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O que é o ato de criação?

Giorgio Agamben

O título O que é o ato de criação? retoma o de uma con-


ferência que Gilles Deleuze deu em Paris em março de
1987. Deleuze defnia o ato de criação como um “ato de
resistência”. Resistência à morte, antes de mais, mas re-
sistência também ao paradigma da informação, através
do qual o poder se exerce naquilo a que o flósofo, para
as distinguir das sociedades de disciplina analisadas por
Foucault, chama “sociedades de controlo”. Todo o ato
de criação resiste a algo – por exemplo, diz Deleuze, a
música de Bach é um ato de resistência contra a sepa-
ração entre o sagrado e o profano.
Deleuze não defne o que possa signifcar “resistir” e
parece dar ao termo o signifcado corrente de oposição
a uma força ou a uma ameaça externa. Na conversa so-
bre a palavra “resistência” no Abecedário, acrescenta, a
propósito da obra de arte, que resistir signifca sempre
libertar uma potência de vida que fora aprisionada ou
afrontada; também aqui, todavia, falta uma verdadeira
defnição do ato de criação como ato de resistência.

[39]
Depois de tantos anos passados a ler, escrever e estu-
dar, acontece, por vezes, compreender qual é o nosso
modo especial – se é que há algum – de proceder no
pensamento e na pesquisa. Trata-se, no meu caso, de
aperceber aquela a que Feuerbach chamava “capacida-
de de desenvolvimento” contida nas obras dos autores
de que gosto muito. O elemento genuinamente flosó-
fco contido numa obra – seja ela obra de arte, de ciên-
cia, de pensamento – é a sua capacidade de ser desen-
volvida, algo que permaneceu – ou foi voluntariamente
deixado – não dito e que se trata de saber encontrar e
recolher. Porque é que esta pesquisa do elemento sus-
cetível de ser desenvolvido me fascina? Porque, se se
segue até ao fm este princípio metodológico, chega-se
inevitavelmente a um ponto em que não é possível dis-
tinguir entre aquilo que é nosso e aquilo que concerne
antes ao autor que estamos a ler. Alcançar esta zona
impessoal de indiferença, na qual todo o nome próprio,
todo o direito de autor e toda a pretensão à originalida-
de estão a mais, enche-me de alegria.
Tentarei assim interrogar aquilo que permaneceu
não dito na ideia deleuziana do ato de criação como ato
de resistência e, deste modo, procurarei continuar e
prosseguir, obviamente sob minha plena responsabili-
dade, o pensamento de um autor de que gosto muito.

Devo prevenir que sinto um certo desconforto pe-


rante o uso, para mais hoje tão difundido, do termo cria

[40]
ção com referência às práticas artísticas. Enquanto in-
vestigava a genealogia deste uso, descobri, não sem
uma certa surpresa, que uma parte da responsabilidade
recaía sobre os arquitetos. Quando os teólogos medie-
vais tiveram de explicar a criação do mundo, recorre-
ram a um exemplo que já tinha sido usado pelos Estói-
cos. Tal como a casa preexiste na mente do arquiteto,
escreve Tomás de Aquino, assim criou Deus o mundo
olhando o modelo que tinha na sua mente. Natural-
mente, Tomás de Aquino distinguia ainda entre o crea-
re ex nihilo, que defne a criação divina, e o facere de
materia, que defne o fazer humano. Em qualquer caso,
no entanto, a comparação entre o ato do arquiteto e o
de Deus já contém em estado embrionário a transposi-
ção do paradigma da criação à atividade do artista.
Por isso prefro antes falar de ato poético e, se conti-
nuarei a servir-me por conveniência do termo criação,
queria que fosse entendido sem ênfase alguma, no sen-
tido simples de poiein, “produzir”.

