fora da nossa razão.
Ela deriva da nossa própria vontade. Não somos constrangidos a agir moralmente por
ninguém, a não pela nossa própria razão.

Ao agir desse modo, a vontade do agente é autónoma. Só uma vontade autónoma


está de acordo com a dignidade de um ser racional. Através do imperativo categórico,
o agente é legislador moral e, ao mesmo tempo, submete-se à lei moral que ele
próprio dá. Para Kant, este é o sentido da liberdade: orientar-se segundo a sua própria
razão.

§ 7 Objeções à ética de Kant

A filosofia moral kantiana levantou, desde a sua publicação, um conjunto de objeções. Vamos
tentar compreender algumas dessas objeções.

1. As regras morais não são absolutas. Kant defende que as regras morais são
absolutas e devem ser respeitadas incondicionalmente. Não admitem exceções.
Podemos, porém, argumentar, contra Kant, que há ocasiões em que quebrar uma
regra moral (por exemplo, mentir a um assassino, enganando-o, para evitar que
alguém seja morto por ele) parece completamente justificado.

Intuitivamente, parece absurdo que o dever absoluto de não mentir contribua para
que alguém seja vítima de um assassino. Kant contra-argumentaria que quer se diga a
verdade ou pura e simplesmente se minta, as consequências são imprevisíveis. Sendo

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assim, o melhor é não mentir e respeitar aquilo que a razão nos ordena. Mas isto é, de
facto, contrário à nossa intuição moral, pois estamos convencidos que a mentira
ajudará a salvar uma vida, e que é mais importante salvar uma vida do que obedecer à
regra moral que nos impede de mentir.

Conclusão da objeção: contrariamente ao que Kant defendia, as regras morais não são
absolutas. Em certos casos excecionais, podemos mesmo sentir a obrigação de não
obedecer a certas regras morais.

2. A ética de Kant não fornece um princípio para decidir em caso de conflito de dois
deveres absolutos. Por vezes, pode ocorrer um conflito entre dois deveres que,
segundo a ética kantiana são absolutos e incondicionais. Por exemplo, no caso referido
anteriormente, a pessoa estava obrigada por dois deveres contraditórios: 1.º Tinha
obrigação incondicional de dizer a verdade ao assassino; 2.º Tinha o dever
incondicional de salvar a vida da outra pessoa. Ora, da ética kantiana não se pode
deduzir um princípio que permita resolver este conflito ou dilema moral.

3. A ética kantiana não toma em consideração os seres humanos não racionais. O


imperativo categórico, na sua fórmula de humanidade, manda-nos respeitar as
pessoas. Estas, porém, são concebidas como agentes racionais e morais, dotados de
autonomia.

Esta definição de pessoa exclui muitos seres humanos da pertença ao universo das
pessoas (as crianças muito pequenas, os deficientes mentais profundos, os adultos
que, devido a doença mental, não são capazes de fazer escolhas racionais). Estes seres
humanos não ostentam as características (a racionalidade) que, segundo Kant,
pertencem às pessoas.

Ora, intuitivamente, todos julgamos que temos o dever moral de tratar esses seres
humanos com respeito. Seria errado tratá-los como simples meios ou coisas.

Daqui podemos formular, à ética kantiana, uma outra objeção com duas faces
complementares: 1.º A fórmula de humanidade do imperativo categórico parece
incapaz de justificar esse respeito por seres humanos que não conseguem ter
consciência de si como fins, por serem incapazes de usar a razão. Aparentemente, não
temos deveres para com eles; 2.º A definição da dignidade do homem pelo uso da
razão parece ser insuficiente, pois sentimos que os seres humanos que não podem
fazer uso da sua razão são ainda seres que possuem uma dignidade que deve ser
respeitada.

4. As consequências da ação podem ser importantes para a tomada de decisão. A


teoria de Kant não vê nas consequências da ação um critério para julgar a moralidade
da ação. A máxima, que segundo o imperativo categórico tem de poder ser
universalizável, refere as intenções e os motivos da ação. E só elas dão valor moral à
ação e não as consequências destas. Isto significa, segundo Nigel Warburton, que

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idiotas bem intencionados que, involuntariamente, causem várias mortes em
consequência da sua incompetência, podem ser moralmente inocentes à luz da teoria
de Kant, uma vez que seriam primariamente julgados pelas suas intenções. 

Conclui-se que, contrariamente ao que defende Kant, as consequências da ação


devem, em certas circunstâncias, ser tidas em conta para avaliar moralmente uma
ação.

5. O amor e a compaixão têm importância ética. Segundo Nigel Warburton, o papel


que a teoria de Kant dá a emoções tais como a compaixão, a simpatia e a piedade
parece inadequado. Kant afasta tais emoções como irrelevantes para a moral: a única
motivação apropriada para a ação moral é o sentido do dever. 

Sentir compaixão pelos mais necessitados - apesar de, de certos pontos de vista, poder
ser digno de louvor - não tem, para Kant, nada a ver com a moral. Pelo contrário,
muitas pessoas pensam que há emoções distintamente morais - tais como a
compaixão, a simpatia e o remorso - e separá-las da moral, como Kant tentou fazer,
será ignorar um aspeto central do comportamento moral.

Em conclusão, a ética kantiana, ao centrar-se apenas no dever, deixa de lado as


emoções morais, as quais possuem um papel fundamental no comportamento moral
dos seres humanos.

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