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JUSSIER DANTAS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS
LINHA DE PESQUISA: ESPAÇOS DE MEMÓRIA, CULTURA MATERIAL E USOS
PÚBLICOS DO PASSADO
JUSSIER DANTAS
NATAL – RN
2021
JUSSIER DANTAS
NATAL – RN
2021
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -
CCHLA
Dantas, Jussier.
A caminho do Horto: a poética do espaço na obra de Auta de
Souza / Jussier Dantas. - 2022.
162f.: il.
Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre no Curso
de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela
comissão formada pelos professores:
_________________________________________
Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior
(Orientador - UFRN)
__________________________________________
Profa. Dra. Margarida Maria Dias de Oliveira
(Titular - UFRN)
____________________________________________
Profa. Dra. Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz
(Externo - UFPI)
____________________________________________
Profa. Dra. Karlla Christine de Araújo Souza
(Suplente Externo - UERN)
RESUMO
ABSTRACT
The objective of this work is to study the spaces present in the life and work of
poetess Auta de Souza, more precisely the poetic construction of these spaces. We
organize these spaces into two categories: interior and exterior spaces. For this, we
take as a basis the concept of space presented by the historian Michel de Certeau,
building a dialogue with the reflections of the philosopher Gaston Bachelard. Thus,
through the conception of an interior space, we seek to think Auta de Souza's work
as a self-writing, in which the poetess narrates her life, her relationships with family
and friends, her feelings, her pains and nostalgia. On the other hand, based on the
notion of exterior space, we sought to research the displacements made by Auta de
Souza due to her illness - tuberculosis -, as well as the places and stories of other
people recorded by the poetess in her verses. Finally, we seek to think Auta de
Souza as a nineteenth-century black intellectual from Rio Grande do Norte, based on
the discussion of the spaces conquered by the poetess in the midst of an intellectual
universe dominated by white men. We use as a privileged source her only book of
poems, Horto, as well as some other biographical and academic works that present
the poetess as an object of study.
Imagem 7 - Auta de Souza e João Câncio, o seu irmão mais novo, a quem
140
dedicou Caminho do Sertão ...........................................................................
Tabela 2 - Óbitos por ano em Natal entre 1870 e 1878 .................................. 104
ÍNDICE DE GRÁFICOS
Gráfico 1 - Óbitos por idade e sexo em Natal entre 1870 e 1878 ................... 105
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................. 16
CAPÍTULO 1 - A IMENSIDÃO ÍNTIMA ............................................................ 41
CAPÍTULO 2 - A CAMINHO DO HORTO ........................................................ 71
CAPÍTULO 3 - OS ESPAÇOS DO FEMININO NO SÉCULO XIX ................... 113
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 149
FONTES E REFERÊNCIAS ............................................................................. 154
16
INTRODUÇÃO
“[...] poesia e ciência são entidades que não se podem confundir, mas
podem e devem deitar-se na mesma cama. E quando isso acontecer espero
que dispam as velhas camisas de dormir” - MIA COUTO
Este é um trabalho sobre imagens. Porém, não nos referimos aqui à noção de
imagem com a qual a maior parte das pessoas está acostumada a lidar
cotidianamente. Tratamos da construção de imagens por meio da escrita, mais
precisamente por meio da escrita poética. A escrita poética à qual nos referimos é
exatamente aquela estruturada em versos e estrofes, característica essencial da
forma narrativa apresentada nas fontes primárias deste trabalho.
Esta pesquisa é fruto de um encontro que, para nós, revelou-se profundamente
edificante tanto do ponto de vista intelectual quanto pessoal: o encontro da história
com a poesia. Infelizmente, o método acadêmico não nos permite desenvolver este
trabalho segundo a estrutura poética aqui abordada, isto é, sob a forma de versos e
estrofes. No entanto, a ciência histórica nos possibilita estudar este campo sensível
e riquíssimo de produção de conhecimento e de narrativas. Como nos apresenta o
escritor moçambicano Mia Couto na epígrafe presente nesta introdução, as
narrativas científica e poética não devem confundir-se, pois ambas apresentam
objetivos e regras específicas. Contudo, o encontro destes dois modos de escrever –
ou de descrever aquilo que as pessoas, o tempo e os espaços proporcionam às
nossas vidas – costuma produzir diálogos inestimáveis, tanto para a ciência quanto
para a poesia. A condição prévia para este encontro é que o mediador do diálogo se
dispa de qualquer preconceito, seja ele científico ou literário, para que a produção
narrativa seja profícua.
Assim, devemos ressaltar o nosso desejo de boa sorte para aqueles que
buscam ler este trabalho de forma puramente intelectual, procurando unicamente
conceitos, fatos históricos, rigor científico etc., pois acreditamos que será uma leitura
longa e maçante. No entanto, aos que estão abertos ao conhecimento, assim como
às experiências, sensações e sentimentos que as discussões sobre história e poesia
podem proporcionar, esperamos que possam aprender e desenvolver-se tanto
quanto nós em nossa jornada de produção desta pesquisa e deste texto. Diante
17
1
A cientista social Ana Laudelina Ferreira Gomes prefere o termo “poeta” para qualificar Auta de
Souza. Segundo a pesquisadora, “[…] na história cultural das mulheres, a denominação poetisa
comumente esteve associada a uma condição de menoridade intelectual, agregando, por vezes, até
certo tom pejorativo do viés sexista. Embora hoje, tanto um quanto outra terminologia seja empregada
quase que indistintamente, valendo a opção pessoal do autor ou comentador, penso que a palavra
poeta nos ajuda a oferecer uma marca política ao problema” (GOMES, 2013, p.350). Optamos por
utilizar o termo “poetisa” por uma questão de norma culta da língua portuguesa, pois a relevância do
termo para este trabalho é dizer que Auta de Souza descreveu a si mesma e a seu mundo por meio
da poesia. Além disso, a palavra “poetisa” é para nós um termo que marca a representação de Auta
de Souza, ao mesmo tempo, tanto como mulher quanto como intelectual, aspecto que discutiremos
no terceiro capítulo deste trabalho.
2
SOUZA, Auta de. Dhálias. Manuscrito. (1893-1897).
3
CASTRICIANO, Henrique. Nota. In: SOUZA, Auta de. Horto. Natal, RN: EDUFRN, 2001.
pp.273-275.
