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Nietzsche
7 0 Título original: Nietzsche
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Gilles Deleuze
Nietzsche
70
A VIDA
O primeiro livro de Zaratustra começa por narrar as três metamorfoses: «Como o espírito se torna camelo,
como o camelo se torna leão e como finalmente o leào se torna criança.» O camelo é o animal que transporta:
transporta o peso cios valores estabelecidos, os tardos da educação, da moral e da cultura. Transporta para o deserto
e, aí, transforma-se em leão: o leão parte as estátuas, calca os tardos, dirige a crítica a todos os valores
estabelecidos. Por fim, pertence ao leào tornar- -se criança, quer dizer, jogo e novo começo, criador de novos
valores e de novos princípios de avaliação.
De acordo, com Nietzsche, estas três metamorfoses significam, entre outras coisas, momentos da sua obra
e também estádios da sua vida e sua saúde. Sem dúvida, os cortes são sempre relativos: o leão está
presente 110 camelo, a criança está presente 110 leão; e na criança há a abertura para a tragédia
.Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 1844, no presbitério de Roecken, numa região da Turíngia ane xada à
Prússia. Do lado da mãe como do pai, a família era de pastores luteranos. O pai, delicado e culto, também pastor,
morre em 1849 (amolecimento cere- foral, encefalite ou apoplexia). Nietzsche foi educado em Naumburg, num
meio feminino, com a sua irmã mais nova, Elisabeth. Ele era a criança prodígio; guardam as suas dissertações, os
seus ensaios de composição musical. Faz os estudos em Pforta, depois em Bona e em Leipzig. Escolhe a filosofia
contra a teologia. Mas já a filosofia o assombra, com a imagem de Schopenhaucr, pensador solitário, «pensador
privado». Os trabalhos filológicos de Nietzsche (Teógnis, Simónides, Diógenes- -Laércio) fazem com que seja
nomeado, em 1869, professor de filologia em Basileia.
Começa a intimidade com Wagner, que cle encontrara em Leipzig e que morava em Tribschen, perto de
Lucerna. Como diz Nietzsche: entre os mais belos dias da minha vida. Wagner tem quase sessenta anos; Cósima,
somente trinta. Cósima é filha de Liszt; por causa de Wagner, ela deixou o músico Hans von Bülow. Os setts
amigos chamam-na, por vezes, de Ariana e sugerem as igualdades Bülow-Teseu, Wagncr-Dioniso. Nietzsche
encontra aqui um esquema afectivo que é já o seu e do qual se apropriará cada vez mais. Estes belos dias não se
passam, contudo, sem problemas: ele tem quer a impressão de que Wagner se serve dele e lhe dá a sua própria
concepção do trágico, quer a deliciosa impressão de que, com a ajuda de Cósima, levará Wagner ate verdades que
este nunca teria descoberto sozinho.
O seu professor tornou-se cidadão suíço. Durante a guerra de 70, é maqueiro. Aí perde os seus últimos «fardos»:
um certo nacionalismo, uma certa simpatia por Bismarck e pela Prússia. Já não pode suportar a identificação da
cultura com o Estado nem acreditar que a vitória das armas seja um sinal para a cultura. O seu desprezo pela
Alemanha aparece já, tal como a sua incapacidade de viver entre os alemães. Em Nietzsche, o abandono das velhas
crenças não forma uma crise (o que provoca a crise ou a ruptura é de preferência a inspiração, a revelação de uma
Ideia nova). Os seus problemas não são o abandono. Não temos razão alguma para suspeitar das suas declarações
de Ecce Homo, quando Nietzsche diz que, já cm matéria religiosa e apesar da hereditariedade, o ateísmo lhe era
natural, instintivo. Mas Nietzsche mergulha na solidão. Em 1871, escreve A Origem da Tragédia, em que o
verdadeiro Nietzsche atravessa as máscaras de Wagner e de Schopenhauer: o livro é mal acolhido pelos filólogos.
Nietzsche experimenta-se como o Intempestivo e descobre a incompatibilidade do pensador privado com o
professor público. Na quarta Consideração Intempestiva, «Wagner em Bayreuth» (1875), as reservas sobre Wagner
tornam-se explícitas. A inauguração de Bayreuth, a atmosfera de quermesse que aí encontra, os discursos, a
presença do velho imperador rcpugnam-lhe. Diante do que lhes parece serem as mudanças de Nietzsche, os seus
amigos surpreendem-se. Nietzsche interessa-se cada vez mais pelas ciências positivas, pela física, pela biologia,
pela medicina. A sua própria saúde desapareceu; vive com as dores de cabeça e de estômago, com as perturbações
oculares, com as dificuldades de fala. Renuncia ao ensino. «A doença libertou-me lentamente: poupou-me toda a
ruptura, toda a diligência violenta e escabrosa... Ela conferia-me o direito de modificar radicalmente os meus
hábitos.» E como Wagner era uma compensação para Nietzsche-professor, o wagneria- nismo caiu com o
professorado.
