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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE – UFRN


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES – CCHLA
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA – DGE

O DISCURSO GEOGRÁFICO NO LIVRO OS SERTÕES: AS


CONTRIBUIÇÕES PARA A INTERPRETAÇÃO DA FORMAÇÃO
TERRITORIAL DO BRASIL

ALYNE KAROLLAYNE MELQUIADES SOUZA DA SILVA

Natal-RN, 2022.
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Alyne Karollayne Melquiades Souza da Silva

O DISCURSO GEOGRÁFICO NO LIVRO OS SERTÕES: AS


CONTRIBUIÇÕES PARA A INTERPRETAÇÃO DA FORMAÇÃO
TERRITORIAL DO BRASIL

Monografia apresentada ao Departamento


de Geográfica da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte para a obtenção do
título de Bacharel em Geografia.

Orientador: Prof. Dr. Hugo Arruda de


Morais.

Natal-RN, 2022.
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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN


Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Silva, Alyne Karollayne Melquiades Souza da.


O discurso geográfico no livro Os Sertões: as contribuições
para a interpretação da formação territorial do Brasil / Alyne
Karollayne Melquiades Souza da Silva. - Natal, 2022.
78f.: il.

Monografia (graduação em Geografia) - Centro de Ciências


Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, 2022.
Orientador: Prof. Dr. Hugo Arruda de Morais.

1. Discurso geográfico - Monografia. 2. Representação


Geográfica - Monografia. 3. Nação - Monografia. 4. Os Sertões -
Monografia. 5. Euclides da Cunha - Monografia. 6. Formação
territorial - Monografia. I. Morais, Hugo Arruda de. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 911

Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710


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Alyne Karollayne Melquiades Souza da Silva

O DISCURSO GEOGRÁFICO NO LIVRO OS SERTÕES: AS


CONTRIBUIÇÕES PARA A INTERPRETAÇÃO DA FORMAÇÃO
TERRITORIAL DO BRASIL

Monografia apresentada ao Departamento


de Geográfica da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte para a obtenção do
título de Bacharel em Geografia

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________
Prof. Dr. Hugo Arruda de Morais (Orientador)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN

______________________________________________________
Profª. Drª. Eugênia Maria Dantas (Examinadora Interna)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN

______________________________________________________
Prof. Dr. Cláudio Jorge Moura de Castilho (Examinador Externo)
Universidade Federal de Pernambuco – UFPE
5

“É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras


e os crimes das nacionalidades...”
Euclides da Cunha
6

Dedico a minha mãe Karine Roseane, que mesmo em momentos difíceis, nunca
desistiu. Suas palavras e sua fé em mim sempre foram minha inspiração.
7

AGRADECIMENTOS

Agradeço a minha mãe Karine, por sempre me encorajar nos momentos


difíceis, me dando forças para continuar. A senhora sempre terá o melhor de mim.
Ao meu tio, Wagner, e minhas tias, Geysa e Joyce. O amor e colo de vocês me
guiou até aqui.
Aos meus primos que foram mais próximos que irmãos, Gustavo e Bruno,
pelos conselhos e incentivos.
À Maraisa, minha irmã do coração. Obrigada por ser minha família e me dar
suporte em todos os momentos.
As minhas amigas e companheiras de curso que desejo levar para vida,
Vanessa, Thais e Mayara. Vocês fizeram esse percurso mais leve, sou grata em dividir
esse momento com vocês.
Ao meu orientador, Hugo Arruda de Morais por acreditar em mim, assim
como pelos momentos em que se fez extremamente paciente e compreensivo com
essa pesquisadora, principalmente, quando dava seus primeiros passos. Da mesma
forma em que disse no início, afirmo novamente: Espero me tornar uma Geógrafa
como o senhor.
As minhas colegas de Pesquisa, Andréa e Noemê, por dividirem comigo o
maravilhoso prazer de redescobrir a Geografia por meio da Literatura.
Aos Professores do Departamento de Geografia, pelas suas contribuições à
minha formação.
Ao CNPQ pelo financiamento da pesquisa que culminou nessa monografia.
Por fim, agradeço a todos que me auxiliaram e me acompanharam nessa etapa
tão importante e sonhada de minha vida.
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RESUMO

A análise entre o espaço e sociedade, a partir da relação entre o povo e seu território,
foi uma problemática existente na literatura brasileira no século XIX e início do
século XX. Interpretar a vida econômica, política e cultural do país passou a ser o
objetivo de vários intelectuais, permitindo não só a formação de um sentimento de
nacionalidade, mas também, de uma representação do território e de sua população,
durante o processo conjuntural vivenciado pelo país naquele momento. Dentre as
várias obras que se destacam no período, o livro Os Sertões de Euclides da Cunha,
chama a atenção. Considerado um dos principais autores da literatura brasileira,
Euclides, ao retratar os fatos da Guerra de Canudos, deflagrada no interior da Bahia,
no ano de 1896, expõe não somente o contexto da guerra civil que se desencadeou em
Canudos, mas um sertão desconhecido e desintegrado do restante do espaço
nacional. Dividido em três partes, A Terra, O Homem e a Luta, o livro, Os Sertões,
estabeleceu uma perspectiva de saber histórico e geográfico que foi capaz de
contribuir para abertura de um caminho que possibilita a leitura do Brasil. Essas
observações introduzem a questão central da presente pesquisa: Quais as principais
contribuições geográficas do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, para a
interpretação da formação territorial do Brasil? Com base neste questionamento
norteador, tem-se como objetivo central analisar as principais contribuições
geográficas do livro, Os Sertões, de Euclides da Cunha para a interpretação da
formação territorial do Brasil. Para tal, parte-se do entendimento teórico de que o
conhecimento geográfico, como uma forma de interpretação da história do homem
na ocupação do espaço, pode ser visto em diversas ideologias e discursos que
emergem em várias esferas do entendimento, tais como: o acadêmico, o literário, os
discursos políticos, a ensaística e/ou relatos de viagem. À vista disso, presencia-se na
Literatura desse período o debate das representações sobre o território e a sociedade
brasileira, permitindo serem interpretados como discursos geográficos, dado que eles
exerceram um papel social e que consistia em manifestar a dinâmica presente no
contexto responsável por delimitar e definir território e povo. O procedimento
metodológico deu-se por meio dos elementos de compreensão da obra e por uma
análise crítica do discurso presente no livro. Por conseguinte, a investigação permitiu
a construção de uma percepção do discurso geográfico em Euclides da Cunha, por
meio do livro Os Sertões, e como esse discurso desencadeou um pensamento sobre a
representação espacial do território do Brasil.

Palavras-chaves: Discurso geográfico, Representação Geográfica; Nação, Os Sertões,


Euclides da Cunha; Formação territorial;
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ABSTRACT

The analysis between space and society, based on the relationship between the
people and their territory, was an existing problem in Brazilian literature in the
nineteenth century and early twentieth century. Interpreting the economic, political,
and cultural life of the country became the goal of several intellectuals, allowing not
only the formation of a feeling of nationality, but also a representation of the territory
and its population, during the conjunctural process experienced by the country at
that time. Among the many outstanding works of the period, Os Sertões (Rebellion in
the Backlands) written by Euclides da Cunha stands out. Considered one of the main
authors of Brazilian literature, Euclides, in portraying the facts of the War of
Canudos, which broke out in the interior of Bahia in 1896, exposes not only the
context of the civil war that broke out in Canudos, but also an unknown hinterland
disintegrated from the rest of the national space. Divided into three parts, The Land,
The Man and the Struggle, the book, Os Sertões (Rebellion in the Backlands),
established a perspective of historical and geographical knowledge that was able to
contribute to the opening of a path that enables the reading of Brazil. These
observations introduce the central question of this research: What are the main
geographical contributions of the book Os Sertões (Rebellion in the Backlands)
written by Euclides da Cunha, to the interpretation of the territorial formation of
Brazil? Based on this guiding question, our central objective is to analyze the main
geographical contributions of the book Os Sertões (Rebellion in the Backlands)
written by Euclides da Cunha for the interpretation of the territorial formation of
Brazil. For this purpose, we start from the theoretical understanding that geographic
knowledge, as a form of interpretation of the history of man in the occupation of
space, can be seen in various ideologies and discourses that emerge in various
spheres of understanding, such as: the academic, the literary, the political discourses,
the essayistic and/or travel reports. In view of this, we witness in the literature of
this period the debate of the representations about the territory and the Brazilian
society, allowing them to be interpreted as geographical discourses, since they
played a social role and consisted in manifesting the dynamics present in the context
responsible for delimiting and defining territory and people. The methodological
procedure was carried out through the elements of understanding the work and a
critical analysis of the discourse present in the book. Therefore, the research allowed
the construction of a perception of the geographic discourse in Euclides da Cunha,
through the book Os Sertões (Rebellion in the Backlands), and how this discourse
triggered a thought on the spatial representation of the territory of Brazil.

Keywords: Geographical Discourse, Geographical Representation; Nation, Os


Sertões, Euclides da Cunha; Territorial formation;
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LISTA DE QUADROS

Quadro 01 Quadro Síntese dos elementos de compreensão para leitura do


livro Os Sertões ...................................................................................... 30
Quadro 02 Procedimento de pesquisa documental do livro Os Sertões ........... 32
Quadro 03 Quadro Síntese da Análise Crítica do Discurso do Livro Os 34
Sertões .....................................................................................................
Quadro 04 Síntese do livro Os Sertões ................................................................... 39
11

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 12
2 FUNDAMENTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS ......................... 20
2.1 A concepção de discursos geográficos ....................................................... 20
2.2 Literatura brasileira como arcabouço histórico-espacial do Brasil ....... 24
2.3 Procedimentos Metodológicos e Técnicos ................................................ 27
2.3.1 Os elementos de compreensão como percurso ........................................... 28
2.3.2 A Análise Crítica de Discurso como técnica ............................................... 31
3. A OBRA OS SERTÕES: TEMAS, LINGUAGEM E DIMENSÃO
ESPACIAL ....................................................................................................... 36
3.1 Euclides da Cunha e as características gerais do livro Os Sertões ........... 36
3.2 A linguagem literária e a perspectiva filosófica e científica: narrativas
e temas .............................................................................................................. 47
3.3 Os Sertões e teoria interpretativa sobre o Brasil moderno: o discurso
euclidiano da nacionalidade pelo espaço .................................................... 51
4 DISCURSO GEOGRÁFICO E A INTERPRETAÇÃO DA
FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL EM EUCLIDES DA
CUNHA ........................................................................................................... 58
4.1 O sertão na organização espacial do Brasil ............................................... 58
4.1.1 A natureza do sertão: deserto e paraíso ...................................................... 58
4.1.2 O Sertão e a visão dos dois Brasis ................................................................. 61
4.2 O Sertão e a representatividade de uma nacionalidade ......................... 67
4.2.1 A nacionalidade mestiça e em construção .................................................. 67
4.2.2 A sociedade sertaneja: fé, pecuária e nacionalidade .................................. 69
4.2.3 Os Sertões e o saber geográfico ................................................................... 71
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 77

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................... 79


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1. INTRODUÇÃO

A Geografia, enquanto forma de saber, emergiu e emergirá em todas as épocas


e em todas as sociedades, pois refere-se à relação indiscutível dos seres humanos com
o meio que os abriga (MORAES, 2005). Logo, pode-se afirmar que a Geografia não se
delineia de uma única forma e em apenas uma civilização.
Dado que o saber geográfico traz à tona a relação entre o homem e o meio que
o abriga, sendo traçado ao longo do processo de apropriação do espaço natural e da
construção de um espaço social pelas diferentes comunidades, esses saberes não se
esboçam de uma única forma (MORAES, 2005). Cada espaço e sociedade possuem
um contexto histórico distinto, constituindo-se como um saber singular, fruto de uma
construção de diversos outros conhecimentos produzidos. O que permite ser
encontrado em várias esferas das sapiências e emergir dentro da dinâmica de um
dado povo (MORAES, 2005).
Tal posicionamento inicial é importante e válido de ser destacado, uma vez
que se observado o contexto nacional de surgimento da ciência geográfica, tem-se
uma institucionalização no Brasil ocorrendo de forma muito tardia. A Geografia se
estabeleceu no início da década de 1930, precisamente em 1934, com a implantação
do primeiro curso na Universidade de São Paulo (USP).
Porém, não se pode negar que antes de 1930 havia todo um conjunto de
saberes e noções que fundamentaram o pensamento geográfico brasileiro
(ANDRADE, 1977). Tal cenário se sucede em razão de que a história da Geografia é
produto e se confunde com o fazer das ciências no Brasil (SOUSA NETO, 2001).
Como também é resultado das análises e dos debates em torno da formação da
sociedade e dos vários tipos de intervenção que esta executa na natureza,
permitindo, com isso, reflexões de outras ciências e formas de conhecimento
(ANDRADE, 1977).
De modo, se faz necessário buscar fazer uma “memória” da geografia
nacional, na perspectiva de buscar um conhecimento que a historiografia quer
chamar “pré-científico” (SOUSA NETO, 2001). Vários autores e pensadores das mais
diversas áreas deram a essa ciência uma contribuição grandiosa, principalmente nas
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análises da relação do homem com o meio e nas variadas formas de organização e


desempenho humano na superfície terrestre (ANDRADE, 1977).
Nessa perspectiva, o pensamento espacial no Brasil tem suas bases no século
XIX e já início do século XX, a partir de “trabalhos de alto interesse geográfico,
embora não metodologicamente geográficos” (ANDRADE, 1977, p. 7). Ele é fruto de
uma interpretação da realidade do país, da constituição do território nacional e não
simplesmente de uma cópia dos saberes de outros povos:
Não concordamos com aquela distinção feita por geógrafos mais apressados,
geógrafos de formação francesa— os do passado — e geógrafos de formação
norte-americana — os mais jovens — que, a nosso ver, depõe contra a
capacidade intelectual dos classificados e dos que classificam. É a
consagração pura e simples de uma ideologia colonialista, de que existem
povos superiores que devem dominar e povos dominados que são incapazes
de elaborar os seus princípios científicos e as suas ideologias, ou que se
limitam a copiar modelos de franceses, ingleses, alemães, americanos, russos
ou chineses (ANDRADE, 1977, p. 17).

Sendo assim, o pensamento geográfico brasileiro é criativo e interpretativo de


nossa realidade. No qual, já a partir do século XIX, viajantes e cientistas estrangeiros,
através de escrita de relatórios técnicos, depoimentos e roteiros, deram grande
contribuição para o entendimento dos problemas em que se encontravam o país,
principalmente, pela perpetuação anacrônica do sistema colonial português em
nossas terras (ANDRADE, 1977).
Logo, compreende-se que este saber tem sua construção fundamentada em um
conjunto de discursos com forte arcabouço espacial e é bem anterior a esse momento
de institucionalização (MORAES, 2008), pois ele é fruto de um pensamento inserido
em uma conjuntura específica de nossa formação econômica, política, cultural e
social (ANDRADE, 1977).
A história da Geografia no Brasil foi armazenada, absorvendo, acumulando e
transformando continuamente reflexões que se deram em torno do processo de
produção, reprodução e dinâmica de organização espacial e territorial nacional
(ANDRADE, 1977), seguindo “a trilha” dos países de “passado colonial”: “A história
da ciência no Brasil seguiu a mesma trilha que nos demais países de passado colonial
[...]” (SOUSA NETO, 2001, p. 124).
14

Ao mesmo tempo, os saberes presentes nos discursos dos pensadores sociais


brasileiros possibilitam uma interpretação e processos de reconhecimento de uma
pátria e sua identidade, principalmente, em países de formação colonial, como o
Brasil (MORAIS, 1991). Nesse caminho, para Moraes (1991), a questão do espaço era
fundamental para a perspectiva de construção de identidade, na qual as
representações nacionais são vistas a partir de uma concepção de reconhecimento
territorial. Logo, a unidade e aclamação de nação vêm desse reconhecimento e
conquista do território. Com isso, surge a perspectiva da “identidade pelo espaço”
(MORAIS, 1991, p. 168) nos discursos geográficos (MORAES, 1991; 2008).
A partir desse olhar, compreende-se que o conhecimento geográfico e seu
saber se encontram em vários pensadores e intelectuais não-geógrafos (ANDRADE,
1977). Estes apresentam uma leitura da realidade brasileira sob o prisma, não
necessariamente, de uma geografia acadêmica, mas com orientações filosóficas das
mais diversas, o que faz da Geografia “uma moldura de seu tempo” (SOUSA NETO,
2001, p. 121).
Nesse sentido, entendemos ser a literatura uma importante fonte de saber
histórico e espacial capaz de conceber aos estudos geográficos a reconstrução das
ideias de territórios, paisagens, das materialidades, através da expressão das relações
sociais, das dimensões políticas e culturais, referentes à época. Mas, principalmente,
das representações que buscam compreender a formação territorial do Brasil.
Por conseguinte, a literatura brasileira do século XIX, através dos romances,
pode apresentar uma reconstituição da relação do homem com o meio e da sociedade
com a natureza, uma vez que o discurso literário é central na explicação dessa relação
(SEVCENKO, 2003).
Partindo dessa perspectiva, entende-se que o vasto saber literário produzido
no Brasil no final do século XIX e nos primeiros trinta anos do século XX promoveu
um arcabouço histórico-espacial do país gerando uma base que delineia a
compreensão da construção do quadro atual da nação. A literatura brasileira exercia
uma função sociológica (e porque não geográfica?) de interpretação da cultura e da
realidade vivenciada pelo país (CÂNDIDO, 2006).
15

Isso ocorre, pois no período em tela há um rompimento entre as tendências


literárias locais. Com isso, a literatura nacional, que antes era um transplante do que
existia na metrópole portuguesa e em países da Europa, torna-se a língua geral da
sociedade em busca de autoconhecimento (CÂNDIDO, 1999). Dessa forma, o
conjunto das produções literárias transmuta-se juntamente com o sentido de nação,
permitindo o esboço de uma noção a respeito da Nação e da sociedade.
Dessarte, a literatura brasileira passa a ser uma “produção discursiva”
(SEVCENKO, 2003, p. 28), um elo com várias ciências sociais, principalmente, por
apresentar uma dimensão social e espacial sobre o Brasil.
A busca pela representação do território brasileiro e de sua população,
durante o processo conjuntural da política e da economia vivenciada pelo país nesse
período, possibilitou a formação de um sentimento de nacionalidade no Brasil.
Decifrar tais elementos passou a ser o objetivo dos intelectuais, principalmente, ao
formularem “princípios teóricos ou interpretar de modo global a sociedade
brasileira” (CÂNDIDO, 2006, p. 271).
Com isso, escritores como Euclides da Cunha, Joaquim Nabuco, Gonçalves
Dias, Castro Alves, Mário de Andrade, Gilberto Freyre entre outros, deram uma
grande contribuição ao país (e à geografia) graças à expressão de pensamento e
sensibilidade interpretativa, ligadas à história, à sociologia, filosofia e às ciências
humanas do Brasil (CÂNDIDO, 2006; ANDRADE, 1977).
A partir desta ótica, entendemos que a análise entre o espaço e sociedade, a
partir da relação entre o povo e seu território, numa perspectiva da sua formação
territorial, foi uma problemática existente na literatura brasileira desse período
histórico.
Dentre as várias obras que se destacam no período, chama-se atenção para o
livro Os Sertões, de Euclides da Cunha. Buscando, inicialmente, retratar os fatos da
Guerra de Canudos, deflagrada no interior da Bahia no ano de 1896, Euclides da
Cunha expôs não somente o contexto da guerra civil que se desencadeou nesse pobre
arraial baiano, mas retratou um sertão nordestino desconhecido e desintegrado do
restante do espaço nacional.
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Com uma escrita forte e com grande caráter cientificista e literário, Euclides da
Cunha afirmava ser, incialmente, uma publicação voltada a contar o ocorrido
durante a guerra, porém, se torna um livro de denúncia ao grande “crime” ocorrido
no Brasil: “A campanha de Canudos tem por isto a significação inegável de um
primeiro assalto, em luta talvez longa [...] Aquela campanha lembra um refluxo para
o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime” (CUNHA, 2017, p.
35). Chegando a afirmar que houve um avanço impiedoso da “civilização” contra o
sertão e o povo sertanejo, como sendo uma “força motriz da História” (CUNHA,
2017, p. 34).
Dividido em três partes, A Terra, O Homem e a Luta, a obra, Os Sertões,
estabeleceu uma perspectiva de saber histórico que possibilitou uma leitura do país.
Embora possuísse uma visão de forte caráter positivista, determinista e
evolucionista1, Euclides apresentou descrições e análises que mostraram um forte
saber geográfico ao apresentar uma indissociabilidade do homem e o meio na
organização do espaço.
É importante destacar que Euclides não era geógrafo. Isso o “exime” de
“culpas” de alguns erros teóricos e de método dentro da geografia. No entanto, não
podemos desprezar o saber geográfico presente no seu livro, que é de suma
importância, dado que é um conhecimento capaz de contribuir para a abertura de
um caminho que possibilite a leitura da formação territorial do Brasil.
Tal hipótese é uma tentativa de mostrar claramente seu pensamento com
perspectivas modernas até então, e com forte capacidade científica (CÂNDIDO,
2006), mas, principalmente, com grande contribuição a Geografia (ANDRADE, 1977).
Esse discernimento, nos possibilita compreende que há no Brasil um saber que
extrapola os critérios acadêmicos da ciência geográfica.