4
Primeiro parágrafo da Nota produzida por Henrique Castriciano para a segunda edição do Horto,
publicada em 1910.
18
5
CASCUDO, 2008, p.21; p.46.
6
CASCUDO, 2008, p.21.
7
CASCUDO, 2008, p.39; GOMES, 2013, p.44.
8
CASCUDO, 2008, p.41.
9
CASCUDO, 2008, p.52; GOMES, 2013, p.62-63.
10
CASCUDO, 2008, p.53; GOMES, 2013, p.65.
11
CASCUDO, 2008, p.37.
12
CASCUDO, 2008, p.40, GOMES, 2001, p.37.
13
“Coité foi, até por volta de 1855, ‘um sítio de plantar e criar gado’. O ‘dono das terras’ de Coité, com
incontáveis fazendas, era justamente aquele bisavô de Auta, o ‘major’ Francisco Pedro, natural de
Pelada, hoje município de Taipú” (GOMES, 2001, p.37).
19
14
CASCUDO, 2008, p.44.
15
CASCUDO, 2008, p.39; GOMES, 2013, p.51.
16
CASCUDO, 2008, p.44; GOMES, 2013, p.56.
17
SOUZA, 2001, p.273.
20
Mais uma vez a morte mostra a sua face na vida da pequena Auta de Souza,
agora com 10 anos de idade, deixando seus vestígios ainda mais profundos na
memória e na sensibilidade de uma garota já marcada pela perda daqueles a quem
amava. A seu irmão, Irineu de Souza, dedicaria poemas cheios de dor e luto, como
Goivos, escrito em Nova Cruz (RN) no ano de 1897 e dedicado “À memória de
Irineu”19.
No entanto, ligada a esta presença da morte na vida da poetisa estava a
constante sombra da tuberculose, doença que lhe tirou sua mãe, seu pai e acometeu
seu irmão Henrique Castriciano, tornando-se realidade para a jovem Auta de Souza
no ano de 1890, quando esta contava 14 anos de idade. Sobre esse período, seu
irmão, Eloy de Souza, declarou que
[...] veio a moléstia terrível que não perdoou nem lhe deu esperanças
de voltar à vida almejada num sonho de mocidade. Por isso sua
poesia é triste, tristes seus pensamentos, tristes os dias que nunca
mais amanheceram na claridade de futuro promissor.
As noites de longas insônias eram marcadas por acessos de tosse
quintosa que a prostravam [sic] exausta20.
18
SOUZA, 2008, p.77-78.
19
SOUZA, 2001, p.86.
20
SOUZA, 2008, p.78.
21
GOMES, 2013, p.73.
22
SOUZA, 2009, p.27.
21
23
SOUZA, 2008, p.80.
24
SOUZA, 2008, p.80.
25
CASCUDO, 2008, p.32.
26
CASCUDO, 2008, p.55.
27
CASCUDO, 2008, p.32.
28
CASCUDO, 2008, p.32.
22
29
CASCUDO, 2008, p.46.
30
SOUZA, 2008, p.22.
31
SOUZA, 2001, p.273.
32
CASCUDO, 2008, p.51.
23
Em princípios de 1900, Auta foi visitar sua amiga Donana[, Ana Maria
da Câmara Cascudo], casada com o tenente [Francisco Justino de
Oliveira] Cascudo, do Batalhão de Segurança, à casinha de porta e
janela na Rua das Virgens. Suspenso ao ombro de minha mãe, eu
chorava sem consolo, impaciente pelo leite que a goma de araruta
engrossava. Minha mãe equilibrava o papeiro no fogão de três bocas,
aturdida pelo berreiro disfônico. Auta segurou-me, acomodou-me,
falando-me, passeando no corredor. O choro mudou de tom,
espaçou-se, desapareceu33.
33
CASCUDO, 2008, p.23.
34
CASCUDO, Luís da C. Vida Breve de Auta de Souza: 1876-1901. Natal/RN: EDUFRN, 2008.
35
SOUZA, 2001, p.275.
24
Por meio de sua Nota, presente nessa segunda edição do Horto, Henrique
Castriciano registra seu depoimento “tão ensopado de ternura, em que evoca a
poetisa morta há nove anos”40. O Horto é apresentado por Castriciano como “a
36
CASCUDO, 2008, p.134; GOMES, 2013, p.167.
37
Câmara Cascudo registra na biografia de Auta de Souza que a publicação desta segunda edição do
Horto teria sido realizada no ano de 1911 (CASCUDO, 2008, p.34). No entanto, em crônica publicada
no jornal A República em 23 de fevereiro de 1943, Cascudo escreve que esta mesma edição teria
sido publicada no ano de 1910. (CASCUDO, 2008, p. 118). A cientista social Ana Laudelina Gomes
registra a publicação desta segunda edição no ano de 1910 (GOMES, 2013, p.96), ano também
apresentado na Imagem 1 presente neste trabalho.
38
CASCUDO, 2008, p.34; GOMES, 2013, p.96; FARIAS, 2013, p.119.
39
Disponível em:
<https://i2.wp.com/www.brechando.com/wp-content/uploads/2015/10/horto-auta-de-souza-2-edico-19
10-16409-MLB20119733531_062014-F.jpg>. Acesso em: 29 abr. 2020.
40
CASCUDO, 2008, p.101.
25
história de uma grande dor”, uma obra na qual “Auta, sem pensar e sem querer,
reproduzira a lápis [...] as emoções mais íntimas de nossa gente; encontrara no
próprio sofrimento a expressão exata do sofrimento alheio. [...] Pode-se [...] dizer
sem exageros que o sofrimento foi o seu melhor guia”41. É esta a imagem de Auta de
Souza comumente reproduzida por quase todos aqueles que procuraram escrever
trabalhos biográficos acerca da poetisa. Ressaltamos que o sofrimento será também
um elemento relevante para pensarmos a poética do espaço presente na obra da
autora, pois, como ela nos apresenta em um dos primeiros versos de seu livro, no
poema que carrega o título da obra, “Ele é a escada do Paraíso…”42. No entanto, o
sofrimento é apenas um dos sentimentos expressados por Auta de Souza que
procuramos utilizar em nossa pesquisa. Uma vez que a sua poesia é profundamente
marcada pelo pensamento católico, aspectos como pureza, inocência, resignação,
cuidado, martírio, entre outras imagens comuns ao pensamento cristão de uma
forma geral, são muito presentes e marcantes em seus versos. Esse é o principal
elemento utilizado para a caracterização de Auta de Souza como uma poetisa
mística43, não apenas pelo conteúdo de seus escritos, mas também por sua
formação intelectual e literária, segundo nos apresenta Henrique Castriciano em sua
Nota, ao revelar que a poetisa, em seus
41
SOUZA, 2001, p.274.
