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A CAMINHO DO HORTO: A POÉTICA DO ESPAÇO

NA OBRA DE AUTA DE SOUZA (1893-1901)

JUSSIER DANTAS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS
LINHA DE PESQUISA: ESPAÇOS DE MEMÓRIA, CULTURA MATERIAL E USOS
PÚBLICOS DO PASSADO

A CAMINHO DO HORTO: A POÉTICA DO ESPAÇO


NA OBRA DE AUTA DE SOUZA (1893-1901)

JUSSIER DANTAS

NATAL – RN
2021
JUSSIER DANTAS

A CAMINHO DO HORTO: A POÉTICA DO ESPAÇO


NA OBRA DE AUTA DE SOUZA (1893-1901)

Dissertação apresentada como requisito parcial para a


obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação
em História, Área de Concentração em História e
Espaços, Linha de Pesquisa Espaços de Memória,
Cultura Material e Usos Públicos do Passado, da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a
orientação do Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque
Júnior.

NATAL – RN
2021
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -
CCHLA

Dantas, Jussier.
A caminho do Horto: a poética do espaço na obra de Auta de
Souza / Jussier Dantas. - 2022.
162f.: il.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e


Artes, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2022.
Orientador: Durval Muniz de Albuquerque Júnior.

1. Auta de Souza - Dissertação. 2. Poesia - Dissertação. 3.


História - Dissertação. 4. Espaço - Dissertação. I. Albuquerque
Júnior, Durval Muniz de. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 94:821.134.2(813.2)

Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748


JUSSIER DANTAS

A CAMINHO DO HORTO: A POÉTICA DO ESPAÇO


NA OBRA DE AUTA DE SOUZA (1893-1901)

Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre no Curso
de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela
comissão formada pelos professores:

_________________________________________
Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior
(Orientador - UFRN)

__________________________________________
Profa. Dra. Margarida Maria Dias de Oliveira
(Titular - UFRN)

____________________________________________
Profa. Dra. Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz
(Externo - UFPI)

____________________________________________
Profa. Dra. Karlla Christine de Araújo Souza
(Suplente Externo - UERN)

Natal, ______ de _______________________ de 2021.


Aos meus pais, Angelina e Antônio, aos meus irmãos,
Josean e Luana, e às mais de seiscentas mil vítimas da
política genocida praticada no Brasil enquanto este
trabalho foi produzido.
“Subindo sua montanha, caminho do Horto, Auta de
Souza sentia a visão resplandecente da mística
cidade de Deus, fim da jornada. A travessia não se
apresentou como a viagem terrestre, difícil e dura
[…]. Auta [de Souza] era com a fé a mesma
entidade. Libertar-se da materialidade da vida era o
voo seguro e reto para o céu” (CASCUDO, 2008,
p.190, grifo nosso).
AGRADECIMENTOS

Durante a graduação em História aprendi que sempre devemos escrever


nossos trabalhos utilizando o pronome “nós”. Parece um clichê acadêmico, mas a
verdade é que muitas pessoas auxiliaram na produção da minha pesquisa e deste
texto. Assim, o “nós” que faço questão de utilizar nesta dissertação é uma forma de
evidenciar o apoio de todos aqueles que estiveram comigo durante esse processo.
Gostaria, portanto, de dedicar este momento para agradecer a essas pessoas e
espero não ser injusto esquecendo ninguém. Mas a memória tem seus lapsos e eu
peço desculpas desde já por qualquer esquecimento.
Agradeço à minha família por tudo: Angelina Ana e José Antônio - meus pais -,
Josean e Luana Dantas - meus irmãos. Agradeço aos amigos da universidade:
Amanda Acioli, Angélica Lopes, Clara Maria, Dickson Melo, Gabriel Barreto, Gabriela
Manna, Gustavo Freire, Isabel Chaves, Isis Campos, Paulo Hígor, Pedro Almeida,
Rafaela Mirlys, Rita Thainá e Victória Fonte Boa. Agradeço aos amigos de outros
momentos da vida: Caio Felipe, Carly Amanda, Christi Rocheteau, Gilvani Gomes,
Jailson Filho, Jean Araújo, Josefa Souza, Laércio Júnior, Rhayssa Dias, Rossana
Santos e Yago Mendes.
Agradeço aos professores e professoras que me inspiram nesse caminho que
decidi trilhar: Durval Muniz - meu eterno orientador e a pessoa que me fez ser um
verdadeiro historiador -, Margarida Dias - a pessoa que me apoiou e apoia nos
momentos mais diversos -, Juliana Souza - a pessoa que inspira a todos que a
conhecem -, Teresinha de Jesus - que aceitou o convite para a minha banca e fez
uma arguição que me deixou imensamente feliz -, Karlla Souza - que aceitou o
convite para minha banca como professora suplente mesmo sem me conhecer e que
foi imensamente atenciosa e cordial -, Ana Laudelina Gomes - uma pessoa
maravilhosa que minha pesquisa me permitiu conhecer, para mim ela é a maior
referência acerca de Auta de Souza que existe -, Francisco das Chagas Santiago -
que participou da minha banca de defesa e que me apresentou ideias e pontos que
encaminharam minha pesquisa para muito além do que eu imaginava -, Magno
Santos (que aceitou prontamente ser avaliador suplente na minha banca de defesa e
com quem aprendi muito na disciplina que pude cursar com ele no mestrado -, Luiz
Eduardo Suassuna - o eterno professor Kokinho, que me apresentou e forneceu
materiais inestimáveis, sem os quais não poderia ter realizado o meu trabalho.
Por fim, quero agradecer a Daliana Cascudo, Maria e Geralda, responsáveis
pelo Instituto Ludovicus - Casa de Câmara Cascudo, local onde pude realizar parte
significativa da minha pesquisa por meio das cartas do intelectual Luís da Câmara
Cascudo. Agradeço também ao curso de graduação em história da UFRN, a todos
os professores, colegas e aos grupos dos quais tive a alegria de participar,
principalmente ao grupo de pesquisa Cartografias Contemporâneas e ao grupo de
extensão Ensinar História Como Se Faz História. Agradeço também ao curso de
mestrado em história da UFRN, a todos os professores e colegas de curso pelas
experiências vividas e aprendizados compartilhados. Agradeço também à CAPES
pelos dois anos de bolsa concedida que me permitiram realizar o mestrado com um
pouco mais de tranquilidade. Por último, mas não menos importante, agradeço à
minha psicóloga Milena Rodrigues, pois sem o seu auxílio e suporte ao longo desses
anos eu não teria conseguido realizar absolutamente nada.
A CAMINHO DO HORTO: A POÉTICA DO ESPAÇO NA OBRA DE AUTA DE
SOUZA (1893-1901)

RESUMO

O objetivo deste trabalho é estudar os espaços presentes na vida e na obra da


poetisa potiguar Auta de Souza, mais precisamente a construção poética desses
espaços. Organizamos esses espaços em duas categorias: espaços interiores e
exteriores. Para isso, tomamos como base o conceito de espaço apresentado pelo
historiador Michel de Certeau, construindo um diálogo com as reflexões do filósofo
Gaston Bachelard. Assim, por meio da concepção de um espaço interior, buscamos
pensar a obra de Auta de Souza enquanto uma escrita de si, na qual a poetisa narra
a sua vida, suas relações com familiares e amigos, seus sentimentos, suas dores e
saudades. Por outro lado, a partir da noção de espaço exterior, procuramos
pesquisar os deslocamentos realizados por Auta de Souza em razão de sua
enfermidade - a tuberculose -, assim como os locais e as histórias de outras pessoas
registrados pela poetisa em seus versos. Por fim, buscamos pensar Auta de Souza
enquanto uma intelectual negra do século XIX do Rio Grande do Norte a partir da
discussão em torno dos espaços conquistados pela poetisa em meio a um universo
intelectual dominado por homens brancos. Utilizamos como fonte privilegiada o seu
único livro de poemas, Horto, assim como alguns outros trabalhos biográficos e
acadêmicos que apresentam a poetisa enquanto objeto de estudo.

Palavras-chave: Auta de Souza; Poesia; História; Espaço.


ON THE WAY OF THE HORTO: THE POETICS OF SPACE ON THE AUTA DE
SOUZA’S POETRY (1893-1901)

ABSTRACT

The objective of this work is to study the spaces present in the life and work of
poetess Auta de Souza, more precisely the poetic construction of these spaces. We
organize these spaces into two categories: interior and exterior spaces. For this, we
take as a basis the concept of space presented by the historian Michel de Certeau,
building a dialogue with the reflections of the philosopher Gaston Bachelard. Thus,
through the conception of an interior space, we seek to think Auta de Souza's work
as a self-writing, in which the poetess narrates her life, her relationships with family
and friends, her feelings, her pains and nostalgia. On the other hand, based on the
notion of exterior space, we sought to research the displacements made by Auta de
Souza due to her illness - tuberculosis -, as well as the places and stories of other
people recorded by the poetess in her verses. Finally, we seek to think Auta de
Souza as a nineteenth-century black intellectual from Rio Grande do Norte, based on
the discussion of the spaces conquered by the poetess in the midst of an intellectual
universe dominated by white men. We use as a privileged source her only book of
poems, Horto, as well as some other biographical and academic works that present
the poetess as an object of study.

Keywords: Auta de Souza; Poetry; History; Space.


ÍNDICE DE IMAGENS

Imagem 1 - Segunda edição do livro Horto, de Auta de Souza, contendo


24
ilustração da poetisa produzida por David Ossipovitch Widhopff ...................

Imagem 2 - Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, localizada em


84
Utinga, São Gonçalo do Amarante .................................................................

Imagem 3 - Imagem de Auta de Souza divulgada pela Federação Espírita


137
Brasileira ........................................................................................................

Imagem 4 - Imagem de Auta de Souza divulgada na página Espiritismo


137
Brasil ...............................................................................................................

Imagem 5 - Imagem de Auta de Souza presente no livro Horto: cem anos


138
de poesia, publicado pela Editora Auta de Souza no ano de 2000 ................

Imagem 6 - Auta de Souza ............................................................................. 139

Imagem 7 - Auta de Souza e João Câncio, o seu irmão mais novo, a quem
140
dedicou Caminho do Sertão ...........................................................................

Imagem 8 - Auta de Souza (1876-1901) ........................................................ 140

Imagem 9 - Lista de membros do Grêmio Polimático, grupo literário do qual


147
Auta de Souza era sócia efetiva, sendo a única mulher do grupo .................
ÍNDICE DE MAPAS

Mapa 1 - Locais registrados em poemas de Auta de Souza .......................... 77


ÍNDICE DE TABELAS

Tabela 1 - Poemas de Auta de Souza que apresentam o registro do local


75
onde foram produzidos....................................................................................

Tabela 2 - Óbitos por ano em Natal entre 1870 e 1878 .................................. 104
ÍNDICE DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Óbitos por idade e sexo em Natal entre 1870 e 1878 ................... 105
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 16
CAPÍTULO 1 - A IMENSIDÃO ÍNTIMA ............................................................ 41
CAPÍTULO 2 - A CAMINHO DO HORTO ........................................................ 71
CAPÍTULO 3 - OS ESPAÇOS DO FEMININO NO SÉCULO XIX ................... 113
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 149
FONTES E REFERÊNCIAS ............................................................................. 154
16

INTRODUÇÃO

“[...] poesia e ciência são entidades que não se podem confundir, mas
podem e devem deitar-se na mesma cama. E quando isso acontecer espero
que dispam as velhas camisas de dormir” - MIA COUTO

Este é um trabalho sobre imagens. Porém, não nos referimos aqui à noção de
imagem com a qual a maior parte das pessoas está acostumada a lidar
cotidianamente. Tratamos da construção de imagens por meio da escrita, mais
precisamente por meio da escrita poética. A escrita poética à qual nos referimos é
exatamente aquela estruturada em versos e estrofes, característica essencial da
forma narrativa apresentada nas fontes primárias deste trabalho.
Esta pesquisa é fruto de um encontro que, para nós, revelou-se profundamente
edificante tanto do ponto de vista intelectual quanto pessoal: o encontro da história
com a poesia. Infelizmente, o método acadêmico não nos permite desenvolver este
trabalho segundo a estrutura poética aqui abordada, isto é, sob a forma de versos e
estrofes. No entanto, a ciência histórica nos possibilita estudar este campo sensível
e riquíssimo de produção de conhecimento e de narrativas. Como nos apresenta o
escritor moçambicano Mia Couto na epígrafe presente nesta introdução, as
narrativas científica e poética não devem confundir-se, pois ambas apresentam
objetivos e regras específicas. Contudo, o encontro destes dois modos de escrever –
ou de descrever aquilo que as pessoas, o tempo e os espaços proporcionam às
nossas vidas – costuma produzir diálogos inestimáveis, tanto para a ciência quanto
para a poesia. A condição prévia para este encontro é que o mediador do diálogo se
dispa de qualquer preconceito, seja ele científico ou literário, para que a produção
narrativa seja profícua.
Assim, devemos ressaltar o nosso desejo de boa sorte para aqueles que
buscam ler este trabalho de forma puramente intelectual, procurando unicamente
conceitos, fatos históricos, rigor científico etc., pois acreditamos que será uma leitura
longa e maçante. No entanto, aos que estão abertos ao conhecimento, assim como
às experiências, sensações e sentimentos que as discussões sobre história e poesia
podem proporcionar, esperamos que possam aprender e desenvolver-se tanto
quanto nós em nossa jornada de produção desta pesquisa e deste texto. Diante
17

disso, está em suas mãos a escolha de como vestir-se-á, ou não, no momento em


que deitar-se nesta cama também.
O objetivo deste trabalho é abordar a pesquisa que desenvolvemos acerca da
vida e obra da poetisa1 Auta de Souza (1876-1901), um dos nomes mais conhecidos
e aclamados da literatura do estado do Rio Grande do Norte e um dos grandes
nomes da poesia brasileira. Mais precisamente, o nosso intuito ao longo deste texto
é desenvolver um estudo sobre a poética do espaço presente na obra dessa autora,
utilizando-nos das reflexões propostas pelo filósofo e poeta Gaston Bachelard e
tomando como marco inicial o ano de 1893, época em que Auta de Souza iniciou
sua produção poética, segundo nos apresenta seu manuscrito intitulado Dhálias2, e
como marco final o ano de 1901, data de morte da poetisa.
Quem primeiro procurou construir uma narrativa sobre Auta de Souza foi seu
irmão, o poeta e político Henrique Castriciano de Souza (1874-1947), descrevendo
seu próprio texto como “uma biografia simples”. Porém, esse texto tem sido a base
de todas as obras que tratam da vida e obra da poetisa, assim como será um ponto
de partida para a contextualização necessária, para este trabalho, sobre a vida
dessa autora. Nessa Nota3 biográfica, Henrique Castriciano declara que

Auta de Souza nasceu em Macaíba, pequena cidade do Rio Grande do


Norte, em 12 de setembro de 1876; educou-se no Colégio S. Vicente de
Paula, em Pernambuco, sob a direção de religiosas francesas; e faleceu em
7 de fevereiro de 1901, na cidade de Natal. Uma biografia simples como os
seus versos e o seu coração...4

1
A cientista social Ana Laudelina Ferreira Gomes prefere o termo “poeta” para qualificar Auta de
Souza. Segundo a pesquisadora, “[…] na história cultural das mulheres, a denominação poetisa
comumente esteve associada a uma condição de menoridade intelectual, agregando, por vezes, até
certo tom pejorativo do viés sexista. Embora hoje, tanto um quanto outra terminologia seja empregada
quase que indistintamente, valendo a opção pessoal do autor ou comentador, penso que a palavra
poeta nos ajuda a oferecer uma marca política ao problema” (GOMES, 2013, p.350). Optamos por
utilizar o termo “poetisa” por uma questão de norma culta da língua portuguesa, pois a relevância do
termo para este trabalho é dizer que Auta de Souza descreveu a si mesma e a seu mundo por meio
da poesia. Além disso, a palavra “poetisa” é para nós um termo que marca a representação de Auta
de Souza, ao mesmo tempo, tanto como mulher quanto como intelectual, aspecto que discutiremos
no terceiro capítulo deste trabalho.
2
SOUZA, Auta de. Dhálias. Manuscrito. (1893-1897).
3
CASTRICIANO, Henrique. Nota. In: SOUZA, Auta de. Horto. Natal, RN: EDUFRN, 2001.
pp.273-275.
4
Primeiro parágrafo da Nota produzida por Henrique Castriciano para a segunda edição do Horto,
publicada em 1910.
18

Seu nome era Auta Henriqueta de Souza, nascida no município de Macaíba no


dia 12 de setembro de 1876. O nome Auta foi escolhido por haver nascido no “Dia
de Santa Auta [de Colônia], virgem e mártir”5. O historiador, folclorista e biógrafo da
poetisa, Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), sobre este fato, declarou que “Auta,
Santa Auta é para mim Auta de Souza”6, concretizando, desse modo, as bases da
construção de uma aura mística, pura e imaculada perpetuada nas versões
biográficas da vida de Auta de Souza. Seus pais, Eloy Castriciano de Souza
(1842-1881), comerciante e político conhecido na região de Coité, antigo nome do
local onde fundou-se o município de Macaíba7, na segunda metade do século XIX, e
Henriqueta Leopoldina Rodrigues de Souza (1852-1879), conheceram-se por meio
de Francisco de Paula Rodrigues (?-1882), pai de Henriqueta Leopoldina e também
comerciante na região de Coité, sendo mais conhecido pelo apelido de “Chico
Lateja”, segundo nos informa Câmara Cascudo8. No entanto, Auta de Souza pouco
pôde desfrutar da companhia de seus pais: em 29 de junho de 1879 a pequena Auta
perderia a mãe9, com apenas 2 anos de idade, e em 15 de janeiro de 1881, com 4
anos de idade, perderia também o pai10, ambos vítimas da tuberculose. A morte, a
perda de pessoas queridas, a ausência da mãe e do pai marcariam profundamente a
sua vida e a sua obra, sendo percebidos traços desse luto em diversos poemas de
diferentes momentos de sua vida.
Eloy Castriciano de Souza, pai de Auta de Souza, nasceu da união entre Félix
José de Souza, também conhecido como Félix do Potengi Pequeno11, e Cosma
Francisca Bandeira de Melo12, filha de Francisco Pedro Bandeira de Melo, conhecido
agricultor e criador de gado da região de Coité13. Félix de Souza foi homem de
confiança de Francisco de Melo, tendo este casado uma de suas filhas com Félix de
Souza, selando assim as relações, tanto pessoais quanto comerciais, entre as duas

5
CASCUDO, 2008, p.21; p.46.
6
CASCUDO, 2008, p.21.
7
CASCUDO, 2008, p.39; GOMES, 2013, p.44.
8
CASCUDO, 2008, p.41.
9
CASCUDO, 2008, p.52; GOMES, 2013, p.62-63.
10
CASCUDO, 2008, p.53; GOMES, 2013, p.65.
11
CASCUDO, 2008, p.37.
12
CASCUDO, 2008, p.40, GOMES, 2001, p.37.
13
“Coité foi, até por volta de 1855, ‘um sítio de plantar e criar gado’. O ‘dono das terras’ de Coité, com
incontáveis fazendas, era justamente aquele bisavô de Auta, o ‘major’ Francisco Pedro, natural de
Pelada, hoje município de Taipú” (GOMES, 2001, p.37).
19

famílias. Essas relações foram também um meio de aproximação entre Eloy de


Souza e Francisco de Paula Rodrigues – outro conhecido comerciante da região e
que possuía negócios com Francisco de Melo –, fazendo com que os dois viessem a
criar uma parceria que deu origem à firma Paula, Eloy e Cia., no ano de 1871,
voltada à comercialização de algodão e açúcar em Macaíba e à distribuição de
mercadorias vindas de Pernambuco, como farinha de mandioca, arroz e milho14.
Dessa parceria resultaram bons negócios que tornaram ambos, Eloy de Souza e
Francisco de Paula, homens ricos, principalmente por meio do comércio do algodão
com a Inglaterra, uma vez que a Guerra de Secessão nos Estados Unidos
(1861-1865) – conflito realizado entre os estados do norte do país contra os estados
do sul – queimou os algodoais americanos e a cotação do algodão brasileiro subiu.
Sendo Macaíba um grande produtor de algodão no Rio Grande do Norte, passou
também a ser a capital econômica da província15.
Mas a relação entre Francisco de Paula Rodrigues e Eloy Castriciano de Souza
não se limitou ao campo comercial. Eloy casou-se, no ano de 1872, com Henriqueta
Leopoldina, filha de Francisco de Paula e Silvina Maria da Conceição (1828-1908),
cujo casamento também se deu no mesmo dia do casamento de Eloy e Henriqueta16
. Da união de Eloy Castriciano e Henriqueta Leopoldina, nasceram Eloy Castriciano
de Souza (1873-1959) – primogênito que recebeu o nome do pai –, Henrique
Castriciano de Souza (1874-1947), Irineu Leão Rodrigues de Souza (1875-1887),
Auta Henriqueta de Souza (1876-1901) e João Câncio Rodrigues de Souza
(1876-1933). Irineu Leão viveu apenas 11 anos, vindo a falecer no que foi descrito
por Henrique Castriciano como uma “noite de assombro”17:

Certa noite, subindo as escadas da casa do Arraial[, no Recife],


alumiado por um candeeiro de querosene, uma corrente de ar, ao
que se supõe, penetrou na chaminé ocasionando a explosão fatal.
Para fugir ao incêndio, [Irineu de Souza] desceu desvairado e
encontrando aberta a porta da sala de jantar, ganhou o quintal
envolto nas chamas que mais aumentavam com a velocidade da
carreira, e mais lhe inflamavam as vestes, e mais lhe queimavam a
carne até a exaustão que o prostrou por terra. [...] É com esse
pensamento, a que a tragédia deu relevo, que o recordo, e ficou

14
CASCUDO, 2008, p.44.
15
CASCUDO, 2008, p.39; GOMES, 2013, p.51.
16
CASCUDO, 2008, p.44; GOMES, 2013, p.56.
17
SOUZA, 2001, p.273.
20

também na lembrança dos irmãos mais moços e da santa Dindinha,


que lhe escutou os gemidos durante dezoito horas de inenarráveis
sofrimentos18.

Mais uma vez a morte mostra a sua face na vida da pequena Auta de Souza,
agora com 10 anos de idade, deixando seus vestígios ainda mais profundos na
memória e na sensibilidade de uma garota já marcada pela perda daqueles a quem
amava. A seu irmão, Irineu de Souza, dedicaria poemas cheios de dor e luto, como
Goivos, escrito em Nova Cruz (RN) no ano de 1897 e dedicado “À memória de
Irineu”19.
No entanto, ligada a esta presença da morte na vida da poetisa estava a
constante sombra da tuberculose, doença que lhe tirou sua mãe, seu pai e acometeu
seu irmão Henrique Castriciano, tornando-se realidade para a jovem Auta de Souza
no ano de 1890, quando esta contava 14 anos de idade. Sobre esse período, seu
irmão, Eloy de Souza, declarou que

[...] veio a moléstia terrível que não perdoou nem lhe deu esperanças
de voltar à vida almejada num sonho de mocidade. Por isso sua
poesia é triste, tristes seus pensamentos, tristes os dias que nunca
mais amanheceram na claridade de futuro promissor.
As noites de longas insônias eram marcadas por acessos de tosse
quintosa que a prostravam [sic] exausta20.

Apresentando sintomas da doença aos 14 anos de idade, Auta de Souza é


levada por sua avó materna “Dindinha [...] para consultas com médicos do Recife e
no diagnóstico os pulmões apareciam fracos, anúncios dos primeiros sinais de uma
possível tuberculose. A família a tirou do Colégio”21. O acontecimento marcaria a
vida de Auta de Souza a ponto de ela dedicar diversos de seus poemas a amigas do
colégio, assim como procurou dedicar sua obra “Às boas irmãs do Colégio da
Estância, em Pernambuco, almas formosas e santas que me educaram o coração e
o espírito, ofereço o que há de mais puro nestes singelos versos”22. A saída do
colégio e a viagem de Recife até Macaíba marcaram uma nova fase da vida da

18
SOUZA, 2008, p.77-78.
19
SOUZA, 2001, p.86.
20
SOUZA, 2008, p.78.
21
GOMES, 2013, p.73.
22
SOUZA, 2009, p.27.
21

poetisa, na qual passou a realizar constantes “peregrinações pela terra natal na


esperança de melhoras”23.
Buscamos, neste trabalho, estudar um pouco mais a fundo esses espaços
vivenciados e descritos por Auta de Souza durante toda a sua vida, mas
principalmente nessas “peregrinações”, como descreve Eloy de Souza, realizadas
pela autora “na esperança de melhoras”. Seu livro seria, segundo Eloy de Souza,
“um roteiro dessa Via Sacra, em que, se não logrou saúde, testemunhou a comovida
consagração dos seus versos entoados para adormecer crianças ao embalo das
redes, ou diante dos altares nos terços do mês de maio”24.
A doença, a morte, a saudade, o luto, a tristeza, o sofrimento, o choro, as
referências a pássaros e à alma humana são elementos recorrentes em muitos dos
poemas de Auta de Souza, levantando, até hoje, debates quanto à caracterização
de sua poesia como de caráter simbolista, místico ou romântico. Realizaremos uma
discussão sobre esse assunto no segundo capítulo deste trabalho, procurando
abordar alguns temas presentes em sua obra e, principalmente, abordaremos o
debate existente em torno da popularidade alcançada pela poetisa e quais os
reflexos disso nas produções biográficas que têm sido realizadas sobre ela.
Ao iniciar sua produção poética em 1893, aos 16 anos de idade, sua vida e
seus textos estavam marcados, portanto, por acontecimentos como a morte de sua
mãe, em 1879, e de seu pai, em 1881, vítimas da tuberculose; a partida dos cinco
pequenos Castricianos de Souza para Recife com sua avó materna, Dindinha, logo
após a morte de seus pais; a morte do avô materno, Francisco de Paula Rodrigues,
em 188225, devido a uma bronquite que o sufocava em acessos de tosse angustiada
26
; a morte de seu irmão, Irineu Leão de Souza, “queimado numa explosão de
candeeiro de querosene, a 17 de fevereiro [de 1887]”27; alguns anos de alegria e
tranquilidade, entre 1888 e 1890, estudando no Colégio de São Vicente de Paula,
em Recife, instituição dirigida por religiosas francesas, onde é a primeira aluna,
obtendo quase a totalidade dos prêmios escolares28; e, por fim, o diagnóstico da

23
SOUZA, 2008, p.80.
24
SOUZA, 2008, p.80.
25
CASCUDO, 2008, p.32.
26
CASCUDO, 2008, p.55.
27
CASCUDO, 2008, p.32.
28
CASCUDO, 2008, p.32.
22

tuberculose no ano de 1890 e o consequente abandono dos estudos, sendo


obrigada a retornar ao município de Macaíba, no Rio Grande do Norte, passando a
realizar constantes deslocamentos pelo estado em busca de condições climáticas
adequadas à sua saúde.
Auta de Souza foi, portanto, “a única menina entre os cinco filhos”29 da família
Castriciano de Souza. Acerca da infância de Auta de Souza, Eloy de Souza, seu
irmão mais velho, chegou a declarar que: “[...] [Minha mãe] tomando Auta, nascida
na minha ausência, dos braços de minha tia Cordina, disse-me com alegria
comovida: - ‘Esta é sua irmãzinha’. E eu repliquei: - ‘Tem uns olhos vivos demais.
Nunca lhe quererei bem!’ E Deus sabe o bem que lhe quis”30. Henrique Castriciano,
por sua vez, declarou que “Recordando cenas da meninice, vejo-a neste momento,
aos oito anos, curvada sobre as páginas da História de Carlos Magno[...]. Lia-o no
campo, os olhos ingenuamente maravilhados, para o mais ingênuo dos auditórios,
composto de mulheres do povo e de velhos escravos [...]”31. No contexto familiar,
portanto, não nos parece muito distante a ideia de que

O nascimento de Auta encantou a todos. Interrompia a série dos três


meninos. Era a “princesinha”, a favorita dos pais e avós. Apenas
Eloy, com três anos, quando a irmã lhe foi apresentada, confessou:
“Tem os olhos muito vivos! Não quero bem a ela”! Seria o mais
apaixonado de todos. Magrinha, calada, [...] de pele clara, um
moreno doce à vista como veludo ao tato. A mãe adorava-a. 32

É preciso levar em consideração, no entanto, que esse depoimento nos é


apresentado por Câmara Cascudo, biógrafo da poetisa. Desse modo, embora as
narrativas de Cascudo acerca das relações de familiares e de amigos com Auta de
Souza nos pareçam bastante verídicas – sendo ressaltadas quando levamos em
consideração o carinho e a admiração expressados nos depoimentos de seus
irmãos –, o contato que Cascudo teria estabelecido com Auta de Souza, ao que se
sabe, deu-se somente quando o folclorista ainda era bebê, segundo o próprio nos
conta:

29
CASCUDO, 2008, p.46.
30
SOUZA, 2008, p.22.
31
SOUZA, 2001, p.273.
32
CASCUDO, 2008, p.51.
23

Em princípios de 1900, Auta foi visitar sua amiga Donana[, Ana Maria
da Câmara Cascudo], casada com o tenente [Francisco Justino de
Oliveira] Cascudo, do Batalhão de Segurança, à casinha de porta e
janela na Rua das Virgens. Suspenso ao ombro de minha mãe, eu
chorava sem consolo, impaciente pelo leite que a goma de araruta
engrossava. Minha mãe equilibrava o papeiro no fogão de três bocas,
aturdida pelo berreiro disfônico. Auta segurou-me, acomodou-me,
falando-me, passeando no corredor. O choro mudou de tom,
espaçou-se, desapareceu33.

Produções biográficas sobre Auta de Souza como a obra de Câmara Cascudo


nos proporcionam informações importantes para pensarmos o contexto vivenciado
pela poetisa. No entanto, temos em mente o fato de que essas obras foram
produzidas quase sempre por pessoas que não a conheceram pessoalmente e que
tiveram contato direto apenas com seus familiares e/ou amigos. Dessa forma, os
aspectos mais íntimos e psicológicos apresentados nessas obras biográficas serão
sempre apontados com algumas ressalvas, sendo relevantes do ponto de vista da
narrativa, porém, algumas vezes duvidosos quanto à empiria.
Ressaltamos, contudo, a importância, para esta pesquisa, dos trabalhos
biográficos existentes sobre Auta de Souza. Entre esses, o mais conhecido e
divulgado é a biografia escrita por Câmara Cascudo, publicada em 1961, intitulada
Vida Breve de Auta de Souza: 1876-190134. Pesquisa empreendida por Cascudo
durante o ano de 1958, na qual apresenta informações sobre a vida íntima, familiar,
social e intelectual de Auta de Souza desde seu nascimento até a sua morte, além
do contexto no qual seus poemas foram produzidos e as ressonâncias de sua obra
no estado do Rio Grande do Norte e em todo o Brasil. Cascudo também traz a
público alguns poemas presentes no manuscrito produzido por Auta de Souza, mas
que ainda não haviam sido publicados até o ano de 1961.
No entanto, o texto biográfico mais antigo sobre Auta de Souza e digno de
maior notoriedade, sendo citado pelos demais escritos que tratam da vida da
poetisa, é a Nota escrita por Henrique Castriciano, seu irmão, em “Paris, 4 de agosto
de 1910”35, para a segunda edição do Horto. Esta segunda edição, reorganizada e

33
CASCUDO, 2008, p.23.
34
CASCUDO, Luís da C. Vida Breve de Auta de Souza: 1876-1901. Natal/RN: EDUFRN, 2008.
35
SOUZA, 2001, p.275.
24

reeditada pelo próprio Henrique Castriciano36, teve sua impressão realizada na


França, pela tipografia Aillaud, Alves & Cia, no ano de 191037, contendo ilustrações
produzidas pelo artista franco-russo David Ossipovitch Widhopff (1867-1933)38.

Imagem 1 - Segunda edição do livro Horto, de Auta de Souza, contendo ilustração da


poetisa produzida por David Ossipovitch Widhopff39.

Por meio de sua Nota, presente nessa segunda edição do Horto, Henrique
Castriciano registra seu depoimento “tão ensopado de ternura, em que evoca a
poetisa morta há nove anos”40. O Horto é apresentado por Castriciano como “a

36
CASCUDO, 2008, p.134; GOMES, 2013, p.167.
37
Câmara Cascudo registra na biografia de Auta de Souza que a publicação desta segunda edição do
Horto teria sido realizada no ano de 1911 (CASCUDO, 2008, p.34). No entanto, em crônica publicada
no jornal A República em 23 de fevereiro de 1943, Cascudo escreve que esta mesma edição teria
sido publicada no ano de 1910. (CASCUDO, 2008, p. 118). A cientista social Ana Laudelina Gomes
registra a publicação desta segunda edição no ano de 1910 (GOMES, 2013, p.96), ano também
apresentado na Imagem 1 presente neste trabalho.
38
CASCUDO, 2008, p.34; GOMES, 2013, p.96; FARIAS, 2013, p.119.
39
Disponível em:
<https://i2.wp.com/www.brechando.com/wp-content/uploads/2015/10/horto-auta-de-souza-2-edico-19
10-16409-MLB20119733531_062014-F.jpg>. Acesso em: 29 abr. 2020.
40
CASCUDO, 2008, p.101.
25

história de uma grande dor”, uma obra na qual “Auta, sem pensar e sem querer,
reproduzira a lápis [...] as emoções mais íntimas de nossa gente; encontrara no
próprio sofrimento a expressão exata do sofrimento alheio. [...] Pode-se [...] dizer
sem exageros que o sofrimento foi o seu melhor guia”41. É esta a imagem de Auta de
Souza comumente reproduzida por quase todos aqueles que procuraram escrever
trabalhos biográficos acerca da poetisa. Ressaltamos que o sofrimento será também
um elemento relevante para pensarmos a poética do espaço presente na obra da
autora, pois, como ela nos apresenta em um dos primeiros versos de seu livro, no
poema que carrega o título da obra, “Ele é a escada do Paraíso…”42. No entanto, o
sofrimento é apenas um dos sentimentos expressados por Auta de Souza que
procuramos utilizar em nossa pesquisa. Uma vez que a sua poesia é profundamente
marcada pelo pensamento católico, aspectos como pureza, inocência, resignação,
cuidado, martírio, entre outras imagens comuns ao pensamento cristão de uma
forma geral, são muito presentes e marcantes em seus versos. Esse é o principal
elemento utilizado para a caracterização de Auta de Souza como uma poetisa
mística43, não apenas pelo conteúdo de seus escritos, mas também por sua
formação intelectual e literária, segundo nos apresenta Henrique Castriciano em sua
Nota, ao revelar que a poetisa, em seus

[...] últimos anos, as horas que podia dispensar ao convívio dos


autores, consagrava-as aos místicos, a Th. de Kempis, a Lamartine,
a S. Theresa de Jesus. A estes associava Marco Aurélio, cujos
Pensamentos muito concorreram para aumentar a tolerância e a
simpatia com que encarava os seres e as coisas44.

Ainda em relação às obras de caráter biográfico sobre Auta de Souza,


devemos ressaltar também a importância dos escritos da cientista social Ana
Laudelina Ferreira Gomes. Pesquisadora da vida e obra de Auta de Souza e autora
de importantes trabalhos sobre o assunto, como a Introdução para um estudo da
vida e obra de Auta de Souza45 – publicado na quinta edição do Horto, lançada pela

41
SOUZA, 2001, p.274.
42
Poema intitulado “No Horto” (SOUZA, 2001, p.65).
43
SOUZA, 2001, p.274; CASCUDO, 2008, p.28; GOMES, 2013, p.24.
44
SOUZA, 2001, p.274.
45
GOMES, Ana Laudelina F. Introdução para um estudo da vida e obra de Auta de Souza. In:
SOUZA, Auta. Horto. Natal/RN: EDUFRN, 2001, p.21-61.
26

Editora da UFRN em 2001 –, o livro Auta de Souza: a noiva do verso46 – produzido a


partir da tese de doutorado defendida pela cientista social em 2000 na PUC-SP47 – e
o videodocumentário Noite Auta, Céu Risonho48 – DVD contido na obra Horto, outros
poemas e ressonâncias49, no qual estão inseridos, como bônus, a tese de doutorado
de autoria de Ana Laudelina Gomes e a digitalização do manuscrito Dhálias, de Auta
de Souza. Algumas dessas produções da pesquisadora apresentam, além de
estudos mais recentes sobre a vida e obra de Auta de Souza, alguns poemas
inéditos retirados do manuscrito Dhálias e que ainda não haviam ido a público nem
mesmo na biografia produzida por Câmara Cascudo.
As publicações de Ana Laudelina Gomes nos foram essenciais, assim como a
biografia escrita por Câmara Cascudo, a Nota de Henrique Castriciano e outros
textos acerca de Auta de Souza, como o estudo sobre a poetisa escrito pelo
advogado e político Jackson de Figueiredo e publicado em 192450, para que
pudéssemos conhecer mais sobre Auta de Souza, de modo a construir um contexto
necessário para nossas reflexões acerca da poética do espaço na sua obra. Deste
modo, concordamos com a historiadora Margarida de Souza Neves acerca da
relevância do contexto para pensarmos qualquer documento – principalmente os
documentos escritos, objetos de estudo desta pesquisa –, uma vez que “essa
contextualização não é uma simples moldura factual que permite situar o texto no
tempo cronológico, mas é expressão do tempo histórico, denso, complexo,
contraditório e, de certa forma, constitutivo do texto”51.
Procuramos realizar leituras dessas produções biográficas acerca de Auta de
Souza de forma a compreender melhor o contexto no qual a poetisa estava inserida.
Da mesma forma, procuramos também encontrar apontamentos, ideias e pontos de
vista que se mostrem convergentes, assim como aqueles diametralmente opostos,
que esses biógrafos apresentam, buscando ter uma ideia mais clara em relação às

46
GOMES, Ana Laudelina F. Auta de Souza: a noiva do verso. Natal/RN: EDUFRN, 2013.
47
GOMES, Ana Laudelina F. Auta de Souza: representações culturais e imaginação poética. Tese de
doutorado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC de São Paulo, abril
2000.
48
GOMES, Ana Laudelina F. (autoria e direção geral). Noite Auta, Céu Risonho. Natal/RN:
TVU-RN/NCCEN/Patrocínio BNB, 2008. 1 DVD.
49
SOUZA, Auta. Horto, outros poemas e ressonâncias: obras reunidas. Natal/RN: Editora da
UFRN, 2009.
50
FIGUEIREDO, Jackson de. Auta de Souza. Natal/RN: Sebo Vermelho, 2012. (Edição fac-similar)
51
NEVES, 2004, p.12.
27

condições vivenciadas por Auta de Souza durante a produção de seus poemas. Sob
esse intuito, temos em mente que essas produções biográficas apresentam uma
perspectiva externa sobre a vida e obra da poetisa, diferentemente dos seus
escritos, que apresentam uma perspectiva interna. Utilizaremos essas perspectivas
para pensarmos os espaços que abordaremos neste trabalho.
Um dos primeiros elementos que devemos ressaltar nesses trabalhos
biográficos produzidos sobre Auta de Souza é o caráter controverso das descrições
empreendidas acerca da poetisa. Por meio dos estudos que temos realizado a partir
dessas biografias, nos chamaram atenção as características algumas vezes
contraditórias atribuídas a ela, principalmente no que diz respeito à sua
personalidade e às suas relações familiares e de amizade. A poetisa em alguns
momentos é apresentada como uma jovem “Magrinha, calada”52, “modesta, esquiva
às vaidades do mundo”53, “a tristesinha [sic], a pobresinha [sic]”54, porém, em outras
ocasiões, é apresentada como alguém que “convivia alegremente com as moças de
sua cidade, conversando, confidenciando, acompanhado-as nos passeios [...],
festinhas domésticas, os ‘assustados’ com danças, quadrilhas, valsas e schottischs”
55
, que “montava bem e era corajosa”56. Entendemos que todas as pessoas
apresentam em si um misto de pensamentos, atitudes e sentimentos que dependem
do contexto que vivenciam, pois “As pessoas são seres complexos”57. Assim,
partindo dos escritos produzidos por Auta de Souza, ou seja, de seus poemas,
procuramos estabelecer um diálogo com essas produções biográficas que
apresentam tanto aspectos psicológicos e subjetivos acerca da poetisa quanto o
contexto no qual ela estava inserida, pois entendemos que não nos seria possível
construir um contexto da vida de Auta de Souza utilizando unicamente os escritos
biográficos produzidos sobre ela, ainda mais quando levamos em consideração o
fato de estes terem sido escritos anos após a sua morte.
Contudo, ressaltamos que o intuito deste trabalho não é produzir mais uma
biografia sobre Auta de Souza. Nossa pesquisa volta-se para a obra deixada pela

52
CASCUDO, 2008, p.51
53
SOUZA, 2008, p.79
54
FIGUEIREDO, 2012, p.29.
55
CASCUDO, 2008, p.63; GOMES, 2013, p.78.
56
SOUZA, 2008, p.82.
57
TUAN, 2015, p.12.
28

poetisa. Desse modo, nosso intuito é estudar a poética do(s) espaço(s) presente(s)
na poesia auteana. Mas o que podemos conceber como uma poética específica da
obra de Auta de Souza? Sobre isso, Nalba Leão escreveu que:

A poética de Auta de Souza é, portanto, uma poética identificada,


principalmente, com a alma do povo, a partir do momento em que
aderiu às devoções simples, ingênuas e populares, como as tardes
de novenas, o mês de maio, a noite de Natal, a oração diante de um
presépio, ou aos pés da Virgem Maria58.

