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! Por MÁRIO MAESTRI "


Mário Maestri (56, rio-grandense, historiador)"
Autores de A linguagem escravizada. São Paulo: Expressão Cultural, 2003."

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Fazendas Públicas do Piauí: "
Sob o Jugo do Trabalho Sem Fim"
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A historiografia brasileira produziu narrativas idílicas sobre a produção pastoril-
latifundiária, sobretudo daquelas regiões que nasceram apoiadas na criação
animal. Atividade exercida pelo cavaleiro em campo aberto, o pastoreio extensivo
seria mais um jogo viril do que um trabalho penoso, e teria parido raça de homens
rijos, em geral livres. No extremo sul do Brasil, propôs-se que a atividade teria
praticamente ignorado o trabalho do negro escravizado, ensejando formação social
libertária, apoiada no gaúcho, o monarca das coxilhas.[1]"
A historiografia piauiense desdobrou-se igualmente nas descrições líricas sobre as
práticas criatórias que sustentaram a própria ocupação colonial daquela região,
ainda que tenha sido obrigada a maior contenção na negação da presença do
cativo nas lides campeiras. Em 1974, o historiador Carlos Eugênio Porto escrevia:
“Vaqueiros pretos e brancos diluíram-se nos campos infindáveis do Piauí,
respirando a doçura dos mesmos ares lavados pela chuva ou ressequidos pelo sol
quente do estio. Lutaram juntos, padeceram juntos”."
Em verdade, apenas a longa trajetória das fazendas públicas do Piauí teria
impedido a negação despudorada da contribuição sistemática e proposta da
dificuldade do cativo de desempenhar-se nas práticas pastoris, empreendidas sem
pejo pela historiografia tradicional sulina, apesar de enorme evidência documental
apontar em sentido contrário. Por séculos, a criação animal nas fazendas do
Estado do Piauí repousou totalmente nas costas do afro-descendente cativo."
Imensa extensão de terras"
Em 1711, ao morrer, o sertanista Domingos Afonso Mafrense legou aos jesuítas
imensas extensões de terras, ampliadas através de compras e novas doações.
Mais de cem léguas, bem exploradas e bem administradas pelos inacianos. Em
1760, com a expulsão da Companhia de Jesus, as fazendas incorporaram-se ao
patrimônio real. Então, foram divididas em três inspeções, dirigidas por inspetor, ao

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qual subordinava-se um criador por fazenda. Em 1822, as propriedades foram
denominadas de Fazendas da Nação ou Nacionais."
Em 1739, 164 cativos labutavam nas trinta propriedades. Em 1760, eles já eram
294. Após a incorporação pelo Estado, por quinze anos, as propriedades teriam
vivido à margem de controle rígido, ensejando melhores condições de existência e
expansão da população cativa. Em 1782, os cativos eram 489; em 1822, 685; em
1829, 830. Em 1871, 1.261 trabalhadores escravizados foram liberados, quando
da Lei do Ventre Livre."
Sobre as fazendas públicas piauienses pairou verdadeira legenda. Desde inícios
do século 19, registraram-se comentários sobre a baixa produtividade das
propriedades, em geral explicada como devida à má administração e à frouxidão
na submissão dos cativos. A historiografia regional retomou essa visão ao
apresentar essas fazendas como espécie de mundo ocioso, um verdadeiro oásis
escravista. Sob o influxo das concepções liberais, sugeriu-se que a ausência de
administração privada transformara essas unidades produtivas em mundo onde os
cativos, verdadeiros “funcionários públicos”, teriam conhecido estabilidade, pouco
trabalho, importantes privilégios."
Segredos profundos"
Solimar Oliveira Lima, professor do Curso de Economia da Universidade Federal
do Piauí, defendeu, no Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS, em
1994, dissertação de mestrado sobre as condições de vida da população cativa rio-
grandense. Triste pampa: resistência e punição de escravos em fontes
judiciais no Rio Grande do Sul [1818-1833] enriqueceu fortemente a
historiografia da escravidão e assentou forte golpe nas visões apologéticas do
cativeiro sulino, ao descrever com rigor as condições gerais de existência daquela
população.[2] Em 1998, o trabalho recebeu o prêmio Açorianos, na modalidade
ensaio, no principal certame literário rio-grandense."