42
Poema intitulado “No Horto” (SOUZA, 2001, p.65).
43
SOUZA, 2001, p.274; CASCUDO, 2008, p.28; GOMES, 2013, p.24.
44
SOUZA, 2001, p.274.
45
GOMES, Ana Laudelina F. Introdução para um estudo da vida e obra de Auta de Souza. In:
SOUZA, Auta. Horto. Natal/RN: EDUFRN, 2001, p.21-61.
26
46
GOMES, Ana Laudelina F. Auta de Souza: a noiva do verso. Natal/RN: EDUFRN, 2013.
47
GOMES, Ana Laudelina F. Auta de Souza: representações culturais e imaginação poética. Tese de
doutorado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC de São Paulo, abril
2000.
48
GOMES, Ana Laudelina F. (autoria e direção geral). Noite Auta, Céu Risonho. Natal/RN:
TVU-RN/NCCEN/Patrocínio BNB, 2008. 1 DVD.
49
SOUZA, Auta. Horto, outros poemas e ressonâncias: obras reunidas. Natal/RN: Editora da
UFRN, 2009.
50
FIGUEIREDO, Jackson de. Auta de Souza. Natal/RN: Sebo Vermelho, 2012. (Edição fac-similar)
51
NEVES, 2004, p.12.
27
condições vivenciadas por Auta de Souza durante a produção de seus poemas. Sob
esse intuito, temos em mente que essas produções biográficas apresentam uma
perspectiva externa sobre a vida e obra da poetisa, diferentemente dos seus
escritos, que apresentam uma perspectiva interna. Utilizaremos essas perspectivas
para pensarmos os espaços que abordaremos neste trabalho.
Um dos primeiros elementos que devemos ressaltar nesses trabalhos
biográficos produzidos sobre Auta de Souza é o caráter controverso das descrições
empreendidas acerca da poetisa. Por meio dos estudos que temos realizado a partir
dessas biografias, nos chamaram atenção as características algumas vezes
contraditórias atribuídas a ela, principalmente no que diz respeito à sua
personalidade e às suas relações familiares e de amizade. A poetisa em alguns
momentos é apresentada como uma jovem “Magrinha, calada”52, “modesta, esquiva
às vaidades do mundo”53, “a tristesinha [sic], a pobresinha [sic]”54, porém, em outras
ocasiões, é apresentada como alguém que “convivia alegremente com as moças de
sua cidade, conversando, confidenciando, acompanhado-as nos passeios [...],
festinhas domésticas, os ‘assustados’ com danças, quadrilhas, valsas e schottischs”
55
, que “montava bem e era corajosa”56. Entendemos que todas as pessoas
apresentam em si um misto de pensamentos, atitudes e sentimentos que dependem
do contexto que vivenciam, pois “As pessoas são seres complexos”57. Assim,
partindo dos escritos produzidos por Auta de Souza, ou seja, de seus poemas,
procuramos estabelecer um diálogo com essas produções biográficas que
apresentam tanto aspectos psicológicos e subjetivos acerca da poetisa quanto o
contexto no qual ela estava inserida, pois entendemos que não nos seria possível
construir um contexto da vida de Auta de Souza utilizando unicamente os escritos
biográficos produzidos sobre ela, ainda mais quando levamos em consideração o
fato de estes terem sido escritos anos após a sua morte.
Contudo, ressaltamos que o intuito deste trabalho não é produzir mais uma
biografia sobre Auta de Souza. Nossa pesquisa volta-se para a obra deixada pela
52
CASCUDO, 2008, p.51
53
SOUZA, 2008, p.79
54
FIGUEIREDO, 2012, p.29.
55
CASCUDO, 2008, p.63; GOMES, 2013, p.78.
56
SOUZA, 2008, p.82.
57
TUAN, 2015, p.12.
28
poetisa. Desse modo, nosso intuito é estudar a poética do(s) espaço(s) presente(s)
na poesia auteana. Mas o que podemos conceber como uma poética específica da
obra de Auta de Souza? Sobre isso, Nalba Leão escreveu que:
58
LEÃO, 1986, p.1.
59
GOMES, 2013, p.203.
60
GOMES, 2013, p.172.
61
SIQUEIRA apud LEÃO, 1986, p.275.
62
BOSI apud LEÃO, 2013, p.292-293.
29
63
CERTEAU, 2013, p.184.
30
64
CERTEAU, 2013, p.185.
65
Exemplo disso é o trabalho: CALLAHAN, Monique-Adelle. Between the lines: literary
transnationalism and African American poetics. New York: Oxford University Press, 2011.
31
muitas histórias de outras pessoas que narra em sua obra? Podemos compreender
os deslocamentos realizados por Auta de Souza enquanto peregrinações? Que
consequências tiveram essas viagens, deslocamentos ou peregrinações em sua
obra poética? Quais os motivos para existirem tantos poemas sobre mortes de
outras pessoas na obra de Auta de Souza? Qual o meio de conexão da vida e da
poesia de Auta de Souza com aqueles que ela encontra em seus deslocamentos?
De que forma Auta de Souza constrói as conexões entre seu espaço íntimo e aquilo
que vivenciou em seus deslocamentos, suas viagens, suas peregrinações, ou seja,
esta espacialidade exterior? Quais elementos são utilizados para a construção da
idealização católica em torno de Auta de Souza? De onde surgem as associações
entre Auta de Souza e um misticismo cristão? O que vem a ser esse misticismo
atribuído à poetisa? Por que Auta de Souza pôde ingressar na vida intelectual e
literária sem sofrer qualquer represália por isso, sendo inclusive incentivada por seus
familiares e aclamada pela crítica? Auta de Souza teria sofrido algum tipo de
represália? Como a questão racial se faz presente na vida, na obra e nas biografias
de Auta de Souza e de sua família? Podemos pensar Auta de Souza enquanto uma
mulher intelectual negra? Essas são algumas das questões que pautarão a nossa
pesquisa.
