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do esquema hilemórfico são uma forma e uma matéria abstractas.

O ser
Forma e matéria Gilbert Simondon definido que se pode mostrar, esse tijolo a secar nessa tábua, não resulta da
reunião duma matéria qualquer e duma forma qualquer. Bem se pode pegar em
areia, molhá-la e metê-la num molde de tijolos: ao tirá-la do molde, obtemos
I. Fundamentos do esquema hilemórfico – Tecnologia da tomada de forma um monte de areia e não um tijolo. Bem se pode pegar em argila e passá-la pelo
laminador ou pela fieira: não se obterá nem lâmina nem fio, mas um
I. As condições da individuação amontoado de folhas quebradas e de curtos segmentos cilíndricos. A argila,
concebida como um suporte duma indefinida plasticidade, é a matéria
As noções de forma e de matéria só podem ajudar a resolver o problema da abstracta. O paralelepípedo rectângulo, concebido como forma do tijolo, é uma
individuação se o antecederem. Se, pelo contrário, se descobrisse que o sistema forma abstracta. O tijolo concreto não resulta da união da plasticidade da argila
hilemórfico exprime e contém o problema da individuação, seria necessário, sob e do paralelepípedo. Para que possa haver um tijolo paralelepipédico, um
pena de se cair numa petição de princípio, considerar a procura do princípio da indivíduo realmente existente, é preciso que uma operação técnica efetiva
individuação como logicamente anterior à definição da matéria e da forma. estabeleça uma mediação entre uma massa determinada de argila e esta noção
É difícil considerar as noções de forma e de matéria como ideias inatas. No de paralelepípedo. Ora, a operação técnica de moldagem não se basta a si
entanto, assim que se é tentado a atribuir-lhes uma origem tecnológica, pára-se mesma; além disso, ela não estabelece uma mediação direta entre uma massa
perante a incrível capacidade de generalização que possuem estas noções. Não determinada de argila e a forma abstracta do paralelepípedo1; a mediação é
são só a argila e o tijolo, o mármore e a estátua, que podem ser pensados preparada por duas cadeias de operações anteriores que fazem convergir
segundo o esquema hilemórfico, mas também um grande número de factos de matéria e forma numa operação comum. Dar uma forma ao barro não é impor a
formação, de génese e de composição, no mundo vivo e no domínio psíquico. A forma do paralelepípedo à argila bruta: é amontoar o barro preparado num
força lógica deste esquema é tal que Aristóteles o pôde utilizar para defender molde fabricado. Se partirmos das duas pontas da cadeia tecnológica, o
um sistema universal de classificação que se aplica ao real, tanto pela via lógica, paralelepípedo e a argila na pedreira, temos a impressão de realizar, na
como pela via física, assegurando a concordância da ordem lógica e da ordem operação técnica, um encontro entre duas realidades de domínios
física, e assim permitindo o conhecimento indutivo. Até a própria relação entre heterogéneos, e de estabelecer uma mediação, por comunicação, entre uma
alma e corpo pode ser pensada segundo o esquema hilemórfico. ordem interelementar, macrofísica, maior que o indivíduo, e uma ordem intra-
Uma base tão estreita como a da operação tecnológica dificilmente parece elementar, microfísica, mais pequena que o indivíduo.
poder sustentar um paradigma com tal força de universalidade. Convém, Assim, na operação técnica, é a própria mediação que é preciso considerar:
portanto, para se examinar o fundamento do esquema hilemórfico, apreciar o ela consiste, neste caso, em fazer com que um bloco de argila preparada encha
sentido e o alcance do papel que a experiência técnica desempenha na sua completamente um molde e, após a desmoldagem, seque, conservando sem
génese. fissuras, nem pulverulência, esse contorno definido. Ora, a preparação da argila
O carácter tecnológico da origem dum esquema não invalida esse esquema, e a construção do molde são já uma mediação ativa entre a argila bruta e a
desde que a operação que serve de base à formação dos conceitos utilizados forma geométrica imposta. O molde é construído de forma a poder ser aberto e
passe inteiramente e se exprima sem alterações no esquema abstracto. Se, pelo fechado sem danificar o conteúdo. Certas formas de sólidos, geometricamente
contrário, a abstração se efetua de maneira infiel e sumária, assim encobrindo concebíveis, só podem ser realizadas com artifícios muito complexos e subtis. A
um dos dinamismos fundamentais da operação técnica, o esquema é falso. Em arte de construir moldes é, ainda nos dias de hoje, um dos aspectos mais
vez de ter um verdadeiro valor paradigmático, não é mais do que uma delicados da fundição. De resto, o molde não é apenas construído; também é
comparação, uma aproximação mais ou menos rigorosa dependendo do caso. preparado: um revestimento definido, uma polvilhação seca evitarão que a
Ora, na operação técnica que dá origem a um objecto detentor de forma e
matéria, como um tijolo de argila, o dinamismo real da operação está muito 1
Ou seja, entre a realidade duma ordem de grandeza superior ao indivíduo futuro, contendo as
longe de poder ser representado pelo par forma-matéria. A forma e a matéria condições enérgicas da moldagem, e a realidade-matéria que é, grão a grão, na sua
disponibilidade, duma ordem de grandeza inferior à do indivíduo futuro, o tijolo real.