Entender a resistência apenas como oposição a uma


força externa não me parece sufciente para uma com-
preensão do ato de criação. Num projeto de prefácio às
Philosophische Bemerkungen, Wittgenstein notou como
ter de resistir à pressão e ao atrito que uma época de
incultura – como era para ele a sua e é certamente para
nós a nossa – contrapõe à criação acaba por dispersar e
fragmentar a força individual. Isto é tanto mais verdade

[41]
quanto, no Abecedário, Deleuze sentiu a necessidade de
especifcar que o ato de criação tem constitutivamente
a ver com a libertação de uma potência.
Penso, no entanto, que a potência que o ato de cria-
ção liberta deve ser uma potência interna ao próprio
ato, como interno a este deve ser também o ato de re-
sistência. Somente deste modo a relação entre resistên-
cia e criação e aquela entre criação e potência se tor-
nam compreensíveis.

O conceito de potência tem, na flosofa ocidental,


uma longa história que podemos fazer iniciar com
Aristóteles. Aristóteles opõe – e, conjuntamente, liga –
a potência (dynamis) ao ato (energeia) e esta oposição,
que marca tanto a sua metafísica quanto a sua física,
foi transmitida por ele como herança à flosofa e de-
pois à ciência medieval e moderna. É através desta
oposição que Aristóteles explica aquilo que nós cha-
mamos atos de criação, que para ele coincidiam mais
moderadamente com o exercício das technai (artes, no
sentido mais geral da palavra). Os exemplos a que re-
corre para ilustrar a passagem da potência ao ato são,
neste sentido, signifcativos: o arquiteto (oikodomos),
o tocador de cítara, o escultor, mas também o gramá-
tico e, em geral, qualquer um que possua um saber ou
uma técnica. A potência de que Aristóteles fala no li-
vro IX da Metafísica e no livro II do De anima não é,
então, a potência genérica, segundo a qual dizemos

[42]
que uma criança pode tornar-se arquiteto ou escultor,
mas a que compete a quem já adquiriu a arte ou o sa-
ber correspondente. Aristóteles chama a esta potência
hexis, de echo, “ter”: o hábito, isto é, a posse de uma
capacidade ou habilidade.

Aquele que possui – ou tem o hábito de – uma po-


tência pode tanto pô-la em ato como não pô-la em
ato. A potência – é esta a tese genial, ainda que apa-
rentemente óbvia, de Aristóteles – é, então, defnida
essencialmente pela possibilidade do seu não-exercí-
cio. O arquiteto é potente, na medida em que pode
não construir, a potência é uma suspensão do ato.
(Em política isto é bem evidente, e existe mesmo uma
fgura, dita “provocador”, que tem precisamente a ta-
refa de obrigar quem tem o poder a exercê-lo, a pô-lo
em ato). É deste modo que Aristóteles responde, na
Metafísica, às teses dos Megáricos, que afrmavam, de
resto com boas razões, que a potência existe apenas
no ato (energei mono dynastai, otan me energei ou dy-
nastai, Met. 1046b, 29-30). Se isto fosse verdade, obje-
ta Aristóteles, não poderíamos considerar arquiteto
ao arquiteto quando não constrói, nem chamar médi-
co ao médico no momento em que não está a exercer
a sua arte. Em questão está, assim, o modo de ser da
potência, que existe na forma da hexis, do domínio
sobre uma privação. Existe uma forma, uma presença
daquilo que não está em ato, e esta presença privativa

[43]
é a potência. Como Aristóteles afrma sem reservas
numa passagem extraordinária da sua Física: “A stere-
sis, a privação, é como uma forma” (eidos ti, Phys.
193b, 19-20).