Quando falamos em poética do espaço nos referimos aos escritos do filósofo e
poeta francês Gaston Bachelard (1884-1962), que nos apresenta o modo como os
poetas enxergam ou narram a vida, o tempo e os espaços a partir do devaneio, ou,
mais precisamente, a partir do devaneio poético. “Gaston Bachelard, estudando a
imaginação e as imagens da literatura universal, foi um pensador que dedicou boa
parte de seu trabalho intelectual a essa questão, ao problema do devaneio poético”66
, pois “A leitura dos poetas é essencialmente devaneio”67. A narrativa dos poetas
estaria, dessa forma, imersa nesse devaneio poético, fonte de inspiração e também
de fuga da realidade, dores e desilusões da vida. Quanto à caracterização desse
devaneio, conceito central nas explanações de Bachelard para produzir e pensar a
poesia, o filósofo explica que
66
GOMES, 2013, p.28.
67
BACHELARD, 1993, p.36.
32
Essa confusão dar-se-ia uma vez que ambos, sonho e devaneio, “são os
poderes do inconsciente que fixam as lembranças mais distantes”69. Porém, “O
devaneio poético, ao contrário do devaneio de sonolência, não adormece jamais”70.
Desse modo, observamos que devaneio e sonho estão ligados pela capacidade
imaginativa e criativa que todos nós possuímos, possibilitando-nos construir novas
configurações, organizações, desenhos aos espaços que vivenciamos. A poesia é
uma das formas a partir da qual podemos narrar essas imagens criadas a partir do
devaneio, sendo o devaneio poético, portanto, o meio que alguns indivíduos
apresentam de ver e dizer o mundo no qual estão inseridos. Nesse sentido,
ressaltamos a importância dos conceitos de visibilidade e dizibilidade, apresentados
pelo historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. na obra A invenção do Nordeste e
outras artes71, ao dizer que “Tanto na visibilidade quanto na dizibilidade articulam-se
o pensar o espaço e o produzir o espaço, as práticas discursivas e as
não-discursivas que recortam e produzem as espacialidades”72. É nesta articulação
do pensar e do produzir o espaço que o devaneio poético se insere para a
construção de práticas discursivas e não discursivas marcadas por uma
sensibilidade particular de quem as enuncia.
A visibilidade é, portanto, a articulação dos conceitos necessários para ver,
pensar e compreender uma determinada realidade ou um determinado contexto
histórico, já a dizibilidade é a articulação desses conceitos para a construção
narrativa sobre este contexto histórico, uma vez que “cada formação histórica implica
uma repartição do visível e do enunciável que se faz sobre si mesma”73. O conjunto
68
BACHELARD, 1993, p.6.
69
BACHELARD, 1993, p.35.
70
BACHELARD, 1993, p.52.
71
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5 ed. São Paulo:
Cortez, 2011.
72
ALBUQUERQUE JR., 2011, 34-35.
73
DELEUZE, 2005, p.58.
33
74
DELEUZE, 2005, p.58.
75
BACHELARD, Gaston. A dialética do exterior e do interior. In: ______. A poética do espaço.
Tradução: Antônio de Pádua Danesi. Revisão da tradução: Rosemary Costhek Abílio. São Paulo:
Martins Fontes, 1993. pp.215-233.
76
GONÇALVES, 2006, p.4.
34
77
BARROS, 2015, p.91.
78
SOUZA; ARAÚJO, 2017, p.24.
79
BARROS, 2015, p.76.
80
SILVA; ARAÚJO, 2017, p.19-20.
35
pela sensibilidade de sua escrita poética e apresentadas a partir das imagens que
ela constrói. Assim, nos debruçaremos sobre a poesia auteana com o intuito de
buscar as imagens construídas acerca desses espaços íntimos – do interior ou
existenciais – e de peregrinação – do exterior ou geométrico –, além das conexões
entre esses espaços na construção de um legado para Auta de Souza que é
perpetuado até hoje, mas que ainda se encontra em plena construção e que está
marcado por embates não apenas no espaço intelectual, mas também nos espaços
de gênero e racial.
O recorte temporal deste trabalho justifica-se uma vez que nos debruçamos
sobre aquilo que Auta de Souza produziu e nos deixou em seus 24 anos de vida –
ou, como nos apresenta Câmara Cascudo, em seus 24 anos, 4 meses e 26 dias81.
No entanto, devemos ressaltar que esse recorte temporal é antes uma forma de
organizarmos melhor a nossa pesquisa, assim como a produção deste texto, e não
um marco temporal inexorável deste trabalho. Entendemos que a obra de Auta de
Souza vai muito além da sua própria vida, fazendo com que a sua poesia alcançasse
significativo renome nacional somente após a sua morte, considerando que a poetisa
faleceu pouco mais de sete meses após o lançamento de seu único livro.
Para além do livro Horto, Auta de Souza produziu também dois manuscritos,
um com o título Dhálias, contendo poemas produzidos entre os anos de 1893 e
1897; e outro com o título Horto, contendo os poemas presentes no manuscrito
Dhálias com modificações realizadas pela poetisa, além de outros textos produzidos
a partir de 1897. A modificação realizada pela poetisa no título da obra se deu pouco
tempo antes de sua publicação, já no ano de 190082. As fontes principais deste
trabalho são, portanto, os textos poéticos produzidos por Auta de Souza que, por
diferentes meios, chegaram até nós. Assim, embora não nos seja possível consultar
todas as edições existentes da obra da poetisa, o que nos interessa de fato são os
textos produzidos por ela, alguns destes publicados também em outras obras que
procuram tratar da sua vida e obra, apresentando trechos ou até mesmo poemas
completos que não foram divulgados pela autora.
81
CASCUDO, 2008, p.115.
82
CASCUDO, 2008, p.109; GOMES, 2013, p.91.
36
Auta de Souza deixou, portanto, uma obra curta e significativa, sendo objeto de
estudos e debates até os nossos dias, mais de um século após a sua morte, como é
o exemplo da presente pesquisa. Desse modo, a relevância deste trabalho
justifica-se uma vez que buscamos suprir a ausência de trabalhos na área da
História que discutam a vida e obra de Auta de Souza, assim como a produção
poética do estado do Rio Grande do Norte. Em busca de pesquisas historiográficas
que abordassem esses temas, consultamos os trabalhos defendidos no Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(PPGH-UFRN). Em uma lista disponibilizada no site do PPGH-UFRN que contém os
trabalhos defendidos entre os anos de 2008 e 201983, encontramos apenas o
trabalho desenvolvido pela historiadora Maiara Juliana Gonçalves da Silva, intitulado
“Em cada esquina um poeta, em cada rua um jornal”: a vida intelectual natalense
(1889-1930)84 como exemplo de trabalho que aborda a produção poética potiguar.
