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Gilles Deleuze

Nietzsche
7 0 Título original: Nietzsche

© Presses Universitaires de France, 1965

Tradução de Alberto Campos

Capa de FBA

Depósito Legal n° 263517/07


Paginação, impressão e acabamento: MANUFI. A. PACHECO para
EDIÇÕES 70, LDA. Agosto 2007

ISBN: 978-972-44-1422-5 ISBN da 1J edição: 972-44-0505-6

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Gilles Deleuze

Nietzsche
70

A VIDA

O primeiro livro de Zaratustra começa por narrar as três metamorfoses: «Como o espírito se torna camelo,
como o camelo se torna leão e como finalmente o leào se torna criança.» O camelo é o animal que transporta:
transporta o peso cios valores estabelecidos, os tardos da educação, da moral e da cultura. Transporta para o deserto
e, aí, transforma-se em leão: o leão parte as estátuas, calca os tardos, dirige a crítica a todos os valores
estabelecidos. Por fim, pertence ao leào tornar- -se criança, quer dizer, jogo e novo começo, criador de novos
valores e de novos princípios de avaliação.
De acordo, com Nietzsche, estas três metamorfoses significam, entre outras coisas, momentos da sua obra
e também estádios da sua vida e sua saúde. Sem dúvida, os cortes são sempre relativos: o leão está
presente 110 camelo, a criança está presente 110 leão; e na criança há a abertura para a tragédia
.Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 1844, no presbitério de Roecken, numa região da Turíngia ane xada à
Prússia. Do lado da mãe como do pai, a família era de pastores luteranos. O pai, delicado e culto, também pastor,
morre em 1849 (amolecimento cere- foral, encefalite ou apoplexia). Nietzsche foi educado em Naumburg, num
meio feminino, com a sua irmã mais nova, Elisabeth. Ele era a criança prodígio; guardam as suas dissertações, os
seus ensaios de composição musical. Faz os estudos em Pforta, depois em Bona e em Leipzig. Escolhe a filosofia
contra a teologia. Mas já a filosofia o assombra, com a imagem de Schopenhaucr, pensador solitário, «pensador
privado». Os trabalhos filológicos de Nietzsche (Teógnis, Simónides, Diógenes- -Laércio) fazem com que seja
nomeado, em 1869, professor de filologia em Basileia.
Começa a intimidade com Wagner, que cle encontrara em Leipzig e que morava em Tribschen, perto de
Lucerna. Como diz Nietzsche: entre os mais belos dias da minha vida. Wagner tem quase sessenta anos; Cósima,
somente trinta. Cósima é filha de Liszt; por causa de Wagner, ela deixou o músico Hans von Bülow. Os setts
amigos chamam-na, por vezes, de Ariana e sugerem as igualdades Bülow-Teseu, Wagncr-Dioniso. Nietzsche
encontra aqui um esquema afectivo que é já o seu e do qual se apropriará cada vez mais. Estes belos dias não se
passam, contudo, sem problemas: ele tem quer a impressão de que Wagner se serve dele e lhe dá a sua própria
concepção do trágico, quer a deliciosa impressão de que, com a ajuda de Cósima, levará Wagner ate verdades que
este nunca teria descoberto sozinho.
O seu professor tornou-se cidadão suíço. Durante a guerra de 70, é maqueiro. Aí perde os seus últimos «fardos»:
um certo nacionalismo, uma certa simpatia por Bismarck e pela Prússia. Já não pode suportar a identificação da
cultura com o Estado nem acreditar que a vitória das armas seja um sinal para a cultura. O seu desprezo pela
Alemanha aparece já, tal como a sua incapacidade de viver entre os alemães. Em Nietzsche, o abandono das velhas
crenças não forma uma crise (o que provoca a crise ou a ruptura é de preferência a inspiração, a revelação de uma
Ideia nova). Os seus problemas não são o abandono. Não temos razão alguma para suspeitar das suas declarações
de Ecce Homo, quando Nietzsche diz que, já cm matéria religiosa e apesar da hereditariedade, o ateísmo lhe era
natural, instintivo. Mas Nietzsche mergulha na solidão. Em 1871, escreve A Origem da Tragédia, em que o
verdadeiro Nietzsche atravessa as máscaras de Wagner e de Schopenhauer: o livro é mal acolhido pelos filólogos.
Nietzsche experimenta-se como o Intempestivo e descobre a incompatibilidade do pensador privado com o
professor público. Na quarta Consideração Intempestiva, «Wagner em Bayreuth» (1875), as reservas sobre Wagner
tornam-se explícitas. A inauguração de Bayreuth, a atmosfera de quermesse que aí encontra, os discursos, a
presença do velho imperador rcpugnam-lhe. Diante do que lhes parece serem as mudanças de Nietzsche, os seus
amigos surpreendem-se. Nietzsche interessa-se cada vez mais pelas ciências positivas, pela física, pela biologia,
pela medicina. A sua própria saúde desapareceu; vive com as dores de cabeça e de estômago, com as perturbações
oculares, com as dificuldades de fala. Renuncia ao ensino. «A doença libertou-me lentamente: poupou-me toda a
ruptura, toda a diligência violenta e escabrosa... Ela conferia-me o direito de modificar radicalmente os meus
hábitos.» E como Wagner era uma compensação para Nietzsche-professor, o wagneria- nismo caiu com o
professorado.

Graças a Overbeck, o mais fiel e o mais inteligente dos seus amigos, ele obteve uma pensão de Basileia, em
1878. Começa então a vida de viagens: inquieto, locatário de apartamentos modestos, procurando um clima
favorável, vai de paragem em paragem, pela Suíça, pela Itália, pelo Sul de França. Tanto só como com amigos
(Maiwida von Meysenburg, velha wagneriana; Peter Gast, seu antigo aluno, músico com que conta para substituir
Wagner; Paul Rée, de quem se aproxima pelo gosto das ciências naturais e a dissecação da moral). Por vezes, volta
a Naumburg. Em Sorrento, revê Wagner pela última vez, um Wagner tornado nacionalista e piedoso. Em 1878,
inaugura a sua crítica dos valores, a idade do Leão, com Humano, demasiado Humano. Os amigos compreendem-
no mal, Wagner ataca-o. Sobretudo, está cada vez mais doente. «Não poder ler! Só poder ler raramente! Não
frequentar ninguém! Não poder ouvir música!» Em 1880, descreve assim o seu estado: «Um sofrimento contínuo,
todos os dias, durante horas uma sensação muito próxima do enjoo, uma semiparalisia que me torna difícil falar e,
para variar, ataques furiosos (no último, vomitei durante três dias e três noites, tinha sede da morte...). Sc eu
pudesse descrever-vos a continuidade de tudo isto, o sofrimento contínuo atormentando a cabeça, sobre os olhos, e
esta impressão geral de paralisia, da cabeça aos pés.»
Em que sentido a doença - ou até a loucura - está presente na obra de Nietzsche? Ela nunca é fonte de
inspiração. Nietzsche nunca concebeu a filosofia como podendo proceder do sofrimento, do mal-estar ou da
angústia - apesar de o filósofo, o tipo de filósofo segundo Nietzsche, ter um excesso de sofrimento. Mas tampouco
concebe a doença como um acontecimento que afecte de fora um corpo-objecto, um cérebro- -objecto. Na doença,
ele vê de preferência um ponto de vista sobre a saúde; e na saúde um ponto de vista sobre a doença. «Observar
como doente os conceitos mais sãos, os valores mais sãos, depois, inversamente, do alto de uma vida rica,
superabundante e segura de si, mergulhar o olhar no trabalho secreto do instinto de decadência, eis a prática a que
me dediquei muitas vezes...» A doença não é um móbil para o sujeito pensante, mas também não é um objecto para
o pensamento: constitui de preferência uma intersubjectividade secreta no seio de um mesmo indivíduo. A doença
como avaliação da saúde, os momentos de saúde como avaliação da doença: tal é a «inversão», o « deslocamento
das perspectivas», em que Nietzsche vê o essencial do seu método, e da sua vocação para uma transmutação de
valores(l). Ora, apesar das aparências, não há reciprocidade entre os dois pontos de vista, as duas avaliações. l)a
saúde à doença, da doença á saúde, mesmo que fosse apenas na ideia, esta mesma mobilidade é uma saúde
superior, este deslocamento, esta ligeireza no deslocamento é o sinal da «grande saúde». E por isso que Nietzsche
pode dizer até ao fim (quer dizer, cm 1888): sou o contrário de um doente, 110 entanto estou bem 110 fundo. Evita-
remos lembrar que tudo acabou mal. Porque quando Nietzsche se tornou demente, foi precisamente quando perdeu
esta mobilidade, esta arte do deslocamento, ao não poder mais, pela sua saúde, fazer da doença um ponto de vista
sobre a saúde.
Em Nietzsche, tudo é máscara. A sua saúde é uma primeira máscara para o seu génio; os seus sofrimentos, uma
segunda máscara para o seti génio e para a sua saúde, ao mesmo tempo. Nietzsche não acredita na unidade de um
Eu e não o experimenta: relações subtis de poder e de avaliação entre diferentes «eu» que se escondem, mas que
exprimem também forças de outra natureza, forças da vida, forças do pensamento - tal é a concepção de Nietzsche,
a sua maneira de viver. Wagner,

( ' ) Ecce Homo, «Porque sou lào sábio», 1


1| NIETZSCHE

.Schopenhauer e até Paul Rée foram vividos por Nietzsche como as suas
próprias máscaras. Depois de 1890, acontece que alguns amigos
(Overbeck, Gast) pensam que a demência, para ele, é uma última
máscara. Ele escrevera: «E, por vezes, a própria loucura é uma máscara
que esconde um saber fatal e demasiado seguro. > De facto, ela não o é,
mas apenas porque indica o momento em que as máscaras, cessando de
comunicar e de deslocar-se, se confundem numa rigidez de morte. Entre
os maiores momentos da filosofia de Nietzsche, há páginas em que ele
fala da necessidade de nos mascararmos, da virtude e da positividade
das máscaras, da sua instância última. Mãos, orelhas e olhos eram os
encantos de Nietzsche (ele felicita-se pelas suas orelhas, considera as
pequenas orelhas como um segredo labiríntico que conduz a Dioniso).
Mas sobre esta primeira máscara há outra, representada pelo enorme
bigode. «Dá-me, peço-te, dá-me... - C) quê, pois? - Outra máscara, uma
segunda máscara.»

Depois de Humano, demasiado Humano (1878), Nietzsche


prosseguiu o seu empreendimento de crítica total: O Viajante e a sua
Sombra (1879), Aurora (1880). Prepara A Gaia Ciência. Mas surge
alguma coisa de novo, uma exaltação, uma superabundância: como se
Nietzsche tivesse sido projectado até ao ponto em que a avaliação muda
de sentido e onde julgamos a doença do alto de uma estranha saúde. Os
seus sofrimentos continuam, mas muitas vezes dominados por um
«entusiasmo» que afecta o próprio corpo. É então que Nietzsche expe-
rimenta os seus mais altos estados, ligados a um sentimento de ameaça.
Em Agosto de 1881, em Sils-Maria, ao bordejar o lago de Silvaplana,
teve a revelação desconcertante do Eterno Retorno. Depois, a inspiração
do Zaralustra. Entre 1883 e 1885, escreve os quatro livros de
Zaratiistra,, acumula notas para uma obra que devia ser a sua
continuação. Leva a crítica a um nível que não possuía antes; faz dela a
arma para uma «transmutação» dos valores, o Não ao serviço de uma
afirmação superior. (Para além do Bem e do Mal, 1886; Genealogia da
Moral, 1887.) - É a terceira metamorfose ou o tornar-se criança.
A VIDA I 2

No entanto, experimenta angústias e vive contrariedades. Em 1882,


houve a aventura com Lou von Salomé. Esta, jovem russa que vivia com
Paul Rée, pareceu a Nietzsche uma discípula ideal e digna de amor.
Seguindo um esquema afectivo que eleja tivera a ocasião de aplicar,
Nietzsche pede-a rapidamente em casamento, por intermédio do amigo.
Nietzsche persegue um sonho: sendo ele próprio Dioniso, receberá
Ariana, com a aprovação de Teseu. Teseu é «o Homem superior», uma
imagem de pai - o que já Wagner fora para Nietzsche. Mas Nietzsche
não ousara pretender claramente Cosima-Ariana. Em Paul Rée,
precedentemente noutros amigos, Nietzsche encontra Teseus, pais mais
jovens, menos impressionantes(2). Dioniso é superior ao Homem
superior, como Nietzsche a Wagner. Por uma razão mais forte, como
Nietzsche a Paul Rée. E fatal, é de esperar que tal fantasma soçobre.
Ariana continua sempre a preferir Teseu. Malwida von Meysenburg
como cobertura, Lou Salomé, Paul Rée e Nietzsche formaram um
estranho quatuor. A sua vida em comum era feita de brigas e
reconciliações. Elisabeth, a irmã de Nietzsche, possessiva e ciumenta,
fez tudo para a ruptura. Obteve-a, já que Nietzsche não conseguia nem
separar-se da irmã nem atenuar a severidade dos
1| NIETZSCHE

(2) já em 1876, Nietzsche pedira uma jovem em casamento, por Hugo


von Sanger, seu amigo — foi Senger que a desposou mais tarde.juízos
que tinha sobre ela («pessoas como a minha irmã são inevitavelmente
adversários irreconciliáveis da minha maneira de pensar e da minha
filosofia, isto está fundado na natureza eterna das coisas...», «as almas
como a tua, minha pobre irmã, não me agradam», «estou
profundamente farto das tuas indecentes conversas moralizadoras»...).
Lou Salomé não gostava de Nietzsche por amor; mais tarde, escreveu
um livro sobre Nietzsche, extremamente belo( 3).
Nietzsche sente-se cada vez mais só. Toma conhecimento da morte
de Wagner, o que reactiva nele a imagem de Ariana-Cosima. Em 1855,
Elisabeth desposa Foerster, wagneriano e anti-semita, nacionalista
prussiano; Foerster irá com Elisabeth para o Paraguai fundar uma
colónia de arianos puros. Nietzsche não assiste ao casamento e suporta
mal este cunhado importuno. A outro racista, escreve: «Queira deixar de
me enviar as suas publicações, tenho receio pela minha paciência.» -
Em Nietzsche, sucedem-se, cada vez mais densas, as alternâncias de
euforia e de depressão. Ora tudo lhe parece excelente: o alfaiate, o que
come, o acolhimento das pessoas, a fascinação que julga exercer nas
lojas. Ora o desespero o domina: a ausência de leitores, uma impressão
de morte, de traição.
Vem o grande ano de 1888: O Crepúsculo dos ídolos, O Caso
Wagner, O Anticristo, Ecce Homo. Tudo se passa como se as faculdades
criadoras de Nietzsche se exacerbassem, ganhassem um último impulso
que precede o afundamento. Até o tom muda, nestas obras de grande
mestria: uma nova violência, um novo humor, como o cómico do Sobre-
Humano. Ao mesmo tempo, Nietzsche constrói de si uma imagem
mundial cósmica provoca-
A VIDA I 1

O Lou Andreas-Salomc, FrédericNietzsche, 1894, trad. fr.. Grassei.dora


(«um dia, a lembrança de qualquer coisa de formidável estará ligada ao
meu nome», «só a partir de mim é que há a grande política na Terra»);
mas também se concentra no momento, preocupa-se com um sucesso
imediato. Desde o fim de 1888, Nietzsche escreve cartas estranhas. A
Strindberg: «Convoquei a Roma uma assembleia de príncipes, quero
mandar fuzilar o jovem Kaiser. Até à vista! Porque nos voltaremos a
ver. Uma só condição: Divorciemo-nos... Nietzsche- -César.» A 3 de
Janeiro de 1889, em Turim, foi a crise. Ainda escreve cartas, assina
Dioniso ou o Crucificado, ou os dois ao mesmo tempo. Para Cósima
Wagner: «Ariana, amo-te. Dioniso.» Overbeck acorre a Turim, encontra
Nietzsche perdido, sobreexcitado. Condu-lo a bem ou a mal para
Basileia, onde Nietzsche se deixa internar calmamente. Diagnostica-se
uma «paralisia progressiva». A mãe leva-o para Iena. Os médicos de
Iena supõem a existência de uma infecção sifilítica, remontando a 1866.
(Trata-se de uma declaração de Nietzsche? Quando jovem, contava ao
seu amigo Deussen uma curiosa aventura, em que um piano o salvara.
Um texto de Zaratustra, «entre as raparigas do deserto», deve ser
considerado deste ponto de vista.) Ora calmo ora em crise, parecendo
ter esquecido toda a sua obra, fazendo música ainda. A mãe leva-o para
casa; Elisabeth voltou do Paraguai no fim de 1890. A evolução da
doença prossegue lentamente até à apatia e à agonia. Morre em Weimar
em 1900 (4).

Sem certeza absoluta, é provável o diagnóstico de paralisia geral. A


questão principal é: os sintomas de

C) Sobre a doença de Nietzsche, cf. o belo livro de E. F. Podach, Leffondrement


de Nietzsche (trad. fr. NRF).
1875, de 1881, de 1888 formam o mesmo quadro clínico? É a mesma
doença? Parece que sim. Pouco imporia que se tratasse de uma
demência cm vez de uma psicose. Vimos em que sentido a doença,
mesmo a loucura, estava presente na obra de Nietzsche. A crise de
paralisia geral marca o momento em que a doença sai da obra, a
interrompe, torna a sua continuação impossível. As cartas finais de
Nietzsche testemunham este momento extremo; também elas pertencem
à obra ainda, fazem parte dela. De tal modo que Nietzsche teve a
capacidade de deslocar as perspectivas, da saúde à doença e
inversamente, fruiu, por mais doente que estivesse, de uma «grande
saúde» que tornava a obra possível. Mas quando lhe faltou esta
capacidade, quando as máscaras se confundiram com a de um palhaço
ou a de um bobo, sob a acção de um processo orgânico ou outro, a
doença confundiu-se, ela mesma, com o fim da obra (Nietzsche falara
da loucura como de uma solução cómica», como de uma última facécia).
Elisabeth ajudou a mãe a tratar de Nietzsche. Deu as suas piedosas
interpretações da doença. lançou censuras azedas contra Overbeck, que
respondeu com muita dignidade. Ela teve grandes méritos: o de tudo
fazer para difundir o pensamento do irmão; organizar o Nietzsche-
Archiv, em Weimar ('). Mas estes méritos esbarram contra a traição
suprema: tentou pôr Nietzsche ao serviço do nacional-socialismo.
Último vestígio da fatalidade de Nietzsche: o parente abusador que
figura no cortejo de cada «pensador maldito».

C) Desde 1950, os manuscritos foram transportados para o igo edifício do


Goethe-Sc:Hiller-Archiv, em Weimar.

antigo
NIF.TZSGL IF.