Num gesto característico seu, Aristóteles leva ao


extremo esta tese, ao ponto que ela quase parece
transformar-se numa aporia. Do facto da potência ser
defnida pela possibilidade do seu não-exercício, ele
retira a consequência de uma constitutiva co-perten-
ça de potência e impotência. “A impotência [adyna-
mia],” escreve (M e t . 1046a, 29-32), “é uma privação
contrária à potência [dynamis]. Toda a potência é im-
potência do mesmo e no que respeita ao mesmo (de
que é potência) [tou autou kai kata to auto pasa dyna-
mis adynamia]”. Adynamia, “impotência”, não signif-
ca aqui ausência de qualquer potência, mas potência-
de-não (passar ao ato), dynamis me energein. A tese
defne, então, a ambivalência específca de toda a po-
tência humana, que, na sua estrutura originária,
mantém-se em relação com a própria privação e é
sempre – e no que respeita à mesma coisa – potência
de ser e de não ser, de fazer e de não fazer. É esta re-
lação que constitui, para Aristóteles, a essência da
potência. O vivente, que existe no modo da potência,
pode a própria impotência, e somente neste modo
possui a própria potência. Ele pode ser e fazer porque
se mantém em relação com o próprio não ser e não

[44]
fazer. Na potência, a sensação é constitutivamente
anestesia, o pensamento não-pensamento, a obra
inoperância.
Se recordarmos que os exemplos da potência-de-
não são quase sempre retirados do âmbito das técni-
cas e dos saberes humanos (a gramática, a música, a
arquitetura, a medicina, etc.), podemos então dizer
que o homem é o vivente que existe de modo eminen-
te na dimensão da potência, do poder e do poder-não.
Toda a potência humana é, cooriginariamente, impo-
tência; todo o poder-ser ou -fazer está, para o homem,
constitutivamente em relação com a própria privação.

Se voltarmos à nossa questão sobre o ato de cria-


ção, isto signifca que este não pode ser de modo al-
gum compreendido, segundo a representação corren-
te, como um simples trânsito da potência ao ato. O
artista não é aquele que possui uma potência de criar
e que, a certo ponto, decide, não se sabe bem como
nem porquê, realizar e pôr em ato. Se toda a potência
é constitutivamente impotência, potência-de-não,
como poderá acontecer a passagem ao ato? Dado que
o ato da potência de tocar piano é certamente, para o
pianista, a execução de uma peça ao piano; que acon-
tece à potência de não tocar no momento em que ele
começa a tocar? Como se realiza uma potência de não
tocar?

[45]
Podemos agora compreender de modo novo a rela-
ção entre criação e resistência de que falava Deleuze.
Há em todo o ato de criação algo que resiste e se
opõe à expressão. Resistir, do latim sisto, signifca eti-
mologicamente “apresar, manter fxo” ou “deter-se”.
Este poder que detém e apresa a potência no seu mo-
vimento em direção ao ato é a impotência, a potênci-
a-de-não. A potência é, assim, um ser ambíguo, que
não apenas pode tanto uma coisa quanto o seu con-
trário, como contém em si mesma uma íntima e irre-
dutível resistência.
Se isto é verdade, então devemos ver o ato de cria-
ção como um campo de forças esticado entre potên-
cia e impotência, poder e poder-não agir e resistir. O
homem pode ter domínio sobre a sua potência e ter
acesso a ela apenas através da sua impotência; mas –
precisamente por isto – não se dá, na verdade, domí-
nio sobre a potência e ser poeta signifca: estar à
mercê da própria impotência.
Só uma potência que pode tanto a potência quanto
a impotência é então a potência suprema. Se toda a
potência é tanto potência de ser quanto potência de
não ser, a passagem ao ato pode somente acontecer
transportando para o ato a própria potência-de-não.
Isto signifca que, se a todo o pianista pertence neces-
sariamente a potência de tocar e a de não tocar,
Glenn Gould é, no entanto, o único que pode não não
tocar e, dirigindo a sua potência não apenas ao ato

[46]
mas à sua própria impotência, toca, por assim dizer,
com a sua potência de não tocar. Perante a habilida-
de, que simplesmente nega e abandona a própria po-
tência de não tocar, e o talento, que pode somente
tocar, a mestria conserva e exerce no ato, não a sua
potência de tocar, mas a de não tocar.