argila húmida adira às paredes no momento da desmoldagem, desagregando-se atributos coloidais da argila. Antes de toda a elaboração, a argila, no pântano, já
ou formando fendas. Para dar uma forma, é preciso construir tal molde está em forma, pois já é coloidal. O labor do artesão utiliza essa forma
definido, preparado de tal forma, com tal espécie de matéria. Existe, portanto, elementar sem a qual nada seria possível, e que é homogénea em relação à
um primeiro movimento que vai da forma geométrica ao molde concreto, forma do molde: há apenas, nas duas semi-cadeias técnicas uma mudança de
material, paralelo à argila, existente da mesma maneira que ela, posto ao lado escala. Na outra semi-cadeia técnica, a forma geométrica concretiza-se,
dela, na ordem de grandeza do manipulável. Quanto à argila, também é tornando-se dimensão do molde, madeira junta, madeira polvilhada ou madeira
submetida a uma preparação; enquanto matéria bruta é o que a pá levanta da molhada2. A operação técnica prepara duas semi-cadeias de transformações que
jazida junto ao pântano, com raízes de junco, grãos de cascalho. Secada, se encontram num certo ponto, desde que os dois objetos elaborados tenham
triturada, peneirada, molhada, longamente amassada, torna-se nessa pasta caracteres compatíveis, existam à mesma escala; esse pôr em relação não é
homogénea e consistente, possuidora duma plasticidade grande o suficiente único e incondicional; ele pode fazer-se por etapas; o que se considera como
para poder abraçar os contornos do molde no qual a comprimimos, e tão tomada de forma única não é muitas vezes senão o último episódio duma série
fechada que conserve este contorno durante o tempo necessário para que a de transformações; quando o bloco de argila recebe a deformação final que lhe
plasticidade desapareça. Para além da purificação, a preparação da argila tem permite preencher o molde, as suas moléculas não se reorganizam
como objectivo obter a homogeneidade e o grau de humidade que melhor completamente e dum único golpe; elas movimentam-se pouco; a sua topologia
permitam conciliar plasticidade e consistência. Há na argila bruta uma aptidão mantém-se, não se trata senão duma última deformação global. Ora, esta
para se tornar massa plástica à dimensão do futuro tijolo, por causa das deformação global não é só uma tomada de forma da argila pelo seu contorno.
propriedades coloidais dos hidrosilicatos de alumínio: são estas propriedades A argila dá um tijolo porque essa deformação opera sobre massas nas quais as
coloidais que tornam eficazes os gestos da semi-cadeia técnica que resultam na moléculas estão já dispostas umas em relação às outras, sem ar, sem grão de
argila preparada; a realidade molecular da argila e da água que ela absorve areia, com um bom equilíbrio coloidal; se o molde não conduzisse numa
ordena-se pela preparação de maneira a poder-se conduzir no decurso da deformação última toda essa disposição anterior já constituída, não daria forma
individuação como uma totalidade homogénea à escala do tijolo em vias de nenhuma; pode dizer-se que a forma do molde opera só sobre a forma da argila,
aparecer. A argila preparada é aquela em que cada molécula será efetivamente não sobre a matéria argila. O molde limita e estabiliza mais do que impõe uma
posta em contacto, qualquer que seja o seu lugar em relação às paredes do forma: ele dá-nos o fim da deformação, atingi-o interrompendo-o segundo um
molde, com o conjunto de impulsos exercidos por estas paredes. Cada molécula contorno definido: ele modula o conjunto de fios já formados: o gesto do
intervém ao nível do indivíduo futuro, e entra assim em comunicação interativa operário que enche o molde e amontoa a terra continua o gesto anterior de
com a ordem de grandeza superior ao indivíduo. Por seu lado, a outra semi- compressão, de dilatação, de amassadura: o molde desempenha o papel dum
cadeia técnica desce em direção ao indivíduo futuro; a forma paralelepipédica conjunto fixo de mãos modelizantes, agindo como paradas mãos de amassar.
não é uma forma qualquer; ela contém já um certo esquematismo que pode Poderíamos fazer um tijolo sem molde, com as mãos, prolongando a
conduzir a construção do molde, que é um conjunto de operações coerentes amassadura através dum labor que o continuasse sem ruptura. A matéria é
contidas em estado implícito; a argila não é só passivamente deformável; ela é matéria porque encerra uma propriedade positiva que lhe permite ser
ativamente plástica, pois é coloidal; a sua faculdade de receber uma forma não modelada. Ser modelada, não é sofrer movimentações arbitrárias, antes
se distingue da de a manter, uma vez que receber e manter não são senão um: ordenar a sua plasticidade segundo forças definidas que estabilizam a
sofrer uma deformação sem fenda e com coerência das cadeias moleculares. A deformação. A operação técnica é mediação entre um conjunto interelementar e
preparação da argila é a constituição desse estado de igual distribuição das um conjunto intra-elementar. A forma pura contém já gestos, e a matéria
moléculas, dessa disposição em cadeias; antes do artesão fermentar a pasta
para introduzir no molde já a tomada de forma tinha começado. Porque a 2
Assim, o molde não é apenas o molde, mas o termo da cadeia técnica interelementar, que
forma não é só o facto de ser paralelepipédica; ela é também o facto de ser sem comporta conjuntos amplos encerrando o indivíduo futuro (operário, ateliê, prensa, argila) e
fenda no paralelepípedo, sem bolha de ar, sem cova: a coesão fina é resultado contendo energia potencial. O molde totaliza e acumula essas relações interelementares, como a
duma tomada de forma; e esta tomada de forma não é senão a exploração dos argila preparada totaliza e acumula as interações moleculares intra-elementares dos
hidrosilicatos de alumínio.