A FILOSOFIA (fi)

Nietzsche integra na filosofia dois meios de expressão, o aforismo e


o poema. Estas mesmas formas implicam uma nova concepção da
filosofia, uma nova imagem do pensador e do pensamento. Ao ideal do
conhecimento, à descoberta do verdadeiro, Nietzsche substitui a
interpretação e a avaliação. Uma fixa o «sentido», sempre parcial e
fragmentário, de um fenómeno; a outra determina o «valor» hierárquico
dos sentidos e totaliza os fragmentos, sem atenuar nem suprimir a sua
pluralidade. O aforismo, precisamente, e ao mesmo tempo a arte de
interpretar e a coisa a interpretar; o poema e ao mesmo tempo a arte de
avaliar e a coisa a avaliar. O intérprete e o fisiólogo ou o médico, aquele
que considera os fenómenos como sintomas c fala por aforismos. O
avaliador é o artista, que considera e cria «perspectivas», que fala pelo
poema. O filósofo do futuro é artista e médico - numa palavra,
legislador.
Esta imagem do filósofo também é a mais velha, a mais antiga. É a
do pensador pré-socrático, «fisiólogo»

O As notas que se seguem constituem apenas uma introdução aos textos


citados mais adiante.c artista, intérprete e avaliador do mundo. Como
compreender esta intimidade do futuro e do original? O filósofo do
futuro é ao mesmo tempo o explorador dos velhos mundos, cumes e
cavernas, e só cria à força de se lembrar de qualquer coisa que foi
essencialmente esquecida. Esta qualquer coisa, segundo Nietzsche, é a
unidade do pensamento e da vida. Unidade complexa: um passo para a
vida, um passo para o pensamento. Os modos de vida inspiram maneiras
de pensar, os modos de pensar criam maneiras de viver. A vida activa o
pensamento e o pensamento, por seu lado, afirma a vida. Já nem sequer
temos ideia desta unidade pré- -socrática. Só temos exemplos em que o
pensamento contém e mutila a vida, torna-a sensata, e em qtie a vida se
desforra, perturbando o pensamento e perdendo-se com ele. Só temos
escolha entre vidas medíocres e pensadores loucos. Vidas demasiado
sábias para um pensador, pensamentos demasiado loucos para 11111
vivo: Kant e Hôlderlin. Mas a bela unidade continua por encontrar, de
tal forma que a loucura já não seria única - a unidade que faz de uma
anedota da vida 11111 aforismo do pensamento, e de uma avaliação do
pensamento uma nova perspectiva da vida.
Este segredo dos pré-socráticos, de uma certa maneira, já estava
perdido desde a origem. Devemos pensar a filosofia como uma força.
Ora, a lei das forças é que elas não podem aparecer sem se cobrirem
com a máscara das forças preexistentes. A vida deve, primeiro, imitar a
matéria. Foi bem preciso que a força filosófica, no momento em que
nascia na Grécia, se disfarçasse para sobreviver. Foi necessário que o
filósofo adquirisse o porte das forças precedentes, que pusesse a
máscara do sacerdote. O jovem filósofo grego, por vezes, tem qualquer
coisa do velho sacerdote oriental. Ainda hoje nos enganamos sobre isto:
Zoroastro e Heraclito, os hindus c os eleatas, os egípcios e Empédocles,
Pitágoras e os chineses todas as confusões possíveis. Fala-se da virtude
do filósofo ideal, do seu ascetismo, do seu amor pela sabedoria. Não
sabemos adivinhar a solidão e a sensualidade particulares, os fins muito
pouco sábios de uma existência perigosa que se escondem sob esta
máscara. O segredo da filosofia, porque está perdido desde a origem,
continua por descobrir no futuro.
Portanto, era fatal que a filosofia só se desenvolvesse na história
degenerando, voltando-se contra si, deixando-se prender à sua máscara.
Em vez da unidade de uma vida activa e de um pensamento afirmativo,
vemos o pensamento dar-se por tarefa julgar a vida, de lhe opor valores
pretensamente superiores, de a medir com esses valores e de a limitar, a
condenar. Ao mesmo tempo que o pensamento se torna assim negativo,
vemos a vida depreciar-se, deixar de ser activa, reduzir-se às suas
formas mais fracas, a formas doentias só compatíveis com os valores
ditos superiores. Triunfo du «reacção» sobre a vida activa e da negação
sobre o pensamento afirmativo. Para a filosofia, as consequências são
pesadas. Porque as duas virtudes do filósofo legislador eram a crítica de
todos os valores estabelecidos, quer dizer, dos valores superiores à vida
NIF.TZSGL IF.

e do princípio de que eles dependem, c a criação de novos valores,


valores da vida que reclamam um outro princípio. Martelo e
transmutação. Mas ao mesmo tempo que a filosofia degenera, o filósofo
legislador cede o lugar ao filósofo submisso. Em vez de criticar valores
estabelecidos, em vez do criador de novos valores e de novas
avaliações, aparece o conservador dos valores admitidos. O filósofo
deixa de ser fisiólogo ou médico para se tornar metafísico; deixa de ser
poeta, para se tornar «professor público». Considera-se submetido às
exigências da verdade, da razão; mas, sob estas exigências da razão,
reconhecemos muitas vezes forças que não são de forma alguma
racionais: Estados, religiões, valores em curso. A filosofia já não passa
do recenseamento de todas as razões que o homem se dá para obedecei.
O filósofo invoca o amor da verdade, mas esta verdade não faz mal a
ninguém («ela aparece como uma criatura simplória, que gosta do seu
bem-estar, que dá sempre a lodos os poderes estabeleci- dos a certeza de
que não causará nunca a ninguém o menor embaraço porque ela não
passa, apesar de tudo, de ser a ciência pura») ( 7). O filósofo avalia a sua
vida segundo a sua atitude em suportar pesos, em carregar fardos. Estes
fardos, estes pesos são precisamente os valores superiores. Tal é o
espírito de peso que reúne no mesmo deserto o carregador e o
carregado, a vida reactiva e depreciada, o pensamento negativo e
depreciador. Então, apenas temos uma ilusão de crítica e um fantasma
de criação. Porque nada é mais oposto ao criador do que o carregador.
Criar é aligeirar, é descarregar a vida, inventar novas possibilidades de
vida. O criador é legislador-dançarino.
A degenerescência da filosofia aparece claramente com Sócrates. Se
definimos a metafísica pela distinção de dois mundos, pela oposição da
essência e da aparência, do verdadeiro e do falso, do inteligível e do
sensível, é preciso dizer que Sócrates inventou a metafísica: ele faz da
vida qualquer coisa que deve ser julgada, medida, limitada, e do
pensamento, uma medida, um limite, que exerce em nome de valores
superiores - o Divino, o Verdadeiro, o Belo, o Bem... Com Sócrates,
aparece o tipo de um filósofo voluntária e subtilmente submisso. Mas
continuemos, saltemos por cima dos séculos. Quem pode acreditar que
Kant restaurou a crítica ou encon-

(') Cf.Considerações Imutuais, «Schopenhauer educador«, S 3.


irou a ideia de um filósofo legislador? Kant denuncia as falsas
pretensões ao conhecimento, mas não põe em causa o ideal de conhecer;
denuncia a falsa moral, mas não põe em questão as pretensões da
moralidade nem a natureza e a origem dos seus valores. Acusa-nos de
ter misturado domínios, interesses; mas os domínios continuam intactos,
e os interesses da razão, sagrados (o verdadeiro reconhecimento, a
verdadeira moral, a verdadeira religião).
A própria dialéctica prolonga este passe de prestidigitador. A
dialéctica é a arte que nos convida a recuperar propriedades alienadas.
Tudo volta ao Espírito, como motor e produto da dialéctica; ou à
consciência de si; 011 mesmo ao homem como ser genérico. Mas, se as
nossas propriedades exprimem em si uma vida diminuída, e 11111
pensamento mutilante, de que nos serve procurá-las ou tornarmo-nos o
seu verdadeiro sujeito? Suprimiu-se a religião quando se interiorizou o
sacerdote, quando o colocaram dentro do fiel, à maneira da Reforma?
Deus terá sido morto quando colocámos o homem no seu lugar, e
quando guardámos o essencial, quer dizer, o lugar? A única mudança é
esta: em vez de estar sobrecarregado pelo exterior, o homem agarra, ele
próprio, os pesos para os colocar sobre as costas. O filósofo do futuro, o
filósofo-médico, diagnosticará a continuação de um mesmo mal sob
sintomas diferentes: os valores podem mudar, o homem pode colocar-se
no lugar de Deus, o progresso, a felicidade, a utilidade podem substituir
o verdadeiro, o bem ou o divino - o essencial não muda, quer dizer, as
perspectivas ou as avaliações de que dependem esses valores, velhos ou
novos. Convidam-nos sempre a submeter-nos, a sobrecarregar-nos com
um peso, a reconhecer apenas as formas reactivas da vida, as formas
acusatórias do pensamento. Quando já não quisermos, quando já não
pudermos encarregar-nos dos valores superiores, convidam-nos a
assumir «o Real como ele é» mas este Real tal como é, é precisamente o
que os valores superiores fizeram da realidade! (Até o existencialismo
NIF.TZSGL IF.

manteve, nos nossos dias, um gosto assombrosa de carregar, de assumir,


um gosto propriamente dialéctico que o separa de Nietzsche.)
Nietzsche é o primeiro a ensinar-nos que não basta matar Deus para
operar a transmutação dos valores. Na obra de Nietzsche, as versões da
morte de Deus são múltiplas, uma quinzena pelo menos, todas de uma
grande beleza (8). Mas precisamente, segundo uma das mais belas, o
assassino de Deus é «o mais ignóbil dos homens». Nietzsche quer dizer
que o homem se avilta ainda quando, já não tendo necessidade de uma
instancia exterior, se proíbe a si próprio o que lhe proibiam, e se
encarrega espontaneamente de uma vigilância e de fardos que já não lhe
parecem vir do exterior. Assim, a história da filosofia, dos socráticos
aos hegelianos, continua a ser a história das extensas submissões do
homem, e das razões que ele se dá para as legitimar. Este movimento da
degenerescência não afecta apenas a filosofia, mas exprime o devir
mais geral, a categoria mais fundamental da história. Não um facto na
história, mas o próprio princípio de onde derivam a maior parte dos
acontecimentos que determinaram o nosso pensamento e a nossa vida,
sintomas de uma decomposição. Apesar de a verdadeira filosofia, como
filosofia do futuro, já não ser histó-

O Por vezes cita-se o texto intitulado «O Insensato» (A Gaia Ciência, III, 125)
como sendo a primeira grande versão da morte de Deus. De facto, não é assim: O
Viajante e a sua Sombra contém uma admirável narrativa, intitulada «Os
Prisioneiros». Cf. mais adiante o texto n." 19. Este texto tem misteriosas
ressonâncias com Kaflca.
rica nem eterna: deve ser intempestiva, sempre intempestiva.

Toda a interpretação é determinação do sentido de um fenómeno. O


sentido consiste precisamente numa relação de forças, segundo a qual
algumas agem e outras reagem num conjunto complexo e hierarquizado.
Qualquer que seja a complexidade de um fenómeno, distinguimos bem
forças activas, primárias, de conquista e subjugação, e forças reactivas,
secundárias, de adaptação e de regulação. Esta distinção não é só
quantitativa, mas qualitativa e tipológica. Porque a essência da força é
estar em relação com outras forças: e, nesta relação, ela recebe a sua
essência ou qualidade.
A relação da força com a força chama-se «vontade». E por isso,
antes de mais, que é preciso evitar os contra- -sensos sobre o princípio
nietzscheano de vontade de poder. Este princípio não significa (pelo
menos não significa em primeiro lugar) que a vontade queira o poder ou
deseje dominar. Enquanto interpretarmos a vontade de poder 110
sentido de «desejo de dominar», fazêmo-la forçosamente depender de
valores estabelecidos, os únicos capazes de determinar quem deve ser
«reconhecido» como o mais poderoso neste ou naquele caso, neste ou
naquele conflito. Desse modo, ficamos sem conhecer a natureza da
vontade de poder como princípio plástico cle todas as nossas avaliações,
como princípio escondido para a criação de novos valores não
reconhecidos. A vontade de poder, diz Nietzsche, não consiste em
cobiçar nem sequer em tomar, mas em criar e em dar(9). O Poder, como
vontade de poder, não é o que a vontade quer, mas aquilo que quer na
vontade

O Cf texto n.ü 25.


(Dioniso em pessoa). A vontade de poder é o elemento diferencial de
onde derivam as forças em presença e a sua qualidade respectiva num
complexo. Ela também é sempre apresentada como um elemento móvel,
aéreo, pluralista. É por vontade de poder que uma força dirige, mas é
também por vontade de poder que uma força obedece. Aos dois tipos ou
qualidades de forças, correspondem, pois, duas faces, dois qualia da
vontade de poder, caracteres últimos e fluentes, mais profundos do que
os das forças que deles derivam. Porque a vontade de poder faz com que
as forças activas afirmem, e afirmem a sua própria diferença: nelas, a
afirmação está primeiro, a negação não passa de uma consequência,
como um acréscimo de prazer. Mas a característica das forças reactivas,
pelo contrário, está em opor-se primeiro ao que elas não são, em limitar
o outro: nelas a negação está primeiro, é pela negação que atingem uma
aparência de afirmação. Afirmação e negação são, pois, os qualia da
NIF.TZSGL IF.

vontade de poder, como activo e reactivo são qualidades das forças. E


da mesma maneira que a interpretação encontra os princípios do sentido
nas forças, a avaliação encontra os princípios dos valores na vontade de
poder. Por fim, evitaremos, em função das considerações terminológicas
que precedem, reduzir o pensamento de Nietzsche a um simples
dualismo. Porque, como veremos, pertence essencialmente à afirmação
ser ela própria múltipla, pluralista, e à negação ser una, ou pesadamente
monista.
Ora, a história põe-nos em presença do mais estranho fenómeno: as
forças reactivas triunfam, a negação leva a melhor na vontade de poder!
Não se trata apenas da história do homem, mas da história da vida, e da
história da Terra, pelo menos sobre a sua face habitada pelo homem. Em
toda a parte, vemos o triunfo do «nao» sobre o «sim», da reacção sobre
a acção. Mesmo a vida torna-se adaptativa e reguladora, reduz-se às
suas for mas secundárias: já nem sequer compreendemos o que significa
agir. Mesmo as forças da Terra se esgotam, sobre esta face desolada. A
vitória comum das forças reactivas e da vontade de negar, Nietzsche
chama-lhe «niilismo» - ou triunfo dos escravos. A análise do niilismo e
objecto da psicologia, segundo Nietzsche, entendendo que esta
psicologia é também a do cosmos.
Para uma filosofia da força ou da vontade, parece difícil explicar
como é que as forças reactivas, como é que os «escravos», os «fracos»
levam a melhor. Porque, se todos em conjunto formam uma força maior
que a dos fortes, não vemos muito bem o que mudou, e sobre que se
funda uma avaliação qualitativa. Mas, na verdade, os fracos, os escravos
não triunfam por adição das suas forças, mas por subtracção da força do
outro: separam o forte daquilo que ele pode. Eles triunfam, não pela
composição do seu poder, mas pelo poder do seu contágio. Acarretam
um devir-reactivo de todas as f orças. E isso a «degenerescência».
Nietzsche mostra já que os critérios da luta pela vida, da selecção
natural, favorecem necessariamente os fracos e os doentes enquanto
tais, os «secundários» (chama-se doente a uma vida reduzida aos seus
processos reactivos). Por maior razão, no caso do homem, os critérios
da história favorecem os escravos enquanto tais. E um devir-doentio de
toda a vida, um devir-escravo de todos os homens qtie constituem a
vitória do niilismo. Assim evitaremos também contra-sensos sobre os
termos nietzscheanos «forte» e « fraco», «mestre» e «escravo»: é
evidente que o escravo não deixa de ser escravo ao tomar o poder nem o
fraco, um fraco. As forças reactivas, ao levarem a melhor, não deixam
de ser reactivas. Porque, em todas as coisas, segundo Nietzsche, trata-se
de uma tipologia qualitativa, trata-se de baixeza c de nobreza. Os nossos
senhores são escravos que triunfam num devir-escravo universal: o
homem europeu, o homem domesticado, o bobo... Nietzsche descreve
os Estados modernos como formigueiros, em qtie os chefes e os
poderosos levam a melhor devido à sua baixeza, ao contágio desta
baixeza e desta truanice. Qualquer que seja a complexidade de
Nietzsche, o leitor adivinha facilmente em que categoria (quer dizer, em
que tipo) ele teria colocado a raça dos «senhores» concebidos pelos
nazis. Quando o niilismo triunfa, então e só então a vontade de poder
deixa de querer dizer «criar», mas significa: querer o poder, desejar
dominar (portanto, atribuir-se ou fazer com que lhe atribuam os valores
estabelecidos, dinheiro, honras, poder...). Ora, esta vontade deste poder
é precisamente a do escravo, e a maneira como o escravo ou o
impotente concebe o poder, a ideia que dele faz, e que ele aplica
quando triunfa. Acontece que um doente pode dizer: ah! se eu estivesse
bom, faria isto - e talvez o fizesse mas os seus projectos e as suas
concepções são ainda as de um doente, e nada mais que as de um
doente. Passa-se o mesmo com o escravo e com a sua concepção do
domínio ou do poder. Passa-se o mesmo com o homem reactivo e com a
sua concepção de acção. Por toda a parte, é a inversão dos valores e das
avaliações, por toda a parte são as coisas vistas do lado pequeno, as
imagens invertidas como numa clarabóia. Uma das grandes frases de
Nietzsche é: «Temos sempre de defender os fortes contra os fracos.»
Precisemos, no caso do homem, as etapas do triunfo do niilismo.
Estas etapas formam as grandes descobertas da psicologia nietzscheana,
as categorias de uma tipologia das profundidades:
NIF.TZSGL IF.

1.° O ressentimento: é o teu erro, é o teu erro... Acusação e


recriminação projectivas. É por tua causa que sou fraco c infeliz. A vida
reactiva subtrai-se às forças activas, a reacção deixa de ser «agida». A
reacção torna-se qualquer coisa de sentida, «ressentimento», que se
exerce contra tudo o que é activo. Enche-se a acção de «vergonha»: a
própria vida é acusada, separada do seu poder, separada do que pode. O
cordeiro diz: eu poderia fazer tudo o que a águia faz, tenho mérito em
impedir-me que a águia faça como eu...
2. ° A má consciência: é o meu erro... Momento da
introjecção. Tendo tomado a vida como um engodo, as forças reactivas
podem voltar a ser elas mesmas. Interiorizam a falta, dizem-se culpadas,
viram-se contra si mesmas. Mas, assim, elas dão o exemplo, fazem com
que a vida inteira venha juntar-se a elas, adquirem o máximo de poder
contagioso - formam comunidades reactivas.
3. ° O ideal ascético: momento da sublimação. O que a vida
fraca ou reactiva vale é afinal a negação da vida. A sua vontade de poder
é vontade de nada, como condição do seu triunfo. Inversamente, a
vontade de nada só tolera a vida fraca, mutilada, reactiva: estados
vizinhos de zero. Então, estabelece-se a inquietante aliança. Jul- gar-se-á
a vicia de acordo com os valores ditos superiores à vida: estes valores
piedosos opõem-se à vida, condenam-na, conduzem-na ao nada; só
prometem a salvação às formas mais reactivas, às mais fracas e às mais
doentes da vida. Esta é a aliança do Deus-Nada e do Homem- -Reactivo.
Tudo está invertido: os escravos chamam-se senhores, os fracos
chamam-se fortes, a baixeza chama- -se nobreza. Diz-se que alguém é
forte e nobre porque ele carrega: carrega o peso dos valores
«superiores», sente-se responsável. Mesmo a vida, sobretudo a vida,
parece-lhe difícil de suportar. As avaliações estão de tal modo
deformadas que já não sabemos ver que o carregador é um escravo, que
o que ele carrega é uma escravatura, que o carregador é um carregador-
fraco - o contrário de um criador, de um dançarino. Porque, na verdade,
só carregamos ã força de fraqueza, só nos fazemos carregar à vontade de
nada (cf. o Bobo de Zaratustra; e o personagem do Burro).
As etapas precedentes do niilismo correspondem, segundo Nietzsche,
à religião judaica, depois à cristã. Mas esta foi preparada pela filosofia
grega, quer dizer, pela degenerescência da filosofia na Grécia. Mais
genericamente, Nietzsche mostra como estas etapas também são a
génese das grandes categorias do pensamento: o Eu, o Mundo, Deus, a
causalidade, a finalidade, etc. Mas o niilismo não pára aí e prossegue
um caminho que faz toda a nossa história.
4.° A morte de Deus: momento da recuperação. Durante muito
tempo, a morte de Deus aparece-nos como um drama intra-religioso,
como um assunto entre o Deus judeu e o Deus cristão. Ao ponto de nós
já não sabermos muito bem se é o Filho que morre, por ressentimento
do Pai, ou se é o Pai que morre, para que o Filho seja independente (e se
torne «cosmopolita»). Mas já S. Paulo funda o cristianismo baseado na
ideia de que Cristo morreu pelos nossos pecados. Com a Reforma, a
morte de Deus torna-se cada vez mais um assunto entre Deus e o
homem. Até ao dia em que o homem se descobre como o assassino de
Deus, quer assumir-se como tal e carregar este novo peso. Quer a
consequência lógica desta morte: tomar-se ele próprio Deus, substituir
Deus.
A ideia de Nietzsche é que a morte de Deus é um grande
acontecimento barulhento, mas não suficiente. Porque o «niilismo»
continua, a custo muda de forma. O niilismo significava até há pouco:
depreciação, negação da rida em nome dos valores superiores. E agora:
negação dos valores superiores, substituição dos valores humanos
demasiado humanos (a moral substitui a religião; a utilidade, o
progresso, a própria história substituem os valores divinos). Nada
mudou, porque é a mesma vida reactiva, a mesma escravatura, que
triunfava à sombra dos valores divinos e que triunfa agora pelos valores
humanos. É o mesmo carregador, o mesmo Burro, que estava carregado
com o peso das relíquias divinas, pelas quais respondia diante de Deus,
e que agora se carrega sozinho, em auto-responsabilidade. Até se deu
mais um passo no deserto do niilismo: pretende-se abarcar toda a
Realidade, mas só se abarca aquilo que os valores superiores deixaram,
o resíduo das forças reactivas e da vontade de nada. É por isso que
NIF.TZSGL IF.

