Você está na página 1de 10

JOAO CEZAR DE CASTRO ROCHA

(organizador)

COM A COLABORAÇAO DE
VALDEI LOPES DE ARAUJO

NENHUM BRASIL EXISTE


- PEQUENA ENCICLOPEDIA -

PDF compression, OCR, web optimization using a watermarkedE2:k33


»...- . .
TOLS
D evaluation copy . _____
of CVISIONIo PDFCompressor
DI
______________________
J
16 SUMARIO

Maria Rita Kehl (PontifIcia Universidade Católica - São Paulo)


-A fratria órfá. O esforço civilizatório do rap na periferia
deSão Paulo ........................................................................ 1071
fndice Analítico ............................................................................ 1087
!ndice Onomástico ....................................................................... 1091

"NENHUM BRASIL EXISTE":


POESIA COMO HISTÓRIA CULTURAL'

Joäo Cezar de Castro Rocha2

Um paradoxo que nao deve ser resolvido


De um poema de Carlos Drummond de Andrade vejo a inspiraçäo
para este volume. O poema, intitulado RHino nacional, encena a
rcconstrução de diversos esforços de constituiçäo simbólica do país. Nos
seus versos finais, entretanto, eis que o próprio "Brasil" surge e, como
urna impossível coisa-em-si kantiana, resiste a todas as tentativas de
apreender sua essência:
o Brasil nao nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este nao é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?3

Nao se pode ignorar tal paradoxo.4 O Brasil" nao existe, mas é o


mesmo Brasil que nao se rende às tentativas de traduzi-lo em subs-

Nenhum Brasil existe -


tanciais volumes de história literária e cultural como, por exemplo,
pequena enciclopédia. 'Hino nacional, poema de
Brejo das almas, foi publicado em i 934. Quatro anos antes, a Revoluçâo
de 30" aprofundou um processo de modernização que, além da traiìs-

I
A major parte desse texto foi originalmente escrita em inglês. 'There is no Brasil: A Poet's
Writing of Cultural History, e publicado em Brazil200I: A Revisionary Histoiy ofBrazilian Literature
and Culture (University of Massachusetts Dartmouth, 2001): xvii-xxviii. Agradeço a Bluma Vilar a
traduçäo do texto em inglés.
2
Professor de Literatura Comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
3
Andrade 45.
4 A relevância da
noçäo de paradoxo como forma de abordagem da cultura brasileira já foi desta-
cada por John Gledson: Brasil é um país de paradoxos, e um dos majores é que, embora o país
pareça se abrir para um fácil entendimento. quanto mais nos aproximamos dele, mais complexo e
contraditório se torna (6).

PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor
18 JOÂO CEZAR DE CASTRO ROCHA NENHUM BRASIL EXISTE - PEQUENA ENCICLOPEDIA 19

[orrnaçao das estruturas econômicas e sociais, incluía um ativo progra- No sentido grego original, a afirmaçäo teórica era um pronuncia-
ma cultural cuja meta era tornar os brasileiros orguihosos de seu país mento que implicava um ato complexo de re-visão, envolvendo urn
nwdiante a descoberta e a promoçäo de potencialidades até então negli- grupo de testemunhas profissionais", cuja funçâo consistia em "assegu-
genciadas. Esse projeto levou à cooptação de boa parte da geraçäo rar que um dado evento tinha ocorrido" e podia assim tornar-se tema
modernista pelo Estado, incluindo o próprio Carlos Drummond de para consideraçâo no ámbito da cidade (Tarnen xii). Por definição, os
Andrade. Muito em breve, aliás, seria criada a Rádio Nacional do Rio de ouvintes desse pronunciamento nao tinham presenciado o evento refe-
Janeiro (1936), convertida num valioso instrumento para assegurar a rido pelos theoroi, era a credibilidade de sua posiçâo a responsável pelo
popularidade de Getúlio Vargas. Aparentemente, o
Brasil ali estava, ato suplementar de conferir veracidade ao relato. Tal autoridade, esclare-
pronto para ser dedfrado pelos brasileiros e adequadamente difundido ce Wlad Godzich, era atribuída a hrn de disdplinar os efeitos do discurso
na organização da ddade, mediante urna distinçäo precisa entre "reivin-
livros-
pelas ondas de rádio, filmes de propaganda política, artigos
romances, poemas, crônicas: todos os gêneros
de jornal,
cram bem- dicaçöes" e "afirmaçöes teóricas". Aquelas podiam ser feitas por qualquer
vindos, desde que confirmassem a versão ofidal. indivíduo, já estas cram prerrogativa dos oficiais designados para a fun-
Numa primeira leitura, portanto, o poema de Drummond parece çäo pública de theoros.5 Esse contexto particular cria urn cenário cuja
cui-
sugerir que o Brasil ofidal nao passava de um artifIcio resultante de cornplexidade pode ser relevante para a reflexäo sobre a escrita de histó-
dadosa orquestraçâo por parte dos revolucionários que tomaram o rias culturais e literárias. Em suma, o theoros tern de relatar urn evento
o se converte numa críti- por ele testemunhado a uma audiênda que nao estava presente à cir-
poder em 1930. Dessa perspectiva, parodoxo
ca: o 'Brasil" oficial nao coindde corn o Brasil. Talvez por isso, o Brasil cunstância a da relatada. Tal cena, vale frisar, produz na verdade dois
incxista e ao mesmo tempo proclame sua própria inexistência. Em atos de re-visâo, e distingüi-los propicia urna melhor compreensão do
outras palavras, há um Brasil que precede o Estado e, conseqüente- paradoxo intuído por Drummond. O primeiro, realizado pelo theoros, dá
mente, nao pode ser reduzido à imagern oficial. É como se o Brasil los- origem a urna afirmaçäo propriamente fantasmagórica, urna vez que
Sc um signo tao pleno de sentido que nao pudesse ser apreendido por "fantasmas vêrn sempre após alguma coisa" (Tarnen xiv). Nesse caso, o
urna simples operaçäo hermenêutica. O veiho clichê parece prevalecer
nessa leitura: tao exuberante quanto sua natureza, o Brasil, o Brasil- do -
ato de relatar vem após o de testemunhar um evento realmente ocorri-
muito embora o processo de ver/contar jamais coincida corn o
evento em todos os seus múltiplos aspectos. O segundo ato de re-visâo é
cm-si-mesmo, o Brasil bem brasileiro das declaraçöes ufanistas, só pode
ser sentido corn o coraçäo e nao interpretado racionalmente, pois, ante o mais irnportante para minha argumentaçâo. No caso dos ouvintes, seus
a plenitude do objeto, a linguagem parece incapaz de expressá-lo. fantasmas re-vistos "vêrn após coisa alguma, pois são simultâneos ao
No entanto, tal leitura nao dá conta da complexidade da intuiçâo discurso do theoros. O ouvinte nao tern a memória de ter presenciado urn
drummondiana. Se fosse satisfatória, como poderia a pergunta que evento real, mas predsa projetar no relato do theoros a credibilidade asso-
cnccrra o poema duvidar da existência dos próprios brasileiros? Se o ciada ao caráter público da função. Desse modo, a rnernória do ouvinte é
Brasil-em-si-mesmo excede sua ficção oficial, ele nao se tena inscrito no nao apenas socialrnas secundariamente engendrada, tornando-se urn
-
poyo origem da essência nacional, como afirmaria qualquer narrativa fato na medida em que é aceita corno representaçao fiel de urna realida-
romântica? Mais inquietante que pôr em dúvida a existência do Brasil é de prévia. Em síntese, a performance de contar urna história pressupu-
questionar a realidade dos brasileiros. Se o poyo é tao ficdonal quanto a nha originalmente o ato anterior de testemunhar urn evento.
narrativa que o Estado forja do país, entäo, onde estamos? Ou: o que
somos nós? Segundo Miguel Tarnen, encontramo-nos numa configura- da segunda modalidade de re-visäo -
Ora, projetos corno Nenhum Brasil existe constituem casos especiais
casos em que a complexidade da
Çã() fantasmagórica, somos fantasmas de nossas próprias projeçöes.
Na relaçâo entre presenciar e contar chega a seu limite. No tocante às his-
"introduçäo" a A Revisonary History ofPortuguese Literature, Tarnen mostra
como as noçöes de theoria e revisio estäo etimologicamente ligadas à idéia i A cidade necessitava de urna forma de conhecimento mais oficial e segura caso nao desejasse
dc fantasia e fantasma (Tarnen xii-xiii). As conseqüências dessa possibi-
perderse em infinitas reivindicaçôes e contra-reivindicaçöes. (...) somente o evento teoricarnen-
PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked
lidade irnportam muRo para a reflcxio aqui empreendida.evaluation
po(lcria copy
tado conio fatoofGodizch
CVISION
65).
It ('filO I)1 PDFCompressor
Vatio ser t ra ( I
20 ioAo CElAR DE CASIU() ROCUA NENHUM BRASIL EXISTE - PEQUENA ENCICLOPEDIA 21

