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Eliseu Alberto Agostinho

Ética Socrática

Licenciatura em Ensino de filosofia

Universidade Pedagógica

Maputo

2021
Eliseu Alberto Agostinho

Ética Socrática

Licenciatura em Ensino de Filosofia

Trabalho a ser apresentado no Departamento


de Filosofia, da Faculdade de Ciências
Sociais e Filosóficas, da Universidade
Pedagógica de Maputo, na cadeira de Ética I
orientada pelo mestre Choma

Universidade Pedagógica

Maputo

2021
Índice
Introdução........................................................................................................................................4
1. A natureza do homem e a busca da verdade................................................................................5
1.1.O bem nasce do conhecimento, e o mal da ignorância..............................................................7
1.2.A natureza aporética da sabedoria de Sócrates..........................................................................8
2.Virtude, Justiça e felicidade..........................................................................................................9
2.1. A unidade das virtudes............................................................................................................11
2.2.A identidade entre virtude, justiça e felicidade........................................................................11
Considerações Finais----------------------------------------------------------------------------------------13

Referências Bibliográficas
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Introdução

A ética é certamente uma das disciplinas filosóficas que actualmente desperta muito interesse em
diferentes esferas sociais, e suscita muitos debates relativamente aos problemas do dia-a-dia dos
homens. Entretanto, etimologicamente a ética deriva do grego “ethos” que significa: hábitos,
costumes, carácter.

A ética é definida actualmente como uma reflecção filosófica sobre a moral. Porém, existem
pensadores que não distinguem entre a ética e a moral. Porque quer a ética(que é de origem
grega), quer a moral (que é de origem romana), tinham o mesmo significado, que é o de usos e
costumes.

Para os que distinguem, têm a moral como objecto da ética.

Para os gregos, a ética subordinava-se sempre às ideias de felicidade e de sumo bem e da vida
presente. Sócrates e os sufistas, foram os primeiros a se dedicarem às questões que diziam
respeito ao próprio homem. Tarefa que foi continuada por Platão e Aristóteles, discípulos de
Sócrates.

Neste trabalho, abordaremos acerca da ética concebida na filosofia socrática. Sabe-se que
Sócrates não escreveu absolutamente nada sobre a sua filosofia, e tudo o que se sabe sobre ele e
o seu pensamento, chegou até nós graças ao que os seus discípulos escreveram a seu respeito,
como Platão.

No entanto, o trabalho está dividido em duas secções, cada uma com duas subsecções
respectivamente. Na primeira, falaremos como Sócrates entendia qual era a natureza do homem,
e como este devia buscar a verdade; e nas subsecções, abordaremos como Sócrates definia a
ideia do bem e o do mal; a seguir apresentar-se-á o carácter aporético do filosofar socrático.

Na segunda, a abordagem estará voltada para as ideias de virtude, justiça e felicidade. Na qual, a
primeira subsecção estará reservada a concepção segundo a qual existe uma unidade entre as
virtudes; e por fim, na última subsecção irá se demostrar que existe em Sócrates, um carácter
identitário entre a virtude, justiça e a felicidade.
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1.A natureza do homem e a busca da verdade

Co m a ruptura feita pela filosofia ao deslocar o centro das suas reflecções, da phisis (natureza),
para questões especificamente humanas, nasce deste modo, uma nova época na história da
filosofia, a que ficou conhecida como “antropológica”. Com efeito, a preocupação principal
passa a ser o próprio homem, tornando-se assim, o centro de toda a reflecção filosófica; como se
pode observar na célebre máxima do filósofo sufista Protágoras: “o homem é medida de todas as
coisas”. É neste período que a ética ganha maior relevância como um campo de reflecção
filosófica.

Entretanto, no período em alusão, tem-se como um dos maior expoente do pensamento filosófico
Sócrates, (razão pela qual o mesmo período é também designado por socrático), que
antagonizava a respeito de deferentes temáticas sobre a educação, ética, política; com os sufistas,
pensadores proeminentes que na época se dedicavam na educação da juventude.