Nietzsche, no livro IV de Zaratustra, traça a grande miséria dos que ele


chama «Homens superiores». Estes querem substituir Deus, levam
consigo os valores humanos, julgam mesmo encontrar a Realidade,
recuperar o sentido da afirmação. Mas a única afirmação de que são
capazes é apenas o «Sim» do Burro, I-A, a força reactiva que se carrega
a si mesma com os produtos do niilismo e que julga dizer sim de cada
vez que leva um não. (Duas obras modernas são profundas meditações
sobre o Sim e o Não, sobre a sua autenticidade ou a sua mistificação:
Nietzsche ejoyce.)
5.° O último homem e o homem que quer mor rer: momento do fim.
A morte de Deus é, pois, um acontecimento, mas que ainda espera o seu
sentido e o seu valor. Enquanto não mudarmos de princípio de
avaliação, enquanto substituirmos os velhos valores por novos, apenas
assinalando novas combinações entre as forças reactivas e a vontade de
nada, nada mudou, continuamos sempre sob o reino dos valores
estabelecidos. Bem sabemos que há valores que nascem velhos e que,
desde o seu nascimento, testemunham a sua conformidade, o seu
conformismo, a sua inaptidão para perturbar a ordem estabelecida. E, no
entanto, a cada passo, o niilismo avança mais, a inanidade revela-se
melhor. Porque o que aparece na morte de Deus é que a aliança das
forças reactivas e da vontade de nada, do Homem reactivo e do Deus
niilista, está em vias de se romper: o homem pretendeu passar sem
Deus, valer por Deus. Os conceitos nietzscheanos são categorias do
inconsciente. O importante c a maneira como o drama prossegue no
inconsciente: quando as forças reactivas pretendem passar sem a
«vontade», rolam mais e mais profundamente no abismo do nada, num
mundo cada vez mais desprovido de valores, divinos ou mesmo
humanos. À saída dos Homens superiores, surge o último homem,
aquele que diz: tudo é vão, é preferível extinguirnio-nos passivamente!
E preferível um nada de vontade do que uma vontade de nada! Mas, a
favor desta ruptura, a vontade de nada, por seu turno, volta-se contra as
forças reactivas, torna-se a vontade de negar a própria vida reactiva e
inspira ao homem o desejo de se destruir activamente. Para além do
último homem existe, pois, ainda o homem que quer morrer. E neste
ponto de culminação do niilismo (Meia-Noite), está tudo pronto - pronto
para uma transmutação(,0).

A transmutação de todos os valores define-se assim: um devir activo


das forças, um triunfo da afirmação na vontade de podei: Sob o reino
do niilismo, o negativo é a forma c o fundo da vontade de poder; a
afirmação é apenas segunda, subordinada à negação, recolhendo e

(,0) Esta distinção entre o último homem e o homem que quer morrer é
fundamental na filosofia de Nietzsche: cf., por exemplo, em Aaratustra, a diferença
enire a predição do adivinho («O Adivinho-, livro II) e o apelo de Zaratustra
(«Prólogo», 4 e 5). Ver os textos 21 carregando os frutos do negativo. Apesar
de o Sim do Burro, I-A, ser um falso sim, como uma caricatura da
afirmação. Agora, tudo muda: a afirmação torna-se a essência ou a
própria vontade de poder; quanto ao negativo, ele subsiste, mas como o
modo de ser daquele que afirma, como a agressividade própria ã
afirmação, como o clarão anunciador e o trovão que se segue ao
afirmado - como a critica total que acompanha a criação. Zaratustra,
deste modo, é a afirmação pura, mas que precisamente leva a negação
ao seu grau supremo, fazendo dela uma acção, uma instância ao serviço
daquele que afirma e que cria( M). O Sim de Zaratustra opõe-se ao Sim do
Burro, como criar se opõe ao carregar. C) Não de Zaratustra opõe-se ao
Não do niilismo, como a agressividade se opõe ao ressentimento. A
transmutação significa inversão das relações afirmação- -negação. Mas
vê-se que a transmutação só é possível à saída do niilismo. Foi preciso ir
até ao último dos homens, depois até ao homem que quer morrer, para
que a negação, voltando-se por fim contra as forças reactivas, se torne
ela própria uma acção e passe ao serviço de uma afirmação superior (e
onde surge a fórmula de Nietzsche: o niilismo vencido, mas vencido por
ele próprio...).
A afirmação é o mais alto poder da vontade. Mas o que é afirmado?
A Terra, a vida... Mas que forma tomam a Terra e a vida quando são
objecto de afirmação? Forma desconhecida por nós, que só habitamos a
superfície desolada da Terra e só vivemos estados vizinhos de zero. O
que o niilismo condena e se esforça por negar não é tanto o Ser, porque
o Ser, sabe-se já há muito tempo, parece-se com o Nada como um
irmão. E de
NIF.TZSGL IF.

(") Cf. texto n.° 24.


preferência o múltiplo, é de preferência o devir. O niilismo considera o
devir como qualquer coisa que deve expiar e que deve ser reabsorvido
no Ser; o múltiplo como qualquer coisa de injusto, que deve ser julgado
e reabsorvido no Uno. O devir e o múltiplo são culpáveis, tal c a
primeira palavra, e a última, do niilismo. Assim, sob o reino do
niilismo, a filosofia tem como móbiles sentimentos negros: um
«descontentamento», uma angústia desconhecida, uma inquietude de
viver - um obscuro sentido de culpabilidade. Pelo contrário, a primeira
figura da transmutação eleva o múltiplo e o devir ao mais alto poder:
fazem dele um objecto de uma afirmação. E, na afirmação do múltiplo,
há a alegria prática do diverso. A alegria surge como o único móbil para
filosofar. A valorização dos sentimentos negativos ou das paixões tristes
é a mistificação na qual o niilismo funda o seu poder. (Já Lucrécio e
Espinosa escreveram páginas definitivas a este respeito. Antes de
Nietzsche, eles concebem a filosofia como o poder de afirmar, como a
luta prática contra as mistificações, como a expulsão do negativo.)
O múltiplo é afirmado enquanto múltiplo, o devir é afirmado
enquanto devir. É dizer ao mesmo tempo que a afirmação é, ela mesma,
múltipla, que se torna ela mesma; e que o devir e o múltiplo são eles
mesmos afirmações. Há como que um jogo de espelhos na afirmação
bem compreendida. «Eterna afirmação... eternamente eu sou a tua
afirmação!» A segunda figura da transmutação é a afirmação da
afirmação, o desdobramento, a dupla divina Dioniso-Ariana.
Dioniso deixa-se reconhecer em todas as características precedentes.
Estamos longe do primeiro Dioniso,

(12) Cf. texto n.° 9.


aquele que Nietzsche concebia sob a influência de Schopenhauer,
como reabsorvendo a vida num Fundo original, como aliando-se a
Apolo para produzir a tragédia. E verdade que, desde A Origem da
Tragédia, Dioniso era definido pela sua oposição a Sócrates, mais
ainda do que pela sua aliança com Apolo: Sócrates julgava e
condenava a vida em nome dos valores superiores, mas Dioniso
pressentia que a vida não tem que ser julgada, que ela é bastante
justa, suficientemente santa por si mesma. Ora, à medida que
Nietzsche avança na sua obra, a verdadeira oposição aparece-lhe:
já nem sequer Dioniso contra Sócrates, mas Dioniso contra o
crucificado. O seu mártir parece comum, mas a interpretação, a
avaliação destes mártires diferem: de um lado, o testemunho
contra a vida, o empreendimento de vingança que consiste em
negar a vida; do outro lado, a afirmação da vida, a afirmação do
devir e do múltiplo, até na laceração e nos membros dispersos de
Dioniso (12). Dança, ligeireza, riso são as propriedades de Dioniso.
Como poder de afirmação, Dioniso evoca um espelho no seu
espelho, um anel no seu anel: é preciso uma segunda afirmação
para que a afirmação seja ela própria afirmada. Dioniso tem uma
noiva, Ariana («Tens orelhas pequenas, tens as minhas orelhas: põe
aí uma sentença ajuizada»). A única palavra ajuizada é Sim. Ariana
culmina o conjunto das relações que definem Dioniso e o filósofo
dionisíaco
.O múltiplo já não é justificável do Uno nem o devir, do Ser. Mas o
Ser e o Uno fazem melhor do que perder o seu sentido; tomam um novo
sentido. Porque, agora, o Uno diz-se do múltiplo enquanto múltiplo
(pedaços ou fragmentos); o Ser diz-se do devir enquanto devir. Tal é a
inversão nietzscheana, oti a terceira figura da transmutação. Já não se
opõe o devir ao Ser, o múltiplo ao Uno (estas mesmas oposições sendo
as categorias do niilismo). Pelo contrário, afirma-se o Uno do múltiplo,
o Ser do devir. Ou então, como diz Nietzsche, afirma-se a necessidade
do acaso. Dioniso é jogador. O verdadeiro jogador faz do acaso um
objecto de afirmação: afirma os fragmentos, os membros do acaso;
desta afirmação nasce o número necessário, que reconduz o lançamento
dos dados. Vemos qual é a terceira figura: o jogo do eterno Retorno.
Retornar é precisamente o ser do devir, o uno do múltiplo, a necessidade
do acaso. Assim é preciso evitar fazer do eterno Retorno 11111 retorno
do Mesmo. Isto seria desconhecer a forma da transmutação e a mudança
11a relação fundamental. Porque o Mesmo não preexiste ao diverso
(salvo na categoria do niilismo). .Vão é o .Mesmo que volta, já que o
voltar é a forma original do Mesmo, que apenas se diz do diverso, do
NIF.TZSGL IF.

múltiplo, do devir. O Mesmo não volta, é o voltar apenas que é o


Mesmo daquilo que devêm.
Trata-se aí da essência do eterno Retorno. Esta questão do eterno
Retorno deve ser desembaraçada de todas as espécies de temas
inúteis 011 falsos. Por vezes, perguntamos como Nietzsche pôde
crer que um pensamento assim era novo e prodigioso, que, 110
entanto, parece ser frequente nos antigos: mas, precisamente,
Nietzsche sabia bem que ele não se encontra nos antigos, nem na
Grécia nem 110 Oriente, a não ser de uma maneira parcelar e
incerta, num sentido completamente diferente do sentido
nietzscheano. Nietzsche já fazia as mais expressas reservas sobre
Heraclito. E que ele ponha o eterno Retorno na boca de Zaratustra,
como uma serpente no gasganete, apenas significa que dá ao
personagem antigo de Zoroastro aquilo que este era o menos capaz
de conceber. Nietzsche explica que toma o personagem de
Zaratustra como um eufemismo ou, melhor, como uma antífrase e
uma metonímia, dando-lhe v
A FILOSOFIA

oUnitariamente o benefício de conceitos novos que ele não


podia formar (ls).
Também nos perguntamos sobre o que há de espantoso no
eterno Retorno, se ele consiste num ciclo, quer dizer, num
retorno do Todo, num retorno do Mesmo, num retorno ao
Mesmo: mas, precisamente, não se trata disso. O segredo de
Nietzsche é que o eterno Retorno é selectivo. E duplamente
selectivo. Primeiro, como pensamento. Porque nos dá uma lei
para a autonomia da vontade desgarrada de toda a moral: o que
quer que eu queira (a minha preguiça, a minha gulodice, a minha
covardia, o meu vício como a minha virtude), «devo» querê-lo
de tal maneira que lhe queira o eterno Retorno. Encontra-se
eliminado o mundo dos «semi- -quereres», tudo o que queremos
com a condição de dizer: uma vez, nada senão uma vez. Mesmo
uma covardia, uma preguiça que quisesse o seu eterno Retorno
tornar- -se-ia outra coisa diferente de uma preguiça, de uma
covardia: tornar-se-iam activas e potências de afirmação.
E o eterno Retorno não é só o pensamento selectivo, mas
também o Ser selectivo. Só volta a afirmação, só volta aquilo
que pode ser afirmado, só a alegria volta. Tudo o que pode ser
negado, tudo o que é negação é expulso pelo próprio movimento
do eterno Retorno.

(IS) Cf. Ecce Homo, «Porque sou uma fatalidade-, § 3. No limite, é


muito duvidoso que a ideia do eterno Retorno tenha alguma vez sido
sustentada no mundo antigo. O pensamento grego no seu conjunto é muito
reticente: cf. o livro de Charles Mugler. Deux thèmes (le tu cosmologie
grecque: devenir cyclique et pluralité des mondes (Klincksieck, 1953). F.,
segundo os especialistas, passa-se o mesmo com o pensamento chinês, ou
indiano, ou iraniano ou babilónico. A oposição de um tempo circular nos
antigos e de um tempo histórico nos modernos é uma ideia fácil e inexacta.
Em todos os aspectos podemos, com o próprio Nietzsche, considerar o
eterno Retorno como uma descoberta nietzsc heana. apenas tendo
premissas antigas.
Poderíamos recear que as combinações do niilismo e da reacção
não voltassem eternamente. O eterno Retorno deve ser
comparado com uma roda; mas o movimento de uma roda é
NIETZSCHE

dotado de um poder centrífugo, que expulsa todo o negativo.


Porque o Ser se afirma do devir, ele expulsa de si tudo o que
contradiz a afirmação, todas as formas do niilismo e da reacção:
má consciência, ressentimento..., só os veremos uma vez.
No entanto, em muitos textos, Nietzsche considera o eterno
Retorno como um ciclo onde tudo volta, onde o Mesmo volta; e
que volta ao mesmo. Mas o que significam estes textos?
Nietzsche é um pensador que «dramatiza» as Ideias, quer dizer,
apresenta-as como acontecimentos sucessivos, a diversos níveis
de tensão. Já o vimos para a morte de Deus. Da mesma maneira,
o eterno Retorno é objecto de duas exposições (e haveria mais se
a obra não tivesse sido interrompida pela loucura, impedindo
uma progressão que o próprio Nietzsche concebera explicita-
mente). Ora, destas duas exposições que nos ficaram, uma é
respeitante a Zaratustra doente, a outra, Zaratustra convalescente
e quase curado. O que faz com que Zaratustra esteja doente é
precisamente a ideia do ciclo: a ideia que Tudo volte, que o
Mesmo volte, e que tudo volte ao mesmo. Porque, neste caso, o
eterno Retorno não passa de uma hipótese, uma hipótese ao
mesmo tempo banal e aterrorizadora. Banal, porque equivale a
uma certeza natural, animal, imediata (é por isso que Zaratustra,
quando a águia e a serpente se esforçam por consolá-lo, lhes
responde: vocês fizeram do eterno Retorno uma «omissão»,
reduziram o eterno Retorno a uma fórmula bem conhecida,
demasiado conhecida) (14). Aterrorizadora também, porque, se é
verdade que tudo volta, e volta ao mesmo, então o homem
pequeno e mesquinho, o niilismo e a reacção voltarão também (é
por isso que Zaratustra clama o seu grande desgosto, o seu
grande desprezo, e declara que não pode, que não quer, que não
ousa dizer o eterno Retorno) (15).
O que se passou quando Zaratustra estava convalescente?
Apenas resolveu suportar o que não suportava há momentos?
Aceita o eterno Retorno, apreende a sua alegria. Trata-se apenas
14(H) Cf. Assim falava Zaratustra, III, «O convalescente», § 2.
15(15) Cf. texto n.° 27.
A FILOSOFIA

de uma mudança psicológica? Evidentemente que não. Trata-se


de uma mudança na compreensão e na significação do próprio
eterno Retorno. Zaratustra reconhece que, doente, ele não
compreendera nada sobre o eterno Retorno. Que este não é um
ciclo, que não é retorno do Mesmo nem retorno ao mesmo. Que
não é uma evidência natural plana, para uso dos animais, nem
um triste castigo moral, para uso dos homens. Zaratustra
compreende a identidade «eterno Retorno = Ser selectivo».
Como é que aquilo que é reactivo e niilista, como é que o
negativo poderia voltar, já que o eterno Retorno é o ser que se
diz apenas da afirmação, do devir em acção? Roda centrífuga,
«constelação suprema do Ser, que nenhum voto atinge, que
nenhuma negação mancha». O eterno Retorno é a Repetição;
mas é a Repetição que selecciona, a Repetição que salva.
Segredo prodigioso de uma repetição libertadora e
seleccionante.
A transmutação tem, pois, um quarto e último aspecto:
implica e produz o super-homem. Porque, na sua essência
humana, o homem é um ser reactivo, combinando as suas forças
com o niilismo. O eterno Retorno rejeita-o e expulsa-o. A
transmutação é respeitante a uma conversão radical de essência,
que se produz no homem, mas que produz o super-homem. O
super- -homem designa exactamente o recolhimento de tudo o
que pode ser afirmado, a forma superior do que é, o tipo que
representa o Ser selectivo, o botão e a subjectividade deste ser.
Assim, ele está 110 cruzamento de duas genealogias. Por um
lado, é produzido no homem, por intermédio do último dos
homens e do homem que quer morrer, mas para além deles,
como uma dilaceração e uma transformação da essência hu-
mana. Mas, por outro, produzido no homem, não é produzido
pelo homem: é o fruto de Dioniso e de Ariana. O próprio
Zaratustra segue a primeira linha genealógica; portanto,
continua a ser inferior a Dioniso, é o seu profeta 011 anunciador.
Zaratustra chama ao super-homem seu filho, mas ele é
NIETZSCHE

ultrapassado pelo seu filho, cujo verdadeiro pai é Dioniso( 16).


Assim culminam as figuras da transmutação: Dioniso ou a
afirmação; Dioniso-Ariana ou a afirmação desdobrada; o eterno
Retorno ou a afirmação redobrada; o super-homem ou o tipo e o
produto da afirmação.

16("') Cf. texto n." 11.


Nós, leitores de Nietzsche, devemos
evitar quatro contra-sensos possíveis:
1.° sobre a vontade de poder (crer que
a vontade de poder significa «desejo
de dominar» ou «querer o poder»); 2.°
sobre os fortes e os fracos (crer que os
mais «poderosos», num regime social,
são, por isso, «fortes»); 3.° sobre o
eterno Retorno (crer que se Irala de
uma velha ideia, retirada dos gregos,
dos hindus, dos babilónicos...; crer que
se trata de um ciclo, ou de um retorno
do Mesmo, de um retorno ao mesmo);
4.° sobre as últimas obras (crer que
estas obras são excessivas ou já
desqualificadas pela
loucura).DICIONÁRIO DAS
PRINCIPAIS PERSONAGENS DE
NIETZSCHE

Águia (e Serpente) - São os animais de Zaratustra. A


serpente está enrolada em torno do pescoço da águia. Ambos
exprimem, pois, o eterno Retorno como Aliança, como anel no
anel, como esponsais do casal divino Dioniso-Ariana. Mas
exprimem-no de maneira animal, como uma certeza imediata ou
uma evidência natural. (A essência do eterno Retorno escapa-
lhes, quer dizer, o seu carácter selectivo, tanto do ponto de vista
do pensamento como do Ser.) Por isso, fazem do eterno Retorno
NIETZSCHE

uma «tagarelice», uma «omissão». E ainda mais: a serpente


desenrolada exprime o que há de insuportável e de impossível
no eterno Retorno, enquanto o tomarmos como uma certeza
natural segundo a qual «tudo volta».

Burro (ou Camelo) - São os animais do deserto (niilismo).


Carregam, carregam com fardos até ao fim do deserto. O Burro
tem dois defeitos: o seu Não é um falso não, um «não» do
ressentimento. E ainda mais, o seu Sim (I-A, I-A) é um falso
sim. Julga que afirmar significa carregar, assumir. O Burro é, em
primeiro lugar, o animal cristão: carrega com o peso dos valores
ditos «superiores à vida». Depois da morte de Deus, carrega-se a
si mesmo, carrega com o peso dos valores «humanos», pretende
assumir «o real como ele é»: por conseguinte, ele é o novo deus
dos «homens superiores». De uma ponta à outra, o Burro é a
caricatura e a traição do Sim dionisíaco; afirma, mas só afirma
os produtos do niilismo. As suas longas orelhas opõem-se, pois,
às orelhas pequenas, redondas e labirínticas de Dioniso e de
Ariana.

Aranha (ou Tarântula) - É o espírito de vingança ou de


ressentimento. O seu poder de contágio é o seu veneno. A sua
vontade é uma vontade de punir e de julgar. A sua arma é o fio, o
fio da moral. A sua pregação é a igualdade (que toda a gente se
torne semelhante a si mesma!).

Ariana (e Teseu)- É a Anima. Ela foi amada por Teseu e


amou-o. Mas então, precisamente, ela segurava o fio, era um
pouco Aranha, Iria criatura do ressentimento. Teseu é o Herói,
uma imagem do Homem superior. Possui todas as inferioridades
do «Homem superior»: carregar, assumir, não saber renunciar,
ignorar a ligeireza. Enquanto Ariana ama Teseu, e é amada por
ele, a sua feminidade continua aprisionada, ligada pelo fio. Mas
quando Dioniso-Touro se aproxima, ela aprende qual é a
verdadeira afirmação, a verdadeira ligeireza. Torna-se a Anima
afirmativa, que diz Sim a Dioniso. Ambos constituem o casal
DICIONÁRIO DOS PRINCIPAIS PERSONAGENS... |7

que constitui o eterno Retorno e engendram o Super-Homem.


Porque: «quando o herói abandonou a alma, só então se
aproxima, em sonhos, o super-herói».