Graças a Overbeck, o mais fiel e o mais inteligente dos seus amigos, ele obteve uma pensão de Basileia, em
1878. Começa então a vida de viagens: inquieto, locatário de apartamentos modestos, procurando um clima
favorável, vai de paragem em paragem, pela Suíça, pela Itália, pelo Sul de França. Tanto só como com amigos
(Maiwida von Meysenburg, velha wagneriana; Peter Gast, seu antigo aluno, músico com que conta para substituir
Wagner; Paul Rée, de quem se aproxima pelo gosto das ciências naturais e a dissecação da moral). Por vezes, volta
a Naumburg. Em Sorrento, revê Wagner pela última vez, um Wagner tornado nacionalista e piedoso. Em 1878,
inaugura a sua crítica dos valores, a idade do Leão, com Humano, demasiado Humano. Os amigos compreendem-
no mal, Wagner ataca-o. Sobretudo, está cada vez mais doente. «Não poder ler! Só poder ler raramente! Não
frequentar ninguém! Não poder ouvir música!» Em 1880, descreve assim o seu estado: «Um sofrimento contínuo,
todos os dias, durante horas uma sensação muito próxima do enjoo, uma semiparalisia que me torna difícil falar e,
para variar, ataques furiosos (no último, vomitei durante três dias e três noites, tinha sede da morte...). Sc eu
pudesse descrever-vos a continuidade de tudo isto, o sofrimento contínuo atormentando a cabeça, sobre os olhos, e
esta impressão geral de paralisia, da cabeça aos pés.»
Em que sentido a doença - ou até a loucura - está presente na obra de Nietzsche? Ela nunca é fonte de
inspiração. Nietzsche nunca concebeu a filosofia como podendo proceder do sofrimento, do mal-estar ou da
angústia - apesar de o filósofo, o tipo de filósofo segundo Nietzsche, ter um excesso de sofrimento. Mas tampouco
concebe a doença como um acontecimento que afecte de fora um corpo-objecto, um cérebro- -objecto. Na doença,
ele vê de preferência um ponto de vista sobre a saúde; e na saúde um ponto de vista sobre a doença. «Observar
como doente os conceitos mais sãos, os valores mais sãos, depois, inversamente, do alto de uma vida rica,
superabundante e segura de si, mergulhar o olhar no trabalho secreto do instinto de decadência, eis a prática a que
me dediquei muitas vezes...» A doença não é um móbil para o sujeito pensante, mas também não é um objecto para
o pensamento: constitui de preferência uma intersubjectividade secreta no seio de um mesmo indivíduo. A doença
como avaliação da saúde, os momentos de saúde como avaliação da doença: tal é a «inversão», o « deslocamento
das perspectivas», em que Nietzsche vê o essencial do seu método, e da sua vocação para uma transmutação de
valores(l). Ora, apesar das aparências, não há reciprocidade entre os dois pontos de vista, as duas avaliações. l)a
saúde à doença, da doença á saúde, mesmo que fosse apenas na ideia, esta mesma mobilidade é uma saúde
superior, este deslocamento, esta ligeireza no deslocamento é o sinal da «grande saúde». E por isso que Nietzsche
pode dizer até ao fim (quer dizer, cm 1888): sou o contrário de um doente, 110 entanto estou bem 110 fundo. Evita-
remos lembrar que tudo acabou mal. Porque quando Nietzsche se tornou demente, foi precisamente quando perdeu
esta mobilidade, esta arte do deslocamento, ao não poder mais, pela sua saúde, fazer da doença um ponto de vista
sobre a saúde.