primeira é capacidade de devir; os gestos contidos na forma encontram o devir momentaneamente transportada pela matéria, mas arrancada dum estado do
da matéria e modulam-no. Para que a matéria possa ser modulada no seu devir, sistema interelementar total de dimensão superior, e exprimindo limitações
é preciso que ela seja, como a argila no momento em que o operário a comprime individuantes. A operação técnica constitui duas semi-cadeias que, a partir da
dentro do molde, realidade deformável, ou seja, realidade que não tem uma matéria bruta e da forma pura, se dirigem uma em direção à outra e se reúnem.
forma definida, mas todas as formas indefinidamente, dinamicamente, porque Esta reunião é tornada possível pela congruência dimensional das duas pontas
esta realidade, ao mesmo tempo que ela possui inércia e consistência, é da cadeia; os anéis sucessivos de elaboração transferem caracteres sem os criar
depositário de força; para que a argila encha o molde, não basta que ela seja de novo: eles estabelecem tão-só mudanças de ordem de grandeza, de níveis, e
plástica: é preciso que transmita a pressão que lhe imprime o operário, e que de estado (por exemplo a passagem do estado molecular ao estado molar, do
cada ponto da sua massa seja um centro de forças; a argila exerce pressão sobre estado seco ao estado húmido); o que há no fim da semi-cadeia material, é a
o molde que preenche; ela propaga consigo na sua massa a energia do operário. aptidão da matéria para transportar ponto por ponto uma energia potencial
Durante o enchimento, uma energia potencial atualiza-se.3 É preciso que a que pode provocar um movimento em sentido indeterminado; o que há no fim
energia que dá ímpeto à argila exista, no sistema molde-mão-argila, sob forma da semi-cadeia formal, é a aptidão duma estrutura para condicionar um
potencial, para que a argila encha todo o espaço vazio, desenvolvendo-se em movimento sem realizar um esforço, através dum jogo de forças que não
qualquer direção, travada apenas pelos limites do molde. As paredes do molde deslocam o seu ponto de aplicação. Todavia, esta afirmação não é
intervêm então não como estruturas geométricas materializadas, mas ponto rigorosamente verdadeira; para que um molde possa limitar a expansão da terra
por ponto como lugares fixos que não deixam avançar a argila em expansão e plástica e dirigir estaticamente esta expansão, é preciso que as paredes do
opõem à pressão que ela desenvolve uma força igual e de sentido contrário molde desenvolvam uma força de reação igual à pressão da terra, a terra recua e
(princípio da reação), sem efetuar nenhum trabalho, uma vez que elas não se deixa-se vencer, enchendo os vazios, assim que a reação das paredes do molde
movem. As paredes desempenham em relação a um elemento de argila o seja ligeiramente mais elevada que as forças que se exercem noutros sentidos
mesmo papel que um elemento desta argila em relação a um outro elemento no interior da massa de terra; quando o molde está completamente cheio, pelo
vizinho: a pressão dum elemento em relação a um outro no seio da massa é contrário, as pressões internas são iguais em todo o lado às forças de reação das
quase tão forte quanto a dum elemento de parede em relação a um elemento da paredes, ainda que já nenhum movimento se possa operar. A reação das
massa; a única diferença reside no facto de a parede não se mover, ao passo que paredes é, portanto, a força estática que dirige a argila ao longo do enchimento,
os elementos da argila podem mover-se uns em relação aos outros e em relação impedindo a expansão em certas direções. No entanto, as forças de reação não
às paredes.4 Uma energia potencial traduzindo-se no seio da argila por forças de podem existir senão como resultado duma muita pequena flexão elástica das
pressão atualiza-se durante o enchimento. A matéria transporta com ela a paredes; pode-se dizer que, do ponto de vista da matéria, a parede formal é o
energia potencial atualizando-se; a forma, representada aqui pelo molde, limite a partir do qual um movimento num determinado sentido só é possível
desempenha um papel enformante ao exercer forças sem trabalho, forças que por força dum grande incremento de trabalho; mas para que esta condição do
limitam a atualização da energia potencial de que a matéria é incremento de trabalho seja eficaz, é preciso que comece a ser realizada, antes
momentaneamente portadora. Esta energia pode com efeito atualizar-se que o equilíbrio se quebre e que a matéria tome outras direções nas quais não
segundo tal ou tal direção, com tal ou tal rapidez: a forma limita. A relação está limitada, empurrada pela energia que transporta com ela e atualiza
entre matéria e forma não se faz, então, entre matéria inerte e forma vinda de avançando; é preciso, então, que exista um trabalho ligeiro das paredes do
fora: há uma operação comum e a um mesmo nível de existência entre matéria molde, o que corresponde ao fraco deslocamento do ponto de aplicação das
e forma; este nível comum de existência, é o da força, provindo duma energia forças de reação. Mas esse trabalho não se junta ao que produz a atualização da
energia veiculada pela argila; também não se retira: não interfere com ele; pode
3
de resto ser tão reduzido quanto se queira; um molde de madeira fina deforma-
Esta energia exprime o estado macroscópico do sistema contendo o indivíduo futuro; ela é de
origem interelementar; ora, ela entra em comunicação interativa com cada molécula da matéria, e se notavelmente sob a pressão brusca da argila, depois volta progressivamente
é dessa comunicação que sai a forma, contemporânea do indivíduo. ao seu lugar; um molde de madeira espessa desloca-se menos; um molde de
4
Assim o indivíduo constitui-se através desse ato de comunicação, no seio duma sociedade de sílex ou de materiais fundidos desloca-se muito pouco. Além disso, o trabalho
partículas em interação recíproca, entre todas as moléculas e a ação do molde.