Iiobo (Macaco,, Anão ou Demónio) - É a caricatura de


Zaratustra. Imita-o, mas como a lentidão imita a ligeireza. Ele
também representa o maior perigo cie Zaratustra: a traição da
doutrina. O bobo despreza, mas o seu desprezo vem do
ressentimento. Ele é o espírito da lentidão. Como Zaratustra,
pretende ultrapassar, superar. Mas superar significa para ele: ou
fazer-se carregai (subir para os ombros do homem, e do próprio
Zaratustra); ou, então, saltar por cima. São os dois contra-sensos
possíveis sobre o «Super-Homem».Cristo (São Paulo e Ruda) -
1.° Ele representa um momento essencial do niilismo: o da má
consciência, depois do ressentimento judaico. Mas é sempre a
mesma empresa de vingança e de inimizade contra a vida;
porque o amor cristão valoriza apenas os aspectos doentes e
desolados da vida. Com a sua morte, Cristo parece tornar-se
independente do Deus judeu: torna-se universal e «cosmopolita».
Mas encontrou apenas um novo meio de julgar a vida, de
universalizar a condenação da vida, ao interiorizar a falta (má
consciência). Cristo seria morto por nós, pelos nossos pecados!
Esta é, pelo menos, a interpretação de São Paulo; e foi esta
interpretação que levou a melhor na Igreja e na História. O
martírio de Cristo opõe-se, pois, ao de Dioniso: num caso, a vida
é julgada e deve expiar; no outro, ela é bastante justa por si
mesma para justificar tudo. «Dioniso contra o Crucificado». - 2.°
Mas se procurarmos, sob a interpretação paulina, qual era o tipo
pessoal de Cristo, adivinhamos que Cristo pertence ao
«niilismo» de uma maneira completamente diferente. Ele é doce,
alegre, não condena, indiferente a qualquer culpabilidade; apenas
quer morrer, deseja a morte. Por isso, testemunha um grande
avanço sobre São Paulo e já representa o estádio supremo do
niilismo, o do último Homem ou mesmo do Homem que quer
morrer: o estádio mais próximo da transmutação dionisíaca.
NIETZSCHE

Cristo é «o mais interessante dos decadentes», uma espécie de


Buda. Ele torna possível uma transmutação; deste ponto de vista,
a síntese de Dioniso e de Cristo torna-se ela própria possível:
«Dioniso-Crucificado».

Dioniso - Sobre os diferentes aspectos de Dioniso, 1.° em


relação com Apolo; 2.° em oposição com Sócrates; 3.° em
contradição com Cristo; 4.° em complementaridade com Ariana,
cf. a exposição precedente da filosofia de Nietzsche e, mais
adiante, os textos.

Homens superiores -São múltiplos, mas testemunham um


mesmo empreendimento: depois da morte de Deus, substituir os
valores divinos por valores humanos. Eles representam, pois, o
devir da cultura, ou o esforço para pôr o homem no lugar de
Deus. domo o princípio de avaliação permanece o mesmo, como
a transmutação não é feita, eles pertencem plenamente ao
niilismo e estão mais próximos do bobo de Zaratustra do cjue do
próprio Zaratustra. São «falhados», « imperfeitos», e não sabem
rir, nem brincar nem dançar. Na ordem lógica, a sua procissão é
a seguinte:

° O último papa: Sabe que Deus está morto, mas


acredita que Deus se asfixiou a si mesmo, asfixiou-se de
piedade, já não podendo suportar o seu amor pelos homens.
O último papa ficou sem senhor e, contudo, não é livre,
vive de lembranças
1. .° Os dois reis: Representam o movimento da
«moralidade dos costumes», que se propõe formar e erguer o
homem, fazer um homem livre pelos meios mais violentos, mais
constrangedores. Assim, há dois reis, um de esquerda para os
meios, um de direita para o fim. Mas, antes como depois da
morte de Deus, para os meios como para o fim, a própria
moralidade dos costumes degenera, edifica e selecciona ao con-
trário, cai em proveito da «populaça» (triunfo dos escravos). São
DICIONÁRIO DOS PRINCIPAIS PERSONAGENS... |9

os dois reis que conduzem o Burro, de que o conjunto dos


homens superiores farão o seu novo deus.
2. ° O mais ignóbil dos homens: Foi ele que matou
Deus, porque não suportava a sua piedade. Mas é sempre o
velho homem, ainda mais covarde: em vez da má consciência de
um Deus morto para ele, experimenta a má consciência de um
Deus morto por ele; em vez da piedade vinda de Deus, conhece
a piedade vinda dos homens, a piedade da populaça, ainda mais
insuportável. E ele que dirige a litania do Burro e suscita o falso
«Sim».
3. ° O homem da sanguessuga: Quis substituir os
valores divinos, a religião e até a moral, pelo conhecimento. O
conhecimento deve ser científico, exacto, incisivo: pouco
importa então que o seu objecto seja pequeno ou grande; o
conhecimento exacto da mais pequena coisa substituirá a nossa
crença nos «grandes» valores vagos. Esta é a razão por que um
homem dá o seu braço à sanguessuga, e dá-se por tarefa e por
ideal conhecer uma coisa pequeníssima: o cérebro da
sanguessuga (sem remontar ás causas primeiras). Mas o homem
da sanguessuga não sabe que o conhecimento é a própria
sanguessuga e que toma o lugar da moral e da religião,
perseguindo o mesmo fim delas: fazer uma incisão na vida,
mutilar e julgar a vida.
4. ° O Mendigo voluntário: Renunciou ao próprio
conhecimento. Apenas acredita na felicidade humana, procura a
felicidade na terra. Mas a felicidade humana, por mais simples
que seja, não se encontra mesmo entre a populaça, animada pelo
ressentimento e pela má consciência. A felicidade humana só se
encontra entre as vacas.
5. ° O Encantador: o homem de má consciência, que
se persegue tanto sob o reinado de Deus como depois da morte
de Deus. A má consciência é essencialmente comediante,
exibicionista. Ela desempenha todos os papéis, mesmo o do ateu,
mesmo o do poeta, mesmo o de Ariana. Mas mente e recrimina
sempre. Ao dizer «é o meu erro», ela quer suscitar a piedade,
NIETZSCHE

inspirar a própria culpabilidade àqueles que são fortes, envergo-


nhar tudo o que é vivo, propagar o seu veneno. «A tua queixa
contém uma armadilha!»
6. ° A Sombra viajante. É a actividade da cultura
que, por toda a parte, procurou realizar o seu fim (o homem
livre, seleccionado e construído): sob o reino de Deus, depois da
morte de Deus, no conhecimento, na f elicidade, etc. Ela falhou
o seu fim em toda a parte, porque este fim é também uma
Sombra. Este fim, o Homem superior, c ele mesmo falhado,
imperfeito. E a Sombra de Zaratustra, nada mais do que a sua
sombra, que o segue por toda a parte, mas desaparece nas duas
horas importantes da Transmutação, Meia-Noite e Meio-Dia.
° O Adivinho: Diz «tudo é vão». Anuncia o último
estádio do niilismo: o momento em que o homem, tendo
medido a fragilidade do seu esforço para substituir Deus,
preferirá já não querer tudo, de preferência a querer o nada.
O adivinho anuncia, pois, o último homem. Prefigurando o
fim do niilismo, ele vai já mais longe do que os homens
superiores. Mas o que lhe escapa é aquilo que está ainda
além do último homem: o homem que quer morrer, o homem
que quer o seti próprio declínio. Com este, o niilismo
culmina realmente, é vencido por si mesmo: a transmutação
e o super-homem estão próximos
.Zaratustra (e o Leão) - Zaratustra não é Dioniso, mas apenas
o seu profeta. Há duas maneiras de exprimir esta subordinação.
Poderíamos dizer primeiro que Zaratustra se mantém no «Não».
Sem dúvida, este Não já não c o do niilismo: é o «Não sagrado»
do Leão. É a destruição de todos os valores estabelecidos,
divinos e humanos, que compunham precisamente o niilismo. É
o «Não» trans-niilista, inerente à transmutação. Também
Zaratustra parece ter acabado a sua tarefa ao mergulhar as suas
mãos na juba do Leão. Mas, na verdade, Zaratustra não
permanece no Não, mesmo sagrado e transmutante. Participa
plenamente da afirmação dionisíaca, ele é já a ideia desta
afirmação, a ideia de Dioniso. Da mesma maneira que Dioniso
DICIONÁRIO DOS PRINCIPAIS PERSONAGENS... | 11

celebra os esponsais com Ariana no eterno Retorno, Zaratustra


encontra a sua noiva no eterno Retorno. Da mesma maneira que
Dioniso é o pai do Super-Homem, Zaratustra chama filho ao
Super-Homem. No entanto, Zaratustra é ultrapassado pelos seus
próprios filhos; e ele não passa de pretendente, não é o elemento
constituinte do anel do eterno Retorno. Produz menos o Super-
Homem do que assegura esta produção no homem, criando todas
as condições nas quais o homem se ultrapassa e nas quais o Leão
se torna Criança.
A OBRA

1872: A Origem da Tragédia. - 1873: Considerações Intempestivas,


I, «David Strauss». - 1874: Ibid., II, Utilidade e Inconveniente dos
Estudos Históricos; III, Schopenhauer Educador. - 1876: Ibid., IV,
Richard Wagner em Bayreuth.
- 1878, Humano, demasiado humano - 1879: O Viajante e a sua
Sombra. - 1881: Aurora. - 1882: A Gaia Ciência, MV.
- 1883: Assim lalava Zaratustra, I, II. - 1884: Ibid., III.
- 1885: Ibid., IV. - 1886: Para além do Bem e do Mal.
- 1887: Genealogia da Moral, A Gaia Ciência, V - 1888: O Caso
Wagner; O Crepúsculo dos ídolos; 0 Anticristo; Nietzsche contra
Wagner, Ecce Homo. (Destas cinco obras, só 0 Caso Wagner foi
publicado por Nietzsche, antes da sua doença.)

A obra de Nietzsche compreende ainda estudos filológicos,


conferências e cursos, poemas, composições musicais e sobretudo uma
grande número de notas (de entre as quais é extraída A Vontade de
Poder).
As principais edições de conjunto são: a do Nietzsche- Archiv (19
volumes, Leipzig, 1895-1913); a «Musarion Ausgabe» (23 vols.,
Munique, 1922-1929); a de Schlechta (3 vols., Munique, 1954).
Estas edições não respondem completamente às exigências críticas
normais. Foi de acordo com os trabalhos de Col li e Montinari que a
NRF empreendeu a publicação das obras filosóficas completas.
[Oeuvres philosophiques complètes. Fragments posthumes. Édition cri-
tique établie par G. Colli et M. Montinari. 14 volumes. Paris, Gallimard,
1977].
O problema é o do papel da irmã. A sua intervenção foi completa no
Nietzsche-Archiv. Mas talvez seja necessário distinguir várias questões -
que Schlechta, nas polémicas, tem tendência para misturar.
1. ° Houve falsificações? - Mais depressa terá havido más
leituras e deslocamentos de textos nas obras de 1888.
2. ° A questão de A Vontade de Poder - Sabe-se que não é
um livro de Nietzsche. Nas notas dos anos 80, encontram-se cerca de
400 passagens, numeradas e repartidas ein quatro grupos. Mas um
grande número de planos diversos datam desta época. A Vontade de
Poder foi composta com estas 400 notas, com outras de épocas dife-
rentes e segundo um plano de 1887. Seria muito importante que todos os
NIETZSCHE

planos fossem publicados. E, sobretudo, que o conjunto das notas fosse


objecto de uma edição crítica e cronológica rigorosa; não é o caso da
edição de Schlechta.
3. ° A questão do conjunto das notas - Schlechta pensa que
as «póstumas» não trazem nada de essencial que já não esteja nas obras
publicadas por Nietzsche. Tal ponto de vista põe em causa a
interpretação da filosofia de Nietzsche.

Os principais tradutores de Nietzsche para francês são: Henri Albert


(Mercure de France); Geneviève Bianquis (NRF e Aubier); Alexandre
Vialatte (NRF). Todas as obras citadas no princípio desta bibliografia
estão traduzidas.
Juntamosrlhes: Vontade de Poder (trad. Geneviève Bianquis, NRF);
0 Nascimento da Filosofia na Época da Tragédia Grega (trad.
Geneviève Bianquis, NRF); Os Poemas (trad. Henri Albert, Mercure;
trad. Ribemont- Dessaignes, Le Seuil).
E A vida de Nietzsche segundo a sua Correspondência (Georges
Walz, Rieder); Cartas Escolhidas (Alexandre Vialatte, NRF); Cartas a
Peter Gast (André Schaeffner, Ed. du Rocher); Nietzsche perante os
seus Contemporâneos
(Geneviève Bianquis, Ed. du Rocher).

***

Nota: principais edições disponíveis em português (editores e


títulos):

- EDIÇÕES 70: O Anticristo. .4 Filosofia na Idade Trágica dos


Gregos. Crepúsculo dos ídolos.
- GUIMARÃES EDITORES: O Anticristo. Assim falava /aratustra.
Correspondência com Wagner. Crepúsculo dos ídolos. Ditirambos de
Dionisos. Ecce Homo. A Gaia Ciência. A Genealogia da Moral. A
Origem da Tragédia. Para além do Rem e Mal. Páginas de A
utobiografia.
- RKLÓGIO D'ÂGUA: Obras escolhidas de Nietzsche-. I. O
Nascimento da Tragédia e Acerca da Verdade e da Mentira; II. Humano
Demasiado Humano, III. A Gaia Ciência; IV. Assim falava Zaratustra;
V. Para além do Bem e do Mal; VI. Para a Genealogia da Moral\ VII.
Anticristo, Ecce Homo, Nietzsche contra Wagner.
A OBRA

Uma selecção de Poemas de


Nietzsche foi traduzida, prefaciada
e anotada por Paulo Quintela,
sucessivamente editada (Porto,
1960; 2.a ed. rev., Coimbra, 1981;
3.a ed. rev., 1986), e integrada nas
Obras Completas de Paulo Quintela
(Lisboa, Gulbenkian, 1996-
2001).EXTRACTOS

De cada vez que cortamos um texto de Nietzsche, os pontos de


suspensão são postos entre parênteses rectos. De cada vez que citamos
um texto retirado das notas, a referência é precedida por um asterisco.

A) O que é um filósofo?

«... agir de uma maneira intempestiva, quer dizer,


contra o tempo, e assim sobre o tempo, em favor
(espero-o) de um tempo que está para vir.»
(Considerações intempestivas.)

1. O filósofo mascarado

O espírito filosófico teve sempre de começar por se travestir e por se


mascarar tomando os tipos do homem contemplativo precedentemente
formados, seja os tipos do sacerdote, do adivinho, do homem religioso
em geral, para ser apenas possível\ de qualquer maneira qtie seja; o ideal
ascético serviu durante muito tempo ao filósofo como aparência
exterior, como condição de existência - era forçado a representar este
ideal para poder ser filósofo, era obrigado a acreditar nele para
representá-lo. Esta atitude particular ao filósofo, que o faz afastar-se do
mundo, esta maneira de ser que renega o mundo, que se mostra hostil à
vida, de sentido incrédulo, austero, e que se manteve até aos nossos dias
de maneira a passar pela atitude filosófica por excelência - esta atitude é
antes de mais uma consequência das condições forçadas, indispensáveis
para o nascimento e para o desenvolvimento da filosofia: porque,
durante muito tempo, a filosofia não teria sido possível de forma alguma
NIETZSCHE

sem urna máscara e um travestimento ascético, sem um mal-entendido


ascético. Para exprimir-me cie uma maneira mais concreta e que salta
aos olhos: o sacerdote ascético mostrou-se até aos nossos dias sob a
forma mais repugnante e mais tenebrosa, a da lagarta, a única que dá ao
filósofo o direito de levar a sua existência rastejante... As coisas
mudaram verdadeiramente? Este insecto perigoso alado com mil cores,
«o espirito» que envolvia o casulo, pôde afinal, graças a um mundo mais
ensolarado, mais quente e mais claro, lançar o seu espólio para lançar-se
na luz? Já existe hoje bastante altivez, audácia, bravura, consciência de
si, vontade de espírito, desejo do responsabilidade, livre- arbítrio sobre a
terra para que doravante o «filósofo» seja possível?
(Genealogia da Morai I I I . 10, trad. Henri Albert,
Mercure de France.)

2. O filósofo crítico

Sou um discípulo do filósofo Dioniso; preferiria ida ser considerado


mais como um sátiro do que
como um santo [...]. Querer tornar a humanidade «melhor» seria a
última coisa que eu prometeria. Não erijo novos ídolos; que os
antigos aprendam, pois, o que etista ter pés de barro! Derrubar
ídolos - é assim que chamo toda a espécie de ideal - já é, de
preferência, um assunto meu. Na mesma medida em que
imaginámos, por meio de uma mentira, o mundo ideal, retirámos à
realidade o seu valor, a sua significação, a sua veracidade... O
«mundo-verdade» e o «mundo-aparência», traduzam: o mundo
inventado e a realidade... A mentira do ideal foi até agora a
maldição suspensa acima da realidade. A própria humanidade, à
força de se penetrar com esta mentira, foi violada e falsificada até
nos seus instintos mais profundos, até à adoração dos valores
opostos aos que garantiriam o desenvolvimento, o futuro, o direito
supremo ao futuro
.Aquele que sabe respirar a atmosfera dos meus escritos sabe que é
uma atmosfera das alturas, que o ar aí é forte. É preciso ser criado para
esta atmosfera, de outra forma arriscamo-nos a apanhar frio. O gelo está
perto, a solidão é enorme - mas vejam com que tranquilidade tudo
repousa na luz! Vejam como se respira livremente! Quanta coisa
sentimos abaixo de nós! A filosofia tal como a vivi, tal como a compre-
endi até ao presente, é a existência voluntária no meio dos gelos e das
A OBRA

altas montanhas, a pesquisa de tudo o que é estranho e problemático na


vida, de tudo o que, até ao presente, foi banido pela moral. Uma longa
experiência, que possuo desta viagem dentro de tudo o que é interdito,
ensinou-me a olhar, de uma maneira diferente da que seria desejável, as
causas que até agora levaram a moralizar e a idealizar. A história secreta
da filosofia, a psicologia dos grandes nomes que a ilustram, revelaram-
se a mim. O grau de verdade que um espírito suporta, a dose de verdade
que um espírito pode ousar, foi o que me serviu cada vez mais para dar
a verdadeira medida do valor. O erro (quer dizer, a fé no ideal) não é a
cegueira; o erro é a covardia... Qualquer conquista, cada passo em frente
no domínio do conhecimento tem a sua origem na coragem, na dureza
face a si mesmo. Não refuto um ideal, contento-me com pôr luvas diante
dele... Xitimur in vetitum, por este sinal a minha filosofia será um dia
vitoriosa, porque até agora só se proibiu, por princípio, a verdade.
(Ecce Homo, «<Prefácio»», 2-3, trad. Henri Albert,
Mercure de I rance.)

3. O filósofo intempestivo

Apercebemos aqui a consequência desta doutrina, pregada ainda


recentemente sobre os telhados, e que consiste em afirmar que o Estado
é o fim supremo da humanidade e que, para o homem, não existe fim
superior ao de servir o Estado; no que eu não reconheço um retorno ao
paganismo, mas à parvoíce. Pode acontecer que tal homem, que vê ao
serviço do Estado o seu dever supremo, não saiba quais são os deveres
supremos. Isso não impede que haja ainda do outro lado homens e
deveres, e um desses deveres, que, pelo menos para mim, aparece como
superior ao serviço do Estado, incita a destruir a parvoíce sob todas as
suas formas, mesmo sob a forma que ela aqui toma. É por isso que
actualmente me ocupo de uma espécie de homem cuja teleologia conduz
um pouco mais alto do que o bem de um Estado, com os filósofos e com
estes apenas relativamente a um domínio bastante independente do bem
do Estado, o da cultura. Entre os numerosos anéis que, passados uns
através dos outros, formam a humana coisa pública, uns são cie ouro,
outros de tombaque(*).
Ora, como é que o filósofo olha a cultura do nosso tempo? Para dizer
a verdade, sob um aspecto completamente diferente do daqueles
professores de filosofia que se alegram com o seu estado. Quase lhe
parece perceber uma destruição e uma separação completa da cultura,
NIETZSCHE

quando ele pensa na precipitação geral, na aceleração deste movimento


de queda, na impossibilidade de qualquer vida contemplativa e de
qualquer simplicidade. As águas da religião escoam-se e deixam atrás de
si pântanos ou charcos; as nações separam-se de novo, combatem-se
umas às outras e procuram destruir- -se entre si. As ciências, praticadas
sem qualquer medida e 110 mais completo desleixo, dispersam-se e
dissolvem toda a convicção sólida; as classes e as sociedades cultivadas
são arrastadas numa grandiosa e desprezante exploração financeira.
Nunca o mundo foi tanto o mundo, nunca foi tão pobre em amor e cm
dons preciosos. As profissões sábias não passam de faróis e asilos, 110
meio de toda esta inquietude frívola; os seus representantes tornam-se
eles próprios cada vez mais inquietos, tendo cada vez menos
pensamentos, menos amor. Tudo se põe ao serviço da barbárie que vem,
a arte actual e a ciência actual não são excepção. O homem cultivado c
degenerado ao ponto de se ter tornado no pior inimigo da cultura, porque
quer negar a doença geral e é um obstáculo para os médicos. Eles
encolerizam-se, os pobres tipos enfraquecidos, quando se fala das suas
fraquezas e quando se combate o seu perigoso espírito mentiroso.
Desejariam fazer acreditar que conseguiram levar a melhor sobre todos
os séculos,

O Liga do zinco e cobre, com a aparência de ouro, usada fabrico


de jóias falsas. (\;.R.
NIETZSCHE

)e as suas diligências são animadas de uma alegria artificial [...].