Na ética em particular, o agir humano constituía certamente a questão que preocupava a filosofia
da época. Deste modo, nas reflecções feitas a respeito da ética, o antagonismo existente entre
Sócrates e os sufistas, residia no facto de que os sufistas tinham uma concepção céptica e
relativista acerca da objectividade dos fundamentos que justificavam as acções humanas;
enquanto para Sócrates, havia naturalmente uma objectividade dos fundamentos que justificavam
o agir humano, que seria universal em todos os homens.

Desta feita, o subjectivismo dos sufistas punha em causa a objectividade das acções morais, pois
colocava em dúvida tanto os hábitos da tradição dos homens, como a existência de verdades e
normas universalmente válidas, negando assim, a existência de verdades ou de erros (Vasques:
1990, p. 236).

E é a partir deste contexto que surge o relativismo apresentado por Protágoras ao colocar o
homem como “medida de todas as coisa”, significando que tudo é relativo ao sujeito, e na
mesma lógica Górgias sustenta que é impossível saber o que existe realmente e o que não
existe (Vasques: 1990, p. 236). Para Protágoras, qualquer verdade não passava de simples
opinião, sendo assim cada opinião verdadeira à sua maneira, ou por outra, cada um possuía a
sua verdade, dado que não existe nada além da opinião, e a verdade é relativa, e variando de
acordo com a opinião. Por conseguinte, “a melhor de todas as verdades é a opinião com a
qual todos concordam” (Borba: 2004,p. 3).

Sócrates opõe-se à essas divagações dos sufistas, defendendo que havia uma verdade eterna que
independia dos sujeitos. Para refutar as concepções dos seus adversários, Sócrates desenvolveu
um método de argumentação extraordinariamente negativo, designado por dialéctica. Ele o
empregava para interromper as especulações dos seus adversários e chegar à verdade. A
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operacionalização do método consistia na adopção duma postura irónica por parte de Sócrates,
em que assumia primeiramente que nada sabia e pedia a seu adversário que expusesse
precisamente tudo o que soubesse sobre um determinado tema, durante as explicações Sócrates
ia demolindo as teses dos seus oponentes com perguntas mordazes (Strathern: 2000, p.14).

As indagações levadas a cabo por Sócrates em busca da verdade, limitavam-se apenas em


compreender qual era a essência do ser humano! Pois ele estava convicto que questionar a nós
mesmos era mais importante que questionar o mundo, daí ter adoptado a máxima “conheça-te a ti
mesmo”. Expressão esta que estava patente na entrada do Oráculo de Delfos.

A preocupação fundamental era certamente a de identificar a qual era a natureza do homem, ou


seja o que há de peculiar no homem, consequentemente, depreender qual era a actividade própria
do homem. Com efeito, para Sócrates, o homem era essencialmente alma (razão), e a sua
filosofia consistia num exercício de aprimorar o pleno funcionamento da alma, cuidando-a,
cultivando-a, para melhorá-la, porque é a partir do processo de melhoria da alma, do
conhecimento, que poderemos atingir a virtude, a sabedoria (Hobuss: 2014, p. 86).

Decerto, a definição do homem como um ser essencialmente racional, deve-se a concepção


dualista que Sócrates tinha acerca do mundo. Pois para ele havia dois mundos: o mundo sensível
(representado pelo corpo), e o mundo inteligível, das ideias (representado pela alma). Portanto, o
mundo sensível seria deste modo, simplesmente uma ilusão, (ou cópias imperfeitas do verdadeiro
mundo), devido a sua impermanência; enquanto o mundo das ideias, era o real, por ser eterno,
permanente, e imutável. Esta concepção acabou influenciando fortemente o seu discípulo Platão.

De acordo com Ferraz (2014), é com Sócrates em que encontramos a colocação de forma
sistemática uma ligação entre a existência da alma e sua actividade peculiar (“função própria”);
entre a virtude e a sabedoria/conhecimento. Nisso encontra-se aquilo que é designado por
“intelectualismo ético”, dado que, dá-se primazia na identidade existente entre virtude (arete) e
sabedoria/conhecimento (episteme). Por conseguinte, é a partir de Sócrates e Platão em que
encontramos as raízes da ética tal como a compreendemos hoje. Eles introduziram com
excelência, sistematicamente, os principais problemas e conceitos da ética. Com efeito, não
apenas se preocuparam em descrever a natureza (conhecimento teórico), mas também,
entretanto, encontrar no homem um conhecimento que lhe seria específico (conhecimento
prático) (Ferraz: 2014, p.29).