No entanto, esse trabalho não trata especificamente da poesia potiguar, mas sim dos
indivíduos que, para além de uma vida política, possuíam também uma vida literária,
assim como dos laços e disputas existentes entre esses sujeitos no campo literário
da cidade do Natal. Sobre a família Castriciano de Souza, encontramos apenas o
trabalho da historiadora Ítala Mayara de Castro Silva, intitulado Eloy de Souza e o
Nordeste: construção discursiva do espaço dos estados seviciados pela seca na
Primeira República brasileira85. No entanto, esse trabalho trata mais precisamente
sobre a vida política de Eloy de Souza e da sua produção intelectual voltada à luta
para sanar os problemas ocasionados pelas secas na região Nordeste do Brasil.
Não encontramos nenhum trabalho no PPGH-UFRN que apresentasse como
tema a vida e/ou a obra de Auta de Souza. Porém, destacamos a dissertação de
mestrado em Ciências Sociais defendida por Genilson de Azevedo Farias, intitulada
83
PPGH-UFRN. Lista de dissertações defendidas no Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Disponível em:
<https://sigaa.ufrn.br/sigaa/public/programa/documentos.jsf?lc=pt_BR&id=435&idTipo=1>. Acesso
em: 21 jun. 2020.
84
SILVA, Maiara Juliana Gonçalves da. "Em cada esquina um poeta, em cada rua um jornal": a
vida intelectual natalense (1889-1930). 2014. 399f. Dissertação (Mestrado em História) - Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014.
85
SILVA, Itala Mayara de Castro. Eloy de Souza e o Nordeste: construção discursiva do espaço dos
estados seviciados pela seca na primeira república brasileira. 2018. 214f. Dissertação (Mestrado em
História) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Natal, 2018.
37
86
FARIAS, Genilson de Azevedo. Auta de Souza, a poeta de pele clara, um moreno doce:
memória e cultura da intelectualidade afrodescendente no Rio Grande do Norte. 2013. 185 f.
Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Regional; Cultura e Representações) - Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2013.
87
Referência à poesia de Auta de Souza intitulada Ao pé do túmulo (SOUZA, 2001, p.238).
38
88
SIBILIA, 2003, p.3.
89
FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. Organização e seleção de textos: Manoel Barros
da Motta; tradução: Elisa Monteiro, Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2004. pp. 144-162.
90
ARFUCH, Leonor. O Espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução:
Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010.
91
FOUCAULT, 2004, p.156.
92
ARFUCH, 2010, p.15.
93
CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2.ed. Natal/Rio de Janeiro:
Fundação José Augusto/Achiamé, 1984.
39
94
ROCHA POMBO, José F. História do Estado do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Annuario
do Brasil, 1922.
95
DIAS, Dayane Júlia Carvalho. O comportamento da mortalidade no Rio Grande do Norte entre
1801 e 1870. 2016. 51f. Dissertação (Mestrado em Demografia) - Centro de Ciências Exatas e da
Terra, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016. Disponível em:
<https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/21743>. Acesso em: 16 maio 2021.
96
SOUZA, 2009, p.33-35.
97
CASCUDO, Luís da Câmara. Vida breve de Auta de Souza: 1876-1901. Natal: EDUFRN, 2008.
98
FIGUEIREDO, Jackson. Auta de Souza. Edição Fac-similar. Natal: Sebo Vermelho Edições, 2012.
99
FARIAS, Genilson de Azevedo. Auta de Souza, a poeta de pele clara, um moreno doce:
memória e cultura da intelectualidade afrodescendente no Rio Grande do Norte. 2013. 185 f.
Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Regional; Cultura e Representações) - Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2013.
100
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Tradução de Ângela M. S. Correa. São Paulo:
Contexto, 2007.
40
101
OLIVEIRA, Fernanda. Luciana Lealdina de Araújo e Maria Helena Vargas da Silveira: história
de mulheres negras no pós-abolição do sul do Brasil [livro eletrônico]. Niterói: EDUFF, 2020. - 1,8Mb;
PDF. (Coleção Personagens do pós-abolição: trajetórias e sentidos de liberdade no Brasil
republicano, v. 2.
102
XAVIER, Giovana. Maria de Lourdes Vale Nascimento: uma intelectual negra do pós-Abolição
[livro eletrônico]. Niterói: EDUFF, 2020. – 5,8Mb; PDF. (Coleção Personagens do pós-abolição:
trajetórias e sentidos de liberdade no Brasil republicano, v.5).
103
BACHELARD, 1993, p. 214.
41
Dolores104
104
SOUZA, 2001, p.146.
105
BACHELARD, 1993, p.190.
42
106
GOMES, 2019, p.33.
107
GOMES, 2019, p.33.
108
REIS, 2013, p.140.
109
DOSSE, 2013, p.88.
43
pessoal, podemos caracterizar esse espaço como íntimo. Porém, este mesmo
espaço pode não apresentar limites físicos precisos, podendo ser percebido tanto
como íntimo quanto como imenso, a partir da solidão vivenciada, seja em um quarto
à noite antes de dormir ou em uma floresta deserta durante uma caminhada. “Toda
pessoa deveria então falar de suas estradas, de suas encruzilhadas, de seus
bancos”110, abrangendo, assim, o universo – ou a imensidão – de seus desenhos
vividos, não necessitando que estes sejam exatos, “Basta que sejam tonalizados no
mesmo modo do nosso espaço interior”111. Embora o “falar” aqui não deva ser
entendido unicamente a partir do ato vocal de uma pessoa, podemos perceber,
desse modo, a relevância dos discursos e das narrativas produzidas sobre o íntimo,
que são registros sempre preciosos, pois uma narrativa íntima não poderia existir de
qualquer outra forma se não a partir do discurso daquele que a vivenciou e a
produziu. “Trata-se, assim, de um ato de criação ou de criatividade cuja
subjetividade vai além do perceptível pelo olhar [...]. É uma busca pela
transcendência do ser”112. É esse espaço interior, esse universo pessoal e existencial
que buscamos quando tratamos de um espaço íntimo. Mas como encontrar,
pesquisar, estudar este espaço íntimo? Para este fim,
[...] o relato tem papel decisivo. Sem dúvida, “descreve”. Mas “toda
descrição é mais que uma fixação”, é “um ato culturalmente criador”.