No entanto, sc nos arriscamos a ser acusados de parcialidade
quando salientamos apenas a fraqueza do desenho e a falta de
colorido na imagem da vida moderna, o segundo aspecto não tem,
contudo, nada mais satisfatório e aparece ainda sob uma forma
mais inquietante. Existem certas forças, forças formidáveis, mas
selvagens e impulsivas, forças completamente impiedosas.
Observamo-las com uma expectativa inquieta, com o mesmo
olhar com que olharíamos a caldeira de uma cozinha infernal: em
qualquer momento, podem produzir-se ebulições e explosões,
anunciando terríveis cataclismos. Desde há um século que
estamos preparados para comoções fundamentais. Se. nestes
últimos tempos, se tentou opor a estas tendências explosivas
profundamente modernas a força constitutiva do Estado
pretensamente nacional, este não deixa de constituir, e por muito
tempo, um aumento do perigo universal e da ameaça que pesa
sobre as nossas cabeças (,7). Não nos deixamos induzir em erro
pelo facto de os indivíduos se compor tarem como se nada
soubessem de todas estas preocupações. A sua inquietude mostra
quanto eles estão informados a este respeito; pensam neles
próprios com uma precipitação e um exc lusivismo que nunca se
encontraram até agora; constroem e plantam para si apenas e para
um só dia; a caça à felicidade nunca é tão grande senão quando
deve ser feita hoje e amanhã; porque, depois de amanhã, a caça
poderá já talvez estar fechada. Vivemos na época dos átomos e do
caos atómico.
(Considerações Inactuais, Schopenhaner Educador, 4,
trad. Henri Albert, Mercure de France.)
EXTRACTOS

(") A tradução do começo da frase está um pouco modificada.4. O


filósofo, Jisiólogo e médico

Estamos na fase em que o consciente se torna modesto. Em


última análise, não compreendemos o próprio eu consciente senão
como um instrumento ao serviço deste intelecto superior, que vê
tudo em conjunto; e podemos perguntar a nós próprios se todo o
querer consciente, todo o fim consciente, todo o juízo de valor não
seriam simples meios destinados a atingir qualquer coisa cie
essencialmente diferente daquilo que nos aparecia à luz da
consciência. Julgamos que se trata do nosso prazer ou da nossa
dor, mas o prazer e a dor poderiam ser meios graças aos quais
deveríamos realizar operações estranhas à nossa consciência. Será
preciso demonstrar ate que ponto tudo o que é consciente
permanece superficial, até que ponto a acção difere da imagem da
acção, como sabemos pouco daquilo que precede a acção; como
são quiméricas as nossas intuições de uma «vontade livre», de
«causa e efeito»; de que modo os pensamentos, as imagens e as
palavras não passam de símbolos dos pensamentos, até que ponto
qualquer acção é impenetrável; em que medida o elogio e a
censura permanecem superficiais; como a nossa vida consciente
se passa essencialmente num mundo da nossa invenção e da nossa
imaginação; como é que só falamos das nossas invenções (das
nossas emoções mesmo) e como c que a coesão da humanidade
assenta sobre a transmissão destas invenções - enquanto, no
fundo, a coesão verdadeira (pela reprodução) prossegue o seu
caminho desconhecido. [...].
Para resumir, trata-se talvez unicamente do cotpo cm todo o
desenvolvimento do espírito: este desenvolvimento consistiria em
tornar-nos sensível a formação de um corpo superior. O orgânico
pode ainda elevar-se a graus superiores. A nossa avidez de
conhecer a natureza é um meio para o corpo se aperfeiçoar. Ou de
preferência, fazemos experiências, pelas centenas de milhar, para
modificar a alimentação, a habitação, o género de vida do corpo;
a consciência e os juízos de valor que leva consigo, todas as
variedades do prazer e da dor são indícios destas mudanças e
EXTRACTOS

destas experiências. Em última análise, não é o homem, deforma


alguma, que está em causa;
ele é aquilo que deve ser ultrapassado.
(* 1883, A Vontade de Poder, II, 261,
trad. Geneviève Bianquis, NRF.)

5. O filósofo, inventor de possibilidades de vida

Há vidas em que as dificuldades tocam o prodígio; sào as vidas


dos pensadores. E é preciso ouvir aquilo que nos contam a seu
respeito, porque descobrimos aí possibilidades de vida cuja
simples narração já nos dá alegria e força e lança uma luz sobre a
vida dos seus sucessores. Há aí tanta invenção, reflexão, audácia,
desespero e esperança como nas viagens dos grandes
navegadores; e, para falar verdade, são também viagens de
exploração nos domínios mais recuados e mais perigosos da vida.
O que estas vidas têm de surpreendente é que dois instintos
inimigos, que puxam em sentidos opostos, parecem ser obrigados
aí a caminhar sob o mesmo jugo; o instinto que tende para o
conhecimento é constrangido, sem parar, a abandonar o chão em
que o homem tem o costume de viver e a lançar-se no incerto e o
instinto que quer a vida vê-se forçado a procurar, sem parar, às
apalpadelas, um novo lugar onde se estabelecer [...].
Assim não posso cansar-me de evocar pelos olhos da alma
uma série de pensadores em que cada um leva em si esta
particularidade inconcebível e desperta esta mesma estupefacção
pela possibilidade de vida que soube descobrir para si só: quero
dizer, os pensadores que viveram na época mais vigorosa e mais
fecunda da Grécia, no século que precedeu as guerras medas e
durante estas guerras. Porque estes pensadores foram até
encontrar belas possibilidades de vida; ora, parece-me que os
Gregos, ulteriormente, esqueceram a sua melhor parte; e que povo
poderia pretender que a encontrou outra vez? [...].
É difícil para nós pressentir, segundo a nossa natureza e a
nossa experiência, qual pôde ter sido a tarefa dos filósofos, no
NIETZSCHE

interior de uma civilização autêntica e que possuía uma forte


unidade de estilo; porque não possuímos uma civilização desta
espécie. Pelo contrário, só urna civilização como a civilização
grega pode revelar qual é a tarefa do filósofo; só ela, como disse,
pode justificar a filosofia, porque só ela sabe e pode provar
porquê e como o filósofo não é um viajante qualquer, aparecido
por acaso e que surge inopinadamente aqui e ali. Há uma lei de
bronze que encadeia o filósofo a uma civilização autêntica, mas
que acontece quando esta civilização comete erros? O filósofo
parece-se então com um cometa imprevisível e, por esta razão,
aterrador, enquanto numa hipótese mais favorável ele brilha como
um astro de primeira grandeza no sistema solar desta civilização.
Os Gregos justificam a existência do filósofo pelo facto de que só
entre eles ele não está no
estado de cometa.
(*1875, «A Filosofia na Época da Tragédia Grega»,
trad. Geneviève Bianquis, in O Nascimento da Filosofia, NRF).
6. O filósofo legisladorSuplico que se acabe, de vez, de
confundir os operários da filosofia e, de uma maneira geral, os
homens de ciência com os filósofos. Justamente neste domínio é
importante que seja dado «a cada um o devido», e não muito a
um e demasiado pouco a outro. Pode ser necessário para a
educação do verdadeiro filósofo ter ele próprio passado por todos
os estádios em que pararam ou tiveram necessariamente de parar
os seus colaboradores subalternos, os operários científicos da
filosofia. Talvez lhe seja preciso ser ele mesmo crítico e céptico,
dogmático e historiador e, por acréscimo, poeta e coleccionador,
viajante e decifrador de enigmas, moralista e vidente, «espírito
livre» e quase tudo no mundo, a fim de percorrer o ciclo inteiro
dos valores e dos juízos humanos e ter constituído para si toda
uma variedade de olhos e de consciências para explorar do alto
dos cumes todos os horizontes longínquos, do fundo do abismo
todos os cumes, de um canto estreito todos os espaços. Mas essas
são apenas as condições prévias da sua tarefa; esta mesma tarefa
exige outra coisa; exige dele que crie valores. Os operários da
filosofia, do tipo nobre de Kant e de Hegel, terão de averiguar e
EXTRACTOS

de formular uma massa enorme de juízos de valor, quer dizer,


antigas fixações de valores, antigas criações de valores que se
tornaram preponderantes e foram chamadas verdades 110
domínio quer da lógica, quer da política (ou da moral) quer da
estética. Pertencerá a estes pensadores tornar claro, pensável,
apreensível e manejável todo o conjunto dos acontecimentos e
dos juízos anteriores, dar um resumo do próprio «tempo» e
tnunfar sobre o passado; tarefa imensa e maravilhosa que poderá
satisfazer os orgulhos mais delicados, as vontades mais tenazes.
Mas os verdadeiros filósofos são os que dirigem e legislam. Eles
dizem: «Aqui está o que deve ser!» São eles que determinam o
sentido e o porquê da evolução humana, e dispõem para isso do
trabalho preparatório de todos os operários da filosofia, de todos
os que liquidaram o passado; estendem mãos criadoras para o
futuro, e para esta tarefa tudo o que existiu serve- -lhes de meio,
de utensílio, de martelo. Para eles, «conhecimento» é criação, a
sua obra consiste em legislar, a sua vontade de verdade é vontade
de poder. Existem hoje em dia filósofos assim? Já alguma vez
houve filósofos assim? Não será preciso que existam um dia?
(Para além do Bem e do Mal, VI, 211, trad.
Geneviève Bianquis, Aubier).

B) Dioniso filósofo

«O herói c alegre, aqui está o que escapou


até agora aos autores da tragédia.»»
(*1882)

7. Dioniso e Apolo: a sua conciliação (o trágico


)Teremos feito um progresso decisivo em estética quando
tivermos compreendido, não como uma visão da razão mas com a
certeza imediata da intuição, que a evolução da arte está ligada ao
dualismo do apolinismoc do dionisismo, como a geração está
ligada à dualidade dos sexos, à sua luta contínua, cortada por
NIETZSCHE

acordos provisórios. Fomos buscar estes dois termos aos Gregos;


compreendendo-os bem, eles exprimem, não em conceitos mas
nas formas distintivas e convincentes das divindades gregas, as
verdades secretas e profundas da sua crença estética. As duas
divindades protectoras da arte Apolo e Dioniso, sugerem-nos que
no mundo grego existe um contraste prodigioso, na origem e nos
fins, entre a arte do escultor, ou arte apolínea, e a arte não
escultural da música, a de Dioniso. Estes dois instintos tão
diferentes caminham lado a lado, o mais das vezes em estado de
conflito aberto, excitando-se mutuamente a fazer criações novas e
mais vigorosas, a fim de perpetuar entre eles o conflito dos
contrários que recobre em aparência apenas o nome de arte que
lhes é comum: até que, por fim, por um milagre metafísico do
«querer» helénico, aparecem unidos, e nesta união acabam por
engendrar a obra de arte ao mesmo tempo dionisíaca e apolínea, a
tragédia ática.
Para representar mais precisamente estes dois instintos,
imaginemo-los, primeiro, como as duas regiões estéticas
separadas do sonho e da efnbriaguez. cujas manifestações
fisiológicas oferecem o mesma contraste que o apolíneo e o
dionisíaco [...] (,M).
Falta-nos compreender que a tragédia é o coro dionisíaco que
se distende, projectando fora dele um mundo de imagens
apolíneas. As partes do coro intercaladas na tragédia são, pois,
num sentido, a matriz de todo o diálogo, quer dizer, de todo o
elemento cénico do drama propriamente dito. No decurso de
várias explosões sucessivas, o fundo primitivo da tragédia produz
por irradiação esta visão dramática que é essencial-

(,M) Não podemos citar o desenvolvimento deste tema. Nietzsche


caracteriza Apolo pelo sonho; a profecia como verdade do sonho; a medida
como limite do sonho; e o princípio de individuação como bela aparência.
Caracteriza Dioniso pela embriaguez; a desmedida como verdade da
embriaguez; a resolução ou a dissolução do individuo num Fundo original.
Na sequência da sua obra, Nietzsche encontrará outros traços para definir
Dioniso (mas, então, defini-lo-á em função de outros personagens para além
EXTRACTOS

de mente um sonho, quer dizer, de natureza épica, mas que, por


outro lado, ao objectivar um estado dionisíaco, representa não a
redenção apolínea pela aparência mas, pelo contrário, o naufrágio
e a sua absorção no Ser original. C) drama é, pois, a
representação de noções e de acções dionisíacas [...]. Os
fenómenos apolíneos em que Dioniso se objectiva já não são «um
mar eterno, uma ondulação movente, uma vida ardente», como a
música do coro. Já não são essas forças apenas sentidas, mas não
condensadas em imagens, em que o servidor de Dioniso extasiado
sente a aproximação do deus. Agora, Dioniso fala, sobre o palco,
com toda a precisão e firmeza da forma épica, já não por
intermédio de forças obscuras, mas como herói épico e numa
linguagem quase homérica.
(O Nascimento da Tragédia, 1 e 8, trad. de
Geneviève Bianquis, NRF.)

8. Dioniso e Sócrates: a sua oposição (a dialéctica)

A chave da alma de Sócrates é-nos oferecida nesse fenómeno


estranho que ele chamava o seu demónio. Em certas
circunstâncias, quando a sua razão prodigiosa hesitava, ele
reencontrava a sua segurança graças à voz divina que então lhe
falava. Esta Voz, quando se faz ouvir, adverte-o sempre para se
abster de certos actos. Nesta natureza anormal, a sabedoria
instintiva só se manifesta para se opor de tempos a tempos ao
conhecimento consciente. Enquanto em todos os homens
produtivos o instinto é uma força afirmativa e criadora, e a
consciência uma força crítica e negativa, em Sócrates o instinto
torna-se crítico e a consciência criadora - é uma verdadeira
monstruosidade por carência [...].
Sócrates, o herói dialéctico do drama platónico, lembra-nos o
temperamento do herói euripidiano que se julga obrigado a
defender os seus actos por motivos e contra-motivos, sob o risco,
muitas vezes, de perder a nossa simpatia trágica. Pois, como
esquecer o que há de optimismo na dialéctica, pela qual cada uma
das suas conclusões é um triunfo e que só pode respirar na
claridade fria da consciência? Tendo este optimismo penetrado na
NIETZSCHE

tragédia, devia, fatalmente, invadir as suas zonas dionisíacas e


levá-las a destruir-se a si próprias, até ao perigoso salto final que
culmina no drama burguês. Pensemos nas consequências das
máximas socráticas: «A virtude é um saber; só pecamos por
ignorância; o homem virtuoso é feliz.» Estas três formas
essenciais do optimismo sáo a morte da tragédia. Porque,
doravante, será preciso que exista entre a virtude e o saber, a
crença e a moral, um laço necessário e evidente; doravante, a
justiça transcendental de Ésquilo reduzir- -se-á a uma «justiça
poética» lisa e impertinente, ladeada pelo seu habitual deus ex
machina [...].
Armado com o chicote dos seus silogismos, a dialéctica
optimista expulsa a música da tragédia, quer dizer, destrói a
essência da tragédia, que só se compreende se for uma
manifestação e uma representação simbólicas de estados
dionisíacos, uma encarnação visível da música, o mundo do
sonho que se desprende da embriaguez dionisíaca.
(O Nascimento da Tragédia, 13 e 14,
trad. Geneviève Bianquis, NRF).

9. Dioniso e Cristo: a sua contradição (a religião)

Os dois tipos: Dioniso e o Crucificado - Determinar se o tipo


do homem religioso é uma forma de decadência (os grandes
inovadores são todos, sem excepção, doentes e epilépticos); mas
isso não consiste em omitir um certo tipo de homem religioso, o
tipo pagão? Não é o culto pagão uma forma de reconhecimento
para com a vida, da afirmação da vida? O seu representante
supremo não deveria ser, na sua própria pessoa, a apologia e a
divinização da vida? O tipo de um espírito felizmente
desenvolvido e estravazando num êxtase de alegria! Um espírito
que absorve em si e resgata as contradições e os equívocos da
vida!
E aqui que eu colocaria o ideal dionisíaco dos Gregos: a
afirmação religiosa da vida no seu todo, de que não se nega nada,
EXTRACTOS

de que nada se corta (notar que o acto sexual acompanha-se aí de


profundidade, de mistério, de respeito).
Dioniso contra o «Crucificado»: aqui está o contraste. A
diferença entre eles não é a do seu martírio, mas este martírio tem
sentidos diferentes. No primeiro caso, é a própria vida, a sua
eterna fecundidade e o seu eterno retorno que são causa do
tormento, da destruição, da vontade do nada. No outro caso, o
sofrimento, o «Crucificado inocente» testemunham contra a rida,
condenam-na. Adivinha-se que o problema que se põe é o do
sentido da vida: um sentido cristão ou um sentido trágico? No
primeiro caso, ela deve ser o caminho que conduz à santidade; no
segundo caso, a existência parece bastante santa por si mesma
para justificar por acréscimo uma imensidade de sofrimento. O
homem trágico afirma mesmo o mais duro sofrimento, de tal
forma ele é forte, rico e capaz de divinizar a existência; o cristão
nega até a sorte mais feliz da terra; é pobre, fraco, deserdado ao
ponto de sofrer com a vida sob todas as suas formas. O Deus em
cruz é uma maldição da vida, uma advertência para se libertar
dela; Dioniso esquartejado é uma promessa de vida, renascerá
eternamente e voltará do fundo da decomposição.
(*1888, A Vontade de Poder; IV, 464,
trad. Geneviève Bianquis, NRF)

10. Dioniso e Ariana: a sua complementaridade (o ditirambo) [...]

Ah! Ah!
E tu martirizas-me, louco que és,
tu torturas o meu orgulho?
Dá-me amor. - Quem me aquece ainda?
Quem me ama ainda? -
Dá mãos quentes,
dá corações-candeia,
dá-me, a mim, a mais solitária
do que o gelo, oh! o gelo faz
sete vezes definhar junto dos inimigos,
NIETZSCHE

junto dos inimigos mesmo,


dá, sim, abandona-
-te - a mim,

tu, o mais cruel inimigo!... Foi-se!


Ele próprio fugiu, meu único companheiro, meu
grande inimigo, meu desconhecido, meu deus-
carrasco!

- Não!
Volta!
com todos os teus suplícios
EXTRACTOS | 6?

!Tod as as minhas lágrimas tomam para ti a


sua direcção! E a tílt ima chama do meu
coração — desperta para ti! Oh volta,
Meu deus desconhecido! minha dor minha
última felicidade?

(Um relâmpago. Dioniso aparece numa beleza de esmeralda.)

DIOXISO

Sê prudente, Ariana!...
Tens orelhas pequenas, tens as minhas orelhas Ouve um
conselho ajuizado! Não será preciso odiarmo-nos primeiro, se
devemos amar-nos?...
Eu sou o teu labirinto...

(*1888, Ditirambos dionisíacos. Retomada, com correcções e


complementos, de um texto de Zaratustra: livro IV, «O
Encantador», trad. Henri Albert, Mercure de France.)