1Euclides tem uma visão carregada de forte cientificismo do século XIX. Traz análises centradas na
relação em que o homem é fruto do meio, este último irá influenciar tanto na fisiologia (somatismo) e
na psicologia (caráter) dos indivíduos e, através destes, na sociedade: “A nossa História traduz
notavelmente estas modalidades mesológicas” (CUNHA, 2017, p. 105). Ao mesmo tempo, o autor
afirma que o meio físico tem um peso muito forte na organização e formação social do sertanejo e da
sociedade brasileira como um todo. Mostra que o território do Brasil é fruto de um quadro natural e
que este tem uma grande influência “logo na fase colonial” (CUNHA, 2017, p. 106).
17

Dessa forma, Os Sertões se constitui em um livro com forte discurso


geográfico. Nele é possível perceber alguns dos vários debates caros a Geografia: a
questão da identidade nacional e regional; o debate ideológico do Estado Nacional,
do povo e do território; integração nacional; as formas de representação espacial.
Temas que foram incorporados pelos geógrafos do NE (ANDRADE, 1977),
permitindo uma compreensão da formação territorial da nação.
Essas observações iniciais buscam chamar atenção para a questão central da
presente pesquisa: Quais as principais contribuições geográficas do livro Os Sertões
de Euclides da Cunha para a interpretação da formação territorial do Brasil?
Com base neste questionamento norteador, formulou-se três questões
secundárias: a) Qual a concepção de nação e a forma de representação da
nacionalidade descrita no livro Os Sertões? b) De que forma a dinâmica de
organização territorial do Brasil é retratada no livro de Euclides da Cunha? c) Quais
os elementos presentes no discurso euclidiano possibilitam a constituição de um
saber geográfico?
Para alcançar resultados satisfatórios a partir destes questionamentos, tem-se
como objetivo central analisar as principais contribuições geográficas do livro Os
Sertões, de Euclides da Cunha, para a interpretação da formação territorial do Brasil.
Com o intuito de alcançar este objetivo, redimensionou-se e definiu-se três
objetivos específicos:
01. Analisar a concepção de nação e a forma de representação da
nacionalidade presente no livro Os Sertões;
02. Descrever a dinâmica da organização espacial do Brasil apresentadas na
obra;
03. Apontar quais os elementos presentes dos discursos de Euclides da Cunha
possibilitaram a constituição de um saber geográfico.
Dentre as justificativas da proposta do presente escrito, chama-se atenção para
a busca do diálogo entre a Geografia, a literatura e o pensamento social brasileiro, a
partir de uma obra clássica que exprime um saber da relação entre o homem e o
meio. Ao mesmo tempo, a partir de uma releitura de Euclides da Cunha, busca-se
resgatar, não apenas rever, um contexto histórico do Brasil no final do século XIX,
18

mas, também, recuperar um saber geográfico fundamental e basilar para se entender


as raízes do pensamento geográfico do Brasil (ANDRADE, 1977).
Em consonância, a construção deste trabalho possibilitará o fortalecimento de
estudos que visem o processo formativo do pensamento geográfico no país, uma vez
que “[...] a Geografia, em toda a sua diversidade, hoje não abarca sequer a maior
porção desse campo do conhecimento” (MORAES, 1988, p. 31). Tendo em vista que
seu estabelecimento se deu muito tardiamente, não sendo capaz de acompanhar toda
a formação do território ou demais aspectos caros a ciência geográfica e que foram
expressos por meio de escritores desse período.
Também, como justificativa, destaca-se que a relevância de “Os Sertões” como
“livro fundador” da nação (ZILLY, 1999), ou seja, a “bíblia da nacionalidade”
(ABREU, 1998). O texto de Euclides foi capaz de sintetizar várias as áreas do saber,
demonstrando uma capacidade de exprimir os problemas e qualidades da Nação,
tornando-se um marco literário de cunho científico e social (ZILLY, 1999).
Com isso, nessa primeira seção, realiza-se uma aproximação do tema visando
expor a problemática e as questões centrais da pesquisa, além dos objetivos e da
justificativa para concretização desse estudo. Nesse caminho, buscou-se estabelecer
os apontamentos iniciais a respeito da conexão entre a literatura brasileira do final do
séc. XIX e início do séc. XX e os discursos geográficos, por meio do livro Os Sertões,
de Euclides da Cunha.
No segundo capítulo, FUNDAMENTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS,
debate-se com maior profundidade a concepção de discurso geográfico, o qual seria o
saber social produzido entre a relação homem e o meio, em um tempo histórico
específico. Também, busca-se trazer uma visão da literatura brasileira como um
arcabouço histórico-espacial do Brasil e que exerceu um papel de modo
interpretativo no tocante a formação do país, no século XIX.
Ainda neste capítulo, detalha-se o percurso metodológico adotado, que
consiste, primeiramente, em uma revisão de literatura sobre os conceitos centrais, a
partir de uma pesquisa bibliográfica e interpretação livre do conteúdo expresso pelos
autores. Em segundo lugar, apresenta-se os procedimentos metodológicos, centrados
19

em Cândido (2014). E, por fim, a explicação de como se procedeu a análise dos


elementos discursivos em Euclides, por meio da técnica de análise crítica do discurso.
Como fruto da execução desse trajeto, obtive-se como resultados o terceiro e o
quarto capítulo deste trabalho, intitulados, respectivamente, como: A OBRA OS
SERTÕES: TEMAS, LINGUAGEM E DIMENSÃO ESPACIAL e DISCURSO
GEOGRÁFICO E A INTERPRETAÇÃO DA FORMAÇÃO TERRITORIAL DO
BRASIL EM EUCLIDES DA CUNHA. No capítulo terceiro, o objetivo é mostrar os
elementos de compreensão da obra, dialogando com informações explicativas da
obra e do contexto histórico. No último capítulo da monografia, apresenta-se a
análise crítica do discurso que permitiu ver a essência do discurso geográfico em
Euclides da Cunha.
Por fim, nas considerações finais, é apresentado o encerramento do raciocínio
traçado ao longo da pesquisa, afirmando que Euclides da Cunha, no livro Os Sertões,
apresenta um discurso geográfico centrado na representação espacial do Brasil,
colocando a ideia geográfica e o debate ideológico de Estado, Nação, povo e território
como central.
20

2. FUNDAMENTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

2.1 A concepção de discursos geográficos

A concepção de discurso geográfico parte da perspectiva de que o saber


produzido com relação ao homem e o meio é um produto social e que cada sociedade
inserida em seu contexto histórico possui um modo de interagir com sua realidade
(MORAES, 2005). Nesse sentido, o espaço geográfico herda características
particulares da vivência social, da mesma forma que o saber produzido com relação a
este apresenta características específicas das ideologias desses períodos (MORAES,
2005).
Nessa direção, o conhecimento geográfico é uma forma de interpretação da
história do homem na ocupação do espaço, podendo ser visto através de múltiplas
manifestações que se subdividem entre certas visões e difunde certos valores e
refletem uma mentalidade (MORAES, 1988, p. 32).
Assim sendo, determinados conceitos e concepções geográficas são
construídos dispondo, num diálogo, juízos e reflexões de outras áreas do saber:
Algumas das categorias centrais da reflexão geográfica moderna emergiram
exatamente de tal campo, com a indefinição e ambigüidade que o
caracterizam. Meio, paisagem, ambiente, território, região, são todos
conceitos tomados a outras áreas do conhecimento e recontextualizados no
discurso geográfico num sentido que se presta bastante a práticas
reificadoras (MORAES, 1991, p. 167).

Esses saberes possuíam sua temática centrada numa análise da interação entre
o homem e a superfície terrestre (MORAES, 2008), sendo nomeados assim como
discursos geográficos, uma vez que formularam um conjunto de pressupostos que
incidem sobre as temáticas abordadas pela Geografia e que embasam a noção
científica desse conhecimento. Entretanto, faz-se necessário ressaltar que tais saberes
não adquirem o rótulo concebido pela ciência geográfica, mas que ultrapassam essa
concepção, dentro de um contexto de ideologias (MACHADO, 2000).
Ainda segundo Moraes (1991), o discurso geográfico é uma forma de
representação espacial, colocando a ideia geográfica e o debate ideológico de Estado-
Nação, povo e território como centrais. Para o autor, o traço que marca tais ideias é a
21

forte ligação entre o saber proferido e a afirmação das identidades nacionais. Assim,
afirma:
[...] um traço, todavia, (que) parece aproximar as várias manifestações: a
centralidade do discurso geográfico nos momentos de ordenamento ou
reordenamento das esferas de dominação estatal necessariamente momentos
de dificuldade na afirmação das identidades (MORAES, 1991, p. 167).

Logo, os discursos geográficos delimitavam um retrato da realidade territorial


tanto em sua dimensão material, quanto na sua dimensão de representação. Além de
possuírem um papel fundamental na construção do sentimento de pátria e
divulgador da ideia de identidade do espaço nacional: “Pode-se mesmo dizer que
esse seria principal núcleo divulgador da ideia da identidade pelo espaço”
(MORAES, 1991, p. 166).
A perspectiva apontada pelo autor é centrada na ideia de que o pensamento
geográfico, por meio desses discursos, é fruto de conjunturas e contextos formulados
em cada realidade de constituição de Estados Nacionais (MORAES, 1991). Tal
concepção nos permite trazer como reflexão a possibilidade de termos um
cruzamento entre a história social de uma nação e a história do saber pelo espaço,
por meio de textos e obras que não se encontram dentro de um rol da ciência
geográfica.
É central no pensamento apresentado por Moraes (1991) a perspectiva de
reconhecimento da nação por meio da legitimação de uma unidade territorial,
principalmente, em países de formação colonial. Onde, no caso do Brasil, a ruptura
com os lanços tradicionais de dominação provenientes desse período, levou a
construção de uma identidade nacional, a partir do Estado e do território, dando
subsídios a construção de um saber geográfico:
A ruptura com os laços tradicionais de dominação (os coloniais) implicava a
construção de um novo Estado. O fato de que, na maioria dos casos, tais
processos tenham transcorrido como modernizações conservadoras, não
minimizou a necessidade de construir novas formas de legitimação da
unidade "nacional" (MORAES, 1991, p. 168).

Segundo o autor, os próprios processos de independência levam a surgir


questões identitárias no Brasil (MORAES, 1991). Sair da condição de colônia e se
tornar um Estado independente não retira a condição espacial de existência dessa
sociedade: “Os processos de emancipação política não rompem com essa
22

determinação, antes reforçam-na [...]” (MORAES, 1991, p. 168). Nesse caso, a unidade
e o reconhecimento de nação vêm da perspectiva de reconhecer e conquistar o
território. Com isso, surge a perspectiva da “identidade pelo espaço” (MORAES,
1991, p. 168).
Tal panorama é apresentado uma vez que o entendimento do discurso
geográfico, construído ao longo do século XIX, parte de um conjunto de reflexões
sociais que é fruto de uma leitura de realidade existente. Nesse caminho,
compreendemos que o lugar de ideias e um pensamento geográfico se constitui a
partir desse conjunto de reflexões que se fundamentam no meio (MORAES, 1991).
Porém, sem perder de vista a perspectiva da construção de um discurso que traga
um conjunto de idealizações desse real.
Tal reflexão nos aproxima da concepção de ideologias geográficas apresentada
por Machado (2000). Para essa autora, não há saber que se descole de sua realidade, é
um erro pensar assim:
[...] a vida intelectual é independente dos conflitos internos, e de que os
intelectuais são capazes de uma autonomia conceptual e de originalidade
qualquer que seja a condição concreta da sociedade que os produziu, é, no
mínimo, bastante discutível (MACHADO, 2000, p. 02).

Conforme Machado (1995), as ideologias geográficas são fruto de um contexto


histórico de modernização do país, período histórico entre 1870 e 1930, que se centra
numa reflexão sobre “o papel do pensamento geográfico nessas representações sobre
o território e sobre a população brasileira” (MACHADO, 1995, p. 310). Machado
(1995) mostra que os debates em torno da realidade do país não se davam dentro de
“um vazio geográfico” (MACHADO, 1995, p. 311), mas numa realidade em constante
processo de modificações estruturais (MACHADO, 1995).
Tal perspectiva pode dialogar com as reflexões apresentadas por Oliveira
(1990), quando esta apresenta um debate acerca do significado da natureza na
construção da identidade nacional brasileira, durante os séculos XIX e XX. Para a
autora, as discussões com relação a legitimidade nacional se tornam recorrente em
momentos de crise, visto que há uma maior “consciência dos problemas do país e
construíram-se soluções em que a busca da identidade nacional predomina sobre as
visões e os interesses parciais” (OLIVEIRA, 1990, p. 125).
23

Para Oliveira (1990), a natureza brasileira constitui um tema central no


imaginário que constitui o Brasil, sendo o “[...] espaço territorial como elemento
constitutivo da construção de identidade nacional” (OLIVEIRA, 1990, p. 125).
Oliveira (1990) apresenta a perspectiva de que no século XIX várias obras
desse período trazem a visão territorial do Brasil centrada em argumentos
geográficos da relação território e povo: “Configurou-se uma identidade nacional
que toma argumentos geográficos, territoriais, como centrais e que integra o
imaginário nacional” (OLIVEIRA, 1990, p. 129).
Também, Magnoli (1997) ao apresentar a concepção de “imaginário
territorial”, afirma que existe “raízes geográficas do nacionalismo” no Brasil,
principalmente, no século XIX. Segundo o autor, há uma relação, quase que
indissociável, entre Estado-nação e Território, passando este último a ser o suporte
para dar sentido a nacionalidade e, consequentemente, ao Estado nacional:
A elaboração de um imaginário territorial foi decisiva para a dissolução
entre a república e o soberano e para a associação entre a soberania e a
coletividade nacional. O território, mais que suporte material, adquiriu um
valor de homogeneidade simbólica, a pátria... (MAGNOLI, 1997, p. 37).

Para o geógrafo em tela, a ideia de nação, no Brasil, foi uma construção


durante o período Imperial e que adentra o período republicano, numa perspectiva
da centralidade política e administrativa do Estado e sua relação com o território. A
natureza passa a ser a base ou fonte para legitimar a imaginação territorial:
A produção do imaginário territorial da nação não pode prescindir de uma
fonte de legitimação poderosa: a natureza. O recurso às características e
qualidades físico-geográficas do território ancora o espaço da pátria no
tempo mítico, libertando-o da pesada carga de contingência e acaso do
tempo histórico (MAGNOLI, 1997, p. 40).

Tais perspectivas são colocadas no sentido de afirmar que o discurso


geográfico cria imagens sobre o território e o povo, colocando saberes geográficos e o
debate ideológico sobre a nação, por meio de representações. Nesse caminho, a
literatura brasileira do século XIX apresenta como um conjunto de reflexões fruto da
formação-nacional-territorial do país e que, especificamente no livro Os Sertões, se
apresentam de forma bastante significativa.
24

2.2 Literatura brasileira como arcabouço histórico-espacial do Brasil

O Brasil por muito tempo - se não até hoje - esboçou-se enquanto um projeto
em construção, sendo o seu Estado constituído antes de sua nacionalidade
(MORAES, 2005). Com isso, ao longo do século XIX, o pensamento social brasileiro,
por meio da literatura, estabeleceu como sua missão histórica “[...] ajudar a construir
uma nação civilizada” (ZILLY, 1995, p. 05).
Nesse sentido, as atividades dos intelectuais brasileiros estavam ligadas muito
ao contexto de aparecimento do Estado-nação moderno, do nacionalismo, o
desenvolvimento das ciências humanas e a organização da população no território
(SEVCENKO, 2003).
Partindo dessa perspectiva, concordamos com Cândido (1991) que o
nacionalismo presente na literatura é fruto do contexto de formação do Estado e da
identidade nacional:
[...] o nacionalismo artístico não pode ser condenando ou louvado em
abstrato, pois é fruto de condições históricas – quase imposição nos
momentos em que o Estado se forma e adquire fisionomia nos povos antes
desprovidos de autonomia ou unidade. Aparece no mundo contemporâneo
como elemento de autoconsciência, nos povos velhos e novos que adquirem
ambas, ou nos que penetram de repente no clico da civilização ocidental,
esposando as suas formas de organização política (CÂNDIDO, 1991, p. 27).