Ela tem até poder distributivo e força performativa (ela realiza o que
diz) quando se tem um certo conjunto de circunstâncias. Ela é então
fundadora de espaços113.
110
BACHELARD, 1993, p.31.
111
BACHELARD, 1993, p.31.
112
GOMES, 2019, p.34.
113
CERTEAU, 2013, p.191.
44
seria um ser privilegiado, uma vez que poderia viver intensamente a poesia e a
imensidão interior das palavras e da alma humana, pois “Todas as grandes palavras,
todas as palavras convocadas para a grandeza por um poeta, são chaves do
universo, do duplo universo do Cosmos e das profundezas da alma humana”114. A
escrita, por ser uma forma de narrativa produzida, em nossa contemporaneidade, na
maioria das vezes de forma individual e solitária, costuma revelar esta profundeza da
alma humana que os indivíduos expressam em seus momentos de solidão e de
intimidade. Já a poesia, por sua vez, talvez mais do que a lembrança, revela-se
como uma narrativa que toca mais fundo o espaço interior de uma pessoa115. É,
portanto, por meio da escrita poética que buscamos os rastros, os caminhos, as
vivências do espaço íntimo presentes na obra da poetisa Auta de Souza. Uma
escrita, assim como a própria vida da poetisa, marcada pelo cerceamento e controle
“[...] por parte da cultura [- da família, da religião e da sociedade -] no tocante à
entrada, permanência e respeito à mulher no campo da escrita profissional”116.
Para a nossa pesquisa, faz-se necessário ressaltar a importância da
construção de uma narrativa escrita de si que os indivíduos – no mais puro sentido
da palavra, pois o caráter individual, particular e subjetivo destas narrativas é um
aspecto essencial de qualquer narrativa íntima – passam a produzir entre o fim da
Idade Média e início da Idade Moderna. Novos espaços, e também novas maneiras
de vivenciar os espaços existentes, vão sendo desenvolvidos com um caráter mais
pessoal a partir do momento em que os sujeitos não apenas vão concebendo
situações e práticas solitárias como também passam a demonstrar o desejo de estar
só.
114
BACHELARD, 1993, p.203.
115
BACHELARD, 1993, p.26.
116
GOMES, 2013, 20.
117
SIBILIA, 2003, p.3.
45
118
RYBCZYNSKI, Witold. Casa: pequena história de uma ideia. Tradução: Betina Von Staa. 2a
tiragem. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1999.
119
SIBILIA, 2003, p.3.
120
RYBCZYNSKI, 1999, p.59.
121
RYBCZYNSKI, 1999, p.40.
122
RYBCZYNSKI, 1999, p.51.
46
olhares intrusos e sob o império austero do decoro burguês”123. Para que fosse
possível conciliar a vivência desses prazeres – que iam desde a leitura ou a escrita
individual até novas maneiras de praticar o sexo – com a austeridade do decoro
burguês, foi preciso criar espaços próprios para uma vivência cada vez mais íntima.
Ressaltamos que a escrita contribuiu de forma significativa para o desenvolvimento
desta noção de individualidade, de intimidade e a consequente construção de
espaços íntimos. Chamamos a atenção para “o ato de escrever como prática própria
do movimento em direção à privacidade, cada vez mais acentuado pela visão de
mundo dominante da burguesia”124.
Como nos apresenta o filósofo Michel Foucault em seu texto intitulado A escrita
de si, “a escrita aparece regularmente associada à ‘meditação’, ao exercício do
pensamento sobre ele mesmo que reativa o que ele sabe, torna presente um
princípio, uma regra ou um exemplo, reflete sobre eles, assimila-os, e assim se
prepara para encarar o real”125. Esta forma de pensar, meditar e refletir sobre si
mesmo como forma de encarar o real estava impossibilitada em um ambiente como
a casa medieval, na qual não era incomum que houvesse cerca de 25 pessoas em
um ambiente com poucos e pequenos cômodos que eram utilizados para todas as
necessidades daqueles que ali conviviam126.
Levando em consideração a configuração da casa proporcionada a partir das
necessidades da família burguesa, a divisão dos cômodos passa a ser realizada de
uma forma mais precisa, desenvolvendo-se alguns voltados a funções específicas.
No tocante a esses cômodos, nos deteremos um pouco no quarto, uma vez que este
espaço propicia “uma escrita privada, e mesmo íntima, ligada à família, praticada à
noite, no silêncio do quarto, para responder às cartas recebidas, manter um diário e,
mais excepcionalmente, contar sua vida”127. O quarto torna-se, portanto, um espaço
privilegiado da intimidade para os indivíduos da família burguesa, sendo a
representação espacial física, geométrica, geográfica deste espaço de caráter
íntimo, existencial, subjetivo que os sujeitos pertencentes à vida familiar burguesa
123
SIBILIA, 2003, p.3.
124
PRADO, 2013, p.451.
125
FOUCAULT, 2004, p.146-147.
126
RYBCZYNSKI, 1999, p.41.
127
PERROT, 2007, p.28.
47
128
FOUCAULT, 2004, p.146.
129
FOUCAULT, 2004, p.157.
130
FOUCAULT, 2004, p.156.
48
Para sorte da poeta, seu irmão, dois anos mais velho, Henrique
Castriciano de Souza, desde os 16 anos já possuía uma biblioteca
considerável. Além disso, ao lado do outro irmão, Eloy de Souza,
quatro anos mais velho que Auta, os dois irmãos homens
articulavam-se muito bem com intelectuais e políticos locais,
participando ativamente de órgãos de imprensa e de divulgação
literária, os quais a poeta veio também fazer parte por alguns anos131.
131
GOMES, 2013, p.21-22.
132
PERROT, 2007, p.31.