tórias Iitcrárias e culturais, nao há um evento que oriente a organizaçäo sentido que reforça a si próprio, a naçäo seria antes um significante
da narrativa. Na perspectiva grega, é como se nem o theoros, tampouco
OS OUViflteS tivessem testemunhado qualquer evento e aqui vale
Icmbrar que o verbo theorem significa 'oIhar parafl, "contemplar, "pes-
- vazio ao qual se atribui urna carga semântica segundo as diferentes
necessidades geradas pela contingência das circunstâncias históricas.
Por ¡sso nem o Brasil, tampouco os brasileiros existem, ou rnelhor,
quisar" (Godzich 164). Transpondo esse problema para a construção somente existem através das imagens que deles construImos.
oltocentista do Estado-naço, fica claro que, à sua revelia, os historia- Ora, como observou Horni Bhabha, urna naço é antes de mais
dores da literatura e os seus leitores patriotas estavam engajados numa nada um problema de narração: "a figura ambivalente da naçäo é urn
empresa lúdica: a crença numa origem que nao podia ser identificada, problema de sua história transicional, de sua indeterminaçäo concei-
pois ¿i narrativa da história de urna nação nao pode contar corn urna
tual, de sua oscilaçäo entre vocabulários" (Bhabha 2). Narrar a nação
visau dc seu principio anterior à própria narrativa. A relaçäo clássica
sempre produz discursos que, apesar de prometerern urna inclusäo
necessita ser invertida, já que o relato deve mostrar-se bern-sucedido, a
total, são determinados sobretudo por exclusöes. Assim, a 1ocalidade'
11m dc forjar o testemunho retrospectivo: urna vez escoihido o evento
da cultura nacional nao é nern unificada nem unitária em relaçâo a si
originário, o olhar histórico organiza a escrita de acordo corn esse even- mesma" (Bhabha 4), e, por isso, engendra continuamente o "outro" no
tO. Por seu turno, tal ordenaçâo deve atestar a veracidade do relato. A
interior de um pretenso discurso homogéneo. Ademais, corno toda nar-
tautologia é incontornável.6 Nesse circuito, tanto o relato quanto sua rativa necessita apoiar-se nurna seleção inicial de elementos, nao pode
rccepçäo revelam-se substancialmente sern substância, vêm inexora-
velmente após coisa algurna, são fantasrnas de suas projeçöes, por assirn pretender ser urna representaçäo totalizante. Em conseqüência, revela-
se tanto sua arbitrariedade quanto os interesses a ela subjacentes.
nacional" de urna nação -
dizer. Nao podem pois fundamentar tentativas de desvendar o "caráter
e, urna vez mais, a redundância é inevitá-
vel. Leo Spitzer encontrou a formulaçào definitiva para o problema ern
Renan adrnitiu em célebre conferência: "Nenhum cidadâo francês sabe
se é burgúndio, alano, taifale, visigodo; todo cidadâo francés precisa ter
sua resenha de Poesía española, de Dámaso Alonso. Tal redundância esquecido São Bartolorneu, os rnassacres do Sul no século XIII.8
inaugura a "tautologia nacional", baseada na "afirmaçâo irnplícita de Portanto, nao é apenas a origem que se ignora, há muito mais para urn
que urna obra de arte espanhola é grande porque genuinarnente espa- cidadão esquecer a firn de se tornar "genuinamente" francés. Aqui a
nhola e genuinamente espanhola quando grande (Spitzer 354).7 Por agudeza da intuiçâo drummondiana se evidencia: tal narraçâo nao pas-
essa razào, o paradoxo drummondiano nao deve ser resolvido. Do con- sa de uma mise em abyme, quanto mais histórias nacionais forern escri-
trário, estaríamos condenados à mesma tautologia. De fato, o autor de tas, menos seus leitores serão capazes de apreender a totalidade da
"lino nacional" parece sugerir que, em lugar de signo repleto de um naçâo. E acaso há semeihante totalidade?
Em resumo, nao produzirnos coletâneas de ensaios de história
literária e cultural porque ainda nao sabemos quem são os brasile-iros e
6
Numa formulaçao perfeita, Wolfgang Iser resumiu o impasse criado por esse tipo de
tautologia: esperamos finalmente descobrir sua essência por meio da iniciativa. O
'Sempre que se postulam princIpios e fins, a história se transforma num testemunho das noçöes
preconcebidas, as quais devem revelar a si mesmas através da história, embora nao se reduzam à mais provável é que as organizamos porque nunca saberemos quern
história. Ademais, a compreensao dos fatos nao seria importante se considerarmos a história o são os brasileiros --- assirn como nao se pode saber quem são os chine-
processo de desenvolvimento de algo que a precede ou se considerarmos a história o caminho para
um objetivo que, por definição, encontra-se fora dela" (15er, The Range ses, uruguaios, portugueses, sul-africanos, etc., pois esse nao é urn pro-
ofinterpretation 58). No
tocante à obsessâo com a "identidade nacional, seu entendimento tautológico faz corn que a pró. blerna brasileiro, mas urna questão teórica associada à constituiçäo da
pria escrita de histórias literárias se revele desnecessária, ou, no melhor dos casos, um ocioso exer- sociedade moderna. A produçâo desse tipo de coletânea, portanto, con-
cício de antiquários cuja única obrigaçao é reunir fatos que confirmem a verdade que desde scm-
pre já era conhecida. Nesse contexto, atos de interpretaçäo nao sào exatamente bem-vindos.
7
Um pouco adiante, sptizer completou sua crítica à "tautologia nacionaP corn urna
aguda obser- s Renan 20. A conferência foi realizada na Sorbonne, em I i de marco de 1882. Sem dúvida, a con-
vaçäo: "Devo confessar que sempre apreciei o emprego norte-americano do this country: como se o ferência representava urna resposta à derrota sofrida na guerra franco-prussiana, de 1 87 1 Renan
.