Ana Laudelina Gomes discorda dessa pretensa identificação entre a obra de


Auta de Souza e a alma do povo, justificando que “Assim, a palavra poética [de Auta
de Souza], ‘palavra exaltada pela vontade de escrever’, acabou sendo perspectivada
como ritual de ascese para uma comunicação mística”59. A pesquisadora declara
ainda que: “Pensando na sua relação com nossas tradições culturais, a poética de
Auta de Souza poderia expressar aspectos de nossa brasilidade [...] por guardar
afinidades com uma forma específica - à brasileira - de vivência de uma religiosidade
sincretizada [...]”60. Sobre o assunto, o poeta e crítico literário potiguar Esmeraldo
Homem de Siqueira declarou, em entrevista concedida a Nalba Leão, em ocasião de
sua dissertação, que

O gênero principal dos versos de Auta de Souza é o gênero lírico,


pois o lirismo amoroso brotava de seu coração cheio de ternura,
cheio de amor. Mas o lirismo de Auta de Souza é, sobretudo, o
lirismo religioso, porque ela era profundamente sincera na sua
religião61.

Já o crítico e historiador da literatura brasileira Alfredo Bosi escreveu, em carta


para Nalba Leão, que “[...] há componentes religiosos, provindos do catolicismo
brasileiro tradicional, e componentes populares na poética de Auta de Souza [...]”62.
Desse modo, percebemos que as concepções literárias acerca da poética de Auta
de Souza estão marcadas principalmente pela religião católica e pelos componentes
da cultura popular. No entanto, concebemos que a poética de Auta de Souza

58
LEÃO, 1986, p.1.
59
GOMES, 2013, p.203.
60
GOMES, 2013, p.172.
61
SIQUEIRA apud LEÃO, 1986, p.275.
62
BOSI apud LEÃO, 2013, p.292-293.
29

apresenta um aspecto interior, ligado à subjetividade e à história pessoal da poetisa,


e um aspecto exterior, ligado ao contexto e aos espaços vivenciados por ela.
Trataremos melhor desses aspectos da poética auteana quando abordarmos a
concepção dos espaços que apresentaremos a seguir acerca da obra dessa autora.
Devemos frisar que o foco deste trabalho está voltado às imagens construídas
por Auta de Souza em seus textos poéticos e aos espaços que ela evoca,
procurando descrever aquilo que vivenciava e sentia, sejam esses espaços físicos –
materiais, palpáveis – ou subjetivos – metafóricos, da ordem do devaneio. A partir
dos escritos de Auta de Souza, buscamos estudar as influências do espaço e do
tempo nos quais estava inserida naquilo que ela (d)escrevia. Os trabalhos
biográficos produzidos sobre Auta de Souza nos são essenciais nesse sentido, pois
nos proporcionam um conhecimento mais amplo sobre o contexto vivenciado pela
poetisa: sua família – e as relações pessoais e políticas desses indivíduos com
outras pessoas de seu tempo –, seus amigos, os espaços que frequentou e os
meios que utilizou para produzir e publicar a sua obra.
Ao tratarmos do conceito de espaço, concordamos com o historiador francês
Michel de Certeau (1925-1986), que caracteriza o espaço como um lugar praticado63.
Ou seja, a rua é transformada em espaço pelos pedestres que nela vivenciam sua
rotina cotidiana, assim como a casa é transformada em espaço pelas pessoas que a
habitam. Os espaços estão, portanto, marcados pela subjetividade de quem os
vivencia, e passam a ser vistos, vividos e narrados de uma forma particular por
aqueles que com eles desenvolvem uma relação. No entanto, devemos ressaltar que
quando falamos em espaço não estamos tratando apenas de um recorte geográfico.
Entendemos que os espaços podem ou não apresentar um recorte físico, todavia, há
sempre um caráter imaginário e afetivo que os torna mais difíceis de serem
delimitados. Como exemplo disso, podemos pensar em quando alguém está
chateado ou estressado e nos pede para respeitar o seu espaço, caso em que
podemos entender que há um espaço – e um tempo – particular, subjetivo e de
introspecção no qual a pessoa não deseja ser incomodada, não havendo, porém,
necessariamente um espaço físico. Michel de Certeau caracterizou essas duas
formas de espaço sob os conceitos de espaço geométrico e espaço existencial,

63
CERTEAU, 2013, p.184.
30

sendo o primeiro marcado por uma “univocidade geométrica” – ou seja, um caráter


unicamente geométrico – e o último por uma “experiência existencial” – isto é, uma
relação com o mundo a partir da imaginação e da percepção64.
Embora as biografias sobre Auta de Souza nos proporcionem ideias mais
claras e precisas acerca de alguns momentos e de algumas pessoas que marcaram
a vida da poetisa, é somente a partir de seus poemas – único registro produzido e
deixado por ela – que podemos ter conhecimento da sua forma de ver, vivenciar e
contar a própria vida. Desse modo, os textos de Auta de Souza são, para os
objetivos deste trabalho, a fonte mais apropriada para analisarmos o que
caracterizamos como um espaço íntimo próprio de sua poesia, pois, como nos
mostra Certeau, é a vivência, a prática, que produz o espaço, podendo este espaço
ser materializado das mais diferentes formas por aquele que o vive. Auta de Souza
utilizou-se de sua narrativa poética para produzir algo que materializasse suas
vivências, sendo esta materialização uma narrativa de tudo o que havia de mais
íntimo para ela, incluindo desde seus medos até suas mágoas e desafetos, desde
suas saudades até seus sonhos e projeções. A materialidade dessa intimidade da
poetisa está reunida em seu Horto, obra que encaramos como a construção de um
espaço íntimo a partir de um discurso poético produzido por Auta de Souza. A
poética desse espaço íntimo narrado na obra de fato espacializou-se, alcançando
admiradores e estudiosos em todo o Brasil e no exterior65.
Em nossa pesquisa trataremos desse espaço íntimo, subjetivo e existencial
presente na narrativa poética de Auta de Souza, procurando realizar uma discussão
que leve em conta a relação deste com os espaços exteriores, geométricos e
geográficos apresentados nos trabalhos biográficos sobre a vida da poetisa. Para
esse fim, nos debruçaremos sobre a poesia da autora em questão e sobre as obras
que tratam da sua vida a partir de questões do tipo: como Auta de Souza constrói
seu espaço íntimo? Como a poetisa apresenta os aspectos de sua intimidade em
seus versos? Como as características pessoais e íntimas da vida de Auta de Souza
são apresentadas nas biografias produzidas sobre a poetisa? Como uma jovem
tuberculosa e cercada pelos cuidados da família poderia ter tido contato com as

64
CERTEAU, 2013, p.185.
65
Exemplo disso é o trabalho: CALLAHAN, Monique-Adelle. Between the lines: literary
transnationalism and African American poetics. New York: Oxford University Press, 2011.
31

muitas histórias de outras pessoas que narra em sua obra? Podemos compreender
os deslocamentos realizados por Auta de Souza enquanto peregrinações? Que
consequências tiveram essas viagens, deslocamentos ou peregrinações em sua
obra poética? Quais os motivos para existirem tantos poemas sobre mortes de
outras pessoas na obra de Auta de Souza? Qual o meio de conexão da vida e da
poesia de Auta de Souza com aqueles que ela encontra em seus deslocamentos?
De que forma Auta de Souza constrói as conexões entre seu espaço íntimo e aquilo
que vivenciou em seus deslocamentos, suas viagens, suas peregrinações, ou seja,
esta espacialidade exterior? Quais elementos são utilizados para a construção da
idealização católica em torno de Auta de Souza? De onde surgem as associações
entre Auta de Souza e um misticismo cristão? O que vem a ser esse misticismo
atribuído à poetisa? Por que Auta de Souza pôde ingressar na vida intelectual e
literária sem sofrer qualquer represália por isso, sendo inclusive incentivada por seus
familiares e aclamada pela crítica? Auta de Souza teria sofrido algum tipo de
represália? Como a questão racial se faz presente na vida, na obra e nas biografias
de Auta de Souza e de sua família? Podemos pensar Auta de Souza enquanto uma
mulher intelectual negra? Essas são algumas das questões que pautarão a nossa
pesquisa.
Quando falamos em poética do espaço nos referimos aos escritos do filósofo e
poeta francês Gaston Bachelard (1884-1962), que nos apresenta o modo como os
poetas enxergam ou narram a vida, o tempo e os espaços a partir do devaneio, ou,
mais precisamente, a partir do devaneio poético. “Gaston Bachelard, estudando a
imaginação e as imagens da literatura universal, foi um pensador que dedicou boa
parte de seu trabalho intelectual a essa questão, ao problema do devaneio poético”66
, pois “A leitura dos poetas é essencialmente devaneio”67. A narrativa dos poetas
estaria, dessa forma, imersa nesse devaneio poético, fonte de inspiração e também
de fuga da realidade, dores e desilusões da vida. Quanto à caracterização desse
devaneio, conceito central nas explanações de Bachelard para produzir e pensar a
poesia, o filósofo explica que

66
GOMES, 2013, p.28.
67
BACHELARD, 1993, p.36.
32

Por si só, o devaneio é uma instância psíquica que


freqüentemente [sic] se confunde com o sonho. Mas quando se
trata de um devaneio poético, de um devaneio que frui não só
de si próprio, mas que prepara para outras almas deleites
poéticos, sabe-se que não se está mais diante das sonolências
68
.

Essa confusão dar-se-ia uma vez que ambos, sonho e devaneio, “são os
poderes do inconsciente que fixam as lembranças mais distantes”69. Porém, “O
devaneio poético, ao contrário do devaneio de sonolência, não adormece jamais”70.
Desse modo, observamos que devaneio e sonho estão ligados pela capacidade
imaginativa e criativa que todos nós possuímos, possibilitando-nos construir novas
configurações, organizações, desenhos aos espaços que vivenciamos. A poesia é
uma das formas a partir da qual podemos narrar essas imagens criadas a partir do
devaneio, sendo o devaneio poético, portanto, o meio que alguns indivíduos
apresentam de ver e dizer o mundo no qual estão inseridos. Nesse sentido,
ressaltamos a importância dos conceitos de visibilidade e dizibilidade, apresentados
pelo historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. na obra A invenção do Nordeste e
outras artes71, ao dizer que “Tanto na visibilidade quanto na dizibilidade articulam-se
o pensar o espaço e o produzir o espaço, as práticas discursivas e as
não-discursivas que recortam e produzem as espacialidades”72. É nesta articulação
do pensar e do produzir o espaço que o devaneio poético se insere para a
construção de práticas discursivas e não discursivas marcadas por uma
sensibilidade particular de quem as enuncia.
A visibilidade é, portanto, a articulação dos conceitos necessários para ver,
pensar e compreender uma determinada realidade ou um determinado contexto
histórico, já a dizibilidade é a articulação desses conceitos para a construção
narrativa sobre este contexto histórico, uma vez que “cada formação histórica implica
uma repartição do visível e do enunciável que se faz sobre si mesma”73. O conjunto

68
BACHELARD, 1993, p.6.
69
BACHELARD, 1993, p.35.
70
BACHELARD, 1993, p.52.
71
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5 ed. São Paulo:
Cortez, 2011.
72
ALBUQUERQUE JR., 2011, 34-35.
73
DELEUZE, 2005, p.58.
33

de conceitos necessários à determinação do que pode ser visto e dito em um dado


espaço e tempo74 é o que conceituamos, respectivamente, como visibilidade e
dizibilidade, possibilitando-nos não apenas ler os poemas de Auta de Souza como
também perceber em seus escritos os aspectos, ou camadas de tempo e espaço,
particulares de sua escrita, sua forma de enxergar e narrar a si mesma e aquilo que
vivenciou, por meio da narrativa poética.
Diante da obra de Auta de Souza percebemos a mobilização de duas
espacialidades essenciais: um espaço íntimo, vivenciado com seus familiares e em
sua produção poética; e um espaço externo, vivenciado nas relações com outras
pessoas e nas viagens que realizou. Esses espaços estão também inseridos no que
Bachelard caracteriza como, respectivamente, um espaço interior e um espaço
exterior75. São essas duas categorias de espaço que abordaremos a partir da obra
de Auta de Souza, utilizando também como referências aquilo que sabemos sobre a
sua vida e o contexto em que viveu, a partir dos trabalhos biográficos produzidos
sobre ela. Nossos objetivos neste trabalho são, portanto, estudar, primeiramente, a
construção de um espaço íntimo na obra de Auta de Souza, procurando abordar a
escrita de si realizada pela poetisa; em seguida, abordar os espaços exteriores
vivenciados pela poetisa em suas muitas andanças em busca de uma melhor
condição de saúde, assim como o modo por meio do qual esses espaços e as
situações neles vistas e vividas foram narrados nos textos poéticos; e, por fim,
pesquisar os espaços alcançados por Auta de Souza enquanto uma mulher negra
que conseguiu se sobressair apesar da dominância dos pensamentos racialistas e
as imposições sociais de seu tempo, chegando a tornar-se uma das poucas
intelectuais negras do século XIX de que temos conhecimento.
Trabalharemos, portanto, a partir do método da análise de discurso, uma vez
que os discursos compreendem a língua não como um sistema fechado e imutável,
mas sim como um processo que se modifica de acordo com a situação histórica76. A
partir dessa metodologia buscamos realizar análises que demonstrem as

74
DELEUZE, 2005, p.58.
75
BACHELARD, Gaston. A dialética do exterior e do interior. In: ______. A poética do espaço.
Tradução: Antônio de Pádua Danesi. Revisão da tradução: Rosemary Costhek Abílio. São Paulo:
Martins Fontes, 1993. pp.215-233.
76
GONÇALVES, 2006, p.4.
34

aproximações e distanciamentos, diálogos e conflitos, concordâncias e


discordâncias entre a obra de Auta de Souza e os diversos textos que abordam sua
vida e sua poesia, além de alguns outros que procuram construir imagens da poetisa
que podem ser contestadas a partir da sua própria vida e obra. Por meio da análise
de discurso compreendemos que “[...] o texto só é um texto a partir de sua
historicidade”77, assim, as condições de produção devem ser levadas em
consideração, “[...] uma vez que tratam de localizar os discursos em seu contexto, e
dessa forma se propõem a entender o que é dito, quem o diz, por que o diz, para
quem diz, como diz, de que ponto histórico, cultural e social diz e com quais
objetivos o faz”78. Entendemos o discurso “[...] como uma rede nunca completa e
concluída, sempre passível de mudanças provocadas pelas ideologias e pela
história, além de mudanças na ordem do sentido e na ordem do próprio discurso”79,
pois esta rede é construída a partir das vivências, concepções, conexões e ideias
desenvolvidas por um indivíduo em um determinado contexto histórico. Assim, a
análise de discurso se faz essencial à nossa pesquisa uma vez que se apresenta
enquanto

[...] um campo de pesquisas que não possui uma metodologia


pronta/acabada. Isto quer dizer que ao lançar mão dos elementos
constitutivos do delineamento teórico que balizarão suas análises, o
analista do discurso estará ao mesmo tempo alçando os dispositivos
metodológicos. É o objeto (corpus) e os efeitos de sentido que vão
impondo a teoria a ser trabalhada, pois em Análise de Discurso,
teoria e metodologia caminham juntas, lado a lado, uma dando
suporte a outra, não podendo separá-las80.

Assim, buscamos utilizar da análise de discurso também como um meio de


podermos produzir nossas próprias ferramentas de análise – ou “dispositivos
metodológicos” – que se fizerem necessárias ao nosso estudo e ao contexto
histórico no qual Auta de Souza estava inserida. Dessa forma, concebemos que a
poesia de Auta de Souza está marcada, como qualquer outra narrativa, pelo seu
contexto histórico, por camadas de tempo e de espaço que nos são proporcionadas

77
BARROS, 2015, p.91.
78
SOUZA; ARAÚJO, 2017, p.24.
79
BARROS, 2015, p.76.
80
SILVA; ARAÚJO, 2017, p.19-20.
35

pela sensibilidade de sua escrita poética e apresentadas a partir das imagens que
ela constrói. Assim, nos debruçaremos sobre a poesia auteana com o intuito de
buscar as imagens construídas acerca desses espaços íntimos – do interior ou
existenciais – e de peregrinação – do exterior ou geométrico –, além das conexões
entre esses espaços na construção de um legado para Auta de Souza que é
perpetuado até hoje, mas que ainda se encontra em plena construção e que está
marcado por embates não apenas no espaço intelectual, mas também nos espaços
de gênero e racial.
O recorte temporal deste trabalho justifica-se uma vez que nos debruçamos
sobre aquilo que Auta de Souza produziu e nos deixou em seus 24 anos de vida –
ou, como nos apresenta Câmara Cascudo, em seus 24 anos, 4 meses e 26 dias81.
No entanto, devemos ressaltar que esse recorte temporal é antes uma forma de
organizarmos melhor a nossa pesquisa, assim como a produção deste texto, e não
um marco temporal inexorável deste trabalho. Entendemos que a obra de Auta de
Souza vai muito além da sua própria vida, fazendo com que a sua poesia alcançasse
significativo renome nacional somente após a sua morte, considerando que a poetisa
faleceu pouco mais de sete meses após o lançamento de seu único livro.
Para além do livro Horto, Auta de Souza produziu também dois manuscritos,
um com o título Dhálias, contendo poemas produzidos entre os anos de 1893 e
1897; e outro com o título Horto, contendo os poemas presentes no manuscrito
Dhálias com modificações realizadas pela poetisa, além de outros textos produzidos
a partir de 1897. A modificação realizada pela poetisa no título da obra se deu pouco
tempo antes de sua publicação, já no ano de 190082. As fontes principais deste
trabalho são, portanto, os textos poéticos produzidos por Auta de Souza que, por
diferentes meios, chegaram até nós. Assim, embora não nos seja possível consultar
todas as edições existentes da obra da poetisa, o que nos interessa de fato são os
textos produzidos por ela, alguns destes publicados também em outras obras que
procuram tratar da sua vida e obra, apresentando trechos ou até mesmo poemas
completos que não foram divulgados pela autora.

81
CASCUDO, 2008, p.115.
82
CASCUDO, 2008, p.109; GOMES, 2013, p.91.
36

Auta de Souza deixou, portanto, uma obra curta e significativa, sendo objeto de
estudos e debates até os nossos dias, mais de um século após a sua morte, como é
o exemplo da presente pesquisa. Desse modo, a relevância deste trabalho
justifica-se uma vez que buscamos suprir a ausência de trabalhos na área da
História que discutam a vida e obra de Auta de Souza, assim como a produção
poética do estado do Rio Grande do Norte. Em busca de pesquisas historiográficas
que abordassem esses temas, consultamos os trabalhos defendidos no Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(PPGH-UFRN). Em uma lista disponibilizada no site do PPGH-UFRN que contém os
trabalhos defendidos entre os anos de 2008 e 201983, encontramos apenas o
trabalho desenvolvido pela historiadora Maiara Juliana Gonçalves da Silva, intitulado
“Em cada esquina um poeta, em cada rua um jornal”: a vida intelectual natalense
(1889-1930)84 como exemplo de trabalho que aborda a produção poética potiguar.
No entanto, esse trabalho não trata especificamente da poesia potiguar, mas sim dos
indivíduos que, para além de uma vida política, possuíam também uma vida literária,
assim como dos laços e disputas existentes entre esses sujeitos no campo literário
da cidade do Natal. Sobre a família Castriciano de Souza, encontramos apenas o
trabalho da historiadora Ítala Mayara de Castro Silva, intitulado Eloy de Souza e o
Nordeste: construção discursiva do espaço dos estados seviciados pela seca na
Primeira República brasileira85. No entanto, esse trabalho trata mais precisamente
sobre a vida política de Eloy de Souza e da sua produção intelectual voltada à luta
para sanar os problemas ocasionados pelas secas na região Nordeste do Brasil.
Não encontramos nenhum trabalho no PPGH-UFRN que apresentasse como
tema a vida e/ou a obra de Auta de Souza. Porém, destacamos a dissertação de
mestrado em Ciências Sociais defendida por Genilson de Azevedo Farias, intitulada

83
PPGH-UFRN. Lista de dissertações defendidas no Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Disponível em:
<https://sigaa.ufrn.br/sigaa/public/programa/documentos.jsf?lc=pt_BR&id=435&idTipo=1>. Acesso
em: 21 jun. 2020.
84
SILVA, Maiara Juliana Gonçalves da. "Em cada esquina um poeta, em cada rua um jornal": a
vida intelectual natalense (1889-1930). 2014. 399f. Dissertação (Mestrado em História) - Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014.
85
SILVA, Itala Mayara de Castro. Eloy de Souza e o Nordeste: construção discursiva do espaço dos
estados seviciados pela seca na primeira república brasileira. 2018. 214f. Dissertação (Mestrado em
História) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Natal, 2018.
37

Auta de Souza, a poeta de pele clara, um moreno doce: memória e cultura da


intelectualidade afrodescendente no Rio Grande do Norte86, orientada pela Profa.
Dra. Ana Laudelina Ferreira Gomes. Embora de uma outra área, esse trabalho
apresenta conhecimentos históricos sobre a vida e obra de Auta de Souza que serão
relevantes para esta pesquisa, sendo um dos poucos trabalhos acadêmicos
existentes sobre Auta de Souza que tratam não somente da sua produção poética
como também do seu contexto histórico. Nos debruçamos sobre tal dissertação
buscando discutir, principalmente, a imagem de Auta de Souza enquanto uma
intelectual negra do Rio Grande do Norte no século XIX. O exemplo de Auta de
Souza enquanto uma mulher afrodescendente que desfrutava de uma liberdade
limitada e também vigiada – principalmente por seus irmãos Henrique Castriciano e
Eloy de Souza – nos espaços literários e da intelectualidade no oitocentos é algo
raro na história do Brasil e único na história do Rio Grande do Norte. Assim,
procuramos ampliar as discussões acerca do uso das categorias de gênero e das
identidades étnico-raciais para abordar a vida e a obra da poetisa, utilizando dos
conhecimentos e referências presentes na pesquisa de Genilson Farias.
Ressaltamos, portanto, a importância da produção de pesquisas sobre a poesia
potiguar como forma de proporcionar um conhecimento maior, não apenas para a
população do próprio estado como também para o público externo, acerca dos
nossos autores, de suas vidas, de suas obras e também da história do estado de
forma geral, pois a história de um local é formada também pela história de cada um
dos seus habitantes. Assim, buscamos dar a nossa contribuição para a história da
poesia e da literatura do Rio Grande do Norte tratando da vida e obra de um dos
seus principais nomes, aquela que sofreu muito e que amou demais87: Auta de
Souza.
Em nosso primeiro capítulo procuraremos explorar o que caracterizamos como
um espaço íntimo na obra de Auta de Souza, partindo da escrita de si que a poetisa

86
FARIAS, Genilson de Azevedo. Auta de Souza, a poeta de pele clara, um moreno doce:
memória e cultura da intelectualidade afrodescendente no Rio Grande do Norte. 2013. 185 f.
Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Regional; Cultura e Representações) - Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2013.
87
Referência à poesia de Auta de Souza intitulada Ao pé do túmulo (SOUZA, 2001, p.238).
38

apresenta em seus poemas. Quando falamos de um espaço íntimo, partimos da


ideia de que

A necessidade, a sensação e a valorização de um certo espaço


“íntimo” foram surgindo e se constituindo ao longo dos últimos três
séculos da história ocidental. Foi, precisamente, com a paulatina
aparição de um “mundo interno” do indivíduo, do eu e da família, que
as pessoas começaram a considerar o lar como um contexto
adequado para acolher essa vida interior que começava a florescer88.

Assim, para uma reflexão teórica mais aprofundada sobre o assunto,


procuraremos fazer uso de trabalhos como A escrita de si89, do filósofo francês
Michel Foucault (1926-1984) e O espaço biográfico90, da professora e pesquisadora
argentina Leonor Arfuch, com o intuito de estudar os meios utilizados por Auta de
Souza para “mostra-se”, “expor-se”, “fazer aparecer seu próprio rosto”91 em seus
textos, realizando uma escrita de si que permaneceu para a posteridade,
característica central “dessa obsessão por deixar impressões, rastros, inscrições,
dessa ênfase na singularidade, que é ao mesmo tempo busca de transcendência”92.
Em nosso segundo capítulo nos voltaremos para os espaços exteriores,
geométricos, geográficos da vida e da obra de Auta de Souza, buscando discutir o
que alguns de seus biógrafos caracterizaram como “peregrinações” que a poetisa
realizou pelo estado do Rio Grande do Norte em busca de condições climáticas
favoráveis à sua condição de saúde. Desse modo, apresentaremos os locais pelos
quais ela passou e que deixaram registros em seus poemas, assim como
analisaremos o contexto histórico vivenciado pela poetisa, o qual é apresentado nos
trabalhos biográficos sobre ela já citados anteriormente, assim como em trabalhos
sobre a história do Rio Grande do Norte, tal como a História do Rio Grande do Norte,
de Luís da Câmara Cascudo93, a História do Estado do Rio Grande do Norte, de

88
SIBILIA, 2003, p.3.
89
FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. Organização e seleção de textos: Manoel Barros
da Motta; tradução: Elisa Monteiro, Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2004. pp. 144-162.
90
ARFUCH, Leonor. O Espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução:
Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010.
91
FOUCAULT, 2004, p.156.
92
ARFUCH, 2010, p.15.
93
CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2.ed. Natal/Rio de Janeiro:
Fundação José Augusto/Achiamé, 1984.
39

José Francisco da Rocha Pombo94, O comportamento da mortalidade no Rio Grande


do Norte entre 1801 e 1870, de Dayane Júlia C. Dias95, entre outras obras que nos
proporcionam uma visão mais ampla sobre o Rio Grande do Norte oitocentista.
Por fim, em nosso terceiro capítulo, abordaremos as ressonâncias da vida de
Auta de Souza em sua obra, procurando discutir as imagens construídas sobre a
poetisa e o ideal de mulher produzido por alguns intelectuais que procuraram atribuir
um caráter unicamente cristão e místico à sua poesia, o que fez com que alguns
discursos produzidos após a sua morte a elevassem ao patamar de santa popular do
Rio Grande do Norte. Assim, procuramos trazer alguns depoimentos que produzem
esse ideal e que se encontram na Nota para a segunda edição do Horto escrita por
Henrique Castriciano96; em Vida Breve de Auta de Souza: 1876-190197 – biografia de
Auta de Souza escrita por Câmara Cascudo –; na obra Auta de Souza, escrita por
Jackson de Figueiredo98, além de alguns textos publicados em jornais na época da
morte da poetisa e que se encontram nos anexos da dissertação da pesquisadora
Nalba Leão. Por outro lado, procuraremos problematizar essas imagens produzidas
acerca de Auta de Souza discutindo as questões de gênero e étnico-raciais que,
embora estivessem presentes em sua vida, têm sido silenciadas nesses trabalhos.
Assim, apresentaremos tais pontos a partir dos trabalhos Auta de Souza, a poeta de
pele clara, um moreno doce, de Genilson Farias de Azevedo99 e A noiva do Verso,
de Ana Laudelina Gomes, assim como a partir de alguns trabalhos que serviram de
referencial teórico acerca das questões em torno do gênero e da cor, como Minha
história das Mulheres, de Michelle Perrot100, Luciana Lealdina de Araújo e Maria
Helena Vargas da Silveira: história de mulheres negras no pós-abolição do sul do

94
ROCHA POMBO, José F. História do Estado do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Annuario
do Brasil, 1922.
95
DIAS, Dayane Júlia Carvalho. O comportamento da mortalidade no Rio Grande do Norte entre
1801 e 1870. 2016. 51f. Dissertação (Mestrado em Demografia) - Centro de Ciências Exatas e da
Terra, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016. Disponível em:
<https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/21743>. Acesso em: 16 maio 2021.
96
SOUZA, 2009, p.33-35.
97
CASCUDO, Luís da Câmara. Vida breve de Auta de Souza: 1876-1901. Natal: EDUFRN, 2008.
98
FIGUEIREDO, Jackson. Auta de Souza. Edição Fac-similar. Natal: Sebo Vermelho Edições, 2012.
99
FARIAS, Genilson de Azevedo. Auta de Souza, a poeta de pele clara, um moreno doce:
memória e cultura da intelectualidade afrodescendente no Rio Grande do Norte. 2013. 185 f.
Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Regional; Cultura e Representações) - Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2013.
100
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Tradução de Ângela M. S. Correa. São Paulo:
Contexto, 2007.
40

Brasil, de Fernanda Oliveira101 e Maria de Lourdes Vale Nascimento: uma intelectual


negra do pós-Abolição, de Giovana Xavier102, entre outros trabalhos que nos
auxiliarão a pensar Auta de Souza enquanto uma mulher que buscou se inserir em
espaços que lhe atribuíram o papel de uma intelectual negra no Rio Grande do Norte
oitocentista.
Como procuramos apresentar, o foco desta pesquisa está voltado à vida e obra
de Auta de Souza, não apenas por seu valor histórico e literário, mas também pelo
que isso nos proporciona subjetivamente. Não podemos utilizar esses aspectos
como material empírico para este texto, porém ressaltamos que o interesse desta
pesquisa nasceu pelo modo como a poesia de Auta de Souza nos tocou, de uma
forma muito sensível e profunda, pois concebemos que esta é a característica
essencial de qualquer produção poética, afinal, como nos apresenta Bachelard: “os
poemas são realidades humanas; não basta referir-se a ‘impressões’ para
explicá-las. É preciso vivê-las em sua imensidão poética”103. Vivamos, portanto, ao
menos por alguns momentos, a imensidão poética de Auta de Souza.

101
OLIVEIRA, Fernanda. Luciana Lealdina de Araújo e Maria Helena Vargas da Silveira: história
de mulheres negras no pós-abolição do sul do Brasil [livro eletrônico]. Niterói: EDUFF, 2020. - 1,8Mb;
PDF. (Coleção Personagens do pós-abolição: trajetórias e sentidos de liberdade no Brasil
republicano, v. 2.
102
XAVIER, Giovana. Maria de Lourdes Vale Nascimento: uma intelectual negra do pós-Abolição
[livro eletrônico]. Niterói: EDUFF, 2020. – 5,8Mb; PDF. (Coleção Personagens do pós-abolição:
trajetórias e sentidos de liberdade no Brasil republicano, v.5).
103
BACHELARD, 1993, p. 214.
41

CAPÍTULO I - A IMENSIDÃO ÍNTIMA

Dolores104

Já vão a caminho do cemitério


Meus louros sonhos em visões negras,
E vão-se todos no Azul sidéreo
Como uma nuvem de toutinegras.

A noite de ontem levei chorando


Todo o passado de meus amores;
E o dia ainda me achou rezando
No imenso terço de minhas dores.

Vejo na vida longo deserto


Sem doce oásis de salvação.
Dentro em minh'alma, douda, chorosa,
De pobre moça tuberculosa,
Cheio de medo, trêmulo, incerto,
Bate com força meu coração.

E assim morrendo, coitada, aos poucos,


Convulsa e fria, louca de espanto,
Solto suspiros, soluços roucos,
Olhando as cruzes do campo Santo;

Porque me lembro que muito breve


Leva-me a ele tanta dor física.
E dentro em pouco, branco de neve,
Verão o esquife da pobre tísica.

A relação entre duas palavras que aparentemente expressam ideias tão


divergentes como a imensidão e a intimidade não é algo novo. Gaston Bachelard
assim intitula o oitavo capítulo de sua obra A poética do espaço, realizando uma
conexão entre a imensidão e o íntimo a partir da percepção de que

A imensidão está em nós. Está ligada a uma espécie de expansão do


ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que retorna na
solidão. Quando estamos imóveis, [...] sonhamos num mundo
imenso. A imensidão é o movimento do homem imóvel 105.

104
SOUZA, 2001, p.146.
105
BACHELARD, 1993, p.190.
42

Essa imensidão da qual fala Bachelard estaria, portanto, sempre presente em


nós, sendo refreada pela vida, detida pela prudência, mas revelando-se,
expandindo-se sempre que estamos sós.
A ideia de imensidão e de íntimo ligam-se, desta forma, não pelo que podemos
precisar ou determinar sobre elas, mas justamente por seu caráter impreciso e
indeterminável. Assim como não podemos dizer qual o tamanho do imenso, também
não somos capazes de determinar o tamanho da nossa intimidade, da mesma forma
que não podemos localizar com precisão nem o imenso nem o íntimo. Estes são
termos comumente adjetivos, sendo utilizados para qualificar outras coisas, como os
espaços, por exemplo. No entanto, como um espaço pode ser caracterizado como
imenso ou íntimo se ao fazermos isso estamos atribuindo a ele aspectos difíceis ou
até mesmo impossíveis de serem determinados?

Existe um caráter [- uma preocupação -] de se buscar uma medida


que não se consegue medir ou uma grandeza que não pode ser
arredondada, um valor infinito, uma vastidão, uma imensidão. Algo
que nem a ciência ou as línguas e os idiomas poderiam transcrever106
.

Contudo, a imensidão, assim como o íntimo, escapa a essas determinações, e


podem ser percebidas, como o tempo ou como o espaço, dentro de uma ideia
daquilo que não se mede ou não se pode medir, como as reticências em um texto...
107
Não há, portanto, uma necessidade em se precisar os limites do que é íntimo ou
do que é imenso, uma vez que esses termos são formas de descrever e de
representar aquilo que percebemos e/ou vivenciamos. Para este trabalho, pensamos
acerca da imensidão e do íntimo ligados ao espaço.
Segundo o historiador Michel de Certeau, podemos entender o espaço como a
prática do lugar, ou seja, como os sujeitos o transformam a partir das suas
ocupações, apropriações e vivências108. Dessa forma, a noção de espaço remete a
uma relação singular no mundo, à dimensão existencial de um lugar habitado e
vivenciado109. Se vivenciamos um espaço que consideramos particular, privado,

106
GOMES, 2019, p.33.
107
GOMES, 2019, p.33.
108
REIS, 2013, p.140.
109
DOSSE, 2013, p.88.
43

pessoal, podemos caracterizar esse espaço como íntimo. Porém, este mesmo
espaço pode não apresentar limites físicos precisos, podendo ser percebido tanto
como íntimo quanto como imenso, a partir da solidão vivenciada, seja em um quarto
à noite antes de dormir ou em uma floresta deserta durante uma caminhada. “Toda
pessoa deveria então falar de suas estradas, de suas encruzilhadas, de seus
bancos”110, abrangendo, assim, o universo – ou a imensidão – de seus desenhos
vividos, não necessitando que estes sejam exatos, “Basta que sejam tonalizados no
mesmo modo do nosso espaço interior”111. Embora o “falar” aqui não deva ser
entendido unicamente a partir do ato vocal de uma pessoa, podemos perceber,
desse modo, a relevância dos discursos e das narrativas produzidas sobre o íntimo,
que são registros sempre preciosos, pois uma narrativa íntima não poderia existir de
qualquer outra forma se não a partir do discurso daquele que a vivenciou e a
produziu. “Trata-se, assim, de um ato de criação ou de criatividade cuja
subjetividade vai além do perceptível pelo olhar [...]. É uma busca pela
transcendência do ser”112. É esse espaço interior, esse universo pessoal e existencial
que buscamos quando tratamos de um espaço íntimo. Mas como encontrar,
pesquisar, estudar este espaço íntimo? Para este fim,

[...] o relato tem papel decisivo. Sem dúvida, “descreve”. Mas “toda
descrição é mais que uma fixação”, é “um ato culturalmente criador”.
Ela tem até poder distributivo e força performativa (ela realiza o que
diz) quando se tem um certo conjunto de circunstâncias. Ela é então
fundadora de espaços113.

Embora o nosso trabalho esteja voltado ao relato escrito, ressaltamos que as


mais variadas formas de narrativa podem nos proporcionar o conhecimento de um
espaço íntimo daquele ou daquela que a produziu. No entanto, em relação ao nosso
objeto de pesquisa – a vida e obra da poetisa Auta de Souza –, a narrativa
apresentada em nossas fontes foi produzida exclusivamente de forma escrita, e,
mais precisamente, para nós uma das formas escritas mais significativas quando
tratamos de um espaço íntimo: a escrita poética. Como nos diz Bachelard, o poeta

110
BACHELARD, 1993, p.31.
111
BACHELARD, 1993, p.31.
112
GOMES, 2019, p.34.
113
CERTEAU, 2013, p.191.
44

seria um ser privilegiado, uma vez que poderia viver intensamente a poesia e a
imensidão interior das palavras e da alma humana, pois “Todas as grandes palavras,
todas as palavras convocadas para a grandeza por um poeta, são chaves do
universo, do duplo universo do Cosmos e das profundezas da alma humana”114. A
escrita, por ser uma forma de narrativa produzida, em nossa contemporaneidade, na
maioria das vezes de forma individual e solitária, costuma revelar esta profundeza da
alma humana que os indivíduos expressam em seus momentos de solidão e de
intimidade. Já a poesia, por sua vez, talvez mais do que a lembrança, revela-se
como uma narrativa que toca mais fundo o espaço interior de uma pessoa115. É,
portanto, por meio da escrita poética que buscamos os rastros, os caminhos, as
vivências do espaço íntimo presentes na obra da poetisa Auta de Souza. Uma
escrita, assim como a própria vida da poetisa, marcada pelo cerceamento e controle
“[...] por parte da cultura [- da família, da religião e da sociedade -] no tocante à
entrada, permanência e respeito à mulher no campo da escrita profissional”116.
Para a nossa pesquisa, faz-se necessário ressaltar a importância da
construção de uma narrativa escrita de si que os indivíduos – no mais puro sentido
da palavra, pois o caráter individual, particular e subjetivo destas narrativas é um
aspecto essencial de qualquer narrativa íntima – passam a produzir entre o fim da
Idade Média e início da Idade Moderna. Novos espaços, e também novas maneiras
de vivenciar os espaços existentes, vão sendo desenvolvidos com um caráter mais
pessoal a partir do momento em que os sujeitos não apenas vão concebendo
situações e práticas solitárias como também passam a demonstrar o desejo de estar
só.