Assim, a literatura do XIX e início do século XX estava voltada ao debate das


representações sobre o território e a sociedade brasileira (CÂNDIDO, 1991),
tornando-se uma “produção discursiva” com fortes dimensões sociais (SEVCENKO,
2003), um verdadeiro arcabouço histórico-espacial da nação (CÂNDIDO, 1991).
Nesse caminho, as produções literárias falavam a respeito da nacionalidade,
uma vez que “[...] a história da ocupação espacial é a história da formação nacional”
(SOUZA, 1997, p.40). Diante desse cenário, há “uma tomada de consciência” dos
intelectuais para “escrever sobre sua terra”, um momento histórico que marca uma
“disposição de espírito” que tentou exprimir “certa encarnação literária do espírito
nacional” (CÂNDIDO, 1991, p. 26). Dentro dessa forma de pensar, a literatura se
constitui numa forma artística, mas, principalmente, num retrato histórico
vivenciado do povo e território-nação (CÂNDIDO, 1991).
25

Na perspectiva do autor, a partir do século XVIII, já no romantismo brasileiro,


os escritores do país começaram a se tornar “verdadeiros delegados da realidade
junto a literatura”, tornando-se quase sujeitos com forte “fidelidade documentária ou
sentimental, que a vincula a experiência bruta” (CÂNDIDO, 1991, p. 27).
Tal caminho de leitura do real deu aos intelectuais brasileiros do século XIX
uma capacidade de construção de um conjunto de obras literárias de reconhecido
valor estético que traziam um “sentido histórico e excepcional poder comunicativo”
que possibilitou uma leitura da sociedade numa quase busca de “autoconhecimento”
(CÂNDIDO, 1991, p. 27). Isso permitiu que a composição dos textos literários
nacionais tivesse uma característica de ser, ao mesmo tempo, “universal e nacional,
técnico e emocional, que a plasmaram como permanente mistura da tradição
europeia e das descobertas do Brasil” (CÂNDIDO, 1991, p. 27).
As transformações sociais, políticas, culturais e, consequentemente, espaciais,
presentes no período do fim século XIX e o início do século XX, geraram discursos
que debatiam essas temáticas voltadas a constituição dessa identidade e que
embasaram as temáticas centrais da literatura nacional (OLIVEIRA, 1990). Durante
esse período, se acentuou, no Brasil, um esforço de construção de uma nação livre e
isso possibilitou o desejo de construir uma literatura que “visava a diferenciação e
particularização dos temas e modos de exprimi-los” (OLIVEIRA, 1990).
Assim, houve no Brasil, a construção de uma representação nacional centrada
no espaço natural, ou seja, na enormidade do território e na singularidade de sua
natureza tropical, construindo um imaginário da natureza.
Isso dava ao país a possibilidade da composição de uma identidade centrada
em argumentos geográficos da relação território e povo (OLIVEIRA, 1990). Sendo
feito por meio de muitas intepretações centradas na dimensão espacial que “[...]
defendem ser o Brasil uma Nação pelo espaço (SOUZA, 1997, p. 21).
Vários escritores no final do século XIX2 buscaram um novo olhar para pensar
a ideia e uma forma de representação da nação (OLIVEIRA, 1990a). Nesse sentido, os

2É importante destacar que Oliveira (1900) coloca esses intelectuais no quadro da “geração de 1870”.
A autora chama atenção para o papel dessa geração de 1870 que buscou criar um sentimento de pátria
em seus escritos, no qual a nacionalidade era um critério central na produção literária: “Entender o
Brasil, construir o Brasil, era uma meta fundamental para esses homens que julgavam que o país
26

intelectuais visavam atualizar o que seria o Brasil e o seu ingresso no século da


civilização (ZILLY, 1995). Assim, afirma Oliveira (1990):
Os intelectuais e propagandistas da República viam o novo regime como
uma etapa da "atualização" do Brasil, do seu ingresso no século civilizado.
Embora tenham contribuído em muito para uma mudança de mentalidade,
eles não participaram contudo da construção da ordem republicana. Esta
elite intelectual incluía um setor voltado para a ação política propriamente
dita, cujo compromisso era mais com a prática do que com o rigor
doutrinário ou teórico (OLIVEIRA, 1990, p. 91).

Também, chama atenção que esses intelectuais tiveram suas ideias centradas
em concepções científicas e filosóficas do positivismo, darwinismo, spencerismo e no
materialismo: “cientificismo do século XIX analisava o mundo humano como um
objeto em mutação, um mundo histórico cuja evolução era regida por leis naturais”
(OLIVEIRA, 1990, p. 83). O que, nas palavras de Zilly (1999), há nessa forma de saber,
uma forte influência no âmbito mundial do pensamento universal e no Brasil das
ideias evolucionistas, do entendimento força da raça branca e da homogeneidade
étnica.
Nesse sentido, a partir da segunda metade do século XIX, abriu-se no país um
debate com mais rigor de caráter geográfico e científico mais presente, inaugurando
uma nova visão da paisagem e do território brasileiro. Magnoli (1997) afirma que o
território brasileiro passou a ganhar dimensões reais e capaz de ser caracterizado.
Por isso, a produção literária e intelectual deu mais cientificidade aos seus relatos,
passando o território a ser representado nos seus limites fronteiriços.
Nesse caminho, o livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, assume um papel
fundamental nesse processo de produção literária, uma vez que apresenta uma
descrição com forte imaginário espacial do país, mas também, com autoridade de
construção de uma identidade à nação, por meio do território e da região de
Canudos no sertão nordestino.

deveria repetir, de forma acelerada, a experiência do Ocidente. Neste contexto, a construção do


sentimento brasileiro tinha uma importância fundamental, sendo a nacionalidade o critério básico de
avaliação dos produtos literários e culturais” (OLIVEIRA, 1900, p. 85).
27

2.3 Procedimentos Metodológico e Técnicos

Visando à realização do estudo que tem como objetivo central analisar as


principais contribuições geográficas do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, para a
interpretação da formação territorial do Brasil, tomou-se alguns procedimentos
teórico-metodológicos e técnicos.
Primeiramente, foi realizado um levantamento bibliográfico sobre a temática
de discurso geográfico e características literárias no pensamento social brasileiro
(século XIX) como função intelectual de interpretação da realidade do país. Destaca-
se que a compreensão teórica do discurso geográfico como forma de representação
espacial e dentro do debate de identidade da nação partiu de uma leitura nos
trabalhos de Antonio Carlos Robert de Moraes (1988, 1991, 2008) e Antonio Cândido
(2000, 2012, 2014).
Esses autores foram os pontos de reflexão inicial, permitindo debates
transversais dos elementos presentes no texto. É importante, mais uma vez, deixar
claro que a despeito de haver um enorme acervo teórico sobre as concepções teóricas
descritas na fundamentação, o procedimento de revisão da literatura optou, apenas,
pelos mais pertinentes para a realização da discussão. Nesse processo, essa pesquisa
centrou-se em procedimentos de consulta, interpretação e análise de parte das ideias
acerca da temática.
Num segundo momento, assumiu-se como método de abordagem a análise
teórica dos elementos de compreensão apontados por Cândido (2014). Essa
interpelação da obra e caminho interpretativo se deu no sentido de buscar a
compreensão das concepções que deram sustentação a argumentação de Euclides da
Cunha na construção do livro.
Nesse percurso, pode-se abarcar componentes constitutivos da obra, do autor,
da linguagem e da dimensão espacial euclidiana. Para isso, tomou-se algumas
referências como centrais, tais quais: Abreu (1998), Amory (2009), Bernucci (1998),
Dias (2009), Schneider (2013), Sevcenko (2003). Mais uma vez, buscou-se uma
interpretação livre desses escritos, extraindo-se delas um debate que possibilite
dialogar com a temática dessa pesquisa.
28

Por fim, como terceira etapa do percurso metodológico, buscou-se uma análise
dos elementos discursivos em Euclides, por meio da técnica de análise crítica do
discurso, numa perspectiva que possibilite uma compreensão da forma de
representação do território e da população, como também, a descrição e análise da
dinâmica da organização espacial e territorial do Brasil, a partir do livro Os Sertões.
Com o objetivo de deixar mais claro as escolhas teóricas, mas, principalmente,
metodológicas, as etapas dois e três, citadas anteriormente, estão melhor detalhadas e
explicitadas nas duas próximas seções.

2.3.1 Os elementos de compreensão como percurso

Para realizar a análise do discurso geográfico presente no livro de Euclides da


Cunha, não foi considerado somente a condição de ser uma “literatura extra-
geográfica” (MORAES, 2005), ou seja, literatura que está fora do eixo da Geografia e
que extrapola o sentido da ciência, antes, buscou-se, também, entender o processo de
construção da obra.
Para isso, tomo-se por base a perspectiva dos “elementos de compreensão”
apontados por Cândido (2014). Tal caminho interpretativo foi capaz de mostrar,
dentre outras coisas, a perspectiva de leitura da formação territorial no Brasil
expressa pela criação de Euclides da Cunha.
Observou-se em Cândido (2014) que uma produção literária não é uma
realidade autônoma, o que faz com que o valor de análise esteja, também, na
obtenção de “elementos não literários” (CÂNDIDO, 2014, p. 33).
Para o crítico literário, ao analisar um romance, é necessário ter atenção para
os vários níveis de compreensão possíveis, chamando de “três ordens de realidade”
(CÂNDIDO, 2014, p. 33), sendo, primeiro, aos fatores externos que ligam o tempo e a
designação social; segundo, ao fator indivíduo, ou seja, ao autor, a pessoal que fez a
obra; e ao terceiro ângulo, o resultado, ou seja, ao texto, pois contém os dois
elementos anteriores e outros que transcendem a escrita.
Partindo dessa perspectiva, a importância de uma análise não vem somente da
circunstância que exprime o aspecto da realidade, do social e do indivíduo, mas
29

como o escritor o fez para retratar essa realidade presentes no texto (CÂNDIDO,
2014). Logo, não se busca o autor em si na sua produção, mas a posição dele face ao
tema abordado e, como manifesta a sociedade e seu território por meio da descrição
feita. Cândido (2014) afirma ainda: “Consiste nisso e mais em analisar a visão que a
obra exprime do homem, a posição em face dos temas, através dos quais se
manifestam o espírito ou a sociedade” (CÂNDIDO, 2014, p. 34).
Portanto, o aspecto social externo ao livro torna-se interno, pois entrelaça-se as
palavras do romancista e a sua visão de mundo, seus costumes, sua cultura,
ambiente e ideias (CÂNDIDO, 2014). O crítico literário ressalta que:
Quando fazemos uma análise deste tipo, podemos dizer que levamos em
conta o elemento social, não exteriormente, como referência que permite
identificar, na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma
sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo
historicamente; mas como fator da própria construção artística, estudado no
nível explicativo e não ilustrativo” (CÂNDIDO, 2014, p.16).

Nesse caminho, Cândido (2014) propõe que ao nos aprofundarmos em uma


obra, devemos nos debruçar, também, sob a perspectiva referente as características
sociais presentes no escrito. Para ele, primeiramente, temos que investigar as
influências concretas exercidas pelos fatores socioculturais, sendo estes: a) estrutura
social (pela posição social do autor ou o público-alvo); b) valores e ideologias (na
forma e conteúdo da obra); c) as técnicas de comunicação (na sua fatura e
transmissão).
Essa caracterização está pautada na tese de que a posição social é um aspecto
da estrutura da sociedade (CÂNDIDO, 2014). Dessa maneira, os valores e ideologias
(que influenciam o autor) contribuem, principalmente, para o conteúdo, enquanto as
modalidades de comunicação influem mais na forma (CÂNDIDO, 2014).
Nesse sentido, configura-se central compreender o encadeamento de ações e a
conjuntura que pairavam sob os intelectuais e que constituem suas obras. Uma vez
que um livro de literatura é produto de um “sistema articulado” com capacidade de
“influir sobre a elaboração de outras, formando, no tempo, uma tradição”
(CÂNDIDO, 2014).
Em consequência, assumindo esse método de abordagem do livro Os Sertões,
buscou-se procedimentos para se chegar a um processo interpretativo que permitisse
30

saber o que o “texto exprime” (CÂNDIDO, 2000, p. 35). Desse modo, o foco não era
buscar averiguar na obra a pessoa do autor Euclides da Cunha, mas a posição dele
face ao tema abordado, a Guerra em Canudos, e como o escrito manifesta uma
descrição sobre o território e a organização da sociedade.
Diante dessa posição, o caminho percorrido consistiu “[...] em analisar a visão
que a obra exprime do homem, a posição em face dos temas, através dos quais se
manifestam o espírito ou a sociedade” (CÂNDIDO, 2000, p. 34). Nisso, buscou-se
“nas condições do meio”, ou seja, da realidade territorial, os elementos necessários
para se entender o significado e “a realidade superior do texto” (CÂNDIDO, 2000, p.
35).
Dessa forma, a partir de Cândido (2000), buscou-se analisar três aspectos
centrais no livro Os Sertões: a) o autor e a estrutura da obra; b) a linguagem e o
conhecimento científico e filosófico empregado no texto por Euclides; e, por último,
c) a dimensão espacial presente na descrição do texto (Quadro 01).

Quadro 01 – Quadro Síntese dos elementos de compreensão para leitura do livro


Os Sertões

Elementos de compreensão Centralidade da análise


Autor e obra a) Características da estrutura social do autor;
b) Valores e ideologias (na forma e conteúdo da obra);
Linguagem e o sistema a) Técnicas de comunicação (tipo de linguagem e
articulado de saber comunicação empregada);
b) Perspectiva filosófica e científica;
Tempo e designação a) Período histórico e as perspectivas de mundo;
espacial b) As formas de manifestação da sociedade e da
organização do território (seus costumes, sua cultura,
ambiente e ideias);

Elaboração: Alyne Karollayne Melquiades Souza da Silva, 2020.

Seguindo esse caminho, buscou-se, primeiramente, fazer um levantamento


teórico com base em autores como Lima (2011), Lima (1998), Ventura (1990; 2002;
2012), Souza (1997) e Zilly (1999). Estes abriram possibilidades reflexivas para
compreender as concepções teóricas e filosóficas, como também, a condição poética,
que deram sustentação a argumentação do autor de Os Sertões.
31

Para isso, as análises partiram da perspectiva de responder as seguintes


questões: Quais as características da obra? Qual a linguagem utilizada pelo autor?
Quais as concepções filosóficas que sustentam a obra? Quais os temas centrais
presentes na obra? Qual dimensão espacial de Brasil?
Para alcançar esses objetivos, utilizou-se da técnica de pesquisa documental, a
fim levantar elementos históricos da formação sociocultural e as concepções teóricas
que sustentaram o pensamento de Euclides da Cunha em Os Sertões.
É importante destacar que tal caminho possibilitou a construção de um
arcabouço analítico da obra e como esta desencadeou um pensamento social sobre a
representação espacial e a formação sociocultural e o território do Brasil no período
em que foi escrita. Reflexões que podem ser observadas nas seções do capítulo 3. A
obra Os Sertões: temas, linguagem e dimensão espacial.
Na próxima seção, buscar-se-á mostrar o procedimento técnico de análise do
livro.

2.3.2 A Análise Crítica de Discurso como técnica

Partindo da perspectiva que uma obra de literatura é um material de pesquisa


para se buscar entender uma dada realidade, é necessário que o busque compreender
como ela está posta no texto. Segundo Sevcenko (2003): “Ocupa-se, portanto, o
historiador da realidade, enquanto o escritor é atraído pela possibilidade. Eis aí, pois,
uma diferença crucial, a ser devidamente considerada pelo historiador que se serve
do material literário” (SEVCENKO, 2003, p. 30).
Nesse sentido, buscou-se, primeiramente, fazer uma leitura livre do livro Os
Sertões, de Euclides da Cunha, com o objetivo de fazer um mapeamento temático
introdutório da obra. Nisso, levantamos o objetivo central de cada capítulo, além de
elementos e saberes históricos e geográficos que dão centralidade ao discurso
geográfico no escrito euclidiano.
Por conseguinte, as leituras realizadas buscaram trazer respostas aos
questionamentos que dão sustentação aos problemas da pesquisa: Como o território
e a população do Brasil são representados no livro Os Sertões? Como as
32

representações em torno do território e da população abriram espaço para o debate


sobre a identidade nacional? Quais os elementos territoriais deram identidade à
nação? De que forma ele retrata a dinâmica de organização espacial e territorial da
Nação, a partir do sertão?
No Quadro 02, está descrito o modelo de como foi elaborado o mapa da
temática referida.

Quadro 02 – Procedimento de pesquisa documental do livro Os Sertões

Tema/
Tema central em
Capítulo Centralidade do
Euclides da Cunha
Discurso geográfico
Título/Numeração Resumo do objetivo a) A representação espacial da nação:
do Capítulo central do capítulo argumentos que criam imagens sobre
o território e o povo; da leitura da
formação-nacional-territorial.

b) Relação homem e meio, a partir da


formação social da população:
questionamentos sobre o hibridismo
entre o território e a população.

c) A dinâmica da organização
espacial do Brasil.

Elaboração: Alyne Karollayne Melquiades Souza da Silva, 2020.

Posteriormente, partiu-se para uma análise do discurso como técnica para se


alcançar o objetivo central da pesquisa, que centrou essa etapa na perspectiva de
Análise Crítica do Discurso (ACD) de Fairclough (1989).
Ao assumir a ACD como caminho interpretativo do livro de Euclides da
Cunha, compreendemos que o discurso é uma forma de representação de uma parte
da sociedade, sendo capaz de refletir os processos e as práticas, na mesma medida
em que atua enquanto participante deles (FAIRCLOUGH, 1989).
Segundo Fairclough (1989), o discurso é moldado por três níveis de situações
sociais: a) o ambiente onde ocorre o discurso; b) a instituição social que constitui a
matriz ampla do discurso; e c) a sociedade como um todo. Por conseguinte, o
discurso expresso por Euclides no livro Os Sertões passa a ser entendido por nessa
33

pesquisa como um texto que é fruto de um contexto e de condições sociais


específicos. Ou seja, a análise do texto possibilitou compreender o conhecimento da
língua, as representações dos mundos natural e social, assim como os valores e as
crenças de determinado contexto social (FAIRCLOUGH, 1989).
Quanto à técnica empregada para analisar o livro, utilizou-se três etapas
dentro do escopo apresentado na ACD: 1º) a descrição, que é a fase que está
preocupada com propriedades formais do texto; 2º) a interpretação, que busca
compreender a com a relação entre o texto e a interpretação do texto pelos
participantes; e, por fim, a 3º) a explicação, que traça a relação entre a interação e
contexto social (FAIRCLOUGH, 1989).
A partir disso, em um primeiro momento, buscou-se descrever o vocabulário
do texto. Ou seja, trazer as citações que entendia-se como centrais e que permitiriam
o início de uma compreensão do sentido das relações e do contexto posto pelo autor
no livro. Numa segunda etapa, buscou-se fazer uma interpretação desse fragmento,
mas sem dissociar do todo. A preocupação foi com os processos de produção textual
e com a análise da conjuntura social e suas particularidades naquele texto. E, por fim
a última fase, a da explicação, na qual visou-se retratar o discurso como uma forma
de representação. Ou seja, trazer uma explicação para as relações e as ideias trazidas
pelo autor.
É importante destacar que essas etapas estiveram ligadas a elementos que
buscassem a descrição de uma palavra, frase e ou expressão que trouxessem a
dimensão constitutiva da realidade posta por Euclides. Assim, a análise crítica do
discurso, adotadas nessa pesquisa, por meio da intepretação e explicação, ficou
centrada na construção de um entendimento da relação entre a dimensão espacial
apresentada pelo autor no livro. Como observa-se no quadro abaixo:
34

Quadro 03 – Quadro Síntese da Análise Crítica do Discurso do Livro Os Sertões

Descrição da Interpretação do Explicação dos elementos


palavra/frase/expressão significado espacial constitutivos da relação
do discurso geográfico discurso geográfico discurso e realidade

Palavras/Frases/Expressões a) A representação e A imagem do território nacional


que afirmam a ideia de identidade espacial da Perguntas básicas para a
representação de nação. interpretação:
identidade nacional pelo
espaço e tragam marcas Qual a dimensão da
da relação povo e organização espacial e
território, a partir da territorial do Brasil?
formação social do
Brasil. Há uma perspectiva de
unidade nacional?