11 . Dioniso e Zaratustra: o seu parentesco (a provação)

Porque ouvi um sussurro que me falava sem voz, dizendo: «Tu


sabes, Zaratustra.»
E este sussurro arrancou-me um grito de terror, e o sangue refluiu
do meu rosto, mas mantive o silêncio.
E qualquer coisa em mim murmurou de novo sem voz: «Tu sabes,
Zaratustra, mas não o dizes.»
E respondi então como por bravata: «Sim, sei, mas não quero
dizer.»
E de novo ouvi este murmúrio inarticulado: «Não queres,
Zaratustra? Será verdade? Não te pavoneies no teu desafio.»
E pus-me a chorar e a tremer como uma criança e disse: «Oh!
Bem gostaria eu, mas como fazer? Pela graça, poupa-me! Está
acima das minhas forças.»
NIETZSCHE

E ouvi de novo esse murmúrio inarticulado:


«Que interessa a tua pessoa, Zaratustra? Diz a palavra que
levas contigo, depois destrói-te.»
E eu respondi: «Oh! Será minha, esta palavra? Quem sou eu?
Espero um mais digno, eu nem sequer sou digno de ser destruído
por ele.»
E de novo essa voz inarticulada fez-se ouvir: «O que importa
o que te espera? Não te acho ainda suficientemente humilde. Nada
de coriáceo como o couro da humildade.»
E eu respondi: «Quanto já ele não endureceu, este couro da
minha humildade? Vivo ao pé do meu próprio cume. A que
altitude se elevam os meus cumes? Nunca ninguém mo disse
ainda. Mas conheço bem as minhas depressões.»
E de novo a voz inarticulada fez-se ouvir: «Oh Zaratustra,
quando se é feito para transportar montanhas, podemos
transportar também vales e subterrâneos.»
E eu replicava: «A minha palavra nunca transportou ainda
montanhas e o que eu disse não atingiu, de forma alguma, os
homens. Achei bem ir ter com os homens, ainda não consegui
juntar-me a eles.»
E doravante esta voz inarticulada diz-me: «Que sabes tu
disso? O orvalho cai sobre a erva 110 mais profundo silêncio das
noites.»
E eu respondi: «Eles riram-se de mim quando encontrei e
segui a minha própria via; e, na verdade, as minhas pernas
vacilavam debaixo de mim.
Assim, eles disseram-me: «Esqueceste o caminho, agora
esqueceste de como se anda.»
E de novo esta voz inarticulada disse-me: «O que te
interessam as suas caçoadas? Desaprendeste de obedecer; agora é
preciso que dirijas.
«Não sabes de quem o mundo tem necessidade? Do homem
que dirige grandes coisas.
«Realizar grandes coisas é difícil; mas o mais difícil é dirigir
grandes coisas.
EXTRACTOS

«O teu erro mais imperdoável c que tu tens o poder e recusas-


te a reinar.»
E eu respondi: «Falta-me, para dirigir, a voz do leão.»
E de novo foi como um murmúrio que me chegou: «As
palavras mais silenciosas são aquelas que trazem a tempestade.
Os pensamentos levados em patas de pomba conduzem o mundo.
«Oh Zaratustra, apresenta-te como a Sombra daquele que deve
vir; então tu dirigirás e avançarás como senhor.»
E eu respondi: «Tenho vergonha.»
Então ouvi outra vez esse murmúrio sem voz: «Primeiro, ser-
te-á preciso tornar a ser criança e perder essa vergonha.
«Tu ainda levas contigo o orgulho da juventude, só te tornaste
jovem muito tarde; mas para voltares a ser criança, precisarás
ainda de triunfar sobre a tua juventude.»
E eu reflecti durante muito tempo, todo a tremer. Finalmente,
eu repetia o que dissera primeiro: «Não quero.»
Então, em torno de mim, foi como que uma gargalhada. Oh!
Este riso dilacerava-me as entranhas e atravessava-me o coração.
E, pela última vez, a voz disse-me: Oh Zaratustra, os teus
frutos estão maduros, mas tu, tu não estás maduro
para os teus frutos.
«Volta, pois, para a tua solidão, a fim de te mortificares nela.»
(Assim Falava Zaratustra, II, «A hora do silêncio supremo»,
trad. Geneviève Bianquis, Aubier.)

C) Forças e vontade de poder

«Temos que defender sempre os fortes contra


os fracos.» (*1888)

12. Para um pluralismoOs filósofos têm o costume de falar da


vontade como se fosse a coisa mais bem conhecida do mundo;
NIETZSCHE

Schopenhauer deixou mesmo entender que a vontade era a única


coisa que nos era realmente conhecida, inteira e totalmente
conhecida, sem acréscimo e sem resto; mas parece-me sempre que
Schopenhauer, neste caso como noutros, só fez aquilo que os
filósofos fazem habitualmente; adoptou e levou ao extremo um
preconceito popuUir. A vontade aparece-me antes de mais como
uina coisa complexa, uma coisa que como unidade só tem o seu
nome, e é nesta unicidade do nome que reside o preconceito
popular que enganou a vigilância sempre débil dos filósofos. Ao
menos desta vez, sejamos, pois, mais circunspectos, sejamos
menos filósofos, digamos que em qualquer vontade há primeiro
uma pluralidade de sentimentos, o sentimento do estado de onde
se quer sair, o do estado para onde se tende, o sentido destas
mesmas direcções, «a partir daqui», «para ir ali», enfim, uma
sensação muscular acessória que, mesmo sem que mexamos
braços ou pernas, entra em jogo como qtie maquinalmente logo
que nos pomos a «querer». Da mesma maneira que o sentir, e um
sentir múltiplo, e evidentemente um dos ingredientes da vontade,
ela contém também um «pensar»; em qualquer acto voluntário, há
um pensamento que dirige; e que não se julgue poder isolar este
pensamento do «querer» para obter um precipitado que seria ainda
vontade. Em terceiro lugar, a vontade não é só um complexo de
sentir e de pensar, mas ainda e antes de tudo um estado afectivo, a
emoção de dirigir de que falámos mais acima. Aquilo que
chamamos o «livre arbítrio» é essencialmente o sentimento de
superioridade que sentimos face a um subalterno. «Sou livre, é ele
que deve obedecer», aqui está o que existe no fundo de qualquer
vontade, com esta atenção tensa, este olhar directo fixo sobre uma
só coisa, este juízo absoluto: «Agora, isto é necessário, e nada
mais», a certeza íntima de que seremos obedecidos e tudo aquilo
que constitui ainda o estado de alma daquele que dirige. Querer é
dirigir em si qualquer coisa que obedece ou que julgamos obede-
cer-nos. Mas se consideramos agora a essência mais singular da
vontade, esta coisa tão complexa para a qual o vulgo só tem uma
palavra: se acontece que num caso dado somos ao mesmo tempo
EXTRACTOS

aquele que dirige e aquele que obedece, ao obedecer temos a


impressão de nos sentirmos constrangidos, empurrados, obrigados
a resistir, a movermonos, impressões que seguem imediatamente a
volição; mas na medida em que temos, por outro lado, o hábito dc
fazer abstracção deste dualismo, de nos enganarmos a seu respeito
graças ao conceito sintético do «eu», toda uma cadeia de
conclusões erradas e por conseguinte de falsas avaliações da
própria vontade vêm ainda juntar-se ao querer. Se bem que aquele
que quer acredita de boa fé que é suficiente para agir. Como, na
maior parte dos casos, nos contentámos em querer e que também
pudemos esperar pelo efeito da ordem dada, quer dizer, pela
obediência, pela realização do acto prescrito, a aparência
traduziu-se pelo sentimento de que o acto devia necessariamente
produzir- -se; em suma, aquele que «quer» acredita com um certo
grau de certeza que querer e agir sâo apenas um, em certo sentido.
Atribui o êxito, a execução do querer ao próprio querer, e esta
crença reforça nele o sentimento de poder que o sucesso traz. O
«livre arbítrio» é o nome deste estado de prazer complexo do
homem que quer, que dirige e que ao mesmo tempo se confunde
com aquele que executa e experimenta assim o prazer de
ultrapassar obstáculos, estimando ao mesmo tempo no seu íntimo
que foi a sua vontade que triunfou das resistências. No acto
voluntário, acrescenta-se assim ao prazer de dar uma ordem o
prazer do instrumento que a executa com sucesso; à vontade
acrescentam-se vontades «subalternas», almas subalternas e
dóceis, sendo o nosso corpo apenas o edifício colectivo de várias
almas. O efeito sou eu; passa-se aqui o que se passa em qualquer
colectividade feliz e bem organizada; a classe dirigente identifica-
se com os sucessos da colectividade. Em todo o querer, trata-se
apenas de dirigir e de obedecer no interior de uma estrutura
colectiva complexa, feita, como disse, de «várias almas»; é por
isso que um filósofo deveria poder permitir-se considerar o querer
sob o ângulo da moral, a moral concebida como a ciência de uma
hierarquia dominadora, de onde nasce o fenómeno da vida.
NIETZSCHE

(Para além do Bem e do Mai I, 19, trad. Geneviève Bianquis,


Aubier.
EXTRACTOS

)13. Dois tipos de forças: activo e reactivo

A evolução clc uma coisa, de um uso, de um órgão não é, de


for ma alguma, uma progressão para um fim menos ainda uma
progressão lógica e directa atingida com um mínimo de forças e
de dispêndios - mas antes uma sucessão constante de fenómenos
de subordinação mais ou menos violentos, mais ou menos
independentes uns em relação aos outros, sem esquecer as
resistências que se elevam sem cessar, as tentativas de metamor-
foses que se operam para concorrer para a defesa e para a reacção,
enfim, os resultados felizes das acções em sentido contrário. Se a
forma é fluida, o «sentido» ainda o é mais... E em todo o
organismo tomado separadamente, não se passa outra coisa: cada
vez que o conjunto cresce de uma maneira sensível, o «sentido»
de cada órgão desloca-se - em algumas circunstâncias o seu
enfraquecimento parcial, a sua diminuição (por exemplo, pela
destruição dos termos médios) podem ser o índice de um aumento
de força e de um encaminhamento para a perfeição. Quero dizer
que mesmo o estado de inutilização parcial, o enfraquecimento e a
degenerescência, a perda do sentido e da finalidade, numa palavra,
a morte, pertencem às condições de uma verdadeira progressão: a
qual aparece sempre sob a forma de vontade e de direcção para o
poder mais considerável e realiza-se sempre a expensas de
numerosas potências inferiores [...].
Ponho em relevo este ponto «misarquismo» moderno
capital do método histórico,
porque ele vai contra os
(ah, coisa má, feia
instintos dominantes e o gosto palavra!) [...] infiltra-se
em voga que prefeririam hoje, gota a gota, nas
ainda acomodar-se ao acaso
absoluto e mesmo ao absurdo
ciências mais exactas,
mecânico, de preferência à mais objectivas na
teoria de uma vontade de aparência. Parece-me
poder intervindo em todos os mesmo que ele já se
casos. A aversão contra tudo o
que dirige e quer dirigir, esta tornou senhor da filosofia
idiossincrasia dos democratas, e da biologia inteiras,
o74 | para mal delas, é
NIETZSCHE
evidente, 110 sentido em funções mais nobres do
que lhes escamoteou um organismo, funções em
conceito fundamental, o que a vontade de vida se
da actividade manifesta activa e
propriamente dita. Sob a formativa.
pressão desta (Gen
idiossincrasia, avança-se ealo
a «faculdade de gia
adaptação», quer dizer, da
Mor
uma actividade de
ai
segunda ordem, uma
11,
simples «reactivi- dade»,
12,
até mais, definiu-se a
trad.
própria vida: uma adapta- Hen
ção interior, sempre mais ri
eficaz, a circunstâncias Alb
exteriores (Herbert ert,
Spencer). Mas desse Mer
modo desconhece- -se a cure
essência da vida, a de
vontade de Poder, Fra
fechamos os olhos diante nce.
da preeminência )
fundamental das forças
de uma ordem
14. Duas qualidades da
espontânea, agressiva,
vontade de poder:
conquistadora, usurpante,
afirmação e
transformante e que dá
negação
sem cessar novas
exegeses e novas
Fui o primeiro a ver a
direcções, estando «a
verdadeira antítese: o
adaptação», primeiro,
instinto que degenera e
submetida à sua
que se volta contra a vida
influência; é assim que
com 11111 ódio
negamos a soberania das
subterrâneo
NIETZSCHE

(cristianismo, filosofia de com mais severidade. As


Schopenhauer, num certo partes da existência que
sentido já a filosofia de os cristãos e outros
Platão, o idealismo niilistas rejeitam são
inteiro, como fórmulas mesmo de ordem
típicas) e uma fórmula da infinitamente superior na
afirmação superior, hierarquia dos valores do
nascida da plenitude e da que aqueles aos quais os
abundância, uma instintos da decadência
aprovação sem restrições, dão e têm o direito de dar
a própria aprovação do a sua aprovação. Para
E
X compreender isso é
T preciso ter coragem e, o
R
A que é uma condição da
C coragem, um excedente
T
O de força; porque, exacta-
S
| mente 11a medida em
7 que a coragem pode
5
expor-se em frente,
segundo o mesmo grau
sofrimento, até do erro,
de força, aproximamo-
de tudo aquilo que a
-nos da verdade. O
existência tem de
conhecimento da
problemático e de
realidade, a aprovação da
estranho. Esta última e
realidade são para o forte
alegre confirmação da
uma necessidade tão
vida, confirmação
grande como é, para o
transbordante e im-
fraco, sob a inspiração da
petuosa, responde não
fraqueza, a covardia e a
somente ao entendimento
fuga diante da realidade -
superior, responde
«o ideal»... Não é livre
também ao entendimento
de conhecer quem quer:
mais profundo, aquele
os decadentes têm
que a verdade e a ciência
necessidade da mentira, é
confirmaram e apoiaram
uma das suas condições
fie existência.
(Ecce /
/orno,
«Nasci
mento
da
Tragédi
a«, 2,
trad.
Henri
Albert,
Mercur
e de
France)
(17).

15. Como triunfaram as


forças reactivas: o
ressentimento

A revolta dos escravos


11a moral começa
quando o próprio
ressentimento se torna
criador e gera os
valores: o ressentimento
destes seres, a quem a
verdadeira reacção, a da
acção, está interdita e
que apenas encontra

17O9) A última frase da


tradução está um pouco
modificada.
NIETZSCHE

mcompensação numa vingança imaginária. Enquanto toda a


moral aristocrática nasce de uma triunfal afirmação de si mesma,
a moral dos escravos opõe desde o princípio um «não» ao que não
faz parte de si própria, ao que é «diferente» de si, ao que é o seu
«não-eu»: e este não é o seu acto criador. Esta inversão da
olhadela apreciadora - este ponto de vista necessariamente
inspirado do mundo exterior em vez de repousar sobre si mesmo -
pertence propriamente ao ressentimento: a moral dos escravos
tem sempre e antes de mais necessidade, para nascer, de um
mundo oposto e exterior: precisa, para falar fisiologicamente, dos
estimulantes exteriores para agir; a sua acção é profundamente
uma reacção.
(Genealogia da Morai I, 10, trad. Henri Albert, Mercure de
France.
EXTRACTOS I ^

)para descobrir pretextos para as paixões dolorosas; desfrutam as


suas suspeitas, dão voltas ao miolo a pro- pósito de malícias ou de
danos aparentes de que pretendem ter sido vítimas; examinam as
entranhas do seu passado e do presente, para encontrar aí coisas
sombrias e misteriosas que lhes permitirão exaltar-se com
desconfianças dolorosas, embriagar-se no veneno da sua próxima
maldade - abrem com violência as feridas mais antigas, perdem o
sangue por cicatrizes fechadas há muito tempo, dos seus amigos,
da mulher, dos filhos, de todos que lhes são próximos fazem
malfeitores. «Sofro: certamente alguém deve ser a causa disso» -
assim raciocinam todas as ovelhas doentes. Então o seu pastor, o
sacerdote ascético, responde-lhes: «É verdade, minha ovelha,
alguém é a causa disso: mas tu és, tu próprio, causa de tudo isso -
tu és, tu próprio, causa de ti mesmo!»... E demasiado audacioso,
demasiado falso! Mas um fim, pelo menos, é atingido desta
maneira; tal como o indiquei, a direcção do ressentimento é -
mudada.
(Getiealogia da Moral\ III, 15, trad. Henri
Albert, Mercure de France.)
qualquer sofrimento como o castigo de uma falta... Mas, apesar
de tudo, ela trouxe a salvação ao homem, ò homem tinha um
sentido, já não era mais a folha levada pelo vento, o joguete do
acaso ininteligente, do «sem- -sentido», ele podia querer
doravante alguma coisa - que importava ao princípio o que ele
queria, porquê uma coisa de preferência a outra: a própria
vontade pelo menos estava salva. Por outro lado, é impossível
dissimular a natureza e o sentido da vontade a que o ideal
ascético dera uma direcção: este ódio do que é humano, e ainda
mais do que é «matéria»; este horror dos sentidos, da própria
razão; este receio da felicidade e da beleza; este desejo de fugir de
tudo o que é aparência, mudança, devir, morte, esforço, até desejo
- tudo isso significa, ousamo-lo compreender, uma vontade de
aniquilamento, uma hostilidade à vida, uma recusa em admitir as
condições fundamentais da vida: mas, pelo menos, é e continua
sempre a ser uma vontade!... E para repetir ainda, ao terminar, o
que eu dizia no princípio: o homem prefere ainda ter a vontade do
nada do que de forma alguma não querer...
NIETZSCHE

(Genealogia da Morai I I I , 28, trad. Henri


Albert, Mercure de France.)

D) Do niilismo à transmutação

«O niilismo vencido por ele mesmo.» (*1887)


elevam a energia do sentido vital: age de uma maneira depressiva
[...]. Ela compreende o que está maduro para desaparecer, protege-
se em favor dos deserdados e dos condenados da vida. Pelo
número e pela variedade das coisas falhadas que retém na vida, dá
à própria vida um aspecto sombrio e duvidoso. Teve-se a coragem
cle chamar a piedade uma virtude (em qualquer moral nobre ela
passa por ser uma fraqueza); foi-se mais longe, fez-se dela a
virtude, o terreno e a origem de todas as virtudes. Mas é preciso
nunca esquecer que era do ponto de vista de uma filosofia que era
niilista, que inscrevia sobre o seu escudo a negação da vida.
Schopenhauer tinha razão quando dizia: Ávida é negada pela
piedade, a piedade torna a vida ainda mais digna de ser negada - a
piedade é a prática do niilismo. Mais uma vez: este instinto
depressivo e contagioso cruza estes outros instintos que querem
chegar a conservar e a aumentar o valor da vida; ele é, tanto como
multiplicador como conservador de todas as misérias, um dos
principais instrumentos para a ressurreição da decadência - a
piedade persuade acerca do nada!... Não se diz «o nada»: pomos
em vez disso «o além»; ou então, «Deus»; ou «a vida verdadeira»;
ou então, o nirvana, a salvação, a beatitude... Esta inocente
retórica, que volta a entrar no domínio da idiossincrasia religiosa e
moral, parecerá muito menos inocente desde que compreendamos
qual é a tendência que se envolve aqui num manto de palavras
sublimes: a inimizade da vida [...].
1| NIETZSCHE

A concepção cristã de Deus - Deus, o Deus dos doentes. Deus, a


aranha, Deus, o espírito - é uma das concepções divinas mais
corrompidas que já alguma vez foi realizada na terra: talvez
mesmo esteja no mais baixo nível da evolução descendente do tipo
divino: Deus degenerado até estar em contradição com a vida, em
vez de ser a sua glorificação e afirmação eterna! Declarar aguerra,
em nome de Deus, ã vida, à natureza, a vontade
de viver! Deus, a fórmula para todas as calúnias de «cá»,
para todas as mentiras do «além»! O nada divinizado
em Deus, a vontade do nada santificado!...
(O Anticristo, 7 e 18,
trad. Henri Albert, Mercure de France.)

19. Primeira versão de Deus morreuOS PRISIONEIROS -


Certa manhã, os prisioneiros saíram para o pátio de trabalho: o
guarda estava ausente. Uns dirigiram-se imediatamente para o
trabalho, como era seu hábito, os outros ficaram inactivos e
lançavam olhares de desafio em torno de si. 1-mão, um deles saiu
das fileiras e disse em voz alta: Trabalhem quanto quiserem ou
não façam nada, é completamente indiferente: As vossas
maquinações secretas foram postas a claro, o guarda da prisão
surpreendeu-vos e vai, em breve, pronunciar sobre vocês um juízo
terrível. Vocês conhecem-no, ele é duro e rancoroso. Mas ouçam o
que vos digo: vocês não me conheciam até agora, eu não sou o
que pareço ser. Melhor, sou o filho do guarda da prisão e posso
obter tudo dele. Posso salvar-vos, quero salvar-vos. Mas, bem
entendido, só salvarei aqueles de entre vós que creiam que eti sou
o filho do guarda da prisão. Que os outros recolham os frutos da
sua incredulidade.» - «Muito bem! - diz, passado um momento de
silêncio, um dos mais velhos de entre os prisioneiros que
importância tem para ti que nós tenhamos fé em ti ou não? Se és
verdadeiramente o filho e se podes fazer o que dizes, intercede a
nosso favor com uma boa razão, assim farás verdadeiramente uma
boa obra. Mas deixa esses discursos a propósito de fé e de
incredulidade!» - «Não acredito em nada disso - interrompeu um
dos jovens. - Ele meteu macaquinhos na cabeça. Aposto que
2| NIETZSCHE

dentro de oito dias ainda aqui estaremos, exactamente como hoje,


e o guarda da prisão não sabe nada.» - «E se verdadeiramente ele
soube qualquer coisa, já não sabe nada agora - gritou o último
prisioneiro, que acabara de descer para o pátio - porque o guarda
da prisão acaba de morrer subitamente.» - «Oh! - gritaram vários
prisioneiros ao mesmo tempo - oh! Senhor filho, senhor filho!
Onde está a herança? Talvez agora sejamos seus prisioneiros.» -
«Já vos disse - respondeu docemente aquele que era censurado -
deixaria livre cada 11111 daqueles que têm fé em mim, afirmo-o
com tanta certeza como afirmo que o meu pai ainda está vivo.» -
Os prisioneiros não se riram, mas ergueram os ombros e
deixaram-no ali.
(O Viajante e a sua Sombra, 84, trad. Henri
Albert, Mercure dc France.)
«Reconheço-te, disse com uma voz de bronze, tu és o
assassino de Deus. Deixa-me passar.
«Não pudeste suportar que ele te visse, que ele te tivesse
constantemente sob os olhos e te perfurasse todos os dias, 6 mais
ignóbil dos Homens. Vingaste-te
dessa testemunha.»
Tendo falado assim, Zaratustra quis prosseguir o se u caminho,
mas o ser inominável agarrou-o por uma saliência do seu manto e
pôs-se a gaguejar, à proc ura das suas palavras. «Fica! disse, por
fim.
«Fica! Não te afastes! Adivinhei qual foi o machado que te
abateu. Mas, 110 bom momento, Zaratustra, puseste-tc direito.
«Adivinhaste, eu sei o que deve experimentar aquele que o
matou, o assassino de Deus. Fica! Toma lugar ao meu lado, não
perderás nada aí.
«Em direcção a quem desejaria eu ir senão a ti? Fica! Senta-te.
Mas não me olhes. Respeita também - a minha fealdade.
«Eles perseguem-me; tu és o meu último refúgio. Não é o ódio
deles nem os seus esbirros que me perseguem - oh! rir-me-ia de
tal perseguição, ficaria orgulhoso c contente com ela.
«O sucesso não está longe daqueles que foram bem
perseguidos? E na perseguição aprendemos a seguir, já que
3| NIETZSCHE

caminhamos a seguir ao que perseguimos. Mas aquilo de que fujo


é da piedade deles.
«E contra a piedade deles que venho pedir-te asilo. Zaratustra,
protege-me, tu, meu último refúgio, tu, o
único que me adivinhaste!
[...]
Mas, tu, toma cuidado com a tua própria piedade. Porque uma
multidão de gente pôs-se a caminho para vir encontrar-te, todos os
sofredores, os duvidosos, os
EXTRACTOS I 83

desesperados, aqueles que estão em perigo de se afogar ou de


morrer gelados.
«Contra mim também, chamo-te a atenção. Adivinhaste o
melhor e o pior deste enigma que eu sou. Adivinhaste o que sou eu
e o que faço. Conheço o machado que pode abater-te.
«Mas Ele - era preciso que morresse. Dos seus olhos que tudo
viam, ele via o fundo e a parte de trás do homem, toda a sua
vergonha e toda a sua ignomínia escondidas.
«A sua piedade não tinha pudor; insinuava-se nas dobras mais
imundas, esse curioso, esse indiscreto, esse maníaco da piedade;
era bem preciso que morresse.
«Ele olhava-me sem parar; quis vingar-me dessa testemunha -
ou deixar de viver.
«O Deus que tudo via, e até o homem, era preciso que
morresse. O homem aguenta deixar viva uma testemunha assim.»
Assim falou o mais ignóbil dos Homens...
(Assim Falava Zara lustra, IV, <()
mais ignóbil dos Homens», trad.
Geneviève Bianquis, Aubier.
EXTRACTOS