norte-americano entendesse o seu país como um entre os países possíveis, como se tivesse acaba-
poderla ter mencionado um massacre muito mais recente e perturbador: o da Comuna de Paris.
do de se estabelecer nele! Esta postura relativista, naturalmente impossível no veiho continente,
representa urna iiçäo saudvel para a autocrítica nacional" (371, nota 2). sacre dos communards -
Por isso, para ser um cidadäo francés, em 1882, exigia-se, antes de tudo, o esquecimento do mas-
requisito a que Renan nao deixou de obedecer.

PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor
22 JoAo CEZAR DE CASTRO ROCHA NENHUM BRASIL EXISTE - PEQUENA ENCICLOPEDIA .
23

siste num empreendimento parcialmenie fictído, urna vez que a ficcio- Como a linguagem humana nao é capaz de exprimir a natureza perfeita
nalidade, segundo assinalou Wolfgang Iser, constitui um instrumento dc Deus, a única forma possível de definição é negativa. "Deus nao é
mediante o qual tentamos entrar em contato corn realidades alérn do imperfcito, nao é incompleto, nao é..."; desse modo, destaca-se, na insufi-
nosso alcance, embora reconheçamos a impossibilidade de apreendê- ciéncia da linguagem, a plenitude da referénda. Os principais pensadores
las em sua totalidade.9 Se Nenhum Brasil existe oferece um
aspecto diver-
so do habitualmente encontrado nesse género de coletânea, trata-se do
que se dedicam à tarefa de revelar o propriarnente brasileiro do Brasil ter-
minam às voltas corn urna melancólica descriçäo do que o país nao foi
- -
reconhecimento da ficcionalidade envolvida em tal esforço. moderno, democrático, etc. -, -
do que deixou de ser igualitário, ilumi-
Gostaria de concluir essas observaçöes preliminares sublinhando nista, -,
etc. do que ainda nao é país de prirneiro mundo, potencia
que o fato de se estar ciente dessa ficcionalidade nao implica que histó- mundial, etc. Dal sermos eternamente o "país do futuro", ou seja, somos
rias culturais e literárias nao devam ser escritas. Pelo contrário. tudo aquilo que um dia seremos. Essa intrigante contradição precisa ser
Entretanto, deveriam ser concebidas como perguntas filosóficas na mais bem estudada: é essa reflexão que se pretende iniciar com os textos