Quais os elementos que


caracterizavam e dão
identidade ao Brasil enquanto
nação?

b) Relação homem e meio, a Relação entre o meio e a


partir da formação social da constituição do território no
população. Brasil.
Perguntas básicas para a
interpretação:
De que forma a formação
social do povo do Brasil é
caracterizada?

Qual a base da formação da


nacionalidade país?

De que forma a formação


social do povo explicaria a
identidade nacional?

Qual a relação da formação


social com as paisagens
naturais e culturais,
econômicas no Brasil?
35

c) A representação, A imagem do território sertanejo


identidade e organização na perspectiva nacional
espacial do sertão. Perguntas básicas para a
interpretação:
Como o sertão era colocado
dentro da realidade do
território nacional?

Qual a imagem de sertão


dentro do Brasil?

Quais os elementos que


caracterizavam e dão
identidade ao sertão, dentro
do quadro nacional?

Elaboração: Alyne Karollayne Melquiades Souza da Silva, 2020.

A leitura do quadro permite afirmar que buscou-se descrição, interpretação e


explicação, a partir de questões feitas ao próprio texto de Euclides, e que permitissem
compreender os seguintes pontos: a) A representação e identidade espacial da nação,
b) Relação homem e meio, a partir da formação social da população; c) A
representação, identidade e organização espacial do sertão. Para cada tópico buscou-
se questões que permitissem uma condução da análise.
Por fim, é importante destacar que a execução dessa fase propiciou a
elaboração do quarto capítulo do escrito. Em que fosse possível explicar como o
discurso inserido na obra retratava a realidade daquele período, mas, também,
permitiu que Euclides descrevesse a imagem do território nacional, a relação entre o
meio e a constituição do território no Brasil e a imagem do território sertanejo na
perspectiva nacional. Tal técnica de pesquisa permitiu trazer a essência do discurso
geográfico em Euclides da Cunha.
36

3. A OBRA OS SERTÕES: TEMAS, LINGUAGEM E DIMENSÃO ESPACIAL

3.1. Euclides da Cunha e as características gerais do livro Os Sertões

Euclides da Cunha (Cantagalo, 20 de janeiro de 1866-Rio de Janeiro, 15 de


agosto de 1909) foi cientista e poeta, um intelectual capaz de dar ao seu país o
conhecimento que tanto ansiava a respeito de seu povo, como também, de apresentar
um retrato das opiniões, inquietações e reflexões de seu tempo (ABREU, 1998).
Autor de uma das maiores obras da literatura brasileira, Os Sertões, teve sua
formação caracterizada por conteúdos exatos e fórmulas. Entretanto, em sua escrita,
há um caráter forte da sua paixão pelo jornalismo e o romance (BERNUCCI, 1998).
Como também, a presença de aspectos sociais que dialogam com a temática
científica, caracterizando-se por uma linguagem literária com a obsessão científica
(SEVCENKO, 2003; BERNUCCI, 1998).
Euclides foi um homem das ciências “duras”, uma vez que sua formação se
deu no âmbito da engenharia militar. Tornou-se bacharel em matemática e ciências
físicas e naturais, através da Escola Superior de Guerra, localizada no Rio de Janeiro,
onde residiu grande parte de sua vida. Contudo, faz-se importante destacar que o
estudo no país era muito restrito ainda neste período. Apesar de seu acesso a uma
formação, grande parte do que Euclides veio a aprender foi fruto de uma busca
própria através de intelectuais influentes do período (FACIOLI, 2008, p. 110).
Posterior a sua formatura, Euclides muda-se para São Paulo, passando a
exercer sua profissão, porém, não deixa de lado seu fascínio pelo jornalismo. Fato
que o fez escrever para o jornal “O Estado de São Paulo”.
Com a irrupção da Guerra de Canudos nos Sertões da Bahia, Euclides e
diversos pensadores do período deixaram claro seus interesses em debater o conflito.
Abreu (1998) ressalta que “Canudos, com seu horror e com sua potência trágica,
despertou intensa reflexão” (ABREU, 1998, p. 03), atraindo para si relatos de diversos
intelectuais da época e sendo amplamente noticiada, ficando conhecida como um
grande evento jornalístico do país (ABREU, 1998).
37

A Guerra de Canudos era divulgada por muitos enquanto movimento


monarquista que visava restaurar esse regime (VENTURA, 1990). Tanto, que a
primeira publicação de Euclides a respeito deste acontecimento, ocorreu por meio de
um artigo, em 1897, intitulado de “Nossa Vendéia”, realizando uma correlação de
Canudos com a revoltosa Vendéia francesa (VENTURA, 1990) local onde havia um
grupo de monarquistas que buscavam a restauração desse modelo de governo
(LIMA, 2011).
Constata-se que ao viajar para Canudos, Euclides já tinha em mente redigir
um livro sobre o acontecimento e seu objetivo era escrever “um valioso documento
nacional” (LIMA, 2011, p. 195), uma vez que ele já realizava anotações anteriores em
sua caderneta de campo, tanto sobre os aspectos físicos, como o clima e a flora,
quanto sobre os da própria comunidade de sertanejos e seus costumes.
Isto posto, é preciso entender que a obra máxima de Euclides, foi fruto de uma
sequência de acontecimentos e de anotações, como seus primeiros artigos ao jornal
“O Estado de São Paulo” e sua notória Caderneta de Campo. Com isso, observa-se
que além de buscar compreender a obra central, deve-se entender qual a perspectiva
que influenciou essa redação.
No início de sua viagem, Euclides acreditava, assim como toda a sociedade
litorânea brasileira, que havia um levante contra o governo republicano na tentativa
de restaurar a monarquia, uma vez que para justificar a falha das campanhas
anteriores, criou-se uma narrativa de que “algum poderoso reino estrangeiro (a
Inglaterra, possivelmente) supria os revoltosos de farta e moderna munição”
(MEDEIROS, 2009, p.11). No entanto, após suas constatações in loco, Euclides busca
redimir-se de suas afirmativas anteriores através da obra.
Como resultado de sua jornada, o engenheiro e jornalista retorna a São Paulo
com diversas anotações de campo que deram origem ao aclamado livro Os Sertões,
publicado em 1902.
É importante afirmar que a obra foi a primeira a ser considerada do gênero de
Livro-reportagem, que entendemos ser a escrita correspondente a um fato narrado
através da literatura, por meio de ótica de prosa (OLIVEIRA, 2006).
38

Sendo um gênero que consiste no intuito de informar, mas que também


consegue “envolver e, até mesmo, entreter o público, através da leitura de um fato
verdadeiro” (OLIVEIRA, 2006, p.5), esse romance se utiliza de linguagem
aprofundada, cujo objetivo reside em intensificar a utilização de elementos narrativos
para estruturar seu relato, daí seu aspecto literário (OLIVEIRA, 2006).
Em consonância, entende-se ser essa “uma escrita voltada para compreender e
explicar o Brasil a partir de Canudos e, ao mesmo tempo, comover com força
expressiva da arte literária as elites e as camadas letradas do país” (FACIOLI, 2008,
p.110).
Tais características são visíveis no livro, posto que ele possui uma capacidade
de abarcar diversas questões, como também, demonstra-se cheio de contradições, o
que o levou a se tornar um dos livros fundamentais para se interpretar o país. Assim
afirma Schneider (2013):
Os Sertões foi capaz de tocar uma multiplicidade de questões que vão do
econômico-social (o latifúndio, a pobreza) ao político (a República e seus
limites), do intelectual (o cientificismo, o naturalismo, o decadentismo) ao
religioso (o messianismo, o catolicismo popular). Por essas e outras razões,
Os Sertões é um dos documentos fundamentais da história do Brasil, reflexo
e reflexão de um país carregado de temporalidades polissêmicas e
contraditórias. (SCHNEIDER, 2013, p.79)

As diversas possibilidades no livro mostram que Euclides foi um homem fruto


dos novos tempos gerados pela República (SCHNEIDER, 2013). A obra desse autor
traz a perspectiva da literatura como missão, onde percebe-se, claramente, a
literatura como um instrumento de ação (SEVCENKO, 2003).
Mesmo com uma publicação tardia e o vasto acervo já produzido a respeito do
evento, Os Sertões teve grande repercussão no período de seu lançamento, apesar de
ser uma obra que dispôs de um caráter distinto, onde expõe o território como o
enfoque principal em seu debate (ABREU, 1998). Ao mesmo tempo, o escrito expõe a
barbárie do litoral e da civilização contra a bestialidade do sertanejo místico e
retrógrado (SCHNEIDER, 2013), o que possibilita desempenhar o papel de divisor de
águas no aspecto do pensamento social brasileiro (ABREU, 1998).
Ao descrever aquela região do sertão em torno do Arraial de Canudos, que até
então estava desassociada do território nacional, principalmente, da dinâmica do Rio
39

de Janeiro, o autor de Os Sertões divide sua obra em três partes estratégicas: A Terra,
O Homem e A Luta, como pode ser observado no quadro 04 abaixo:

Quadro 04 – Síntese do livro Os Sertões

Partes Capítulos Seções Resumo


Preliminares. A entrada do
sertão. Terra ignota. Em
Capítulo 01 caminho para Monte Santo.
Primeiras impressões. Um
sonho de geólogo.
Golpe de vista do alto de
Capítulo 02 Monte Santo. Do alto da O autor delimita o
Favela. meio ali existente,
O clima. Higrômetros no qual,
Capítulo 03
singulares. posteriormente,
As secas. Hipóteses sobre a correlaciona com a
A TERRA
sua gênese. As caatingas. O sociedade,
juazeiro. A tormenta. tornando-se o
Capítulo 04 Ressureição da flora. O homem o retrato
umbuzeiro. A jurema. O do ambiente que o
sertão é um paraíso. Manhãs gestou por séculos.
sertanejas.
Uma categoria geográfica
que Hegel não citou. Como
Capítulo 05 se faz um deserto. Como se
extingue o deserto. O
martírio secular da Terra
Complexidade do problema Nesta parte do
etnológico no Brasil. livro, o autor
Variabilidade do meio físico. busca realizar uma
... e a sua reflexão na compreensão de
história. Ação do meio na como se deu a
Capítulo 01
fase inicial da formação das população do
raças. A formação brasileira sertão nordestino,
do Norte. Os primeiros a partir de
O HOMEM povoadores. Os jesuítas. A elementos como a
gênese do mulato. mestiçagem, do
Gênese dos jagunços. Função meio e o
histórica do rio São isolamento
Francisco. Os jagunços: geográfico. Para
Capítulo 02 colaterais prováveis dos ele, esses fatores
paulistas. O vaqueiro. foram
Fundações jesuíticas na responsáveis por
Bahia. Causas favoráveis à gerar uma
40

formação mestiça dos sociedade única


sertões, distinguindo-a dos que viria a ser a
cruzamentos no litoral. Um cerne da
parêntese irritante. Uma raça nacionalidade
forte brasileira.
O sertanejo. Tipos díspares:
o jagunço e o gaúcho. O
vaqueiro. O gaúcho. O
jagunço. Os vaqueiros.
Servidão inconsciente. A
vaquejada. A arribada.
Estouro da boiada.
Capítulo 03 Tradições. Danças. Desafios.
A seca. Insulamento no
deserto. Religião mestiça.
Caráter variável da
religiosidade sertaneja. A
“Pedra Bonita”. Monte
Santo. As missões atuais. Os
“Serenos”.
Antônio Conselheiro,
documento vivo de
atavismo. Um gnóstico
bronco. Grande homem pelo
avesso. Representante
natural do meio em que
nasceu. Antecedentes de
família: os Maciéis. Lutas
entre os Maciéis e Araújos.
Uma vida bem auspiciada.
Capítulo 04 Primeiros reveses. A queda.
Como se faz um monstro.
Peregrinações e martírios.
Lendas. O asceta. As
prédicas. Preceitos de
montanista. Profecias. Um
heresiarca do século II em
plena idade moderna.
Tentativas de reação legal.
Mais lendas. Hégira para o
sertão
Canudos: antecedentes.
Crescimento vertiginoso.
Capítulo 05 Aspecto original. Regime da
urbs. População multiforme.
Polícia de bandidos.
41

Depredações. O templo.
Estrada para o céu. As rezas.
Agrupamentos bizarros. O
“beija” das imagens. Por que
não pregar contra a
República? Uma missão
abordada. Retrato do
Conselheiro. Maldição sobre
a Jerusalém de taipa.
Capítulo 01 Preliminares; Antecedentes.
Causas próximas da luta. Ao longo desta
Capítulo 02
Uauá. parte do livro,
Preparativos da reação. A Euclides
Capítulo 03
guerra das caatingas. apresenta-nos a
Autonomia duvidosa. Guerra de
Canudos, suas
causas e
consequências não
Capítulo 04 só para a
população
sertaneja, mas
para o Brasil.

Monte Santo. Triunfos


antecipados. Incompreensão
da campanha. Em marcha
para Canudos. O Cambaio.
Baluartes sine calcii
linimenti. Primeiro recontro.
Travessia do
Episódio trágico. Nos
Cambaio
Tabuleirinhos. Segundo
combate. A Legio Fulminata
de João Abade. Novo
milagre do Conselheiro.
Retirada. Procissão dos
jiraus.
A LUTA Moreira César e o meio que
o celebrizou. Floriano
Peixoto. Primeira expedição
regular. Crítica. Cresce a
Expedição população de Canudos.
Moreira César Como a aguardam os
jagunços. Trincheiras.
Armas. Pólvora. Balas.
Lutadores. João Abade.
Procissões. Rezas. Partida de
42

Monte Santo. Primeiros


erros. Nova estrada. Em
marcha para o Angico.
Psicologia do soldado
brasileiro. Pitombas. O
primeiro encontro. “Em
acelerado!” Dois cartões de
visita ao Conselheiro. Um
olhar sobre Canudos.
Chegada da força. Rebate. A
ordem de batalha. O terreno.
Crítica. Cidadela-mundéu.
Conflitos parciais. Saques
antes do triunfo. No
labirinto de vielas. Situação
inquietadora. Moreira César
fora de combate. Recuo. Ao
bater da Ave-Maria. Sobre o
Alto do Mário. O coronel
Tamarindo. Alvitre de
retirada. Protesto de Moreira
César. Retirada. Vaia.
Debandada. Fuga. Um
arsenal ao ar livre. Uma
diversão cruel.
Desastres. Canudos — uma
diátese. Empastelamento de
jornais monárquicos. A rua
do Ouvidor e as caatingas.
Considerações. Versões
disparatadas. Mentiras
heróicas. O cabo Roque.
Levantamento em massa.
Planos. Um tropear de
bárbaros. Mobilização de
Quarta
tropas. Concentração em
Campanha
Queimadas. Organiza-se a
4.ª expedição. Crítica.
Delongas. Não há um plano
de campanha. Crítica. A
comissão de engenharia.
Siqueira de Meneses.
Estrada de Calumbi. A
marcha para Canudos. O 5.°
Corpo de Polícia Baiana.
Alteração da formatura.
43

Incidentes. Um guia
temeroso: Pajeú. No
“Rosário”. Passagem nas
Pitombas. Recordações
cruéis. O alto da Favela.
Fuzilaria. Crítica. Trincheiras
dos Jagunços. Continua a
fuzilaria. Acampamento na
Favela. Canudos. Chuva de
balas. Confusão e Desordem.
Baixas. Uma divisão
aprisionada. Coluna
Savaget. De Aracaju a
Canudos. Carlos Teles.
Cocorobó. Retrospecção
geológica. Diante das
trincheiras. Carga de
baionetas excepcional. A
travessia. Macambira. Nova
carga de baionetas. Fuzilaria.
Bombardeio. Trabubu.
Emissário inesperado.
Destrói-se um plano de
campanha. Vitória singular.
O medo. Baixas. Começo de
uma batalha crônica.
Canhoneio. Réplica dos
jagunços. Regímen de
privações. Aventuras do
cerco. Caçadas perigosas.
Desânimos. Assalto ao
acampamento. A
“matadeira”. Atitude do
comando-em-chefe. Outro
olhar sobre Canudos.
Desânimo. Deserções
heroicas. Um choque
galvânico na expedição
combalida. O assalto. Plano
do assalto. O recontro. Linha
de combate. Crítica.
Confusão. Tocaias dos
jagunços. Nova vitória
desastrosa. Baixas. Nos
flancos de Canudos. Posição
crítica. Notas de um diário.
44

Triunfos pelo telégrafo. Pelas


estradas. Os feridos.
Depredações. Incêndios.
Primeiras notícias certas.
Baixas. Versões e lendas.
“Viva o Bom Jesus !”. Um
lance épico. Outros reforços.
A brigada Girard. Heroísmo
estranho. Em viagem para
Canudos. Outros reforços. O
marechal Bittencourt.
Quadro lancinante.
Colaboradores prosaicos
demais. Em Canudos. O sino
da igreja. Fuzilaria.
Queimadas. Páginas
demoníacas. Uma ficção
geográfica. Fora da pátria.
Em Canudos. Prisioneiros.
Diante de uma criança.
Outra criança. Na estrada de
Monte Santo.Palimpsestos
ultrajantes. Em Monte Santo.
Em Canudos. Uma “vaia
entusiástica”. Trincheira Sete
Nova de Setembro. Estrada do
fase da Luta Calumbi. Marcha da divisão
auxiliar. Medo glorioso.
Caxomongó. Rebate falso.
Em busca de meia ração de
glória. Aspecto do
acampamento. Canudos. O
charlatanismo da coragem.
Embaixada ao céu.
Complemento do assédio.
Cenário da tragédia.

O estrebuchar dos vencidos.


Os prisioneiros. A degola.
Depoimento do autor. Um
grito de protesto. Titãs
contra moribundos.
Constrige-se o assédio.
Cavando o próprio túmulo.
Trincheira de cadáveres. Em
torno das cacimbas. Sobre os
45

Últimos dias muradais da igreja nova.


Passeio dentro de Canudos.
O assalto. O Canhoneio.
Réplica dos jagunços, Baixas.
Tupi Caldas. A dinamite.
Continua a réplica. Baixas.
No hospital de sangue.
Notas de um diário.
Antônio, o Beatinho. Morte
do Conselheiro. Prisioneiros.
O fim. Canudos não se
rendeu. O cadáver do
Conselheiro. Duas linhas.

Elaboração: Alyne Karollayne Melquiades Souza da Silva, 2020.