Examinemos agora mais concretamente a ação da


resistência no ato de criação. Como o inexpressivo
em Benjamin, que desfaz na obra a pretensão da apa-
rência a colocar-se como totalidade, também a resis-
tência age como uma instância crítica que pára o im-
pulso cego e imediato da potência para o ato e, deste
modo, impede que ela se dissolva e esgote por inteiro
neste. Se a criação fosse apenas potência-de-, que não
pode senão transplantar-se às cegas no ato, a arte re-
duzir-se-ia à execução, que procede com falsa desen-
voltura para a forma concluída porque removeu a re-
sistência da potência-de-não. Contrariamente a um
equívoco bem difundido, a mestria não é perfeição
formal, mas, precisamente ao contrário, conservação
da potência no ato, salvação da imperfeição na forma
perfeita. Na tela do mestre ou nas páginas do grande
escritor, a resistência da potência-de-não assinala-se
na obra como o íntimo maneirismo presente em cada
obra-prima.
E é sobre este poder-não que se funda em suma
qualquer instância propriamente crítica: aquilo que

[47]
um erro de gosto torna evidente é sempre uma carên-
cia não tanto no plano da potência-de-, mas no do
poder-não. Quem tem falta de gosto não consegue
abster-se de algo, a falta de gosto é sempre um não
poder não fazer.

A marcar a obra com o selo da necessidade está,


então, precisamente aquilo que podia não ser ou po-
dia ser de outra maneira: a sua contingência. Não se
trata aqui dos arrependimentos que a radiografa
mostra na tela sob os estratos de cor, nem das pri-
meiras rasuras ou as variantes constantes no manus-
crito: trata-se, antes de mais, daquele “tremor ligeiro,
imperceptível” na própria imobilidade da forma que,
segundo Focillon, é o sinal distintivo do estilo
clássico.
Dante resumiu num verso este caráter anfíbio da
criação poética: “o artista / que tem o hábito da arte
tem mão que treme”. Na perspetiva que aqui nos inte-
ressa, a aparente contradição entre hábito e mão não é
um defeito, mas exprime perfeitamente a estrutura
dúplice de todo o autêntico processo criativo, íntima e
emblematicamente suspenso entre dois impulsos con-
traditórios: impulso e resistência, inspiração e crítica.
E esta contradição impregna todo o ato poético, a par-
tir do momento em que o hábito já contradiz de al-
gum modo a inspiração, que provém de outro lado e
por defnição não pode ser controlada num hábito.

[48]
Neste sentido, a resistência da potência-de-não, desa-
tivando o hábito, permanece fel à inspiração, quase o
impedindo de reifcar-se na obra: o artista inspirado é
sem obra. E, todavia, a potência-de-não não pode, por
sua vez, ser controlada e transformada num princípio
autónomo que acabaria por impedir qualquer obra.
Fulcral é que a obra resulte sempre de uma dialética
entre estes dois princípios intimamente conjugados.

Num livro importante, Simondon escreveu que o


homem é, por assim dizer, um ser a duas fases, resul-
tando da dialética entre uma parte não individuada e
impessoal e uma parte individual e pessoal. O pré-in-
dividual não é um passado cronológico que, a certo
momento, se realiza e dissolve no indivíduo: coexiste
com este e a ele permanece irredutível.
É possível pensar, nesta perspetiva, o ato de cria-
ção como uma complicada dialética entre um ele-
mento impessoal, que precede e supera o sujeito indi-
vidual, e um elemento pessoal, que obstinadamente
lhe resiste. O impessoal é a potência-de-, o génio que
incita na direção da obra e da expressão, a potência-
de-não é a reticência que o individual opõe ao impes-
soal, o caráter que tenazmente resiste à expressão e
que a marca com o seu carimbo. O estilo de uma obra
não depende apenas do elemento impessoal, da po-
tência criativa, mas também daquilo que resiste e
quase entra em confito com ela.

[49]
A potência-de-não não nega, porém, a potência e a
forma, mas, através da sua resistência, de algum modo
a expõe, tal como a maneira não se opõe simplesmen-
te ao estilo, mas pode, por vezes, colocá-lo em relevo.