rias nao deveriam ser escritas para achar respostas -


definiçäo de Jean-François LyotardlO, ou seja, histórias culturais e literá-
como quer a obses-
que compöem Nenhum Brasil existe.
Devo, porérn, ressalvar urna diferença muito importante entre os
são com a identidade nacional -,
mas para divisar novas perspectivas e dois procedimentos. Na teologia negativa de base religiosa, a linguagem
suscitar novas perguntas. Afinal, nao basta lembrar que diferenças cultu- nao é capaz de exprimir o objeto porque ele se define pela máxima ple-
rais, entendidas como identidades nacionais", são culturalmente inven- nitude, logo, a linguagem se revela incapaz de expressá-lo. Como redu-
tadas, se isso acabar significando negligenciar diferenças reais entre as zir a totalidade a uma sentença, se toda expressão lingüística parte sem-
naçoes. No caso de Nenhum Brasil existe o desafio reside em escrever urna pre de uma seleção inicial, portanto, afasta-se da representação do todo?
história cultural e literária evitando a tautologia de desvelar a identidade Já no caso da teoIogia negativa" da tradição brasileira, o fenômeno se
nacional. Em relaçäo ao modelo dominante, portanto, este livro susten- inverte, pois, dada a incompletude constitutiva do objeto "Brasil" -o
ta urna divergência básica. Recusa-se a idéia de um Brasil profundo,
anterior às explicaçoes que procuram construi-lo. As interpretaçöes do
que ainda nao é ou nunca foi de todo a-, -
linguagem assume um ines-
perado papel decisivo. Em outras palavras pois é delas de que tra- se
Brasil são tao importantes quanto as próprias relaçöes concretas que
oconern nesse território físico e imaginário denominado "Brasil".
ta -, como o objeto nao prové uma referénda estável, cabe à linguagem
recobrir sua insuficiência com um número sem-fim de interpretaçöes
daquilo que deveria fazer do brasil, Brasil.'2 Essas inúmeras e por vezes
o pensamento social brasileiro e a "teologia negativa" contraditórias interpretaçöes são aqui apresentadas ao leitor, que, agora,
Urn aspecto praticamente ignorado do pensamento social brasileiro já saberá que esse problema acompanha toda e qualquer naçäo moder-
estirnula o projeto desse volume. No trabalho dos mais importantes "pen- na. Entretanto, o leitor dificilmente ficará satisfeito corn o caráter gené-
sadores" do Brasil reaparece a perturbadora contradição drummondiana: rico dessa ressalva, supondo que as circunstâncias históricas da forma-
seus textos desenvolvem o que já denominei de "arqueologia da ausén- ção social brasileira produziram problemas específicos que, embora pos-
cia"." Embora busquem definir a "brasilidade", terminam repetindo o sam ser mais bern compreendidos numa abordagem comparativa,
artifIcio da teologia negativa, característica de certa hermenêutica religiosa. demandam um olhar atento para suas particularidades.
o leitor tern toda razão, e para levar adiante esse diálogo propo-
9
Ver, especialmente. Iser, Ofictício e o ima,qinário.
nho que retire da estante O trato dos viventes, de Luiz Felipe de Alencas-
Io
"Os filósofos propôem perguntas que nao possuem
respostas. perguntas que devem permane-
tro, cuja instigante hipótese talvez ajude a associar a intuiçào drum-
cer sem respostas para merecerem ser chamadas filosóficas.
Perguntas que podem ser respondidas mondiana corn a especial teologia negativa dos pensadores brasileiros:
sâo somente questòes técnicas" (Lyotard 8).
A arqueologia da ausência "consiste numa avaliaçäo das
produçöes culturais que se baseia na
I

identificação da ausência deste ou daquele elemento, ao invés da análise dos fatores que efetiva- 12
0 leitor terá reconhecido a alusäo ao livro de Roberto DaMatta, O quefaz o brasil, Brasil. Rio de
mente definem o produto cultural estudado". Rocha, I 998, 79. Janeiro: Rocco, i 984.

PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor
24 ioAo CEZAR DE CASTRO ROCHA
NENHUM BRASIL EXISTE - PEQUENA ENCICLOPEDIA 25

"'Formaçäo do Brasil no Atiântico Sul': o leitor que bateu o olho na


capa do livro estará intrigado corn o subtítulo. Quer dizer entäo que o
diferente - exemplos similares são constantes no pensamento social
brasileiro.
Brasil se formou fora do Brasil? É exatamente isso: tal é o paradoxo Partindo desse pressuposto, ou seja, radicalizando as conseqüên-
que
pretendo demonstrar".'3 Para o historiador, a sociedade brasileira se cias do passado colonial, corn seu corolário de dependência, tanto eco-
estruturou num espaço sem território, nas águas do Atlântico Sul, nômica quanto cultural, compreende-se o eterno retomo da metáfora
oceano-ponte entre a monodultura escravista, montada no Nordeste antropofágica nos momentos de autodefiniçäo da cultura brasileira.
brasileiro, a zona de reprodução de escravos, localizada em Angola e o Aimai, essa metáfora se apresenta corno urna forma privilegiada de dige-
centro do comando, sediado em Lisboa. Sem dúvida, as tir a condiçào pós-colonial, assimilando o outro como se fosse o próprio.
conseqüências
de seu estudo levam muito além do que almejo nessa E, de fato, a metáfora tem feito história.15 Um pouco como o mito
'introdução,
contudo, a abordagem de Alencastro revela que, desde seus primórdios, que, na intuiçäo de Fernando Pessoa, "é o nada que é tudo".16 No caso
a engrenagem do que posteriormente seria denominado MBrasil brasileiro, trata-se de um nada corn direito a alguma concretude: desde
montou-se num tripé cujos eixos beneficiavam o interesse de uma
-
diminuta minoria às custas da terra e das gentes encontradas ou tra-
zidas. Daí, a história do mercado brasileiro, amanhado
o destino do Bispo Sardinha (um significante ready-made), até os dias de
hoje, a metáfora tern sido o prato principal de banquetes os mais varia-
pela pilhagem dos. Entre tantos, foi recuperada por José de Alencar numa nota apen-
e pelo comércio, é longa, mas a história da sa a seu último romance indianista, Ubirajara (1874), nota de rara inte-
nação brasileira, fundada na
violência e no consentimento, é curta (Alencastro 355). Eis a ligência etnográfica; tornada moeda corrente no 'Manifesto antropófa-
(triste)
particularidade brasileira no tocante ao problema mais geral de consti- go" (1928), de Oswald de Andrade; representada corn inesquecível
tuiçäo das naçöes modernas: devido à formidável máquina de exclusäo impacto visual na tela Abaporu (1928), de Tarsila do Amaral. Mais tar-
social que se articulou nas condiçöes da economia colonial, a de, os tropicalistas redescobriram-na através da antológica encenaçäo
teologia
negativa dos nossos pensadores talvez seja menos metafísica do que do Rei da Vela, de José Celso, realizada em 1967. Dois anos depois,
desejarlamos. Ao que tudo indica, a história da cidadania brasileira am- Joaquim Pedro de Andrade levaria às telas urna decidida releitura
da está por ser realizada.
Aliás, nao é verdade que, mesmo antes da montagem da empre-
sa açucareira, o "brasileiro" era
antropofágica do Macunaíma (1928), de Mário de Andrade. A metáfora
antropofágica, portanto, surge como a metonImia do "brasileiro"
assim, colocado entre parênteses, numa espécie de involuntária epoché
-
apenas o traficante do pau-brasil? Da
extraçäo da madeira à monocultura da cana-de-açúcar, o 'brasileiro" fenomenológica da identidade nacional.
designava todo aquele que se beneficiava do comércio nas terras do Nos últimos anos, a metáfora reapareceu corn força.
Novo Mundo. Ser "brasileiro representava um negócio, antes uma Em 1998, a XXIV Bienal de São Paulo utilizou a metáfora como
funçäo a ser desenvolvida em proveito próprio do que a promessa de eixo conceitual. No entendimento do seu curador, Paulo Herkenhoff:
identidade nacional. Desde a difusão do vocábulo, o brasileiro é lite- "A antropofagia, enquanto conceito de estratégia cultural (... ) ofere-
ceu um modelo de diálogo -o -
alheio -
ralmente uma espécie de estrangeiro para si mesmo, um hóspede do
'suns desterrados em nossa terra", na formulaçäo
paradoxal e
definitiva de Sérgio Buarque de Holanda, no parágrafo de abertura de
banquete antropofágico