Em 2001, Solimar Oliveira Lima apresentou, no mesmo Programa, tese de
doutoramento sobre a mão-de-obra escravizada nas fazendas públicas do Piauí,
projeto que trouxera consigo quando de sua chegada ao Sul, em inícios dos anos
1990. Para tal, mais uma vez, empreendeu sua investigação consciente da
necessidade de mergulhar profundamente na documentação primária, para
subtrair, através de crítica radical da mesma, os segredos profundos dos
fenômenos analisados, soterrados sob o desconhecimento, o esquecimento e as
narrativas ideológicas, de ontem e de hoje."
A próxima publicação da tese Braço forte: Trabalho escravo nas fazendas da
nação no Piauí: 1822-1971, na Coleção Malungo da Editora de Passo Fundo,
ensejará o desvelamento de aspectos essenciais daquela realidade, jamais
discutidos em forma orgânica pelos analistas do passado e do presente, que
reconstituem cenário radicalmente oposto às propostas de escravidão pública
gentil, ditada essencialmente pelos interesses dos seus funcionários, e raramente
pelas necessidades do Estado."

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Trabalhos sem fim"
No seu trabalho, Solimar Oliveira Lima registra a orientação mercantil e a atividade
incessante naquelas explorações, apresentadas como economias tendencialmente
naturais e escassamente produtivas. Após discutir os processos que deprimiam a
produtividade e a rentabilidade da produção pastoril – dificuldades geo-climáticas;
distância dos mercados; escassez de braços; desvio dos rebanhos, etc. –, enfatiza
a produção nas fazendas de mercadorias, produtos e serviços diversos, postos à
disposição do Estado ou empalmados por administradores e membros das classes
dominantes."
Lembra que, além de criar gado, as fazendas plantavam sistematicamente açúcar,
algodão, feijão, mandioca, milho, etc. e produziam cachaça, couros, farinha, sabão,
sebo, tecidos, etc. que supriam as necessidades das unidades produtivas, eram
vendidos nos mercados, terminavam nos depósitos públicos. Assinala que tendas
de ferreiros, marceneiros, etc. satisfaziam as necessidades internas das
propriedades e forneciam serviços e produtos aos poderes públicos."
A detalhada reconstituição empreendida apresenta-nos as fazendas públicas como
locus de múltiplas atividades que mantiveram a escravaria sob forte tensão
produtiva. Como assinalado, realidade histórica diametralmente oposta às
descrições românticas de cativos trabalhando pouco, comendo muito, constituindo
famílias estáveis e prolíferas, num doce far niente permitido por pretensa frouxidão
de administradores públicos desinteressados nos resultados produtivos das
propriedades públicas."
Criatórios servis"
A expansão vegetativa das fazendas públicas, que jamais compravam
trabalhadores, foi fenômeno assinalado tradicionalmente. Solimar Oliveira Lima
aponta o caráter intencional desse crescimento e o desvio incessante da mão-de-
obra das propriedades em proveito de outras esferas da sociedade escravista.
Sobretudo cativos jovens do sexo masculino eram enviados para trabalharem em
obras e estabelecimentos da região, para se desempenharem como tropeiros, para
acompanharem viajantes, para transportarem mercadorias."
Cativos e cativas partiam comumente, em grupos, para fora do Piauí, sobretudo
para o Maranhão e para a Corte. Apenas em 1842, procedeu-se a transferência
forçada para o Rio de Janeiro de nada menos do que cento e cinqüenta
trabalhadores, de ambos os sexos, nascidos nas fazendas públicas. O fato de que
os cativos ocupavam-se prioritariamente nos campos e fossem enviados para
trabalhar episódica ou definitivamente fora das fazendas, ensejava exploração
redobrada do trabalho da criança, da mulher e dos anciãos. "
Solimar Oliveira Lima destaca igualmente em seu trabalho o uso dos cativos em
múltiplas atividades e a clara divisão sexual tendencial do trabalho nas fazendas
públicas. Desde a mais tenra infância, os jovens destinavam-se aos trabalhos
pastoris, em forma privilegiada, e ao artesanato, secundariamente. Em geral, eles
se iniciavam nos trabalhos criatórios, a partir dos seis anos de idade, ao ocuparem-
se em funções pastoris pouco complexas."