)está, de forma alguma, fundamentado em crê-lo, vê-se derivar a


última forma do niilismo que implica a negação do mundo
metafísico e que se interdita de acreditar num mundo verdadeiro.
Chegado a este estádio, confessa-se que a realidade do devir é a
única realidade, que se interditam todos os caminhos desviados
que conduziriam a crença para outros mundos e para falsos deuses
- mas não se suporta este mundo que já não se tem a vontade de
negar...
-O que se passou, pois? Chegámos ao sentimento do não valor
d a existência quando compreendemos que ela não se pode
interpretar no seu conjunto nem com a ajuda do conceito de
«fim», nem com a ajuda do conceito de «unidade» nem com a
ajuda do conceito de «verdade». Nâo se chega a nada, não se
atinge nada do género; a unidade global faz falta na pluralidade do
devir: o carácter da existência não é ser «verdade», mas sei'
falso... já não há mais qualquer razão para nos persuadirmos de
que existe um mundo verdadeiro... Em suma, as categorias de
«fim», de «unidade», de «ser», graças às quais demos um valor ao
mundo, nós retiramos-lhas - e o mundo parece ter perdido todo o
valor... í18).
(*1887, A Vontade de Poder. III, 1 1 1 ,
trad. Geneviève Bianquis, Aubier.)

O INSENSATO - Não ouviste falar desse louco que acendia


uma lanterna em pleno dia e se punha a correr pela praça pública a
gritar sem parar: «Procuro Deus!
Procuro Deus!» Mas, como havia ali muitos daqueles que não
acreditavam em Deus, o seu grito provocou uma imensa
gargalhada. Perdeu-se como uma criança?, disse um. Esconde-se?
Tem medo de nós? Embarcou? Emigrou? Assim gritavam e riam
confusamente. O louco saltou para o meio deles e trespassou-os
com o olh ar. «Onde foi Deus? — gritou. Vou dizer-vos. Nós
matámo-lo... vós e eu! Somos nós, todos nós, que somos os seus

18(w) Este texto resume toda a história do niilismo segundo Nietzsche e


descreve a sua última forma-, aquilo a que Zaratustra chama «o último
homem» («Prólogo», 5; e cf. livro II, «O adivinho-). Não o confundiremos
com a forma seguinte: «o homem que quer morrer», descrita no texto n.° 23,
que marca já um além do niilismo.
NIETZSCHE

assassinos! Mas como fizemos isso? Como pudemos esvaziar o


mar? Quem nos deu uma esponja para apagar todo o horizonte?
Que fizemos quando separámos a cadeia que ligava esta terra ao
sol? Onde vai ela, agora? Nós próprios, onde vamos? Para longe
de todos os sóis? Não caímos sem parar? Para a frente, para trás,
de lado, de todos os lados ? Ainda existe um em cima, um em
baixo? Não estaremos, errantes, como que por um nada infinito?
Não sentimos o sopro do vazio sobre o nosso rosto? Não faz mais
frio? Não virão sempre noites, cada vez mais noites? Não é preciso
acender lanternas desde manhã? Ainda não ouvimos nada do
barulho que fazem os coveiros, ao enterrar Deus? Ainda não
sentimos nada da decomposição divina?... Os deuses também se
decompõem! Deus está morto! Deus continua morto! E fomos nós
que o matámos! Como nos consolaremos, nós, assassinos entre os
assassinos! O que o mundo possuiu de mais sagrado e de mais
poderoso até este dia sangrou sob a nossa faca... quem nos limpará
deste sangue? Qtie água nos poderia lavar? Que expiações, que
jogo sagrado seremos obrigados a inventar? A grandeza deste acto
é demasiado grande para nós. Não será preciso que nós próprios
nos tornemos deuses para, simplesmente, termos o ar de ser dignos
dela? Nunca houve acção mais grandiosa e, quaisquer que sejam,
aqueles que vierem a nascer depois de nos pertencerão, por causa
dela, a uma história mais alta que, até aqui, nunca foi história
alguma!» O insensato calou-se com estas palavras e olhou outra
vez para os seus interlocutores: também eles se calavam, como ele,
e olhavam-no com espanto. Por fim, atirou a sua lanterna ao chão,
de maneira que ela se partiu em pedaços e se apagou. «Chego
demasiado cedo», disse então, «o meu tempo ainda não chegou.
Esse acontecimento enorme ainda está a caminho, caminha, e
ainda não chegou ao ouvido dos homens. E preciso tempo para o
relâmpago e para a tempestade, é preciso tempo para a luz dos
astros, é preciso tempo para as acções, mesmo quando são
cumpridas, para serem vistas e ouvidas. Esta acção continua-lhes
ainda mais longínqua do que as mais longínquas constelações; e,
no enlanto> foram eles que a realizaram!» Conta-se ainda que
este louco entrou, no mesmo dia, em diversas igrejas e aí entoou o
EXTRACTOS

seu Requiem aeiemam Deo. Expulso e interrogado, ele não teria


deixado de responder a mesma coisa: «O que são, pois, as igrejas
senão os túmulos e os monumentos f únebres de Deus?»
(A Gaia Ciência, III, 125, trad. Vialatte, NRF)
sacrificar, mas que se imolam à terra, a fim de que a terra
seja um dia o império do Sobre-Humano.
Amo aquele que só vive para saber e que quer saber a
fim de permitir um dia que o Sobre-Humano viva. É assim
que à sua maneira ele quer a sua própria perda.
Amo aquele que trabalha e inventa a fim de construir um dia a
morada do Sobre-Humano e de preparar a terra, o animal e a
planta para a sua vinda; é assim que à sua maneira ele quer a sua
própria perda.
Amo aquele que ama a sua virtude; porque a virtude é vontade
de morrer e flecha infinita de desejo.
Amo aquele que não põe em reserva a mínima gota do seu
espírito, mas que é a quintessência da sua própria virtude; é no
estado de espírito quintessenciado que ele ultrapassará a ponte.
Amo aquele que faz da sua virtude a sua tendência e a sua
fatalidade; é assim que por amor à sua virtude ele quer, ao mesmo
tempo, viver ainda e não viver mais.
Amo aquele que não quer de modo algum ter demasiadas
virtudes. Uma virtude é mais virtude que duas, é um nó forte onde
se prende o destino.
Amo aquele cuja alma na sua prodigalidade recusa qualquer
gratidão e nunca dá nada; porque ele dá sempre e não reserva nada
para si.
Amo aquele que se envergonha quando os dados lhe são
favoráveis e que se pergunta a si mesmo, então: «Serei um
batoteiro?» Porque a sua vontade é morrer.
Amo aquele que espalha diante das suas acções uma ramagem
de palavras douradas e que suporta mais do que prometeu; porque
a sua vontade é morrer.
Amo aquele que de avanço justifica os homens futuros e liberta
os do passado; porque a sua vontade e
morrer pelos de hoje.
NIETZSCHE

Amo aquele que casdga o seu Deus porque gosta do seu Deus;
porque ele morrerá da cólera do seu Deus.
Amo aquele cuja alma c profunda até nas suas feri- das e que
pode morrer de qualquer incidente fútil; porque é de boa vontade
que ele atravessa a ponte.
Amo aquele cuja alma transborda ao ponto de perder a
consciência de si mesmo e de levar todas as coisas nele; assim é a
totalidade das coisas que causam a sua perda.
Amo aquele que é livre de coração e de espírito; a sua cabeça
serve de entranhas para o seu coração e é o seu coração que o leva
a morrer.
Amo todos aqueles que são parecidos com aquelas pesadas
gotas que caem uma a uma da nuvem negra suspensa em cima dos
homens; eles anunciam que o relâmpago está próximo, morrem
por serem os seus anunciadores.
Aqui está, sou o anunciador do raio, sou uma pesada gota caída
da nuvem; mas este raio é o Super-Homem.
(Assim Falava Zaratustra. «Prólogo», 4, trad.
Geneviève Bianquis, Aubier.)

24. .4 transmutação: o negativo ao serviço de uma afirmação


superior

O problema psicológico no tipo de Zaratustra está formulado


da seguinte maneira: como é que aquele que permanece num grau
supremo de negação, que age por negação, em face de tudo aquilo
que até agora foi afirmado, pode ser, apesar disso, o mais ligeiro e
o mais longínquo - Zaratustra é um dançarino; como é que aquele
que procede ao exame mais duro e mais terrível da realidade, que
examinou «as ideias mais profundas», não encontra nela, contudo,
objecção contra a existência e mesmo contra o eterno retorno
desta, como ele encontra aí, até, uma razão para ser ele próprio a
eterna afirmação de todas as coisas, «dizem sim e ámen de uma
maneira enorme e ilimitada»... «Levo a todos os abismos a minha
afirmação que abençoa...» Mas, isto, mais uma vez, é a própria
ideia de Dioniso.
EXTRACTOS

(licce Homo,
«Assim Falava Zaratustra», 6,
trad. Henri Albert, Mercure de Francc.)

25. Essência afirmativa da vontade de poder

Necessidade de dominar: chibatas mordazes reservadas aos


corações duros entre todos; cruel martírio reservado ao mais cruel;
chama escura das fogueiras onde se encrespa a carne viva.
Necessidade de dominar: pavão cruel imposto aos povos mais
orgulhosos; insulto a toda a virtude incerta; cavaleiro que cavalga
todas as montadas e todos os orgulhos.
Necessidade de dominar: tremor de terra que parte e estilhaça
tudo o que é oco ou carunchoso: avalanche destruidora que rola
rimbombando e castiga os sepulcros esbranquiçados; relâmpago
interrogador posto perto das respostas prematuras.
Necessidade de dominar: sob o olhar da qual o homem rasteja e
se torna mais humilde e mais senil e mais baixo do que a serpente
ou o porco - até ao momento em que se desperta nele o grito do
seu grande Desprezo.
Necessidade de dominar: mestre temido do grande Desprezo,
que prega abertamente às cidades e aos reinos: «Desapareçam!»
até que uma voz se eleve neles, gritando: «Desapareçamos!»
Necessidade de dominar: tu que também vens encontrar, com
todos os teus encantos, os puros e os solitários, tu que sobes a
alturas que se bastam a si mesmas, ardente como um amor que
vem pintar sobre os horizontes terrestres perspectivas sedutoras e
felicidades purpurizadas.
Necessidade de dominar: mas como chamar necessidade a esta
grandeza que condescende ao poder? Na verdade, não há aí nada
de mórbido, nada de cúpido em tais desejos, em tais
condescendências.
Que a grandeza solitária não queira continuar eternamente
solitária a sustentar-se de si mesma, que a montanha se debruce
para o vale e que os ventos das alturas desçam para as depressões.
NIETZSCHE

Oh! quem poderia dizer o nome verdadeiro, o nome de virtude


que convém a uma aspiração semelhante? A virtude que dá, tal foi
o nome que Zaratustra deu um dia a este sentimento indizível.
(Assim Falava Zaratustra, III, «Dos três males»,
trad. Geneviève Bianquis, Aubier.)

E) O eterno retorno

«Quero c ontar agora a história de Zara-


tustra. A concepção fundamental da obra, a
ideia do eterno retorno, esta fórmula suprema
da afirmação...» (Ecce Homo)
contra tudo aquilo que volveu, ele olha com hostilidade todo o
passado.
O querer não pode nada sobre o que está atrás dele. Não poder
destruir o tempo nem a avidez devoradora do tempo, tal é a
angústia mais solitária do querer.
Querer é libertação; o que é que o querer inventa para se livrar
da sua angústia e para se rir da sua prisão?
Oh! qualquer prisioneiro se torna louco! Também loucamente o
querer cativo se liberta.
Que o tempo não possa voltar atrás, c o seu prejuízo. O «facto
consumado» é a rocha que ele não pode deslocar.
Ent ao ele faz rolar blocos de despeito e de cólera e vinga-se de
tudo aquilo que não ressente, como ele, despeito e cólera.
E assim que o querer libertador se torna malfeitor c, sobre tudo
aquilo que é apto para o sofrimento, ele vinga-se de não poder
voltar atrás.
Porque é isso a própria vingança; o ressentimento do querer
contra o tempo e o irrevocável passado.
Na verdade, há uma grande loucura no nosso querer, e para
todos os homens é uma maldição que esta loucura tenha aprendido
a tornar-se espírito.
O espirito de vingança, tal é, ó meus amigos, a forma superior
da reflexão no homem ate este dia; e onde havia sofrimento,
exigiu-se que este sofrimento fosse castigo.
EXTRACTOS

Castigo - tal é o nome que a vingança se dá, palavra mentirosa


que lhe serve para inventar uma boa consciência.
E como mesmo naquele que quer há dor, porque não pode
voltar ao passado, foi preciso que o próprio querer e a vida inteira
aparecessem como um castigo.
E, desde então, nuvens sobre nuvens amontoaram-se sobre o
espírito, até ao dia em que a loucura acabou por pregar: «Tudo
passa, pois, tudo tem o mérito de passar.
«E é a própria justiça, esta lei do tempo que a obriga a devorar
os seus próprios filhos» - assim pregou a loucura.
«Todas as coisas são regras segundo uma ordem moral de
legalidade e de castigo. Como livrar-nos do fluxo incessante das
coisas e do castigo da existência?» - assim pregava a loucura.
«Pode haver redenção, se existe um direito eterno? Oh!
ninguém poderá fazer rolar, alguma vez, a rocha do «facto
consumado»; todas as penas, necessariamente, são eternas.» Assim
pregava a loucura.
«Nenhuma acção pode ser apagada. Como é que o castigo a
poderia abolir? Aqui está o carácter eterno deste castigo que é a
existência; a existência não pode ser senão uma sequência eterna
de actos e de erros.
«A menos que o querer não acabe por se libertar e que o querer
se torne não-querer» - mas vocês conhecem, meus irmãos, este
estribilho da desrazão.
Desviei-vos deste estribilho ensinando-vos: o querer é criador.
Tudo o que foi não passa de fragmento, enigma e horrível
acaso, até ao dia em que o querer criador declare: «Mas eu quis
assim.»
Até ao dia em que o querer criador declare: «Mas eu quero-o
assim. E querê-lo-ei assim.»
Mas disse alguma vez estas palavras? E quando será isso? O
querer já desposou o aniês da sua própria loucura?
O querer já se tornou o redentor de si próprio, o mensageiro de
alegria? Terá desaprendido o espírito de vingança e qualquer
espécie de roçar de dentes?
EXTRACTOS |1

E quem, pois, lhe ensinou a reconciliar-se com o tempo e a


fazer o que é mais elevado do que qualquer reconciliação?O que
deve querer o querer que é querer de poder ultrapassa qualquer
reconciliação - mas como se chega lá? Quem lhe ensinou a querer
mesmo o retorno a tudo o que foi?
(Assim Falava Zaratustra, II, «Da redenção»,
trad. Geneviève Bianquis, Aubier.)

27. Porque o eterno retorno mete medo

A cruz a que estou ligado não é de saber que o homem é mau,


mas aqui está o que proclamei como ninguém ainda o havia
proclamado:
Oh! Será preciso que o que há de pior no homem seja ainda
mesquinho?
O desgosto que tenho do homem - aqui está o animal que me
asfixiava depois de ter deslizado para a minha garganta; e esta
frase do Profeta: «Tudo é igual, nada vale a pena, o saber asfixia-
nos.»
Um longo crepúsculo arrastava-se com dificuldade diante de
mim, uma tristeza cansada a morrer, bêbeda de morte, e que falava
a bocejar.
«Ele voltará sempre, aquele de que estás cansado, o homem
mesquinho» - assim dizia a minha tristeza, a bocejar, arrastando os
pés sem poder adormecer.
Vi a terra dos homens tornar-se cavernosa, o seu peito oprimiu-
se, tudo o que vive apareceu-me como uma podridão humana, feita
de ossadas e de um passado carunchoso.
Os meus suspiros demoravam-se sobre todas os sepulcros dos
homens e não podiam mais abandoná-los. Os meus gemidos e as
minhas interrogações não deixavam de me inquietar, de me
asfixiar e de me desgastar e de se lamentar dia e noite:
NIETZSCHE

«Oh! o homem voltará eternamente! o homem mesquinho


voltará eternamente!»Vi-os a ambos, nus, outrora, o maior dos
homens e o mais pequeno, demasiado semelhantes entre si, o
maior demasiado humano ainda, o maior demasiado pequeno
ainda! Aqui está o que me desgostou dos homens, e do Retorno
eterno do mais pequeno de entre eles. Aqui está o que me
desgostou de toda a existência.
Ah! desgosto, desgosto, desgosto! - assim falava Zaratustra
suspirando e tremendo; porque ele recorda-
va-lhe a sua doença.
(Assim Palavra Zaratustra, III, «O convalescente», irad. Geneviève
Bianquis, Aubier.)

28. O medo ultrapassado: o eterno Retorno como pensamento


selectivo

«Mas se tudo está determinado, como posso dispor dos meus


actos?» O pensamento e a crença são um peso que pesa sobre ti,
tanto e mais do que qualquer outro peso. Dizes que a alimentação,
o sítio, o ar, a sociedade te transformam e te condicionam? Muito
bem, as tuas opiniões ainda o fazem mais, porque são elas que te
determinam na escolha da tua alimentação, da tua morada, do teu
ar, da tua sociedade. Se assimilas este pensamento entre os
pensamentos, ele te transformará. Se, em tudo o que quiseres
fazer, começas por perguntar a ti mesmo: «E certo que o queira
fazer um número infinito de vezes?», será para ti o centro de
gravidade mais sólido.
[...] A minha doutrina ensina: «Vive de tal maneira que devas
desejar reviver, é o dever - porque tu reviverás, de qualquer
modo! Aquele cujo esforço é a alegria suprema, que se esforce!
Aquele que gosta sobretudo de repouso, que repouse! Aquele que
gosta antes de tudo de submeter-se, obedecer e seguir, que
obedeça!
Mas que saiba bem para onde vai a sua preferência e que não
recue diante de nenhum meio! Aí está a eternidade» Esta doutrina
é doce para aqueles que não têm fé nela; não tem nem inferno nem
EXTRACTOS

ameaças. Aquele que não tem a fé não sentirá nele senão uma vida
fugitiva.
(*1881, A Vontade de Poder; IV, 242-244, trad. Geneviève Bianquis,
NRF.)