Como observado acima, a estrutura em que se origina a obra literária, veio


como fruto do chamado “enciclopedismo”, que consistia no conjunto e associação de
conhecimentos. Tal método foi utilizado por Cunha como uma forma de
compreender a partir de Canudos a história do Brasil, com base no aglutinamento de
diversos aspectos explicativos em sua escrita (FACIOLI, 2008, p.111).
Essa divisão deixa bem claro que o livro adquire uma configuração de ser
científico, mas também, literário (SVECENKO, 2003; BERNUCCI, 1998). Ao buscar
retratar a terra do sertão, a partir de Canudos, manteve uma relação entre a gênese
do homem e as causas e consequências de uma luta do litoral contra o sertão,
Euclides da Cunha tem como objetivo “[...] o estudo, a partir de bases científicas, dos
sertões” (ABREU, 1988, p.06).
Fato que permite afirmar que Cunha, tal como os demais pensadores do
período, caracterizava-se por seu posicionamento racional e de uma mentalidade
“antiespiritualista" e “antimetafísico” (SCHNEIDER, 2013), uma vez que retratou a
realidade da sociedade e do território tal como se apresentava. Ou, como afirma
Amory (2009), há na narrativa euclidiana uma tríplice escala temporal: “[...] pré-
história terrestre, história social do Nordeste e história ocular dos acontecimentos,
correspondentes à história ‘quase imóvel’, a história lenta dos grupos móveis e a viva
‘historie événementielle’ de Braudel” (AMORY, 2009, p. 207). Tais características
46

fazem do texto de Euclides uma obra com uma linguagem literária, mas com fortes
marcas científicas3 (SCHNEIDER, 2013).
Todavia, o engenheiro também foi responsável por representar as novas ideias
modernistas para o país e por desempenhar um papel de “homem de Estado,
interessado em pensar o Brasil” (SCHNEIDER, 2013, p.67), em um momento em que
o “país ansiava por compreender a si próprio” (ABREU, 1998, p. 05).
Para Abreu (1988), a guerra de Canudos despertou uma profunda reflexão
sobre o Brasil e o livro Os Sertões é uma mistura de “Emoção e razão, arte e ciência”,
com uma qualidade artística e uma forte rigidez científica.
Mas, além de ser um livro com fortes características científicas e literárias,
tanto Os Sertões, como as demais obras de Euclides, possui uma forte dimensão
espacial:
Um dos critérios que se prestam para uma ordenação geral da obra de
Euclides da Cunha, tendo em vista um estudo mais aprofundado e
sistemático, é o da distribuição regional proposto e seguido em seus textos,
guardando por si só uma significação altamente expressiva para a
compreensão do seu pensamento e de sua arte (SEVCENKO, 2003, p. 162).

Com isso, havia na linguagem e no pensamento euclidiano um “nacionalismo


defensivo” (SEVCENKO, 2003, p. 168), que buscava um saber da base física do país,
quase um amor pela “Natureza tropical do Brasil” (AMORY, 2009, p. 22). Para
Euclides da Cunha, seu texto permitiria uma reflexão que conduziria a ações capazes
de conduzir o país a um futuro diferente da realidade imposta (SEVCENKO, 2003).
Uma preocupação histórica e científica, mas com densidade dramática: “[...]
carregando assim de densidade dramática as questões que polemiza e ampliando a
eficácia da sua crítica” (SEVCENKO, 2003, p. 172).
Há uma atitude de contestação na obra: “É uma demonstração patente da
obstinação de sua atitude inconformista” (SEVCENKO, 2003, p. 172). Um
posicionamento de forte crítica na relação entre os homens e a natureza, ao processo
de ocupação do espaço geográfico que se faz por meio de crimes contra a natureza e
contra o próprio homem:

3Esse pensamento de redigir uma obra a partir de uma feição cientifica foi partilhado por diversos
outros autores do período em suas produções (SCHNEIDER, 2013). Contudo, a particularidade do
discurso de Os Sertões se dá devido a sua peculiaridade de unificar a ciência e a arte (ABREU, 1988;
SVECENKO, 2003; BERNUCCI, 1998).
47

O que o exasperava, assim como no que tange à terra, mas com relação ao
homem com muito mais intensidade, era o desprezo, a indiferença, o pouco-
caso com que se consumiam as populações do país, como se fossem
consideradas recursos superabundantes, e, portanto, supérfluos e
prescindíveis, como ocorria com as matas e os solos (SEVCENKO, 2003, p.
174).

Tais características fazem da obra de Euclides muito singular, sendo Os


Sertões um livro capaz de apresentar questões políticas, científicas, filosóficas e
geográficas que abrem caminhos para se interpretar a formação territorial do Brasil.
Por isso, a importância de retomar aspectos da linguagem e da dimensão espacial de
sua obra.

3.2 A linguagem literária e a perspectiva filosófica e científica: narrativas e temas

Partindo da perspectiva de que um dos elementos de compreensão de uma


obra literária é a sua linguagem (CÂNDIDO, 2014), percebe-se que uma das
principais característica da escrita de Euclides da Cunha, e que alcançou tamanha
notoriedade, é a presença de um forte “realismo premeditadamente intoxicado de
historicidade” (SEVCENKO, 2003, p.154).
Desse modo, o livro Os Sertões é um escrito que busca transmitir os
movimentos históricos que incidiram sob aquele recorte do território brasileiro.
Todavia, o seu texto também apresenta um forte enredo com “obsessão científica”
(SEVCENKO, 2003, p.154), em uma conjunção de ciência e arte, fazendo do autor, um
cientista e um poeta, como já afirmado.
Amory (2009) ressalta que o autor de Os sertões constrói a sua perspectiva de
leitura da realidade do país, a partir de uma concepção evolutiva da história da
nacionalidade, tendo por base os “princípios evolutivos do desenvolvimento
humano” cruzando-os com a “ideologia racial pessimista do sociólogo galego-
austríaco Ludwig Gumplowich” (AMORY, 2009, p. 167).
Nessa perspectiva, os escritos de Euclides, com destaque Os Sertões,
apresentam fatos reais que dialogavam com os fenômenos sociais e naturais:
[...] Euclides da Cunha procedia a uma rigorosa seleção dentre os fatos reais,
só elegendo para compor os seus textos aqueles que condensassem em si
uma grande potencialidade como fenômenos sociais ou naturais
(SEVCENKO, 2003, p. 160).
48

Com isso, o engenheiro que se fez escritor, apresentou em seus vários textos,
aspectos sociais e que dialogam com a temática científica: “Euclides da Cunha forjou
um estilo elevado híbrido, subordinado sobretudo a um novo critério científico, mas
conservando algo de seu conteúdo social anterior” (SEVCENKO, 2003, p. 160).
Nesse caminho, em Os Sertões, Euclides relata a região sertaneja em mesma
medida que a descobre transmitindo através de uma ótica metafórica, relevadora e
enérgica (SEVCENKO, 2003), demonstrando um apego a estrutura textual em que
permite ser sua escrita altamente elaborada e rebuscada.
Para Amory (2009), há na obra de Euclides um “Léxico mental”, ou seja, uma
linguagem literária difícil e com forte senso científico, uma vez que o autor ficou
muito preso a sintaxe, ou seja, a construção das frases. Configurando-se, portanto,
enquanto uma linguagem que é um misto contraditório entre “século XIX literário,
romântico e idealista; e o século XX, científico, naturalista e materialista”
(SEVCENKO, 2003, p. 159). Isso porque, apesar de sua vertente cientificista, Euclides
também buscou narrar o evento através de uma ótica poética e de prosa (BERNUCCI,
1998).
Com isso, percebe-se no livro uma narrativa que visou combinar suas as
estéticas e estilos ao longo de sua construção. Dessa forma, o aspecto literário tem
como função preencher os hiatos não presenciados pelo autor, e o científico traz a
face objetiva e factual da obra. Nesse sentido, há ao longo do livro uma “discrepância
entre as realizações artísticas e a precisão científica” (BERNUCCI, 1998, p. 6).
Nessa direção, há um constante entrelaçar, entre homem das letras e da
ciência, daí a sua originalidade:
Por esta razão, Euclides pode ser considerado um escritor original que, em
princípio, gostava de narrar pelo simples fato de narrar, logrando assim o
efeito estético desejado que iria auxiliá-lo na explicação dos fenômenos
históricos e científicos. Mas o homem das ciências predomina ao longo do
livro (BERNUCCI, 1998, p. 7).

Tais atributos concedem a obra um perfil histórico-ficcional com noções de


ficcionalidade e literariedade (BERNUCCI, 1998). Onde, a ficcionalidade exerce um
fator de compreensão a partir das convenções do uso da linguagem, tornando-nos
49

capaz de compreender a veracidade do discurso. Já a literariedade, nos condiciona a


distinguir o discurso em sua vertente literária ou não literária (BERNUCCI, 1998).
Diante disso, afirmamos que Os Sertões não se apresenta enquanto uma obra
apenas literária ou ficcional, mas sim um estudo com características e elementos de
ambas as condições. Bernucci (1998) ressalta que:
Ao perseguir a verdade, palavra de difícil definição para o historiador,
Euclides teve, muitas vezes e com alguma ousadia, que adivinhar e
argumentar, principalmente por saber pouco sobre a geologia e a botânica
do sertão baiano e porque apenas tinha passado uns dias em Canudos. Não
deixa de haver uma certa dose de ironia nesta busca de uma precisão
científica descrita por uma linguagem prenhe de riqueza criativa e
tonalidades, essa mesma linguagem que os poetas apaixonadamente gostam
de explorar e que os cientistas procuram evitar. Por esta razão, Euclides
pode ser considerado um escritor original que, em princípio, gostava de
narrar pelo simples fato de narrar, logrando assim o efeito estético desejado
que iria auxiliá-lo na explicação dos fenômenos históricos e científicos. Mas
o homem das ciências predomina ao longo do livro. (BERNUCCI, 1998, p.
07).

Euclides ao analisar as características climáticas, vegetais, hidrográficas,


populacionais e do conflito no sertão baiano, parte de uma ótica científica, mas,
utiliza-se, também, como caminho de complementar seu discurso, uma linguagem
literária para descrever o território e a sociedade.
Por exemplo, podemos vislumbrar tais questões temáticas e linguísticas
quando o autor descreve o sertanejo como sendo um ser “desgracioso,
desengonçado, torto. Hercules-Quasímodo” (CUNHA, 2017, p.133). Nesse trecho
percebesse um sujeito que é em mesma medida o heroico e o monstruoso, fruto da
batalha constante contra o ambiente agressivo e da mestiçagem “descontrolada”.
Outro exemplo, pode ser presenciada quando Euclides descreve em seu caminho a
Santo Monte um cadáver de um ex-combatente.
A linguagem euclidiana muda na seção intitulada, Higrômetros singulares. Até
essa passagem, Euclides tinha sido um mero expositor da geografia e da geologia
brasileira e havia atravessado o planalto central apenas de maneira puramente
mental. O que possibilita uma interpretação da parte, A Terra, dentro de uma
impessoalidade e dentro de um contexto pretérito.
50

Porém, nesse capítulo, podemos destacar, mais uma vez, o estilo na escrita de
Euclides. É um dos momentos em que o autor faz uso de uma linguagem poética e se
coloca dentro da obra e do ambiente do sertão nordestino:
Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos,
fugindo à monotonia de um canhoneio frouxo de tiros espaçados e soturnos,
encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colinas
se dispunham circulando a um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros
virentes viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes,
davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao
lado uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação
franzina (CUNHA, 2017, p. 62) (grifo nosso).

Essa citação mostra como o cientista que se faz poeta e se coloca na realidade,
ao afirmar que percorre o sertão, Euclides passa a narrar o que é o clima do sertão.
Mas, ao mesmo tempo, passa a descrever, em seu trajeto para Canudos, um cadáver
de um ex-combatente, por meio de uma retórica que busca um efeito na interpretação
do ouvinte:
O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela —
braços largamente abertos, face volvida para os céus, — um soldado
descansava. Descansava... havia três meses. [...] E estava intacto. Murchara
apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a
ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranqüilo sono, à
sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme — o mais vulgar dos
trágicos analistas da matéria — lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão
da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era
um aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema
dos ares” (CUNHA, 2017, p. 62).

Tais colocações são apreendidas quando se observa o autor realizar suas


primeiras considerações nos capítulos presentes em A Terra. Nessa primeira seção do
livro, há uma maior presença descritiva a respeito do local como se fosse sendo
apresentado em primazia por ele, logo ressalta que “nenhum pioneiro da ciência
suportou ainda as agruras daquele rincão sertanejo em prazo suficiente para o
definir.” (CUNHA, 2017, p.57).
O autor também afirma que:
Conhecemos, deste modo, os três elementos essenciais e, imperfeitamente
embora, o meio físico diferenciador – e ainda, sob todas as suas formas, as
condições históricas adversas ou favoráveis que sobre eles reagiram.
(CUNHA, 2017, p.94).

Esses exemplos são tomados aqui para mostrar que se delineia ao longo de Os
Sertões um diálogo estabelecido entre a realidade e as lacunas imaginativas
51

ocasionadas pelo diminuto período em que o autor passou no local do evento.


Consequentemente, sua obra apresenta mudanças em sua narrativa que demonstram
uma alteração em seu pensamento, a medida em que Euclides vai tomando nota da
verdadeira expressão do conflito, deixando de se portar apenas como um “expositor
invisível” (AMORY, 2009, p. 183).
Desse modo, Euclides estrutura um texto que demonstra ter na primeira parte
e parcela da segunda um posicionamento quase que distante, mas que vai
adquirindo uma face mais crítica à proporção que que a obra caminha ao seu clímax,
principalmente, na última parte: a Luta (AMORY, 2009).
Com isso, é possível perceber que ao longo de sua escrita não se exime o
elemento de produção histórica, reconhecemos isso ao atentamo-nos a utilização dos
tempos verbais e os tempos históricos (AMORY, 2009, p. 183). Tal caminho permite
demonstrar uma interligação que o autor propõe-se produzir a respeito do território
brasileiro, enquanto fruto de um processo natural e social.
Todavia, tendo isso em vista, pode-se afirmar que seu estilo literário se
compõe por meio de uma associação de dois tempos, o passado, ao realizar uma
reconstrução de uma pré-história da formação do meio e da sociedade nas partes, a
Terra e o Homem, e o presente, ao caracterizar as campanhas que ocasionaram a Luta
(AMORY, 2009). Mas, ao mesmo tempo, tal estilo de escrita possibilitou abrir
caminhos para Euclides da Cunha dialogar entre a história, a literatura e a
representação do país (SEVCENKO, 2003). Ou seja, o percurso linguístico do Os
Sertões além de apresentar uma narrativa com forte ligação com uma “arte-prosa”
(AMORY, 2009), possibilitou o debate da construção da nacionalidade. Fato que será
debatido na próxima seção.

3.3 Os Sertões e teoria interpretativa sobre o Brasil moderno: o discurso euclidiano


da nacionalidade pelo espaço

Para Svecenko (2003), entre 1870 e o início do século XX, o Brasil passou por
profundas transformações, principalmente, com relação a escravidão e a Monarquia.
Mudanças que proporcionavam novos rumos que o Brasil seguia (MACHADO,
52

2000). Porém, uma das características que marca esse momento é a busca do
pensamento social brasileiro pela definição de uma identidade nacional (LIMA,
1998).
Conforme nos aponta Lima (1998), os intelectuais nesse ensejo buscavam em
seus escritos caminhos interpretativos para o Brasil, colocando-o no debate dos
Estados nacionais modernos, constituindo-se, com isso, numa geração de modernista
de 1870 (CÂNDIDO, 1991) ou na “República dos Conselheiros” (SVCENKO, 2003, p.
60).
Para isso, temas como a raça, povo, o meio e a identidade nacional passaram a
compor a cena política e a centralidade do debate dos intelectuais do país:
O final do século XIX, em todo o mundo ocidental, foi um período de
intensa sensibilidade nacionalista, em que os debates intelectuais sobre as
supostas qualidades intrínsecas das “raças” humanas estavam na ordem do
dia. No Brasil, como não poderia deixar de ser, os termos “raça”, “povo”,
“nação” e “natureza tropical” compunham um vocabulário quase
inescapável às discussões políticas do período” (SCHNEIDER, 2013, p. 69).

Diante desse contexto, buscava-se através do espaço projetar uma noção


simbólica a respeito do território através da questão da disparidade entre o sertão e o
litoral. Tal tese ocupou a mente de muitos desses intelectuais brasileiros e tomou
uma maior notoriedade à medida em que os ideais de modernização tomavam conta
desse arcabouço.
No Brasil, essa perspectiva foi modelada por meio de um olhar do território
com base na divisão desses dois polos distintos, sendo moldados enquanto figuras
imaginativas e de valores definidos:
Da leitura de tais escritos culturais, tem-se como certo que, nas imagens e
valores que remetem a sertão e litoral, está-se ao mesmo tempo fazendo
imagens sobre o Brasil. Ou também é possível pensar que, na narrativa em
código geo-social (SOUZA, 1997, p.30).

Dessa forma, havia uma acentuação da "autenticidade do sertão em contraste


com o parasitismo e a superficialidade litorânea" (LIMA, 1998). Ambas as áreas
emergiam nesse pensamento social como “imagens de grande força simbólica”
(LIMA, 1998), capazes de expressar “o antagonismo de distintas formas de
organização social e cultural” (LIMA, 1998).
53

À vista disso, podemos entender o porquê de a obra Os Sertões ser


considerada um marco para o pensamento nacional (LIMA, 1998), uma vez que esta
oferece uma oportunidade de análise da sociedade e do país no final século XIX e
início do XX, a partir de sua disparidade de interpretação territorial da nação
evidenciadas, brilhantemente, por ele enquanto desenvolvia sua interpretação de
nação.
Euclides exerceu um perfil de “observador interessado” (SOUZA, 1997, p.27),
sendo capaz de demonstrar uma narrativa que objetivava descrever uma realidade
na qual estava inserido: “E tanto quanto o permitir a firmeza do nosso espírito,
façamos jus ao admirável conceito de Taine sobre o narrador sincero que encara a
história como ela o merece.” (CUNHA, 2017, p.34)
O autor de Os Sertões se une ao esforço nacional que busca compreender seu
próprio país e qual a raiz de seus males (LIMA, 1998). Por consequência, na visão
euclidiana, a maior problemática brasileira ocorria devido a esta dualidade entre
sertão e litoral (LIMA, 1998), na qual ambos, a partir de uma combinação oposta de
sociedade e terra, ocasiona uma polarização territorial.
Lima (1998) destaca:
Isto explica, por exemplo, por que a disputa na caracterização de Os sertões,
de Euclides da Cunha, ora apresentado como texto literário, ora como
documento científico de cunho etnográfico, ora como um trabalho de
geografia e assim por diante. Parece-me correto afirmar que tanto os
médicos como engenheiros, como os advogados preocupados com o Brasil
real, além daqueles poucos que conseguiam ter na literatura a atividade
praticamente exclusiva, intentavam construir uma teoria interpretativa do
Brasil (LIMA, 1998, n. p.4).