A necessidade, a sensação e a valorização de um certo espaço


“íntimo” foram surgindo e se constituindo ao longo dos últimos três
séculos da história ocidental. Foi, precisamente, com a paulatina
aparição de um “mundo interno” do indivíduo, do eu e da família, que
as pessoas começaram a considerar o lar como um contexto
adequado para acolher essa vida interior que começava a florescer117
.

114
BACHELARD, 1993, p.203.
115
BACHELARD, 1993, p.26.
116
GOMES, 2013, 20.
117
SIBILIA, 2003, p.3.
45

Quando pensamos em uma pessoa escrevendo algo íntimo como um diário,


por exemplo, nos vem à mente a imagem de alguém sozinho em seu quarto,
debruçado sobre um caderno, concentrado e em silêncio, realizando anotações
sobre o seu dia, lembranças de momentos distantes no tempo ou desejos para o
futuro. Estas características como a intimidade, a solidão, o silêncio e um ambiente
próprio onde esses elementos pudessem ser vivenciados possuem aspectos
históricos ligados à classe burguesa, na Idade Moderna, pois, como mostra o
arquiteto canadense Witold Rybczynski, ao reconstruir a história da casa118, a ideia
de intimidade não existia na Idade Média119:

[...] foi em tais moradias burguesas, modestas, que a vida familiar


começou a tomar uma dimensão privada. [...] Antes que a
consciência humana entendesse a casa como o centro da vida
familiar, precisava-se da sensação de privacidade e de intimidade
que não eram possíveis no salão medieval120.

A vida familiar burguesa da qual fala Rybczynski passou a demandar, portanto,


um ambiente que reservasse a privacidade e a intimidade dos seus componentes
em relação a tudo e todos que fossem externos à família. Deste modo, a
configuração e as práticas de um domicílio familiar não podiam mais pautar-se a
partir do uso dos ambientes para múltiplas atividades, como cozinhar, comer,
entreter convidados, fazer negócios e, à noite, dormir, movendo-se apenas os
móveis, conforme a necessidade121. A casa tornava-se, assim, um local mais
privado, proporcionando um maior senso de intimidade e identificando este espaço
como exclusivo da vida familiar122.
Esta mudança de configuração da vida familiar e da casa como espaço de
intimidade da família, observada na Idade Moderna, proporcionou também um
desejo cada vez maior de um espaço íntimo, privado, particular até mesmo dentro de
casa. “A solidão, que tinha sido um estado raro na Idade Média, permitia o
desdobramento de uma série de prazeres até então inéditos, a resguardo dos

118
RYBCZYNSKI, Witold. Casa: pequena história de uma ideia. Tradução: Betina Von Staa. 2a
tiragem. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1999.
119
SIBILIA, 2003, p.3.
120
RYBCZYNSKI, 1999, p.59.
121
RYBCZYNSKI, 1999, p.40.
122
RYBCZYNSKI, 1999, p.51.
46

olhares intrusos e sob o império austero do decoro burguês”123. Para que fosse
possível conciliar a vivência desses prazeres – que iam desde a leitura ou a escrita
individual até novas maneiras de praticar o sexo – com a austeridade do decoro
burguês, foi preciso criar espaços próprios para uma vivência cada vez mais íntima.
Ressaltamos que a escrita contribuiu de forma significativa para o desenvolvimento
desta noção de individualidade, de intimidade e a consequente construção de
espaços íntimos. Chamamos a atenção para “o ato de escrever como prática própria
do movimento em direção à privacidade, cada vez mais acentuado pela visão de
mundo dominante da burguesia”124.
Como nos apresenta o filósofo Michel Foucault em seu texto intitulado A escrita
de si, “a escrita aparece regularmente associada à ‘meditação’, ao exercício do
pensamento sobre ele mesmo que reativa o que ele sabe, torna presente um
princípio, uma regra ou um exemplo, reflete sobre eles, assimila-os, e assim se
prepara para encarar o real”125. Esta forma de pensar, meditar e refletir sobre si
mesmo como forma de encarar o real estava impossibilitada em um ambiente como
a casa medieval, na qual não era incomum que houvesse cerca de 25 pessoas em
um ambiente com poucos e pequenos cômodos que eram utilizados para todas as
necessidades daqueles que ali conviviam126.
Levando em consideração a configuração da casa proporcionada a partir das
necessidades da família burguesa, a divisão dos cômodos passa a ser realizada de
uma forma mais precisa, desenvolvendo-se alguns voltados a funções específicas.
No tocante a esses cômodos, nos deteremos um pouco no quarto, uma vez que este
espaço propicia “uma escrita privada, e mesmo íntima, ligada à família, praticada à
noite, no silêncio do quarto, para responder às cartas recebidas, manter um diário e,
mais excepcionalmente, contar sua vida”127. O quarto torna-se, portanto, um espaço
privilegiado da intimidade para os indivíduos da família burguesa, sendo a
representação espacial física, geométrica, geográfica deste espaço de caráter
íntimo, existencial, subjetivo que os sujeitos pertencentes à vida familiar burguesa

123
SIBILIA, 2003, p.3.
124
PRADO, 2013, p.451.
125
FOUCAULT, 2004, p.146-147.
126
RYBCZYNSKI, 1999, p.41.
127
PERROT, 2007, p.28.
47

demonstram, podendo ser compreendido a partir de um desejo particular de estar


só.
Em meio a este espaço íntimo – interior e exterior, segundo Bachelard;
existencial e geométrico, segundo Certeau – do quarto, desenvolvem-se hábitos
particularmente privilegiados para esta espacialidade, como a leitura e a escrita
individual, proporcionando também o desenvolvimento de formas narrativas
pessoais, que Foucault conceituou como escritas de si. Quando tratamos de uma
escrita de si estamos falando do que Michel Foucault – utilizando-se do pensamento
do filósofo grego Epicteto (50 d.C - 135 d.C) – apresenta como “o papel da escrita
como exercício pessoal”128. Deste modo, a escrita de si ou a narrativa de si é a
narrativa produzida por um sujeito a partir de sua relação consigo mesmo129,
realizada por meio da escrita. Esta narrativa caracteriza-se como uma forma de o
autor apresentar-se, “‘se mostrar’, se expor, fazer aparecer seu próprio rosto perto
do outro”130, podendo ser este outro um indivíduo externo, conhecido ou
desconhecido, ou até mesmo o próprio narrador em um processo de reflexão sobre
si mesmo. Essas narrativas podem apresentar-se das mais variadas formas, no
entanto, em nossa pesquisa demos centralidade à narrativa poética como forma de
um indivíduo falar sobre si mesmo, sua vida e suas experiências pessoais. Esta
narrativa poética é também uma forma de construção de um espaço íntimo, não
apenas de forma subjetiva e psicológica, mas também por meio da construção de
um espaço físico e geométrico, seja um quarto ou escritório voltado à produção da
escrita poética ou até mesmo um caderno ou livro de poesias.
É sob esta perspectiva que procuramos abordar a vida e obra da poetisa Auta
de Souza em nossa pesquisa, observando seus escritos como uma forma de
construção de um espaço íntimo, deixado por ela como um legado em seu único
livro, intitulado Horto. A escrita, para Auta de Souza, foi claramente uma forma de
falar sobre si mesma e sobre os sentimentos que os acontecimentos da vida lhe
despertavam. Como as biografias da poetisa procuram ressaltar, muitos
acontecimentos negativos marcaram a sua vida desde a infância, incluindo, antes
mesmo de ela completar 15 anos de idade, a morte da mãe, do pai, de um de seus

128
FOUCAULT, 2004, p.146.
129
FOUCAULT, 2004, p.157.
130
FOUCAULT, 2004, p.156.
48

irmãos e o fato de haver sido diagnosticada como tísica, ou tuberculosa – doença


que matou seus pais.
No entanto, aqui se faz necessário ressaltarmos a diferença quantitativa entre
as fontes produzidas por Auta de Souza diante do que possuímos, por exemplo, de
seus irmãos Henrique Castriciano e Eloy de Souza, ou até mesmo o que existe
sobre a vida e obra da poetisa em relação ao que foi e ao que permanece sendo
produzido sobre eles. Sobre o assunto, Ana Laudelina Gomes, biógrafa de Auta,
observa a diferença de formação e até mesmo dos espaços ocupados entre a autora
e seus irmãos, declarando que

Para sorte da poeta, seu irmão, dois anos mais velho, Henrique
Castriciano de Souza, desde os 16 anos já possuía uma biblioteca
considerável. Além disso, ao lado do outro irmão, Eloy de Souza,
quatro anos mais velho que Auta, os dois irmãos homens
articulavam-se muito bem com intelectuais e políticos locais,
participando ativamente de órgãos de imprensa e de divulgação
literária, os quais a poeta veio também fazer parte por alguns anos131.

Essa ausência de fontes quando se trata da vida e obra de uma mulher é


observada e estudada por importantes pesquisadoras da história das mulheres,
entre as quais destacamos a historiadora francesa Michelle Perrot, o que nos coloca
o desafio de dar a devida centralidade ao discurso que Auta de Souza produziu
sobre si mesma frente a outros importantes nomes que produziram outras narrativas
sobre ela, como Henrique Castriciano, Eloy de Souza, Luís da Câmara Cascudo,
Jackson de Figueiredo e Olavo Bilac. Embora não seja a nossa intenção neste
trabalho produzir uma disputa entre essas narrativas, mas sim um diálogo,
concordamos com o que apresenta Perrot ao escrever que

Procuramos os vestígios das mulheres nos arquivos. Cabe


igualmente procurá-los nos materiais impressos e nas bibliotecas.
Para ouvir suas vozes - as palavras das mulheres -, é preciso abrir
não somente os livros que falam delas, os romances que contam
sobre elas, que as imaginam e as perscrutam - fonte incomparável -,
mas também aqueles que elas escreveram132.

131
GOMES, 2013, p.21-22.
132
PERROT, 2007, p.31.
49

A nossa intenção não é traduzir, decodificar nem resgatar aquilo que Auta de
Souza sentia ou pensava quando produziu seus poemas, até porque acreditamos
que isso é algo impossível de ser realizado. O que procuramos é inserir a construção
que ela realiza de si mesma em um contexto mais amplo: o contexto que nos é
proporcionado pelos depoimentos apresentados por aqueles que também
vivenciaram o seu contexto temporal e espacial – mais precisamente, os seus
irmãos Eloy de Souza e Henrique Castriciano – e aqueles que, embora não a
tenham conhecido pessoalmente, foram tocados por sua poesia a ponto de
procurarem conhecer mais sobre sua vida e obra e elaborarem produções que até
os dias atuais nos possibilitam conhecer um pouco dessa vida que se esvaiu em
versos133. A partir da leitura da poesia de Auta de Souza como “fontes do ‘eu’”134,
percebemos uma construção narrativa realizada pela poetisa sobre si mesma, uma
forma de narrar sua vida, seu tempo, os indivíduos com os quais conviveu –
principalmente por meio das dedicatórias que realizou em muitos de seus textos –,
além dos sonhos, desejos, dores e medos da breve vida que teve e que
demonstrava saber que teria.
A relevância do caráter poético da escrita de Auta de Souza ressalta-se ainda
mais quando levamos em consideração que, de início, a religião e o imaginário, as
vias místicas e literárias, a oração, a meditação, a poesia e o romance foram os
caminhos literários escolhidos pelas pioneiras da escrita”135. Auta de Souza, uma das
pioneiras e mais relevantes escritoras do Rio Grande do Norte, nos mostra, por meio
de sua poesia, a relevância desta variedade de fontes que a história pode utilizar-se
não somente para a pesquisa histórica sobre um indivíduo, mas também para a
construção histórica de um grupo social – como a história das mulheres – e até
mesmo de um território – como o Rio Grande do Norte. A variedade de fontes
escritas que pesquisamos – que vão desde poemas e cartas pessoais136 até obras

133
CASCUDO, 2008, p.17.
134
ARFUCH, 2010, p.28.
135
PERROT, 2007, p.31.
136
Registramos aqui o nosso agradecimento a Daliana Cascudo Roberti Leite, Presidente/Diretora
Administrativo-Financeira, e a todos os funcionários do Instituto Ludovicus - Casa de Câmara
Cascudo, por nos possibilitarem e auxiliarem a pesquisa que realizamos no acervo de
correspondências de Câmara Cascudo. Nesse acervo pudemos recolher algumas cartas relevantes à
nossa pesquisa, como cartas trocadas entre Henrique Castriciano e Câmara Cascudo, por exemplo.
Procuramos ler essas fontes para conhecer melhor as relações construídas pela família Castriciano
de Souza, assim como as disputas existentes nessas relações. Percebemos uma evidente disputa
50

biográficas e trabalhos acadêmicos, embora a maior parte desses escritos tenham


sido produzidos por homens que nem mesmo chegaram a conhecer Auta de Souza
– materializaram em nossa formação acadêmica e pessoal o que apresenta Perrot
ao afirmar que

Esses diversos tipos de escritos são infinitamente preciosos porque


autorizam a afirmação de um “eu”. É graças a eles que se ouve o
“eu”, a voz das mulheres. Voz em tom menor, mas de mulheres
cultas, ou, pelo menos, que têm acesso à escrita. E cujos papéis,
além do mais, foram conservados. [...] Os descendentes se
interessavam com muito mais freqüência [sic] pelos homens
importantes da família, e muito pouco por suas mulheres, apagadas e
obscuras, cujos papéis destruíam ou vendiam137.

A poesia de Auta de Souza apresenta uma reflexão profundamente íntima,


voltada para aspectos como a religião católica, a morte, a doença – a tuberculose –
e a família. São esses aspectos da vida íntima de Auta de Souza, apresentados por
meio de uma narrativa poética, que concebemos como a construção de um espaço
íntimo. Essa construção narrativa é uma forma de produção de um espaço que não
se constitui apenas pelo formato do papel nem pela área ocupada pelo sistema de
signos do escrito138, mas também pela constituição de um corpo, pois

O papel da escrita é constituir, com tudo o que a leitura constituiu, um


“corpo”. E é preciso compreender esse corpo [...] como o próprio
corpo daquele que, transcrevendo suas leituras, delas se apropriou e
fez sua a verdade delas: a escrita transforma a coisa vista ou ouvida
“em forças e em sangue”. Ela se torna no próprio escritor um
princípio de ação racional139.

A externalização por parte de Auta de Souza de um espaço íntimo, interno,


existencial para uma materialidade narrativa por meio da escrita, mais precisamente
da escrita poética, proporcionou a constituição de um “corpo poético” que, como seu
próprio corpo físico, estava profundamente marcado pela família, pela religião, pela
doença, pela dor e pelo sofrimento, mas que, ao contrário de seu corpo físico,

entre Câmara Cascudo e Henrique Castriciano em torno da construção de uma memória para Auta de
Souza. Abordaremos melhor esse assunto no terceiro capítulo deste trabalho.
137
PERROT, 2007, p.30.
138
CERTEAU, 2013, p.184.
139
FOUCAULT, 2004, p.152.
51

permaneceu vivo, sendo recitado ou cantado pelo “[...] povo, que se apoderou dele
com o devoto carinho, passando a repetir muitos de seus versos ao pé dos berços,
nos lares pobres e, até, nas igrejas, sob a forma de ‘benditos’ anônimos”140. A
percepção dessa transformação de um universo íntimo, subjetivo, psicológico em
uma espacialidade particularmente íntima por meio da poesia foi descrita pelo poeta
Olavo Bilac (1865-1918) no prefácio da primeira edição do Horto (1900): “[...] essa
alma de mulher vai traduzindo em versos os mundos de sensações, [...]
transformando as suas ideias, as suas torturas, as suas esperanças, os seus
desenganos em pequeninas jóias”141. Sobre essa materialização de um universo
sentimental em forma de versos, o também poeta e irmão da poetisa, Henrique
Castriciano de Souza, em sua Nota para a segunda edição do Horto (1910), declara
que “Auta, sem pensar e sem querer, reproduzira à lápis [...] as emoções mais
íntimas de nossa gente; encontrara no próprio sofrimento a expressão exata do
sofrimento alheio”142.
Compreendemos, portanto, que a poesia para Auta de Souza foi um meio de
construção de um espaço íntimo, de um corpo poético, de uma poética do espaço
apresentada na forma de uma narrativa escrita. Esta narrativa produzida por Auta de
Souza, que sobrevive mesmo após mais de um século da sua morte, foi sem dúvida
uma forma encontrada pela poetisa de amenizar os sofrimentos, as tristezas e a
solidão vivenciadas em sua vida “de pobre moça tuberculosa”143. Mas como Auta de
Souza constrói esse espaço íntimo? Como a poetisa apresenta esses aspectos de
sua intimidade em seus versos? Para responder a essas questões, precisamos
retomar a ideia de imensidão ligada à intimidade que nos propõe Bachelard, pois
percebemos na poesia de Auta de Souza um sentimento de imensidão acerca de
momentos vivenciados principalmente em uma intimidade religiosa, uma vez que a
religião católica teve uma grande influência em sua vida e em seus escritos, além do
fato de as características desta religiosidade estarem sempre marcadas pela
grandiosidade de Deus e de tudo aquilo que ele criou, sendo inclusive grafadas com
inicial maiúscula. Percebemos também uma noção de imensidão atribuída a

140
SOUZA, 2001, p.274.
141
SOUZA, 2001, p.15.
142
SOUZA, 2001, p.274.
143
Verso da poesia Dolores (SOUZA, 2001, p.146).
52

sentimentos como a dor, o sofrimento e o medo. As imagens construídas na poesia


de Auta de Souza em torno desses sentimentos e da religião tornam-se mais claras
quando lemos as biografias produzidas sobre a poetisa, pois tais trabalhos nos
apresentam alguns aspectos da sua vida que não se encontram explicitados em
suas poesias, embora isso não signifique que não estejam presentes em seu Horto.
Como procuraremos demonstrar no decorrer deste trabalho, a obra de Auta de
Souza apresenta diversos aspectos de sua vida pessoal e íntima, podendo ser
entendida como, além de uma belíssima obra literária, um registro histórico pessoal
desenvolvido pela poetisa, pois

é relevante ressaltar que a escrita de si apresenta tanto elementos


ficcionais quanto elementos relacionados à história de vida de um
indivíduo, uma vez que ao construir o relato dessa vivência, a
narrativa apresentará características político-sociais da época em
que ocorreram os eventos que serão retomados144.

No entanto, devemos chamar atenção para este aspecto ficcional, uma vez que

A ficção é um modo particular de ver, descrever, compreender e


interpretar o mundo que arranca a âncora de referência factual do
mundo concreto (o chão que pisamos, o ar que respiramos) e a
coloca no reino paralelo das possibilidades. Na ficção, o dado real,
descola-se de seu peso incontornável e se transforma também em
imaginação145.

Essa narrativa poética de Auta de Souza foi uma forma de constituição de um


espaço íntimo que a poetisa procurou perpetuar como uma espécie de legado de
sua vida. Nesse legado narrativo poético mesclam-se a realidade da sua vida com
aspectos ficcionais – como, por exemplo, as constantes referências a anjos
relacionados sempre a crianças que a poetisa conheceu e que muitas vezes vinham
a falecer. Desse modo, Auta de Souza apresenta informações concretas sobre sua
vida em seus poemas, estando estas informações revestidas de uma narrativa
imaginativa e poética, característica que utilizamos para atribuir a este espaço

144
SILVA; MOREIRA, 2016, p.4.
145
TEZZA apud SILVA; MOREIRA, 2016, p.11.
53

construído pela poetisa – seja ele psicológico ou físico, existencial ou geométrico –


um caráter poético, ou seja, uma poética do espaço.
Podemos notar, por exemplo, a forma como Auta de Souza procura descrever
a si mesma em seus textos, ressaltando a doença, a dor, o sofrimento e a morte –
que julgava iminente para si – em muitos momentos. Como exemplo disso, podemos
citar o poema Dolores – apresentado na epígrafe deste capítulo –, no qual a poetisa
demonstra uma sensação de proximidade da morte, principalmente nos últimos
versos, nos quais escreve: “Porque me lembro que muito em breve/ Leva-me a ele
tanta dor física./ E dentro em pouco, branca de neve/ Verão o esquife da pobre
tísica”146. A proximidade com a qual Auta de Souza demonstrava encarar a morte e o
modo como a colocava perto de si em sua escrita apresenta um significado muito
mais profundo quando tomamos conhecimento da sua breve vida e da causa de sua
morte: a tuberculose, doença que também lhe tirou seus pais ainda criança. Esse
mesmo pensamento foi expresso no poema Ao pé do túmulo, no qual a poetisa
demonstra enxergar a morte diante de si ao escrever: “Eis o descanso eterno, o
doce abrigo/ Das almas tristes e despedaçadas;/ Eis o repouso, enfim; e o sono
amigo/ Já vem cerrar-me as pálpebras cansadas”147. A descrição da morte como
“doce abrigo”, “repouso”, “sono amigo”, além da descrição das “pálpebras
cansadas”, nos fazem ter uma ideia de como eram penosos, para a poetisa, os
constantes sintomas ocasionados pela doença, além de uma aceitação em relação à
morte, que lhe parecia cada vez mais iminente, a cada ataque da doença, assim
como em cada poema que escrevia sobre sua enfermidade.
Essa convivência com a tuberculose – fosse por enfermos, familiares ou
amigos de pessoas acometidas pela doença – não era algo raro no século XIX. Na
segunda metade desse século, a taxa de mortalidade da doença nas capitais
europeias ia de 400 a 600 pessoas a cada 100 mil, atingindo 30% da mortalidade
geral148, enquanto no Brasil há estimativas de que, por volta de 1855, a mortalidade
por tuberculose aproximava-se de 1/150 habitantes149. No entanto, esses dados em
geral contabilizam apenas os trabalhadores e pessoas abastadas dos centros

146
SOUZA, 2001, p.146.
147
SOUZA, 2001, p.238.
148
ROSEMBERG, 1999, p.3.
149
MACIEL et al, 2012, p.227.
54

urbanos desenvolvidos. Dos milhões de desvalidos que morreram consumidos pela


tuberculose, principalmente nos países subdesenvolvidos, tanto no passado como
na modernidade, praticamente nenhum dado ou notícia se tem em relação aos seus
sofrimentos e dramas150.
Contudo, apesar da sombra que pairava sobre o tuberculoso, as biografias de
Auta de Souza apresentam que a poetisa nunca foi evitada, repelida ou distanciada
151
. Aparentemente, “A tuberculose ainda não era impedimento para a vida social”152
no contexto vivenciado pela poetisa. Essa afirmação tem base no que apresenta
Cascudo em sua biografia sobre Auta ao declarar que ela não chegou a sofrer
qualquer tipo de ofensa ou segregação devido à sua condição de saúde. “Ninguém a
desconhece, a nega, a fere, literariamente. Unanimidade de elogio, de carinho, de
admiração compreensiva, de estímulo. A partir de 1898 seu nome era um orgulho
para a província inteira”153. Cascudo ressalta ainda que “É o que dizem depoimentos
verbais e toda documentação impressa”154, embora não apresente fontes ou
referência acerca dessas afirmações.
Auta de Souza, como apresentamos anteriormente, descobriu-se, aos 14 anos
de idade, acometida por uma das doenças mais comuns e mortais de sua época: a
tuberculose. A tísica, como era chamada, impunha sérios estigmas a um indivíduo e
a uma família, uma vez que "em meados do século XIX um quinto dos doentes
internados em hospitais tinham tuberculose e o coeficiente de mortalidade era em
torno de 700 por 100.000 habitantes"155. No entanto, para além desse estigma
existente em torno da mortalidade da tuberculose, a doença carregava também um
estigma social e racial, pois seria uma doença comumente atribuída a pessoas
pobres e negras. A tuberculose “[...] pode ser facilmente identificada como doença
ligada aos fatores sociais e econômicos, tornando o seu controle e combate algo
muito mais desafiante do que apenas estabelecer um tratamento de cunho
medicamentoso e terapêutico”156. O historiador Sidney Chalhoub, em seu livro

150
ROSEMBERG, 1999, p.6; GONÇALVES, 2000, p.305.
151
GOMES, 2013, p.190.
152
GOMES, 2013, p.82.
153
CASCUDO, 2008, p.183.
154
CASCUDO, 2008, p.183.
155
HIJJAR & PROCÓPIO, 2006, p.16.
156
LIMA, 2020, p.12.
55

Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial157, aponta que a deterioração


das condições de saúde pública, no contexto da segunda metade do século XIX no
Brasil, não se devia apenas à ocorrência de epidemias de febre amarela, varíola e
cólera, mas à mortandade crescente e constante ocasionada pela tísica. Segundo o
historiador, “[...] na verdade, era a ‘tísica’, isto é, a tuberculose, que ameaçava
‘tornar-se moléstia endêmica do país’”158. Devido ao panorama social e econômico, a
tuberculose apresentava – e apresenta até hoje – maior incidência entre os
indivíduos afrodescendentes. Ao longo da segunda metade do século XIX, as
condições de moradia às quais as pessoas de cor tinham que se submeter, com o
progressivo processo de libertação dos escravos que culminou na assinatura da Lei
Áurea em 13 de maio de 1888, eram espaços que propiciavam a proliferação de
doenças, em razão da ausência de mecanismos voltados ao asseio e à salubridade
dos locais de moradia destas pessoas. Assim, como não havia, por parte dos
poderes públicos, ações que suprissem as necessidades de saúde e qualidade de
vida dos mais pobres, estes indivíduos estavam entregues à própria sorte no
combate à tuberculose ou a qualquer outra enfermidade.
Embora a família Castriciano de Souza, diferentemente da grande maioria da
população negra do Brasil, apresentasse um relevante poder aquisitivo e status
social no contexto em que viviam, também foi uma família negra marcada pela
tuberculose, considerando que Henriqueta Leopoldina e Eloy de Souza, pais de Auta
de Souza, além de Henrique Castriciano e a própria Auta de Souza foram
acometidos pela tísica, sendo Henrique Castriciano o único que não veio a falecer
em decorrência da doença. Não por acaso, Auta de Souza vem a ser associada, na
biografia escrita por Cascudo, ao também poeta Cruz e Souza (1861-1898), que
também era negro e tuberculoso, mas, ao contrário da poetisa potiguar, era
paupérrimo e sofreu negação e evitação por parte dos intelectuais de seu tempo159.
Talvez a comparação entre as histórias desses dois poetas, ressaltando-se as
diferenças entre eles, não estivesse voltada apenas para os caracteres sociais e
culturais, ainda mais quando percebemos que Cascudo procurou apresentar, antes

157
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
158
CHALHOUB, 1996, p.32.
159
CASCUDO, 2008, p.183.
56

de qualquer outra coisa, que Cruz e Souza era “[...] negro, tuberculoso, paupérrimo”
160
, enquanto não há nenhuma referência ao fato de Auta de Souza ser negra. Sobre
ela, Cascudo procura chamar atenção para o fato de que “Com Auta de Souza nada
ocorre semelhantemente. Ninguém a desconhece, a nega, a fere, literariamente.
Unanimidade de elogio, de carinho, de admiração compreensiva, de estímulo”161.
Percebemos, portanto, que tuberculose e afrodescendência estavam
intrinsecamente ligadas também na vida de Auta de Souza, tendo ambas sido
minimizadas ou, quando possível, silenciadas ao máximo na memória construída
para a poetisa e sua família. Abordaremos de forma mais aprofundada essa questão
no terceiro capítulo deste trabalho.
“Apesar de promissora, a carreira literária de Auta de Souza terminou logo em
seu início. As crises advindas da tuberculose tornavam-se cada vez mais intensas,
sem encontrar-se remédio”162. A doença foi, sem dúvida, um limitador de tempo e
disposição à produção poética, pois “sua condição de doente, exigente de muitos e
exaustivos cuidados, a manteve numa situação desfavorável para sua
independência intelectual, uma vez que mantinha-se tutelada pelos irmãos”163 e
também pela avó Dindinha, embora estes incentivassem seus hábitos de leitura e
escrita. No entanto,

As limitações e cautelas das prescrições médicas deviam ser


observadas; tradicionalmente, o tuberculoso devia evitar expor-se ao
sereno e à friagem. Era preciso, também, restringir brincadeiras e
outras atividades que forçassem a respiração. Dindinha seguia as
regras, fazendo-se a enfermeira de plantão dos netos164.

“Auta teve uma vida sofrida pelas perdas sucessivas das pessoas que amava e
pela agonia vivenciada no dia-a-dia [sic], causada pela tuberculose. Todavia, todo
esse sofrimento teve um saldo positivo: o livro de poemas Horto”165. Seus poemas
são fruto dessa convivência com a doença e com a presença constante da morte,
sempre lembrada também pela recordação de sua mãe, seu pai e seu irmão Irineu –

160
CASCUDO, 2008, p.183.
161
CASCUDO, 2008, p.183.
162
GOMES, 2013, p.93.
163
GOMES, 2013, p.218.
164
GOMES, 2013, p.75.
165
FARIAS, 2013, p.71.
57

“seus mortos”, como descreveu Cascudo166. Esse cuidado da família e a reclusão em


razão da doença foram propícios a Auta de Souza para uma vivência relativamente
solitária e íntima, aspectos que se apresentam em seus textos e que tratamos como
algo característico da construção poética de um espaço íntimo deixado como legado
pela poetisa. Nesse sentido, Cascudo chega a afirmar que

Auta de Souza, tratada em casa, [...] Cumpria a tradição terapêutica


no plano doméstico e popular. [...] Suas "horas de descanso" eram
mais ou menos uma sesta prolongada, com livro na mão sob o olhar
inseparável de Dindinha. Indiscutivelmente esses períodos de
repouso, essa exigência de sossego, essas horas de tranqüilidade
[sic] ofereciam oportunidade (tão bem estudada pelos tisiólogos) para
a introspecção, a viagem interior, o devaneio, a criação poética167.

Encaramos esse movimento de introspecção, essa viagem íntima, como um


momento de mergulho no que seria dito como sendo o próprio “eu” realizado por
Auta de Souza, um aprofundamento na paisagem interior por meio de jornadas
sentimentais pela saudade e pelo sonho, devaneio refletidos e materializados em
forma de poemas – natureza física, moldura, enquadramento para os motivos
íntimos, fontes únicas deste fenômeno literário168. Concordamos com as afirmações
de Cascudo em sua biografia sobre a poetisa de que a tuberculose, por si só, não
tenha sido um fator determinante para que Auta de Souza tenha se tornado poetisa,
mas ressaltamos o papel da doença para esta vivência solitária e introspectiva,
notadamente nos momentos de piora em sua saúde, estando os relatos de alguns
destes momentos presentes em seus poemas e nas biografias sobre ela.
Percebemos, portanto, que a sua condição de tísica, a certeza de sua moléstia e a
sentença a um isolamento íntimo possibilitaram uma visão mais demorada e uma
análise mais lenta do mundo que a cercava169 e de como os acontecimentos da vida
afetavam a sua sensibilidade de moça católica, enferma, resguardada e protegida
pela família.
No entanto, nos chama a atenção o fato de que Auta de Souza não procurou
evitar nem mascarar sua doença em seus poemas. Cascudo chama a atenção para

166
CASCUDO, 2008, p.58.
167
CASCUDO, 2008, p.184.
168
CASCUDO, 2008, p.187.
169
CASCUDO, 2008, p.187.
58

esse fato atestando que o tuberculoso evitava o nome da doença, havendo em todos
os sanatórios do mundo uma sinonímia pitoresca, fugindo-se de usar o vocábulo
assustador, pois quem falava muito numa moléstia acabava sofrendo dela ou
piorando-a pela atração verbal170. Desse modo, observamos que era comum
criarem-se nomes que procurassem mascarar a tuberculose, tais como “Dama
Branca”171, “Peste Branca”172, “bacilo de Koch”173, “tísica” – nomenclatura comumente
utilizada por Auta de Souza em seus textos –, entre outros nomes populares. Os
estudos sobre a história da tuberculose mostram que “No final do século XIX, a
morte por tuberculose numa família era estigmatizante, pois a moléstia estava
associada a algum obscuro defeito hereditário ou mesmo à pobreza. Essa doença,
vista como misteriosa e incurável, era capaz de despertar vários tipos de pavor”174.
Desses fatores, o elemento hereditário é o mais provável para o aparecimento da
doença em Auta de Souza, tendo a mesma enfermidade acometido também seu
irmão Henrique Castriciano. Ao contrário do que era habitual em sua época, a
poetisa procurou expressar em seus versos os incômodos que a doença lhe
provocava, assim como seus momentos de medo e de aceitação em relação à sua
enfermidade, revelando aspectos psicológicos e existenciais que não teriam sido
registrados se não por sua própria narrativa. A poesia de Auta de Souza é, portanto,
uma importante fonte de estudo não apenas para a história da tuberculose, mas
também para a história das mulheres acometidas por essa enfermidade, uma vez
que “No século XIX, a tuberculose atingiu gravemente as mulheres, principalmente
as mulheres do povo, subnutridas crônicas”175, porém, desconhece-se ou pouco
valoriza-se as escassas fontes existentes sobre o assunto.
A narrativa poética de Auta de Souza, dessa forma, se constitui como um
depoimento direto de uma pessoa atormentada pela morte e por uma doença que
não possuía cura em sua época. Eloy de Souza, irmão da poetisa, escreveu em sua

170
CASCUDO, 2008, p.175.
171
CASCUDO, 2008, p.173; SOARES, Pedro Paulo. A dama branca e suas faces: a representação
iconográfica da tuberculose. História, Ciências, Saúde. Manguinhos, Rio de Janeiro, v.1, n.1,
p.127-134, jun.-jul. 1994. Disponível em:
<https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-59701994000100012&script=sci_arttext>. Acesso em:
07 jul. 2020.
172
MACIEL et al, 2012, p.226.
173
CASCUDO, 2008, p.59.
174
CLEMENTINO et al, 2011, p.639.
175
PERROT, 2007, p.42.
59

autobiografia que “[...] a moléstia terrível [...] não perdoou nem lhe deu esperanças
de voltar à vida almejada num sonho de mocidade. Por isso sua poesia é triste,
tristes seus pensamentos, tristes os dias que nunca mais amanheceram na claridade
de futuro promissor”176, sendo “As noites de longas insônias [...] marcadas por
acessos de tosse quintosa que a prostravam [sic] exausta”177. Auta de Souza
apresenta sua luta contra a doença em alguns momentos, por exemplo, ainda em
Dolores, quando escreve: “E assim morrendo, coitada, aos poucos,/ Convulsa e fria,
louca de espanto,/ Solto suspiros, soluços roucos,/ Olhando as cruzes do campo
Santo”178. Assim como em Penas de Garça, ao escrever: “Quem dera que eu fosse
lírio,/ Ó minha Virgem Maria!/ Ao menos, esse martírio/ Durava somente um dia”179.
A tormenta180 da doença, embora interrompesse o sono, a alegria, a vida de Auta de
Souza, tornou-se motivo para versos, eternizando não apenas os pássaros e as
flores – símbolos de momentos alegres na poesia auteana – de sua vida, mas
também seus momentos de dúvida e de dor.
São esses elementos da intimidade de Auta de Souza, de sua maneira de
pensar e encarar a vida, que nos chamam a atenção em sua poesia, pois
apresentam esta constituição de um espaço íntimo que a poetisa demonstra ter
procurado materializar por meio de sua escrita poética. Por meio dos versos, a
autora procurou expressar suas tristezas, seus medos, suas dores, assim como os
desejos e sonhos que imaginava que não poderia realizar por causa de sua
condição de tísica e da proximidade da morte. Exemplo disso podemos ler em
Falando ao Coração, em que a poetisa, falando diretamente para seu próprio
coração, diz: “Esquece a louca e pálida amargura/ Que há tantos anos meu viver
tortura.../ Canta o teu hino de ilusão querida,/ Esquece tudo o que não seja a Vida/
E, para o Céu das alegrias mansas,/ Conduz nas asas minhas esperanças…”181.
Podemos perceber, dessa forma, um desejo da poetisa de esquecer as amarguras e
torturas de sua vida, no entanto, ela direciona ao “Céu” suas alegrias e esperanças,

176
SOUZA, 2008, p.78.
177
SOUZA, 2008, p.78.
178
SOUZA, 2001, p.146.
179
SOUZA, 2001, p.234.
180
Henrique Castriciano assim descreve, na última frase de sua Nota escrita para a segunda edição
do Horto, o sofrimento vivido pela irmã (SOUZA, 2001, p.275).
181
SOUZA, 2001, p.244.
60

ao paraíso prometido por sua devoção religiosa e que encarava como o seu destino
breve. Porém, os versos que julgamos expressarem mais claramente esses
sentimentos de tristeza, aceitação da morte e distanciamento da vida se apresentam
em Hoje182, soneto escrito pela poetisa em seu aniversário de 18 anos, em 12 de
setembro de 1894:

Fiz anos hoje... Quero ver agora


Se este sofrer que me atormenta tanto
Me não deixa lembrar a paz, o encanto,
A doce luz de meu viver de outrora.

Tão moça e mártir! Não conheço aurora,


Foge-me a vida no correr do pranto,
Bem como a nota de choroso canto,
Que a noite leva pelo espaço em fora.

Minh’alma voa aos sonhos do passado,


Em busca sempre desse ninho amado
Onde pousava cheio de alegria.

Mas, de repente, num pavor de morte,


Sente cortar-lhe o vôo a mão da sorte...
Minha ventura só durou um dia.

“Tão moça e mártir”, Auta de Souza expressa seu momento de alegria ao sentir
sua alma voar aos sonhos do passado, ao ninho amado de sua infância, sempre
lembrada em seus poemas por meio das imagens de crianças, da mãe e dos irmãos.
Mas essa ventura dura somente um dia, o dia de seu aniversário, dia de Santa Auta,
também virgem e mártir – como descreveu Cascudo –, sentindo um pavor repentino
de morte cortar seu voo, talvez um acesso de tosse ou um calafrio, não lhe deixando
viver plenamente esses momentos de paz e encanto.
Mas como essas características pessoais e íntimas da vida de Auta de Souza
são apresentadas nas biografias da poetisa? Esses aspectos são utilizados por
alguns de seus biógrafos para classificar sua obra como pertencente à Segunda
Geração Romântica da literatura brasileira. Nesse sentido, a Profa. Dra. Ana
Laudelina F. Gomes, biógrafa da poetisa, cita o advogado e professor Mário Moacyr
Porto (1912-1997), que declara:

182
SOUZA, 2001, p.261.
61

A tristeza, a dor e a amargura de seus versos expressariam tão


somente a atitude mental da poeta, que, como todos os poetas, finge
e sinceramente acredita no sofrimento que finge.
Além disso, acrescentava, “[...] o romantismo da época favorecia a
poética desconsolada e lúgubre. Era bonito, naquele tempo, dividir a
vida entre a tuberculose e as novenas”183.

Não é nosso objetivo averiguar se os sentimentos expressados por Auta de


Souza em seus textos eram fingimento ou não, pois acreditamos que isso seja
impossível. Porém, acreditamos que esse pensamento seja fruto de aspectos da
vida da poetisa apresentados em trabalhos biográficos, entre os quais destaca-se a
biografia de Auta de Souza escrita por Luís da Câmara e publicada em 1961,
intitulada Vida Breve de Auta de Souza: 1876-1901. Sobre a poetisa, Cascudo
declara que:

Bem ao contrário, convivia alegremente com as moças de sua


cidade, conversando, confidenciando, acompanhado-as nos passeios
(inclusive para ver as flores humildes nas tardes de inverno,
bordando as margens do rio), festinhas domésticas, os “assustados”
com danças, quadrilhas, valsas e schottischs, sob infatigável piano
tocado por mãos conterrâneas184.