Em Nietzsche, tudo é máscara. A sua saúde é uma primeira máscara para o seu génio; os seus sofrimentos, uma
segunda máscara para o seti génio e para a sua saúde, ao mesmo tempo. Nietzsche não acredita na unidade de um
Eu e não o experimenta: relações subtis de poder e de avaliação entre diferentes «eu» que se escondem, mas que
exprimem também forças de outra natureza, forças da vida, forças do pensamento - tal é a concepção de Nietzsche,
a sua maneira de viver. Wagner,
.Schopenhauer e até Paul Rée foram vividos por Nietzsche como as suas
próprias máscaras. Depois de 1890, acontece que alguns amigos
(Overbeck, Gast) pensam que a demência, para ele, é uma última
máscara. Ele escrevera: «E, por vezes, a própria loucura é uma máscara
que esconde um saber fatal e demasiado seguro. > De facto, ela não o é,
mas apenas porque indica o momento em que as máscaras, cessando de
comunicar e de deslocar-se, se confundem numa rigidez de morte. Entre
os maiores momentos da filosofia de Nietzsche, há páginas em que ele
fala da necessidade de nos mascararmos, da virtude e da positividade
das máscaras, da sua instância última. Mãos, orelhas e olhos eram os
encantos de Nietzsche (ele felicita-se pelas suas orelhas, considera as
pequenas orelhas como um segredo labiríntico que conduz a Dioniso).
Mas sobre esta primeira máscara há outra, representada pelo enorme
bigode. «Dá-me, peço-te, dá-me... - C) quê, pois? - Outra máscara, uma
segunda máscara.»
antigo
NIF.TZSGL IF.
A FILOSOFIA (fi)
O Por vezes cita-se o texto intitulado «O Insensato» (A Gaia Ciência, III, 125)
como sendo a primeira grande versão da morte de Deus. De facto, não é assim: O
Viajante e a sua Sombra contém uma admirável narrativa, intitulada «Os
Prisioneiros». Cf. mais adiante o texto n." 19. Este texto tem misteriosas
ressonâncias com Kaflca.
rica nem eterna: deve ser intempestiva, sempre intempestiva.
(,0) Esta distinção entre o último homem e o homem que quer morrer é
fundamental na filosofia de Nietzsche: cf., por exemplo, em Aaratustra, a diferença
enire a predição do adivinho («O Adivinho-, livro II) e o apelo de Zaratustra
(«Prólogo», 4 e 5). Ver os textos 21 carregando os frutos do negativo. Apesar
de o Sim do Burro, I-A, ser um falso sim, como uma caricatura da
afirmação. Agora, tudo muda: a afirmação torna-se a essência ou a
própria vontade de poder; quanto ao negativo, ele subsiste, mas como o
modo de ser daquele que afirma, como a agressividade própria ã
afirmação, como o clarão anunciador e o trovão que se segue ao
afirmado - como a critica total que acompanha a criação. Zaratustra,
deste modo, é a afirmação pura, mas que precisamente leva a negação
ao seu grau supremo, fazendo dela uma acção, uma instância ao serviço
daquele que afirma e que cria( M). O Sim de Zaratustra opõe-se ao Sim do
Burro, como criar se opõe ao carregar. C) Não de Zaratustra opõe-se ao
Não do niilismo, como a agressividade se opõe ao ressentimento. A
transmutação significa inversão das relações afirmação- -negação. Mas
vê-se que a transmutação só é possível à saída do niilismo. Foi preciso ir
até ao último dos homens, depois até ao homem que quer morrer, para
que a negação, voltando-se por fim contra as forças reactivas, se torne
ela própria uma acção e passe ao serviço de uma afirmação superior (e
onde surge a fórmula de Nietzsche: o niilismo vencido, mas vencido por
ele próprio...).
A afirmação é o mais alto poder da vontade. Mas o que é afirmado?
A Terra, a vida... Mas que forma tomam a Terra e a vida quando são
objecto de afirmação? Forma desconhecida por nós, que só habitamos a
superfície desolada da Terra e só vivemos estados vizinhos de zero. O
que o niilismo condena e se esforça por negar não é tanto o Ser, porque
o Ser, sabe-se já há muito tempo, parece-se com o Nada como um
irmão. E de
NIF.TZSGL IF.
***
A) O que é um filósofo?
1. O filósofo mascarado
2. O filósofo crítico
3. O filósofo intempestivo
B) Dioniso filósofo
Ah! Ah!
E tu martirizas-me, louco que és,
tu torturas o meu orgulho?
Dá-me amor. - Quem me aquece ainda?
Quem me ama ainda? -
Dá mãos quentes,
dá corações-candeia,
dá-me, a mim, a mais solitária
do que o gelo, oh! o gelo faz
sete vezes definhar junto dos inimigos,
NIETZSCHE
- Não!
Volta!
com todos os teus suplícios
EXTRACTOS | 6?
DIOXISO
Sê prudente, Ariana!...