positivo de reposição da forma compensa em grande parte o trabalho negativo moldagem é a massa em que todas as forças de deformação encontram em
de deformação. O molde pode ter uma certa elasticidade; deve apenas não ser todos os sentidos forças iguais e de sentido contrário que as equilibram. O
plástico. É enquanto forças que matéria e forma são confrontadas. A única molde exprime a sua existência no seio da matéria fazendo-a tender para uma
diferença entre o regime destas forças para a matéria e para a forma reside em condição de equilíbrio. Para que esse equilíbrio exista é preciso que no final de
que as forças da matéria provêm duma energia veiculada pela matéria e sempre operação subsista uma certa quantidade de energia potencial ainda
disponível, enquanto as forças da forma são forças que só produzem um inatualizada, contida em todo o sistema. Não será exato dizer que a forma
trabalho muito fraco, e intervêm como limites de atualização da energia da desempenha um papel estático enquanto a matéria desempenha um papel
matéria. Não é no momento infinitamente curto, mas no devir, que forma e dinâmico; na verdade, para que haja um sistema único de forças, é preciso que
matéria diferem; a forma não é veículo de energia potencial; a matéria só é matéria e forma desempenhem ambos um papel dinâmico; mas essa igualdade
matéria enformável porque pode ser, ponto por ponto, veículo duma energia dinâmica só é verdadeira no momento. A forma não evolui, não se modifica,
que se atualiza5; o tratamento prévio da matéria bruta tem por função tornar a porque ela não encerra nenhuma potencialidade, enquanto a matéria evolui. Ela
matéria suporte homogéneo duma energia potencial definida; é por causa dessa é portadora de potencialidades uniformemente distribuídas e repartidas nela; a
energia potencial que a matéria devém; a forma, essa, não devém. Na operação homogeneidade da matéria é a homogeneidade do seu devir possível. Cada
instantânea, as forças que são as da matéria e as forças que provêm da forma ponto tem tantas hipóteses como os outros; a matéria em vias de tomar forma
não diferem; são homogéneas umas em relação às outras e fazem parte do está em estado de ressonância interna completa; o que se passa num ponto
mesmo sistema físico instantâneo; mas não fazem parte do mesmo conjunto repercute-se sobre todos os outros, o devir de cada molécula repercute-se sobre
temporal. Os trabalhos exercidos pelas forças de deformação elástica do molde o devir de todos os outros pontos e em todas as direções; a matéria é aquilo em
já não são nada depois da desmodelagem; anularam-se, ou degradaram-se com que os elementos não estão isolados uns dos outros nem heterogéneos uns em
o calor, e não fizeram nada à ordem de grandeza do molde. Pelo contrário, a relação aos outros; toda a heterogeneidade é condição da não-transmissão de
energia potencial da matéria atualizou-se à ordem de grandeza da massa de forças, portanto, de não-ressonância interna. A plasticidade da argila é a sua
argila criando uma repartição das massas elementares. Eis porque o tratamento capacidade de estar em estado de ressonância interna desde que é submetida a
prévio da argila prepara essa atualização: torna a molécula solidária para com as uma pressão dentro de um invólucro. O molde como limite é aquilo por que o
outras moléculas, e o conjunto deformável, para que cada parcela participe estado de ressonância interno é provocado, mas o molde não é o que, no seio da
igualmente da energia potencial de que a atualização é o molde; é essencial que terra plástica, transmite uniformemente em todos os sentidos as pressões e os
todas as parcelas, sem descontinuidade nem privilégio, tenham as mesma deslocamentos. Não se pode dizer que o molde dá forma; é a terra que toma
hipóteses de se deformarem não importa em que sentido; um grumo, uma forma de acordo com o molde, porque comunica com o operário. A positividade
pedra, são domínios de não participação nessa potencialidade que se atualiza dessa tomada de forma pertence à terra e ao operário; ela é essa ressonância
localizando o seu suporte: são singularidades parasitas. interna, o trabalho dessa ressonância interna6. O molde intervém como
O facto de haver um molde, ou seja, limites da atualização, cria na matéria condição de fechamento, limite, paragem de expansão, direção de mediação. A
um estado de reciprocidade de forças conducente ao equilíbrio; o molde não se operação técnica estabelece a ressonância interna na matéria tomando forma,
trata do exterior impondo um forma; a sua ação reverbera por toda a massa por meio de condições energéticas e de condições topológicas; as condições
pela ação de molécula a molécula, de parcela a parcela; a argila no fim da topológicas podem ser chamadas forma, e as condições energéticas exprimem o
sistema inteiro. A ressonância interna é um estado de sistema que exige esta
realização de condições energéticas, de condições topológicas e de condições
5
Ainda que esta energia seja uma energia de estado, uma energia do sistema interelementar; é materiais: a ressonância é troca de energia e de movimentos num invólucro
nessa interação das duas ordens de grandeza, ao nível do indivíduo, como encontro de forças, que
determinado, comunicação entre uma matéria microfísica e uma energia
consiste a comunicação entre ordens de grandeza, sob a égide duma singularidade, princípio de
forma, início de individuação. A singularidade mediadora é aqui o molde; noutros casos, na
6
Natureza, ela pode ser pedra que precede a duna, o cascalho que é o gérmen duma ilha num rio Nesse momento, a matéria já não é matéria pré-individual, matéria molecular, mas já indivíduo.
que arrasta aluviões: ela é de nível intermediário entre a dimensão interelementar e a dimensão A energia potencial que se atualiza exprime um estado do sistema interelementar mais vasto que
intra-elementar. a matéria.
macrofísica a partir duma singularidade de dimensão média, topologicamente trabalhar com o artesão: seria necessário penetrar no próprio molde para seguir
definida. a operação de tomada de forma nos diferentes escalões de grandeza da
realidade física.