Cascudo escreve ainda que Auta de Souza participava dessas festinhas e


dançava animadamente, declamando seus versos nos momentos recitativos ao som
do piano nesses encontros185. Novamente precisamos ressaltar que Cascudo não
chegou propriamente a conhecer a poetisa186, mas ele procura validar seu discurso
afirmando: “Procurei e ouvi suas amigas de Macaíba, olhei os lugares onde ela
vivera, na paisagem imutável. Obtive a recordação sempre límpida do irmão Eloy de
Souza. Tinha notas largas de conversas horas e horas, com Henrique [Castriciano]”
187
. Não duvidamos da veracidade dos escritos de Cascudo, no entanto, também
levamos em consideração a presença efêmera dessas relações estabelecidas por

183
PORTO apud GOMES, 2013, p.197.
184
CASCUDO, 2008, p.63.
185
CASCUDO, 2008, p.64.
186
Câmara Cascudo declara este fato em carta escrita a Henrique Castriciano, datada de 23 de
fevereiro de 1943, ao escrever que “Não fui do número dos que a conheceram de perto” (CASCUDO,
2008, p.121).
187
CASCUDO, 2008, p.24-25.
62

Auta de Souza, uma vez que a poetisa precisou realizar constantes viagens desde
1890, aos 14 anos de idade, em razão de sua doença. Ela demonstra saudades das
amigas nos títulos, dedicatórias e conteúdo de alguns de seus poemas. Até mesmo
seu Horto – a obra de sua vida, este espaço íntimo que ela procurou construir
poeticamente – é dedicado “Às boas irmãs do Colégio da Estância, em Pernambuco,
almas formosas e santas que me educaram o coração e o espírito, ofereço o que há
de mais puro nestes singelos versos”188, amizades “que acompanharam
espiritualmente sua alegria, sonho, mágoa, exílio simbólico, presentes nas horas
melancólicas”189.
Porém, aqueles que mais estão presentes na obra de Auta de Souza são os
seus familiares: os que com ela conviveram por toda a sua vida – a sua avó
Dindinha e seus irmãos Eloy de Souza, Henrique Castriciano e João Câncio – e
principalmente aqueles que a deixaram muito cedo – sua mãe Henriqueta
Leopoldina, seu pai Eloy de Souza e seu irmão Irineu Leão de Souza. A esses
últimos, Auta de Souza dedica alguns de seus poemas mais cheios de tristeza e de
saudade, versos que revelam um estado de espírito atormentado pela proximidade
da morte não apenas para si mesma, mas também para aqueles a quem amava.
Sobre sua mãe, falecida em 1879, a poetisa escreveu em Mater: “Depois que te
partiste e os teus pobres filhinhos,/ Pequeninos e sós, deixaste na orfandade,/
Ficamos a chorar - implumes passarinhos! -/ Que os pássaros também soluçam de
saudade”190. Também em Chorando191, que dedica “À alma santa de minha Mãe”,
Auta de Souza escreve:

Fazia noite... A tristeza O mãe! por que me deixaste


Tudo envolvia em seu véu; No mundo sem teu amor?
Soluçava a Natureza, Sou como lírio sem haste
Caia orvalho do Céu. Murchando triste inda em flor.

E naquela noite assim, Podias ter-me levado


Tão tenebrosa e tão fria! Ao Céu contigo, divina.
A minha mãe se partia Iria em teu seio amado:
Para o Céu azul sem fim Eu era tão pequenina!

188
SOUZA, 2001, p.10.
189
CASCUDO, 2008, p.58.
190
SOUZA, 2001, p.75.
191
SOUZA, 2001, p.166-167.
63

Falou-me a chorar: filhinha, Fiquei sozinha e perdida,


O vício do mundo aterra... O mãe! no mundo de abrolhos.
Tu'alma reúne à minha, Na noite de minha vida
Fujamos ambas da terra. Derrama a luz de teus olhos!

Beijou-me... e, qual sonho doce, Quanta tristeza se encerra


Sua vida evaporou-se. Do mundo no escuro véu!
Não quero morar na terra;
Contigo leva-me ao Céu!

A ausência da mãe foi, portanto, uma marca profunda na vida de Auta de


Souza, ressaltada em diversos momentos como em Bendita (1893)192, Minha Mãe
(1893)193, À alma de minha mãe (1895)194, Mater (1896)195, Chorando (1897)196 e
Eterna dor (1898)197. Os traços da saudade, da ausência, da tristeza e da solidão
são característicos nesses textos, produzindo um efeito melancólico sentido em toda
a obra da poetisa. Esses poemas estão marcados principalmente pela expressão do
sentimento de saudade da mãe, como podemos observar claramente nos versos
“Ficamos a chorar - implumes passarinhos! -/ Que os pássaros também soluçam de
saudade”. Saudade que, como podemos observar no poema Chorando, transcrito na
íntegra anteriormente, em alguns momentos liga-se ao seu desalento em relação à
vida, sua solidão, chegando a expressar “A trêmula saudade que entristece/ E faz
desfalecer;/ Essa agonia que me inspira/ Desejo de morrer”198, como escreve no
texto que intitula Desalento. Desalento sentido pelo abandono da mãe que “partia
para o Céu azul sem fim”, deixando-a “sozinha e perdida neste mundo de abrolhos”,
evocando-lhe também o desejo de partir, de ir com a mãe morar no Céu – com inicial
maiúscula, ressaltando a ideia de paraíso, onde estaria mais próxima de Deus –
demonstrado em Chorando. Esses poemas de Auta de Souza nos fazem pensar
acerca do peso da saudade na vida da poetisa, saudade expressa em muitos de
seus versos, nessa construção de seu espaço íntimo, naquilo que permaneceria
após sua morte: seu Horto.

192
SOUZA, 2001, p.164.
193
SOUZA, 2009, p.265
194
SOUZA, 2001, p.201.
195
SOUZA, 2001, p.51.
196
SOUZA, 2001, p.166-167.
197
SOUZA, 2001, p.187.
198
SOUZA, 2001, p.81.
64

Quando ressaltamos a relevância da saudade na construção desse espaço


íntimo de Auta de Souza, levamos em consideração que “A saudade é um
sentimento pessoal de quem se percebe perdendo pedaços queridos de seu ser, dos
territórios que construiu para si”199. A família foi um desses territórios para Auta de
Souza, um local de segurança, acolhimento e tranquilidade diante das dores e dos
sofrimentos do mundo, mas que foi “perdendo pedaços” – no caso, entes queridos
que amava e que se somavam àqueles que não mais estavam com ela. Talvez por
essa razão Cascudo questionou-se acerca da obra de Auta de Souza: “Seriam a
valorização do ‘eu’ e o deslumbramento da paisagem interior, jornadas sentimentais
pela saudade?”200. Julgamos que sim, pois Auta de Souza procura dedicar sua obra
àqueles que amava, sua família e amigos, principalmente os seus mortos,
corroborando a ideia de que a saudade alimenta e é alimentada pelo amor, pela
afeição: quanto mais se ama, mais se sente saudade de alguém, sendo essas
relações entre saudade e amor estabelecidas por meio da memória201. A memória
evoca a ausência daqueles que se ama, marcada por um estado de tristeza e
desgosto profundo, mas não só isso, também o fato de que esse estado tem um
motor que é continuamente retroalimentado pela memória, enquanto esta trouxer de
volta a lembrança de quem se ama202. A recorrente presença nos poemas de Auta
de Souza da mãe, do pai e do irmão falecidos em sua infância demonstra esse
constante retorno das memórias e da saudade desses entes queridos, estes locais
de seu espaço íntimo que se encontravam vazios, sem a presença daqueles que ela
amava, reforçando o sentimento de solidão que marcou sua poesia. Tal sentimento
era um deserto de intimidade203, uma imensidão vivida na intimidade do lar, da
religião, da família e da poesia.
Para seu irmão Irineu Leão de Souza, morto aos 12 anos de idade em um
acidente em casa com um candeeiro de querosene, Auta de Souza dedica versos
cheios de luto e tristeza, como os de Goivos, datado de 1897 e dedicado “À memória
de Irineu”, no qual escreve: “Mas... a gaiola vazia,/ Que eu conservo noite e dia,/

199
ALBUQUERQUE JR., 2011, p.78.
200
CASCUDO, 2008, p.187.
201
REESINK, 2012, p.380.
202
BERTINI, 2016, p.5.
203
GOMES, 2013, p.253.
65

Não sabem? É o Coração…/ É dentro dele que mora,/ E dentro dele que chora,/ A
alma do meu irmão!”204. A poetisa demonstra sua dor e saudade do irmão também
no soneto que intitula Irineu205:

Num dia turvo assim foi que partiste


Cheio de dor e de tristeza cheio.
Eu fiquei a chorar num doido anseio
Olhando o espaço merencório, triste.

Não sei se mágoa mais profunda existe


Que esta saudade que me oprime o seio,
Pois a amargura que ferir-me veio
Naquele dia, ó meu irmão! persiste.

Os anos que se foram! Entanto, eu cismo


A todo o instante, no profundo abismo
Que veio a morte entre nós dois abrir.

Mas cada noite n'asa de uma prece,


Ou num raio de sol quando amanhece,
Vejo tua alma para o céu subir…

A saudade que oprime o seio, cheio de dor e de tristeza, diante da lembrança


da morte do irmão, persiste na memória e nos versos de Auta de Souza. Trata-se,
portanto, de um constante retorno a esse evento da morte de um ente querido com o
qual, diferente de seus pais, ela conviveu por alguns anos e que guardou claramente
na memória, dada a relação que tinha com ele e o impacto do ocorrido. A morte
deixa um vazio que é tomado, embora não preenchido, pela saudade, que ao
mesmo tempo alivia e aumenta o vazio206.
Para Auta de Souza, a saudade era um espinho do coração207, mas que ela
também apresenta, em Simples, da seguinte forma: “Eu amo as minhas
lembranças,/ Minhas saudades e dores,/ Assim como amo as crianças,/ Os
passarinhos e as flores”208. Como discutimos anteriormente, pássaros e flores eram
símbolos de momentos bons e felizes para a poetisa, de modo que contrastam com
as saudades e dores que ela declara amar. Nesse mesmo sentido, Auta escreve em

204
SOUZA, 2001, p.86.
205
SOUZA, 2001, p.255.
206
REESINK, 2012, p.379.
207
Cantai (SOUZA, 2001, p.138).
208
SOUZA, 2001, p.162.
66

Penas de garça que “Quando eu morrer, vou assim/ Sustendo meu coração…/
Saudade da terra? Sim!/ Saudade da vida? Não!”. Como seria possível sentir
saudade da terra, mas não da vida? Sobre o assunto, Ana Laudelina Gomes aponta
que

No sonho da poeta, há um tempo em que é chegada a hora de viver


a saudade. Parece estar a dizer: apesar de tudo, apesar da
efemeridade da vida, a mostrar que tudo passa e tem seu tempo de
acontecer, a vida vale a pena. Se não fosse assim, como seria
possível sentir saudade?209

Para Auta de Souza, “Nas ruínas da Mocidade/ É quando pousa a Saudade…”


210
. Talvez, para a poetisa, fosse esse o tempo de viver a saudade, momento no qual
julgava estar não por questões de idade, mas pela condição de saúde daquele “[...]
coração abatido [...] e daquela presença envelhecida e cansada, tantas vezes ferida
pela espada do sofrimento”211. Essas ruínas de que fala Auta de Souza demonstram
a perda desses pedaços queridos de seu ser – como nos diz Albuquerque Jr. – dos
dias marcados pela doença e pela constante lembrança daqueles que partiram para
sempre. Desse modo, entendemos que Auta de Souza procurou construir seu Horto
como forma de reunir esses pedaços de seu próprio ser, de sua vida, de seus
familiares e de seu contexto, buscando construir um legado, algo permanente para
estes aspectos que ela demonstrava entender como passageiros. Câmara Cascudo
e Ana Laudelina Gomes ressaltam que o que há de “‘permanente’ na poesia de Auta
[de Souza é] [...] o lirismo, espontâneo, perene, legítimo pelas profundas fontes
emocionais”212. Essas profundas fontes emocionais foram as bases para a
construção do que concebemos como um espaço íntimo que Auta de Souza revela
em sua obra, trazendo à tona o que havia de mais marcante em sua vida e mais vivo
em sua sensibilidade, registrando em versos e estrofes aquilo que refletia em seu
íntimo acerca da vida.
Levando em consideração os constantes deslocamentos que Auta de Souza
realizou desde seus 14 anos, quando descobriu-se acometida pela tuberculose, nos

209
GOMES, 2013, p.253.
210
Cores (SOUZA, 2001, p.130).
211
SOUZA, 2008, p.79.
212
CASCUDO, 2008, p.152; GOMES, 2013, p.194.
67

chama a atenção o fato de que a poetisa permaneceu escrevendo seus poemas


apesar de todos os percalços de sua vida, procurando registrar local e data em
muitos desses textos, pois imaginamos as dificuldades para uma jovem acometida
por uma doença grave e sem cura, obrigada a abandonar os estudos e realizando
constantes viagens em busca de melhoras para a sua saúde, haver conseguido
registrar e guardar uma obra tão rica e sensível. Eloy de Souza registra em suas
Memórias algumas dificuldades dessas viagens, ressaltando que “Fomos e voltamos
ainda em outras viagens sempre menos felizes”213.
É bastante plausível que Auta de Souza reconhecesse, para além do valor
pessoal, o valor literário de seus escritos, desejando que seus poemas fossem
apreciados em todo o Brasil e também no exterior, uma vez que também escreveu
em francês214. Eloy de Souza escreve em suas Memórias que a irmã, com sua
poesia de rimas espontâneas e inspiração virtuosa, não buscou nem fama nem
glória, mas deixar uma mensagem que a fizesse ser lembrada na memória dos seus
e de todos, pela força do sangue ou do amor215. Para Cascudo, Auta de Souza
deixou “um livro de saudades que é o cancioneiro geral das nossas tristezas”216, obra
que revela um “desejo expresso de perpetuidade na lembrança”217 de todos aqueles
a quem seus versos viessem a alcançar. O Horto foi um espaço íntimo e poético que
proporcionou a permanência e segurança necessárias a Auta de Souza nas
constantes mudanças de sua vida, algumas comuns da juventude, mas também, e
principalmente, para aquelas discutidas neste capítulo, momentos de dor, tristeza e
sofrimento que observamos em seus versos e em sua história de vida. A produção
desse espaço – marcada por uma intimidade psicológica e existencial de reflexão
por parte de Auta de Souza acerca de sua vida e de seus sentimentos – pode ser
percebida como uma maneira de suavizar os perigos da solidão por meio da
companhia desempenhada pela escrita, como apresenta Foucault, levando em
consideração a importância da escrita como uma forma de desabafo para o
escrevente218.

213
SOUZA, 2008, p.82.
214
Agnus Dei (SOUZA, 2001, p.259-260).
215
SOUZA, 2008, p.79.
216
CASCUDO, 2008, p.17.
217
CASCUDO, 2008, p.121.
218
FOUCAULT apud SILVA; MOREIRA, 2016, p.2.
68

No entanto, não devemos pensar que Auta de Souza tenha vivido apenas
momentos tristes e que não tenha desejado viver mais. Devemos levar em
consideração que

Quando lemos uma história de vida, devemos estar sempre


conscientes de que o autor nos conta apenas uma parte de sua
história, que escolhe os fatos de maneira a nos apresentar uma certa
imagem elaborada de si. [...] A narrativa de vida não se prende à
descrição exata dos fatos. Ela obedece, isso sim, à exigência de
fidelidade a si mesmo, segundo a ordem dos valores reveladores do
sentido de uma vida, na plenitude de sua permanente atualidade219.

219
ARAGÃO, 1992, p.4.
69

Esse processo de escolher, ordenar e narrar os acontecimentos da própria vida


pode ser entendido como uma “[...] busca de coerência, ao selecionar certos
acontecimentos significativos e ao estabelecer entre eles conexões, criando
artificialmente um sentido”220, embora, como já ressaltamos, este caráter artificial da
construção de uma narrativa não deva ser encarado enquanto mentiroso, mas como
um processo de ficcionalização, comum a uma escrita de caráter literário.
Desse modo, para compreendermos mais precisamente essa construção
narrativa produzida por Auta de Souza, inspirados nos escritos de Gaston Bachelard,
nos propomos a fazer um movimento que parte desta dimensão interior em direção a
aspectos do exterior, uma dialética do interior e do exterior221. Como temos
observado neste capítulo, a convivência com amigos e conhecidos teve grande
influência na vida e na obra da poetisa, tendo ela procurado narrar, em sua poesia,
alguns desses momentos vivenciados com outros sujeitos. Mas como uma jovem
doente e cercada pelos cuidados da família poderia ter tido contato com essas
muitas histórias e seus envolvidos, chegando a dedicar poemas marcados por uma
profunda sensibilidade em relação às suas dores e sofrimentos? As constantes
mudanças em busca de saúde foram essenciais para que Auta de Souza
proporcionasse à sua poesia o que seu irmão Henrique Castriciano descreveu como
a verdadeira consagração de sua obra: a reprodução das emoções mais íntimas de
nossa gente, a expressão exata do sofrimento alheio a partir de seu próprio
sofrimento222.
Por meio dessa vivência com amigos e conhecidos seus e de sua família,
assim como de sua capacidade singular de traduzir em versos as dores de sua vida,
assim como da vida daqueles que conhecia, Auta de Souza teria conseguido,
segundo Eloy de Souza, conquistar um lugar no coração do povo, que hoje canta
seus versos num desafio de eternizar a vida e obra da poetisa223. A partir dessas
vivências transcritas em versos por Auta de Souza e das narrativas acerca dessas
constantes viagens realizadas pela poetisa em companhia de sua avó Dindinha e de

220
LIMA; SANTIAGO, 2010, p.29.
221
BACHELARD, Gaston. A dialética do exterior e do interior. In: ______. A poética do Espaço. São
Paulo: Martins Fontes, 1993. pp.215-233.
222
SOUZA, 2001, p.274.
223
SOUZA, 2008, p.79.
70

seus irmãos, contadas principalmente nos trabalhos biográficos produzidos sobre a


poetisa, é que julgamos necessário estudar as marcas, os traços, as influências
deste espaço exterior no espaço interior, íntimo e existencial construído por Auta de
Souza em seu Horto.
71

CAPÍTULO II - A CAMINHO DO HORTO

Não se observa em seus versos somente vontade de desvencilhar-se


do sofrimento através da morte, mas também uma inconformidade
pelos sofrimentos que esta causou naqueles que foram separados de
seus entes queridos. Neste ponto sua poesia está significativamente
relacionada aos sofrimentos que ela viveu224.

Embora, como já apresentamos, encaremos a obra de Auta de Souza como


uma construção de um espaço íntimo realizado de forma poética, entendemos que
qualquer espaço íntimo é também um reflexo dos contatos com outros espaços –
não apenas com outros recortes espaciais físicos, mas também com outras histórias,
outros espaços íntimos – com os quais todos nós estabelecemos relação. Nesse
sentido, podemos perceber que apesar das limitações impostas pela família, pela
doença e por sua religião, Auta de Souza ainda pôde circular bastante, tanto
fisicamente quanto por meio de seu nome e de sua obra. Por meio dessas
oportunidades, a poetisa pôde realizar contatos intelectuais e também pessoais que
proporcionaram à sua poesia um maior diálogo com diferentes realidades que, de
diferentes formas, conectavam-se com a sua história de vida. Provavelmente por
esse motivo a popularidade de suas poesias foi constantemente ressaltada por seus
críticos, pessoas próximas e pesquisadores de sua vida e obra.
Henrique Castriciano, por exemplo, declarou que “[…] antes de [Auta de Souza]
finar-se ouviu da boca de centenas de infelizes muitos dos versos que traçara com
os olhos lacrimosos”225. Já Eloy de Souza escreveu que os poemas de rimas
espontâneas e inspiração virtuosa da irmã deram a ela “[...] um lugar no coração do
povo, que hoje canta seus versos num desafio de eternidade”226. Câmara Cascudo,
por sua vez, escreveu na biografia da poetisa que “seus versos eram transcritos,
declamados nas festas, cantados nas serenatas e mesmo nas igrejas, como
louvores a Nossa Senhora”227. Nalba de Souza Leão ressaltou que a obra de Auta
de Souza é “[…] comprometida com o povo, cujas necessidades, aspirações e

224
LOPES, 2016, p.104.
225
SOUZA, 2001, p.274.
226
SOUZA, 2008, p.79.
227
CASCUDO, 2008, p.110.
72

sentimentos, a poetisa soube expressar em seus poemas”228. O médico e crítico


literário Esmeraldo Homem de Siqueira, em entrevista a Nalba Leão, comentou que,
com o Horto, Auta de Souza ficou na alma do povo, pois é um livro eterno, “[…]
porque retrata [...] com muita ternura, com muita suavidade, com muita clareza o
sentimento da poetisa que soube, assim, aproximar-se do povo”229.
Ana Laudelina Gomes problematiza essa pretensa popularidade da obra de
Auta de Souza uma vez que “por essa via, o popular é associado ao simples, ao
espontâneo, àquilo sem o apuro da forma […]”230, podendo atribuir um caráter menor
à obra da poetisa, pois denotaria uma visão de caráter sexista, “[…] uma vez que, na
época, semelhantes observações jamais seriam usadas para comentar uma obra de
autoria masculina”231. Essa divergência de ideias fica clara quando analisamos aquilo
que Nalba Leão e Ana Laudelina Gomes apresentam enquanto “ressonância” da
obra de Auta de Souza. Para Nalba Leão, a obra de Auta de Souza “[…] encontrou
verdadeira ressonância, entre as camadas mais populares, leitores ideais para os
seus versos de rimas simples e espontâneas que passaram a ser musicados e
depois cantados […]”232. Já para Ana Laudelina Gomes, “[…] a obra de Auta é muito
maior do que aquilo que ela escreveu, pois se multiplica e se atualiza
constantemente em inúmeras ressonâncias, como é o caso dos cancioneiros”233. Em
ambos os casos, a musicalização representa um marco importante do alcance, ou
da ressonância, dos textos de Auta de Souza. No entanto, enquanto para Leão essa
musicalização por parte das camadas populares aparece como a “verdadeira
ressonância” da obra da poetisa, para Gomes esse processo é entendido como
“uma das inúmeras ressonâncias” alcançadas por Auta de Souza, ressonância que
“se multiplica e se atualiza constantemente”.
Compreendemos e valorizamos a interpretação de Nalba Leão, uma vez que,
para nós, é clara a relevância dos sujeitos menos favorecidos no interior de seus
versos e fora deles, pelo alcance conquistado pela obra de Auta de Souza. Porém, a
interpretação de Ana Laudelina Gomes nos parece mais apropriada quando levamos

228
LEÃO, 1986, p.2.
229
LEÃO, 1986, p.277.
230
GOMES, 2013, p.170.
231
GOMES, 2013, p.157-158.
232
LEÃO, 1986, p.4.
233
GOMES, 2013, p.352.
73

em consideração que a ressonância da poesia de Auta de Souza pode ser


observada em contextos muito diversos, que vão desde o cancioneiro popular –
como o do estado do Rio Grande do Norte, o que pode ser observado a partir das
publicações de pesquisadores musicais e músicos contemporâneos, como Cláudio
Galvão, Alvamar Medeiros e Mirabô Dantas234, assim como de outros estados do
Brasil como Paraíba, Pernambuco, Pará235, Rio Grande do Sul, Santa Catariana e
São Paulo236 – até a existência de pesquisas, obras e instituições, seja de caráter
religioso, educacional ou literário, que carregam o nome da poetisa e que divulgam
sua vida e obra. Percebemos, portanto, que a poesia de Auta de Souza encontra-se
inserida em diferentes espaços, assim como a sua obra reúne espaços diversos que
ela conheceu e vivenciou. Uma vez que sabemos que a experiência humana do
mundo é espaço-temporal, o que é observável na vida social de qualquer indivíduo237
, consideramos que Auta de Souza utilizou-se de seu talento poético para
transformar em versos o seu contexto, todos os espaços que vivenciou e todos
aqueles que conheceu. Conseguimos distinguir e estudar alguns desses espaços e
dessas pessoas graças a referências presentes em títulos, versos ou dedicatórias.
Outras talvez nunca consigamos perceber, pois o nosso conhecimento e a nossa
percepção não possuem informações, dados e fontes suficientes para encontrar e
pesquisar sobre essas histórias.
Neste capítulo procuraremos apresentar outras histórias, outros espaços e
outros caminhos que cruzaram a vida e a poesia de Auta de Souza e que foram
inseridos e eternizados em seu espaço íntimo, em seu Horto. Tais histórias foram
registradas pela poetisa em grande parte devido aos deslocamentos que realizou em
busca de condições climáticas favoráveis à melhora da sua saúde. Cascudo se
refere a esse momento da vida de Auta de Souza ao relatar que Dindinha teve que
retornar com os netos de Recife para Macaíba, para o agreste e o sertão
norte-rio-grandenses, para as fazendas de clima seco, para que ela pudesse
recobrar a saúde, se restabelecer e se reintegrar aos estudos que se interromperam

234
GOMES, 2013, p.356.
235
GOMES, 2013, p.99.
236
GOMES, 2013, p.101.
237
SILVA, 2015, p.66.
74

238
. Ana Laudelina Gomes, por sua vez, ressaltou que “Constatada a doença de
Auta, sua avó passou a viajar constantemente com ela e os irmãos para locais de
clima seco, ao agreste e ao sertão norte-rio-grandense, em busca de melhoras para
a saúde da menina”239. Após ter que abandonar os estudos, a poetisa passou a
realizar constantes deslocamentos pelo Rio Grande do Norte, procurando amenizar
os sintomas da tuberculose, doença quase sempre mortal até a descoberta da
penicilina pelo médico e bacteriologista escocês Alexander Fleming (1881-1955), em
1928. Como ressaltado por Cascudo, no século XIX, “o remédio clássico, herdado de
Portugal e secular na Europa, era a mudança de ares”240 e as “horas de descanso”241
. O biógrafo da poetisa descreveu uma parte dessas mudanças de ares realizadas
por Auta de Souza entre os anos de 1896 e 1899 ao escrever que

[Auta de Souza, no ano de 1896,] Fica todo o inverno e parte do


verão em Angicos. Março a outubro. Em novembro está em Macaíba,
permanecendo os primeiros meses de 1897. […] Em janeiro, está em
Macaíba, mas fica o inverno, até agosto, na fazenda Jardim.
Setembro a princípios de dezembro vai para Nova Cruz, no agreste.
Em dezembro sobe, com o irmão João Câncio, para a Serra da Raiz,
na Paraíba. […] Auta deixa Serra da Raiz em março de 1898. […] Até
agosto, em Macaíba, e o resto do ano e os dois primeiros [meses] de
1899, na povoação de Utinga, no então município de São Gonçalo242.

Embora Cascudo não apresente de que modo chegou às informações


apontadas anteriormente acerca dos deslocamentos realizados por Auta de Souza,
julgamos que os locais e datas apresentados pela poetisa ao final de alguns de seus
poemas poderiam nos dar uma ideia dos caminhos percorridos em suas viagens.
Desse modo, procuramos organizar, na Tabela 1, os textos de Auta de Souza que
continham local e data para verificarmos mais precisamente esses deslocamentos
realizados pela autora. Nela, o período comentado por Cascudo encontra-se em
destaque:

238
CASCUDO, 2008, p.59.
239
GOMES, 2013, p.73.
240
CASCUDO, 2008, p.65-66.
241
CASCUDO, 2008, p.184.
242
CASCUDO, 2008, p.83-90.
75

Tabela 1 – Poemas de Auta de Souza que apresentam o registro do local onde foram
produzidos

Título Local Data Dedicatória

Soneto Macaíba 1893

Desalento Jardim 1893

Bendita Jardim 1893

À Memória de Uma Ave Jardim 1893

Feliz Jardim 1893

No Templo Jardim 1895

Um Sonho Jardim 1895

Ao Dr. Celestino
Wanderley, em
Passando Araçá 1895
agradecimento à
Sua Morte de Cecy

À Alma de Minha Mãe Natal Março 1895

Página Triste Macaíba 1895

À memória do
Mistério Macaíba Março 1895
pequeno Alberto

A meu irmão
Cantando Macaíba 1896
Henrique

A Edwiges de Sá
Cantai Macaíba 1896
Pereira

De Longe Macaíba 26 fevereiro 1896 A Antônia Araújo

A Eugênia de
Teus Anos Angicos 02 maio 1896
Albuquerque Melo

A Maria Fausta e a
Ao Luar Angicos Junho 1896
Mercês Coelho

Mater Angicos 1896 A meus irmãos

Renato Angicos 1896

A Palmyra
Olhos Azuis Angicos 1896
Magalhães

A Morte de Helena Angicos 1896

Pobre Flor! Angicos 1896

Rezando Macaíba Noite de Natal, 1896 A Laura Ramos


76

Versos Ligeiros Macaíba 1897

À memória da
Loli Jardim 1897 pequena Loli, das
carícias

O Que São Estrelas Jardim Junho 1897 A Jesuína Sampaio

Celeste Jardim Agosto 1897 A uma criança

Simbólicas Jardim Agosto 1897 A Emília Guerra

Boêmias Jardim Agosto 1897 A Rosa Monteiro

Cores Nova Cruz Setembro 1897 A Cecília Burle

Sancta Virgo Virginum Nova Cruz Novembro 1897 Prece

Ciúme Nova Cruz Novembro 1897

Goivos Nova Cruz 1897 À memória de Irineu

Zirma Nova Cruz 1897

A Joaquina
Ao Senhor do Bom Fim Serra da Raiz 10 janeiro 1898 Felismina da
Conceição

A Maria da Glória
De Joelhos Serra da Raiz Fevereiro 1898
Pena

A D. Ignez Maria de
Fefa Serra da Raiz Fevereiro 1898
Almeida

Palavras Tristes Serra da Raiz Fevereiro 1898 Ao Nenenzinho

No Jardim das Oliveiras Macaíba 7 abril 1898

Noites Amadas Macaíba Agosto 1898

Eterna Dor Utinga Outubro 1898

Crepúsculo Utinga Novembro 1898 A Júlia Lyra

A essa criancinha
de olhos castanhos
e sorriso claro, que
Gentil Macaíba Março 1899 eu vejo sempre à
tarde, descalcinha e
loura. Sacudindo
beijos…

Oração da Noite Macaíba 3 abril 1899

Adeus, Gentil! Alto da Saudade 14 maio 1899 A Olindina Medeiros

Obrigada! Alto da Saudade 21 maio 1899 A Nininha Andrade


77

Pombos Mensageiros Alto da Saudade 31 maio 1899 A Amélia Moura

Flor do Campo Alto da Saudade A meu irmão Eloy

A meu irmão
Noite Cruel Alto da Saudade
Henrique

A Generosa
Falando ao Coração Barro Vermelho
Pinheiro
Fonte: tabela produzida pelo autor a partir dos poemas de Auta de Souza que apresentam o
local onde foram produzidos.

Analisando a tabela apresentada, corroboramos as informações dadas por


Cascudo e foi possível observar que Auta de Souza registrou poemas em seu Alto
da Saudade (5), em Angicos (7), Araçá (1), Jardim (11), Macaíba (12), Natal (2),
Nova Cruz (5), Serra da Raiz (4) e Utinga (2). A seguir, apresentaremos um mapa
com esses locais demarcados:

Mapa 1 - Locais registrados em poemas de Auta de Souza

Fonte: mapa produzido pelo autor a partir da Carta da República dos Estados Unidos do
Brazil (1892)243. Os locais destacados no mapa são: (1) Natal, (2) São Gonçalo – município
onde estavam localizados Utinga e o Alto da Saudade –, (3) Macaíba, (4) Angicos, (5)
Jardim, (6) Nova Cruz e (7) Serra da Raiz, na Paraíba. Não conseguimos encontrar registros
em nossas fontes acerca da localização de Araçá. Tudo o que sabemos sobre o local é que

243
USA, Library of Congress. Carta da República dos Estados Unidos do Brazil (1892). Disponível
em: <https://www.loc.gov/item/2001620473/>. Acesso em: 30 jul. 2021.
78

Auta de Souza lá esteve no ano de 1895, em viagem entre Jardim (5) e Macaíba (3), além
de estar registrado em um único poema de Auta de Souza, intitulado Passando.

Macaíba, cidade distante 17 km da capital, Natal, como descrito por Ana


Laudelina Gomes, foi o berço da poetisa potiguar, e “apesar de pequena em
tamanho e população, [...] foi um importante centro econômico e político do estado”
244
. O nome Macaíba se deu em razão de uma espécie de palmeira plantada por
Fabrício Gomes Pedroza – paraibano de Areia e comerciante de alto prestígio – em
sua residência, na povoação do Coité245. A planta se tornou abundante, passando a
identificar o local aos que realizavam “[…] viagens de bote que carregavam as
mercadorias e a população pelo Rio Jundiaí afora”246. A povoação era passagem
quase obrigatória para aqueles que iam ao Seridó e ao Oeste em meados do século
XIX247. Em 27 de outubro de 1877, através da Lei 801, a Vila foi elevada à categoria
de município, denominando-se município de Macaíba, e ganhando, portanto,
autonomia político-administrativa248. Segundo Cascudo, “Quando Auta fechou os
olhos na cidade do Natal, a povoação de Macaíba era o quádruplo da que vira na
sua infância”249.
Em sua terra natal, Auta de Souza registrou doze de seus poemas: Soneto
(1893), Página Triste (1895), Mistério (1895), Cantando (1896), Cantai (1896), De
longe (1896), Rezando (1896), Versos Ligeiros (1897), No Jardim das Oliveiras
(1898), Noites Amadas (1898), Gentil (1899) e Oração da Noite (1899). Macaíba é
também o local com mais poemas registrados em diferentes anos, pois, com
exceção do ano de 1894, há textos escritos em todos os anos entre 1893 e 1899.
Nos poemas escritos nesse local, Auta de Souza deixa aflorar principalmente a sua
devoção ao catolicismo, tratando de temas comuns à sua religião. Observamos isso
na devoção que a poetisa dedica a Jesus, apresentando em Rezando, escrito na
noite de Natal de 1896, uma descrição do menino Jesus em seu nascimento: “Róseo
menino/ Feito de luz,/ Lírio divino,/ Santo Jesus!/ [...] Cabelo louro,/ Olhos azuis…/

244
GOMES, 2013, p.35.
245
CASCUDO, 1984, p.351.
246
GOMES, 2013, p.44.
247
GOMES, 2013, p.38.
248
PREFEITURA de Macaíba. História de Macaíba. Disponível em:
<https://www.macaiba.rn.gov.br/p/historia-de-macaiba>. Acesso em: 16 maio 2021.
249
CASCUDO, 2008, p.21.
79

És meu tesouro,/ Manso Jesus!”250. Já em No Jardim das Oliveiras, Auta de Souza


demonstra a sua visão acerca do momento em que Jesus orou no Monte das
Oliveiras, pouco antes da traição de Judas Iscariotes, como nos versos "'Minh’alma é
triste até a morte...' Doce,/ Jesus falou... E o Nazareno Santo/ Chorava, como se a
su’alma fosse/ Um mar imenso de amargura e pranto/ [...] Pobre Jesus! Como num
sonho via:/ Em cada sombra a traição de Judas,/ Em cada estrela os olhos de
Maria!”251. Discutiremos essa relação entre a poesia de Auta de Souza e a religião
católica no capítulo seguinte, quando abordarmos o espaço religioso na obra de
Auta de Souza.
Natal, capital do Rio Grande do Norte, está registrada como local da escrita de
dois poemas de Auta de Souza: À alma de minha mãe (datado de março de 1895) e
Falando ao coração, com localização no bairro do Barro Vermelho, mas sem data.
Talvez a localização litorânea da cidade tenha sido a inspiração para a poetisa iniciar
seu poema Falando ao coração com os versos “Desperta, coração! Vamos morar/
Numa casinha branca, ao pé do Mar…”252. Auta de Souza volta a tratar do tema e
das imagens acerca do mar na última estrofe do texto, ao escrever: “Desperta,
coração, vamos morar/ Numa casinha branca, ao pé do Mar.../ Quero que escutes, a
sonhar comigo,/ A queixa eterna do Oceano amigo/ E ouças o canto triunfal da
Aurora/ Batendo as asas pelo Mar afora…”253. Segundo Cascudo, esses poemas
nascem no período de algumas semanas que a poetisa passou em Natal, em suas
viagens para Macaíba. Quando na cidade, Auta de Souza era levada a uma casa no
bairro do Barro Vermelho – localizado entre os bairros do Alecrim e Cidade Alta –,
local descrito como um “[...] recanto imóvel, de grandes árvores decorativas, velho
pouso boêmio de festas do tempo do Império, onde […] Auta escreve sempre”254.
Cascudo nos diz ainda que foi em um desses períodos passados na cidade do Natal
que o livro de Auta de Souza começou a circular, em 20 de junho de 1900, tendo a
poetisa recebido um exemplar da sua obra255. A cidade também acolheu Auta de
Souza em seus últimos instantes de vida, vindo a poetisa a falecer “antes da

250
SOUZA, 2009, p.67.
251
SOUZA, 2009, p.144.
252
SOUZA, 2009, p.212.
253
SOUZA, 2009, p.213.
254
CASCUDO, 2008, p.94.
255
CASCUDO, 2008, p.97.
80

publicação do Horto completar seis meses, a 7 de fevereiro de 1901, [...] na casa de


seus irmãos Henrique e Eloy, na rua Dr. Barata, em Natal”256. “Todas as flores da
cidade acompanharam-na ao Cemitério do Alecrim”257, local onde a poetisa foi
enterrada. No entanto, em 1906, seus restos mortais foram exumados e levados
para a Igreja Matriz de Macaíba, sendo colocados no jazigo de sua família258.
A cidade de Angicos, que aparece como local de feitura de outros de seus
poemas, está localizada a 180 km a oeste da cidade do Natal. “O local onde se
fundou a povoação, vila e cidade tinha nome de Sítio dos Angicos pela abundância
dessas árvores leguminosas, da divisão das Mimoseas e da família das Piptadenias”
259
. Conhecida como São José de Angicos, em seu tempo de vila, era considerada
um “sanatório tradicional do agreste”260. Acredita-se que Angicos tenha sido o
destino mais constante das viagens realizadas por Auta de Souza e sua avó
Dindinha, assim como por Henrique Castriciano, irmão da poetisa, “também
tuberculoso, que se curou respirando os ares de Angicos”261. A poetisa registra sete
de seus poemas em Angicos, todos eles datados de 1896, entre os quais Ao Luar,
que alcançou grande divulgação, sendo publicado na revista Oasis n° 48, de 16 de
dezembro de 1896.
Um aspecto que nos chama a atenção em todas os poemas que apresentam
Angicos como local de produção é a referência à infância. Em Olhos Azuis262, a
poetisa não chega a utilizar nenhuma palavra diretamente relacionada à infância,
porém, a descrição realizada – provavelmente acerca de Palmira Magalhães, a
quem o poema é dedicado – sobre um olhar de “brilho fugente e raro, do meigo olhar
de Jesus”, “olhos sem pranto” de “uma alegria sem fim”, nos apresenta um ideal
angelical comumente utilizado por Auta de Souza para descrever as crianças em
seus poemas. Em Teus anos263, a poetisa concede seu coração a Eugênia B. de
Albuquerque Mello, a quem o poema é dedicado, e pede que “Deixa-o ficar no berço
de teu filho…”, demonstrando um gesto de carinho, dedicação e cuidado com as