O “intelectualismo ético” presente na filosofia socrática, era uma tentativa de busca de uma
fundamentação filosófica da máxima “conheça-te a ti mesmo”. Outro sim, acaba colocando e
dando mais importância o tema do valor, visto que, para Sócrates e Platão a questão de fundo,
em filosofia prática, seria: que vida vale apena vivermos? Sendo essa a partir daí a questão
fundamental da ética. E toda a reflecção, será uma busca de respostas a esta questão.

Assim, a boa vida seria alcançada através do conhecimento do “bem”, que se encontrava no
interior de cada indivíduo. Portanto, mediante a utilização do método “maiêutico” (termo
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inspirado na mãe que era parteira), Sócrates intentava realizar o “parto de ideias”, as quais pré-
existiriam na alma humana, especialmente a já referenciada anteriormente ideia de “bem”.
(Ferraz: 2014, p. 29-30).

Na secção a seguir, vamos nos debruçar sobre a concepção da ideia do “bem”, defendida por
Sócrates.

1.1. O bem nasce do conhecimento, e o mal da ignorância

Ao colocar o primado da filosofia no ethos, Sócrates é considerado como o iniciador da filosofia


moral. Devido a sua incessante busca da verdade acima de qualquer opinião, embora isso não
agradasse a maioria dos seus concidadãos atenienses, Sócrates insistia convictamente em fazer
suas indagações, o que lhe tornou mal-afamado e conotado como inimigo e corruptor da
juventude ateniense. Facto este que lhe levou a ser julgado e condenado á morte, por constituir,
segundo os seus acusadores, um perigo para a democracia e a sociedade atenienses.

Entretanto, Sócrates, naturalmente, é o primeiro filósofo a estudar seriamente a questão do bem e


do mal. Neste contexto, ele defendia que todo o agir humano para o bem, era feito
necessariamente como uma clara manifestação da virtude, esta que por sua vez imanava do
conhecimento (em última instância, do bem) (Ferraz: 2014, p. 30).

Se a virtude é conhecimento, o vício, seu oposto, é ignorância. Nesse sentido, quem possui
conhecimento age necessariamente bem, estando imune à pressão da paixão ou do desejo, ou
seja, seu conhecimento do bem não será sobrepujado por inclinações sensuais: ela sempre agirá
com rectitude, com correcção, enfim, não será um acrático , aquele que se deixa levar pelas
paixões em função da fraqueza de sua vontade. Mas este indivíduo, o acrático, não pode ser
responsabilizado, pois tal comportamento é levado a cabo pela ignorância do bem, pois se o
conhecesse bem, agiria bem:

Da mesma maneira, o homem bom jamais poderá tornar-se mau em função do momento, do
cansaço, da enfermidade ou de alguma outra desgraça. Posto que a má acção é somente isto, a
saber, estar privado de conhecimento ( Protágoras 345b, Aput: Hobuss: 2014, p. 90).

Em suma, a partir dessa concepção, pode se assumir que, nenhum dos homens sábios crê que
algum homem se equivoca voluntariamente, nem realiza algo desonrado ou mau
voluntariamente; ao contrário, sabem que todos os que fazem coisas desonrosas e más o fazem
involuntariamente (345e, Idem). Deste modo, observando a mesma ordem de ideias, ninguém faz
o mal, ou erra, voluntariamente, ninguém aceita o mal de bom grado, pois a natureza do homem
não é tal que permita que este busque o que é mal (358c-d, e): ele só o faz por ignorância do
bem.
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1.2. A natureza aporética da sabedoria de Sócrates

Como se fez alusão anteriormente, que Sócrates estava comprometido em buscar


incessantemente a verdade, adoptando uma postura irónica mediante os seus interlocutores,
dizendo que nada sabia acerca do assunto que se propunham debater, empenhando-se apenas em
interrogar o seu adversário, isso desgastava o interlocutor, quando Sócrates desconstruía todas as
ideias que a contraparte tinha sobre a temática.