Com isso, Euclides apresenta uma teoria interpretativa do Brasil que


perpassava a concepção de atraso nacional, onde há uma segmentação do território
em que uma parcela está mais propícia à modernização e a outra é mais
conservadora e tradicionalista (LIMA, 1998).
Diante de tal perspectiva, a obra euclidiana foi capaz de retratar e delinear
uma sociedade e região que eram vistos apenas como uma área vazia e arcaica. Ao

4Por conta das restrições impostas pela pandemia da COVID-19, não tivemos contato ao livro em seu
formato físico. Dessa forma, o arquivo em pdf que tivemos acesso não constava as páginas da obra
citada. Por isso, as próximas citações diretas da referida autora e obra não terão as páginas
referenciadas.
54

mesmo tempo, em que era atribuído a esse espaço condicionantes singulares de sua
formação e que impediam o seu desenvolvimento, tais como: a atividade econômica,
o meio e, principalmente, o distanciamento do poder público e da sociedade
litorânea.
Tais fatores incidiram sob a constituição territorial do sertão, tornando-o algo
singular, díspare e desassociada do restante da nação. Assim, observa-se em Os
Sertões:
Reproduzamos, intactas, todas as impressões, verdadeiras ou ilusórias, que
tivemos quando, de repente, acompanhando a celeridade de uma marcha
militar, [demos de frente, numa volta do sertão, com aqueles desconhecidos
singulares, que ali estão — abandonados — há três séculos. (CUNHA, 2017,
p.132).

A concepção de uma área vazia, representada pelo território sertanejo, seria


"necessária" para encobrir a realidade de que uma parcela da Nação se encontrava
desassistida e isolada física e socialmente. Com isso, Lima (1998) destaca que não
seria o elemento do couro o definidor das características dessa sociedade, mas a obra
de Euclides abre caminhos interpretativos para se construir uma concepção de
"distância em relação ao poder público e aos projetos modernizadores'' (LIMA, 1998).
Desse modo, Euclides cria, a partir d’Os Sertões, uma imagem de uma
sociedade e de um sujeito sertanejo que seriam a representatividade da nação. E
Canudos era reflexo de um passado fruto da negligência do Estado. Assim, afirmou:
A campanha de Canudos tem por isto a significação inegável de um
primeiro assalto, em luta talvez longa [...] Aquela campanha lembra um
refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime
(CUNHA, 2017, p. 35). (grifo nosso)

Ao mesmo tempo, compreendemos que o autor d’Os Sertões, como citado


acima, realiza uma construção textual a partir de uma noção de “representação
geográfico/social” (LIMA, 1998), buscando entender não só a sociedade e a nação,
mas ambas dentro de uma dimensão espacial.
Sendo assim, Euclides da Cunha nos apresenta o Brasil:

Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que palejam reflexos da


vida civilizada, tivemos de improviso, como herança inesperada, a
República. Ascendemos, de chofre, arrebatados na caudal dos ideais
modernos, deixando na penumbra secular em que jazem, no âmago do país,
um terço da nossa gente. (CUNHA, 2017, p.211)
55

Nessa perspectiva, o olhar fundante de Euclides demonstra a todos que essa


diferença cultural e social se refletia espacialmente, uma vez que moldava o espaço
vivido pelos sertanejos de forma totalmente distinta dos litorâneos (SOUZA, 1997,
p.96). Para ele, o fator segregacional imposto pela característica do Sertão e pela
indiferença dos governadores condicionou-nos a sermos “mercenários inconscientes”
(CUNHA, 2017, p.34) visto que se cometia um constante crime contra a
nacionalidade.
Tal caminho interpretativo reflete não apenas nas condicionantes do meio
físico, mas também no carácter sociológico do conceito de isolamento, dado que este
influi diretamente na organização social e numa cultura segregada (CÂNDIDO,
2012). Porém, mais que um caráter sociológico, observamos uma dimensão espacial
na escrita euclidiana, uma vez que, a partir do debate e da tentativa de representação
da nacionalidade, o escritor pré-modernista debate a relação homem e meio. Cândice
Souza (1997) ressalta:
O relato sobre os habitats das formas sociais e sertanejas e litorâneas
estabelece valores em termos de gradientes de nacionalidade, escala em que
se distribuem os lugares de acordo com a sua proximidade a um modelo de
nação desejável (SOUZA, 2015, p. 43).

Logo, para Euclides, há uma contrariedade a medida em que ele se empenha


em descrever e compreender tal sociedade sertaneja, tanto em sua obra máxima
quanto em suas anotações. No entanto, ao fim de suas conclusões, ele a coloca como
central para se compreender a formação do território e da nação brasileira.
Observa-se assim em sua obra o desenvolvimento do “sertanejo típico, filho da
segregação, isolado do resto do País” (CÂNDIDO, 2012, p.02). Em sua visão, os
sertanejos representavam uma cultura ou raça, tendo em vista as terminologias da
época, totalmente distinta dos seus patrícios litorâneos:
Fora do litoral, em que se refletia a decadência da metrópole e todos os
vícios de uma nacionalidade em decomposição insanável, aqueles
sertanistas, avantajando-se às terras extremas de Pernambuco ao Amazonas,
semelhavam uma outra raça, no arrojo temerário e resistência aos reveses
(CUNHA, 2017, p. 109) (grifo nosso)

Ao se deparar com aquele povoado e o conflito ocorrido, Euclides da Cunha


observa que esse fenômeno da “demora cultural” (CÂNDIDO, 2012, p. 03) ocasiona
56

justamente o conflito exposto na parte final do livro, em consequência ao choque


entre o “evoluído” e a “barbárie”.
À vista disso, observamos que o sertão é palco de um dilema civilizatório
(LIMA, 1998), posto que, a obra redigida com base em uma visão a respeito das
contraposições da população e do território demonstra “[...] o abismo existente entre
o interior bárbaro e o litoral europeizado, entre o Brasil, que almejava civilizar-se, e a
Europa, civilizada e moderna” (DIAS, 2009, p.144). Ainda, segundo Dias (2009):
Os novos expedicionários ao atingirem-no perceberam esta transição
violenta. Discordância absoluta e radical entre as cidades da costa e as
malocas de telha do interior, que desequilibra tanto o ritmo de nosso
desenvolvimento evolutivo e perturba deploravelmente a unidade nacional
(CUNHA, 2017, p.493).

Destacando o contato quase nulo que ambas as culturas tiveram, Euclides


afirma que a sociedade brasileira estava dividida e condicionada a uma série de
embates. Em razão disso, o litoral era representado através de seu contato com a
Europa, onde buscavam o estabelecimento de um padrão modernizador e
progressista, mas que se apresenta de forma excludente as diferentes culturas
presentes nos demais fragmentos do território:
Viam-se em terra estranha. Outros hábitos. Outros quadros. Outra gente.
Outra língua mesmo, articulada em gíria original e pinturesca. Invadia-os o
sentimento exato de seguirem para uma guerra externa. Sentiam-se fora do
Brasil. A separação social completa dilatava a distância geográfica; criava a
sensação nostálgica de longo afastamento da pátria (CUNHA, 2017, p.493).

Para Euclides, o projeto modernizador da República não foi capaz de incluir


seus irmãos retrógrados, mas foi responsável por tentar extinguir sua cultura e
sociedade. Assim ele afirma: “É que neste caso a raça forte não destrói a fraca pelas
armas, esmaga-a pela civilização. Ora os nossos rudes patrícios dos sertões do Norte
forraram-se a esta última” (CUNHA, 2017, p.131).
Nesse caminho interpretativo, Euclides apresenta o Sertão enquanto a
identidade representativa do Brasil, uma vez que esse manteve suas tradições
preservadas (LIMA, 1998). Também, apresentando uma cultura original, ou, como o
autor menciona ser: “o cerne vigoroso da nossa nacionalidade.” (CUNHA, 2017,
p.121).
57

E é nesse percurso interpretativo que busca-se no próximo capítulo analisar a


concepção de nação e a forma de representação da nacionalidade presente no livro
Os Sertões; descrever a dinâmica da organização espacial do Brasil apresentadas na
obra; e apontar quais os elementos presentes dos discursos de Euclides da Cunha
possibilitaram a constituição de um saber geográfico.
58

4. DISCURSO GEOGRÁFICO E A INTERPRETAÇÃO DA FORMAÇÃO


TERRITORIAL DO BRASIL EM EUCLIDES DA CUNHA

4.1 O sertão na organização espacial do Brasil

4.1.1 A natureza do sertão: deserto e paraíso

Ao ler e analisar os capítulos iniciais da parte, A Terra, em Os Sertões, observa-


se que o autor assume uma postura descritiva em suas páginas iniciais. Ele efetua
quase que um relato de campo (AMORY, 2009), sendo que nos deparamos com uma
“miríade de dados geográficos e geológicos” (AMORY, 2009). Desse modo, à medida
que explora-se seu discurso inicial, percebe-se suas falas carregadas de cientificismo
e impessoalidade, um texto em que o autor se faz quase que ausente (AMORY, 2009).
Com isso, Euclides posiciona-se inicialmente apenas enquanto um observador
de uma terra nova e estranha – para ele e para o país –, a qual estava a descobrir e
relatar: “O observador tem a impressão de seguir torneando a truncadura
malgradada da borda de um planalto” (CUNHA, 2017, p. 45).
O autor visa apresentar ao Brasil o sertão nordestino e seus aspectos naturais,
a partir de Canudos, uma vez que: “O sertão de Canudos é um índice sumariando a
fisiografia dos sertões do norte. Resume-os, enfeixa os seus aspectos predominantes
numa escala reduzida” (CUNHA, 2017, p.65).
Deve-se nos atentar para o fato de que neste período o sertão era uma área
desconhecida do território brasileiro, que até “as nossas melhores cartas, enfeixando
informes escassos, lá têm um claro expressivo, um hiato, Terra ignota.” (CUNHA,
2017, p.44). Isso ocorre uma vez que o Brasil esteve há trezentos anos voltado ao
exterior e apenas agora dava esse “giro sobre os pés” (LIMA, 1998), direcionando sua
atenção a seu interior. Logo, o país se redescobria nas páginas de Euclides,
observando a extensão de seu território que se moldou com base no curso do Rio São
Francisco e adentrou aos sertões.
A partir desses aspectos, o autor constrói uma narrativa sobre aquele espaço
com base em um contraste, sendo descrito entre uma constante dualidade
59

(VENTURA, 2002), uma alternância entre a visão do “sertão paraíso” e do “sertão


inferno”, ou seja, os períodos de bonanças e adversidades, de riqueza e de pobreza.
Nesse caminho, Euclides nos apresenta um ambiente inóspito, onde ao se
percorrer o sertão, “o viajante mais rápido tem a sensação da imobilidade” (CUNHA,
2017p. 47). Tal característica apontada, passa uma ideia de desolação e uma sensação
de melancolia na paisagem, onde “despontam vivendas pobres; algumas desertas
pela retirada dos vaqueiros que a seca espavoriu; em ruínas, outras, agravando todas
no aspecto paupérrimo o traço melancólico das paisagens” (CUNHA, 2017, p. 47).
Assim, se delineia um retrato de um Brasil difícil e desconhecido ao resto do
país, que tem uma paisagem que atormenta e impressiona, capaz de exprimir uma
“rudeza extrema” (CUNHA, 2017, p. 49). Uma paisagem que dá ao sujeito uma “[...]
impressão dolorosa que nos domina ao atravessarmos aquele ignoto trecho do
sertão” (CUNHA, 2017, p. 52).
Tal visão, é para Cunha, fruto de um “martírio da terra, brutalmente golpeada
pelos elementos variáveis distribuídos por todos as modalidades climáticas”
(CUNHA, 2017, p. 48). Essa vegetação pouco afamada da ciência, equivalendo a
“favelas, anônimas ainda na ciência — ignoradas dos sábios, conhecidas demais
pelos tabaréus [...]” (CUNHA, 2017, p. 72), configura-se enquanto um local de muita
dureza.
Desse modo, o Euclides nos detalha um clima quase que ingrato à vida:
A luta pela vida [...] O Sol é o inimigo que é forçoso evitar, iludir ou
combater. E evitando o pressente-se de algum modo [...] a inumação da flora
moribunda, enterrando-se os caules pelo solo. Mas como este, por seu turno,
é áspero e duro, exsicado pelas drenagens dos pendores ou esterilizado pela
sucção dos estratos completando as insolações, entre dois meios
desfavoráveis — espaços candentes e terrenos agros —as plantas mais
robustas trazem no aspecto anormalíssimo, impressos, todos os estigmas
desta batalha surda (CUNHA, 2017, p. 70). (grifo nosso)

Toda aquela região apresenta o “cautério das secas” (CUNHA, 2017, p.17), se
projetando enquanto um local duro e de difícil adaptação. Era um território brasileiro
novo e diferente do conhecido. O sertão se faz irredutível, inacessível e repulsivo,
capaz de moldar uma sociedade única. Seu clima, vegetação, orografia, geologia, ou
60

seja, todos seus aspectos físicos são condicionados a serem elementos repelentes5.
Daí, porque encontra-se a descrição de uma flora “agonizante” e “moribunda”
(CUNHA, 2017, p.70).
Nessa perspectiva, consegue-se observar no livro, e com destaque primeiro
para a parte da Terra, um conjunto de descrições que compõe “páginas
rigorosamente geográficas” (AZEVEDO, 1950, p. 35), uma vez que foi capaz de
demonstrar a dura realidade, ainda que romanceada, a partir de elementos literários,
do semiárido. O território brasileiro do sertão passa a ser descrito e apresentado
enquanto realidade. Nisso, ganha dimensão de uma imagem e/ou representação
geográfica.
Assim, Euclides compara:
Então, a travessia das veredas sertanejas é mais exaustiva que a de uma
estepe nua. Nesta, ao menos, o viajante tem o desafogo de um horizonte
largo e a perspectiva das planuras francas. Ao passo que a caatinga o afoga;
abrevia-lhe o olhar; agride-o e estonteia-o; enlaça-o na trama espinescente e
não o atrai; repulsa-o com as folhas urticantes, com o espinho, com os
gravetos estalados em lanças; e desdobra-se-lhe na frente léguas e léguas,
imutável no aspecto desolado: árvores sem folhas, de galhos estorcidos e
secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou estirando-
se flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, da flora
agonizante... (CUNHA, 2017, p. 69). (grifo nosso)

Nesse caminho, a descrição feita pelo autor em Os Sertões demonstra uma


paisagem da caatinga acompanhada da imagem de uma região dura e penosa para a
vida. Quase como a representação de um inferno, onde a existência ali comparava-se
a uma punição: “O martírio do homem, ali, é o reflexo de tortura maior, mais ampla,
abrangendo a economia geral da Vida.” (CUNHA, 2017, p.89)
No entanto, quase como um fenômeno admirável pela perfeição, digna do
paraíso, em mesma medida, esse local transforma-se com a chegada rápida das
chuvas. O sertão ressurgi, ao mesmo tempo, que as primeiras chuvas tocam o solo,
sendo a configuração de um milagre:

5Abramos um parêntese. É notório em nossa leitura que Euclides da Cunha assume, por diversas
vezes, uma postura determinista e preconceituosa, tendo em vista que foi influenciado pelo contexto
científico do período. Sua obra encontra-se permeada de ideias deste cunho apesar de não
referenciadas. Isso pode ser compreendido, por exemplo, através de sua caderneta de campo, uma vez
que nela encontramos notas sobre consultar o material escrito pelo Naturalista Alexander von
Humboldt. Notas que buscam trazer explicações e dados sobre a botânica dos trópicos. Porém, em sua
obra final, não encontramos citações diretas aos cientistas do período.
61

Embruscado em minutos, o firmamento golpeia-se de relâmpagos precípites,


sucessivos, sarjando fundamente a imprimadura negra da tormenta.
Reboam ruidosamente as trovoadas fortes. As bátegas de chuva tombam
grossas, espaçadamente, sobre o chão, adunando-se logo em aguaceiro
diluviano...[...] E ao tornar da travessia o viajante, pasmo, não vê mais o
deserto. Sobre o solo, que as amarílis atapetam, ressurge triunfalmente a
flora tropical. É uma mutação de apoteose (CUNHA, 2017, p.75). (grifo
nosso)

Neste trecho, o autor nos apresenta a metamorfose do deserto ao paraíso. Um


lugar feliz, para onde vão os bem-aventurados, sustentado pelos poucos períodos de
chuva. Com elas, “ressurge ao mesmo tempo a fauna resistente das caatingas [...]”
(CUNHA, 2017, p.78), sendo capaz de aliviar a vida conflituosa e laboriosa do
sertanejo, passando aquela paisagem agora “da extrema aridez à exuberância
extrema...” (CUNHA, 2017, p.81) em poucos momentos.
Assim, os sertões configuram-se enquanto uma categoria geográfica própria
em Euclides da Cunha (VENTURA, 2002). Traçados no intermédio da fertilidade e
esterilidade, passando por “mutações fantásticas” (CUNHA, 2017, p.80),
demonstrando-se como um “contraste com a desolação” (CUNHA, 2017 p.80), onde a
“natureza compraz-se num jogo de antíteses” (CUNHA, 2017, p.80). Euclides
possibilita a construção de uma saber geográfico do sertão, ligando o real com o
imaginário.

4.1.2 O Sertão e a visão dos dois Brasis

O movimento intelectual em que se objetivava compreender o país tornou-se


um cenário propício ao desenvolver de uma ideia singular, a de se interpretar a
Nação. Tal concepção era proveniente da descoberta de nosso espaço interior, de
modo que havia uma busca do “Brasil em seus limites internos” (SOUZA, 1997,
p.21). Esse esforço foi o de diversos intelectuais da época, inclusive Euclides da
Cunha.
O autor ao pensar o Brasil foi capaz de traçar uma teoria interpretativa sobre o
mesmo, a partir de imagens simbólicas e reais (LIMA, 1998), uma vez que:
No caso brasileiro, sertão e litoral podem ser vistos como imagens espaciais
e simbólicas que guardam estreita relação com esta idéia de dois tipos de
ordem social. Aqui, o contraste ocorreria não entre formas distintas e
62

historicamente sucessivas, mas pela justaposição de épocas históricas, numa


sociedade em que, como acentuou Roger Bastide (1978), a geografia não se
separa da história (LIMA, 1999, p.).