49
A nossa intenção não é traduzir, decodificar nem resgatar aquilo que Auta de
Souza sentia ou pensava quando produziu seus poemas, até porque acreditamos
que isso é algo impossível de ser realizado. O que procuramos é inserir a construção
que ela realiza de si mesma em um contexto mais amplo: o contexto que nos é
proporcionado pelos depoimentos apresentados por aqueles que também
vivenciaram o seu contexto temporal e espacial – mais precisamente, os seus
irmãos Eloy de Souza e Henrique Castriciano – e aqueles que, embora não a
tenham conhecido pessoalmente, foram tocados por sua poesia a ponto de
procurarem conhecer mais sobre sua vida e obra e elaborarem produções que até
os dias atuais nos possibilitam conhecer um pouco dessa vida que se esvaiu em
versos133. A partir da leitura da poesia de Auta de Souza como “fontes do ‘eu’”134,
percebemos uma construção narrativa realizada pela poetisa sobre si mesma, uma
forma de narrar sua vida, seu tempo, os indivíduos com os quais conviveu –
principalmente por meio das dedicatórias que realizou em muitos de seus textos –,
além dos sonhos, desejos, dores e medos da breve vida que teve e que
demonstrava saber que teria.
A relevância do caráter poético da escrita de Auta de Souza ressalta-se ainda
mais quando levamos em consideração que, de início, a religião e o imaginário, as
vias místicas e literárias, a oração, a meditação, a poesia e o romance foram os
caminhos literários escolhidos pelas pioneiras da escrita”135. Auta de Souza, uma das
pioneiras e mais relevantes escritoras do Rio Grande do Norte, nos mostra, por meio
de sua poesia, a relevância desta variedade de fontes que a história pode utilizar-se
não somente para a pesquisa histórica sobre um indivíduo, mas também para a
construção histórica de um grupo social – como a história das mulheres – e até
mesmo de um território – como o Rio Grande do Norte. A variedade de fontes
escritas que pesquisamos – que vão desde poemas e cartas pessoais136 até obras
133
CASCUDO, 2008, p.17.
134
ARFUCH, 2010, p.28.
135
PERROT, 2007, p.31.
136
Registramos aqui o nosso agradecimento a Daliana Cascudo Roberti Leite, Presidente/Diretora
Administrativo-Financeira, e a todos os funcionários do Instituto Ludovicus - Casa de Câmara
Cascudo, por nos possibilitarem e auxiliarem a pesquisa que realizamos no acervo de
correspondências de Câmara Cascudo. Nesse acervo pudemos recolher algumas cartas relevantes à
nossa pesquisa, como cartas trocadas entre Henrique Castriciano e Câmara Cascudo, por exemplo.
Procuramos ler essas fontes para conhecer melhor as relações construídas pela família Castriciano
de Souza, assim como as disputas existentes nessas relações. Percebemos uma evidente disputa
50
entre Câmara Cascudo e Henrique Castriciano em torno da construção de uma memória para Auta de
Souza. Abordaremos melhor esse assunto no terceiro capítulo deste trabalho.
137
PERROT, 2007, p.30.
138
CERTEAU, 2013, p.184.
139
FOUCAULT, 2004, p.152.
51
permaneceu vivo, sendo recitado ou cantado pelo “[...] povo, que se apoderou dele
com o devoto carinho, passando a repetir muitos de seus versos ao pé dos berços,
nos lares pobres e, até, nas igrejas, sob a forma de ‘benditos’ anônimos”140. A
percepção dessa transformação de um universo íntimo, subjetivo, psicológico em
uma espacialidade particularmente íntima por meio da poesia foi descrita pelo poeta
Olavo Bilac (1865-1918) no prefácio da primeira edição do Horto (1900): “[...] essa
alma de mulher vai traduzindo em versos os mundos de sensações, [...]
transformando as suas ideias, as suas torturas, as suas esperanças, os seus
desenganos em pequeninas jóias”141. Sobre essa materialização de um universo
sentimental em forma de versos, o também poeta e irmão da poetisa, Henrique
Castriciano de Souza, em sua Nota para a segunda edição do Horto (1910), declara
que “Auta, sem pensar e sem querer, reproduzira à lápis [...] as emoções mais
íntimas de nossa gente; encontrara no próprio sofrimento a expressão exata do
sofrimento alheio”142.
Compreendemos, portanto, que a poesia para Auta de Souza foi um meio de
construção de um espaço íntimo, de um corpo poético, de uma poética do espaço
apresentada na forma de uma narrativa escrita. Esta narrativa produzida por Auta de
Souza, que sobrevive mesmo após mais de um século da sua morte, foi sem dúvida
uma forma encontrada pela poetisa de amenizar os sofrimentos, as tristezas e a
solidão vivenciadas em sua vida “de pobre moça tuberculosa”143. Mas como Auta de
Souza constrói esse espaço íntimo? Como a poetisa apresenta esses aspectos de
sua intimidade em seus versos? Para responder a essas questões, precisamos
retomar a ideia de imensidão ligada à intimidade que nos propõe Bachelard, pois
percebemos na poesia de Auta de Souza um sentimento de imensidão acerca de
momentos vivenciados principalmente em uma intimidade religiosa, uma vez que a
religião católica teve uma grande influência em sua vida e em seus escritos, além do
fato de as características desta religiosidade estarem sempre marcadas pela
grandiosidade de Deus e de tudo aquilo que ele criou, sendo inclusive grafadas com
inicial maiúscula. Percebemos também uma noção de imensidão atribuída a
140
SOUZA, 2001, p.274.
141
SOUZA, 2001, p.15.
142
SOUZA, 2001, p.274.
143
Verso da poesia Dolores (SOUZA, 2001, p.146).
52
No entanto, devemos chamar atenção para este aspecto ficcional, uma vez que
144
SILVA; MOREIRA, 2016, p.4.
145
TEZZA apud SILVA; MOREIRA, 2016, p.11.
53
146
SOUZA, 2001, p.146.
147
SOUZA, 2001, p.238.
148
ROSEMBERG, 1999, p.3.
149
MACIEL et al, 2012, p.227.
54
150
ROSEMBERG, 1999, p.6; GONÇALVES, 2000, p.305.
151
GOMES, 2013, p.190.
152
GOMES, 2013, p.82.
153
CASCUDO, 2008, p.183.
154
CASCUDO, 2008, p.183.
155
HIJJAR & PROCÓPIO, 2006, p.16.
156
LIMA, 2020, p.12.