O verso de Dante é, neste sentido, uma profecia


que anuncia a pintura tardia de Ticiano, a que se mos-
tra, por exemplo, n’Anunciação de São Salvador. Quem
tenha observado esta tela extraordinária não pode dei-
xar de ser atingido pelo modo como nela, não apenas
nas nuvens que sobrevoam as duas fguras, mas até
nas asas do anjo, a cor se obstrui e, ao mesmo tempo,
escava naquilo que foi defnido com razão como um
magma crepitante, onde “as carnes tremem” e “as lu-
zes combatem com as sombras”. Não surpreende que
Ticiano tenha assinado esta obra com uma fórmula
pouco habitual, Ticianus fecit fecit: “fez e refez” – ou
seja, quase desfez. O facto de as radiografas terem re-
velado debaixo desta escrita a fórmula habitual facie-
bat, não signifca necessariamente que se trate de um
acrescento posterior. É possível, ao invés, que Ticiano
a tenha rasurado precisamente para sublinhar a parti-
cularidade da sua obra, que, como sugeria Ridolf, tal-
vez fazendo referência a uma tradição oral que podia
reportar-se ao próprio Ticiano, os comitentes tinham
julgado “não reduzida à perfeição”.
Nesta perspetiva, é possível que a escrita que se lê
em baixo sob o vaso de fores, ignis ardens non combu-

[50]
rens, que reenvia ao episódio da sarça ardente da Bíblia
e, segundo os teólogos, simboliza a virgindade de Ma-
ria, possa ter sido inserida por Ticiano precisamente
para sublinhar o caráter particular do ato de criação,
que ardia sobre a superfície da tela sem, no entanto, se
consumir, metáfora perfeita de uma potência que arde
sem se esgotar.
Por isso a sua mão treme, mas este tremor é a supre-
ma mestria. Aquilo que treme e quase dança na forma é
a potência: ignis ardens non comburens.

Daí a pertinência daquelas fguras da criação tão fre-


quentes em Kafa, nas quais o grande artista é defnido
exatamente por uma absoluta incapacidade no que res-
peita à sua arte. Temos, por um lado, a confssão do
grande nadador:

Admito possuir o recorde mundial, mas se me perguntassem


como o conquistei, não saberia responder-lhes de maneira sa-
tisfatória. Porque, na verdade, eu não sei nadar. Sempre quis
aprender, mas nunca surgiu a ocasião.

Por outro, Josefna, a extraordinária cantora do


povo dos ratos, que não apenas não sabe cantar, mas
que mal consegue assobiar como os seus semelhantes,
e, todavia, exatamente deste modo “atinge efeitos que
um artista do canto em vão procuraria junto de nós e
que somente aos seus meios insufcientes são concedi-
dos”.

[51]
Talvez nunca como nestas fguras tenha a concepção
corrente da arte como um saber ou um hábito sido pos-
ta tão radicalmente em questão: Josefna canta com a
sua impotência de cantar, como o grande nadador nada
com a sua incapacidade de nadar.

A potência-de-não não é uma outra potência à mar-


gem da potência-de-: é a sua inoperância, aquilo que re-
sulta da desativação do esquema potência/ato. Há assim
uma ligação essencial entre potência-de-não e inope-
rância. Tal como Josefna, que através da sua incapaci-
dade de cantar não faz senão exibir o assobio que todos
os ratos sabem fazer, mas que, deste modo, fca “liberto
dos vínculos com a vida quotidiana” e é mostrado na sua
“verdadeira essência”, também a potência-de-não, sus-
pendendo a passagem ao ato, torna inoperante a potên-
cia e exibe-a enquanto tal. O poder não cantar é, antes
de mais, uma suspensão e uma exibição da potência de
cantar que não se transplanta simplesmente no ato, mas
se volta para si mesma. Não existe, então, uma potência
de não cantar que preceda a potência de cantar e que
deva assim anular-se para que a potência se possa reali-
zar no canto: a potência-de-não é uma resistência inter-
na à potência, que impede que esta se esgote simples-
mente no ato e a incita a voltar-se para si mesma, a fa-
zer-se potentia potentiae, a poder a própria impotência.
A obra – por exemplo, Las Meninas – que resulta des-
ta suspensão da potência não representa apenas o seu

[52]
objeto: apresenta, em conjunto com este, a potência – a
arte – com que foi pintado. Assim, a grande poesia não
diz apenas aquilo que diz, mas também o facto de o es-
tar a dizer, a potência e a impotência de dizê-lo. E a
pintura é suspensão e exposição da potência do olhar,
como a poesia é suspensão e exposição da língua.