256
GOMES, 2013, p.93.
257
CASCUDO, 2008, p.115.
258
CASCUDO, 2008, p.118.
259
CASCUDO, 1984, p.349.
260
CASCUDO, 2008, p.83; GOMES, 2013, p.83.
261
CASCUDO, 2008, p.107.
262
SOUZA, 2009, p.89.
263
SOUZA, 2009, p.47.
81

crianças. Já em Mater264, Auta de Souza reclama a ausência da mãe, descrevendo


que “Depois que te partiste [sic] e os seus pobres filhinhos,/ Pequeninos e sós,
deixaste na orfandade,/ Ficamos a chorar - implumes passarinhos! -/ Que os
pássaros também soluçam de saudade”. Em Ao Luar265, a poetisa observa a noite e
compara as nuvens às “Almas mimosas, que este mundo encerra,/ De criancinhas,
ao luar sonhando”. Em Renato266, nos é apresentado “Um menino interessante/ É o
Renato de Carminha…/ Um querubim tão galante”, uma pequena e desejada criança
que se encontra descrita em todo o poema. Já em A Morte de Helena267
conhecemos a triste história de Helena, “Misérrima criança! estava ali bem perto/ A
morte, a se abeirar de seu leito sagrado,/ Para arrastar-lhe o corpo ao túmulo
deserto,/ Onde não brilha o Sol e nem o Riso amado”. O medo da jovem se
concretiza: “E nessa mesma noite escura, tenebrosa,/ Deixou a doce Helena a terra,
pobre goivo”. Por fim, em Pobre Flor268, Auta de Souza descreve uma flor que lhe foi
dada, pela qual a poetisa “Tinha-lhe quase essa afeição sagrada/ Da jovem mãe ao
seu primeiro filho”, mas a flor, tal como muitas das crianças nos poemas de Auta de
Souza, “Depressa ela murchou, coitada!/ Doce e mísera flor, cheirosa e branca!”. A
partir desses poemas, podemos pensar que Angicos era um espaço que
proporcionava memórias e imagens acerca da infância para Auta de Souza.
Acreditamos que a razão disso estava nos cuidados destinados a ela pela sua avó
Dindinha, que, mesmo sendo uma mulher idosa, enfrentava todas as dificuldades de
uma longa viagem em lombo de animais para levar sua neta até aquele local – já
descrito como destino mais constante das viagens empreendidas pelas duas –, com
o intuito de cuidar, tratar e amenizar os problemas de saúde da jovem poetisa.
Outro local onde Auta de Souza escreveu poemas foi Jardim, uma vila criada
pela lei n° 407, de 1° de setembro de 1858, pelo então presidente de província
Antônio Marcelino Nunes Gonçalves, “[…] que elevou a Povoação de Conceição do
Azevedo ao título de Vila do Jardim. […] Jardim do Seridó é denominação tradicional
que as leis, de vila e cidade, não registaram”269, mas que veio a constituir o nome da

264
SOUZA, 2009, p.51.
265
SOUZA, 2009, p.57-58.
266
SOUZA, 2009, p.66.
267
SOUZA, 2009, p.104.
268
SOUZA, 2009, p.119.
269
CASCUDO, 1984, p.337.
82

cidade pela lei provincial nº 703, de 27 de agosto de 1874270. Localizada 242 km a


sudoeste da cidade do Natal, Jardim é o espaço em que Auta de Souza compôs
onze de seus poemas: quatro no ano de 1893 (Desalento, Bendita, À Memória de
uma Ave e Feliz), duas em 1895 (No templo e Um sonho) e cinco em 1897 (Loli, O
que são Estrelas, Celeste, Simbólicas e Boêmias). Esses textos apresentam temas
bem diversos, no entanto, aqueles de 1893 – marco inicial da produção dos
primeiros poemas contidos no manuscrito Dhálias – são marcados por momentos de
tristeza e desengano em relação à vida, destacando-se, por isso, em sua obra. Em
Desalento271, a poetisa escreve: “Tudo me diz que a vida é o desengano,/ A morte da
ilusão,/ E o mundo um grande manto de tristezas/ Que enluta o coração”. Em
Bendita272 – que Auta de Souza escreve para a sua falecida mãe –, a poetisa deseja:
“Envia lá do Céu no teu sorriso/ A morte que levou-te ao Paraíso…/ Bendita sejas,
minha mãe, bendita!”. Em À Memória de Uma Ave273, a poetisa trata do tema da
morte de crianças de uma forma aberta, sem apresentar uma criança específica,
escrevendo: “Quando morre uma criança,/ Diz-se que o pálido anjinho/ Voou como
uma esperança,/ Foi para o Céu direitinho”. Até mesmo no poema que recebe o
título de Feliz274, Auta de Souza escreve “Não creio nessa dita, me perdoa./ Ninguém
na terra pode ser feliz,/ Até o sino que na terra soa/ Tem sua dor, nem sempre ele
bendiz”.
Outra localidade em que a poetisa compôs versos foi Nova Cruz, que está
localizada a pouco mais de 100 km ao sul de Natal. Seu nome surgiu de uma
tradição que conta que um frade capuchinho mandou erguer uma cruz no local onde
uma anta esfolada assombrava275, mudando a nomenclatura do povoado de Anta
Esfolada para Nova Cruz, nome que foi oficializado em 15 de março de 1852, pela
Lei Provincial n° 245276. Cinco poemas de Auta de Souza apresentam sua produção
em Nova Cruz, todos eles datados de 1897. Esses textos apresentam temáticas

270
CÂMARA Municipal de Jardim do Seridó. História do município. Disponível em:
<https://www.jardimdoserido.rn.leg.br/pt/historia>. Acesso em 16 maio 2021.
271
SOUZA, 2009, p.56.
272
SOUZA, 2009, p.134.
273
SOUZA, 2009, p.101.
274
SOUZA, 2009, p.224-225.
275
CASCUDO, 1984, p.351.
276
PREFEITURA de Nova Cruz. História do município. Disponível em:
<https://novacruz.rn.gov.br/municipio/historia-do-municipio/>. Acesso em: 16 maio 2021.
83

variadas, como a percepção das diferentes fases da vida, indo desde a alegria da
infância até as “ruínas da mocidade”, narradas em Cores277; uma prece de adoração,
em Sancta Virgo Virginum278; a admiração aos cabelos de uma garota chamada
Maria, em Ciúme279; e a narrativa poética das mortes de Zirma280, no poema assim
intitulado, e de Irineu, irmão da poetisa, em Goivos281.
Sobre a localidade de Araçá, que aparece como local de composição de alguns
de seus versos, tudo o que sabemos é que tratava-se de uma propriedade
pertencente a um comendador chamado Joaquim Inácio Pereira, onde a poetisa
esteve em sua viagem entre Jardim e Macaíba, no ano de 1895282. Nesse local, Auta
de Souza registrou apenas o poema Passando283, com dedicatória “ao Dr. Celestino
Wanderley, em agradecimento à Sua Morte de Cecy”. Em Passando, a poetisa narra
uma visão equivocada que as pessoas teriam ao vê-la “passar risonha e calma”,
revelando, por fim, que “Meu pobre coração dentro do peito/ - Triste doente a
agonizar no leito -/ Vai soluçando dolorosamente…”.
Utinga é considerada uma das povoações mais antigas do município de São
Gonçalo do Amarante, localizada a cerca de 30 km de distância de Natal284. O local
teria servido de rota para a exploração holandesa no início do século XVII285. Auta de
Souza registrou dois de seus poemas nesse local: Eterna Dor e Crepúsculo, o
primeiro em outubro e o segundo em novembro de 1898. Em Eterna Dor286, a poetisa
conversa com sua finada mãe, descrevendo-a como “Alma de meu amor, lírio
celeste,/ Sonho feito de um beijo e de um carinho,/ Criatura gentil, pomba de
arminho,/ Arrulhando nas folhas de um cipreste”, mas, logo em seguida, se pergunta
“Ó minha mãe/ Por que no mundo agreste,/ [...] abandonaste o ninho?”, revelando,
por fim, que “Aqui na vida - que tamanha mágoa! -/ O próprio olhar de Deus
encheu-se d’água.../ Ó minha mãe, como este mundo é triste!”. Já em Crepúsculo287,

277
SOUZA, 2009, p.102.
278
SOUZA, 2009, p.94-95.
279
SOUZA, 2009, p.127-128.
280
SOUZA, 2009, p.124-126.
281
SOUZA, 2009, p.59-61.
282
CASCUDO, 2008, p.76.
283
SOUZA, 2009, p.88
284
CASCUDO, 1984, p.51.
285
PREFEITURA de São Gonçalo do Amarante. Comunidades históricas. Disponível em:
<https://saogoncalo.rn.gov.br/comunidades-historicas/>. Acesso em: 16 maio 2021.
286
SOUZA, 2009, p. 57.
287
SOUZA, 2009, p.120.
84

Auta de Souza fala sobre a paisagem local, iniciando com a descrição de que “Há
pelo espaço um ciciar dolente/ De prece, em torno da Igrejinha em ruína…”. A
“Igrejinha em ruína” vista pela poetisa é, muito provavelmente, a capela de Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro, que ainda existe no local. Segundo documentos
oficiais, a atual capela foi erguida por volta de 1730, porém, o frontispício da capela
registra o ano de 1787, representando, provavelmente, a época em que o templo
sofreu alguma reforma288. Desde 30 de agosto de 1989 o local é tombado como
monumento histórico pelo Governo do Estado, por indicação realizada pela
Fundação José Augusto e aprovação do Conselho Estadual de Cultura 289.

Imagem 2 - Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, localizada em Utinga, São


Gonçalo do Amarante.

Dentre os locais em que Auta de Souza compôs poemas, Serra da Raiz é o


único que não pertence ao estado do Rio Grande do Norte. O município faz parte do
estado da Paraíba, estando localizado a 27,3 km de distância ao sul de Nova Cruz.
A presença desse local entre os trajetos realizados por Auta de Souza nos mostra o
quão distante a poetisa e sua avó Dindinha tiveram de se deslocar em busca de
locais que amenizassem os sintomas da tuberculose. Nos quatro poemas
registrados com a localização de Serra da Raiz, o que se destaca são as repetições.

288
PREFEITURA de São Gonçalo do Amarante. Comunidades históricas. Disponível em:
https://saogoncalo.rn.gov.br/comunidades-historicas/. Acesso em: 16 maio 2021.
289
GOVERNO do Estado do Rio Grande do Norte. Bens Tombados pelo Governo do Estado -
DOE. Disponível em:
http://www.adcon.rn.gov.br/ACERVO/secretaria_extraordinaria_de_cultura/DOC/DOC000000000207
484.PDF. Acesso em: 16 maio 2021.
85

Em De Joelhos290, a poetisa repete em quase todas as estrofes o trecho “ajoelha e


soluça”. Já em Ao Senhor do Bom Fim291, há a repetição “Eu quero sofrer!/ Sofrer
tanto, tanto”. Em Fefa292, por sua vez, há uma recorrência de alusões ao branco por
meio de palavras como “neve”, “brancura”, “jasmim”, “nívea”, “luz” e “branco da flor”.
Por fim, em Palavras Tristes293, repete-se a passagem “Quando eu deixar a terra” em
três das seis estrofes. Segundo Nalba Leão, a repetição de vocábulos, ou de grupos
de vocábulos, num verso, estrofe, ou até mesmo em todo o poema, pode ser
considerada um dos traços individualizadores do estilo de Auta de Souza, pois, além
do efeito musical, a repetição na composição dos poemas do livro Horto é de
natureza emocional, afetiva e atua para dar maior intensidade ao conteúdo poético
que a poetisa deseja expressar294.
No ano de 1899, sabemos que Auta de Souza esteve, entre março e abril, em
Macaíba, uma vez que Gentil – datado de março de 1899 – e Oração da Noite –
datado de 3 de abril de 1899 – estão ambos registrados no local onde a poetisa
nasceu. No entanto, logo após esse período, Auta de Souza inicia uma nova viagem.
Em maio de 1899 observamos três poemas com informação de composição no Alto
da Saudade: Adeus, Gentil! – com data de 14 de maio de 1899 –, Obrigada! – com
data de 21 de maio de 1899 – e Pombos Mensageiros – com data de 31 de maio de
1899. Além desses, há também Flor do Campo e Noite Cruel, também compostos no
Alto da Saudade, mas que não apresentam data. Alto da Saudade foi o nome dado
por Auta de Souza à Fazenda Jardim295, propriedade localizada no município de São
Gonçalo296 e que foi dividida entre os municípios de Macaíba e São Paulo do Potengi
297
.

A fazenda, pela residência numa elevação onde o panorama se


ampliava, em leque, até os distantes horizontes suaves, teve batismo
novo, dado pela poetisa. Denominou-a Alto da Saudade. Muitos
poemas estão datados dessa paragem romântica. De maio a agosto,

290
SOUZA, 2009, p.130-131.
291
SOUZA, 2009, p.138.
292
SOUZA, 2009, p.142-143.
293
SOUZA, 2009, p.149-150.
294
LEÃO, 1986, p.68-69.
295
SOUZA, 2001, p.27.
296
LEÃO, 1986, p.14.
297
GOMES, 2013, p.88.
86

Auta hospeda-se no Alto da Saudade. Regressa então a Macaíba


nas alternativas de febre e frio, desengano e esperança298.

Os poemas produzidos no Alto da Saudade apresentam como recorrência a


temática das aves. Em Flor do Campo299, lemos versos como “Ninho de sonho e
ninho de ternura” e “Tens a beleza santa/ Da pomba amiga que no Espaço voa”. Já
em Obrigada!300, lemos o verso que ressalta a “Asa de pomba defendendo um
ninho”. Em Adeus, Gentil!301, há os versos “Adeus, meu colibri! Adeus, minha
saudade!” e “Sacode as asas puras,/ O lindo sonho branco!”. Por fim, Pombas
Mensageiras302 traz a imagem das aves logo em seu título, assim como nos versos
“Transformados em pombas cor de neve,/ Entraram-me a cantar pela janela […]/ E
então, a rir, ó pomba idolatrada!/ Eu transformei meu coração em ninho”.
Percebemos que as aves eram uma inspiração constante para Auta de Souza,
sendo referenciadas em muitos outros poemas, como em Ao Luar, ao escrever “Ai,
quem me dera andar também voando!”303. Vale ressaltar que a pomba é mencionada
em três dos cinco poemas compostos no Alto da Saudade, o que é caracterizado por
Nalba Leão como o desejo de fuga da poetisa que se atualiza no voo da pomba304,
cujo som das asas em movimento é sugerido na passagem “E foge e foge pelo
Espaço, à toa,/ Pomba exilada que a seus lares voa!”305.
Uma vez que essa imagem das aves e do voo se apresenta constantemente
nos poemas produzidos em um local nomeado pela própria Auta de Souza como
Alto da Saudade, somos levados a pensar que esse desejo de fuga estaria voltado
para uma outra fase da vida da poetisa que não fosse o seu presente,
provavelmente a infância, outro tema recorrente em seus versos. Nessa infância
idealizada por Auta de Souza, estavam presentes a sua avó Dindinha e seus irmãos
Eloy de Souza, Henrique Castriciano e João Câncio, mas também seu irmão falecido
Irineu Leão e até mesmo os pais da poetisa. Essa presença dos pais na percepção
da própria infância realizada pela poetisa pode ser vista em Mater, nos versos

298
CASCUDO, 2008, p.93.
299
SOUZA, 2009, p.164-167.
300
SOUZA, 2009, p.180.
301
SOUZA, 2009, p.186-187.
302
SOUZA, 2009, p.189.
303
SOUZA, 2009, p.58.
304
LEÃO, 1986, p.65.
305
SOUZA, 2009, p.213.
87

“Depois que te partiste [sic] e os seus pobres filhinhos,/ Pequeninos e sós, deixaste
na orfandade, […]/ Criancinha sem berço, em busca de um abrigo/ No berço de
tu’alma alabastrina e pura”306, assim como em Meu Pai, nos versos “Quando
morreste eu era bem criança,/ Balbuciava, sim, o nome teu”307.
Esses são os locais documentados por Auta de Souza em seus poemas. No
entanto, dos 148 poemas de que temos conhecimento308, apenas 49, ou seja, 1/3 de
sua obra, apresentam o registro do local onde foram produzidos. Desse modo,
somos levados a pensar que a poetisa passou por outros locais que não foram
explicitamente registrados em seus textos. Devemos levar em consideração que
todos esses deslocamentos foram realizados sobre o lombo de animais, a maior
parte do tempo, e a pé, ocasionalmente. Em seu livro Memórias, Eloy de Souza
comentou acerca “[...] dos sacrifícios dessas viagens por caminhos ínvios, ao
compasso dos cargueiros em comboios que as tornavam mais compridas e
fatigantes”309. Se ao mais velho, saudável e longevo dos irmãos Castriciano de
Souza, esses deslocamentos eram considerados compridos e fatigantes,
imaginamos como deviam ser ainda mais desgastantes para a jovem e doente Auta
de Souza.
Dos 14 aos 24 anos, Auta de Souza viveu em meio a essas idas e vindas dos
sintomas de sua enfermidade e, em razão desta, entre os locais que destacamos
anteriormente. Seu irmão Eloy de Souza caracterizou esses deslocamentos da
poetisa como “peregrinações” ao declarar, em suas Memórias, que “Muitas foram
suas peregrinações pela terra natal na esperança de melhoras”310. Cascudo também
faz uso do termo ao escrever que “a saúde fazia-a peregrinar de Macaíba para o Alto
da Saudade e daí para Macaíba e um breve salto a Natal”311. Nalba Leão, em sua
dissertação de mestrado intitulada A obra poética de Auta de Souza312, também
comenta que “essas peregrinações [de Auta de Souza] tinham intervalos em Natal,

306
SOUZA, 2009, p.51.
307
SOUZA, 2009, p.219.
308
SOUZA, 2009.
309
SOUZA, 2008, p.81.
310
SOUZA, 2008, p.80.
311
CASCUDO, 2008, p.110.
312
LEÃO, Nalba Lima de Souza. A obra poética de Auta de Souza. 1986. 293 f. Dissertação
(Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Literatura, Centro de Comunicação e Expressão,
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis - SC, 1986. Disponível em:
<https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/75361>. Acesso em: 31 jan. 2021.
88

Serra da Raiz, na Paraíba, e em Macaíba, onde voltou a viver”313. Porém, podemos


realmente compreender esses deslocamentos realizados por Auta de Souza
enquanto peregrinações? Que consequências tiveram essas viagens,
deslocamentos ou peregrinações em sua obra poética?
Podemos dizer que a prática da peregrinação é tão antiga quanto a própria
espécie humana, estando presente entre os homens primitivos, quando
predominavam costumes ou ritos pagãos314. Na Antiguidade, povos como os
egípcios, gregos, celtas e romanos ficaram famosos pelas suas peregrinações315:
“Os egípcios peregrinavam ao Oráculo de Amon, em Tebas; os gregos ao Oráculo
de Apollo, em Delfos; [...]; os astecas à Quetzalcôatl; os incas à cidade de Cuzco e
ao lago Titicaca”316. Na Idade Média, as peregrinações eram consideradas “remédios
eficazes contra as doenças, sempre que uma epidemia se manifestava numa aldeia”
317
, no entanto, as peregrinações também foram propulsionadoras de importantes
desenvolvimentos técnicos, culturais e científicos: “Em nome delas, inúmeras
estradas foram abertas, muitos hospitais (que na época eram um misto de hotel e
casa de saúde) foram construídos, e até guerras foram realizadas. […] Exerceram
também uma grande influência cultural, colocando em contato diferentes povos”318.
Percebemos, desse modo, que tal como ocorria nas peregrinações na Idade
Média, Auta de Souza também procurava, em seus deslocamentos, encontrar um
meio de aplacar seus problemas de saúde, buscando um local com condições
climáticas que curassem ou, pelo menos, amenizassem a sua tuberculose.
Entendemos, dessa forma, que, tal como Eloy de Souza descreveu, havia um
caráter peregrinatório nos deslocamentos empreendidos por Auta de Souza em
companhia de sua avó Dindinha, uma vez que, além da busca por melhoras de
saúde, podemos perceber também um mergulho da poetisa em um universo
introspectivo, em seu espaço íntimo. Aspecto também similar com o que
percebemos nas peregrinações clássicas, uma vez que estas são “[…] descritas
como experiências que podem proporcionar aos peregrinos: ‘conhecimento de si

313
LEÃO, 1986, p.14-15.
314
DUPRONT apud MÓNICO et al., 2018, p.200.
315
MÓNICO et al., 2018, p.200.
316
SANTOS, 2000, p.39.
317
ESPÍRITO-SANTO apud MÓNICO et al, 2018, p.200.
318
SANTOS, 2000, p.39-40.
89

mesmo’, ‘introspecção’, ‘despojamento material’ em uma dimensão mais subjetiva”319


. Ou seja, um reflexo da vida como uma “[…] experiência interior de um caminho a
ser percorrido por cada indivíduo”320.
Embora a noção de peregrinação esteja comumente associada a ideais de
caráter religioso, não necessariamente a religião é a motivação ou finalidade única
desse tipo de prática. Quando falamos sobre a prática da peregrinação em nossa
contemporaneidade, devemos levar em consideração que “[…] a experiência de
peregrinar deve ser interpretada através dos significados múltiplos a ela atribuídos,
procurando compreender as formas de combinações possíveis entre os significados
de um fenômeno milenar [...] e os novos significados que lhe são conferidos”321.
Lendo a obra de Auta de Souza percebemos alguns reflexos da forma de
peregrinação que a poetisa realizou a partir das conexões, ou da dialética, entre os
espaços interior e exterior, sendo o interior percebido como a poesia, os aspectos da
intimidade, as vivências e reflexões de Auta de Souza transmitidas até nós por meio
de sua obra; e o espaço exterior como os locais, pessoas e histórias com que a
poetisa teve contato ao longo de suas peregrinações. Sob esta ótica, podemos
pensar que a poesia de Auta de Souza acaba ganhando características da escrita de
um diário, uma vez que apresenta nomes de sujeitos com os quais a poetisa
conviveu, histórias individuais e familiares, até pensamentos e sentimentos
relacionados a momentos felizes ou dolorosos, além de, em alguns casos,
apresentarem local e data de sua produção.
Nesse sentido, nos chama a atenção o fato de Auta de Souza nunca ter
abandonado sua produção poética, mesmo diante das constantes perdas de entes
queridos, das debilidades físicas, das crises ocasionadas pela tuberculose e das
constantes mudanças de lugar que realizou em razão de sua doença. Auta de Souza
chegou a apresentar-se como “a noiva do verso” ao escrever: “Tenho alguém a
quem amo mais que a vida,/ Deus abençoa esta paixão querida:/ Eu sou noiva do
verso”322. Observamos, portanto, que a poesia era para ela um espaço de
identificação e por meio do qual procurou construir para si um discurso e uma

319
CARNEIRO, 2012, p.69.
320
STEIL e CARNEIRO, 2008, p.112.
321
STEIL e CARNEIRO, 2008, p.108.
322
SOUZA, 2009, p.192.
90

imagem que veio a torná-la um dos mais significativos expoentes da literatura do Rio
Grande do Norte, patamar que alcançou desde suas primeiras produções,
publicadas em jornais e revistas, chegando a poetisa a tornar-se conhecida e
admirada tanto entre a elite intelectual do estado quanto entre “[...] um público leitor
pouco letrado e com forte enraizamento nas tradições orais”323.
“Considerando tratar-se de uma moça nascida e criada no final do século XIX,
é compreensível que Auta de Souza, através de temas associados ao cotidiano
feminino, tenha feito ecoar em sua poesia um mundo próprio”324. No entanto, esse
“mundo próprio”, que chamamos aqui de espaço íntimo, não estava isolado do
contexto em que Auta de Souza vivia, pelo contrário, este era um dos temas mais
constantes e vivos em seus versos. Essa característica nos faz pensar no significado
que a escrita poética tinha na vida de Auta de Souza e em como isso se
apresentava, em meio a tantas mudanças, enquanto um registro dos caminhos, bem
como das histórias e dos momentos neles vistos e vividos. Por meio de sua
peregrinação, a poetisa vivenciou experiências, tais como conhecer outros locais,
pessoas e histórias que transformou em versos e eternizou em seu Horto, que
provavelmente não teria vivido caso tivesse uma vida de esposa e mãe de família,
algo tido como padrão para uma mulher de seu tempo.
Ao lermos o Horto percebemos que Auta de Souza procurou transformar em
versos algumas histórias, principalmente de crianças, de que ela tomou
conhecimento durante seus deslocamentos. Por meio desse processo podemos
observar como os espaços interior e exterior tocam-se, ligam-se e entrelaçam-se,
resultando em uma produção tão singular quanto a escrita poética. Dentre as muitas
histórias de crianças poetizadas por Auta de Souza, a maior parte delas trata da
morte, característica que nos chama a atenção pela forma sensível, singela e
poética utilizada para descrever um evento tão triste e traumático quanto a morte de
uma criança. Para compreendermos a recorrência desse tema e o modo como ele
se apresenta na poesia de Auta de Souza, devemos ter em mente o período e o
local no qual a poetisa viveu: o Norte do Brasil em fins do século XIX. Ressaltamos o
fato de que, embora Auta de Souza vivesse no estado do Rio Grande do Norte, não

323
GOMES, 2013, p.189.
324
GOMES, 2013, p.287.
91

podemos nos referir ainda à região Nordeste, pois, como nos apresenta o historiador
Durval M. de Albuquerque Jr. em seu livro A invenção do Nordeste e outras artes:

O termo Nordeste é usado inicialmente para designar a área de


atuação da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS),
criada em 1919. Neste discurso institucional, o Nordeste surge como
a parte do Norte sujeita às estiagens e, por essa razão, merecedora
de especial atenção do poder público federal325.

Dessa forma, o termo Nordeste passa a ser utilizado como agrupador dos
estados pertencentes à região do Brasil que atualmente recebe este nome somente
a partir de 1919. O historiador ressalta ainda que “A seca torna-se o tema central no
discurso dos representantes políticos do Norte, que a instituem como o problema de
suas províncias ou Estados. Todas as demais questões são interpretadas a partir da
influência do meio e de sua ‘calamidade’: a seca”326.
Auta de Souza nasceu no ano de 1876, ano anterior a uma das secas mais
severas de que temos conhecimento: a seca de 1877, também conhecida como “a
seca dos dois sete”.

Era o ano da seca, “a seca dos dois sete”. Macaíba era o caminho
dos “retirantes” (o vocábulo é deste ano) descidos dos sertões do
Seridó e do oeste, exaustos, sujos, famintos, taciturnos, procurando o
refrigério das praias, vendo pela primeira vez água corrente e perene,
mas verde, salgada, inútil. Iam aos magotes para o Rio Grande,
sinônimo sertanejo da cidade do Natal. As obras para fixá-los eram
improvisadas e eram distribuídos mantimentos, farinha de mandioca,
milho, carne do Ceará, jabá, charque seca, dura, coriácea […]327.

Diante desse cenário, o Nordeste tornava-se “[…] em grande medida, filho das
secas; produto imagético-discursivo de toda uma série de imagens e textos,
produzidos a respeito deste fenômeno, desde que a grande seca de 1877 veio
colocá-la como o problema mais importante desta área”328. Cascudo apresenta um
pouco do contexto desse período para o Rio Grande do Norte ao tratar da
administração do presidente de província José Nicolau Tolentino de Carvalho:

325
ALBUQUERQUE JR., 2011, p.81.
326
ALBUQUERQUE JR., 2011, p.72.
327
CASCUDO, 2008, p.51.
328
ALBUQUERQUE JR., 2011, p.81.
92

José Nicolau Tolentino de Carvalho, 37° presidente [de província], de


18-4 de 1877 a 6-3-1878, governou na calamidade que a seca dos
dois sete causava. O presidente, na melhor intenção, desorganizou a
província fazendo afluir a população flagelada para o litoral que
depressa se tornou carecedor de tudo, além de constituir focos de
peste329.

Cascudo registra ainda que

A seca de 1877 foi uma catástrofe para a pecuária. O Governo


renunciou ao próprio dízimo do gado. A multidão faminta refluiu das
zonas ressequidas para o agreste e proximidades do litoral. Mossoró
abrigou 70.000 retirantes e nunca possuiu menos de 47.000 nos
seus arredores. Bexigas e desinterias assaltaram, massacrando. O
obituário de 1878-79 é de 35.000 mortos. O Presidente Rodrigo
Lobato Marcondes Machado visitou Mossoró em dezembro de 1879
verificando que a calamidade resistia ainda poderosa. As despesas
com os socorros foram a 6.217:264$227. O dízimo das lavouras
rendeu em 1877-78 apenas 1:820$ quando em 1876 produzira
80:385$917330.

Podemos perceber, portanto, que a seca dos dois sete deixou marcas
profundas em todo o estado do Rio Grande do Norte por muitos anos. A família
Castriciano de Souza testemunhou algumas das histórias de perdas ocasionadas
pela seca, fossem elas materiais, de pessoas que deixaram seus locais de moradia
para fugir da seca e buscar uma condição de vida melhor, geralmente no litoral, ou
de vidas que não resistiram às mazelas dos anos de estiagem severa. Eloy de
Souza narra uma dessas perdas ocasionadas pela seca de 1877 ao lembrar da
primeira pessoa que viu morrer:

A primeira pessoa que eu vi morrer foi um pobre sertanejo, tangido


pela seca de 1877, com a mulher e um filho de criação, chamado
José. Abarracaram-se perto do portão da nossa casa, e comiam os
restos do que lhes davam os meus avós paternos. Uma tarde, abri o
portão e ouvi, vindo do lado, gemidos e um choro soluçado.
Aproximei-me, e deparei [com] um pobre homem deitado numa rede
agonizando e sua mulher, com uma candeia de querosene, dizendo: -

329
CASCUDO, 1984, p.184.
330
CASCUDO, 1984, p.383-384.
93

“Jesus, Maria e José, minha alma vossa é!” Palavras que ouvi pela
primeira vez e que nunca esqueci [...]331.

Podemos observar nos trechos citados anteriormente um pouco do contexto no


qual o estado do Rio Grande do Norte encontrava-se durante a infância de Auta de
Souza até o momento em que realizou suas viagens. Essas características nos
levam a pensar que as razões das mortes de crianças transformadas em versos pela
poetisa provavelmente teriam alguma relação com as consequências das secas
vivenciadas no final do século XIX.

Das secas ocorridas desde o final do século XIX e ao longo do século


XX, há registros de vários surtos e epidemias de doenças como:
cegueira diurna (hemeralopia), tracoma, cólera, diarreia, disenteria,
tifo, paratifo, febre amarela, varíola, peste bubônica, leishmaniose e
gripe. […] Além das doenças e óbitos diretamente relacionados à
seca nas regiões onde ocorreram há também os efeitos indiretos,
como lepra, tuberculose, malária e beribéri [...]332.

Gestantes e crianças – principalmente aquelas com menos de cinco anos de


idade –, nesse contexto, compõem os grupos mais vulneráveis a esses surtos e
epidemias333. Essas são os personagens centrais de muitos dos poemas de Auta de
Souza: mães e crianças. Acredita-se que a poetisa tenha conhecido e convivido
entre um deslocamento e outro, mesmo que de forma muito breve, com os sujeitos
que apresenta em seus textos, visto que em geral passava alguns poucos meses
nos locais em que costumava realizar suas viagens, assim como pelo fato de a
poetisa ser descrita como possuidora de um “[...] espírito de sociabilidade para com
outros seres femininos e para com as crianças”334. Henrique Castriciano comenta,
em sua Nota, que foi “[…] no campo, onde [a poetisa] passou o melhor tempo da
atormentada existência, [vivenciando] a paisagem triste do sertão nos longos meses
de seca, a compaixão pelos humildes, cuja miséria tanto a comovia […]”335. Assim,
embora esse espaço descrito por Henrique Castriciano tenha ocasionado um tempo
de tranquilidade e alegria à poetisa, as impressões vistas e vividas nesses locais

331
SOUZA, 2008, p.56.
332
ALPINO et al, 2016, p.810.
333
ALPINO et al, 2016, p.813.
334
VICTOR apud GOMES, 2013, p.173.
335
SOUZA, 2008, p.33.
94

marcados pela seca proporcionaram histórias de perdas significativas o bastante


para, embora não estivessem diretamente ligadas à vida da poetisa, tornarem-se
parte de seu Horto.
Mas quais os motivos para haver tantos poemas sobre mortes de outras
pessoas na obra de Auta de Souza? Para respondermos a essa pergunta,
precisamos analisar um pouco mais amplamente o contexto vivenciado pela poetisa,
uma vez que as causas de morte da população do Rio Grande do Norte oitocentista,
e principalmente das crianças em razão de sua maior vulnerabilidade, vão muito
além da seca, embora algumas doenças encontrassem um contexto propício à sua
proliferação nestes períodos de intensa estiagem. Segundo o historiador José
Francisco da Rocha Pombo, “além das seccas [sic], a praga das epidemias também
vinha com frequência consternadora, fazer na província a sua ceifa medonha”336.
Acredita-se, portanto, que a segunda metade do século XIX foi o período de maior
concentração de epidemias da história do Rio Grande do Norte337, pois “a partir da
segunda metade do século XIX, a Província foi atingida por uma sucessão de surtos
epidêmicos de cólera-morbo, febre amarela e varíola, que mudaram o modo com
que os presidentes [de província] tratavam a saúde pública”338. A província do Rio
Grande do Norte foi assolada por várias doenças que, em pouco tempo, assumiram
um caráter epidêmico, gerando, além de um grande número de contaminados, uma
elevada mortalidade339.
Antes de abordarmos as doenças que atacaram o Rio Grande do Norte ao
longo da segunda metade do século XIX e o cenário ocasionado por elas, é
interessante que tenhamos conhecimento do contexto da saúde e da salubridade do
RN neste período. Até 1850 “a província não oferecia nenhuma estrutura financeira
nem física para lidar com o quadro epidêmico”340. A razão disso provavelmente
estava no que nos apresenta Rocha Pombo ao citar o político e historiador Augusto
Tavares de Lira, alegando que a salubridade no Rio Grande do Norte era
excepcional, as epidemias eram raras e, em regra, menos graves do que em outros

336
ROCHA POMBO, 1922.
337
MEDEIROS, 2006, p.33.
338
DIAS, 2018, p.1.
339
MEDEIROS, 2006, p.9.
340
MEDEIROS, 2006, p.14.
95

pontos do nosso país: a varíola e o sarampo, que apareciam periodicamente em


algumas regiões do estado, não tinham a gravidade que apresentavam em outros
climas, ainda que contra elas se carecesse de recursos de higiene e profilaxia que
as tornariam cada vez menos mortíferas341. No entanto, Rocha Pombo também
ressalta que “Não havia, nem na capital, um médico siquer [sic]”342. Assim,

Quanto aos médicos norte-rio-grandenses, o primeiro a doutorar-se


foi o assuense Luis Carlos Lins Wanderley. Descendente de uma
grande linha de intelectuais, o doutor Luis Carlos formou-se a 05 de
Dezembro de 1857 na Faculdade de Medicina da Bahia. Em Junho
de 1858 já era médico do Partido Público. Dois anos após se formar
Luis Carlos, surgia o primeiro médico nascido na cidade do Natal, o
Doutor Vicente Inácio Pereira343.

O médico de Partido Público era um profissional com formação acadêmica em


medicina mantido pela província para atender aos pobres, divulgando os processos
terapêuticos mais modernos344. Segundo Câmara Cascudo – citando relatório do
presidente de província Antônio Bernardo de Passos, datado de 1° de julho de 1856
– até o ano de 1856, a cidade do Natal não possuía um só asilo de caridade, salvo a
enfermaria militar, e contava com apenas uma botica e um médico345. Os primeiros
rudimentos de assistência social teriam sido mobilizados justamente em razão das
secas, a partir das Comissões de Socorro às vítimas da seca, organizadas sempre
que o flagelo se declarava mais intenso346. Nesses períodos, a aglomeração de
pessoas nas capitais e cidades litorâneas era a principal causa apontada pelos
poderes públicos do quadro sanitário desolador que se apresentava; eram retirantes
que saíam de diversas regiões, fugindo da fome e da seca, na busca de socorro dos
poderes públicos nestes locais347. “Devido a essas aglomerações urbanas, as
epidemias encontravam um campo muito fértil para se disseminarem, gerando
grande pavor na população dessas cidades e no próprio poder público”348.

341
LIRA apud ROCHA POMBO, 1922, p.60.
342
ROCHA POMBO, 1922, p.347.
343
MEDEIROS, 2006, p.22.
344
CASCUDO, 1984, p.285.
345
CASCUDO, 1984, p.281.
346
CASCUDO, 1984, p.287.
347
ARAÚJO apud MEDEIROS, 2006, p.10.
348
MEDEIROS, 2006, p.10.
96

Dentre as doenças de caráter epidêmico que temos registro na história do


Brasil, a mais antiga é a varíola, sendo a primeira referência a ela realizada pelo
padre jesuíta espanhol José de Anchieta (1534-1597) no ano de 1561349. Acredita-se
que a varíola tenha surgido na Índia, sendo descritos casos desta doença nos
continentes asiático e africano desde antes da era cristã350. Segundo a historiadora
Arlene Gazêta, “a varíola foi introduzida no Brasil pelos ‘descobridores’ europeus.
Com o processo de colonização, a doença foi se disseminando”351. A varíola era uma
doença exclusiva dos seres humanos causada por um vírus denominado
Orthopoxvirus variolae, sendo transmitida de pessoa para pessoa por meio das vias
respiratórias e que se caracteriza pelo aparecimento de erupções avermelhadas por
toda a pele. Com o tempo, as erupções transformam-se em pústulas (pequenas
bolhas cheias de pus), que provocavam coceira intensa e dor352.
Acredita-se que o primeiro surto de varíola no Brasil tenha ocorrido “na Ilha de
Itaparica, na Bahia, disseminando-se para Salvador e causando grande número de
casos e óbitos, principalmente entre os indígenas”353. Cascudo corrobora a letalidade
da varíola para o Rio Grande do Norte, principalmente entre os indígenas, afirmando
que “A varíola devorou o indígena na mais ampla porcentagem dos males”354. Rocha
Pombo, por sua vez, tratando do Rio Grande do Norte oitocentista, descreve que a
varíola foi o terrível mal que perseguiu muitos pontos da província com maior
frequência355. Depoimentos de presidentes de província, médicos e historiadores
apontam a recorrência da varíola no Rio Grande do Norte. Ainda na primeira metade
do século XIX, em 7 de setembro de 1838, o vice-presidente de província João
Valentino Dantas Pinajé relatava que “a peste das bexigas costuma de quando
enquanto visitar nossa Província, e por cada vez condennar [sic] a morte centenares

349
GAZÊTA, Arlene A. B. Dossiê História & Saúde: com a varíola, nasce a saúde pública. História
Ciências Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/dossie-historia-saude-com-a-variola-nasce-a-saude-publica/>.
Acesso em: 16 maio 2021.
350
MCNEILL apud SCHATZMAYR, 2001, p.1526.
351
GAZÊTA, Arlene A. B. Dossiê História & Saúde: com a varíola, nasce a saúde pública.
352
FIOCRUZ. Os últimos dias da varíola. Revista de Manguinhos, 2005, p.44-45. Disponível em:
<https://agencia.fiocruz.br/sites/agencia.fiocruz.br/files/revistaManguinhos/RevistadeManguinhos08.p
df>. Acesso em: 16 maio 2021.
353
SCHATZMAYR, 2001, p.1526.
354
CASCUDO, 1984, p.275.
355
ROCHA POMBO, 1922, p.368.
97

[sic] de vidas”356. Por sua vez, “em 1872, no relatório do Dr. Henrique Câmara,
Inspetor da Saúde, dizia-se que a Varíola assaltara novamente a província. Em Natal
adoeceram mais de quinhentas pessoas”357. Cascudo aponta ainda que a “peste das
bexigas” prolongou-se até início do século XX, observando-se, entre os anos de
1904 e 1905, “[...] cenas dolorosas da epidemia variolosa. Ruas e ruas
despovoadas, doentes em abandono, fome, o Governo em pleno combate
desvairado contra dois inimigos clássicos: varíola e seca”358. Nesse período, com a
cidade repleta de sertanejos fugidos da seca, morriam, entre eles, cerca de vinte por
dia359.
Jackson de Figueiredo procurou ressaltar que Auta de Souza, em seus
deslocamentos à procura de melhores condições para seus sofrimentos físicos, pôde
observar o espetáculo desolador da seca no sertão, com todo o imenso e gigantesco
cortejo de miséria, dores e sofrimento humano que lhe é consequente360. Assim,
podemos observar alguns traços do contexto, desse espaço exterior vivenciado por
Auta de Souza durante seus deslocamentos, na produção de suas poesias. A seca e
a morte são, desse modo, elementos que compõem a poesia de Auta de Souza a
partir da vivência dos espaços proporcionados a ela em seus deslocamentos. Diante
dessas informações, buscamos ampliar a perspectiva do espaço interior, que
discutimos no capítulo anterior, acerca da morte na obra de Auta de Souza – voltada
para as perdas de entes queridos e à tuberculose –, apresentando o espaço exterior
observado e vivenciado por ela, que também se encontrava marcado por doenças e
pela morte. Por meio dessas vivências observamos os momentos de contato entre
os espaços exterior e interior, pois, como nos diz Bachelard, “O exterior e o interior
são ambos íntimos [e] estão sempre prontos a inverter-se, a trocar sua hostilidade.
Se há uma superfície-limite entre tal interior e tal exterior, essa superfície é dolorosa
dos dois lados”. Essa “superfície dolorosa” parece bastante evidente na vida, na
obra e no contexto vivenciado por Auta de Souza, estando esses três aspectos
conectados por meio da poesia. A tuberculose deixou marcas profundas na vida e na

356
PINAJÉ apud DIAS, 2018, p.9.
357
CASCUDO, 1984, p.279.
358
CASCUDO, 1984, p.280.
359
CASCUDO apud MEDEIROS, 2006, p.12.
360
FIGUEIREDO, 2012, p.17.
98

poesia de Auta de Souza, assim como as doenças de caráter epidêmico como a


varíola, febre amarela e cólera deixaram marcas na história não apenas do nosso
estado, como de todo o Brasil. Vejamos mais algumas dessas doenças e o contexto
proporcionado por elas durante a segunda metade do século XIX.
A febre amarela também deixou marcas significativas no Rio Grande do Norte
oitocentista. Segundo Rocha Pombo, a febre amarela – que tinha feito a sua primeira
aparição na Bahia e em Pernambuco entre 1686 e 1692 – visitou pela primeira vez o
Rio Grande do Norte em 1850, concentrando-se nas zonas marítimas e impondo seu
maior tributo às cidades do Natal e S. José, onde registrou mais de duzentas vítimas
361
. A febre amarela é uma doença infecciosa causada também por um vírus, sendo
este do gênero Flavivirus febricis, da família Flaviviridae. Em sua forma silvestre, o
vírus hospeda-se em primatas e sua transmissão se dá por meio de mosquitos. A
forma urbana da febre amarela é transmitida pelo mosquito Aedes aegypti ao picar
uma pessoa infectada com o vírus e, em seguida, uma pessoa saudável. O vírus é
passado das glândulas salivares da fêmea do mosquito para os vasos linfáticos de
um humano, caindo, em seguida, na corrente sanguínea e infectando células do
fígado, rins, coração, pulmões, mucosas do sistema digestivo e até do cérebro. A
pele e os olhos do doente adquirem um tom amarelado próprio da icterícia, daí o
nome febre amarela362.
O impacto ocasionado pela febre amarela – assim como por outras epidemias,
como a varíola e o cólera, no mesmo período – foi tão grande que gerou o incentivo
do governo imperial para a implantação de políticas destinadas à melhoria da saúde
pública no Brasil363. Uma vez que as condições de saúde do Rio Grande do Norte
não eram diferentes das demais províncias brasileiras, caracterizando-se por um
estado de salubridade precário, condições sanitárias irregulares e ausência de
profissionais da saúde que atendessem principalmente as pessoas mais pobres, isso
facilitava a propagação de doenças infecciosas364, como era o caso da febre
amarela.