2. Validade do esquema hilemórfico; a zona obscura do sistema hilemórfico; Tomada em si mesma, a operação de tomada de forma pode efetuar-se de
generalização da noção de tomada de forma; modelagem, moldagem, modulação várias maneiras, segundo diferentes modalidades aparentemente muito
diferentes umas das outras. A verdadeira tecnicidade da operação de tomada de
A operação técnica de tomada de forma pode, então, servir de paradigma forma ultrapassa largamente os limites convencionais que separam as
desde que se peça a esta operação que indique as verdadeiras relações que profissões e os domínios do trabalho. Assim, torna-se possível, através do
estabelece. Ora, estas relações não são estabelecidas entre a matéria bruta e a estudo do regime energético da tomada de forma, aproximar o molde dum
forma pura, mas entre a matéria preparada e a forma materializada: a operação tijolo ao funcionamento dum testemunho electrónico. Num tubo electrónico de
de tomada de forma não supõe apenas matéria bruta e forma, mas também tipo tríodo, a “matéria” (veículo de energia potencial que se atualiza) é a nuvem
energia; a forma materializada é uma forma que pode agir como limite, como de electrões saindo do cátodo no circuito cátodo-anódio-efetor-gerador. A
fronteira topológica dum sistema. A matéria preparada é aquela que pode “forma” é o que limita esta atualização de energia potencial em reserva no
transportar os potenciais energéticos com que a manipulação técnica a carrega. gerador, ou seja, o campo eléctrico criado pela diferença de potencial entre a
A forma pura, para desempenhar um papel na operação técnica, deve tornar-se grelha de comando e o cátodo, que se opõe ao campo cátodo-anódio, criado pela
um sistema de pontos de aplicação das forças de reação, enquanto que a próprio gerador; este contracampo é um limite à atualização da energia
matéria bruta se torna veículo homogéneo de energia potencial. A tomada de potencial, como as paredes do molde são um limite à atualização da energia
forma é operação comum à forma e à matéria num sistema: a condição potencial do sistema argila-molde, transportada pela argila no seu
energética é essencial, e ela não é apenas trazida pela forma; é todo o sistema deslocamento. A diferença entre os dois casos reside no facto de que, através da
que é sede da energia potencial, precisamente porque a tomada de forma é uma argila, a operação de tomada de forma é acabada no tempo; ela tende muito
operação em profundidade e em toda a massa, resultante dum estado de lentamente (em alguns segundos) para um estado de equilíbrio, em seguida o
reciprocidade energética da matéria em relação a si própria7. É a repartição da tijolo é desmoldado; utiliza-se o estado de equilíbrio ao desmoldar-se quando
energia que é determinada na tomada de forma, e o acordo mútuo da matéria e ele é atingido. No tubo electrónico, emprega-se um suporte de energia (a
da forma é relativo à possibilidade de existência e aos caracteres desse sistema nuvem de electrões num campo) duma inércia muito fraca, se bem que o estado
energético. A matéria é o que transporta esta energia e a forma o que modula a de equilíbrio (adequação entre a repartição dos electrões e o gradiente do
repartição desta mesma energia. A unidade matéria-forma, no momento da campo eléctrico) é obtido num espaço de tempo extremamente curto em
tomada de forma, está no regime energético. relação ao precedente (alguns bilionésimos de segundo num tubo de grande
O esquema hilemórfico só retém as extremidades destas duas semi-cadeias dimensão, alguns décimos de bilionésimos de segundo nos tubos de pequena
que a operação técnica elabora; o esquematismo da própria operação é velado, dimensão). Nestas condições, o potencial da grelha de comando é utilizado
ignorado. Há um buraco na representação hilemórfica, fazendo desaparecer a como molde variável; a repartição do suporte de energia de acordo com este
verdadeira mediação, a própria operação que reata uma à outra as duas semi- molde é tão rápida que ela se efetua sem atraso apreciável na maior parte das
cadeias instituindo um sistema energético, um estado que evolui e deve existir aplicações: o molde variável serve, então, para fazer variar no tempo a
efetivamente para que um objecto apareça com a sua quididade. O esquema atualização da energia potencial duma fonte; não se pára logo que o equilíbrio é
hilemórfico corresponde ao conhecimento dum homem que permanece fora do atingido, continua-se modificando o molde, ou seja, a tensão de grelha; a
ateliê e só considera o que aqui entra e o que daqui sai; para conhecer a atualização é quase instantânea, nunca há paragem para desmoldagem, porque
verdadeira relação hilemórfica, nem sequer é suficiente penetrar no ateliê e a circulação do suporte de energia equivale a uma desmoldagem permanente; um
modulador é um molde temporal contínuo. A “matéria” é aqui quase unicamente
7
Esta reciprocidade causa uma permanente disponibilidade energética: num espaço muito suporte de energia potencial; ela conserva, todavia, uma inércia definida, que
limitado pode efetuar-se um trabalho considerável se uma singularidade aí iniciar uma impede o modulador de ser infinitamente rápido. No caso do molde da argila, o
transformação.