O modo pelo qual a nossa tradição pensou a inope-


rância é a autorreferência, o voltar-se para si mesma da
potência. Numa passagem famosa do livro Lambda da
Metafísica (1074b, 15-35), Aristóteles afrma que “o pen-
samento [noesis, o ato de pensar] é pensamento do pen-
samento [noeseos noesis]”. A fórmula aristotélica não
signifca que o pensamento se toma a si mesmo como
objeto (se assim fosse, ter-se-ia – parafraseando a ter-
minologia lógica –, por um lado, um metapensamento
e, por outro, um pensamento-objeto, um pensamento
pensado e não pensante).
A aporia, como sugere Aristóteles, diz respeito à na-
tureza mesma do nous, que, no De anima, tinha sido
defnido como um ser de potência (“não tem outra na-
tureza senão a de ser potente” e “não está em nenhum
ato dos entes antes do pensar”, De an. 429a, 21-24) e, na
passagem da Metafísica, aparece, ao invés, defnido
como puro ato, pura noesis:

Se pensa, mas pensa algo de outro que é dele senhor, a sua es-
sência não será o ato do pensamento [noesis, o pensamento

[53]
pensante], mas a potência, e não será então a melhor coisa […].
Se ele não é pensamento pensante, mas potência, então a con-
tinuidade do ato do pensar ser-lhe-ia difícil.

A aporia resolve-se se nos recordarmos que no De


anima o flósofo tinha escrito que o nous, quando se
torna no ato cada um dos inteligíveis, “permanece de
algum modo em potência […] e pode então pensar-se a
si mesmo” (De an. 429b, 9-10). Enquanto, na Metafísica,
o pensamento se pensa a si mesmo (tem-se, então, um
ato puro), no De anima tem-se, ao invés, uma potência
que, na medida em que pode não passar ao ato, perma-
nece livre, inoperante, e pode assim pensar-se a si mes-
ma: algo, então, como uma pura potência.

É este resto inoperante de potência que torna possí-


vel o pensamento do pensamento, a pintura da pintura,
a poesia da poesia.
Se a autorreferência implica, então, um excesso
constitutivo da potência sobre cada realização em ato,
convém nunca esquecer que pensar corretamente a au-
torreferência implica antes de mais a desativação e o
abandono do dispositivo sujeito/objeto. Num quadro
de Velázquez ou de Ticiano a pintura (a pictura picta)
não é objeto do sujeito que pinta (da pictura pingens),
tal como na Metafísica de Aristóteles o pensamento não
é objeto do sujeito pensante, o que seria absurdo. Pelo
contrário, pintura da pintura signifca apenas que a

[54]
pintura (a potência da pintura, a pictura pingens) é ex-
posta e suspensa no ato da pintura, tal como poesia da
poesia signifca que a língua é exposta e suspensa no
poema.

Dou-me conta de que o termo “inoperância” não


pára de aparecer nestas refexões sobre o ato de criação.
Será talvez oportuno, neste momento, que eu tente de-
linear pelo menos os elementos de algo que queria def-
nir como uma “poética – o uma política – da inoperân-
cia”. Acrescentei o termo “política” porque a tentativa
de pensar de outra forma a poiesis, o fazer dos homens,
não pode senão pôr em questão também o modo como
concebemos a política.
Numa passagem da Ética a Nicómaco (1097b, 22
segg.), Aristóteles coloca-se o problema de saber qual é
a obra do homem e sugere por um momento a hipótese
de que ao homem falte uma obra própria, que este seja
um ser essencialmente inoperante:

Como para o tocador de fauta, para o escultor e para qual-


quer artesão [technites], e, em geral, para todos aqueles que
têm uma obra [ergon] e uma atividade [praxis], o bom [ta-
gathon] e o bem [to eu] parecem [consistir] nesta obra, tam-
bém assim devia ser para o homem, se admitíssemos que haja
para ele algo como uma obra [ti ergon]. Ou então [deve dizer-
se] que para o carpinteiro e o sapateiro existem uma obra e
uma atividade, para o homem [enquanto tal] ao invés nenhu-
ma, que este nasceu sem obra [argos, “inoperante”]?