361
ROCHA POMBO, 1922, p.368.
362
BRUNA, Maria Helena V. Febre amarela. Disponível em:
<https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/febre-amarela/>. Acesso em: 16 maio 2021.
363
WITTER apud DIAS, 2018, p.7.
364
ARAÚJO e MACEDO apud DIAS, 2018, p.11.
99

No ano de 1856, uma nova doença se instala no Rio Grande do Norte. Dessa
vez foi o cólera (ou cólera-morbo) que atingiu a província, sendo relatado pelo
presidente provincial Antônio Bernardo de Passos 365. Segundo Cascudo:

Em 1856 visitou-nos a Cólera Morbo. Natal possuía um médico e


uma Botica. O presidente Antônio Bernardo de Passos criou dívidas
perpétuas para a gratidão da província. Foi incomparável de
atividade, iniciativa, energia. Morreram 2.563 pessoas. A cifra não
está completa, informava o presidente Passos366.

Em razão do número de vítimas, acredita-se que a cólera tenha sido a


epidemia que mais se destacou na província do Rio Grande do Norte durante a
segunda metade do século XIX367. No ano de 1857 a doença apresentou um avanço
significativo, atingindo os municípios de Nova Cruz, Extremoz, Acari, Touros, Papari
e Vila Flor até cessar seus estragos em 1858368. No entanto, a doença retornou na
segunda metade do ano de 1862. No ano seguinte, em outubro de 1863, o então
presidente de província Olinto José Meira registrava que “O Cólera Morbo, a Varíola
e a Febre Amarela encarregaram-se de fazer estragos em diferentes localidades,
n’algumas [sic] das quais o último daqueles flagelos tem-se demorado até esta data,
e parece haver-se tornado endêmico”369.
O cólera é uma doença infectocontagiosa aguda que afeta o intestino delgado
dos humanos, provocando diarreia volumosa, acompanhada de vômitos. A causa
dessa doença está em uma enterotoxina produzida pela bactéria vibrio colérico
(Vibrio cholerae). A transmissão se dá de forma fecal-oral, por meio da água e de
alimentos contaminados pelas fezes ou pela manipulação de alimentos por pessoas
infectadas. Epidemias de cólera são comuns em regiões de acampamentos e
aglomeração humana, onde as condições de higiene e saneamento básico são
precárias ou inexistentes370. No Rio Grande do Norte oitocentista, o mau estado de
salubridade era potencializado pela atuação de poucos profissionais de saúde na

365
DIAS, 2018, p.12.
366
CASCUDO, 1984, p.278.
367
MEDEIROS, 2006, p.15.
368
CASCUDO, 1984, p.278.
369
MEIRA apud CASCUDO, 1984, p.279.
370
BRUNA, Maria Helena V. Cólera. Disponível em:
<https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/colera/>. Acesso em: 16 maio 2021.
100

província, assim como pela existência de matadouros públicos, pelos enterros de


cadáveres nas igrejas, pelas águas poluídas, pelas ruas sem calçamento, pela falta
de saneamento básico, pelas habitações inadequadas, entre outros exemplos de
lugares insalubres, citados nos relatórios dos presidentes de província, que
favoreciam o aparecimento e a proliferação de doenças371. Diante dessa realidade,
não restam dúvidas de que as epidemias foram o principal vetor de mudança, na
proporção que causaram um estado de caos na província, despertando, assim, o
interesse das autoridades na busca de soluções emergenciais que viessem a sanar,
ou pelo menos, dirimir os problemas sanitários e de salubridade372.
A principal diferença que percebemos no tratamento destinado aos portadores
de varíola, febre amarela e cólera em relação àqueles que, assim como Auta de
Souza, estavam acometidos pela tuberculose, é a restrição imposta àquelas
doenças. Observando a trajetória realizada por Auta de Souza em razão de sua
enfermidade, podemos perceber uma certa liberdade que a tuberculose permitia
para aqueles por ela acometidos. Provavelmente essa forma de tratamento da
doença tenha sido uma das razões que tornaram sua proliferação tão acentuada,
fazendo com que a tuberculose ainda seja uma doença que provoca grandes
estragos em nossos dias, diferentemente da varíola, que a OMS declarou erradicada
de todo o mundo em 8 de maio de 1980373, e do cólera, que não apresenta nenhum
caso autóctone no Brasil desde 2006374. Como podemos observar a partir da vida de
Auta de Souza, a tuberculose apresentava sintomas sérios e bastante incômodos
como “[...] tosse, febre, hemoptise [eliminação de sangue por meio de tosse ou
escarro], suores noturnos, anorexia”375, entre outros. No entanto, isso não
impossibilitou que a poetisa realizasse seus deslocamentos em busca de melhoras
para o seu estado de saúde, assim como não impediu a continuidade de sua
produção poética e nem mesmo a convivência com outras pessoas. No caso das
outras doenças que temos discutido neste trabalho – a varíola e a cólera são
provavelmente os exemplos mais significativos que podemos utilizar –, a principal

371
DIAS, 2018, p.9-11.
372
MEDEIROS, 2006, p.35.
373
FIOCRUZ, 2005, p.44.
374
GOVERNO do Estado de Goiás. Cólera. Disponível em:
<https://www.saude.go.gov.br/biblioteca/7548-c%C3%B3lera>. Acesso em: 28 jul. 2021.
375
CASCUDO, 2008, p.175.
101

medida preventiva seguia um caminho diametralmente oposto: a quarentena376,


denominação atribuída aos locais destinados ao isolamento dos doentes com o
intuito de impedir que as doenças se espalhassem entre a população377. Além disso,
eram frequentes os casos de interrupção das atividades no exercício do Poder
Público e no cotidiano da população quando um surto epidêmico se instalava numa
determinada região378.

A palavra quarentena deriva da palavra quadraginata e do


italiano quaranta, atribuída ao período de quarenta dias de
isolamento de passageiros e cargas em navios, imposto por
autoridades de um porto caso suspeitassem que houvesse
portadores de infecção entre os passageiros ou tripulantes,
obrigados à incomunicabilidade a bordo dos navios ou em um
lazareto de um navio, [sendo] condicionados a permanecerem
sem atracar379.

Os “lazaretos” eram instituições voltadas ao recolhimento e isolamento de


pessoas infectadas principalmente pela varíola, mas isso não impedia que pessoas
acometidas por outras doenças também fossem colocadas nesses locais. Câmara
Cascudo descreve os lazaretos do Rio Grande do Norte como

[…] barracões de palha, erguidos às pressas nos lugares onde a


varíola se instalara. Os variolosos ficavam nas esteiras de palha de
piripiri. Para acolhê-los convenientemente o presidente Francisco de
Gouveia Cunha Barreto começou o “Lazareto da Piedade” na estrada
velha de Guarapes. Em Natal fizeram três barracões. Um dêsses [sic]
foi financiado pelo inglês Francis Artur Bowen, em dezembro de
1882. O Lazareto da Piedade, de remodelação em remodelação,
chegou aos nossos dias. É o Hospital de Alienados, no Alecrim 380.

Assim, percebemos que a quarentena, no contexto do século XIX, não


consistia apenas no isolamento de um ou mais indivíduos por um determinado
período de tempo. Esse isolamento possuía também locais específicos, espaços
destinados ao confinamento de indivíduos doentes, comumente distantes de zonas

376
ARAÚJO, 1997, p.130.
377
ROSEN apud DIAS, 2018, p.10.
378
ARAÚJO, 1997, p.129.
379
SANTOS & NASCIMENTO, 2014, p.175.
380
CASCUDO, 1984, p.279.
102

consideradas saudáveis e de maior circulação de pessoas. No entanto, “havia uma


grande resistência contra a adoção do isolamento, também conhecido como
quarentena, como maneira de prevenir uma possível transmissão pelo contágio”381.
Uma das razões dessa resistência estava no fato de a medicina social do período
caracterizar-se por uma forma de controle constante, por uma vigilância contínua
sobre o espaço e o tempo sociais, sendo a luta contra as epidemias pautada pelo
comando político e não pelo médico382. Algumas pessoas defendiam que

[…] as medidas de quarentenas e cordões de isolamentos [eram]


ineficazes, mas o verdadeiro motivo para o descontentamento era o
medo de que o isolamento da população prejudicasse o
desenvolvimento do comércio, que dependia intensamente da
mobilidade populacional entre regiões; dessa forma, lutavam pela
liberdade do indivíduo e do comércio383.

Observamos, portanto, que a preocupação das instituições políticas


regulamentadoras da salubridade “[...] não era devolver a saúde aos indivíduos, mas
sim a saúde às cidades, isto é, à ordem urbana, por meio do enquadramento social e
controle da população, inclusive modificando seus usos e costumes
‘comprometedores’”384. Nesse enquadramento e controle social estavam incluídos
principalmente a população pobre e os atingidos pelas secas que procuravam asilo
nas regiões litorâneas e nas capitais. No entanto, segundo depoimento de Henrique
Castriciano, parece ter sido exatamente essas pessoas que mais contribuíram para
a poesia de Auta de Souza, pois “no campo, onde [a poetisa] passou o melhor
tempo da atormentada existência, a paisagem triste do sertão nos longos meses de
seca, a compaixão pelos humildes, cuja miséria tanto a comovia”385, compuseram o
espaço vivenciado por Auta de Souza ao longo de seus deslocamentos.
Nesse cenário de miséria e seca no interior do estado as taxas de mortalidade
eram ainda piores devido à falta de assistência médica aos retirantes nas vilas e
povoações, pois “eram essas pessoas que fugiam da seca, as mais susceptíveis de
acometerem doenças que logo se tornava uma epidemia, dizimando-as em sua

381
MEDEIROS, 2006, p.23.
382
MACHADO apud ARAÚJO, 1997, p.128.
383
ALCKERKNECHT, 1948; ALMEIDA, 2011 apud DIAS, 2016, p.39.
384
ARAÚJO, 1997, p.134.
385
SOUZA, 2009, p.33.
103

quase totalidade”386. O presidente de província José Sarmento, em discurso


realizado perante a Assembleia Provincial em 7 de setembro de 1845, relata que de
tão desgraçada situação, para os fugitivos da grande seca de 1845, tem resultado
morrerem não poucos indivíduos, principalmente crianças e velhos, não só de fome,
mas também de enfermidades387. Nesse sentido, um ponto importante a ser
destacado é a grande mortalidade infantil causada pelas epidemias em geral. Esse
aspecto foi registrado pelo presidente de província Antônio Marcelino Nunes
Gonçalves em relatório acerca do ano de 1858, no qual apontou que “[...] foram
sepultados no cemitério público da capital 160 cadáveres, sendo 87 do sexo
masculino e 73 do feminino, 153 livres e 7 escravos. Dos 160 cadáveres é singular
que 89 [...] fossem de meninos menores de 7 anos!”388.
Fatores próprios das crianças como o organismo ainda em processo de
desenvolvimento, o sistema imunológico pouco apurado e a falta de uma
alimentação regular somavam-se ao contexto de um enorme contingente
populacional fugitivo das secas que superlotava as cidades, de proliferação das
doenças epidêmicas que assolavam o estado frequentemente, de problemas
urbanos e sanitários que só foram ser modificados após a situação do estado chegar
a níveis alarmantes e de falta de alimentos e água, resultando em um aumento da
mortalidade a níveis drásticos389. Assim, os registros paroquiais de óbitos da
freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, em Natal, nos dão uma ideia de
como os períodos de seca eram dramáticos nesse sentido:

386
ARAÚJO, 1997, p.133.
387
SARMENTO apud MONTEIRO, 2015, p.95.
388
GONÇALVES apud MEDEIROS, 2006, p.16.
389
DIAS, 2019, p.7.
104

Tabela 2 - Óbitos por ano em Natal entre 1870 e 1878

Ano Valor absoluto %


1870 112 6,31
1871 76 4,28
1872 102 5,74
1873 43 2,42
1874 128 7,21
1875 132 7,43
1876 139 7,83
1877 189 10,64
1878 855 48,14
Total 1.776 100%
Fonte de dados: registros paroquiais de óbitos da freguesia de Nossa Senhora da
Apresentação (Natal), disponíveis na Cúria Metropolitana de Natal390.

A tabela acima – desenvolvida e apresentada pela historiadora Dayane Júlia


Carvalho Dias em seu trabalho O comportamento da mortalidade no Rio Grande do
Norte entre 1801 e 1870391 – apresenta os óbitos registrados pela paróquia da
freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, em Natal, entre os anos de 1870 e
1878. Do total de 1.776, chama a atenção o fato de os dois últimos anos, 1877 e
1878, concentrarem 1.044 óbitos (58,78%). Nesse período o estado do Rio Grande
do Norte vivia a grande seca de 1877, assim podemos compreender a significativa
elevação da quantidade de óbitos no período. No gráfico a seguir – também
desenvolvido por Dias (2016), a partir dos mesmos dados – podemos observar uma
distribuição por sexo e idade acerca dos óbitos registrados entre 1870 e 1878 em
Natal.

390
DIAS, 2019, p.9.
391
DIAS, Dayane Júlia Carvalho. O comportamento da mortalidade no Rio Grande do Norte entre
1801 e 1870. 2016. 51f. Dissertação (Mestrado em Demografia) - Centro de Ciências Exatas e da
Terra, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016. Disponível em:
<https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/21743>. Acesso em: 16 maio 2021.
105

Gráfico 1 - Óbitos por idade e sexo em Natal entre 1870 e 1878

Fonte de dados: registros paroquiais de óbitos da freguesia de Nossa Senhora da


Apresentação (Natal), disponíveis na Cúria Metropolitana de Natal392.

Podemos observar, portanto, que os mais afetados com a alta mortalidade no


período foram os grupos etários com menos de 1 ano de idade – principalmente os
homens –, de 1 a 4 anos – principalmente as mulheres – e de 5 a 9 anos. Esses
dados sobre o Rio Grande do Norte oitocentista – embora apresentem um número
expressivo de pessoas sobre as quais não se sabe a idade nem o sexo –,
corroboram os argumentos de que as crianças eram as mais afetadas pelo péssimo
estado sanitário do ambiente e pelo pouco acesso a serviços de saúde e
alimentação adequados393. Devemos atentar para o fato de que os dados
apresentados anteriormente são referentes apenas à cidade do Natal. Desse modo,
acreditamos que os números seriam ainda mais expressivos se houvessem os
dados demográficos de outras freguesias da província do Rio Grande do Norte.
Ainda assim, esperamos ter ampliado um pouco mais as imagens acerca dos
espaços vistos, vividos e poetizados por Auta de Souza em meio à “paisagem triste
do sertão nos longos meses de seca” nos “diversos lugares em que esteve em

392
DIAS, 2019, p.10.
393
DIAS, 2019, p.11.
106

busca de melhoras aos padecimentos físicos”, como descrito por Henrique


Castriciano em sua Nota à 2ª edição do Horto394.
Como apresentamos na epígrafe deste capítulo, a poesia de Auta de Souza
demonstra certa inconformidade com a morte, “pelos sofrimentos que esta causou
naqueles que foram separados de seus entes queridos”395, estando as perdas
sofridas por aqueles que a poetisa conheceu e conviveu em suas peregrinações
“significativamente relacionada[s] aos sofrimentos que ela viveu”396 em relação a
seus entes queridos. Esse contato doloroso pode ser observado em poemas como
Noite Cruel397, na qual Auta de Souza demonstra medo e incerteza, ao destacar o
apagamento dos sentidos, diante da morte:

Morrer… morrer… morrer… Fechar na terra os olhos


A tudo o que se ama, a tudo o que se adora!
E nunca mais ouvir a música sonora
Da Ilusão a cantar da vida nos refolhos… […]

A perguntar a Deus na agonia e nas trevas:


Onde fica, Senhor, a terra a que nos levas,
Com as mãos postas no seio e os dois olhos sem luz?!

“Fechar na terra os olhos”, “nunca mais ouvir a música sonora”, “os dois olhos
sem luz”... Esses enunciados, apresentados em um poema que recebeu o título de
Noite cruel – que podemos compreender como um eufemismo para a proximidade
da morte ou à morte em si –, constroem a ideia do momento da morte como algo
solitário e sombrio, o adeus “A tudo o que se ama, a tudo o que se adora”. Aos que
ficam, restariam as memórias e a saudade de quem se foi, enquanto aos que se vão
restaria o vazio, a dúvida, a ausência. Auta de Souza conhecia bem como era perder
um ente querido e ter que conviver com isso. Assim, a poetisa, por meio dessas
vivências e da sensibilidade que transparece em seus poemas e nos depoimentos
daqueles que a conheceram, demonstra uma compreensão, afeto e proximidade em
relação às perdas de outras pessoas narradas em seus versos. Há, portanto, uma
conexão entre espaço íntimo, ou interior, e o exterior, que entra em contato com a

394
SOUZA, 2009, p.33.
395
LOPES, 2016, p.104.
396
Idem.
397
SOUZA, 2008, p.216.
107

vida e a sensibilidade da poetisa. Essa conexão é descrita por Bachelard como um


espaço afetivo, podendo esta forma de espaço ser compreendida pelo modo como,
“Se assim podemos dizer, os dois espaços, o espaço íntimo e o espaço exterior, vêm
constantemente estimular um ao outro em seu crescimento. [Podemos assim]
designar, como fazem com razão os psicólogos, o espaço vivido como um espaço
afetivo […]”398.
Mas qual o meio de conexão da vida e da poesia de Auta de Souza com
aqueles que ela encontra em “suas peregrinações pela terra natal na esperança de
melhoras”399? Em nosso ponto de vista, a morte é o elemento construtor desse
espaço afetivo realizado por Auta de Souza e documentado em seus textos poéticos.
Como ressaltado por Alceu Amoroso Lima no prefácio à terceira edição do Horto: “o
tema que [Auta de Souza] mais canta é o da morte das crianças. E nas páginas
torturantes que lhe dedica, passa e perpassa essa dupla sombra, negra e branca de
cor e de angelitude, que domina todo o seu Horto”400. Dos 148 poemas de Auta de
Souza de que atualmente temos conhecimento, 51 tratam sobre a morte401, ou seja,
mais de um terço da obra da poetisa. Como tratamos no capítulo anterior, a
recorrência desse tema nos poemas de Auta de Souza justifica-se em razão das
experiências vivenciadas pela poetisa, que dedicou sua obra à memória de sua mãe,
seu pai e seu irmão Irineu, seus familiares falecidos. Essas experiências
relacionadas à morte, refletidas em seu espaço íntimo, conectam-se com as
experiências de morte que a poetisa observa no exterior vivenciado em suas
viagens. Essa conexão com a dor e a perda de entes queridos, principalmente
crianças, vivenciadas por terceiros e que Auta de Souza narra em seus textos, nos
dá uma ideia da construção do que podemos caracterizar como um espaço afetivo
da poesia auteana, característica que também nos ajuda a entender a popularidade

398
BACHELARD, 1993, p.205.
399
SOUZA, 2008, p.80.
400
SOUZA, 2001, p.37.
401
Os poemas de Auta de Souza que tratam sobre a morte são: Mater, Celeste, Desalento, Goivos,
Angelina, Ao Mar, Lídia, Mistério, Agonia do Coração, Um Sonho, Morta, Loli, À Memória de uma Ave,
A Morte de Helena, Nunca Mais, Dolores, Zirma, Melancolia, De Joelhos, Simples, Bendita,
Chorando, Ao Senhor do Bom Fim, No Jardim das Oliveiras, Palavras Tristes, Meu Pai, Quando eu
Morrer, Consolo Supremo, Eterna Dor, Jesus! Maria!, Clarisse, Saudade, Noite Cruel, Adeus, Gentil!,
Sylvio, Penas de Garça, Tudo Passa, Ao Pé do Túmulo, Lágrimas, Meu pai, Os Canários, Irineu,
Hoje, Dadá, Fio Partido, "À...", Reminiscência, Visita a um Túmulo, Meu Coração, Minha Mãe e No
Cemitério.
108

alcançada pela poetisa e ressaltada por todos os estudiosos de sua vida e obra,
como já apresentamos no início deste capítulo.
Fica então a dúvida: de que forma Auta de Souza constrói esse espaço afetivo,
essa conexão entre seu espaço íntimo e aquilo que vivenciou em seus
deslocamentos, suas viagens, suas peregrinações, ou seja, essa espacialidade
exterior? Para responder a essa questão, vamos observar alguns trechos de poemas
de Auta de Souza. Comecemos pela história de uma criança chamada Laura,
apresentada no poema que recebe o significativo título de Morta402:

Dos braços da mãe querida De todo o choroso dia


Desceu Laura à sepultura: Só nos resta na lembrança,
Morreu na manhã da vida, Como visão fugidia
Criancinha ainda e tão pura! Daquela virgem criança:

Não viu desabrochar-lhe n’alma Um caixãozinho funéreo,


A aurora dos quinze anos; - Abismo de nossas dores -
Fugiu inocente e calma Conduzido ao cemitério
Do mundo cheio de enganos. [...] Como uma cesta de flores.

No trecho acima conhecemos a história de Laura, uma jovem com menos de


15 anos que desceu dos braços da mãe para a sepultura. Auta de Souza registra
ainda a “lembrança, como visão fugidia”, do “caixãozinho funéreo” sendo “conduzido
ao cemitério como uma cesta de flores”. Em um outro poema, Auta de Souza conta a
história de Angelina403, garota de doze anos que “Num voo suave e franco,/ Fugiu
para o céu de anil.../ Vestiram-te, então, de branco,/ Como uma noiva gentil”. Nos
versos desse poema, Auta de Souza nos faz “[…] sentir, por entre a dor/ De
derradeira agonia,/ De mãe um beijo de amor/ Roçar a fronte já fria…”. Assim a
poetisa registra o momento ápice de dor e luto da história que narra: a despedida da
mãe que beija o rosto frio da filha que morreu. Por fim, o caixão e o céu são as
imagens evocadas ao escrever:

No cetíneo caixãozinho,
Mais puro que as alvoradas,
Depuseram seu corpinho,
Entre as cambraias nevadas,

402
SOUZA, 2009, p.93.
403
SOUZA, 2009, p.63-64.
109

Aí, no funéreo leito,


Toda coberta de rosas,
Tendo cruzadas ao peito
Duas mãozinhas formosas;

Pareces um anjo santo,


Envolto em gélido véu,
Transpondo azulado manto,
Como em procura do Céu.

Em Zirma404, Auta de Souza nos conta a história da “[…] pobre Zirma, nívea
açucena”, provavelmente mais uma criança que a poetisa conheceu e que veio a
falecer, aspecto que podemos perceber quando a personagem é apresentada como
uma “Camélia branca murchada na haste”. A morte teria ocorrido em dezembro de
1896 ou 1897, uma vez que a poetisa registra o poema em “Nova Cruz – 1897” e
inicia escrevendo que “Foi em dezembro, no mês bendito,/ No mês de festa, que ela
partiu”. Por fim, “No esquife azúleo, feito a capricho,/ Por entre rosas de alvura
tanta,/ Deitaram Zirma como no nicho/ Guarda-se a imagem de alguma Santa”.
Já em Sylvio405, esse personagem nos é apresentado com a revelação de que
“Sylvio morreu. Docemente./ Su’alma se foi voando/ Como uma pomba dolente/ Que
deixa a terra cantando”. No entanto, Auta de Souza se refere nesse poema ao
sofrimento da mãe, nos versos que declaram: “Pobre mãe! Não chores tanto/ O filho
do coração”. Tal como em Sylvio, Dadá406 também apresenta o sofrimento de uma
mãe diante da morte de seu filho, pois “Aquela criancinha era o tesouro,/ O
imaculado encanto do seu lar./ Dadá o amava tanto que no mundo,/ Su’alma em
coisa alguma achava brilho./ Nada alterava aquele amor profundo:/ Só via o berço
onde sonhava o filho”. “Desde que o esposo para o Além se fora”, Dadá só tinha
olhos para seu filho Lauro e a ele dedicava todo o seu amor e cuidado, “Não
consentia que ele um só minuto/ Dos cuidados maternos se afastasse […]/ E se às
vezes a gárrula criança/ Disparava a correr jardim afora,/ Dadá pensava que sua
esperança/ Ia fugindo ou que morria a aurora”. Isso leva a poetisa a levantar a
questão “Se ele morresse, o que seria dela?”. O medo então se realiza, pois “Um

404
SOUZA, 2009, p.124-126.
405
SOUZA, 2009, p.190-191.
406
SOUZA, 2009, p.233-235.
110

dia, ao acordar, Lauro queixou-se/ De que o corpinho todo lhe doía. […]/ E ele
chorava que fazia pena […]/ Pálida a face como uma açucena”. Assim, “Antes do sol
pender sobre o horizonte/ O querubim cessava de existir […]/ Lauro morrera...
Branca flor pendida/ Caíra murcha num esquife aberto!”. Por fim, a poetisa revela
que Dadá teria enlouquecido diante da morte de seu filho querido, beijando, entre
soluços e risos, seu filho que já não mais vivia: “Ela bem vira quando carregavam/ O
meigo arcanjo dentro de um caixão.../ Almas cruéis! Do seio lhe arrancaram/ E com
ele também seu coração”.
Laura, Angelina, Zirma, Sylvio e Lauro não tiveram oportunidade de aproveitar
muito deste mundo, mas tiveram suas histórias e suas breves vidas eternizadas nos
versos de Auta de Souza. Essa recorrência do tema da morte, assim como da ideia
do céu como paraíso cristão e a associação da imagem das crianças com anjos, são
aspectos marcantes na obra de Auta de Souza, que em diferentes momentos
reacendem a discussão acerca da

[…] controvérsia sobre a classificação de Auta de Souza dentro da


história literária do Brasil. Trata-se de um processo de discussão
sobre a possibilidade de detectar, ou não, possíveis traços do
Simbolismo na obra poética de Auta de Souza 407.

Segundo Zahidé Muzart408, essa característica de transformar em versos a vida


e as dores do povo tornava a poetisa uma figura muito peculiar entre os simbolistas,
pois

O poeta simbolista não foi um poeta popular. A pesquisa da palavra


rara, estranha, a sua incessante procura de sons diferentes, de
símbolos o faz um poeta de elites, um poeta sofisticado… Até
acusado, embora muito discutível, de permanecer em sua “torre de
marfim”. Por isso a própria popularidade da poesia de Auta deveria
alertar-nos para essa dissonância409.

407
LEÃO, 1986, p.45.
408
MUZART, Zahidé L. Entre quadrinhas e santinhos: a poesia da Auta de Souza. Travessia, n.23
(1991): Mulheres - Século XIX, p.149-153. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/travessia/article/view/17168>. Acesso em: 16 maio 2021.
409
MUZART, 1991, p.150.
111

Nalba de Souza Leão, por sua vez, “defendendo o caráter Simbolista da obra
de Auta, argumentava que era justamente o forte traço popular de sua obra […] que
a tornava uma poeta simbolista”410. Segundo Leão, “o exemplo de Auta de Souza é
típico, pois com o Horto ela ficou na alma do povo [...]”411. A razão disso estaria no
fato de que “[…] a Autora soube expressar os sentimentos característicos de nosso
povo: a saudade, a tristeza, a melancolia, a religiosidade, […] [assim como]
aproveitar as tradições populares e inseri-las no seu universo poético”412. Os poemas
de Auta de Souza contando a história de crianças falecidas, como as que
apresentamos anteriormente, são um exemplo dessa expressão dos sentimentos do
povo, desse contato com um universo exterior, que a poetisa pôde vivenciar em
grande parte graças aos seus deslocamentos, dessa inserção do exterior em seu
universo poético.
A partir desse olhar mais cuidadoso sobre a poesia de Auta de Souza e
colocando em evidência esses poemas que tratam da morte, podemos perceber
uma constante inconformidade com a perda de pessoas queridas – aspecto referido
na epígrafe deste capítulo –, uma reação natural “[…] de quem se percebe perdendo
pedaços queridos de seu ser”413. Auta de Souza procura retratar tal sentimento nas
atitudes da mãe de Angelina, que em meio à dor e agonia beija a face fria de sua
filha morta, ou da mãe de Sylvio, que se entrega à tristeza e ao choro infindáveis, ou
o caso extremo de Dadá, mãe do pequeno Lauro, que enlouquece diante da perda
de seu filho, passando a contemplar o céu dizendo “[…] que seu filho está na estrela
d’Alva”414. Esse modo de lidar com a morte apresentado tanto por Auta de Souza em
relação a seus familiares – discutido no capítulo anterior – quanto das mães que
lidam com a perda de seus filhos – retratadas nos versos da poetisa –, nos revela
“[...] um esforço de reconstrução de seu espaço interior e exterior com estes
pedaços de passado”415. Para Auta de Souza, o meio de reunir esses pedaços de
passado era a poesia, processo que realizou colocando lado a lado suas dores e as
dores da população de seu estado.

410
LEÃO apud GOMES, 2013, p.189.
411
LEÃO, 1986, p.277.
412
LEÃO, 1986, p.1.
413
ALBUQUERQUE JR., 2011, p.78.
414
SOUZA, 2009, p.235.
415
ALBUQUERQUE JR., 2011, p.148.
112

Compreendemos, portanto, que a obra de Auta de Souza sofreu grande


influência dos espaços pelos quais passou ou nos quais residiu temporariamente.
Esses espaços – que caracterizamos como exteriores em razão de sua localização
fora do que entendemos enquanto um universo interno, ou espaço interior,
construído a partir dos aspectos de caráter íntimo da vida da poetisa – se
apresentam nas dedicatórias, nos locais, nos nomes, nas situações e nas histórias
descritas nos versos de Auta de Souza. A análise do contexto histórico vigente no
período em que a poetisa realizou seus deslocamentos pelo Rio Grande do Norte,
chegando a ir até a Paraíba, em busca de condições climáticas adequadas ao seu
estado de saúde, e a relação destes espaços com a sua produção poética, nos
auxilia na compreensão mais aprofundada acerca dos temas abordados por Auta de
Souza em sua poesia.
No entanto, Auta de Souza também se fez presente em outros espaços de
caráter exterior, tal como espaços literários e intelectuais do Rio Grande do Norte.
Esses espaços estavam compostos exclusivamente por homens que, além de sua
atuação entre a intelectualidade norte-rio-grandense, também apresentavam um
papel econômico e político no estado, entre os quais estavam inseridos seus irmãos
Eloy de Souza e Henrique Castriciano. Embora com uma participação vigiada e
controlada, Auta de Souza soube utilizar-se do lugar social de sua família para
inserir-se nesses espaços e publicar seus poemas tanto em jornais e revistas quanto
em um livro, o seu Horto. Compreendemos, portanto, que a autora teve um papel
significativo para a quebra de paradigmas acerca da atuação feminina e dos
espaços permitidos às mulheres no contexto do Rio Grande do Norte oitocentista.
Assim, percebemos a necessidade de pensar Auta de Souza enquanto uma
intelectual negra do século XIX. Vejamos, portanto, o que isso pode nos proporcionar
para pensarmos a vida e obra de Auta de Souza.
113

CAPÍTULO III - ESPAÇOS DO FEMININO NO SÉCULO XIX

[...] até que ponto elas não seriam apenas resultado de fantasias
literárias masculinas, isto é, imagens de mulheres filtradas através do
olhar do escritor? Que estereótipos e que valores representam?416

Em nosso terceiro e último capítulo daremos continuidade à nossa discussão


acerca dos espaços interiores e exteriores presentes na obra de Auta de Souza,
buscando tratar dos espaços destinados às mulheres no contexto do Brasil no
século XIX e de como eles podem ser percebidos a partir da vida e obra da poetisa.
Ao longo de todo este capítulo, apresentaremos os ideais, os estigmas e as
imposições advindas dos espaços atribuídos às mulheres no referido contexto,
embora também procuremos ressaltar alguns aspectos transgressores da trajetória
de Auta de Souza, em relação às limitações colocadas para ela enquanto mulher e
negra.
Para isso, usaremos como fontes não apenas os poemas de Auta de Souza,
mas também os escritos sobre a poetisa realizados após a sua morte. A razão disso
encontra-se no fato de que esses textos criaram uma aura mística e religiosa em
torno de seu nome, além de uma idealização da poetisa enquanto figura feminina
que se sobrepõe àquilo que ela alcançou e realizou em vida e até mesmo à sua obra
poética. Assim como apresentamos na epígrafe deste capítulo, algumas mulheres
que alcançaram notoriedade no Brasil oitocentista foram idealizadas enquanto
modelos de feminilidade, como foi o caso de Auta de Souza. Porém, isso se deu a
partir de valores masculinos, já que os homens eram os que realizavam e
comandavam toda a produção escrita da época.
Nesse sentido, poderíamos pensar, a princípio, que as dimensões mística e
religiosa seriam atribuídas à sua obra, uma vez que a poetisa demonstra, em muitos
de seus poemas, uma ligação íntima e intensa com a religião católica,
principalmente com as figuras de Deus, Jesus e Maria. Podemos observar isso no
poema Melancolia, por exemplo, no qual Auta de Souza fala diretamente com Deus
e a Ele suplica dizendo: “Sinto no peito o coração bater/ Com tanta força que me

416
DUARTE, Constância Lima. Reflexões acerca de mulher e literatura no Rio Grande do Norte. In:
______. Mulher e Literatura no Rio Grande do Norte. Natal: UFRN/CCHLA, 1994, p.5. (Coleção
Humanas Letras)
114

causa medo…/ Será a Morte, meu Deus? Mas é tão cedo!/ Deixai-me inda [sic]
viver”417. Ou quando pede, no poema Horto: “Jesus amado, reza comigo…/ Afasta a
noite, divino amigo!”418. Também em Jesus! Maria!, ao escrever que: “Jesus! Maria!
invocando/ Em vós o sol que alumia,/ Quero morrer soluçando:/ Jesus! Maria!”419. No
entanto, como alerta Ana Laudelina Gomes, a centralidade dada por praticamente
todos os críticos e biógrafos de Auta de Souza ao caráter religioso de sua poesia
acaba por incorrer em uma interpretação limitada da obra e também da vida da
poetisa, uma vez que a produção literária de Auta de Souza tem sido, de modo
geral, perspectivada por uma espécie de beatificação de suas realizações. Para boa
parte dos comentadores, ela teria vivido rumo à santificação, e seus poemas seriam
um reflexo direto desse comportamento pessoal de caráter religioso420. Essa aura de
santificação que é atribuída à obra de Auta de Souza e à sua vida é descrita por
Genilson Farias, ao dissertar que:

A partir de sua morte, como foi salientado por Ana Laudelina Gomes
(2000), tudo o que foi triste na vida de Auta repercutiu como uma
sombra que vem acompanhando boa parte da crítica de sua obra.
Nos escritos que se fizeram sobre ela, Auta foi alçada à condição de
mulher modelo, a boa moça, irmã exemplar, virgem-mártir, santa
sofredora que sentiu todo o medo da morte resignada, agarrada a um
terço mariano421.

