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Giorgio Agamben
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Depois de tantos anos passados a ler, escrever e estu-
dar, acontece, por vezes, compreender qual é o nosso
modo especial – se é que há algum – de proceder no
pensamento e na pesquisa. Trata-se, no meu caso, de
aperceber aquela a que Feuerbach chamava “capacida-
de de desenvolvimento” contida nas obras dos autores
de que gosto muito. O elemento genuinamente flosó-
fco contido numa obra – seja ela obra de arte, de ciên-
cia, de pensamento – é a sua capacidade de ser desen-
volvida, algo que permaneceu – ou foi voluntariamente
deixado – não dito e que se trata de saber encontrar e
recolher. Porque é que esta pesquisa do elemento sus-
cetível de ser desenvolvido me fascina? Porque, se se
segue até ao fm este princípio metodológico, chega-se
inevitavelmente a um ponto em que não é possível dis-
tinguir entre aquilo que é nosso e aquilo que concerne
antes ao autor que estamos a ler. Alcançar esta zona
impessoal de indiferença, na qual todo o nome próprio,
todo o direito de autor e toda a pretensão à originalida-
de estão a mais, enche-me de alegria.
Tentarei assim interrogar aquilo que permaneceu
não dito na ideia deleuziana do ato de criação como ato
de resistência e, deste modo, procurarei continuar e
prosseguir, obviamente sob minha plena responsabili-
dade, o pensamento de um autor de que gosto muito.
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ção com referência às práticas artísticas. Enquanto in-
vestigava a genealogia deste uso, descobri, não sem
uma certa surpresa, que uma parte da responsabilidade
recaía sobre os arquitetos. Quando os teólogos medie-
vais tiveram de explicar a criação do mundo, recorre-
ram a um exemplo que já tinha sido usado pelos Estói-
cos. Tal como a casa preexiste na mente do arquiteto,
escreve Tomás de Aquino, assim criou Deus o mundo
olhando o modelo que tinha na sua mente. Natural-
mente, Tomás de Aquino distinguia ainda entre o crea-
re ex nihilo, que defne a criação divina, e o facere de
materia, que defne o fazer humano. Em qualquer caso,
no entanto, a comparação entre o ato do arquiteto e o
de Deus já contém em estado embrionário a transposi-
ção do paradigma da criação à atividade do artista.
Por isso prefro antes falar de ato poético e, se conti-
nuarei a servir-me por conveniência do termo criação,
queria que fosse entendido sem ênfase alguma, no sen-
tido simples de poiein, “produzir”.
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quanto, no Abecedário, Deleuze sentiu a necessidade de
especifcar que o ato de criação tem constitutivamente
a ver com a libertação de uma potência.
Penso, no entanto, que a potência que o ato de cria-
ção liberta deve ser uma potência interna ao próprio
ato, como interno a este deve ser também o ato de re-
sistência. Somente deste modo a relação entre resistên-
cia e criação e aquela entre criação e potência se tor-
nam compreensíveis.
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que uma criança pode tornar-se arquiteto ou escultor,
mas a que compete a quem já adquiriu a arte ou o sa-
ber correspondente. Aristóteles chama a esta potência
hexis, de echo, “ter”: o hábito, isto é, a posse de uma
capacidade ou habilidade.
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é a potência. Como Aristóteles afrma sem reservas
numa passagem extraordinária da sua Física: “A stere-
sis, a privação, é como uma forma” (eidos ti, Phys.
193b, 19-20).
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fazer. Na potência, a sensação é constitutivamente
anestesia, o pensamento não-pensamento, a obra
inoperância.
Se recordarmos que os exemplos da potência-de-
não são quase sempre retirados do âmbito das técni-
cas e dos saberes humanos (a gramática, a música, a
arquitetura, a medicina, etc.), podemos então dizer
que o homem é o vivente que existe de modo eminen-
te na dimensão da potência, do poder e do poder-não.
Toda a potência humana é, cooriginariamente, impo-
tência; todo o poder-ser ou -fazer está, para o homem,
constitutivamente em relação com a própria privação.
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Podemos agora compreender de modo novo a rela-
ção entre criação e resistência de que falava Deleuze.
Há em todo o ato de criação algo que resiste e se
opõe à expressão. Resistir, do latim sisto, signifca eti-
mologicamente “apresar, manter fxo” ou “deter-se”.