conceito, funcionou como elemento catalisador no campo das artes


para a
interpretação".'7 Na Bienal, portanto, a metáfora, aiçada à condiçâo de

Raízes do Brasil (1936).14 Urna que permitiu reunir um conjunto universal ilustrativo da assimilação
passagem no mínimo intrigante para de valores exógenos. Nesse contexto, nao se pode deixar de mencionar
um livro cujo título em princípio prometeria urna conclusão muito

15
Para urna reavaliação da idéia de antropofagia, ver Rocha & Ruffinelli.
13
Alencastro 9.
16
Refiro-me aos versos iniclais de Ulisses, poema de Mensagem: "0 mito é o nada que é tudo./
14
Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas
instituiçöes, nossas idéias, e
timbrando em manter tudo ¡sso e, ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda -I
o mesmo sol que abre os céusl É um mito brilhante e mudo O corpo morto de Deus,/ Vivo e
uns desterrados em nossa terra. Holanda 3. hoje desnudo. (...)'.
'7
Herkenhoff 23.

PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor
26 ioAo CEZAR DE CASTRO ROCHA
NENHIJM BRASIL EXISTE PEQUENA ENCICLOPEDIA 21

urna iniciativa recente que estudou o rendimento da metáfora antro-


O volume
pofágica na cultura brasileira desde os anos 20 até suas reverberaçöes
nos anos 50. Essa foi a tarefa assumida por Jorge Schwartz, curador da Procuramos responder a esse desafio mediante a reconstruçao de
cxposiçao De la antropofagia a Brasilia: 192O-195O, organizada no visöcs da identidade nacional diferentes e até mesmo opostas. Seme-
Instituto Valenciano de Arte Moderno".18 Ihante pluralidade, por si só, inviabiliza urna abordagem essencialista do
Seria provavelmente interessante associar a noçäo de antropofagia "caráter nacional". Em outras palavras, os colaboradores foram solicita-
à pesquisa de Luiz Felipe de Alencastro, como urna dos nao a abraçar uma concepção predeterminada, mas a desenvolver
estratégia de supera-
ção ou ao menos de problernatizaçäo da "teologia negativa". Pois nao rcflexöes sobre textos e contextos que ajudararn a desenhar retratos do
será verdade que, no tocante à sua autodefiniçao, os brasileiros também Brasil. Se o ato prévio de testemunhar nao está em jogo na escrita da
se formaram fora do Brasil? Ora, aprendemos a
pintar a luz e a paisagem história cultural, sua reconstrução tern de começar pela tradição de
tropicais com os mestres da Missâo Artística Francesa. Ferdinand Denis como se narra a nação, pois a história cultural confunde-se com sua nar-
criou a receita para a literatura romântica brasileira. Karl Friedrich von rativa. Convérn chamar atençao do leitor para a natureza das reflexöes
Martius imaginou como se deveria escrever a história do Brasil. No sécu- que ora apresentamos, compostas por ensaios destinados menos a dar a
lo XX, o fenômeno se repetiu inúmeras vezes. Em i 924,
por exemplo, os última palavra sobre um tema do que a provocar a imaginaçao de quem
modernistas redescobriram a arquitetura e a arte colonial na influente os lê no intuito de estimular o contato direto com a obra analisada.
companhia de Blaise Cendrars, deslumbrado corn as cidades históricas A primeira seção de Nenhum Brasil existe trata de A Carta do Acha-
mineiras. Exemplo recente e nada erudito: precisamos de David mento do Brasil, mediante um conjunto de ensaios que pretende renovar
Byrne
para finalmente escutar a Tom Zé. E nao se trata de um fenômeno sua leitura. Para tanto, abandona-se a hermenéutica tradicional que
intrinsecamente brasileiro, mas de urna condiçäo de países pós-colo- projeta no texto de Pero Vaz de Caminha as angústias da afirmaçao da
niais. Os argentinos nao precisaram esperar o éxito francés de nacionalidade. Muito pelo contrário, os ensaios aqui reunidos propoem
Jorge Luis
Borges e Astor Piazzolla antes de reconhecer-ihes o gênio? análises em nada comprometidas corn esse projeto. Aliás, a história da
Em última instância, esse é o significado mais intrigante da antro- Carta, desaparecida durante séculos, nao deixa de ser um alerta em
pofagia, ja vislumbrado visionariamente por Arthur Rimbaud: "Je est un relaçao às leituras anacrônicas que sugerem a divertida e quase absur-
autre". E é somente através do outro que podemos conhecer da equivalência da Carta corn a certidão de batismo do país.
(um pouco)
de nós mesmos. Como Maria Rita Kehl sugeriu: Ao propor a A seção seguinte, Interrnediários culturais", está intrinsicamente
indagaçao
sobre a existência de urna funçâo fraterna na constituiçäo do relacionada à concepção de Nenhum Brasil existe corno um projeto para-
sujeito, já
-
estou sugerindo que sim: o outro, o semelhante -a
começar pelo irmâo
contribui decisivamente para nos estruturar.'9 Intuiçâo que Oswald
doxal. Tal seção foi inspirada por urna sugestão instigante, corno os ver-
sos de Drumrnond. Na introduçao à Farmaçdo da literatura brasileira,
de Andrade já havia arranhado corn sua Antonio Candido argumenta que urna literatura corno a do Brasil neces-
inteligência-relâmpago e cujas
conseqüências mais radicais ainda nao soubemos enfrentar. Ao contrá- sita um contato permanente corn literaturas estrangeiras, para nao cor-
rio da s'teologia negativa, marcada por urna certa melancolia afinal, - rer o risco de perder-se num inevitável provindanismo. Candido distin-
seu propósito secreto era nada menos do que desvelar a essência da
nacionalidade -,
o gesto antropofágico, partindo do pressuposto da seus leitores apreenderem urna visão de mundo particular -
gue literaturas que nao dependem de outras experiências literárias para
como a
necessária presença do outro, pode transformar alegremente o tabu em -,
literatura russa, a inglesa e a francesa
-
de literaturas que, em contra-
totem. Nos termos da reflexao aqui desenvolvida: escrever histórias da partida, precisam ter contato incessante corn textos estrangeiros como
cultura e da literatura indiferentes à "tautologia nacional". a brasileira. Recordemos essa observação, tao aguda quanto polêrnica:

Se isto já é impossível no caso de um português, o que se dirá de


8
Para o catálogo da exposiçao, ¡ndispensável obra de referéncia, ver schwartz.
um brasileiro? A nossa literatura é gaiho secundário da portuguesa, por
Kehl 31.
sua vez arbusto de segunda ordern no jardim das Musas (...). Os que se

PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor
28 ioAo CELAR DE CASTRO ROCHA
NENHIJM BRASIL EXISTE - PEQUENA ENCICLOPEDIA 29

nutreni apenas delas são reconhecívets à


primeira vista, mesmo quando
eruditos e inteligentes, pelo ItIlOdeEIniço dos brasileiros.23 Donde urna reavaliação crítica da obra
gosto provinciano e falta de senso de
porçöes. Estamos fadados, pois, a pro-
depender da experiéncia de outras (it)sociólogo ser sempre bem-vinda.
letras. (Candido, Formaçäo

Tal distinçào, vale


9-10) Nas seçOes "Cultura" e
coes textuais do Brasil - encontram-se variadas inven-
LiteraturaN

urna vez mais, a mera pluralidade de perspec-


tivas já sinaliza enfaticamente a ficcionalidade desses esforços. Tais
recordar, desencadeou urna série de
nao caberia explorar numa reaçöes que
introduçäo".2O Gostaria, contudo, de ressa!- iflVCflÇöCStextuais desempenharam um importante papel na história
tar o potencial subjacente à intelectual brasileira, dada a ausência de universidades, que só foram
cm evidência a natureza perspectiva delineada por Candido: ela poe
comparativa da cultura brasileira, e nao só des- solidamente implantadas a partir dos anos 30 do século XX. Até aquela
ta, mas de todas as culturas
pós-coloniais; urn tipo de cultura vocacio- época, obras literárias e ensaios interpretativos foram responsáveis por
nalmente antropofágica, pois sua traduzir o processo histórico brasileiro em narrativas da formação do
constituiçào explicita a via de mao
dupla dos contatos entre o próprio e o alheio. Desde o princIpio, a inven- país.24 Nessa seçOes, trata-se do inIcio da criaçäo de tais imagens, assim
çâo do Brasil esteve ligada às dos como dc seus modelos e contramodelos contemporâneos.
contribuiçOes chamados intermédiarios
culturais, a tal ponto, que nao seria o próximo grupo de ensaios compöe a seçâo História & Crítica
paradoxal conceber a cultura brasi-
leira, ao menos em parte, como Litcrária' e proporciona urna visão panorârnica dos prirnórdios de
Na seçäo Intermediários
criaçâo de perspectivas estrangeiras.21
culturais, o leitor encontrará vários ambas as disciplinas até a cena contemporânea. Dessa forma, o leitor
de sua presença em diferentes exemplos
momentos da história brasileira. pode ter urna boa idéia das questöes e das dificuldades enfrentadas pela
A próxima seçäo é dedicada à
obra de Gilberto Freire. Sua obra- instituiçäo dos estudos literários no Brasil, estudos esses tradicional-
prima, Casa-grande esenzala (1933), veio à luz num mente empenhados na busca da identidade nadonal.
chamados efeitos negativos da período em que os
miscigenaçäo ainda obsedavarn os inte- A última seçäo, "Audiovisual", representa urn reconhecimento
lectuais brasileiros. A nccessário, embora pouco frequente: as invençOes do Brasil depende-
contribuição de Freire refere-se nao
abordagem substancialmente nova da questâo da apenas à ram (e ainda dependem) muito mais de rneios de cornunicaçào outros
ele como um fenômeno mestiçagem, vista por
culturalmente produtivo e nao como um que nao os da cultura livresca. Em razâo também dos altos índices de
blema racial insolúvel, mas também pro-
porque, depois de o livro ter sido
traduzido para o inglés, por Samuel
influência determinante no modo corno Putnam22, a visào de Freire teve 15 De fato. os principais livros de Freyre se encontram traduzidos
a cultura brasileira é para o inglês. Por exemplo, em
no estrangeiro, o que, como percebida I 945 foi publicado pela editora Knopf como Brazil. an
Interpretation. Em i 946, tarnbém pela Knopf,
vimos, termina afetando decisivamente a Casa Grande e Senzala. Forinaçäo da FamIlia Brasileira sob o
Regime de Economia Patriarchal (1933)
recebeu o título em inglés de The Masters and the Slaves: A Study of the Development of Brazilian
Civilization. Em i 986, urna ediçäo em brochura, corn introduçäo de David H. P.
Maybury-Lewis,
foi publicada pela Universidade da Califórnia. Sobrados e Mucambos. Decadência do Patriarcado Rural
20
Entretanto, menciono algumas das mais relevantes no Brasil (1936), traduzido por Harrier de Onis e
críticas relativas à publicado pela Knopf em 1963 corn introduçäo
Afrânjo Coutinho imediatamente posiçao de Candido.
replicou em Conceito de literatura brasileira. Ver, de Frank Tannenbaum, recebeu o título em inglés de The Mansions and the Shanties: The
Making of
Portella, Campos, Lima. Ligia
Chiappini, por sua vez, respondeu a essas críticas em
também, Modem Brazil. Em I 986 fpi editada uma brochura, organizada
da crítica à "Os equívocos por E. Bradford Burns, através da
Formaçäo. De minha parte, propus urna leitura
Candido em A formaçäo da leitura no
21
Como vimos, o recente livro de
-
Brasil Esboço de releitura de
alternativa da sugestao de Antonio
Antonio Candido.
Universidade da Califórnia. Finalmente, Ordern e Progressa; Processo de
Desintegraçäo das Sociedades
Patriarcal e Sernipatriarcal no Brasil sob o Regime de Trabaiho Livre: Aspectos de urn
quase meio século de
Luiz Felipe de Alencastro transïçao do trabalho escravo para o trabaiho livre; e da Monarquia para a República ( I 959) foi traduzido
sólida base histórica. parece conferir a essa hipótese urna
22 por Rod W. Horeon e publicado pela Knopf em 1 970. recebendo na versâo em inglés o título Order
Aliás, no que se refere à difusäo dos estudos and Progress; Brazilfrom Monarchy to Republic. Urna edição em brochura corn
brasileiros em países de lIngua introdução de Ludwig
dar que Randal Johnson
assinalou corn justiça: a inglesa. vale recor-
Lauerhass, Jr., foi publicada pela Universidade da Califórnia em 1986.
brasileira ainda nao foi devidamente contribuiçâo de Putnam ao estudo da literatura
avallada. Além de ter 24
Nas palasiras de Antonio Candido: "Diferentemente do que sucede em outros
terna (Marvelous publicado urna história tratando do países, a literatu-
Journey, I 948), ele também iniciou a seçäo de literatura ra tern sido aqui. mais do que a filosofia e as ciências humanas, o fenômeno central da vida do
Latin American Studies, da brasileira no Handbook
Biblioteca do Congresso" (Johnson of espírito. (...) Urn Alencar ou um Domingos Olímpio eram, ao mesmo tempo, o Gilberto Freyre e o
udo Os sertôes, de Euclides da Cunha, corn 3). Em I 944, Putnam já havia tradu-
o título Rebellion in the José Lins do Rego em seu tempo; a sua ficçäo adquiria
Backlands. significado de iniciaçào ao conhecimento
da realidade do país (Candido, Literatura e cultura 130 e 136).

PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor
30 ioAo CZAR DI CASTRO ROCHA
NI3NIIUM BRASIL EXISTE - PEQUENA ENCICLOPEDIA 31

-
analfabetismo no país, a oralidade consèrvou sua importância na trans-
misso da cultura isso, porém, nao deve ser entendido como um vItveis.
110
A essa altura, imaginojá estar clara a seguinte irnpossibilidade:
tocante escrita de histórias literárias e culturais, o resultado será
fenômeno exclusivamente baseado numa falta ou estaríamos renovan-
do a "arqueologia da ausência". Mais promissora é a sempre lacunar, pois nunca daremos conta de urn Brasil que nao exis-
perspectiva pro- le. Só aqueles que ainda acreditam ser possível atingir a totalidade, isto
posta por Caetano Veloso numa entrevista ao L'Express: Desde os anos
20 ou 30 em diante, a música popular brasileira tornou-se urna é, ainda pretendem apreender a essênda de urn país deixarão de ver
expres- cm tais lacunas urn irrecusável convite à escrita de outros ensaios e à
São que se considera confiável. Trata-se de urna
força que é respeitada organizaçäo de novas coletâneas.26 Que sejam bern-vindos futuros
porque diz a verdade da sociedade brasileira. (...) Há urna razäo rnuito
simples para explicá-lo: a pobreza do país, a precariedade da formaçâo volumes, pois só nos resta conjurar fantasmas corn outros fantasmas,
e da educaçäo. As cançöes isto é, as histórias da cultura que escrevernos.
populares são urna forrna de expressão aces-
sível a todos".25
Nao é, pois, urna surpresa que, nos anos 60 do século
XX, filmes Bibliografia
tenharn sido considerados instrumentos para revolucioná-
rnudanças
rias. A música popular, por Akncastro, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. Formaçäo do Brasil no Atiântico Sul. São
exemplo, segue desernpenhando urn papel
significativo na definição de identidades brasileiras. Isto para nao men- Paulo: Companhia das Letras, 2000.
cionar as redes de televisão, que são o mais forte elemento de coesão na Andrade, Carlos Drummond de. Brejo das almas. Poesia e prosa (organizada pelo autor).
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1988 [19361.
sociedade brasileira contemporânea. Por isso, urna
exposição da histó- Ihahba, Homi. 'Introduction: Narrating the Nation'. Nation and Narration. Homi
ria cultural brasileira ficaria incornpleta se nao levasse ern conta a Bhabha (org.). Londres e Nova York: Routledge, 1990. 1-7.
dirnensão audiovisual. Nenhum Brasil existe caminha nessa liriesemeister, Dietrich e Schönberger, Axel (orgs.). Portugal heute. Politik. Wirtschaft.
direção.
Nurna resenha sobre a coletânea de ensaios heute. Politik. Kultur. Bibliotheca Ibero-Americana, Vol. 64, Frankfurt: Vervuert Verlag, 1997.
Portugal
Wirtschaft. Kultur, organizada por Dietrich Brieserneister e Axel Candido, Antonio. Formaçäo da literatura brasileira (Momentos decisivos). Belo Horizonte:
ltatiaia, 1981 [1959].
Schönberger, Paulo de Medeiros fez urn comentário bastante lúcido.
-.----. "Literatura e cultura de 1900 a 1945'. Literatura e sociedade: Estudos de teoria e
Ernbora questionasse a organização do volume em determinados história literária. 7 ed. São Paulo: Editora Nacional, 1985. 109-38.
aspectos, Medeiros nao deixou de perceber que a principal conquista (:anlpos, Haroldo de. O seqüestro do barroco na Formação da literatura brasileira: O caso
do volume era ter explicitado "o quanto os estudos Gregório de Mattos. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1989.
portugueses preci-
sam reavaliar seus objetivos, seus métodos e suas Chiappini, LIgia. "Os equívocos da crítica à Formaçâo. Dentro do texto, dentro da vida. Ensaios
práticas" (Medeiros sobre Antonio Candido. Maria Angela D'Incao & Eloisa Fana Scarabôtolo (orgs.). São
229). Sou o prirneiro a reconhecer as eventuais lacunas de Nenhum
Paulo: Companhia das Letras/ Instituto Moreira Salles, 1992. 170-480.
Brasil existe, mas espero que possa contribuir
significativamente para Coutinho, Afrânio. Conceito de literatura -brasileira. Rio de Janeiro: Livraria Académica,
urna reavaliação serneihante dos estudos brasileiros. Corno esta
nea se destinava originalmente ao público de
meira vez que se fazia urna apresentação tao
coletâ-
lIngua inglesa e era a pri-
1960.
Paure, Michel. "Caetano Veloso. L'Entretien
brésilienne'. L'Express ( 1 7/2/2000): 10-3.
-
'La Musique dit les vérités de la société
abrangente da literatura e
da cultura brasileiras nessa lIngua, lacunas eram Freyre, Gilberto. Brazil, 'An Interpretation. Trad. Samuel Putnam. Nova York: Knopf, 1945.
(e permanecem) me- Gledson, John. Brazil: Culture and Identity. Liverpool: Universidade de Liverpool,
Instituto de Estudos Latino-Americanos, 14, 1994.