Desse modo, procuraremos abordar os poemas de Auta de Souza realizando


uma discussão com a produção crítica e biográfica acerca da poetisa, que procurou
construí-la enquanto uma santa popular do Rio Grande do Norte. Atentamos para o
fato de que não procuramos afirmar, negar ou construir nenhuma imagem prévia
acerca de Auta de Souza nem de sua religiosidade. Nosso intuito neste capítulo é
apenas estudar historicamente essas narrativas que têm sido produzidas sobre a
autora acerca do que podemos caracterizar enquanto uma idealização da poetisa
que vai para além da sua própria vida, atribuindo a ela elementos que podemos
considerar de caráter hagiográfico, de alguém que teria levado uma vida digna dos

417
SOUZA, 2001, p.159.
418
SOUZA, 2001, p.65.
419
SOUZA, 2001, p.188.
420
GOMES, 2013, p.27-28.
421
FARIAS, 2103, p.64.
115

santos católicos. Para o caso de Auta de Souza, o segmento religioso por ela
praticado, vivenciado e propagado foi a religião católica, tendo inicialmente
aprendido e herdado sua ligação com o catolicismo por meio de seus familiares.
Esse aspecto fica evidente logo ao atentarmos para o fato de que Auta de Souza e
seus irmãos foram batizados com nomes de santos católicos homenageados nos
dias em que nasceram: embora tenha nascido no dia 4 de março de 1873, Eloy
Castriciano de Souza herdou o nome do pai, que nasceu no dia 1° de dezembro de
1842, dia de Santo Eloy e São Castriciano422; em 28 de junho de 1875, dia de Santo
Irineu, nasceu Irineu Leão Rodrigues de Souza423; em 12 de setembro de 1876, dia
de Santa Auta, nasceu Auta de Souza424; e em 20 de outubro de 1877, dia de São
João Câncio, por sua vez, nasceu João Câncio Rodrigues de Souza425.
Auta de Souza teve uma formação profundamente religiosa tanto em meio à
sua família quanto em sua educação formal. Essa formação é ressaltada por
Câmara Cascudo e por Ana Laudelina Gomes, biógrafos da poetisa, ao
apresentarem que Auta de Souza era frequentadora constante da igreja, ajudando
as zeladoras na organização material do cerimonial e no ensino religioso junto aos
grupos de catequistas. Além disso, no dia da primeira comunhão dos alunos que
preparava, organizava uma homenagem em sua casa, servindo café e bolos para a
meninada426. Silvina de Paula Rodrigues – ou Dindinha –, avó de Auta de Souza,
também teve importante participação na formação religiosa dos netos. Embora
analfabeta, Dindinha teria sido a iniciadora dos netos na doutrina cristã,
recompensando a pequena Auta de Souza por seu progresso com bonecas e com
livros de histórias427. Analisando de forma atenta o que foi escrito sobre Silvina,
percebemos que a imagem construída acerca dela pelos seus netos, e também por
Cascudo, estava enquadrada “[...] dentro de um padrão de avó que se idealizava
naquele contexto: educadora, companheira e propagadora de valores, sobretudo
religiosos”428. Eloy de Souza escreveu que sua avó “Dindinha era uma criatura de

422
CASCUDO, 2008, p.40.
423
CASCUDO, 2008, p.46.
424
CASCUDO, 2008, p.46.
425
CASCUDO, 2008, p.51.
426
CASCUDO, 2008, p.62; GOMES, 2013, p.77.
427
GOMES, 2013, p.67.
428
FARIAS, 2013, p.94.
116

bondade infinita. [...] Era tranqüila [sic] e corajosa, o que lhe permitiu sofrer com
estóica resignação dores sem conta”429. Auta de Souza, por sua vez, descreveu sua
avó como santa no poema No Horto: “E, quando a tarde vier deixando/ Nos lábios
todos saudosos ais,/ E a pobre santa falar chorando:/ ‘A minha neta não volta
mais?’”430. Já em Minha Avó, Auta de Souza descreve Dindinha como Anjo bendito,
nos versos: “Minh’alma vai cantar, velhinha amada!/ Rio onde correm minhas
alegrias…/ Anjo bendito que me refugias/ Nas tuas asas contra a sina irada!”431.
Embora a velhice das mulheres, de uma forma geral, não se apresente enquanto um
material histórico digno de registro e notoriedade, as figuras de avós parecem
emergir sempre nos relatos autobiográficos. No coração dos descendentes, é quase
sempre a avó que sobrevive por mais tempo, que é lembrada como a testemunha
mais antiga, a ternura mais persistente432. Encontramos essas descrições e
sentimentos nos escritos dos netos de D. Dindinha.
A partir desses ideais em torno da figura feminina ao longo do século XIX no
Brasil, podemos observar que as mulheres eram ensinadas desde meninas a serem
mães e esposas, e sua educação estava centrada na formação doméstica: cozinhar,
costurar, cuidar da casa, dos filhos e do marido, sendo restringidas ao espaço
privado como seu único lugar, e sem contestar, pois seu espaço estava determinado
433
.

Neste sentido, o sistema patriarcal legitimado ao longo da história


pela religião cristã, é responsável em grande medida, pelas práticas
sociais que naturalizaram o papel da mulher restrito ao espaço da
casa/quintal, favorecendo o exercício do poder pelo masculino em
detrimento do feminino434.

Desse modo, três gerações de mulheres da família de Auta de Souza


encontravam-se submetidas a essa lógica cristã e de um ideal burguês de mulher –
ideal este em plena ascensão no Brasil do século XIX, mas que ainda possuía traços
do sistema patriarcal reinante no Brasil colonial –: a própria Auta de Souza, sua mãe

429
SOUZA, 2008, p.23-24.
430
SOUZA, 2009, p.44.
431
SOUZA, 2009, p.45.
432
PERROT, 2007, p.49.
433
OLIVEIRA, 2009, p.1.
434
OLIVEIRA, 2009, p.3.
117

Henriqueta Leopoldina Rodrigues de Souza e a avó Silvina de Paula Rodrigues, a


Dindinha. Quando falamos de um ideal burguês de mulher estamos nos referindo a
um tipo de mulher encarada como:

Sujeita, passiva, dócil, frágil, criança, escrava, entre outros adjetivos,


assim era a concepção de mulher ideal defendida pelos saberes
científicos e pela nascente burguesia, que procuraram “reinventar”
um modelo de mulher que se enquadrasse ao modelo de família que
se pretendia construir, ao mesmo tempo em que seguia o curso para
seu destino natural: casar e ter filhos435.

Podemos perceber que as descrições produzidas acerca dessas três mulheres


apresentam caracteres muito similares, criando uma versão cristã, doméstica e
materna de ambas. Henriqueta, mãe de Auta de Souza, é descrita por Cascudo,
antes de seu casamento, como “[...] sinhá-moça de vinte anos incompletos, de
prendas domésticas, lida em livros, morena cor de jambo, pele macia como
cambraia, olhos submissos e lábios de amorosa [...]”436. A relevância dada por
Cascudo às “prendas domésticas” e aos “olhos submissos” de Henriqueta nos
mostram um pouco do peso da formação imposta a uma mulher no Brasil
oitocentista. Porém, devemos dar a devida relevância ao fato de Henriqueta ser uma
mulher alfabetizada e “lida em livros”, pois percebemos que D. Silvina, embora não
demonstrasse negar as imposições socioculturais a que estavam submetidas as
mulheres de sua época, aparentemente procurou dar uma formação educacional
avançada em relação à época tanto para seus filhos, quanto para seus netos,
fossem eles homens ou mulheres. Ressaltamos essa formação educacional
praticada por Dindinha pois, pensando nas descrições realizadas por Eloy de Souza
acerca da avó, observamos que foi ela que, mesmo analfabeta, estimulou os netos
em seu desenvolvimento intelectual, transmitindo os valores da avó-mãe e o
incentivo à educação formal437.
No tocante à formação cultural católica da família Castriciano de Souza,
Dindinha também aparece como preceptora, principalmente em relação à formação
de seus netos. Segundo Eloy de Souza, apesar de a avó ser católica, “[...] a sua

435
SILVA, 2014, p.561.
436
CASCUDO, 2008, p.44.
437
FARIAS, 2013, p.94.
118

religião era mais a da oração e da caridade, caridade tão ativa que estava sempre
atenta em não afligir ou humilhar o próximo”438. Assim, percebemos que as crenças e
os ensinamentos de Dindinha estavam pautados pelas diretrizes das práticas de um
catolicismo popular em detrimento do catolicismo oficial, através da oração, da
caridade e da ajuda aos próximos e aos mais necessitados439. Para Cascudo, essa
prática de um catolicismo popular podia ser observada também em Auta de Souza
pela forma que “Iluminava a todos a luminosidade tranqüila [sic] de sua fé, profunda
e doce, tudo quanto Dindinha lhe ensinara. Não perdeu na vida uma só das jóias do
seu tesouro religioso”440. Essas “jóias de um tesouro religioso”, descrição construída
a partir da vida e dos comportamentos de uma mulher, denotam um caráter sexista
dessa mentalidade do século XIX – característica que, mesmo em nossos dias,
ainda é muito comum nos discursos acerca do que seria uma mulher ideal: o “anjo
do lar”441, como apresenta Ana Laudelina Gomes442. Esse ideal de mulher cristã
contrastava com a liberdade de aprender, escrever e de circular nos meios
intelectuais vivenciada por Auta de Souza, uma vez que:

No plano social, as candidatas a escritoras profissionais tiveram que


transpor os limites de uma política de educação feminina
eminentemente doméstica, baseada quase que exclusivamente na
excessiva doutrinação moral e religiosa. Não era fácil vencer as
barreiras de uma educação voltada meramente ao lustro da mulher
visando adequá-la às exigências do convívio social da vida burguesa
e para o cumprimento a contento de seus papéis de esposa e de
mãe cristãs443.

Aparentemente, pelo menos no que se tratava da formação educacional e da


produção literária, Auta de Souza manteve-se em um espaço considerado aceito

438
SOUZA, 2008, p.27.
439
FARIAS, 2013, p.94-95.
440
CASCUDO, 2008, p.172.
441
Ana Laudelina Gomes caracteriza o que seria o anjo do lar a partir de uma citação da escritora
britânica Virginia Woolf (1882-1941): “Você pode não saber o que quero dizer com o Anjo do Lar... Ela
é intensamente compreensiva. É desmedidamente encantadora. Ela é absolutamente altruísta. Ela se
supera nas difíceis artes da vida familiar. Ela se sacrifica diariamente... Ela nunca tem um
pensamento ou um desejo próprio... E quando eu começo a escrever eu a encontro em minhas
primeiras palavras... Ela aparece por detrás de mim e murmura: Minha querida, você é uma jovem
mulher... Seja compreensiva; seja terna; agrade os outros; engane; use todas as artes e ardis de
nosso sexo. Nunca deixe ninguém perceber que você tem uma mente própria…” (WOOLF apud
TELLES, 1987, p.73).
442
GOMES, 2013, p.206-207.
443
GOMES, 2013, p.21.
119

para uma mulher. Afinal, devemos ter em conta que, em termos de aceitação, as
obras cujas temáticas não contribuíssem, no plano das ideias, para desestabilizar o
domínio patriarcal vigente ou, no mínimo, não se opusessem a ele444, eram não
apenas aceitas como também aclamadas pela crítica.

De intenção premeditada ou por firmeza de princípios, Auta de Souza


não ultrapassou a linha demarcatória do que era aceito nos
Oitocentos em termos de escrita feminina. Esteve dentro dos limites
de aceitação da crítica, por isso não foi rechaçada. Acima de tudo, a
linguagem adotada em sua obra pôde ser apropriada pela crítica
católica como uma manifestação de uma poesia de feição cristã.
Também por isso, a poeta ganhou a simpatia da Igreja e de seus fiéis
445
.

Os poemas de Auta de Souza obtiveram uma significativa aceitação e


divulgação, principalmente no meio católico, sendo recitados e musicados durante
muitos anos após a sua morte – aspecto que discutimos no capítulo anterior, ao
tratarmos da popularidade da poesia de Auta de Souza. Seus escritos contaram com
a apreciação de nomes expressivos da chamada crítica católica nacional, tais como
Jackson de Figueiredo (1924), Nestor Victor (1919), Perillo Gomes (1923) e Alceu
Amoroso Lima (1970). “Esses e outros comentadores viram em sua vida um modelo
a ser seguido e em sua obra a expressão exemplar do caráter cristão”446. O crítico
literário e líder católico brasileiro Alceu Amoroso Lima (1893-1983) escreveu que a
poetisa

[...] alcançou uma intensidade de sentimento cristão que até hoje não
envelheceu [...]. Não se desprendera nem dos afetos nem dos
encantos terrenos. Vivia, isso sim, em plena angelitude. Tudo via sob
o véu de uma virgindade de alma absolutamente cândida e sensível
às mais delicadas sensações de alegria e de sofrimento, sobretudo
dessas últimas. [...] E toda se voltava, então, para Aquele que veio ao
mundo, como escreveu Claudel - “não para suprimir o sofrimento,
mas para sofrer conosco”. Auta de Souza sofria unida à Cruz do
Salvador447.

444
GOMES, 2013, p.207.
445
GOMES, 2013, p.25-26.
446
GOMES, 2013, p.287.
447
LIMA apud CASCUDO, 2008, p.159-160.
120

Jackson de Figueiredo, por sua vez, declarou que “Auta de Souza, [...] essa
indomável heroína cristã, que, mesmo quando ‘não vê o sol’, não desespera. Sabe
que a noite do cristão faz adivinhar outros sóis, milhares de sóis, postos ainda mais
altos pela mesma poderosa mão do Senhor”448. Além dos já citados, outros
intelectuais também idealizaram a vida e a obra de Auta de Souza após a sua morte,
utilizando de discursos marcados por uma devoção católica que ora a
representavam como mediadora entre as esferas divinas superiores e o plano
terrestre, ora a viam como uma devota a caminho da santificação449. A morte de Auta
de Souza suscitou a publicação de uma série de artigos em jornais e revistas que
louvaram a poetisa e sua obra unicamente a partir de uma perspectiva cristã.
Citaremos a seguir alguns trechos que demonstram essa visão sobre Auta de
Souza:

O seu espírito parecia pertencer mais ao céu do que à terra, e assim


foi viver no seio de Deus450.

[...] como a seus dotes intelectuais ela reunia um fundo de virtudes


cristãs, [...] uma católica de conduta exemplaríssima no seio da santa
Igreja. [...] a cristandade lamenta a perda de um modelo tão perfeito
do caráter cristão [...]451.

Imortal, o que descendo para o nada, sobe para a Glória, envolto nas
bênçãos da posteridade e aureolado desse brilhante diadema que
cintila na fronte dos gênios! Tal é o teu destino, cotovia mística das
rimas, que deixando a terra foste cantar nos céus!452.

Foi um Anjo que se fez Mártir para ensinar aos fracos o sublime
Evangelho da resignação!453.

Ouve-se um triste bimbalhar [sic] de sinos e um cântico festivo e


alvissareiro de Anjos. É a procissão celestial que sobe a luminosa
escadaria do firmamento, conduzindo, abrigado em conchas de
arminho, para o país do azul, o espírito angélico dessa adorável
criatura454.

448
FIGUEIREDO, 2012, p.29.
449
GOMES, 2013, p.24.
450
Diário de Natal, n° 1892, 8 de fevereiro de 1901 (LEÃO, 1986, p.160).
451
Auta de Souza (LEÃO, 1986, p.167).
452
Oasis, 16 de fevereiro de 1901 (LEÃO, 1986, p.170).
453
Glorificação, texto de Segundo Wanderley (LEÃO, 1986, p.194).
454
Phantasia da magua, texto de Ezequiel Wanderley (LEÃO, 1986, p.201-202).
121

Não temos como afirmar quais os motivos que levaram esses homens a
construírem uma imagem tão idealizada e imaculada acerca de Auta de Souza, mas
podemos nos questionar acerca das relações construídas em torno da produção de
uma figura feminina idealizada que pudesse ser propagada a partir dos ideais
atribuídos à poetisa. Nesse sentido, concordamos com Ana Laudelina Gomes, ao
apresentar que a tradição religiosa católica é utilizada como balizadora para toda
uma série de representações predominantes até hoje nas produções de caráter
biográfico sobre Auta de Souza, submetendo-a “[...] à condição de heroína cristã,
segundo a qual ela teria suportado a dor e sofrimento da qual foi vitimada com a
maior resignação justamente por entender que se tratava de desígnios de Deus”455.
Mas quais elementos são utilizados para a construção dessa idealização
católica em torno de Auta de Souza? Para respondermos a essa questão,
precisamos ressaltar que, em nossa perspectiva, existem dois espaços acerca da
vida e obra de Auta de Souza que permeiam essa discussão: um deles de caráter
interior, construído e expresso por Auta de Souza em sua obra, vivenciado e
poetizado por ela a partir de sua subjetividade, seu aprendizado e suas práticas no
meio católico; e outro de caráter exterior, produzido por muitos de seus
comentadores, críticos e biógrafos como forma de propagar a doutrina católica e um
ideal de mulher cristã. Quanto ao primeiro espaço, de caráter interior, ressaltamos a
particularização do “[...] local onde os cristãos acreditam que Jesus teria padecido
em tormento”456: o Horto das Oliveiras. Nos versos do poema intitulado No Horto,
Auta de Souza escreve: “Jesus amado, reza comigo…/ Afasta a noite, divino amigo!/
Eu disse... e as sombras se dissiparam./ Jesus descia sobre o meu Horto.../ Estrelas
lindas no céu brilharam,/ Voltou-me o riso, já quase morto”457.

“Horto”, segundo a interpretação semântica, é um lugar de tormento


por alusão ao Jardim das Oliveiras, lugar onde Jesus orava e foi
preso. Auta de Souza elegeu também o horto como o espaço que
simbolizasse o seu sofrimento. A poetisa identifica-se tanto com as
dores de Cristo, que chega a particularizar a palavra horto; “Je­sus
descia sobre o meu Horto”, sugerindo, assim, a união mística das
suas dores com as dores de Jesus Cristo458.

455
GOMES, 2013, p.24-25.
456
GOMES, 2013, p.258.
457
SOUZA, 2009, p.41.
458
LEÃO, 1986, p.55.
122

Essa apropriação de um espaço caracterizado pelo sofrimento de Jesus


também está inserida naquilo que apresentamos no início deste capítulo, ao
tratarmos da ligação íntima e intensa com a religião católica – principalmente com
Deus, Jesus e Maria – expressa por Auta de Souza em seus versos. Esse aspecto é
utilizado também no segundo tipo de espaço, de caráter exterior, construído para
Auta de Souza a partir das leituras que outros intelectuais realizaram de seus
versos. Nesse sentido, Jackson de Figueiredo chegou a escrever que: “[...] nenhum
poeta brazileiro [sic] ousou jamais essa intimidade, digamos assim, com Jesus e sua
Mãe Santíssima, e por isto também nenhum se lhe pode comparar como cantor da
glória a mais alta, que é a humilíssima glória de ser crente”459. A razão para essa
intimidade observada nos versos de Auta de Souza estaria no misticismo atribuído à
sua poesia, que foi constantemente ressaltado por diversos autores. Nalba Leão, por
exemplo, escreveu que “Auta de Souza, na sua evasão vertical e mística, procura
aproximar-se da espiritualidade, ideal que para ela significa ir ao encontro de Deus”
460
. Jackson de Figueiredo, por sua vez, acreditava "[...] que em Auta de Souza, a
alma da artista e a da mística fizeram uma harmonia tão delicada, tão subtil e ao
mesmo tempo tão simples, que não há senão [que] reconhecer [uma] identidade
entre elas [...]"461. Também seu irmão Henrique Castriciano escreveu em sua Nota à
segunda edição do Horto que “[...] sem a dor que lhe requintou a fé, Auta certamente
não teria encontrado a forma com que deu cor e relevo às visões de seu misticismo”
462
.
Mas de onde surgem essas associações entre Auta de Souza e um misticismo
cristão? Segundo Ana Laudelina Gomes, essa atribuição mística à obra de Auta de
Souza “iniciou-se dois anos antes da publicação do livro Hôrto, quando a poeta
ainda era viva. Na ocasião, Francisco Palma, num soneto publicado no jornal A
Tribuna, denomina-a ‘a cotovia mística das rimas’”463. No entanto, a referência de
maior notoriedade ao caráter místico da obra de Auta de Souza é provavelmente o

459
FIGUEIREDO, 2012, p.51.
460
LEÃO, 1986, p.66.
461
FIGUEIREDO, 2012, p.12-13.
462
SOUZA, 2009, p.35.
463
GOMES, 2013, p.152.
123

prefácio escrito pelo poeta Olavo Bilac para o Horto. Em seu prefácio, Bilac defende
que “[...] a nota mais encantadora do livro é a do misticismo”464. Cascudo, em sua
biografia sobre Auta de Souza, descreveu a repercussão do comentário de Bilac à
obra da poetisa da seguinte forma:

A minha geração em Natal, aqueles que começaram a escrever ao


redor de 1918, recebeu Auta de Souza como a "poetisa mística do
Brasil". Nenhum de nós sabia o que vinha a ser misticismo, o título
era sonoro e orgulhador [sic] para o nosso provincianismo sedento de
notoriedade, Olavo Bilac e Nestor Victor diziam-na "mística". Podiam
resolver. Tinham autoridade. Estávamos todos enganados. Eles e
nós465.

Nesse ponto há uma controvérsia na opinião de Câmara Cascudo. Em crônica


publicada na seção Acta Diurna do Jornal A República, datada de 23 de fevereiro de
1943, Câmara Cascudo escreveu que: “Não pode haver duas opiniões sobre Auta de
Souza. É a maior poetisa mística do Brasil”466. No entanto, em sua biografia sobre a
poetisa, Cascudo escreveu que “Auta de Souza não é uma poetisa mística. [...] Não
creio que haja lido um místico, especialmente a grande Santa Teresa de Jesus. [...]
Em todo o Horto, não há uma só página que denuncie tendência mística de sua
autora”467. Não bastasse a opinião do biógrafo entrar em desacordo com o que ele
mesmo havia escrito anos antes, percebemos também que a afirmação de que “Não
creio que [Auta de Souza] haja lido um místico, especialmente a grande Santa
Teresa de Jesus” demonstra-se totalmente contrária ao que afirmou Henrique
Castriciano, ao escrever que sua irmã “Nos últimos anos, as horas que podia
dispensar ao convívio dos autores, consagrava-as aos místicos, a Th. de Kempis, a
Lamartine, a S. Theresa de Jesus”468. O comentário de Cascudo entra em desacordo
também com o que escreveu a própria Auta de Souza, que em seu poema intitulado
Ao Senhor do Bom Fim inseriu a epígrafe “Sofrer ou morrer! - Santa Teresa de
Jesus”469, demonstrando que tinha conhecimento e leitura dos escritos da freira
carmelita espanhola. Em 1983, em entrevista realizada para a sua dissertação de

464
SOUZA, 2009, p.30.
465
CASCUDO, 2008, p.28.
466
CASCUDO, 2008, p.118.
467
CASCUDO, 2008, p.28.
468
SOUZA, 2008, p.34.
469
SOUZA, 2008, p.138.
124

mestrado, Nalba Leão pergunta a Câmara Cascudo se Auta de Souza seria ou não
uma poetisa mística. Cascudo responde que: “[...] a minha geração de Natal
recebera Auta como poetisa mística. Mas todos estavam enganados. [...] Auta não é
mística. Ela é, sim, uma mensageira da sensibilidade feminina na poesia brasileira e,
ainda, uma poetisa profundamente religiosa”470. Embora, na entrevista concedida a
Nalba Leão, Cascudo não se inclua entre aqueles que “estavam enganados” –
diferentemente do que afirmou em sua biografia sobre Auta de Souza, ao escrever
que “Estávamos todos enganados. Eles e nós”471 –, o que se mostra de grande
relevância para nós em meio a essas discordâncias são as disputas em torno da
construção de um discurso predominante sobre Auta de Souza. “Cada qual com seu
saber, cada qual com seu poder no mundo das ideias, cada um tecendo sua
construção biográfica da poeta”472.
Mas o que vem a ser esse misticismo atribuído a Auta de Souza? O misticismo,
segundo o pensamento cristão, “[...] seria a experiência imediata de comunicação
com o divino, ou o treinamento para que fosse realizada, através de um itinerário
gradual de ascese que culminaria numa unificação com Deus, divinizando o sujeito
ou libertando-o do mal”473. Essa identificação com o misticismo atribuída a Auta de
Souza acabou estendendo-se a toda a vida e obra da poetisa, o que aparentemente
limitou, ou poderíamos dizer que até impediu, que os seus poemas fossem lidos,
pensados, pesquisados e estudados sob outras perspectivas. Podemos observar
essa construção de uma Auta de Souza mística, ou puramente religiosa, a partir dos
depoimentos de uma série de homens que procuraram apresentar a poetisa sob os
seguintes aspectos:

Antes de 1893, a fé seria a fonte única da inspiração interior, o


diálogo da alma e o mundo [...]474.

Auta de Souza possuía altos dotes morais e nobilíssimas qualidades


afetivas que davam à sua individualidade literária um relevo

470
LEÃO, 1986, p.283-284.
471
CASCUDO, 2008, p.28.
472
GOMES, 2013, p.35.
473
GOMES, 2013, p.223.
474
CASCUDO, 2008, p.84.
125

acentuadamente simpático, como a auréola d'um [sic] gênio do bem


475
.

Admirava-a na sua modéstia, na sua tristeza, na sua resignação


evangélica. Só os espíritos eleitos, superiores pelo coração e pelo
ideal, são capazes de tanto amor476.

[...] não há que estranhar se houver quem não dê a estes versos o


valor que almas cristãs naturalmente lhes dão, porque elas somente,
em verdade, podem compreender o que eles traduzem e exprimem477
.

Diante dos depoimentos apresentados anteriormente, assim como de muitos


outros citados neste capítulo, tão centrados em uma perspectiva religiosa acerca da
vida e da obra de Auta de Souza, concordamos com Ana Laudelina Gomes, ao
ressaltar que

[...] a força de coesão que colocou e manteve a representação de


Auta de Souza no âmbito do sagrado não foi outra, senão a do
deslocamento e segregação da mulher para o âmbito exclusivo da
religiosidade, como se esta fosse um compartimento hermético da
cultura, excluído da esfera da política e do poder patriarcal478.

Colocar a vida e a poesia de Auta de Souza nesse “âmbito exclusivo da


religiosidade”, construído a partir de toda uma idealização atribuída à poetisa, não
apenas limita as muitas leituras e imagens que podemos construir a partir da sua
obra como também apaga as conquistas e quebras de paradigmas realizadas por
uma mulher negra que, no Brasil do século XIX, decidiu ter uma vida intelectual e
literária, algo que definitivamente não era bem-visto pela sociedade da época. No
entanto, Auta de Souza

[...] escreveu e publicou dezenas e dezenas de versos em jornais e


revistas, assinando-os, dedicando-os às amigas, num desejo
expresso de perpetuidade na lembrança. Viveu um ano ainda depois
do Horto, magnífica e merecidamente festejada pelos registos [sic]
críticos. Esquecimento e anonimato são diametralmente opostos aos
livros publicados. Nenhum melindre se insultou na poetisa com essa

475
Oração - proferida por Pedro Avelino à beira do túmulo da laureada poetisa Auta de Souza (LEÃO,
1986, p.187).
476
Em busca do além, texto de José Pinto (LEÃO, 1986, p.188).
477
FIGUEIREDO, 2012, p.62.
478
GOMES, 2013, p.231.
126

notoriedade. Nem mesmo a humanidade cristã se ofende com a


colheita dos justos frutos479.

Ao que sabemos, “No final do século XIX, quando Auta de Souza começou a
escrever, ainda persistia na cultura ocidental a noção de que a mulher autora,
escritora, era coisa vergonhosa”480. Por que, então, Auta de Souza pôde ingressar na
vida intelectual e literária sem sofrer qualquer represália por isso, sendo inclusive
incentivada por seus familiares e aclamada pela crítica? Ana Laudelina Gomes
apresentou informações de grande relevância acerca de uma domesticação e
integração da figura de Auta de Souza ao ideário de feminilidade associado ao anjo
do lar481, discurso produzido pelos críticos da obra da poetisa. Como apresenta
Genilson Farias:

Ana Laudelina mostra em sua tese que a representação de mística,


católica, cristã e o enaltecimento de Auta em torno de uma
representação de sofrimento e tolerância por viver em comunhão
com Jesus, com a Virgem Maria e os santos do devocionário católico,
foi uma construção que servia para manter um ideário de feminilidade
e de submissão para as mulheres482.

No entanto, para discutirmos a construção de Auta de Souza centrada nesses


ideais de mulher cristã, nos aprofundaremos em um dos aspectos mais expressivos
desse “ideário de feminilidade”: a elevação da figura de Auta de Souza ao patamar
de santa. Se não uma santa canonizada pela Igreja Católica, ao menos uma santa
não oficial, de caráter popular. Há muitos comentários alusivos a esta representação
de Auta de Souza enquanto uma santa, então apresentaremos alguns deles para
tornar mais claro do que estamos falando:

[...] exemplos do Amor e da Virtude que soube deixar na terra,


durante o curto período da sua existência, a santa e adorável
criatura. Morreu Auta de Souza! 483.

Ajoelhemos ante esse altar sagrado em cujo nicho pousa o espírito


divino e meigo da maviosa cultura do verso. Oremos ante o

479
CASCUDO, 2008, p.121.
480
GOMES, 2013, p.206.
481
GOMES, 2013, p.217.
482
FARIAS, 2013, p.55.
483
Auta de Souza, texto publicado em jornal de 8 de fevereiro de 1901 (LEÃO, 1986, p.158).
127

sarcófago que encerra o invólucro material d'aquela [sic] resignada e


santa criatura484.

Mulher - ornava-lhe a alma a grinalda fulgente das mais afetuosas e


santas virtudes íntimas485.

A tormenta se desfizera ao pé do túmulo; e do naufrágio em que se


abismou esta singular existência, resta o Horto, livro de uma santa486.

[...] a sombra de Auta atravessa minha tarefa com uma doce


obstinação de pensamento amoroso. Auta, Santa Auta é para mim
Auta de Souza [...]487.

[...] subir assim, pode não ser de gênio, mas é, por certo, de uma
alma santa488.

Devemos ressaltar que, assim como nas demais sequências de depoimentos


destacados em momentos anteriores deste capítulo, todos os trechos apresentados
foram retirados de escritos produzidos por homens que procuraram construir
discursos sobre Auta de Souza. Levamos em consideração que os depoimentos
citados anteriormente estão também marcados por uma emoção e afeto em relação
a Auta de Souza e sua obra, como é evidente tanto no trecho citado quanto em toda
a Nota escrita por Henrique Castriciano para a segunda edição da obra de sua irmã,
falecida há quase dez anos, na época. No entanto, ao expressarem suas visões
acerca de Auta de Souza, de sua alma, suas virtudes e seus escritos enquanto
atributos de uma santa, além de suprimirem a habilidade, o esforço e o mérito da
pessoa e da mulher Auta de Souza, também demonstram o desejo de (e)levar a
vida, obra e todas as demais realizações da poetisa para um plano místico, para um
espaço puramente religioso, etéreo, divino. Esse espaço estaria construído a partir
de temas presentes na obra de Auta de Souza – mesmo que estes não sejam únicos
dentro da infinidade de temas, imagens, símbolos e espaços que temos procurado,
dentro das nossas limitações, pesquisar e discutir neste trabalho –, que seriam “[...],
nesse sentido, denunciadores da ‘alma santa’ da poeta, na medida que seus versos
falavam em esquifes de donzelas e anjos, falavam de moças e de crianças e eram

484
Homenagem, texto de Pedro Nascimento, do Grêmio Tobias Barreto (LEÃO, 1986, p.195).
485
Homenagem, texto de Pedro Nascimento, do Grêmio Tobias Barreto (LEÃO, 1986, p.196).
486
Nota, texto de Henrique Castriciano para a segunda edição do Horto, 4 de agosto de 1910
(SOUZA, 2009, p.35).
487
CASCUDO, 2008, p.21.
488
VICTOR apud GOMES, 2013, p.173.
128

escritos para amigas e para aquelas que perderam seus filhos”489. Essa forma de
encarar e representar Auta de Souza e sua obra revela uma crença de que “É divina
a missão da mulher: nos plantar a fé na alma e a virtude no coração. É o primeiro
livro santo que o menino estuda, nos conselhos de sua mãe, bebe a moral de Deus,
os princípios da religião”490. Sob esta ótica, uma vez que Auta de Souza não poderia
seguir o caminho que era destinado às mulheres de seu tempo, de casar e tornar-se
esposa e mãe – em razão de seus problemas de saúde e do controle exercido por
sua avó e seus irmãos –, restou-lhe abraçar a devoção religiosa491 e, tornando-se
santa, cuidar de todos/as aqueles/as que lhe fossem devotos por toda a eternidade.
Contudo, “Entre as religiões e as mulheres, as relações têm sido, sempre e em
toda parte, ambivalentes e paradoxais. Isso porque as religiões são, ao mesmo
tempo, poder sobre as mulheres e poder das mulheres”492. Desse modo,
entendemos que a religião se apresentava para muitas mulheres do século XIX
como um espaço de libertação, no qual poderiam almejar e construir um futuro que
não seguisse estritamente o paradigma da esposa e mãe de família restritas ao lar.
A formação em instituições de ensino católicas apresentava suas restrições, como a
vivência enclausurada, a disciplina rígida, a valorização do silêncio, da sujeição e da
virgindade. No entanto, essas mesmas instituições de ensino foram também
espaços onde “[...] as mulheres fizeram a base de um contra-poder e de uma
sociabilidade. A piedade, a devoção, era, para elas, um dever, mas também
compensação e prazer”493. A educação formal de Auta de Souza também possuiu
um caráter religioso, tendo a poetisa estudado no Colégio São Vicente de Paulo,
então dirigido pela Irmã Savignol, do grupo de professoras francesas da
Congregação Vicentina, instalado no bairro da Estância, no Recife494. Podemos
perceber essa convivência e sociabilidade de Auta de Souza não apenas na
formação religiosa de crianças que realizou em Macaíba, mas também na saudade
expressa pela poetisa em relação às “[...] almas formosas e santas que me

489
GOMES, 2013, p.173.
490
BASTOS apud SILVA, 2014, p.557.
491
GOMES, 2013, p.287-288.
492
PERROT, 2007, p.83.
493
PERROT, 2007, p.84.
494
GOMES, 2013, p.68.
129

educaram o coração e o espírito [...]”495. Ademais, o “ambiente do colégio seguiu-a


sempre. Recordava-o com saudades. Às irmãs, tinha sabido fazer-se estimar. As
colegas foram amigas que acompanharam espiritualmente sua alegria, sonho,
mágoa, exílio simbólico, presentes nas horas melancólicas”496.
Podemos perceber, desse modo, que “A mulher que ora, não tinha nenhum
acesso à educação, e consequentemente aos espaços públicos, agora encontra as
portas abertas pela educação e religião, para transitar, ainda que com restrições,
neste espaço”497. Diferentemente de muitas das mulheres de sua época, Auta de
Souza pôde desfrutar de uma educação formal entre os anos de 1888 e 1890. Fato
que, “[...] muito embora naquela época fosse considerado suficiente para uma moça
de sua idade, não se constituía num espaço de tempo satisfatório para alguém cuja
pretensão era tornar-se um escritor, seja homem ou mulher”498.
Auta de Souza provavelmente tinha plena consciência de sua condição
privilegiada e por isso procurou usufruir ao máximo das oportunidades que teve,
buscando alcançar a melhor formação possível para realizar seus planos de
tornar-se escritora. Assim, não nos é estranho que a poetisa tenha sido “[....] a
primeira aluna, obtendo quase todos os prêmios escolares. Rapidamente,
assenhoriou-se [sic] do idioma francês, falando fluentemente, escrevendo versos,
lendo. Recitava, cantava, ajudando a dirigir e planejar as pequeninas festas do
colégio”499. Esse tipo de comportamento é comumente interpretado como uma
atitude de passividade e submissão por parte da poetisa, como forma de demonstrar
sua preocupação em obedecer às regras, aos ideais e padrões impostos às
mulheres de sua época. No entanto, também podemos entender tal comportamento
enquanto um desejo de desenvolvimento intelectual e pessoal, de alguém que
almejava ingressar e conquistar espaço no ramo literário, escrevendo e publicando
suas obras. Assim, podemos dizer que “Auta de Souza teve sua cota de ousadia,
mas isso nunca aparece nos comentários críticos. Não é para menos, pois, do

495
SOUZA, 2009, p.27.
496
CASCUDO, 2008, p.58.
497
OLIVEIRA, 2009, p.2.
498
GOMES, 2013, p.22.
499
CASCUDO, 2006, p.56.
130

contrário, ajudaria a desfazer um pouco sua imagem somente de boa moça, na qual
todas as ‘moças de bem’ deveriam se espelhar” 500.
Compreendemos, desse modo, que foram os discursos produzidos acerca da
poetisa, principalmente após a sua morte, que construíram uma Auta de Souza
santificada, atribuindo um caráter hagiográfico à sua história de vida e a tudo que ela
realizou e produziu, com o intuito de alçá-la a uma condição de mulher modelo. No
entanto, para que esses ideais fossem efetivados, foi preciso que algumas
subalternidades fossem deixadas de lado, sublimadas, esquecidas501. Mas quais
seriam essas “subalternidades”, ainda mais em uma figura tão querida e aclamada
quanto Auta de Souza? Vejamos alguns trechos que podem nos apresentar alguns
pontos de discussão importantes acerca desse assunto:

[...] a mesma tinha contra si o fato de ser feiosa e descender de


negros, numa sociedade que mal libertara seus escravos. E ainda:
ser mulher, num meio tipicamente patriarcal, portanto dominado pelos
machos; e por último, ser tísica - tuberculosa - num tempo em que
esta condição significava quase uma sentença de morte, pois não
havia cura para tal doença502.

Única irmã dos Castriciano, Auta de Souza, é um veemente exemplo


de como o talento e a força de vontade superam dificuldades
aparentemente insanáveis. Mulher, pele escura e desprovida de
beleza física, nenhum dos três predicados contariam a seu favor na
sociedade da época. Além desses fatores havia, ainda, a aterradora
presença da morte dizimando parte da família e culminando com o
fato de que, ela própria, contraíra a tuberculose na adolescência503.

Nessa lógica, Auta de Souza “tinha contra si” o fato de ser mulher, negra e
tísica – portadora da tuberculose. Quanto à questão de Auta de Souza ser
“desprovida de beleza física” ou “feiosa”, entendemos que se trata de um ponto de
vista pessoal. No entanto, tal como Ana Laudelina Gomes comenta acerca de alguns
aspectos apresentados por críticos da obra de Auta de Souza, nos questionamos se
semelhantes observações seriam usadas em relação a um homem504.
Aparentemente a aparência física está sempre em questão em tudo o que as

500
GOMES, 2013, p.30.
501
FARIAS, 2013, p.120.
502
GURGEL, 2003, p.13.
503
GURGEL, 2001, p.46.
504
GOMES, 2013, p.157-158.
131

mulheres realizam, mesmo que este aspecto nada tenha a ver com a carreira que
elas escolheram realizar. Percebemos que a questão do gênero – ou seja, o fato de
Auta de Souza “ser mulher, num meio tipicamente patriarcal, portanto dominado
pelos machos”505 – acabou fazendo com que a poetisa tenha sido idealizada
enquanto um modelo de mulher pautado pelos preceitos cristãos, imagem que tem
atribuído a ela o caráter de uma santa. Mas e a questão racial em torno de Auta de
Souza? Esse aspecto foi discutido pelo cientista social Genilson de Azevedo Farias
em sua dissertação de mestrado, intitulada Auta de Souza, a poeta de “pele clara,
um moreno doce” (2013). Nesse trabalho, Genilson Farias apresenta uma Auta de
Souza intelectual e afrodescendente que, tal qual outras escritoras que tinham esta
mesma condição, teve que romper barreiras de raça e gênero para poder se fazer
presente no espaço da escrita literária506. Segundo Genilson Farias,

[...] o desconhecimento da ancestralidade negra de Auta estava


atrelado a um outro processo que objetivava invisibilizar
deliberadamente da memória coletiva do nosso Estado e do nosso
país o legado cultural de indivíduos vistos como subalternos. E
dentro dessa realidade inclui-se os descendentes de africanos,
especialmente aqueles que trouxessem as marcas da raça negra de
forma acentuada, sobretudo na cor da pele507.