[55]
Ergon não signifca neste contexto simplesmente
“obra”, mas antes aquilo que defne a energeia, a ativi-
dade ou o ser-em-ato próprio do homem. No mesmo
sentido, já Platão se tinha interrogado sobre qual era a
ergon, a atividade específca – por exemplo, do cavalo.
A questão acerca da obra ou da ausência de obra do ho-
mem tem portanto um alcance estratégico decisivo,
porque dela depende não apenas a possibilidade de lhe
atribuir uma natureza e uma essência própria, mas
também, na perspetiva de Aristóteles, a de defnir a sua
felicidade e, assim, a sua política.
Naturalmente, Aristóteles abandona de imediato a
hipótese de que o homem seja um animal essencial-
mente argos, inoperante, que nenhuma obra e nenhu-
ma vocação podem defnir.

Queria, pelo contrário, propor-vos levar a sério esta


hipótese e pensar de forma consequente o homem
como um vivente sem obra. Não se trata de modo al-
gum de uma hipótese precoce, a partir do momento
que, para grande escândalo dos teólogos, dos politólo-
gos e dos fundamentalistas de toda a tendência e parti-
do, ela não cessa de reaparecer na história da nossa cul-
tura. Queria citar apenas duas destas reaparições no
séc. XX, uma no âmbito das ciências, isto é, o extraordi-
nário livrinho de Ludwig Bolk, professor de Anatomia
da Universidade de Amsterdão, que se intitula Das Pro-
blem der Menschwerdung (O problema da antropogénese,

[56]
1926). Segundo Bolk, o homem não deriva de uma pri-
mata adulto, mas de um feto de primata que adquiriu a
capacidade de se reproduzir. O homem é, então, uma
cria de macaco que se constituiu numa espécie autóno-
ma. Isto explica o facto de, em relação aos outros seres
vivos, ele ser e permanecer um ser de potência, que é
capaz de adaptar-se a todos os ambientes, a todos os
alimentos e a todas as atividades, sem que nenhuma
destas possa jamais esgotá-lo ou defni-lo.
A segunda, desta vez no âmbito das artes, é o singu-
lar opúsculo de Kazimir Malevič, A inoperância como
verdade efetiva do homem, no qual, contra a tradição
que vê no trabalho a realização do homem, a inoperân-
cia se afrma como a “a forma mais alta de humanida-
de”, de que o branco, último estádio atingido pelo Su-
prematismo em pintura, se torna o símbolo mais apro-
priado. Como todas as tentativas para pensar a inope-
rância, também este texto, como o seu precedente dire-
to que é O elogio da preguiça de Lafargue, na medida
em que defne a inoperância somente e contrario por
relação ao trabalho, permanece aprisionado numa de-
terminação negativa do próprio objeto. Enquanto para
os antigos era o trabalho – o negotium – a ser defnido
negativamente por relação à vida contemplativa – o
otium –, os modernos parecem incapazes de conceber a
contemplação, a inoperância e a festa de outra forma
que não como repouso ou negação do trabalho.