Chegado ao ponto em que o interlocutor ficava totalmente saturado com as interrogações, o


mesmo acabava perguntando a Sócrates o que sabia sobre o assunto, ou por outra, qual era a
verdade? Visto que Sócrates refutava tudo o que era dito, por ser meras opiniões. Mas Sócrates
não dava nenhuma resposta conclusiva, pois ele se dizia ignorar também a verdade. E estava ali
precisamente para descobri-la.

Esta postura humilde de se afirmar que não possuía nenhuma sabedoria, era um dos traços
peculiar da filosofia de Sócrates, o que explica porquê ele adoptou a frase: “só sei que nada sei”.
Isto parecia uma afronta aos que se julgavam sábios, como era o caso dos sofistas. De acordo
com João Borba, foi em uma famosa conversa que aconteceu em público entre Sócrates e
Péricles, (que na altura era o líder da democracia ateniense),em que surgiu a já aludida máxima
“só sei que nada sei”.

Durante a conversa Sócrates criticou decisões políticas de Péricles, como sempre, perguntando
como o líder poderia ter tanta certeza que aquelas eram as decisões mais acertadas. Péricles
respondeu a moda de Protágoras: não podia ter certeza, mas quem poderia? Só existiam opiniões,
ninguém era dono da verdade. Contudo, isso não passava de simples retórica, pois era a opinião
de Péricles que acabava valendo, porque ele convencia a multidão a seu favor.

Doravante, Sócrates insistia em assumir-se como ignorante ao longo dos diálogos que mantinha
com os seus interlocutores, mas ele acreditava que qualquer homem tinha igual capacidade de
raciocinar, por isso mesmo insistia no seu método “maiêutico”. Porém, quando perguntavam a
Sócrates como ele sabia quais as perguntas certas a fazer para conduzir a pessoa ao caminho da
verdade, insinuando que ele sabia mais da verdade do que admitia e que ele no fundo estava
“conduzindo” a pessoa a pensar naquilo que ele próprio, Sócrates, acreditava, Sócrates respondia
negando, dizendo que estava sinceramente se interrogando junto com a pessoa, pois não era ele
quem inventava as perguntas: havia “daimon” interior (um “demónio” interior), que o
acompanhava sempre e ficava fazendo-lhe as perguntas, ele as transmitia para os seus
interlocutores.

Assim, Sócrates não só negava ser detentor de algum saber, mas também não assumia as
perguntas que fazia.
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2.Virtude, Justiça e felicidade

Na filosofia moral de Sócrates, a virtude é um dos conceitos mais relevante, e por conseguinte,
mais discutidos, que também é indissociável da ideia de justiça e de felicidade. Porque toda a
preocupação tinha como objectivo reflectir qual era a melhor conduta a adoptar com vista a ter-
se uma vida boa. Dito de outra forma, como é que se poderia pensar para se ter uma vida feliz?

Com efeito, como foi referenciado na secção anterior, para Sócrates toda a acção correcta, era
feita com o conhecimento do bem, enquanto a acção incorrecta era praticada por ignorância. Daí
a sabedoria ser indissociável da ideia do bem, que certamente era associada a virtude. Razão pela
qual Sócrates insistia que o mal era um vício. Entretanto, o fim derradeiro da ética em Sócrates
era a felicidade, facto que faz com que a ética socrática seja classificada como uma “ética
teleológica”. Assim, a pergunta obvia é a seguinte: que relação existe entre a virtude e felicidade
no pensamento socrático?

Para se responder a esta pergunta, pode-se recorrer a alguns comentaristas da filosofia de


Sócrates. Por exemplo o filósofo Irwin (1995), defende a tese segundo a qual a relação entre a
virtude e a felicidade em Sócrates é instrumental. A tese da Instrumentalidade da Virtude
defendida por Irwin é fundamentada por ele entender que a virtude é, para Sócrates, causa da
felicidade, mas não um componente dela.

Assim, para Irwin (1995), “a posição eudaimonista socrática pressupõe três princípios básicos
para a acção: (i) em todas as acções racionais, buscamos nossa própria felicidade; (ii) buscamos a
felicidade por conta dela própria; (ii) seja o que for que busquemos racionalmente, nós o
buscamos em prol da felicidade” (Irwin: 1995, p. 53).