Este poder que detém e apresa a potência no seu mo-
vimento em direção ao ato é a impotência, a potênci-
a-de-não. A potência é, assim, um ser ambíguo, que
não apenas pode tanto uma coisa quanto o seu con-
trário, como contém em si mesma uma íntima e irre-
dutível resistência.
Se isto é verdade, então devemos ver o ato de cria-
ção como um campo de forças esticado entre potên-
cia e impotência, poder e poder-não agir e resistir. O
homem pode ter domínio sobre a sua potência e ter
acesso a ela apenas através da sua impotência; mas –
precisamente por isto – não se dá, na verdade, domí-
nio sobre a potência e ser poeta signifca: estar à
mercê da própria impotência.
Só uma potência que pode tanto a potência quanto
a impotência é então a potência suprema. Se toda a
potência é tanto potência de ser quanto potência de
não ser, a passagem ao ato pode somente acontecer
transportando para o ato a própria potência-de-não.
Isto signifca que, se a todo o pianista pertence neces-
sariamente a potência de tocar e a de não tocar,
Glenn Gould é, no entanto, o único que pode não não
tocar e, dirigindo a sua potência não apenas ao ato
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mas à sua própria impotência, toca, por assim dizer,
com a sua potência de não tocar. Perante a habilida-
de, que simplesmente nega e abandona a própria po-
tência de não tocar, e o talento, que pode somente
tocar, a mestria conserva e exerce no ato, não a sua
potência de tocar, mas a de não tocar.
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um erro de gosto torna evidente é sempre uma carên-
cia não tanto no plano da potência-de-, mas no do
poder-não. Quem tem falta de gosto não consegue
abster-se de algo, a falta de gosto é sempre um não
poder não fazer.
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Neste sentido, a resistência da potência-de-não, desa-
tivando o hábito, permanece fel à inspiração, quase o
impedindo de reifcar-se na obra: o artista inspirado é
sem obra. E, todavia, a potência-de-não não pode, por
sua vez, ser controlada e transformada num princípio
autónomo que acabaria por impedir qualquer obra.
Fulcral é que a obra resulte sempre de uma dialética
entre estes dois princípios intimamente conjugados.
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A potência-de-não não nega, porém, a potência e a
forma, mas, através da sua resistência, de algum modo
a expõe, tal como a maneira não se opõe simplesmen-
te ao estilo, mas pode, por vezes, colocá-lo em relevo.
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rens, que reenvia ao episódio da sarça ardente da Bíblia
e, segundo os teólogos, simboliza a virgindade de Ma-
ria, possa ter sido inserida por Ticiano precisamente
para sublinhar o caráter particular do ato de criação,
que ardia sobre a superfície da tela sem, no entanto, se
consumir, metáfora perfeita de uma potência que arde
sem se esgotar.
Por isso a sua mão treme, mas este tremor é a supre-
ma mestria. Aquilo que treme e quase dança na forma é
a potência: ignis ardens non comburens.
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Talvez nunca como nestas fguras tenha a concepção
corrente da arte como um saber ou um hábito sido pos-
ta tão radicalmente em questão: Josefna canta com a
sua impotência de cantar, como o grande nadador nada
com a sua incapacidade de nadar.
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objeto: apresenta, em conjunto com este, a potência – a
arte – com que foi pintado. Assim, a grande poesia não
diz apenas aquilo que diz, mas também o facto de o es-
tar a dizer, a potência e a impotência de dizê-lo. E a
pintura é suspensão e exposição da potência do olhar,
como a poesia é suspensão e exposição da língua.
Se pensa, mas pensa algo de outro que é dele senhor, a sua es-
sência não será o ato do pensamento [noesis, o pensamento
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pensante], mas a potência, e não será então a melhor coisa […].
Se ele não é pensamento pensante, mas potência, então a con-
tinuidade do ato do pensar ser-lhe-ia difícil.
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pintura (a potência da pintura, a pictura pingens) é ex-
posta e suspensa no ato da pintura, tal como poesia da
poesia signifca que a língua é exposta e suspensa no
poema.
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Ergon não signifca neste contexto simplesmente
“obra”, mas antes aquilo que defne a energeia, a ativi-
dade ou o ser-em-ato próprio do homem. No mesmo
sentido, já Platão se tinha interrogado sobre qual era a
ergon, a atividade específca – por exemplo, do cavalo.