[57]
Uma vez que tentamos, ao invés, defnir a inoperân-
cia relativamente à potência e ao ato de criação, é evi-
dente que não podemos pensá-la como ociosidade ou
inércia, mas antes como uma prática ou uma potência
de tipo especial, que se mantém constitutivamente em
relação com a própria inoperância.
Espinosa, na Ética, serve-se de um conceito que me
parece útil para compreender aquilo de que estamos a
falar. Ele chama acquiescentia in se ipso a “uma alegria
nascida disto, do homem se contemplar a si próprio e à
sua potência de agir” (IV, Prop. 52, Demonstração). Que
signifca “contemplar a própria potência de agir”? O
que é uma inoperância que consiste no contemplar a
própria potência de agir?
Trata-se – creio eu – de uma inoperância interna,
por assim dizer, à própria operação, de uma prática sui
generis que, na obra, expõe e contempla antes de mais a
potência, uma potência que não precede a obra, mas
que a acompanha e faz viver e abre em possibilidade. A
vida, que contempla a própria potência de agir e de não
agir, torna-se inoperante em todas as suas operações,
vive apenas a sua vivência.
Compreende-se então a função essencial que a tradi-
ção da flosofa ocidental atribuiu à vida contemplativa
e à inoperância: a prática propriamente humana é
aquela que, tornando inoperantes as obras e as funções
específcas do vivente, fá-lo, por assim dizer, rodar em
falso e, deste modo, abre-o em possibilidade. Contem-

[58]
plação e inoperância são, neste sentido, os operadores
metafísicos da antropogénese, que, libertando o viven-
te homem de qualquer destino biológico e social e de
qualquer tarefa predeterminada, o tornam disponível
para aquela particular ausência de obra a que estamos
habituados a chamar “política” e “arte”. Política e arte
não são tarefas nem simplesmente “obras”: elas nomei-
am, antes, a dimensão pela qual as operações linguísti-
cas e corpóreas, materiais e imateriais, biológicas e so-
ciais vêm a ser desativadas e contempladas enquanto
tais.

Espero que, chegado a este ponto, aquilo que eu en-


tendia por uma “poética da inoperância” seja de algum
modo mais claro. E talvez o modelo por excelência des-
ta operação que consiste no tornar inoperantes todas
as obras humanas seja a própria poesia. O que é, de fac-
to, a poesia senão uma operação na linguagem que de-
sativa e torna inoperantes as funções comunicativa e
informativa, para abri-la a um novo, possível uso? Ou,
nos termos de Espinosa, o ponto em que a língua, que
desativou as suas funções utilitárias, repousa nela mes-
ma, contempla a sua potência de dizer. Neste sentido, a
Divina Comédia ou os Cantos ou Il seme del piangere são
a contemplação da língua italiana, a sextilha de Arnaut
Daniel a contemplação da língua provençal, Trilce e os
poemas póstumos de Vallejo a contemplação da língua
espanhola, as Iluminações de Rimbaud a contemplação

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da língua francesa, os Hinos de Hölderlin e a poesia de
Trakl a contemplação da língua alemã.
E isto que a poesia cumpre para a potência de dizer,
a política e a flosofa devem cumprir para a potência
de agir. Tornando inoperantes as operações económi-
cas e sociais, elas mostram o que pode um corpo huma-
no, abrem-no a um novo possível uso.

Espinosa defniu a essência de cada coisa como o de-


sejo, o conatus de perseverar no próprio ser. Se me é
possível exprimir uma pequena reserva em relação a
um tão grande pensamento, diria que me parece agora
que também para esta ideia espinosista é preciso, como
tínhamos visto para o ato de criação, insinuar uma pe-
quena resistência. Claro que toda a coisa deseja e se es-
força para perseverar no seu ser; mas, ao mesmo tem-
po, ela resiste a este desejo, pelo menos por um instan-
te torna-o inoperante e contempla. Trata-se, mais uma
vez, de uma resistência interna ao desejo, de uma ino-
perância interna à operação. Mas somente ela confere
ao conatus a sua justiça e a sua verdade. Numa palavra
– e isto é, pelo menos na arte, o elemento decisivo –, a
sua graça.

Giorgio Agamben, «Che cos’è l’atto di creazione?» (2012), Il fuo-


co e il racconto, nottetempo, Roma, 2014, pp. 39-60; tradução de
trabalho do original italiano por André Dias, no âmbito da disci-
plina de Estudos de Arte (Som e Imagem, ESAD.CR, 2015-16).

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