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Trabalhos duros"
Desde meninas, as jovens destinavam-se à fiação do algodão e aos duros
trabalhos na roça. Porém, a assinalada expatriação de cativos determinava que as
mulheres interviessem também em atividades criatórias, como a construção de
benfeitorias; o amansamento das bestas; o trato de animais nos campos e nos
currais. As meninas começavam a trabalhar como “fiandeiras” aos quatro anos de
idade, o que segundo parece também servia para economizar os gastos de
vigilância com as crianças pequenas."
A descrição empreendida das práticas pastoris piauienses, significativamente mais
pesadas do que as conhecidas no sul do Brasil, não deixa espaço para enlevos
poéticos. O clima era inclemente, os terrenos irregulares, a vegetação agressiva. O
manejo dos animais nos campos e trabalhos, como a abertura, com facões, foices
e machados, dos caminhos, que levavam às aguadas golpeavam duramente os
trabalhadores, comumente estropiados devido a “quedas” e acidentes sofridos
“nas vaquejadas”."
Braço forte: Trabalho escravo nas fazendas da nação no Piauí: 1822-1971 põe
definitivamente fim ao mito do “patrão ausente”. Os criadores recebiam salário fixo
e a quarta sobre a reprodução dos rebanhos e esforçavam-se para comprimir os
gastos e expandir a produção das fazendas, a fim de obterem maiores ganhos,
legais e ilegais. Uma realidade que sobrecarregava de tarefas a limitada força de
trabalho, ensejando tensão permanente entre os administradores e os cativos."
Patrão ausente, feitor presente"
A documentação desvela fortes contradições entre os cativos e os criadores, com
fugas, roubos, atos de desobediência por parte dos primeiros e violências físicas
por parte dos segundos. Porém, a corrupção e os desmandos habituais dos
administradores levavam a que as autoridades administrativas superiores
acolhessem cativos que fugiam das fazendas para denunciar as irregularidades
praticadas. Assim, o senhor distante servia-se do cativo para controlar os
desmandos do feitor presente."
Historiadores têm defendido a capacidade do cativo de impor seus objetivos,
consolidar suas conquistas, moldar o cativeiro segundo suas necessidades,
transformando a ordem escravista em verdadeira sociedade contratual. A
documentação estudada apresenta realidade diversa, nas próprias fazendas
públicas, indiscutivelmente espaço onde o cativo conhecia maior autonomia e
melhores condições de existência, em relação às propriedades particulares.
Porém, mesmo neste contexto singular, o direito consuetudinário da escravaria à
quarta dos animais era habitualmente desrespeitado."
Por um lado, Solimar Oliveira Lima assinala que a prática seria comumente
restabelecida nos momentos de maior tensão, como nos casos de transferência
forçada de grupos importantes de cativos para províncias distantes, às quais os
mesmos procuravam opor-se com ameaças de fuga e de suicídio. Por outro,
demonstra o caráter restrito dessa concessão, mesmo quando respeitada, ao
estimar em um boi a remuneração anual do cativo. Em verdade, o valor total da
venda anual dos gados dos trabalhadores escravizados não superaria os 750 mil-

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réis, valor capaz de alforriar, no máximo, dois cativos da Nação, em meados do
século 19."
Poucas alforrias"
Os cativos não podiam enviar mais do que vinte cabeças de gado em cada tropa
enviada aos mercados. Assim sendo, os animais eram habitualmente abatidos
para serem consumidos ou apoiavam a pobre acumulação e circulação de bens
servis. Também nesse domínio, a documentação infirma as visões da manutenção
firme dos direitos adquiridos pela população escravizada. Apesar dos protestos dos
interessados, ao morrer, muitas vezes, os bens dos cativos retornavam ao erário
público. Não há igualmente registros de concessões de glebas aos núcleos
familiares."
A documentação revela que um número muito limitado de cativos alcançaram a
comprar a liberdade, certamente devido à baixa renda servil; à elevada avaliação
do preço das cartas de liberdade; à má vontade do administrador em recomendar a
libertação, já que perdia um trabalhador sem auferir qualquer lucro. Em inícios dos
anos 1820, para libertar-se, o cativo nacional devia ceder ao Estado o valor
equivalente a trinta bois prontos!"