Ao observar o debate de Cunha no seu livro, apreende-se que o cerne de seu


pensamento é moldado com base na visão de um país dicotômico, o qual era
dividido territorial entre sertão e litoral.
Por exemplo, tal postura pode ser vista no autor não só no livro Os Sertões,
mas na sua caderneta de campo. Nela, Euclides afirma que aquele povo que se
encontravam “ilhados no deserto, sem consciência social e histórica, desarmados ante
a terra que mal dominam numa indústria rudimentar” (CUNHA, 2009, p.290). Tal
colocação compunha a construção de um pensamento centrado num país
territorialmente desigual, ou seja, dividido e que refletia a pressão de todos os “erros
que receberam, a pressão do incognoscível, de tudo qt.° aparece inacessível à ação
humana” (CUNHA, 2009, p.290).
Essa perspectiva trazida em seus escritos foi capaz de demonstrar que a
sociedade brasileira não havia evoluído horizontalmente (SOUZA, 1998). Em sua
concepção, tal diferenciação, condicionada a essas sociedades, foi talhada por uma
série de fatores que mantiveram ao longo do tempo histórico. Sendo, portanto, o
território nacional fruto de condições de caráter econômico, social e físico, que foram
responsáveis por originar “duas sociedades em formação, alheadas por destinos
rivais — uma de todo indiferente ao modo de ser da outra” (CUNHA, 2017, 106).
Segundo o escritor, o litoral se povoava e, em consonância, formavam-se
fazendas (CUNHA, 2009, p.121), e, a partir desse processo, a cultura extensiva
avançava e aos poucos ia penetrando o interior (CUNHA, 2009, p.121). Interiorização
na qual o rio São Francisco desempenhou o importante papel de “unificador étnico”
(CUNHA, 2017, p.119), uma vez que conectava o sul ao norte e o litoral ao sertão.
Nesse caminho, o rio desempenhava assim o papel de um “longo traço de união
entre as duas sociedades que não se conheciam” (CUNHA, 2017, p.119)
Em vista disso, surgiram as fazendas de criação (CUNHA, 2009, p.119), as
quais foram responsáveis por constituir “extensão zona de criação de gado já no
alvorecer do século XVIII” (CUNHA, 2017, p.120), que, segundo Cunha:
63

Povoara-se e crescera autônoma e forte, mas obscura, desadorada dos


cronistas do tempo, de todo esquecida não já pela metrópole longínqua,
senão pelos próprios governadores e vice-reis. Não produzia impostos ou
rendas que interessassem o egoísmo da coroa. Refletia, entretanto,
contraposta à turbulência do litoral e às aventuras das minas, “o quase único
aspecto tranquilo da nossa cultura (CUNHA, 2017, p.120). (grifo nosso)

Percebe-se que “o sertão foi de algum modo abandonado” (CUNHA, 2017, p.


122) e os sertanejos “entregues à vida pastoril” (CUNHA, 2017, p.126), encontrando-
se “divorciados inteiramente das gentes do sul e da colonização intensa do litoral,
evolveram, adquirindo uma fisionomia original” (CUNHA, 2017, p.126).
Atrelado a isso, Euclides destaca o fator da mestiçagem:
Ora, toda essa população perdida num recanto dos sertões lá permaneceu
até agora, reproduzindo-se livre de elementos estranhos, como que insulada,
e realizando, por isso mesmo, a máxima intensidade de cruzamentos
uniforme capaz de justificar o aparecimento de um tipo mestiço bem
definido, completo.” (CUNHA, 2017, p.125). (grifo nosso)

Por meio disto, reproduziam ali “uma quase fixidez nos caracteres fisiológicos
do tipo emergente” (CUNHA, 2017, p.130), onde, em seu ponto de vista, apesar do
desequilíbrio característico dos mestiços, o povo do sertão foi capaz de manter uma
estrutura sociológica fixa.
Nesse caminho de pensamento, Euclides apresenta um país que se divide e
que tem, em um de seus territórios, a formação de uma sociedade que é fruto de um
insulamento condicionado pelo meio físico, mas também, pelo processo da formação
econômica colonial. É claro que o ambiente, para ele, dentro de sua visão
determinista e evolucionista, por si só já apresenta uma condição de isolamento e de
caráteres repelentes a qualquer um que buscasse ali se fixar. Porém, as condições de
atividades impostas pelo sistema colonial foram apresentadas por ele como condição
para que os sertanejos fossem mantidos “inteiramente divorciados do resto do Brasil
e do mundo” (CUNHA, 2017, p.121), construindo e mantendo durante trezentos anos
de nossa história as suas estruturais culturais singulares.
Dessa forma, observa-se que para Euclides, aquela sociedade constituída no
entremeio dos “canaviais da costa e o sertão, entre o mar e o deserto, num bloqueio
engravecido pela ação do clima” (CUNHA, 2017, p.110) estiveram condicionados a
este divorcio em seu próprio solo, gerando um contraste que “não se baseia, por
certo, em causas étnicas primordiais” (CUNHA, 2017, p.110). Mas, que é “delineada,
64

deste modo, a influência mesológica em nosso movimento histórico.” (CUNHA,


2017, p.110).
Em paralelo, Euclides ainda aborda um aspecto complementar que auxilia na
compreensão dessa sociedade vista em “Dois Brasis”, sendo ela: o insulamento e a
sua relação cultural. O isolamento condicionado àquele povo, dá origem a uma
cultura distinta e com trocas nulas entre seus irmãos litorâneos “próximos”. Tal
sociedade encontra-se então voltada para si e elabora por si só uma cultura material
própria que é relatado pelo autor.
Dessa forma, Cândido afirma:
Esta cultura rude, fruto da segregação social, não pode, por isso mesmo,
evoluir. Tendo criado o mínimo para ajustar-se ao meio, o sertanejo se aferra
a este mínimo, enquanto as populações litorâneas, uma centena de
quilômetros além, estão centenas de anos à sua frente. (CÂNDIDO, 2012,
p.03).

O autor de Os Sertões observa que esse fenômeno da “demora cultural”


(CÂNDIDO, 2012) ocasiona o choque entre o evoluído e o arcaico, uma vez que o
conceito de isolamento não possui apenas um caráter físico, mas também sociológico,
essa consequência de uma influência direta poderia ser apreendida através da
organização social numa cultura segregada.
Desta forma, concebe-se que Cunha apresenta o sertão como uma realidade,
mas busca na construção simbólica um discurso valorativo associado ao espaço. O
sertão era desse modo a imagem figurativa de um “ponto de tangência de duas
sociedades, de todo alheias uma à outra.” (CUNHA, 2017, p.492), existia enquanto
um local no qual “o vaqueiro encourado emerge da caatinga” (CUNHA, 2017 p. 492)
e seus “patrícios do litoral, que o não conhecem.” (CUNHA, 2017, p. 492).
Por esse motivo, a Campanha é um retorno ao passado do Brasil, e ele afirma
ser aquela campanha “um refluxo para o passado” (CUNHA, 2017, p. 34) e o sertão
como um espaço desconhecido ou quase vazio, a antítese do litoral, e sua população,
os sertanejos, como “filhos do sertão”, transformando-se em “uma sociedade
obscura” e “de remoto passado” (CUNHA, 2017, p. 47).
O autor mostra que existem dois Brasis: um Civilizado e o da Barbárie. Ou
seja, a formação territorial do Brasil é marcada, basicamente, por duas sociedades
diferentes e com quase nenhum contato. Para Euclides, o afastamento condicionado
65

pelo insulamento foi capaz de “dilatar” o distanciamento geográfico, repartindo-os


em duas sociedades totalmente alheias uma à outra, devido a isso ele afirma que
“tudo aquilo era uma ficção geográfica." (CUNHA, 2017, p.493).
Nesse caminho reflexivo e de descobertas, para Euclides não existia uma
unidade nacional. O que havia de fato eram dois países distintos e completamente
diferentes dentro do mesmo território. O sertão se constituía como sendo um
território quase “fora da pátria” (CUNHA, 2017, p. 493), numa divisão “violenta”
(CUNHA, 2017, p. 493) e perturbadora de “separação social” (CUNHA, 2017, p. 493).
Assim, para Euclides, a atuação do exército brasileiro se constitui como uma
“invasão” de tropas brasileiras em terras estrangerias. O que permitia refletir e
afirmar que o seu povo não se conhecia, não sabiam de uma realidade tão diversa da
vivenciada no litoral/mata, zonas de controle e vida econômica do país. Daí a
realidade “paradoxal” (CUNHA, 2017, p. 493), a surpresa de uma área do país tão
desconhecida, o que tornava o sertão “misterioso e agro” (CUNHA, 2017, p. 493).
Nesse sentido, o litoral é retratado em Os Sertões como o espaço que estava
constantemente voltado ao seu exterior, onde se vê os “reflexos da vida civilizada”
(CUNHA, 2017, p. 211), que herdou de forma “improvisada” os ideais modernos e o
modelo republicano (CUNHA, 2017, p. 211). Além de que em seu desenvolvimento a
comunidade litorânea, foi capaz de esquecer uma parcela de seu o território e de sua
população, “deixando na penumbra secular em que jazem, no âmago do país”
(CUNHA, 2017, p.211).
À vista desse pensamento, Cunha afirma:
Iludidos por uma civilização de empréstimos; respigando, em faina cega de
copistas, tudo o que de melhor existe nos códigos orgânicos de outras
nações, tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro
com as exigências da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste
entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros
nesta terra do que os imigrantes da Europa. Porque não no-los separa um
mar, separam-no-los três séculos... (CUNHA, 2017, p.211) (grifo nosso).

Essa diferenciação é descrita como uma transição violenta (CUNHA, 2017,


p.493) entre o corpo social do litoral para o sertão, demonstrando uma:
[...] discordância absoluta e radical entre as cidades da costa e as malocas de
telha do interior que desequilibra tanto o ritmo de nosso desenvolvimento
evolutivo e perturba deploravelmente a unidade nacional (CUNHA, 2017, p.
493).
66

Quando tais culturas se encontraram, criou-se “a sensação nostálgica de longo


afastamento da pátria” (CUNHA, 2017, p.493), como se adentrassem a um novo país,
onde “viam-se em terra estranha. Outros hábitos. Outros quadros. Outra gente.
Outra língua mesmo, articulada em gíria original e pinturesca.” (CUNHA, 2017, p.
493).
A partir de tais questões, observa-se que o sertão em Euclides da Cunha não
assume somente uma materialidade da superfície terrestre, mas é visto enquanto
uma realidade simbólica ou uma ideologia geográfica (MORAES, 2012). Assim
sendo, acreditamos que as descrições feitas por Euclides sobre tal meio se constituem
como “[...] um discurso valorativo referente ao espaço, que qualifica os lugares
segundo a mentalidade reinante e os interesses vigentes neste processo” (MORAES,
2012, p. 2).
Nesse caminho interpretativo, Euclides representa o olhar externo, uma vez
que ele descreve com fascínio e assombro aquele espaço de expansão (MORAES,
2012), atribuindo a ele valores “[...] que legitimam ações para transformá-lo”, e o
configura, portanto, em “[...] projeto nacional para o país” (MORAES, 2012, p.3).
No qual, a nação ao se deparar com Canudos encontra-se diante de um
dilema: “a raça forte não destrói a fraca pelas armas, esmaga-a pela civilização”
(CUNHA, 2017, p. 131). E, em sua concepção, “os nossos rudes patrícios dos sertões
do norte forraram-se a esta última” (CUNHA, 2017, p.131).
Tal raciocínio permite refletir que o desconhecimento dos diferentes “brasis”
ocasiona o constante embate entre si. Desse modo, na busca de “anexar” esse espaço
desconhecido ao restante do país, o povo litorâneo exerce o “papel singular de
mercenários inconscientes” (CUNHA, 2017, p. 34). De modo que, ao deparar-se com
ocorrido em Canudos, Euclides busca realizar a denúncia ao grande “crime”
(CUNHA, 2017, p. 34) de duas regiões separadas:
A campanha de Canudos tem, por isto, a significação inegável de um
primeiro assalto, em luta talvez longa. Nem enfraquece o asserto o termo-la
realizado nós, filhos do mesmo solo, porque, etnologicamente indefinidos,
sem tradições nacionais uniformes, vivendo parasitariamente à beira do
Atlântico dos princípios civilizadores elaborados na Europa, e armados pela
indústria alemã – tivemos na ação um papel singular de mercenários
inconscientes. Além, disto, mal unidos àqueles extraordinários patrícios pelo
67

solo em parte desconhecido, deles de todo nos separa uma coordenada


histórica – o tempo. (CUNHA, 2017, p. 34). (grifo nosso)

Logo, ve-se o sertão sendo representando na obra enquanto “uma figura do


imaginário da conquista territorial” (MORAES, 2012, p.6), que é, em mesma medida
estipulada enquanto a antípoda e o complemento do litoral.

4.2 O Sertão e a representatividade de uma nacionalidade

4.2.1 A nacionalidade mestiça e em construção

No Brasil, o território se formou antes de sua nacionalidade (MAGNOLI,


1997). Logo, com a instauração do Estado republicano se tornou vital definir qual a
sua base demográfica, ou seja, quem era o povo daquela nação (ZILLY, 1999, p. 9).
Isso posto, tornou-se evidente a caracterização dos brasileiros através dos ideais
republicanos, numa definição que deveria se dar através da constituição de uma só
língua, um só costume e uma só cultura, assim como uma homogeneidade física
(ZILLY, 1999, p. 9).
Assim sendo, Euclides através de sua narrativa permeada de cientificismo e
literalidade, constrói uma imagem de um Brasil profundo e híbrido. Demonstrando
que havia no Brasil a característica de um povo multiétnico que acabou sendo
desprezado pelas elites (ZILLY, 1999, p. 9):
A heterogeneidade étnica e a mestiçagem pareciam um estorvo rumo a uma
nação moderna, um estigma, motivo de pessimismo e autodesprezo. Se
fosse possível, as elites teriam eleito outro povo. Parece paradoxo, mas é
lógico: de acordo com as posições “científicas” da antropologia do fim do
século XIX, um patriota moderno devia encarar com ceticismo os seus
conterrâneos e futuros concidadãos de cor e desejar a sua exclusão da
cidadania. A falta de coerência e unidade étnica da nação-Estado parecia
pôr em perigo a jovem República. (ZILLY, 1999, p. 11).

Por essa razão, o literato põe em debate a possibilidade da existência de um


país “mal-formado, talvez in-formado ou de-formado” (FACIOLI, 2008, p.122),
retratando em sua obra a visão de território em que “[...] disparidades convivem sem
se resolverem, implicando um país de pólos e diferenças não-conciliáveis” (FACIOLI,
2008, p.122). E sendo, portanto, o embate de Canudos o esboço de “um país dividido
em vitoriosos e vencidos” (CUNHA, 2017, p.289).
68

Por meio da sua tendência ao exagero e intensificação dos detalhes e


características, ele expõe em sua escrita estratégica, repleta de elementos textuais
como paradoxos e antinomias (FACIOLI, 2008), a visão do brasileiro como um “tipo
abstrato” (CUNHA, 2017, p.95), resultado de “entrelaçamento consideravelmente
complexo” (CUNHA, 2017, p.95). Assim como de “condições históricas” (CUNHA,
2017, p.95) e de “disparidades climáticas” (CUNHA, 2017, p.95), já que por meio da
migração teriam se disposto em maior ou menor densidade ao longo do país.
Na conclusão de Euclides, o brasileiro não possue uma unidade de raça (ou
povo) e “não a teremos, talvez, nunca” (CUNHA, 2017, p.97). Nesse caminho,
seríamos frutos de contrastes únicos que haviam se entrelaçado por meio da
mestiçagem. Sendo a sociedade brasileira gerada através de “três raças formadoras”
(CUNHA, 2017, p.106), a citar: “os negros de Henrique Dias, os índios de Camarão e
os lusitanos de Vieira” (CUNHA, 2017, p.106).
Desse modo, Euclides afirma que “não há um tipo antropológico brasileiro”
(CUNHA, 2017, p.111). E que a correlação dessa mestiçagem em maior ou menor
grau aos demais fatores findou por “originar” um notório arranjo social, a do
curiboca (CUNHA, 2017, p.115).
Neste momento, depara-se com um Euclides extremamente positivista, que
demonstrava um pensamento carregado de um estigma social recorrente do período,
enunciando em um primeiro momento o sentimento das elites brasileiras, as quais
“não sentiam nenhuma ligação, nenhuma solidariedade com as populações não-
brancas do seu próprio país, das quais se envergonhavam.” (ZILLY, 1999, p. 12) e
buscavam nas correntes cientificas daquele período uma justificativa para seu
posicionamento.
Em seu diálogo, o filho do sertão adquiria agora uma fisionomia de uma
“mestiçagem extremada” (CUNHA, 2017, p.128), a qual refletia os aspectos “menos
favorecidos” (CUNHA, 2017, p.129) de suas raças originadoras.
Este fato se dá, como já citado anteriormente, devido as obras científicas
produzidas naquele período, referências indiretas a respeito das teorias do
darwinismo social e da luta de raças estão presentes em várias etapas de sua obra
(AMORY, 2009, p.171). Nesse sentido, o autor enxerga:
69

O mestiço é um intruso. Não lutou; não é uma integração de esforços; é


alguma coisa de dispersivo e dissolvente; surge, de repente, sem caracteres
próprios, oscilando entre influxos opostos de legados discordes. (CUNHA,
2017, p.129)

O autor visava, através dessas convicções, justificar tal diferenciação entre


esses dois espaços e comunidades. Segundo o escritor, seria aquele conflito “a
própria luta pela vida das raças, luta comovedora e eterna caracterizada pelo axioma
de Gumplowicz” (CUNHA, 2017, p.130).
Ainda assim, ao defrontar-se com o mestiço dos sertões, a sua narrativa
modifica-se, a obra se apresenta novamente em um contraste único: admitir que o
país não havia uma unidade de raça, uma unidade racional ou elevar os mestiços do
sertão e condenar a mestiçagem do litoral (AMORY, 2009, p.172). E, por meio desse
percurso, Euclides admite que a maioria da população se viu excluída do acesso aos
direitos básicos em uma sociedade que se pretendia igualitária (ZILLY, 1999, p. 13).
Para ele, havia um dilema como que se pode compreender pela seguinte
questão: “a normalidade do tipo antropológico que aparece de improviso,
enfeixando tendências tão opostas?” (CUNHA, 2017, p.130). nesse caminho, Euclides
busca compreender que sociedade era a sertaneja, como ela se configurava, que
brasileiro e economia se formavam no sertão. Questão que será melhor retratada na
próxima seção.