Tens orelhas pequenas, tens as minhas orelhas Ouve um
conselho ajuizado! Não será preciso odiarmo-nos primeiro, se
devemos amar-nos?...
Eu sou o teu labirinto...
D) Do niilismo à transmutação
Amo aquele que casdga o seu Deus porque gosta do seu Deus;
porque ele morrerá da cólera do seu Deus.
Amo aquele cuja alma c profunda até nas suas feri- das e que
pode morrer de qualquer incidente fútil; porque é de boa vontade
que ele atravessa a ponte.
Amo aquele cuja alma transborda ao ponto de perder a
consciência de si mesmo e de levar todas as coisas nele; assim é a
totalidade das coisas que causam a sua perda.
Amo aquele que é livre de coração e de espírito; a sua cabeça
serve de entranhas para o seu coração e é o seu coração que o leva
a morrer.
Amo todos aqueles que são parecidos com aquelas pesadas
gotas que caem uma a uma da nuvem negra suspensa em cima dos
homens; eles anunciam que o relâmpago está próximo, morrem
por serem os seus anunciadores.
Aqui está, sou o anunciador do raio, sou uma pesada gota caída
da nuvem; mas este raio é o Super-Homem.
(Assim Falava Zaratustra. «Prólogo», 4, trad.
Geneviève Bianquis, Aubier.)
(licce Homo,
«Assim Falava Zaratustra», 6,
trad. Henri Albert, Mercure de Francc.)
E) O eterno retorno
ameaças. Aquele que não tem a fé não sentirá nele senão uma vida
fugitiva.
(*1881, A Vontade de Poder; IV, 242-244, trad. Geneviève Bianquis,
NRF.)
Ill
Se nunca senti o corpo do espírito criador e desta necessidade
celeste que obriga os próprios acasos a dançar rondas astrais,
se nunca ri como ri o relâmpago criador que segue rabugento
mas dócil a longa tempestade da acção,
EXTRACTOS
31. O Super-Homem
1101
a
ao portador de uma ideia nova, a veneração e o receio dele
próprio, e já não remorsos, e que o empurrasse ser o profeta e o
mártir desta ideia? - Enquanto nos nossos dias nos dão sempre a
entender que o génio possui, em vez de um grão de bom senso, um
grão de loucura, os homens de outrora estavam muito mais perto
da ideia de que onde houvesse loucura havia também um grão de
génio e de sabedoria - qualquer coisa de «divino», como se
murmurava ao ouvido. Ou, de preferência, havia quem se
exprimisse mais nitidamente: -Pela loucura, foram espalhados pela
Grécia os maiores benefícios», dizia Platão com toda a humanida-
de antiga. Avancemos mais um passo: a todos estes homens
superiores levados irresistivelmente a quebrar o jugo de uma moral
qualquer e a proclamar leis novas, não havia outra coisa a fazer,
quando eles não eram verdadeiramente loucos, senão vir a sê-lo
ou a simular a loucura [...].
«Como é que nos tornamos loucos quando não o somos e
quando não temos a coragem de fingir que o SOMOS?» Quase
todos os homens eminentes da antiga civilização se debruçaram
sobre este pavoroso raciocínio; uma doutrina secreta, feita de
artifícios e de indicações dietéticas, conservou-se sobre este
assunto, ao mesmo tempo que o sentimento da inocência e mesmo
da santidade de tal intenção e de tal sonho. As fórmulas para
tornar-se médico, entre os índios, santo entre os cristãos da Idade
Média, «anguecoque» entre os gronelandeses, fmje» entre os
brasileiros, são, nas suas linhas gerais, as mesmas: o jejum
exagerado, a contínua abstinência sexual, a retirada para o deserto
ou para a montanha, ou ainda no alto de uma coluna, ou então
ainda «a estadia num velho salgueiro na margem de um lago» e a
ordem de não pensar noutra coisa senão naquilo a qtie pode levar o
êxtase e a desordem do
1
ÍLARL LÒYVITH, Nietzsches Philosophie der ewigen Wiederkehr
des Gleichen, Estugarda, 1935. ÍARL JASPERS, Nietzsche, Berlim,
1936. 1 UGEN FINK, Nietzsches Philosophie, Estugarda, 1960.
MARTIN HEIDEGGER, Nietzsche, Pfullingen, 1961.
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Sobre a loucura (33-34)................................................. 100
105
BIBLIOGRAFIA BIBLIOTECA BÁSICA DE
FILOSOFIA 16
NIETZSCHE