Solimar Oliveira Lima registra a autonomia relativa das famílias cativas que,
segundo parece, moravam em senzalas mono-familiares. Assinala igualmente as
medidas de apoio à expansão vegetativa, como a concessão de melhor
alimentação para as crianças doentes no período das chuvas e a tradição de não
separar as mães dos filhos menores de oito anos. Apesar de tudo isso, era
surpreendentemente baixa a expansão demográfica das fazendas públicas, desde
o período jesuítico. De 1739 a 1743, registram-se os nascimentos de apenas seis
crianças. Na maioria dos casos, as famílias tinham apenas dois filhos."
Demografia e escravidão"
A tradição africana de longo aleitamento foi explicação historiográfica mirabolante
do crescimento servil limitado ou negativo que se originava, indiscutivelmente, nas
duras condições gerais de existência da população escravizada. Ali onde havia
estabilidade e autonomia produtiva mínima, os núcleos familiares de trabalhadores
escravizados reproduziam-se fortemente, ao igual que a população camponesa!
Um caso paradigmático ocorrido no Rio Grande do Sul nos ilustra essa realidade."
Em 1783, a administração colonial instalou, com 72 cativos, a Real Feitoria de
Linho-Cânhamo, no rincão do Canguçu, transferida em 1789 para as proximidades
de Porto Alegre. Em 1795, já tinham nascido 23 crianças na exploração. Em 1807,
a população cativa multiplicara-se por 3,3! A organização dessa população em
núcleos familiares estáveis ensejou famílias de quatro, cinco, seis, sete e oito
filhos. Em 1824, ao ser dissolvida a Feitoria, os cativos Marcos e Leonor, de 41 e
36 anos, tinham filhos de 15, 13, 11, 9, 7, 5, 3 e um ano. O rol de 1824 registra 295
cativos, entre eles, dezoito crianças de um ano. Ou seja, crescimento anual da
população de uns seis por cento! [3]"
Braço forte: Trabalho escravo nas fazendas da nação no Piauí: 1822-1971
assinala sobretudo o forte esforço produtivo multifacetado empreendido pela
população servil, desde a mais tenra infância, até esgotar suas forças, para então
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viver existência miserável, não raro como libertos agregados às fazendas nas
quais haviam nascido, sob a ameaça permanente de expulsão por parte dos
administradores."
Exploração parasitária"
Solimar Oliveira Lima sugere uma outra razão das apreciações negativas das
fazendas públicas do Piauí. As riquezas produzidas nas unidades, sob a forma de
mercadorias, produtos, serviços e trabalhadores, raramente eram reinvestidas nas
mesmas, que trabalharam habitualmente com instalações e equipamentos vetustos
e braços insuficientes, ensejando impressão exterior de unidades precárias,
decadentes e pouco produtivas."
Braço forte: Trabalho escravo nas fazendas da nação no Piauí: 1822-1971
descreve em detalhes a “existência miserável sem poesia” vivida, nas fazendas
públicas, por homens e mulheres acabrunhados de trabalhos, mal vestidos, mal
alimentados, mal tratados, sem autonomia real sobre suas vidas e sem
expectativas de progressão social ou material. Uma realidade em harmonia com o
caminho traçado para essa população quando da emancipação dos “escravos da
Nação”, em 1871, pelas autoridades públicas."
Após a concessão das 1.261 cartas de alforria, deliberou-se sobre as restrições à
liberdade e as condições de assalariamento dos manumitidos que permaneceriam
nas explorações, que seriam, certamente, em algo superiores às existentes
durante a escravidão. Então, os trabalhadores livres deveriam labutar diariamente
por dez horas, seis dias por semana, com a execução dos domingos e dias santos,
quando seriam executados apenas os trabalhos indispensáveis."
Para os trabalhadores adultos do sexo masculino, o salário definido foi de quatro
mil-réis mensais; para os do sexo feminino, um mil-réis a menos. E como o relho
não podia mais chegar legalmente às costas do produtor agora juridicamente
quase livre, prometia-se reclusão com metade da ração para os afastamentos
longos do trabalho, com a possibilidade dos renitentes serem enviados para
assentar praça nas forças armadas imperiais.
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MAESTRI, Mário.Sob o jugo do trabalho sem fim. [Prefácio]. LIMA, Solimar
Oliveira. Braço forte: fazendas da Nação no Piauí. 1822-1871. Passo Fundo: UPF
Editor, 2005. 181 p. (Malungo, 4)

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