que, pelo contrário, é tecnicamente utilizado é o estado de equilíbrio que se se realizar, ou seja, o sistema em vias de devir, enquanto a energia se atualiza. O
pode conservar desmoldando: aceita-se, então, uma viscosidade da argila verdadeiro princípio de individuação não pode ser procurado no que existe
suficientemente grande para que a forma seja conservada aquando da antes da individuação se produzir, nem no que fica depois da individuação estar
desmoldagem, ainda que essa viscosidade abrande a tomada de forma. Num concluída; é o sistema energético que é individuante na medida em que realiza
modulador, pelo contrário, diminui-se o mais possível a viscosidade do em si essa ressonância interna da matéria em vias de tomar forma, e uma
portador de energia, porque não se procura conservar o estado de equilíbrio mediação entre ordens de grandeza. O princípio de individuação é a maneira
depois das condições de equilíbrio terem cessado: é mais fácil modular a energia única em que se estabelece a ressonância interna dessa matéria em vias de
transportada pelo ar comprimido que pela água sob pressão, mais fácil ainda tomar essa forma. O princípio de individuação é uma operação. O que faz um
modular a energia transportada pelos electrões em trânsito que pelo ar ser ele próprio, diferente de todos os outros, não é nem a sua matéria nem a sua
comprimido. O molde e o modulador são casos extremos, mas a operação forma, mas a operação pela qual a sua matéria tomou forma num certo sistema
essencial de tomada de forma realiza-se aí da mesma maneira; ela consiste no de ressonância interna. O princípio de individuação do tijolo não é nem a greda,
estabelecimento dum regime energético, durável ou não. Moldar e modular de nem o molde: desse monte de argila e desse molde sairão outros tijolos para
maneira definitiva; modular é moldar de maneira contínua e perpetuamente além deste, possuindo cada um a sua quididade, mas é a operação pela qual a
variável. argila, num determinado momento, num sistema energético que compreendia
Um grande número de operações técnicas utilizam uma tomada de forma tanto os menores detalhes do molde como os mais pequenos montes dessa
que possui caracteres intermédios entre a modulação e a moldagem; assim, uma terra húmida, tomou forma, sob tal impulso, assim repartido, assim difuso,
fieira, um laminador, são moldes de regime contínuo, criando por etapas assim atualizado: há um momento em que a energia do impulso se transmitiu
sucessivas (as passagens) um perfil definido; a moldagem é aí contínua, como em todos os sentidos de cada molécula a todas as outras, da argila às paredes e
num modulador. Poder-se-ia conceber um laminador que modulasse realmente das paredes à argila: o princípio de individuação é a operação que realiza uma
a matéria, e fabricasse, por exemplo, uma barra ameada ou dentada; os troca energética entre a matéria e a forma, até que o conjunto resulte num
laminadores que produzem chapa metálica estriada modulam a matéria, estado de equilíbrio. Pode dizer-se que o princípio de individuação é a operação
enquanto que um laminador alisa apenas o modelo. Modelagem e modulação são alagmática comum da matéria e da forma através da atualização da energia
dois casos limites de que a moldagem é o caso médio. potencial. Esta energia é energia dum sistema; ela pode produzir efeitos em
Queríamos mostrar que o paradigma tecnológico não é desprovido de valor, todos os pontos do sistema de maneira igual, ela está disponível e comunica-se.
e que ele permite, até a um certo ponto, pensar a génese do ser individuado, Essa operação apoia-se na singularidade ou nas singularidades do hic et nunc
mas com a condição expressa que se retenha como esquema essencial a relação concreto; ela envolve-as e amplifica-as.8
da matéria e da forma através do sistema energético da tomada de forma. Matéria
e forma devem ser tomadas durante a tomada de forma, no momento em que a 3. Limites do esquema hilemórfico
unidade do devir dum sistema energético constitui essa relação ao nível da
homogeneidade das forças entre a matéria e a forma. O que é essencial e Todavia, não se pode estender de maneira puramente analógica o paradigma
central, é a operação energética, supondo potencialidade energética e limite de tecnológico à génese de todos os seres. A operação técnica fica completa num
atualização. A iniciativa da génese da substância não se reporta nem à matéria tempo limitado; depois da atualização, ela deixa um ser parcialmente
bruta enquanto passiva, nem à forma enquanto pura: é o sistema completo que individuado, mais ou menos estável, que a arranca a sua quididade dessa
engendra e ele engendra porque é um sistema de atualização de energia operação de individuação tendo constituído a sua génese num período de
potencial, reunindo numa mediação ativa duas realidades, de ordens de tempo muito curto; o tijolo, ao fim de alguns anos ou de alguns milhares de
grandeza diferentes, numa ordem intermédia. anos, volta a ser poeira. A individuação fica completa dum só golpe; o ser
A individuação, no sentido clássico d termo, não pode ter o seu início na individuado nunca é tão perfeitamente individuado como quando sai das mãos
matéria ou na forma; nem a forma nem a matéria é a génese bastam à tomada
de forma. O verdadeiro princípio da individuação é a própria génese em vias de 8
Estas singularidades reais, ocasião da operação comum, podem ser chamadas informação. A
forma é um dispositivo para as produzir.