De acordo com Câmara Cascudo, em relação a Auta de Souza, “A cor não


estava no debate. Auta, entretanto, deixa aparecer, pela reiteração poética, o desejo
recôndito de não ter nascido tão morena, uma morena-sapoti”508. Cascudo justifica
seu posicionamento ressaltando que “[...] jamais Auta de Souza sofreu qualquer
alusão ao seu mesticismo [sic]. Era a primeira moça da cidade e a primeira poetisa
do Rio Grande do Norte. Disputada, querida, aclamada”509. Cascudo revela ainda
sua incompreensão em relação à insistência em relação à cor branca, à alvura
sugerida por Auta de Souza em suas poesias, assim como em relação ao fato de a
poetisa haver utilizado Hilário das Neves como um de seus pseudônimos: “Um dos
pseudônimos de Auta era Hilário das Neves. Inconsciente sublimação de sua

505
GURGEL, 2003, p.13.
506
FARIAS, 2013, p.28.
507
FARIAS, 2013, p.18.
508
CASCUDO, 2008, p.180.
509
CASCUDO, 2008, p.180.
132

epiderme de matiz escuro? Devia ser realmente reação obscura do subconsciente


[...]”510. Segundo o biógrafo, “O pseudônimo é de irrespondível relação denunciante:
Hilário das Neves, alvura e alegria”511. Nalba Leão ressalta em sua dissertação de
mestrado essa interpretação tanto de Câmara Cascudo quanto de Rômulo
Wanderley, ambos intelectuais do Rio Grande do Norte que viram nessa recorrência
à cor branca uma maneira inconsciente de a poetisa sublimar a sua pele de cor
escura512.

Para Rômulo Wanderley, “nesta simpatia obsessiva pelos brancos,


[...] não se poderia surpreender um traço psicológico da poetisa,
motivado pela sua condição racial? [...]. Auta de Souza era quase
mulata. Por um complexo de superioridade, teria sido levada a negar
a própria cor, vendo qualidades apenas na raça branca: a que
gostaria de pertencer, por ser esta de maior prestígio social”513.

Em nosso ponto de vista, esses aspectos não comprovam a inexistência de


preconceito racial em relação a Auta de Souza e sua família, assim como não
atestam o fato de que a poetisa se enxergasse como inferior em razão de sua cor e,
por este motivo, desejasse “pertencer [à raça branca], por ser esta de maior prestígio
social”514. Muito pelo contrário, características como essas denotam um racismo
velado por parte da sociedade da época, que impunha a todas as pessoas de cor
questionamentos, dilemas e imposições acerca da própria raça e de seu espaço
dentro da sociedade em que viviam. A partir dessas questões de gênero e de raça
suscitadas pelos discursos produzidos acerca de Auta de Souza sob uma
perspectiva religiosa, “[...] acreditamos ter sido na formação desse ideal de mulher
que se produziu o silêncio sobre a cor e a sua ancestralidade afrodescendente”515.
Os posicionamentos e opiniões de críticos e biógrafos de Auta de Souza que
procuraram – e alguns que ainda procuram – representar a poetisa enquanto um
ideal de figura feminina e, em compensação, silenciam a sua herança racial e
cultural negra, encontram-se pautados pelo

510
CASCUDO, 2008, p.179-180.
511
CASCUDO, 2008, p.180.
512
LEÃO, 1986, p.77.
513
LEÃO, 1986, p.77-78.
514
Ibidem.
515
FARIAS, 2013, p.64.
133

[...] conceito ocidental sexista/racista de quem e o que é um


intelectual, que elimina a possibilidade de nos lembrarmos de negras
como representativas de uma vocação intelectual. Na verdade,
dentro do patriarcado capitalista com supremacia branca, toda a
cultura atua para negar às mulheres a oportunidade de seguir uma
vida da mente, torna o domínio intelectual um lugar interdito516.

A formação escolar de Auta de Souza apresenta-se enquanto uma forma de


apropriação de um espaço que não estava destinado aos afrodescendentes no
Brasil oitocentista. Ana Laudelina Gomes (2013) apresenta algumas das dificuldades
enfrentadas por mulheres negras para ingressarem e concluírem seus estudos, uma
vez que as categorias de gênero, classe social e raça/etnia, tomados como eixos por
onde se articulavam as desigualdades de poder na sociedade, evidenciavam-se no
tocante à educação feminina517, principalmente aquelas que apresentassem
qualquer traço ou origem negra. “A escravização teria negado o acesso da
população de origem africana à escolarização, sendo excepcionais as iniciativas
contrárias”518.

Embora a cor não fosse um impedimento presente nos corpos de


normas para acessar os espaços de instrução, incluindo os
caritativos, ela reinava na sociedade e criava uma série de acessos e
impedimentos. Essa certamente era uma marca dos tempos de
liberdade, em que o que mais se observou foi uma liberdade sob
rasura, passível de ser vivenciada em plenitude apenas quando era
elevada a um projeto político coletivo, marcado por uma postura
crítica radical. Radical não no sentido de apartar-se e corroborar com
uma segregação que persistia, mas no sentido de fazer com que a
raça - e o gênero - não fossem impedimentos em essência519.

A própria Auta de Souza – que, embora fosse mulher e negra, pertencia a uma
família possuidora de poder aquisitivo e prestígio na sociedade norte-rio-grandense
– só pôde cursar três anos de uma educação formal, tendo que abandonar os
estudos após ser diagnosticada, no ano de 1890, com os primeiros sinais do que
viria a ser a tuberculose520. No entanto, as motivações acerca da retirada de Auta de
Souza do colégio não estariam somente na saúde da jovem, mas também no convite

516
HOOKS apud XAVIER, 2020, p.23.
517
GOMES, 2013, p.118.
518
GOMES, 2013, p.126.
519
OLIVEIRA, 2020, p.76.
520
CASCUDO, 2008, p.59.
134

feito por Pedro Velho de Albuquerque Maranhão ao irmão mais velho da poetisa,
Eloy de Souza, que, segundo o próprio apresenta em suas Memórias, disse-lhe:
“‘Liquida este bacharelado e dize à velhinha tua avó que se mude para o Rio Grande
do Norte, onde preciso de teus serviços’. Pouco tempo depois fixamos residência em
Macaíba”521. A confluência desses acontecimentos – apontada por Ana Laudelina
Gomes522 e Genilson Farias523 – acabaram por fazer com que a família deixasse o
Recife e retornasse ao Rio Grande do Norte, ao município de Macaíba, terra natal da
família Castriciano de Souza. Enquanto isso, a jovem Auta de Souza, aos 14 anos
de idade, teve que continuar “[...] aprimorando sua formação intelectual sozinha,
tornando-se uma autodidata”524. Nesse sentido, percebemos que “[...] grande parte
dos intelectuais negros [...] foram autodidatas e conseguiram se alfabetizar em
situações ímpares e como tal conseguiram a muito custo ascender socialmente”525.
A família de Auta de Souza conseguiu ascender no meio econômico e social do
município de Macaíba, em meados do século XIX, acontecimento que permitiu aos
filhos de Eloy de Souza e Henriqueta Leopoldina alcançarem posições de destaque
na vida intelectual e política do estado, entre o final do século XIX e início do século
XX. Assim, o fato de a família Castriciano de Souza estar composta por indivíduos
mestiços também deve ser enfatizado, uma vez que tiveram que formar uma
imagem de si para poderem ser aceitos nos espaços por onde circulavam. Esses
espaços eram os mesmos onde outras famílias brancas de seu ciclo social, político e
intelectual também atuavam526.
Auta de Souza estava, portanto, inserida em um espaço que poderia lhe ser
impedido não apenas por seu gênero, como também por sua raça. No entanto,
percebemos que a receptividade em relação à poetisa era significativamente
positiva, estando ela incluída entre os escritores constituintes do Grêmio Literário Le
Monde Marche527, do Congresso Literário do jornal A Tribuna528 e do Grêmio

521
SOUZA, 2008, p.337.
522
GOMES, 2013, p.74.
523
FARIAS, 2013, p.58-59.
524
GOMES, 2013, p.130.
525
GILROY apud FARIAS, 2013, p.60.
526
FARIAS, 2013, p.78.
527
CASCUDO, 2008, p.88.
528
CASCUDO, 2008, p.88.
135

Polimático da Revista do Rio Grande do Norte529. Como ressaltado por Ana


Laudelina Gomes, há quem atribua a inserção de Auta de Souza nesses espaços
unicamente à atuação social, política e cultural de seus irmãos, que, por meio de sua
presença e influência nos espaços da intelectualidade norte-rio-grandense e também
de outros estados do Brasil, teriam possibilitado à irmã a publicação de suas
poesias, assim como a sua presença nesses locais de atuação intelectual530. No
entanto, muito mais do que demérito de Auta de Souza, se isso ocorreu só revelaria
o machismo da época, que interditava às mulheres e às suas produções escritas a
circulação nos meios intelectuais.
Todavia, podemos pensar Auta de Souza enquanto uma mulher intelectual
negra? A historiadora Giovana Xavier define intelectual negra da seguinte forma:
“Em linhas gerais, intelectual negra, tratada aqui como episteme, pode ser definida
como o conjunto de saberes, práticas e processos de produção de conhecimento,
agenciados por mulheres negras por meio de ferramentas científicas produzidas por
si próprias”531. Assim, podemos pensar Auta de Souza enquanto uma intelectual
negra, uma vez que ela soube agenciar os saberes, práticas e processos de seu
tempo, não apenas para produzir sua obra, como também para inserir-se no meio
intelectual norte-rio-grandense e assim publicar seus escritos. Por meio da sua vida
e da sua obra, Auta de Souza nos deixou um legado literário e histórico que nos
permite conhecer e estudar algo que raramente encontramos, seja no Rio Grande do
Norte, no Brasil ou em qualquer outro local: o depoimento pessoal de uma mulher
negra acerca do contexto e dos espaços por ela frequentados e vivenciados no final
do século XIX.
Contudo, uma vez que tanto Auta de Souza quanto seus irmãos Eloy e
Henrique Castriciano de Souza passaram a assumir postos de realce nos espaços
sociais, políticos e culturais da época, e que nestes espaços predominava uma elite
que se via como sendo branca, eles precisaram se sobrepor às “[...] teorias raciais
[que] faziam do negro um grupo uniforme e inferior que atrapalhava o crescimento
do país pós-abolição, fruto da ‘degenerescência da raça’”532.

529
GOMES, 2013, p.87.
530
GOMES, 2013, p.93.
531
XAVIER, 2020, p.16.
532
ALVES, 2020, p.23.
136

No final do século XIX, muitas teorias raciais revalidaram o


pensamento negativo em relação ao elemento negro, colocando em
voga as teorias sobre o embranquecimento da população, baseado
na presunção da superioridade branca e nos benefícios que ela
trazia para o progresso do país533.

Devemos ter em mente que o fato de Auta de Souza não ser até hoje
identificada enquanto negra está ligado a uma estratégia discursiva produzida por
uma série de intelectuais que, como temos ressaltado ao longo deste capítulo,
procuraram construir uma narrativa sobre a poetisa com o intuito de propagar um
ideal cristão de mulher. Isso nos faz perceber que houve de fato um silenciamento
acerca das origens afrodescendentes de Auta de Souza, silenciamento este que se
perpetuou no imaginário social do Rio Grande do Norte534. Até hoje é difícil encontrar
qualquer referência ao fato de Auta de Souza ser negra, e um exemplo significativo
disso são as imagens de Auta de Souza divulgadas em meios de comunicação.
Vejamos algumas dessas imagens para ilustrar o que estamos falando:

533
FARIAS, 2013, p.52.
534
FARIAS, 2013, 171.
137

Imagem 3 - Imagem de Auta de Souza divulgada pela Federação Espírita Brasileira 535.

Imagem 4 - Imagem de Auta de Souza divulgada na página Espiritismo Brasil 536.

535
FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA. Efeméride: Desencarnação de Auta de Souza. Disponível
em: <https://www.febnet.org.br/blog/geral/noticias/efemeride-desencarnacao-de-auta-de-souza/>.
Acesso em: 18 jul. 2021.
536
ESPIRITISMO BRASIL. Biografia de Auta de Souza. Disponível em:
<https://www.espiritismobrasil.com/biografia-de-auta-de-souza/>. Acesso em: 18 jul. 2021.
138

Imagem 5 - Imagem de Auta de Souza presente no livro Horto: cem anos de poesia,
publicado pela Editora Auta de Souza no ano de 2000 537.

As imagens apresentadas anteriormente mostram uma Auta de Souza com


traços físicos de uma mulher branca. Assim, “[...] os traços negróides de Auta são
atenuados, o que é visível através do afilamento do nariz, da boca, da perda de
espessura da sobrancelha e do ar angelical dado aos olhos e ao olhar”538. Olhos
que, inclusive, apresentam uma cor clara, muito diferentes dos “grandes olhos
negros”539 que podemos observar em algumas imagens que apresentaremos mais à
frente. Os cabelos também ganharam uma ondulação distinta da que podemos
observar nas poucas fotos de Auta de Souza que existem, perdendo a fibra crespa
para dar lugar a um balançado bem mais cacheado, chegando a – como podemos
observar na Imagem 3 – apresentar um tom alourado. Até mesmo a pele sofre um
clareamento. Podemos observar, portanto, que todos os traços típicos da raça negra,

537
MIRANDA, Antônio. Auta de Souza (1876-1901). Disponível em:
<http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/rio_grande_norte/auta_de_souza.html>. Acesso
em: 18 jul. 2021.
538
FARIAS, 2013, p.153.
539
CASCUDO, 2008, p.65.
139

que eram peculiares a Auta de Souza e seus familiares, vão sendo esmaecidos nas
imagens produzidas e divulgadas acerca da poetisa540. Contudo, as fotografias
existentes mostram uma Auta de Souza muito diferente:

Imagem 6 - Auta de Souza 541.

540
FARIAS, 2013, p.153.
541
CASCUDO, 2008, p.15.
140

Imagem 7 - Auta de Souza e João Câncio, o seu irmão mais novo, a quem dedicou Caminho
do Sertão542.

Imagem 8 - Auta de Souza (1876-1901) 543.

542
CASCUDO, 2008, p.81.
543
FARIAS, 2013, p.27.
141

A partir dessas imagens podemos observar os traços negros de Auta de Souza


e confrontar o ideal de branqueamento construído em torno da poetisa. Esse
branqueamento estaria pautado no fato de que “as mulheres negras fazem parte de
um contingente de mulheres [...] que são retratadas como antimusas da sociedade
brasileira, porque o modelo estético de mulher é a mulher branca”544. Sob esta
perspectiva, os comentários citados anteriormente de que Auta de Souza seria
“desprovida de beleza” ou “feiosa” podem ser reveladores do pensamento de que os
“[...] traços [negróides] acentuados nos indivíduos costumavam e até hoje costumam
ser desvalorizados e considerados como elementos definidores de feiura”545.
Posicionamentos desse tipo estão marcados ainda por traços das teorias eugênicas
– “[...] cujo termo foi criado em 1883 pelo cientista, naturalista e geógrafo britânico
Francis Galton (1822-1911), [e que] propunha a proibição de casamentos
inter-raciais visando assim maior equilíbrio genético e aprimoramento das
populações”546 –, vigentes no século XIX e que contribuíram significativamente para
a construção de uma visão de inferioridade em relação a todos os indivíduos
afrodescendentes. Dessa forma, a produção literária de mulheres intelectuais negras
como Auta de Souza constrói uma outra história, uma outra memória, outras
imagens para os afrodescendentes brasileiros, trazendo à tona os importantes
papéis desempenhados principalmente pelas mulheres negras ao longo da luta pela
liberdade, ontem e hoje547.
Enquanto afrodescendentes, a família Castriciano de Souza, em razão de seu
papel político e intelectual, passou a ser apresentada – seja por seus principais
representantes, Eloy de Souza e Henrique Castriciano, ou por outros intelectuais
amigos destes, entre os quais figurava principalmente o erudito Luís da Câmara
Cascudo – por meio de adjetivos que procuravam colocar a sua cor em segundo
plano. Segundo Genilson Farias, o esforço desses intelectuais não era o de apagar
a cor, uma vez que todos viam que os Castriciano de Souza eram negros. O esforço
desses homens voltava-se para construir uma imagem na qual o aspecto da cor

544
CARNEIRO apud EVARISTO, 2005, p.54.
545
SANSONE apud FARIAS, 2013, p.54.
546
FARIAS, 2013, p.49.
547
PALMEIRA, 2009, p.133.
142

perdia importância, intento que alcançaram de tal forma que a afrodescendência da


família acabou esquecida por gerações que leram/leem seus escritos e que
raramente viram/veem suas imagens548. No caso de Auta de Souza, o evidente
branqueamento que podemos observar nas imagens apresentadas possui uma
origem narrativa que remete às adjetivações que a apresentaram como sendo
“morena”549, “morena clara”550, “morena cor de jambo”551 – em referência à herança
racial de sua mãe –, “morena-sapoti”552, entre outras atribuições que apresentam um
caráter eufemístico acerca da cor da poetisa.
Contudo, autores mais recentes passaram a questionar a discrepante
invisibilização racial em torno de Auta de Souza. Observamos essa perspectiva nos
importantes trabalhos produzidos por Ana Laudelina Gomes (2013) e Genilson de
Azevedo Farias (2013), que temos utilizado como referências em nossa pesquisa,
assim como por José Ayrton de Lima, autor do trabalho intitulado A escravidão negra
no Rio Grande do Norte (1988), que escreveu que, apesar dos Castriciano de Souza
“[...] serem descendentes de escravos, [este aspecto] nunca foi dito pela imprensa
ou algum escritor tenha registrado o fato. Não se sabe bem o motivo, se foi uma
solicitação dos mesmos, ou que ninguém tenha tido a ousadia de registrar o fato”553.
Tarcísio Gurgel também questiona o fato de que Auta de Souza, a partir de sua foto
mais conhecida [Imagem 8], teve os traços característicos da raça negra atenuados
nas reproduções após sua morte554.
Percebemos, desse modo, que essas atenuações, silenciamentos e
eufemismos em torno da afrodescendência de Auta de Souza e de seus familiares
têm passado por questionamentos que nos permitem escrever uma outra história,
não apenas para os Castriciano de Souza, como também para todos/as os/as
afrodescendentes do Rio Grande do Norte. Uma outra história que nos permita
conhecer e atribuir a devida relevância às conquistas e aos feitos realizados pelos
homens e mulheres de cor, que têm sido invisibilizados e invisibilizadas ao longo da

548
FARIAS, 2013, p.76.
549
CASCUDO, 2008, p.63; p.110; p.168.
550
CASCUDO, 2008, p.51.
551
CASCUDO, 2008, p.54.
552
CASCUDO, 2008, p.180.
553
LIMA apud FARIAS, 2013, p.78.
554
GURGEL, 2001, p. 327.
143

história do nosso estado. Genilson Farias, porém, chama a atenção para o fato de
que

[...] já há algum tempo, que gira uma discussão nos círculos literários
do país, mais ou menos trinta anos, sobre a questão da escrita de
Auta não poder ser identificada como sendo de matriz
afrodescendente, fato que leva alguns críticos a terem reservas em
inseri-la enquanto uma escritora negra ou uma escritora
afro-brasileira. O motivo dessa exclusão do cânone é o fato de Auta
não fazer referência a assuntos ou personagens negros, nem se
colocar abertamente como negra em seus escritos, tal como
pressupõem alguns críticos literários555 (FARIAS, 2013, p.128-129).

Nesse sentido, Oswaldo de Camargo, crítico e historiador da literatura


brasileira, além de um dos mais destacados escritores negros das décadas mais
recentes556, declara que

Tem pretendido alguns escritores negros que se inclua Auta de


Souza na lista de poetas afro-brasileiros empenhados em realçar a
sua porção negra, a sua africanidade, ou, pelo menos, a sua
presença aqui diferenciada devido à sua cor de pele. Quem sabe se
encontre, sob os versos de Horto surda e quieta, a palavra negra de
Auta. Tudo é possível, mas, que saibamos, Literatura negra se faz
com indícios claros cercando mais de perto uma intenção. […] O
mais importante é ser primacialmente escritor, falar [...], das
experiências mais profundas do ser humano. Entre elas – se for o
caso de um negro –, essa experiência. Inútil, porém se não se trata
de uma autêntica aventura de escritor. Nada justifica um escritor que
não é, nem a cor da pele557.

Em primeiro lugar, “é bom lembrar que Auta de Souza era afrodescendente e


lugar de pertencimento social não pode ser desprezado”558, tal como o contexto
histórico vivenciado por qualquer indivíduo. Assim, devemos ter em mente que o
contexto vivenciado por Auta de Souza dificultava a sua participação e/ou sua
defesa em relação a movimentos, causas ou ideais voltados aos afrodescendentes,
pois “Numa época em que o simples fato de ser mulher incorria numa série de
limitações e repressões, ser negra aumentava ainda mais as chances de represálias,

555
FARIAS, 2013, p.128-129.
556
LITERAFRO. Oswaldo de Camargo. Disponível em:
<http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/360-oswaldo-de-camargo>. Acesso em: 24 jul. 2021
557
CAMARGO apud FARIAS, 2013, p.129-130.
558
GOMES, 2013, p.120.
144

militar então pela negritude se tornava ainda mais complicado”559. Porém, até mesmo
nesse ponto observamos que Auta de Souza soube utilizar-se dos ideais de sua
época para expressar sua vivência e seus pensamentos, ou seja, seu espaço
interior. Nesse sentido, percebemos que a palavra “morena” está presente em oito
dos poemas de Auta de Souza560, sendo um deles significativamente intitulado
apenas como Morena561, o qual transcrevemos na íntegra:

Morena
(À moça mais bonita de minha terra)

Ó moça faceira,
Dos olhos escuros,
Tão lindos, tão puros,
Qual noite fagueira!

Criança morena,
Teus olhos rasgados
São céus estrelados
Em noite serena!

Que doces encantos,


No brilho fulgente,
No brilho dolente
De teus olhos santos!

E eu vivo adorando,
Meu anjo formoso,
O brilho radioso
Que vão derramando,

Em chamas serenas,
Tão mansas e puras,
Teus olhos escuros,
Ó flor das morenas!

Observamos, desse modo, a descrição de uma moça considerada por Auta de


Souza como a “mais bonita da minha terra” e que segue sendo apresentada no
poema como uma morena “[...] faceira, dos olhos escuros [...] qual noite fagueira”.
Não sabemos a quem o texto se refere, mas nos chama a atenção a transição entre

559
SANSONE apud FARIAS, 2013, p.130.
560
Os oito poemas de Auta de Souza (2009) que apresentam a palavra “morena” são: Num Leque
(p.71), Morena (p.79), Versos Ligeiros (p.84-85), As Mãos de Clarisse (p.99), Crianças (p.145-148),
Palavras Tristes (p.149-150), Soledade (p.176-177) e Penas de Garça (p.199-204).
561
SOUZA, 2009, p.79.
145

o profano e o sagrado que se apresenta a partir do momento em que os “olhos


escuros” transformam-se em “olhos santos” e a “moça faceira” dá lugar a um “anjo
formoso”. O uso do termo “morena/o” é possivelmente um reflexo da impossibilidade
do uso do adjetivo “negra/o”. Assim, por receio ou até mesmo pela censura de seus
irmãos, talvez Auta de Souza tenha preferido caracterizar a moça de seu poema
enquanto “morena” em vez de “negra”, também porque o anjo descrito tornar-se-ia
um “anjo negro”, imagem que, dentro do imaginário cristão, estaria ligada ao mal, ao
inferno, mais um reflexo da estigmatização da imagem do negro, não apenas da cor
negra, mas também da pessoa negra.
Mas seria possível que Auta de Souza pensasse em anjos morenos? Talvez a
ideia de um “anjo moreno” não pareça tão evidente em Morena, no entanto, Auta de
Souza volta a utilizar a mesma imagem nos versos de Palavras Tristes, em que
descreve um “Anjo moreno, de alma cor de lírio,/ Mais branca do que a estrela da
Alvorada…/ Meu coração na hora do martírio/ Pede o consolo de uma prece amada,/
Anjo moreno de asas cor do lírio!”562. A ideia de um “anjo moreno” não parece tão
estranha quando pensamos que ela se encontra expressa nos versos de uma
mulher negra que foi e ainda é encarada por alguns enquanto uma santa. Uma santa
que, se não podia ser negra, precisava ser branqueada nas produções literárias,
biográficas e imagéticas produzidas acerca dela, o que foi facilitado a partir do
momento em que Auta de Souza “Partiu! Foi para o céu a pobre santa!” 563.
Assim, podemos observar que a idealização de Auta de Souza enquanto figura
feminina, o apagamento da sua cor e a valorização dos sofrimentos provocados por
sua doença, sob uma ótica cristã, culminaram na construção de uma mulher virgem,
branca e sofredora: a santa Auta de Souza, louvada por Henrique Castriciano, Eloy
de Souza, Câmara Cascudo e por todos aqueles que ainda reproduzem os discursos
desses homens. No entanto, ao contrário dos discursos produzidos por eles, os
espaços conquistados por Auta de Souza em sua vida e em sua trajetória enquanto
uma intelectual negra estão no plano real e não no plano ideal.
Consideramos o fato de Auta de Souza haver conquistado seu espaço entre os
intelectuais de seu tempo enquanto um traço definidor da persistência e da luta por

562
SOUZA, 2009, p.149.
563
Morta!, poema escrito por Anna Lima com dedicatória a Auta de Souza em razão do falecimento
desta, datada de 7 de fevereiro de 1901 (LEÃO, 1986, p.171).
146

reconhecimento de uma mulher que tinha consciência de que este espaço poderia
lhe ser impedido, não apenas por seu gênero, como também por sua raça, mas que
soube utilizar de seu lugar social – uma vez que pertencia a uma família
proeminente no Rio Grande do Norte oitocentista – e da influência que lhe era
proporcionada por seus irmãos Eloy de Souza e Henrique Castriciano para participar
de grupos literários e publicar seus escritos em jornais e revistas de circulação local
e nacional, assim como publicar seu livro Horto. A presença de Auta de Souza entre
os escritores contribuintes do Grêmio Literário Le Monde Marche564, do Congresso
Literário do jornal A Tribuna565 e do Grêmio Polimático da Revista do Rio Grande do
Norte566 demonstram o prestígio alcançado pela poetisa “em função de sua inserção
social numa elite intelectual”567. No entanto, a lista de membros do Grêmio
Polimático nos dá uma ideia de como era rara a presença de mulheres no universo
literário do Rio Grande do Norte:

564
CASCUDO, 2008, p.88.
565
CASCUDO, 2008, p.88.
566
GOMES, 2013, p.87.
567
GOMES, 2013, p.211.
147

Imagem 9 - Lista de membros do Grêmio Polimático, grupo literário do qual Auta de Souza
era sócia efetiva, sendo a única mulher do grupo568.

Levamos em consideração o fato de que a ampla inserção dos irmãos de Auta


de Souza, Henrique Castriciano e Eloy de Souza – seja junto aos homens da
imprensa, da política ou da intelectualidade norte-rio-grandense, em fins do século
XIX – abriu espaço à presença da poetisa e de suas publicações entre os principais
veículos de comunicação do estado. Afinal, “[...] sem esse respaldo, seria muito mais
difícil penetrar na imprensa, não por demérito de sua obra, mas pelo preconceito em
relação às mulheres escritoras nos Oitocentos”569. No entanto, caso Auta de Souza

568
LEÃO, 1986, p.243.
569
GOMES, 2013, p.93.
148

não apresentasse os atributos necessários para ingressar no meio literário da época,


provavelmente teria sido rechaçada pelos seus primeiros e principais críticos: seus
próprios irmãos, uma vez que era uma jovem mulher negra e que não raras vezes se
deparou com impedimentos dentro do seio familiar. Esses impedimentos estavam
impostos a ela sobretudo por ser mulher e não poder corresponder àquilo que dela
era esperado pela sociedade de seu tempo: tornar-se dona de casa, esposa e mãe
570
.
Auta de Souza foi uma mulher negra que se tornou uma escritora e intelectual
reconhecida, tanto em vida quanto após a sua morte, o que permitiu que sua vida e
obra chegassem até os nossos dias. Sua presença em espaços até então
dificultados ou até mesmo impedidos a tantas outras mulheres – de seu tempo e
também de épocas anteriores – que hoje em dia desconhecemos, parcial ou até
mesmo totalmente, é para nós não apenas uma marca de “um desejo expresso de
perpetuidade na lembrança”571 daqueles que lhe eram próximos e queridos. O
legado deixado por Auta de Souza – não apenas por seus escritos, mas também por
sua trajetória – revela também a quebra de paradigmas, preconceitos e exclusões
protagonizada pela poetisa e que, a nosso ver, é um dos motivos que tem
proporcionado o reconhecimento de sua vida e sua obra até hoje.
Auta de Souza provavelmente não foi a única escritora negra em atividade no
Rio Grande do Norte dos oitocentos, mas é a única sobre a qual temos
conhecimento até o presente momento. Seria de grande valor para a nossa pesquisa
se pudéssemos ampliar este trabalho por meio das conexões, dos diálogos, das
aproximações e dos distanciamentos da vida e obra de Auta de Souza com outras
intelectuais negras do Rio Grande do Norte oitocentista, mas isso infelizmente não
nos é possível a partir dos conhecimentos e das fontes de que dispomos no
momento. Contudo, Auta de Souza nos mostra que essas mulheres existiram,
viveram, realizaram feitos importantes, frequentaram os mais diversos espaços – até
mesmo alguns tidos como proibidos a elas – e deixaram suas marcas e seus rastros
em nossa história.

570
OLIVEIRA, 2020, p.115.
571
CASCUDO, 2008, p.121.
149

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“E parece que sempre termina,


Mas não tem fim…”
(Renato Russo)

Neste trabalho procuramos realizar um caminho que recorrentemente partiu de


espaços do interior, da subjetividade humana, até os espaços do exterior, os quais
podemos de alguma forma alcançar em sua materialidade. Assim empreendemos a
escrita de cada um dos capítulos que realizamos, partindo sempre da obra de Auta
de Souza, dos seus versos, daquilo que ela produziu e nos deixou, indo em direção
a tudo aquilo que a cercava e também ao que hoje em dia cerca sua memória e tudo
que sobre ela é contado.
Embora tenhamos nos empenhado em discutir da forma mais aprofundada
possível os espaços da vida e da poesia de Auta de Souza, temos consciência de
que ainda há lacunas a serem preenchidas. Na realidade, concebemos – e nos
sentimos felizes em pensar desta forma – que essas lacunas sempre existirão, tendo
em vista que outros pesquisadores e pesquisadoras, a partir de outras perspectivas,
outros olhares, outros contextos virão a enxergar uma Auta de Souza diferente da
que enxergamos neste momento. Sob essa perspectiva, desejamos que este
trabalho seja como uma semente, auxiliando para que essas futuras pesquisas
venham a florescer e que se tornem bastante frutíferas em seus resultados.
Acreditamos que a abordagem do espaço íntimo na poesia de Auta de Souza,
realizada no primeiro capítulo deste trabalho, proporciona importantes contribuições
acerca de uma discussão sobre a vida da poetisa a partir daquilo que ela nos deixou:
seus poemas. Por meio da análise da obra de Auta de Souza enquanto uma escrita
de si, pudemos observar alguns traços da relação dela com familiares e amigos,
assim como os reflexos das perdas e saudades vivenciadas por ela, que deixaram
marcas profundas em sua vida e que foram transformadas em poesia. Assim, a
imensidão íntima de Auta de Souza ecoa até hoje por meio da repetição de seus
versos, seja de forma recitada ou cantada, nos mais diversos espaços: literário,
acadêmico, musical, religioso, popular etc. No entanto, como já ressaltado por Ana
150

Laudelina572, trabalhos mais aprofundados acerca da musicalização das poesias de


Auta de Souza e da popularização da sua obra por meio desse cancioneiro seriam
de grande valor para conhecermos melhor mais uma das ressonâncias da obra de
Auta de Souza, que infelizmente ainda é pouco estudada.
Observamos, desse modo, que a obra de Auta de Souza vai muito além de
seus poemas, considerando que a poetisa está viva por meio daqueles que a leem,
reproduzem e a transformam das mais variadas formas. Desejamos que este nosso
trabalho seja mais uma dessas ressonâncias que a obra de Auta de Souza tem
proporcionado, mesmo passados 120 anos de sua morte. Nesse sentido,
ressaltamos também a relevância de que outros trabalhos venham a ser produzidos
na área da História com o intuito de discutir a vida literária do Rio Grande do Norte,
seus autores e suas produções, uma vez que, como ressaltamos em nossa
introdução, são poucos os trabalhos que tratam do tema. Talvez a perspectiva do
espaço enquanto conceito central para a construção dessas discussões pareça um
elemento limitante. No entanto, esperamos ter oferecido um caminho possível de ser
pensado para apresentar e discutir a vida e a obra de outros escritores do Rio
Grande do Norte – ou até mesmo do Brasil.
Em nosso segundo capítulo, nos voltamos para pensar os reflexos dos espaços
do exterior sobre a vida e a obra de Auta de Souza. Assim, buscamos percorrer os
caminhos por ela vivenciados em “suas peregrinações pela terra natal em busca de
melhoras”573. Procuramos apresentar um pouco dos locais que se encontram
registrados em alguns poemas de Auta de Souza, assim como buscamos realizar
uma discussão sobre a relação entre a obra da poetisa e o contexto histórico por ela
visto e vivido em suas viagens. Acreditamos que, assim como buscamos estudar o
contexto histórico do final do século XIX utilizando os textos poéticos de Auta de
Souza enquanto uma das nossas fontes principais, o caminho inverso também é
possível e de grande relevância para a História. Desse modo, o uso de obras
literárias enquanto fontes para o estudo da história é algo essencial para a
ampliação das possibilidades de pesquisa tanto para a História quanto para a
Literatura. Ressaltamos, portanto, o nosso desejo de que mais trabalhos na área da

572
GOMES, 2013, p.98-105.
573
SOUZA, 2008, p.80.
151

História possam utilizar-se da literatura, da prosa e da poesia enquanto fontes


primárias para a produção de trabalhos científicos.
Julgamos ser essencial também a produção de trabalhos que discutam a
história do Rio Grande do Norte a partir da história pessoal e das realizações de
alguns indivíduos ainda pouco estudados. Assim como apresentamos no início deste
texto, não encontramos nenhum trabalho na área da História que apresentasse Auta
de Souza como objeto de estudo. Do mesmo modo, há muitos outros indivíduos que
apresentam uma relevância significativa para a história do Rio Grande do Norte, mas
que nunca foram estudados pela História. Observamos uma certa centralidade de
trabalhos históricos acerca dos homens da política, de suas vidas e seus trabalhos,
o que ocasiona uma marginalização das histórias de mulheres, dos
afrodescendentes e dos pobres, entre outros sujeitos que fizeram e fazem a nossa
história cotidianamente, mas que são “esquecidos” pela história oficial. As fontes
sobre esses indivíduos são, em geral, escassas, difíceis de acessar, difíceis de ler,
desgastadas, incompreensíveis, burocráticas e pouco animadoras, pois costumam
ser produzidas e, quando possível, guardadas por terceiros – homens da lei, da
política, da intelectualidade. Assim, os acontecimentos que os levaram a estar
presentes nessas narrativas são apresentados quase sempre sob uma perspectiva
unilateral, produzida a partir dos ideais daqueles que narram alguma situação
dramática e/ou constrangedora para aqueles indivíduos e que acabou sendo
documentada pela lei ou pelos meios de comunicação do período. Infelizmente
pudemos comprovar alguns desses aspectos em nossa pesquisa sobre Auta de
Souza – como, por exemplo, a limitação de fontes por ela produzidas, assim como a
quase total inexistência de qualquer material acerca das demais mulheres, o que
notadamente não ocorre com os homens da família da poetisa. Porém, também foi
possível comprovar algo muito mais relevante: as fontes sobre esses indivíduos
marginalizados existem, mesmo com todos os impedimentos citados anteriormente.
Esperamos que, mesmo com os problemas que em alguns momentos procuramos
registrar no decorrer da nossa pesquisa e da escrita desta dissertação, este trabalho
possa inspirar outras pessoas a empreenderem pesquisas sobre outros sujeitos que
ainda não tenham sido estudados pela ciência histórica.
152

Seguindo o pensamento do parágrafo anterior, em nosso terceiro e último


capítulo procuramos estudar Auta de Souza enquanto uma intelectual negra do Rio
Grande do Norte oitocentista. O fato de não haver qualquer referência na história do
Rio Grande do Norte acerca de alguma outra mulher afrodescendente que tenha
deixado escritos literários nos revela a excepcionalidade e importância de Auta de
Souza e de sua obra. Embora, para nós, isso não signifique necessariamente que
essas mulheres não tenham existido, o silêncio acerca de mulheres intelectuais
negras na história do Rio Grande do Norte atribui ainda mais importância àquilo que
Auta de Souza realizou e aos espaços que ela conquistou na sociedade
norte-rio-grandense. Enxergamos a história de Auta de Souza enquanto um caminho
para que as histórias de outras mulheres afrodescentes possam ser encontradas e
estudadas, mesmo que estas não estejam necessariamente ligadas à literatura.
Pesquisas que apresentem outras mulheres negras do Rio Grande do Norte,
principalmente aquelas pertencentes à mesma época de Auta de Souza, podem ser
empreendidas por meio de discussões com a vida da poetisa. Caso essas mulheres,
diferentemente de Auta de Souza, pertençam a uma classe menos favorecida, seria
de grande valor histórico uma abordagem acerca dos diferentes espaços
frequentados por estas mulheres e o tratamento destinado a elas no contexto em
que viviam.
Ressaltamos também a importância da realização de trabalhos que discutam
os debates e as polêmicas acerca da inserção de Auta de Souza enquanto uma
escritora e intelectual negra e a sua apropriação ou não por parte do movimento
negro. Apresentamos muito timidamente essa questão em nosso terceiro capítulo,
mas esperamos haver despertado, tal como Genilson Farias, mais uma fagulha para
a discussão desse tema para a história da literatura afrodescendente no Brasil.
Consideramos que discussões nesse sentido são essenciais para que possamos
ampliar as leituras e pesquisas possíveis acerca da obra de Auta de Souza, assim
como para ampliar os espaços e as ressonâncias alcançadas pela obra da poetisa.
Embora alguns defendam que Auta de Souza não tenha se colocado
enquanto uma escritora negra, uma vez que não teria tratado das questões ligadas à
vida, às lutas e às conquistas dos afrodescendentes no contexto do século XIX,
procuramos demonstrar que a afrodescendência vivida pela poetisa se fez, sim,
153

presente em seus versos. Talvez timidamente, por meio da terminologia “morena”,


mas de grande importância quando pensamos que Auta de Souza estava inserida
em uma família que apresentava um papel econômico, político e intelectual
significativo e que, por este motivo, estava inserida em espaços dominados por
homens brancos, pertencentes à elite norte-rio-grandense. Qualquer mínima
demonstração de rebeldia, de contestação de ideais do meio social em que vivia ou
de defesa de pensamentos controversos por parte de Auta de Souza poderia ter
ocasionado a exclusão de mais uma mulher negra da história do Rio Grande do
Norte.
Assim, após todo o trabalho empreendido para a realização desta pesquisa e a
escrita desta dissertação, devemos concordar com o que apontou Genilson Farias
em referência às conversas realizadas com sua orientadora, a Profa. Dra. Ana
Laudelina Ferreira Gomes: trabalhar com Auta de Souza rende574. Assim, chegamos
ao fim dessa jornada com a certeza de que realizamos a nossa contribuição para
muitas histórias: a história de Auta de Souza, a história do Rio Grande do Norte, a
história das mulheres, a história dos afrodescendentes, assim como para a nossa
própria história pessoal. No entanto, não se trata de uma história acabada, pronta,
cristalizada, mas de uma parte, ou um nó, entre outros que vieram antes de nós e
outros que ainda virão. Pensamos, portanto, como Auta de Souza, em citação de
Castro Alves presente na epígrafe de seu Horto, e desejamos que esse trabalho siga
muitos e diferentes caminhos e, quando possível, “[...] como o corvo agreste/
Traz-me, no bico, um ramo de cipreste!”575.

574
FARIAS, 2013, p.167.
575
SOUZA, 2009, p.25.
154

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