4.2.2 A sociedade sertaneja: fé, pecuária e nacionalidade

O sertanejo, tipo que o autor d’Os Sertões se dedica com afinco a descrever e
retratar por meio de uma linguagem poética e dramática, preenchida por oposições,
dicotomias e hipérboles, se apresenta para ele como uma incógnita que esteve
empenhado em decifrar.
Este árduo e conflituoso trabalho é apresentado ao leitor em toda a obra,
porém, de forma mais atenta em seu terceiro capítulo da segunda parte, “O
Sertanejo”. Nessa seção, Euclides inicia sua exposição da seguinte forma:
O sertanejo é, antes de tudo, um forte, não tem o raquitismo exaustivo dos
mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro
lance de vista revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o
desempenho, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É
70

desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo reflete no aspecto a


fealdade típica dos fracos (CUNHA, 2017, p.133) (grifo nosso)

Nasce assim, logo ao primeiro relance, um sujeito díspar, um “Hércules-


Quasímodo” que é, em mesma medida, um herói e um monstro, um indivíduo que
aparenta ser “permanentemente fatigado” (CUNHA, 2017, p.133). O homem do
sertão é um antagonismo por si só, já que, quando necessário, se revela ao lidar com
o cotidiano da vida sertaneja e transmuta-se ao mesmo passo do meio (CUNHA,
2017, p.134).
Sucedendo de um “cavaleiro chucro e deselegante” (CUNHA, 2017, p.134) a
um “campeão” que já atravessa dois terços de existência (CUNHA, 2017, p.134), o
sertanejo expressa a visão de um ser no entremeio de duas faces.
Dado que, na mesma medida que é um campeão, é também um "bárbaro",
devido ao seu contato de forma mais imediata com o ambiente (CUNHA, 2017,
p.155), existindo enquanto uma tradução dos caracteres do meio: “É inconstante
como ela [a natureza]. É natural que o seja. Viver é adaptar-se. Ela talhou-o à sua
imagem: bárbaro, impetuoso, abrupto.” (CUNHA, 2017, p.138).
Testemunha-se novamente, um Euclides que se apega a sua formação
cientificista que busca explicar o sujeito como fruto de uma flora disforme e um clima
ingrato. São essas condições do meio que se tornam os responsáveis por gerar
algumas premissas para que aquele indivíduo fosse moldado por meio de
circunstâncias sui generis. Porém, observa-se também, Euclides esboçar os caráteres
definidores da sociedade sertaneja.
Em primeiro destaque, tem-se a noção de um meio que através do
insulamento foi responsável pelos “atributos e hábitos avoengos, ligeiramente
modificados apenas consoante as novas exigências da vida” (CUNHA, 2017, p.122).
Deste jeito, compreende-se que o isolamento, aos quais foram submetidos, resultou
no potencial de conservação de tais atributos do sertanejo do norte.
Posteriormente, enxerga-se a relevância da atividade extensiva de pecuária, na
medida em que “não há sertanejo que não seja vaqueiro” (CUNHA, 2009, p.87). Dado
que essa é a alternativa que lhes foi subordinada através de um sistema econômico
fruto de uma “servidão inconsciente”:
71

O fazendeiro dos sertões vive no litoral, longe dos dilatados domínios que
nunca viu, às vezes. Herdaram velho vício histórico. Como os opulentos
sesmeiros da colônia, usufruem, parasitariamente, as rendas das suas terras,
sem divisas fixas. Os vaqueiros são-lhes servos submissos. Graças a um
contrato pelo qual percebem certa percentagem dos produtos, ali ficam,
anônimos — nascendo, vivendo e morrendo na mesma quadra de terra —
perdidos nos arrastadores e mocambos; e cuidando, a vida inteira, fielmente,
dos rebanhos que lhes não pertencem (CUNHA, 2017, p.140). (grifo nosso)

Essa relação entre os vaqueiros e os latifundiários funcionam com base em


uma troca, em razão que ele “de quatro em quatro bezerros, [...] separa um, para si. É
a sua paga.” (CUNHA, 2017, p.141). Desse modo de organização se origina uma
sociedade paupérrima, que está inserida em um sistema de sobrevivência ligada
totalmente as atividades da pecuária extensiva.
Andrade (2011), ao citar a chamada “civilização do couro” no sertão, já
destacava as características de uma sociedade pobre e com atividades econômicas
esporádicas voltadas ao autoconsumo. Tal pensamento reafirma muitas das
condições dessa sociedade descrita por Euclides quando buscou fazer uma análise da
questão agrária no Nordeste. Assim, afirmou:
Nestes sertões desenvolveu-se uma civilização sui generis. Aí os grandes
sesmeiros mantinham alguns currais nos melhores pontos de suas
propriedades dirigidos quase sempre por um vaqueiro que ou era escravo
de confiança, ou um agregado que tinha como remuneração a “quarta” dos
bezerros e potros que nasciam. Outras áreas eram dadas em enfiteuse, os
“sítios” que correspondiam a uma légua em quadro e eram arrendadas a 10
mil-réis por ano aos posseiros. As grandes distâncias e as dificuldades de
comunicação fizeram com que aí se desenvolvesse uma civilização que
procurava retirar do próprio meio o máximo, a fim de atender às suas
necessidades” (ANDRADE, 2011, p. 180).

Voltando a Euclides, observa-se que a associação desses dois agentes citados


acima, a atividade da pecuária e a servidão imposta, faz com que haja uma confusão
do seu trabalho com seu lazer e da sua cultura com sua economia. Dado que, até
mesmo seus curtos e minguados momentos de distração, unem-se ao seu ofício, suas
festividades como a vaquejada, a caça a um novilho fugitivo. Essas atividades são
capazes de transforma as áreas ressequidas da caatinga em uma arena de batalha
(CUNHA, 2017, p.142-143).
Essas vicissitudes atuaram enquanto condicionantes as suas vestes, seus
hábitos e tradições. Ou seja, todo o seu aspecto cultural, seu equipamento era
entalhado à feição do meio e de suas atividades, tendo em vista que “vestidos doutro
72

modo não romperiam, incólumes, as caatingas e os pedregais cortantes” (CUNHA,


2017, p.137).
Em um olhar mais atento, o autor afirma ser suas vestes são armaduras de
couro curtido, a qual “envolve ao combatente de uma batalha sem vitórias...”
(CUNHA, 2017 p.137). É um sujeito condenado a vida (CUNHA, 2017, p.137), o
reflexo de um “combate sem tréguas” (CUNHA, 2017, p.137).
Além disso, enxergamos ser a sua religião é “indefinida e variável” (CUNHA,
2017, p.156). Sua fé, mestiça como ele (CUNHA, 2017, p.153), permite um vislumbre
de um “primeiro amparo” (CUNHA, 2017, p.150) nos momentos de intempéries
trazidos pela seca. Uma religião é conjunto de crenças mantidas como tradição
familiar, ensinada aos filhos por seus pais.
Com isso, forma-se no sertão, uma sociedade que constrói uma série de
saberes com um misto de “lendas arrepiadoras” (CUNHA, 2017, p153) e “todos os
mal-assombramentos” (CUNHA, 2017, p154), com as rezas, as benzeduras, as
romarias piedosas e as missas (CUNHA, 2015). Apresenta-se como o “índice da vida
de três povos”, mas ao observar com mais afinco compreende-se que “todas as
manifestações complexas de religiosidade indefinida são explicáveis” (CUNHA,
2017, p.154) por meio da mestiçagem e do diálogo entre essas três culturas distintas.
É devido a isso que se forma em torno de Canudos uma sociedade com fortes
características religiosas e com uma organização social diferente, que possibilitava
um crescimento frenético:
Não surpreende que para lá convergissem, partindo de todos os pontos,
turmas sucessivas de povoadores convergentes das vilas e povoados mais
remotos. Diz uma testemunha: “Alguns lugares desta comarca e de outras
circunvizinhas, e até do Estado de Sergipe, ficaram desabitados, tal a aluvião
de famílias que subiam para os Canudos [...]” (CUNHA, 2017, p.192). (grifo
nosso)

Canudos torna-se o cosmos (CUNHA, 2017, p.199), um arraial em rápido


crescimento ocasionado pela procura de galgar o último estágio de sofrimento nesta
vida. Mas que, acima de tudo, é a uma estrada para se chegar ao céu:
Os ingênuos contos sertanejos desde muito lhes haviam relevado as estradas
fascinadoramente traiçoeiras que levam ao Inferno. Canudos imunda
antessala do Paraiso, pobre peristilo dos céus, devia ser assim mesmo –
repugnante, aterrador, horrendo (CUNHA, 2017, p.205).
73

Tais condições faziam com que se formasse ali uma comunidade quase que de
súbito. Um crescimento desregulado, onde se fazia até doze casas por dia e se
“formava, a tapera colossal parecia estereografar a feição moral da sociedade ali
acoutada.” (CUNHA, 2017, p.192).
Para Cunha, seu aspecto espacial refletia a desordem social, dado isso ele a
descreve:
Ausência de ruas, as praças que, a parte a das igrejas, nada mais eram que o
fundo comum dos quintais, e os casebres unidos, tornavam-no como
vivenda única, amplíssima, estendida pelas colinas, e destinada a abrigar
por pouco tempo o clã tumultuário de Antônio Conselheiro. (CUNHA, 2017,
p.195).

Nesse caminho, afirmava ser uma sociedade selvagem (CUNHA, 2017, p.197)
e de aparência deplorável (CUNHA, 2017, p.197), em que refletia em sua fisionomia
as condições em que foram gestadas.
Porém, e de forma contraditória, como é tudo em Euclides, o autor de Os
Sertões afirma esses costumes tão excêntricos e isolado do resto do país fez com que
no sertão do Nordeste se constituísse divorciado do restante do espaço nacional e sua
expansão só alcançou aquela comunidade após mais de séculos. Euclides ainda
afirma ser o sertanejo a “rocha viva de uma nacionalidade.” (CUNHA, 2017, p.562),
os quais representados pelos canudenses, foram amaldiçoados e arrebatados para
uma guerra “monstruosa e ilógica” (CUNHA, 2017, p.259).

4.2.3 Os Sertões e o saber geográfico

Ao aprofundar-se na obra de Euclides da Cunha, entende-se que, mediante


suas reflexões a respeito do território, ele habilmente redige “um grande ensaio
histórico de interpretação do Brasil” (FACIOLI, 2008 p.113). Dado que Os Sertões
elabora de forma singular uma nova ótica sob o espaço e a nação brasileira:
Dentre as formulações paradigmáticas sobre um projeto de Brasil, a voz de
Euclides da Cunha ressoa de forma duradoura desde o aparecimento de Os
Sertões (1902). Considerado como um autor fundante dos modos de tratar a
existência do sertão, em sua capacidade de organizar ditos eficazes por seu
poder de diagnose, estará posto como reflexivo de um momento de inflexão
no ato de nomear e valorar o sertão, como é feito no pensamento social
(SOUZA, 1997, p.95)
74

Entende-se que autor pensava e descrevia o espaço a partir de simbologias,


tendo em vista que “o espaço, contudo, resistiu e resiste como categoria de
interpretação” (MAIA, 2008, p.32). Nesse sentido, a figura do sertão é interpretada e
expressa enquanto uma imagem espacial e simbólica (SOUZA, 1997) e que ocupa um
papel importante para se entender o Brasil.
Portanto, o sertão não é apresentado somente como uma materialidade da
superfície terrestre, mas como uma realidade simbólica, uma verdadeira ideologia
geográfica. Para isso, Euclides usou uma narrativa que centrou grande parte de sua
reflexão na dimensão espacial. Bem próximo do que Moraes (2012) nos diz sobre o
discurso geográfico: “[...] um discurso valorativo referente ao espaço, que qualifica os
lugares segundo a mentalidade reinante e os interesses vigentes neste processo”
(MORAES, 2012, p.2)
Outro aspecto que pode ser observado, é que através da visão da Terra Ignota
(CUNHA, 2017, p.44), do hiato presente no território brasileiro que não foi registrado
nem nas cartas cartográficas (CUNHA, 2017, p.44), Euclides, em Os Sertões, constrói
um saber geográfico, no início do século XIX, um conhecimento que precede a
institucionalização da ciência no Brasil, por meio de uma narrativa carregada de
centralidade entre sociedade, território e Estado.
Com um olhar externo, muito aguçado e com uma narrativa poética e
científica, Euclides constrói um discurso geográfico, uma vez que “atribuem àquele
espaço juízos e valores que legitimam ações para transformá-lo” (MORAES, 2012, p.
3), configurando-se, portanto, em “projeto nacional para o país” (MORAES, 2012, p.
3).
Nesse caminho, ao fazer uma análise do sertão, e tentar incorporar essa
realidade a um projeto de modernização, Euclides constrói uma imagem da estrutura
socioespacial de um Brasil dividido em dois “Brasis”, entre litoral e sertão. Por isso, o
sertão em Euclides é visto como uma dimensão que precisaria ser incorporada à
nacionalidade.
Em razão disso, passa a debater a relação entre Estado, território e povo,
apontando, inclusive, os rumos (errados) que se tomavam naquele momento.
75

Tal perspectiva pode ser vista claramente quando Euclides analisa o combate
entre o exército republicano e os sertanejos de Canudos. Na visão do autor d’Os
Sertões, a guerra, enquanto uma manifestação do projeto nacional, colocou frente a
frente brasileiros contra brasileiros. Mas, principalmente, pois luz ao intuito
autoritário do Estado republicano que tentava “encobrir” a realidade desigual do
país, apresentando aquela parcela da população brasileira, não como desassistida e
isolada física e socialmente, mas como uma comunidade de retrógrados (CUNHA,
2017 p.131).
Para ele, tal condição torna-se clara na guerra de Canudos:
Decididamente, era indispensável que a campanha de Canudos tivesse um
objetivo superior à função estúpida e bem pouco gloriosa de destruir um
povoado dos sertões. Havia um inimigo mais sério a combater, em guerra
mais demorada e digna. Toda aquela campanha seria um crime inútil e
bárbaro, se não se aproveitassem os caminhos abertos à artilharia para uma
propaganda tenaz, contínua e persistente, visando trazer para nosso tempo e
incorporar à nossa existência aqueles rudes compatriotas retardatários
(CUNHA, 2017, p.496). (grifo nosso)

Em outra passagem, descreve:


A natureza toda quedava-se imóvel naquele deslumbramento, sob o
espasmo da canícula. Os próprios tiros mal quebravam o silêncio: não havia
ecos nos ares rarefeitos, irrespiráveis. Os estampidos estalavam, secos, sem
ressoarem; e a brutalidade humana rolava surdamente dentro da quietude
universal das coisas (CUNHA, 2017, p.283). (grifo nosso)

Compreende-se através do discurso de Cunha que o sertão desempenhou o


papel de um espaço real e imaginário, onde houve uma “hegemonização de políticas
e práticas territoriais do Estado ou de segmentos da sociedade.” (MORAES, 2012,
p.2). Em Canudos, observa-se por meio de Euclides que o Estado brasileiro avançou
levando o projeto civilizador contra o sertão e o povo sertanejo (CUNHA, 2017, p.
33).
Essa batalha sangrenta e fúnebre seria fruto de um projeto civilizatório da
República. Com isso, Cunha afirma que “a significação superior dos princípios
democráticos decaía – sofismada, invertida, anulada” (CUNHA, 2017, p.290). O
Estado buscava ser visto como “o guardião da soberania e o construtor da
nacionalidade” (MORAES, 2005, p. 34). Por isso, mesmo em meio a diversas
campanhas e derrotas, o exército persistia.
76

No entanto, aquilo continuou sendo um “espetáculo triste” (CUNHA, 2017,


p.494), o reflexo de como “a mão do exército ali se espalmara (CUNHA, 2017, p.499)
sob aquela sociedade. Este era “o esboço real do escândalo da nossa história”
(CUNHA, 2017, p.499).
A derrota de Canudos não significou apenas a extinção de uma comunidade, e
sim um modelo social autônomo, uma cultura e uma visão distinta do que pregava o
Estado brasileiro (ZILLY,1999). O sertanejo era, portanto, um herói nacional, e foi um
“exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo” (CUNHA,
2017, p. 574). Canudos era o reflexo da negligência do Estado, sendo “brutalmente
violenta, porque é um grito de protesto; sombria, por que reflete uma nódoa - esta
página sem brilhos.”, onde caia sob ela “deslumbramentos do futuro” de forma
“implacável e revolta” CUNHA, 2017, p.538)
O sertão, na perspectiva de Canudos, se converteu de fato em “um hiato”
(CUNHA, 2017, p.537), tornou-se “um vácuo. Não existia. Transposto aquele cordão
de serras, ninguém mais pecava.” (CUNHA, 2017, p.537). Canudos, representado por
esse conceito, tornou-se uma figura do imaginário da conquista territorial (MORAES,
2012, p.6).
Nesse caminho, além de desempenhar bem seu papel de “Narrador sincero”
(CUNHA, 2017, p.34) ao descrever o resultado do desencontro entre essas duas
sociedades antes alheias de si, Euclides traz uma intepretação dos “crimes das
nacionalidades” (CUNHA, 2017, p.577). Mas, principalmente, coloca o espaço, por
meio de uma descrição real e imaginária de uma formação territorial, na centralidade
do discurso.
Por isso, Cunha apresenta toda uma construção discursiva com forte
características de saber geográfico. A dimensão espacial nele passa a ser pensada de
forma real e simbólica, por meio do potencial revelador das palavras (MAIA, 2008, p.
31). O seu discurso tem uma forte índole geográfica passando a ser visto como forma
de legitimar a visão e a construção de uma identidade nacional no final do século
XIX e início do XX. Em razão disso, o discurso geográfico em Euclides da Cunha é
um caminho interpretativo para refletirmos não só a formação-nacional-territorial,
mas também, as bases para a construção de um pensamento geográfico no Brasil.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta monografia teve como seu objetivo analisar as principais contribuições do


livro Os Sertões de Euclides da Cunha para a interpretação da formação territorial do
Brasil. Em seu percurso atentou-se para a questão de que o diálogo entre a Geografia
e Literatura pode proporcionar a compreensão sobre os processos atuantes na
formação do espaço e da Nação brasileira. Entretanto destacou-se aqui que a
execução da mesma abre novos caminhos interpretativos para que possam ser
realizadas novas pesquisas nesse âmbito.
Neste sentido, obteve-se através desse primeiro contato com o discurso
geográfico inserido na literatura, componentes que possibilitaram responder as
indagações que orientaram o percurso trilhado. Em um aspecto geral, enfatiza-se que
o livro Os Sertões de Euclides da Cunha possui contribuições significativas para se
interpretar da formação territorial do Brasil. No intuito de se definir um povo a
Nação brasileira, o jornalista busca representar uma nacionalidade brasileira, que
para ele partia da premissa de um país mestiço que estaria dividido entre dois polos
opostos, nomeados como sertão e litoral.
Nesse sentido, esses dois pontos são vitais para se conceber quais foram e de
que forma a Nação foi moldada ao longo de um tempo histórico de organização.
Desse modo, ele destaca que para haver aquela relação especifica no território foi
essencial que houvesse a atuação de fatores centrais, sendo eles os geográficos,
sociais e econômicos.
Com tal compreensão, observam-se Euclides retratar de que forma ocorre essa
dinâmica de organização territorial do Brasil por meio de condições específicas.
Nesse momento, ele oscila entre sua base determinista, herdada do pensamento
europeu, e suas observações in loco.
Nesse caminho, o sertanejo, produto social daquele meio, se torna em mesma
medida um bárbaro e um herói, ou, em suas palavras um “Hércules-Quasímodo”
(CUNHA, 2017, p.133), transitando entre a visão de degenerado e representante do
que é a verdadeira nacionalidade.
78

Porém, indo além dessa questão, entendeu-se que o discurso apresenta uma
leitura de Brasil que volta o seu olhar para o interior. Euclides possibilita os
primeiros passos para se interpretar o que é a nação e o povo brasileiro com base na
perspectiva de formação territorial e organização espacial.
Observa-se que suas principais contribuições para o saber geográfico é trazer
uma representação espacial do Brasil. Nesse caminho, apresenta o sertão como uma
categoria geográfica, sendo descrito como real e imaginário; dando a essa realidade
uma imagem espacial e simbólica; também, apresenta um discurso que tem
determinações históricas e que permite uma representação espacial que passa a ser
uma forma de debate ideológico da nação. Resumindo, Euclides apresenta um
discurso geográfico baseado na representação espacial, colocando a ideia geográfica e
o debate ideológico de Estado Nação, povo e território como central.
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