de artesão. Existe assim uma certa exterioridade da operação de individuação unidades elementares que a natureza apresenta fora do reino definido como
em relação ao seu resultado. Pelo contrário, no ser vivo, a individuação não é vivo.
produzida por uma operação única, limitada no tempo; o ser vivo é ele mesmo Assim, o esquema hilemórfico, resultante da tecnologia, é insuficiente nos
parcialmente o seu próprio princípio de individuação; ele continua a sua seus modos habituais, já que ignora o próprio centro da operação técnica de
individuação, e o resultado duma primeira operação de individuação; em vez de tomada de forma, e conduz, nesse sentido, a ignorar o papel desempenhado
ser apenas um resultado que progressivamente se degrada, torna-se princípio pelas condições energéticas na tomada de forma. Além disso, mesmo
de individuação ulterior. A operação individuante e o ser individuado só são na restabelecido e completado sob forma da tríade matéria-forma-energia, o
mesma relação no interior do produto do esforço técnico. O devir do ser vivo, esquema hilemórfico corre o risco de objectivar abusivamente um contributo
em vez de ser um devir pós individuação, é sempre um devir entre dois do mundo vivo à operação técnica; é a intenção fabricadora que constitui o
individuantes; o individuante e o individuado estão no vivente em relação sistema graças ao qual a troca energética se estabelece entre matéria e energia
alagmática prolongada. No objecto técnico, esta relação alagmática só existe no na tomada de forma; este sistema não faz parte do objecto individuado; ora, o
momento, logo que as duas semi-cadeias sejam unidas uma à outra, ou seja, objecto individuado é pensado pelo homem como tendo uma individualidade
logo que a matéria tome forma: nesse momento, o individuado e individuante enquanto objecto fabricado, por referência à fabricação. A quididade desse
coincidem; logo que essa operação termine, eles separam-se; o tijolo não leva o tijolo como tijolo não é uma quididade absoluta, não é a quididade desse
seu molde9, e desprende-se do operário ou da máquina que a prensou. O ser objecto preexistente ao facto de ele ser um tijolo. É a quididade do objecto como
vivo, depois de ter sido iniciado, continua a individuar-se a si próprio; é ao tijolo: ela comporta uma referência à intenção de uso e, através dela, à intenção
mesmo tempo sistema individuante e resultado parcial de individuação. Um fabricadora. Portanto, ao gesto humano que constituiu as duas semi-cadeias
novo regime de ressonância interna estabelece-se no mundo vivo de que a reunidas em sistema para a operação de tomada de forma10. Nesse sentido, o
tecnologia não fornece o paradigma: uma ressonância através do tempo, criada esquema hilemórfico não é talvez senão aparentemente tecnológico: ele é
pela recorrência do resultado remontando em direção ao princípio e tornando- reflexo de processos vitais numa operação abstratamente conhecida, indo
se, por sua vez, princípio. Como na individuação técnica, uma permanente buscar a sua consistência do facto dela ser feita por um ser vivo para seres
ressonância interna constitui a unidade organísmica. Mas, para além disso, esta vivos. Assim se explicaria o grande poder paradigmático do esquema
ressonância do simultâneo é sobrecarregada por uma ressonância do sucessivo, hilemórfico: vindo da vida, aí retorna e aí se aplica, mas com um deficit que
uma alagmática temporal. O princípio da individuação do mundo vivo é sempre advém do facto da tomada de consciência que o explicitou o ter apreendido
uma operação, como tomada de Forma técnica, mas esta operação existe em através do caso particular abusivamente simplificado da tomada de forma
duas dimensões, a da simultaneidade, e a da sucessão, através da ontogénese técnica; ele apreende os tipos mais do que os indivíduos, os exemplares dum
suportada pela memória e o instinto. modelo mais do que as realidades. O dualismo matéria-forma, não apreendendo
Podemos então perguntar-nos se o verdadeiro princípio de individuação não senão os termos extremos do maior e do mais pequeno que o indivíduo, deixa
será melhor indicado pelo mundo vivo do que pela operação técnica, e se a na obscuridade a realidade que é da mesma ordem de grandeza que o indivíduo
operação técnica podia ser conhecida como individuante sem o paradigma produzido, e sem a qual os termos extremos permanecerão separados: uma
implícito da vida que existe em nós que conhecemos a operação técnica e a operação alagmática desdobrando-se a partir duma singularidade.
praticamos com o nosso esquema corporal, os nossos hábitos, a nossa memória. Contudo, não chega criticar o esquema hilemórfico e restituir uma relação
Esta questão é de um grande alcance filosófico, uma vez que conduz a mais exata no desenvolvimento da tomada de forma técnica para descobrir o
perguntarmo-nos se uma verdadeira individuação pode existir fora da vida. verdadeiro princípio de individuação. Também não chega supor no
Para o saber, não é a operação técnica, antropomórfica e por conseguinte
zoomórfica, que é preciso estudar, mas os processos de formação natural das 10
A individualidade do tijolo, aquilo por que este tijolo exprime tal operação que existiu hic et
nunc envolve as singularidades desse hic et nunc, prolonga-as, amplifica-as; ora, a produção
técnica procura reduzir a margem de variabilidade, de imprevisibilidade. A informação real que
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Ele manifesta apenas as singularidades do hic et nunc constituindo as condições de informação modula um indivíduo aparece como parasita; ela é aquilo por que o objecto técnico permanece
do seu molde particular: estado de desgaste do molde, cascalhos, irregularidades. nalguma medida inevitavelmente natural.