29. O medo ultrapassado: o eterno Retorno como ser selectivo

Eu sou profeta e cheio daquele espírito profético que erra sobre o


cume elevado entre dois mares,
indo e vindo, como uma nuvem pesada, entre o passado e o
futuro, inimigo das partes baixas asfixiantes e de todos os seres
extenuados que não sabem já nem morrer nem viver,
nuvem sempre pronta a libertar do fundo do seu coração
obscuro o relâmpago, o raio libertador, o raio que diz sim, cujo
riso diz sim, o relâmpago profético, (no entanto, feliz é quem
trouxer tais raios no seu seio, porque é preciso, na verdade, que
permaneça suspenso por muito tempo, suspenso como uma nuvem
pesada de tempestade no flanco da montanha, aquele que está
destinado a acender a tocha do futuro) -
Oh! como não arderia eu do desejo da eternidade, do desejo do
anel dos anéis, o anel nupcial do Retorno!
Nunca encontrei ainda a mulher de quem quis ter filhos, se não
for esta mulher que eu amo, porque eu te amo, ó Eternidade!
1| NIETZSCHE

Porque te amo, ó Eternidade!II

Se a minha cólera nunca violou túmulos, deslocada dos limites-


fronteiras, e faz rolar pedaços para profundos abismos das antigas
mesas,
se o meu sarcasmo dispersou ao vento palavras carunchosas, se
fui a vassoura que enxota as aranhas porta-cruzes e o vento que
areja os antigos sepulcros cheios de ar confinado,
se nunca dominei, em triunfo, sobre os túmulos dos deuses
mortos, benzendo este mundo, amando este mundo, junto dos
monumentos dos antigos detractores deste mundo,
- porque até gosto das igrejas e dos sepulcros dos deuses, desde
que o céu mergulhe o seu puro olhar através das suas abóbadas
quebradas; parecido com a erva e com a papoila vermelha, gosto
da estadia das igrejas em ruína -
Oh! como não arderei eu do desejo da eternidade, do desejo do
anel dos anéis, o anel nupcial do Retorno?
Nunca encontrei ainda a mulher de quem quis ter filhos, se não
for esta mulher que eu amo; porque eu te amo, ó Eternidade!
Porque te amo, ó Eternidade!

Ill
Se nunca senti o corpo do espírito criador e desta necessidade
celeste que obriga os próprios acasos a dançar rondas astrais,
se nunca ri como ri o relâmpago criador que segue rabugento
mas dócil a longa tempestade da acção,
EXTRACTOS

- se nunca joguei os dados com os deuses, na mesa divina


da terra, de forma que a terra estremecesse, se fendesse e
brotassem torrentes de fogoporque a terra é a mesa dos deuses
e ela treme quando ribombam palavras inovadoras e criadoras
e quando os deuses lançam os dados
Oh! como não arderia eu do desejo da eternidade, do
desejo do anel dos anéis, o anel nupcial do Retorno!
Nunca encontrei ainda a mulher de quem quis ter filhos, se
não for esta mulher que eu amo; porque eu le amo, ó
Eternidade!
Porque te amo, ó Eternidade!
( A s s i m lalava Zaratustra, III «Os sete sinais»,
trad. Geneviève Bianquis, Aubier.)

30. A dupla afirmação


[...]
Suprema constelação do ser! Mesa
das visões eternas! Es tu que vens
a mim? - O que ninguém viu, a tua
muda beleza -
como é que ela não foge diante dos meus olhares?

Símbolo da necessidade! Mesa das


visões eternas!
- Mas tu sabe-lo bem: o
que todos odeiam,
o que eu sou o único a amar, sabes bem que és eterna! que
és necessária!

O meu amor não se inflama, eternamente,


senão com a necessidade. Símbolo da
necessidade!
Constelação suprema do ser! - que
nenhum voto pode atingir, que nenhuma
negação macula, eterna afirmação do ser,
eternamente sou a tua afirmação: porque
te amo, ó eternidade!
NIETZSCHE

(*1889, Ditirambos dionisíacos, trad. Henri


Albert, Mercure de France.)

31. O Super-Homem

Eu ensino-vos o Sobre-Humano. O homem só existe para ser


ultrapassado. Que fizestes vós para o ultrapassar?
Até agora, todos os seres c riaram qualquer coisa que os
ultrapassa, e vós desejaríeis ser o refluxo desta grande maré e
voltar ao animal de preferência a ultrapassar o homem?
O que é o macaco para o homem? Escárnio ou vergonha
dolorosa. Tal será o homem para o Sobre- Humano: escárnio ou
vergonha dolorosa.
Vós percorrestes o caminho que vai do verme ao homem, e
ainda tendes verme dentro de vós. Outrora foram macacos, e
mesmo agora o homem é mais macaco do que qualquer macaco.
Até o mais sábio de entre vós não passa ainda de um ser
híbrido e díspar, meio-planta, meio-fantasma. Dissemos a vós que
se tornásseis fantasmas ou plantas? Aqui está, ensino-vos o Sobre-
Humano. O Sobre-Humano é o sentido da terra. Que o vosso
querer diga: Possa o Sobre-Humano tornar-se o sentido da terra!
Conjuro-vos disso, ó meus irmãos, permaneçam fiéis à terra e não
acreditem naqueles que vos falam de espe- EXTRACTOS I 99

ranças supra-terrestres. Conscientemente ou não, são


envenenadores.
São maldizentes da vida, moribundos, intoxicados de quem a
terra está cansada: que morram, pois!
Blasfemar Deus era outrora a pior das blasfémias, mas Deus
morreu e mortos com ele estão esses blasfemadores. Doravante, o
crime mais odioso é blasfemar a terra e dar um maior preço às
entranhas do insondável do que ao sentido da terra [...].
(Assim lalava Zaratustra, «Prólogo», 3, trad. Geneviève Bianquis.
Aubier.)

32. Significação do Super-Homem


NIETZSCHE

A palavra «Sobre-Humano», por exemplo, que designa um tipo


de perfeição absoluta, cm oposição com o homem «moderno», o
homem «bom», com os cristãos e outros niilistas, quando se
encontra na boca de um Zaratustra, o destruidor da morai toma um
sentido que dá muito que pensar. Em quase toda a parte, inocente-
mente, deram-lhe uma significação que o pôe em contradição
absoluta com os valores que foram afirmados pelo personagem de
Zaratustra, quer dizer, que se fez dele o tipo «idealista» de uma
espécie superior de homens, meio «santos», meio «génios»...
Outros animais com chavelhos sábios, por causa desta palavra,
suspeitaram que eu fosse darwinista; até se quis encontrar aí o
«culto dos heróis» desse grande falsário inconsciente que era
Carlvle, esse culto que eu tão maliciosamente rejeitei. Quando eu
murmurava a alguém que seria melhor inquirir sobre um César
Bórgia do que sobre um Parsifal, ele não acreditava nos próprios
ouvidos. [...].
Vejam como Zaratustra desce da sua montanha para dizer a
cada um as coisas mais benévolas! Vejam com que mão delicada
toca mesmo nos adversários, os sacerdotes, e como sofre com eles,
deles mesmos. - Aqui, a cada minuto, o homem é ultrapassado, a
ideia do «Sobre-Humano» tornou-se a mais elevada realidade.
Num infinito longínquo, tudo aquilo que até agora foi chamado
grande no homem encontra-se abaixo dele. O carácter alciónico, os
pés leves, a coexistência da maldade e da impetuosidade, o que
existe ainda de típico na figura de Zaratustra, nunca foi sonhado
como atributo essencial da grandeza. Zaratustra considera-se
precisamente, nestes limites do espaço, neste acesso fácil para as
coisas mais contraditórias, como a espécie superior de tudo o que
existe [...].
(Ecce Homo. «Porque escrevo livros tão bons», I, e 6 na
exposição de Zaratustra, trad. Henri Albert, Mercure de
France.)

Conclusão: sobre a loucura


NIETZSCHE

«E por vezes a própria loucura c a máscara


que esconde um saber fatal e demasiado
seguro.»
(Para além do Rrm e do M a l )
«No fundo, gostaria mais de ser professor em Basileia do que
Deus, mas não tive coragem de levar tão longe o meu
egoísmo pessoal para abandonar a criação do mundo. Veja
bem, é preciso fazer alguns sacrifícios, onde e de qualquer
maneira que se viva... O que é lamentável, o que perturba a
minha modéstia, é que no fundo cada nome da História, sou
eu. E, no respeitante às crianças que pus no mundo, a
situação é tal que pergunto a mim mesmo, com desconfiança,
se todos aqueles que entram no império d
e
EXTRACTOS

Deus não vêm também de Deus Este Outono,


nào me maravilhei por assistir duas vezes ao
meu enterro, primeiro como conta Robilant
(nào! é meu filho enquanto eu sou Carlo
Alberto, infiel à minha natureza); mas
Antonelli, cu era- -o eu próprio...»
(*Carta a Burckhardt,
6 de Janeiro de 1889.)

33. A loucura e os deuses

Os ( »regos serviram-se durante muito tempo dos seus deuses


para se prevenirem contra qualquer veleidade de «má
consciência», para terem o direito de desfrutar em paz a sua
liberdade de alma: portanto, num sentido oposto à concepção que
o cristianismo fizera do seu Deus. Eles foram muito longe nesta
via, essas soberbas crianças com coração de leão; e até a
autoridade de um Zeus homérico lhes dá a entender, por vezes,
que eles vão demasiado longe. E estranho, diz ele certa vez -
trata- -se do caso de Egisto, um caso deveras espinhoso,

E estranho ver quanto os mortais se queixam dos deuses!


NIETZSCHE

1101

Só de nós vem o mal, se os ouvirmos! Eles próprios, porém,


Pela sua loucura, criam as suas próprias infelicidades,
Iapesar do destino.

Mas ouve-se e observa-se que este espectador, este juiz


olímpico está ainda demasiado longe de lhes querer mal par causa
disto e de lhes guardar rancor: «Eles são malucos/» - assim pensa
em face das más acções dos mortais - e a «loucura», a «desrazão»,
um pouco de «perturbação no cérebro», aqui está o que também
os Gregos da época mais vigorosa e mais brava admitiam para
explicar a origem de muitas das coisas más e fatais:
NIETZSCHE

- Loucura, e não pecado! Compreendem?... E ainda esta


perturbação na cabeça era para eles um problema. - «Como era
possível esta perturbação? Como podia produzir-se em cabeças
como nós as temos, nós, homens de origem nobre, nós, homens
felizes, bem-vindos, distinguidos, de boa sociedade, virtuosos?» -
Esta foi a questão que pôs, durante séculos, o Grego nobre em
presença de qualquer crime ou perversidade, incompreensível
àqueles olhos, mas com que 11111 homem da sua casta se sujara.
«É preciso que 11111 deus o tenha cegado», dizia abanando a
cabeça... Este subterfúgio é típico nos Gregos... Aqui está a
maneira como os deuses então serviam para justificar os homens
até um certo ponto, mesmo nas suas más acções, eles não
tomavam sobre si o castigo, mas, o que é mais nobre, a falta...
(Genealogia (ta Moral, I I , 24, trad. Henri Albert,
Mercure de France.)
NIETZSCHE

a
ao portador de uma ideia nova, a veneração e o receio dele
próprio, e já não remorsos, e que o empurrasse ser o profeta e o
mártir desta ideia? - Enquanto nos nossos dias nos dão sempre a
entender que o génio possui, em vez de um grão de bom senso, um
grão de loucura, os homens de outrora estavam muito mais perto
da ideia de que onde houvesse loucura havia também um grão de
génio e de sabedoria - qualquer coisa de «divino», como se
murmurava ao ouvido. Ou, de preferência, havia quem se
exprimisse mais nitidamente: -Pela loucura, foram espalhados pela
Grécia os maiores benefícios», dizia Platão com toda a humanida-
de antiga. Avancemos mais um passo: a todos estes homens
superiores levados irresistivelmente a quebrar o jugo de uma moral
qualquer e a proclamar leis novas, não havia outra coisa a fazer,
quando eles não eram verdadeiramente loucos, senão vir a sê-lo
ou a simular a loucura [...].
«Como é que nos tornamos loucos quando não o somos e
quando não temos a coragem de fingir que o SOMOS?» Quase
todos os homens eminentes da antiga civilização se debruçaram
sobre este pavoroso raciocínio; uma doutrina secreta, feita de
artifícios e de indicações dietéticas, conservou-se sobre este
assunto, ao mesmo tempo que o sentimento da inocência e mesmo
da santidade de tal intenção e de tal sonho. As fórmulas para
tornar-se médico, entre os índios, santo entre os cristãos da Idade
Média, «anguecoque» entre os gronelandeses, fmje» entre os
brasileiros, são, nas suas linhas gerais, as mesmas: o jejum
exagerado, a contínua abstinência sexual, a retirada para o deserto
ou para a montanha, ou ainda no alto de uma coluna, ou então
ainda «a estadia num velho salgueiro na margem de um lago» e a
ordem de não pensar noutra coisa senão naquilo a qtie pode levar o
êxtase e a desordem do

espírito. Quem, pois, teria a coragem de lançar um olhar no


inferno das angústias morais, as mais amarga e as mais inúteis, em
NIETZSCHE

que, provavelmente, se consumiram os homens mais fecundos de


todas as épocas! Quem terá coragem de escutar os suspiros dos
solitários e dos extraviados: «Oh! dêem-me, então, a loucura,
potências divinas! a loucura para que eu acabe por fim por
acreditar em mim mesmo! Dêem-me delírios e convulsões, horas
de clareza e de obscuridade súbitas, assustem-me com comoções e
ardores que nenhum mortal alguma vez tenha experimentado,
cerquem-me de estrondos e de fantasmas, deixem-me uivar e
gemei e rastejar como um animal: desde que tenha fé em mim
mesmo! A dúvida devora-me, matei a lei e tenho pela lei o horror
dos vivos por um cadáver; a menos que esteja acima da lei, sou o
mais reprovado de entre os reprovai dos. O espírito novo que está
em mim, de onde me vem ele se não vem de vocês? Provem-me,
pois, que eu vc#r pertenço! - Só a loucura mo demonstra.» E
demasiadas vezes este fervor atingiu o seu fim; na época em que jo
cristianismo fazia mais largamente a demonstração da sua
fertilidade ao multiplicar os santos e os anacoretas, julgando assim
afirmar-se, havia em Jerusalém grandes estabelecimentos de
alienados para os santos naufragados, para aqueles que tinham
sacrificado o seu último grão de razão.
(Aurora, I, 1 4 , trad. Henri Albert. Mercure
de France.)
BIBLIOGRAFIA

Entre os estudos alemães, citaremos principalmente:

1
ÍLARL LÒYVITH, Nietzsches Philosophie der ewigen Wiederkehr
des Gleichen, Estugarda, 1935. ÍARL JASPERS, Nietzsche, Berlim,
1936. 1 UGEN FINK, Nietzsches Philosophie, Estugarda, 1960.
MARTIN HEIDEGGER, Nietzsche, Pfullingen, 1961.

Entre os estudos franceses:

CHARLES ANDLER, Nietzsche, 5« vie, 5« pensée, 6 vol., 1920- -1931,


Éd. Bossard, e NRF.
NIETZSCHE

Mais recentes:

JEAN WAHL, Lavant-dernière pensée de Nietzsche, C.D.U.,


1961.
HENRI BIRAULT, «En quoi nous sommes, nous aussi, encore
pieux», ita/iu? Métaphysique et de Morale,
1962, n.° 1.
— «Nietzsche et le pari de Pascal», itatóüio di Filosofia, 1962,
n.° 3.GILLES DF.LEUZE, Nietzsche et la philosophie, P.U.F.,
4.a ed., 1974.
EDOUARD GAEDE, Nietzsche et Valéry, NRF, 1962.
PIERRE KLOSSOWSKI, C/W si funest désir,; NRF, 1963.
JEAN GRANIER, Le problème de la vérité dans la
philosophie de
Nietzsche, Éd. du Seuil, 1966. — Nietzsche, Va? rt vérité; P.U.F.,
1971
.ÍNDICE

A VIDA.....................................................................................7
A FILOSOFIA.........................................................................17
DICIONÁRIO DAS PRINCIPAIS PERSONAGENS
DE NIETZSCHE.................................................................39
A OBR-\...................................................................................47
EXTRACTOS..........................................................................51
O que é um filósofo? (1-6)............................................51
Dioniso filósofo (7-11).................................................61
Forças e vontade de poder (12-17) ...............................70
Do niilismo à transmutação (18-25)..............................78
O eterno retorno (26-32)................................................. 90
Sobre a loucura (33-34)................................................. 100
105
BIBLIOGRAFIA BIBLIOTECA BÁSICA DE
FILOSOFIA 16
NIETZSCHE

Filósofo umas vezes enaltecido r outras tantas


amaldiçoado, Nietzsche é um pensador a
redescobrir. E isso que Gilles Deleuze nos
propõe nesta obra de síntese, em que o
pensador e o seu pensamento nos surdem
numa abordagem inovadora. Isto sem
esquecer, evidentemente, o lado poético da
filosofia de Nietzsche.

978972441422516. Continuação: a má consciência ou a viragem


contra si

O sacerdote é o homem que muda a direcção do ressentimento.


Com efeito, qualquer ser que sofre procura instintivamente a causa
do seu sofrimento; ele procura-lhe mais particularmente uma causa
animada, ou, ainda mais exactamente, uma causa responsável
susceptível de sofrer, em suma, um ser vivo contra quem, sob um
qualquer pretexto, poderá, de uma maneira efectiva ou em efígie,
descarregar a sua paixão; porque isto é, para o ser que sofre, a
suprema tentativa de consolação, quero dizer, de aturdimento,
narcótico inconscientemente desejado contra qualquer espécie de
sofrimento. Quanto a mim, é esta a única verdadeira causa
fisiológica do ressentimento, da vingança e de tudo que se liga a
NIETZSCHE

isso, quero dizer, o desejo de se atordoar contra a dor por meio da


paixão [...]. Aqueles que sofrem são de uma engenhosidade e de
uma prontidão aterradoras
17. Como o niilismo triunfa na vontade de poder

O sem-sentido da dor, e não a própria dor, é a maldição que até


agora pesou sobre a humanidade: Ora, o ideal ascético dava-lhe
um sentido! Foi até agora o único sentido que se lhe deu; qualquer
sentido vale mais do que não haver sentido algum; o ideal ascético
não passava, de todos os pontos de vista, do «à falta de melhor»
por excelência, o único último recurso que havia [...]. A
interpretação que se dava à vida conduzia inegavelmente a um
novo sofrimento, mais profundo, mais íntimo, mais envenenado,
mais mortífero: fez ver
18. Deus e o niilismo

Chama-se ao cristianismo religião da piedade. A piedade está


em oposição com as afecções tónicas que
20. Deus morreu

«Zaratustra, Zaratustra, adivinha o meu enigma. Fala, fala:


qual é a vingança contra a Testemunha?
«Recua, peço-te, o gelo é escorregadio. Toma cuidado para que
o teu orgulho não parta aí uma perna.
«Julgas-te sábio, orgulhoso Zaratustra? Adivinha, pois, este
enigma, tu que quebras as nozes mais duras. Adivinha este enigma
que eu sou. Diz-me, quem sou eu?»
Mas quando Zaratustra ouviu estas palavras, que julgam vocês
que se passou na sua alma? A piedade assaltou-o e ele caiu como
uma maçã, como um carvalho que aguentou por muito tempo
contra numerosos lenhadores e que cai com uma queda pesada,
súbita, para terror daqueles mesmos que queriam abatê-lo. Mas já
ele se erguia e os seus traços se endureceram.
21. Depois da morte de Deus, ainda o niilismo

Uma vez admitidos estes dois factos, que o devir é o princípio e


que não é dirigido por qualquer grande unidade na qual o
NIETZSCHE

indivíduo possa mergulhar totalmente como um elemento de valor


supremo, resta uma escapatória possível: é condenar todo este
mundo do devir como ilusório e inventar um mundo sittiado além,
que seria o mundo verdadeiro. Mas desde que o homem descobre
que este mundo não está construído sobre as suas próprias
necessidades psicológicas e que ele nao
23. Aproximação da transmutação

A grandeza do Homem é que ele é uma ponte e não um fim; o


que podemos amar no Homem é que ele é transição e pndição.
Amo aqueles que não sabem viver senão sob a condição de
morrer, porque, ao morrer, ultrapassam-se.
Amo aqueles que um grande desejo enche, porque levam em si
o respeito supremo, eles são as flechas do desejo estendido para a
outra margem.
Amo aqueles que não têm necessidade de procurar para além
das estrelas uma razão de morrer e de se
26. Vontade de poder e eterno retorno

O querer, tal é o nome do redentor, do mensageiro de alegria; aí


está o que vos ensinei, meus amigos. Mas aprendam ainda isto: o
próprio querer é cativo.
Querer é libertação; mas como é que se chama aquilo que põe
ferros 110 próprio libertador?
«E do passado, é um facto» - palavra que enche de contrição e
de dor o querer na sua solidão. Impotente
34. Função da Loucura

Em quase toda a parte, é a loucura que aplana o caminho da


ideia nova, que rompe a proclamação de um costume, de uma
superstição venerada. Compreendem por que foi precisa a
assistência da loucura? De qualquer coisa que fosse tão terrível e
tão incalculável, na voz e na atitude, como os caprichos
demoníacos da tempestade e do mar e, por consequência, de
qualquer coisa que fosse, ao mesmo título, digna do receio e do
respeito? De qualquer coisa que transportasse, como as convulsões
e a espuma do epiléptico, o sinal visível de uma manifestação
NIETZSCHE

absolutamente involuntária? De qualquer coisa que parece ter


imprimido ao alienado o selo de qualquer divindade de que ele
parecia ser a máscara e o porta-voz? De qualquer coisa que
inspirasse, mesmo

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