A questão acerca da obra ou da ausência de obra do ho-
mem tem portanto um alcance estratégico decisivo,
porque dela depende não apenas a possibilidade de lhe
atribuir uma natureza e uma essência própria, mas
também, na perspetiva de Aristóteles, a de defnir a sua
felicidade e, assim, a sua política.
Naturalmente, Aristóteles abandona de imediato a
hipótese de que o homem seja um animal essencial-
mente argos, inoperante, que nenhuma obra e nenhu-
ma vocação podem defnir.
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1926). Segundo Bolk, o homem não deriva de uma pri-
mata adulto, mas de um feto de primata que adquiriu a
capacidade de se reproduzir. O homem é, então, uma
cria de macaco que se constituiu numa espécie autóno-
ma. Isto explica o facto de, em relação aos outros seres
vivos, ele ser e permanecer um ser de potência, que é
capaz de adaptar-se a todos os ambientes, a todos os
alimentos e a todas as atividades, sem que nenhuma
destas possa jamais esgotá-lo ou defni-lo.
A segunda, desta vez no âmbito das artes, é o singu-
lar opúsculo de Kazimir Malevič, A inoperância como
verdade efetiva do homem, no qual, contra a tradição
que vê no trabalho a realização do homem, a inoperân-
cia se afrma como a “a forma mais alta de humanida-
de”, de que o branco, último estádio atingido pelo Su-
prematismo em pintura, se torna o símbolo mais apro-
priado. Como todas as tentativas para pensar a inope-
rância, também este texto, como o seu precedente dire-
to que é O elogio da preguiça de Lafargue, na medida
em que defne a inoperância somente e contrario por
relação ao trabalho, permanece aprisionado numa de-
terminação negativa do próprio objeto. Enquanto para
os antigos era o trabalho – o negotium – a ser defnido
negativamente por relação à vida contemplativa – o
otium –, os modernos parecem incapazes de conceber a
contemplação, a inoperância e a festa de outra forma
que não como repouso ou negação do trabalho.
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Uma vez que tentamos, ao invés, defnir a inoperân-
cia relativamente à potência e ao ato de criação, é evi-
dente que não podemos pensá-la como ociosidade ou
inércia, mas antes como uma prática ou uma potência
de tipo especial, que se mantém constitutivamente em
relação com a própria inoperância.
Espinosa, na Ética, serve-se de um conceito que me
parece útil para compreender aquilo de que estamos a
falar. Ele chama acquiescentia in se ipso a “uma alegria
nascida disto, do homem se contemplar a si próprio e à
sua potência de agir” (IV, Prop. 52, Demonstração). Que
signifca “contemplar a própria potência de agir”? O
que é uma inoperância que consiste no contemplar a
própria potência de agir?
Trata-se – creio eu – de uma inoperância interna,
por assim dizer, à própria operação, de uma prática sui
generis que, na obra, expõe e contempla antes de mais a
potência, uma potência que não precede a obra, mas
que a acompanha e faz viver e abre em possibilidade. A
vida, que contempla a própria potência de agir e de não
agir, torna-se inoperante em todas as suas operações,
vive apenas a sua vivência.
Compreende-se então a função essencial que a tradi-
ção da flosofa ocidental atribuiu à vida contemplativa
e à inoperância: a prática propriamente humana é
aquela que, tornando inoperantes as obras e as funções
específcas do vivente, fá-lo, por assim dizer, rodar em
falso e, deste modo, abre-o em possibilidade. Contem-
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plação e inoperância são, neste sentido, os operadores
metafísicos da antropogénese, que, libertando o viven-
te homem de qualquer destino biológico e social e de
qualquer tarefa predeterminada, o tornam disponível
para aquela particular ausência de obra a que estamos
habituados a chamar “política” e “arte”. Política e arte
não são tarefas nem simplesmente “obras”: elas nomei-
am, antes, a dimensão pela qual as operações linguísti-
cas e corpóreas, materiais e imateriais, biológicas e so-
ciais vêm a ser desativadas e contempladas enquanto
tais.
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da língua francesa, os Hinos de Hölderlin e a poesia de
Trakl a contemplação da língua alemã.
E isto que a poesia cumpre para a potência de dizer,
a política e a flosofa devem cumprir para a potência
de agir. Tornando inoperantes as operações económi-
cas e sociais, elas mostram o que pode um corpo huma-
no, abrem-no a um novo possível uso.
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