conhecimento que tomamos da operação técnica um paradigma em primeiro substância, sem a ver, sem a manipular, sem a preparar: o objecto será feito de
lugar biológico: mesmo que a relação matéria-forma na tomada de forma madeira, de ferro, de terra. A verdadeira passividade da matéria é a sua
técnica seja facilmente conhecida (adequadamente ou inadequadamente) disponibilidade abstracta por detrás da ordem dada que outros executarão. A
graças ao facto de sermos seres vivos, a referência ao domínio técnico é-nos, passividade é a de mediação humana que buscará a matéria. A forma
ainda assim, necessária para clarificar, explicitar, objectivar essa noção corresponde ao que o homem que comanda pensou ele próprio e que ele deve
implícita que o sujeito leva consigo. Se o vital experimentado é condição do exprimir de maneira positiva quando dá as suas ordens: a forma é portanto da
técnico representado, o técnico representado torna-se por sua vez condição do ordem do exprimível; ela é eminentemente ativa porque é o que se impõe aos que
conhecimento do vital. É-se assim reenviado duma ordem a outra, se bem que o manipularão a matéria, respondendo às condições da transmissão da ordem
esquema hilemórfico pareça dever a sua universalidade principalmente ao facto que supõe hierarquia social: é no conteúdo da ordem que a indicação da matéria
de estabelecer uma certa reciprocidade entre o domínio vital e o domínio é um indeterminado enquanto que a forma é determinação, exprimível e lógica.
técnico. Este esquema não é de resto o único exemplo duma correlação É também através do condicionamento social que a alma se opõe ao corpo; não
semelhante: o automatismo sob as suas diversas formas foi utilizado com mais é pelo corpo que o indivíduo é cidadão, participa nos julgamentos colectivos,
ou menos sucesso para penetrar nas funções do mundo vivo por meio de nas crenças comuns, sobrevive na memória dos seus concidadãos: a alma
representações provenientes da tecnologia, desde Descartes até à cibernética distingue-se do corpo como o cidadão do ser vivo humano. A distinção entre a
atual. No entanto, uma dificuldade importante surge na utilização do esquema forma e matéria, entre a alma e o corpo, reflete uma cidade que contém
hilemórfico: ele apenas indica o princípio de individuação do mundo vivo, cidadãos por oposição a escravos. Deve notar-se todavia que os dois esquemas,
precisamente porque atribui aos dois termos uma existência anterior à relação tecnológico e cívico, se eles se conciliarem para distinguir os dois termos, não
que os une, ou pelo menos porque não pode permitir pensar claramente esta lhe atribuem o mesmo papel nos dois pares: a alma não é pura atividade, plena
relação, ele só pode representar a mistura, ou a unificação parte por parte; a de determinação, enquanto o corpo seria passividade e indeterminação. O
maneira pela qual a forma informa a matéria não é suficientemente precisa para o cidadão é indivíduo como corpo, mas também é indivíduo como alma.
esquema hilemórfico. Utilizar o esquema hilemórfico, é supor que o princípio de As vicissitudes do esquema hilemórfico provêm do facto de ele não ser nem
individuação está na forma ou na matéria, mas não na relação dos dois. O diretamente tecnológico nem diretamente vital: ele é a operação tecnológica e a
dualismo das substâncias – alma e corpo – é o gérmen no esquema hilemórfico, realidade vital mediatizadas pelo social, ou seja, pelas condições já dadas – na
e podemos perguntar-nos se este dualismo provém das técnicas. comunicação interindividual – duma recepção eficaz de informação, neste caso
Para aprofundar este exame, é necessário considerar todas as condições que a ordem de fabricação. Esta comunicação entre duas realidades sociais, esta
envolvem uma tomada de consciência nocional. Se só existisse o ser vivo operação de recepção que é a condição da operação técnica, esconde o que, no
individual e a operação técnica, o esquema hilemórfico não poderia talvez seio da operação técnica, permite aos termos extremos – forma e matéria-
constituir-se. Na verdade, parece que o meio termo entre o domínio vivo e o entrar em comunicação interativa: a informação, a singularidade do “hic et nunc”
domínio técnico foi, na origem do esquema hilemórfico, a vida social. O que o da operação, acontecimento puro à dimensão do indivíduo em vias de aparecer.
esquema hilemórfico reflete em primeiro lugar, é uma representação
socializada do trabalho e uma representação igualmente socializada do ser vivo
individual; a coincidência entre estas duas representações é fundamento
comum da extensão do esquema dum domínio a outro, e o garante da sua Tradução de Ana Macedo
validade numa cultura determinada. A operação técnica que impõe uma forma a Gilbert Simondon, «Forme et matière: I. Fondements du schème hylémorpique. Technologie
uma matéria passiva e indeterminada não é apenas uma operação abstratamente de la prise de forme» (1964), in L’individu à la lumière des notions de forme et d’information, Millon,
considerada pelo espectador que vê o que entra no ateliê e daí sai sem conhecer Grenoble, 2005, pp. 39-51.
a elaboração propriamente dita. É essencialmente a operação comandada pelo
homem livre e executada pelo escravo; o homem livre escolhe a matéria,
indeterminada porque basta designá-la genericamente pelo nome da

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