Nesta óptica, Irwin argumenta que, no Lísias, Sócrates faz uma distinção entre objectos
secundários e primários do amor, declarando que apenas os objectos primários do amor são
amados por conta de si próprios e que apenas o que é amado verdadeiramente é amado por conta
de si mesmo e não em vista de algo mais (Cf. Platão, 1991, 219 c 1- d 5; 220 a 6- b 5; 220 b 4-
5). A série das coisas amadas deve ser necessariamente bonitas, e devemos chegar a um objecto
de amor que é amado por ele mesmo e pelo qual amamos as demais coisas (Cf. Platão, 1991, 219
c 5- d 2).

Nesses diálogos, entretanto, Sócrates não diz que o objecto primário seja a felicidade. No
argumento do Eutidemo (Cf. Platão, 1999, 279 a14b3), refl ete Irwin (1995), a felicidade é vista
como o objecto que é desejado por si mesmo: outros bens só são buscados em vista da felicidade.
Sócrates, argumenta Irwin (1995, p. 54), “supõe que a felicidade seja o único bem que buscamos
[...] e o único que não buscamos em vista de outra coisa”.
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Segundo esse comentador, outros diálogos confirmam a posição apresentada no Eutidemo:


mesmo na Apologia (Cf. Platão, 1995, 28 b 5- 9), em que Sócrates afirma que a acção virtuosa
deve ser sempre preferida, ele o faz não supondo que a virtude seja um bem em si, mas que a
virtude é desejada em prol da felicidade, já que viver bem é o mesmo que viver de modo justo,
isto é, virtuoso, como é dito no Criton (Cf. Platão, 1995, 48 b 4- 10).

Sócrates interpreta seu pressuposto a partir de seu ponto de vista eudaimonista. Em sua visão, a
acção racional almeja a felicidade do próprio agente, e agentes bem informados têm crenças
verdadeiras sobre o que contribui para sua própria felicidade. Já que pessoas virtuosas que
sacrificam outros bens pela virtude estão tomando a decisão certa e não são enganados pela
ignorância, nós devemos, de acordo com Sócrates, concordar que elas estão fazendo o que é o
melhor para si mesmas.

Portanto, segue-se que as pessoas virtuosas devem crer correctamente que sua acção virtuosa
promove sua própria felicidade melhor que o faria qualquer outra acção (Irwin: 1995, p. 59).
Entretanto, se o argumento do Eutidemo claramente assevera a inexistência de outros bens senão
a sabedoria, então não faz sentido falar de sacrificar outros bens. O argumento do Eutidemo
claramente atesta que as demais coisas são indiferentes, quer dizer, se usadas com sabedoria,
tornam-se bens; se, com ignorância, males. Isso significa que elas não são, por si mesmas, nem
bens nem males, mas tão somente meios pelos quais a sabedoria e a ignorância podem se
expressar; são matéria para os actos virtuosos ou contrários à virtude, e não têm valor algum.

Assim, a acção virtuosa não é melhor que outras acções, mas é a única boa alternativa. As coisas
não podem, com excepção da sabedoria, ser boas ou más em si mesmas em nenhum sentido. Para
Sócrates, quando dizemos que algo é bom, é bom em relação à sabedoria (pela qual se faz bom
uso daquela).

No entanto, o uso que Irwin (1995) faz do termo “bem” tende a obscurecer esta concepção de
acção virtuosa, a qual leva a confundir o que Sócrates cuidadosamente distingue. Além disso, faz
parecer que tais coisas sejam intrinsecamente boas. Assim, não há porque concordar com Irwin
(1995). Para esse pensador, tal argumentação socrática sustenta apenas uma tese comparativa,
segundo a qual a virtude contribui para a felicidade mais do que qualquer outra coisa, mas não a
tese da suficiência, segundo a qual a virtude é suficiente para a felicidade. Irwin (1995) procura,
ainda, provar que Sócrates, implicitamente, aceita que os bens não são partes da felicidade, mas
meios para atingi-la, e isso constitui a tese instrumentalista da relação entre virtude e felicidade
no pensamento socrático, de acordo com Irwin.