25
Entrevista concedida a Michel Faure. Vale recordar
que Arto Lindsay, na apresentaçäo do CD
já o havia observado corn agudeza: A música popular brasileira desempenha um
Beleza tropical. 26
Nao quero concluir sem destacar urna série de volumes muito próximos ao projeto de Nenhum
papel mais destacado na vida cultural brasileira do que a música Brasil existe. Em primeiro lugar, os dois importantes tomos organizados por Lourenço Dantas Mota,
popular em outros países. Foi
somente na segunda metade do século XX que a maloria da lntroduçäo ao Brasil. t.m banquete no trópico, publicados em 1999 e 2000, respectivamente, pela
população alfabetizou-se. E urna lditora SENAC. Carlos Guilherrne Mota, também pela Editora SENAC, organizou Via,qein incomple-
ampla maioria dos brasileiros ainda vive abaixo da linha de
pobreza. Talvez esses fatos tenham
contribuIdo para a importância das tradiçöes orais no Brasil. fa. A experiência brasileira. Formaçäo: Histórias ( 1500-2000), em 1999, e Viagem incompleta. A experiên-
cia brasilcira: A grande transaçdo ( i 500.2000), em 2000, reunindo urna releVante coleção de ensaios.

PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor
32 ioAo CEZAR DE CASTRo ROCHA

Godzich, Wiad. The Tiger on the Paper Mit". The Culture


ofLiteracy. Cambridge:
Harvard U. P., 1994. 159-70.
Herkenhoff, Paulo. Introduçäo gera1. Paulo Herkenhoff
(org.). Catálogo da XXIV
Bienal de São Paulo relativo ao Núcleo histórico:
Antropofagia e histórias da civiliza-
çäo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998. 22-34.
Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2l ed.,
1982 [1936].

-.
Iser, Wolfgang. O fictIcio e o imaginário. Perspectivas de urna
antropologia literária. Trad.
Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996
[1991].
The Range oflnterpretation. Nova York: Columbia
University Press, 2000.
Johnson, Randal. 'Introduction". Tropical Paths. Essays on Modern
Brazilian Literature.
Randa! Johnson (org.). Nova York e Londres:
Garland, 1993. 3-lO.
Kehl, Maria Rita. 'Introdução: Existe urna função fraterna?". Maria Rita Kehl
(org.).
Funçdofraterna. Rio dejaneiro: Relume Dumará, 2000. 3 1-47.
Lima, Luiz Costa. 'Concepçäo de história literária na
Formaçäo". Pensando nos trópicos.
(Dispersa demanda II). Rio de Janeiro: Rocco, 1991. 149-66.
Lindsay, Arto. "Presentation". Beleza Tropical. Vol. 1. Organizado por David
Luaka Bop Warner Bros. Records, 1989. Byrne.
Lyotard, Jean-François. Can Thought Go Without a Body?". The Inhuman:
on Time. Stanford: Stanford U. P., 1991. 8-23. Reflections A CARTA DE PERO YAZ DE CAMINHA
Medeiros, Paulo de. Review. Portugal heute. Politik. Wirtschaft. Kultur.
Portuguese
Literary Cultural Studies 2 ( 1999): 225-9.
Portela, Eduardo. 'Circunstância e problema da história !iterária". Literatura e
realidade
nacional. Rio de Janeiro: Ediçöes Tempo Brasileiro, 1 97 5. 2 1 -39.
Renan, Ernst. 0 que é urna nação?" Nacionalidade em
questâo. Maria Helena Rouanet
(org.). Cadernosda Pós I Letras. 1997 [18821, 19: 12-43.
Rocha, Joäo Cezar de Castro. Literatura e cordialidade. O

-. A formaçcio da leitura no Brasil-


sileira. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998.
público e o privado na cultura bra-

Esboço de releitura de Antonio Candido".


Literatura e Identidades. Ed. José Luís Jobim. Rio de Janeiro:
UERJ, 1999. 57-70.
-. & Ruffinelli, Jorge
(orgs.). Anthropohagy Today? Nuevo Texto Críico. Palo Alto:
Stanford University, i 999.
Schwartz. Jorge (org.). De la antropofagia a Brasilia: 1920-1950. Valencia:
IVAM, 2000.
Spitzer, Leo. "La Poesia Española de Dámaso Alonso". Teoria da literatura em suas
Luiz Costa Lima (org.). Volume I. Rio de Janeiro: Frandsco fontes.
Alves, 1983. 352-84.
Tamen, Miguel. "Ghosts Revised: An Essay on Literary
History". A Revisionary History of
Portuguese Literature. Miguel Tarnen e Helena C. Buescu (orgs.). Nova York e
Londres: Garland Publishing, 1999. xi-xxi.

PDF compression, OCR, web optimization using a watermarked evaluation copy of CVISION PDFCompressor

Você também pode gostar