Para além desta interpretação de Irwin sobre a relação entre virtude e felicidade, existe também
a de Vlastos (1994), que advoga que em Sócrates a virtude e a felicidade são elementos
parcialmente constitutivos, pois a virtude é um entre outros componentes da felicidade. Todavia,
não pretendemos aqui desenvolver esta perspectiva. Por conseguinte, desenvolveremos a seguir a
ideia da unidade das virtudes em Sócrates.
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2.1.A unidade das virtudes

Para Protágoras, a virtude é uma, e a justiça, a temperança e a piedade, assim como a sabedoria e
a coragem, são partes dela; não necessariamente o indivíduo que possua uma tenha de possuir
todas as outras ao mesmo tempo, já que um homem corajoso pode ser injusto, o justo pode não
ser sábio etc., especificando que cada uma das virtudes é diferente das demais, pois cada uma
tem uma potencialidade própria, como “o olho não é como os ouvidos, nem sua potencialidade é
a mesma”, não havendo semelhança de qualquer parte da virtude com outra parte ( Protágoras
330a-b).

Obviamente, Sócrates discorda dessa tese, como podemos ler a seguir:

Então, Protágoras, qual das afirmações vamos deixar? A que dizia que uma coisa é contrária
somente a outra, ou aquela na que se dizia que a sabedoria é diferente da prudência, que ambas
são parte da virtude, e que elas mesmas e suas potencialidades são uma diferente da outra, e
dissimiles, como as partes do rosto? Qual das duas deixaremos? Pois os discursos não possuem
consonância alguma; não estão de acordo, nem se harmonizam ente si. Em rigor, como poderia
estar de acordo, se por força uma coisa é contrária somente a outra e não a várias, mas a
sabedoria, e também a prudência, parecem contrárias à impudência, que é uma; é assim
Protágoras – lhe perguntei –, ou de que outra maneira? (333a-b)

Ora, parece que a prudência e a sabedoria são uma só coisa, como pareceu o caso da justiça e da
piedade, e se as virtudes são uma só coisa (333b), então elas não podem ser diferenciadas, o que
tem como consequência a tese segundo a qual quem possui uma virtude possui todas as demais,
deixando transparecer que o que liga todas as virtudes é o conhecimento, por serem, cada uma
delas, formas de conhecimento, o conhecimento do que é bom ou mau para o homem. Portanto, a
justiça, a prudência e a coragem, e toda a virtude, são conhecimento (361b). Desse modo,
Sócrates afirma que há uma unidade das virtudes: possuindo uma delas, possuímos todas.

2.2.A identidade entre virtude, justiça e felicidade

A tese socrática, é a de que a virtude habilita o homem a suportar a adversidade, mantendo-o


justo, e, exactamente nisso, consiste a felicidade. Esse é o sentido do argumento do Eutidemo,
que já foi apresentada nas secções anteriores: a riqueza sem a sabedoria é má; com a sabedoria, é
boa. O mesmo vale para a pobreza, para a saúde, para a doença, e para as demais coisas
contrárias, pois algo é bom para o homem quando ele usa moralmente (isto significa: de modo
justo) aquilo para o que necessita da virtude.
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Como já foi dito, o argumento do Eutidemo implica claramente que nada é intrinsecamente bom
para o homem senão a virtude. Assim, primeiramente é preciso que separemos, por um lado, o
bem e o mal e, por outro, o prazer e a dor. Porque a felicidade, para Sócrates, é uma questão
moral, e não uma questão física.

No entanto, lembremos que o que concorre inicialmente para a felicidade do homem, em


Sócrates, é a prática filosófica do auto-exame: sem essa prática, a vida não vale a pena ser vivida,
como é dito na Apologia (Platão, 1995, 38 a). E Sócrates prefere morrer a ter de parar de
filosofar, como é dito na mesma Apologia (Platão, 1995, 29 c-d). Isso indica que a felicidade
humana, para Sócrates, se inicia com este filosofar, que, para ele, significa examinar a si mesmo
e, progressivamente, abandonar as falsas opiniões que guiam erradamente seus actos. São essas
falsas opiniões que causam a infelicidade e não sofrimento físico ou prazer: como vimos pelo
argumento do Eutidemo, o verdadeiro mal para o ser humano é a ignorância.

E em que consistem essas falsas opiniões? Falsos valores atribuídos às coisas: que a riqueza seja,
em si mesma, boa, que a saúde seja, em si mesma, boa, enfim, que algo exterior tenha valor por
si. Sócrates, ao dizer que a sabedoria é o único bem, está afirmando que o bem do homem reside
no seu próprio âmago e que é ele quem atribui (errada ou acertadamente) valor às coisas, a partir
do seu entendimento do mundo.

A atitude do ignorante, neste contexto pode-se asseverar, é fundamentalmente equivocada diante


da realidade, pois tem falsas opiniões, falsas concepções sobre as coisas, e isso o leva a agir de
uma forma injusta e imoral e, consequentemente, a ser infeliz. Para Sócrates, a felicidade é
progressivamente conquistada por meio do filosofar. Assim, a relação entre virtude e felicidade,
em Sócrates, é uma relação de identidade, pois, por intermédio da virtude, o homem age de modo
bom e belo e, por conseguinte, é feliz, não importando absolutamente qual matéria tem diante de
si sobre a qual exerce a virtude. A posse da virtude traz felicidade, e sua ausência infelicidade.

Assim, importa salientar que todas as acções, devemos seguir tão somente o critério da justiça, já
que viver de modo justo equivale a bem viver. De seguida, apresentamos a passagem da
Apologia que elucida melhor a argumentação:

Sócrates: Manteremos ainda, sim ou não, que devemos conceder o mais alto valor não ao fato de
viver (zen), mas ao fato de viver bem (eu zen)?

Criton: Manteremos isso.

Sócrates: E que viver bem e viver de modo justo (dikaios) e bom (kalos) são a mesma coisa?
Manteremos isso ou não?

Criton: Nós o manteremos (Platão, 1995, 48 b 11- c 2).

Deste modo, a tese segundo a qual, há uma relação identitária entre virtude, justiça e felicidade
encontra o seu fundamento, neste diálogo e em outros.
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Considerações Finais

Findo o trabalho, podemos fazer algumas referências acerca do pensamento ético de Sócrates. De
certo, para que se façam as tais inferências acerca ética Socrática, importa antes dizer que a ética
é um campo estritamente das relações humanas. Daí que é imprescindível fazer alusão da ideia
de homem que Sócrates tinha.

Para Sócrates, o homem era um ser feito de corpo e alma, onde o corpo pertence ao mundo
sensível e a alma ao mundo suprassensível. Esta visão dualista faz com que o pensador grego dê
mais importância o lado imaterial do homem (a alma), que na sua perspectiva era a verdadeira
natureza ou a essência do homem.

Assim, toda acção ética deveria se basear no exercício pleno da actividade da alma que é a
racionalidade. É com base na racionalidade que o homem consegue agir virtuosamente e com
isso atingir a sua auto-realização, ou a felicidade, que em última instância o Telos (fim) do
homem. Portanto, a racionalidade constitui desta forma o fundamento de toda filosofia moral de
Sócrates, concepção esta que acaba sendo designa por “intelectualismo ético”. Com efeito, a
deseja felicidade só pode ser vivida plenamente quando se age com sabedoria que se identifica
com o bem, a virtude e a justiça. Dito em outras palavras, para Sócrates que busca a sabedoria é
quem necessariamente poderá viver de forma virtuosa, justa e finalmente feliz.
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Referências Bibliográficas

BORBA, João (2004) Sócrates e Platão. 10ª Ed.

FERAZ, Carlos Adriano (2014) Ética elementos básicos. Pelotas: Nepfil Online.

HOBUSS, João (2014) Introdução à filosofia antiga. Pelotas: Nepfil Online.

IRWIN, T. (1995) Plato’s Ethics. New York: Garland.

Platão (1972) in “Col. Os Pensadores”. O banquete. Fédon. Sofista. Político. São Paulo: Abril
Cultural.

______ (1991) Lises. Górgias. São Paulo: Martins Fontes.

______(1995) Eutífron. Apologia. Criton. Fédon. Frédon 10ª ed. São Paulo: Martins Fontes.

______ (2005) A república. In Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural.

______ (2006) Protágoras (introd, trad e notas N. Divenosa) São Paulo: Martins Fontes.

STRATHERN, Paul (200) Sócrates em 90 minutos. Rio de Janeiro: Zahar.

VASQUES, Adolfo Sánchez (1990) Ética. 12ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

VLASTOS, G. (1994) Sócrate: Ironie et Philosophie Morale. Paris: Aubier.

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