55
157
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
158
CHALHOUB, 1996, p.32.
159
CASCUDO, 2008, p.183.
56
de qualquer outra coisa, que Cruz e Souza era “[...] negro, tuberculoso, paupérrimo”
160
, enquanto não há nenhuma referência ao fato de Auta de Souza ser negra. Sobre
ela, Cascudo procura chamar atenção para o fato de que “Com Auta de Souza nada
ocorre semelhantemente. Ninguém a desconhece, a nega, a fere, literariamente.
Unanimidade de elogio, de carinho, de admiração compreensiva, de estímulo”161.
Percebemos, portanto, que tuberculose e afrodescendência estavam
intrinsecamente ligadas também na vida de Auta de Souza, tendo ambas sido
minimizadas ou, quando possível, silenciadas ao máximo na memória construída
para a poetisa e sua família. Abordaremos de forma mais aprofundada essa questão
no terceiro capítulo deste trabalho.
“Apesar de promissora, a carreira literária de Auta de Souza terminou logo em
seu início. As crises advindas da tuberculose tornavam-se cada vez mais intensas,
sem encontrar-se remédio”162. A doença foi, sem dúvida, um limitador de tempo e
disposição à produção poética, pois “sua condição de doente, exigente de muitos e
exaustivos cuidados, a manteve numa situação desfavorável para sua
independência intelectual, uma vez que mantinha-se tutelada pelos irmãos”163 e
também pela avó Dindinha, embora estes incentivassem seus hábitos de leitura e
escrita. No entanto,
“Auta teve uma vida sofrida pelas perdas sucessivas das pessoas que amava e
pela agonia vivenciada no dia-a-dia [sic], causada pela tuberculose. Todavia, todo
esse sofrimento teve um saldo positivo: o livro de poemas Horto”165. Seus poemas
são fruto dessa convivência com a doença e com a presença constante da morte,
sempre lembrada também pela recordação de sua mãe, seu pai e seu irmão Irineu –
160
CASCUDO, 2008, p.183.
161
CASCUDO, 2008, p.183.
162
GOMES, 2013, p.93.
163
GOMES, 2013, p.218.
164
GOMES, 2013, p.75.
165
FARIAS, 2013, p.71.
57
166
CASCUDO, 2008, p.58.
167
CASCUDO, 2008, p.184.
168
CASCUDO, 2008, p.187.
169
CASCUDO, 2008, p.187.
58
esse fato atestando que o tuberculoso evitava o nome da doença, havendo em todos
os sanatórios do mundo uma sinonímia pitoresca, fugindo-se de usar o vocábulo
assustador, pois quem falava muito numa moléstia acabava sofrendo dela ou
piorando-a pela atração verbal170. Desse modo, observamos que era comum
criarem-se nomes que procurassem mascarar a tuberculose, tais como “Dama
Branca”171, “Peste Branca”172, “bacilo de Koch”173, “tísica” – nomenclatura comumente
utilizada por Auta de Souza em seus textos –, entre outros nomes populares. Os
estudos sobre a história da tuberculose mostram que “No final do século XIX, a
morte por tuberculose numa família era estigmatizante, pois a moléstia estava
associada a algum obscuro defeito hereditário ou mesmo à pobreza. Essa doença,
vista como misteriosa e incurável, era capaz de despertar vários tipos de pavor”174.
Desses fatores, o elemento hereditário é o mais provável para o aparecimento da
doença em Auta de Souza, tendo a mesma enfermidade acometido também seu
irmão Henrique Castriciano. Ao contrário do que era habitual em sua época, a
poetisa procurou expressar em seus versos os incômodos que a doença lhe
provocava, assim como seus momentos de medo e de aceitação em relação à sua
enfermidade, revelando aspectos psicológicos e existenciais que não teriam sido
registrados se não por sua própria narrativa. A poesia de Auta de Souza é, portanto,
uma importante fonte de estudo não apenas para a história da tuberculose, mas
também para a história das mulheres acometidas por essa enfermidade, uma vez
que “No século XIX, a tuberculose atingiu gravemente as mulheres, principalmente
as mulheres do povo, subnutridas crônicas”175, porém, desconhece-se ou pouco
valoriza-se as escassas fontes existentes sobre o assunto.
A narrativa poética de Auta de Souza, dessa forma, se constitui como um
depoimento direto de uma pessoa atormentada pela morte e por uma doença que
não possuía cura em sua época. Eloy de Souza, irmão da poetisa, escreveu em sua
170
CASCUDO, 2008, p.175.
171
CASCUDO, 2008, p.173; SOARES, Pedro Paulo. A dama branca e suas faces: a representação
iconográfica da tuberculose. História, Ciências, Saúde. Manguinhos, Rio de Janeiro, v.1, n.1,
p.127-134, jun.-jul. 1994. Disponível em:
<https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-59701994000100012&script=sci_arttext>. Acesso em:
07 jul. 2020.
172
MACIEL et al, 2012, p.226.
173
CASCUDO, 2008, p.59.
174
CLEMENTINO et al, 2011, p.639.
175
PERROT, 2007, p.42.
59
autobiografia que “[...] a moléstia terrível [...] não perdoou nem lhe deu esperanças
de voltar à vida almejada num sonho de mocidade. Por isso sua poesia é triste,
tristes seus pensamentos, tristes os dias que nunca mais amanheceram na claridade
de futuro promissor”176, sendo “As noites de longas insônias [...] marcadas por
acessos de tosse quintosa que a prostravam [sic] exausta”177. Auta de Souza
apresenta sua luta contra a doença em alguns momentos, por exemplo, ainda em
Dolores, quando escreve: “E assim morrendo, coitada, aos poucos,/ Convulsa e fria,
louca de espanto,/ Solto suspiros, soluços roucos,/ Olhando as cruzes do campo
Santo”178. Assim como em Penas de Garça, ao escrever: “Quem dera que eu fosse
lírio,/ Ó minha Virgem Maria!/ Ao menos, esse martírio/ Durava somente um dia”179.
A tormenta180 da doença, embora interrompesse o sono, a alegria, a vida de Auta de
Souza, tornou-se motivo para versos, eternizando não apenas os pássaros e as
flores – símbolos de momentos alegres na poesia auteana – de sua vida, mas
também seus momentos de dúvida e de dor.
São esses elementos da intimidade de Auta de Souza, de sua maneira de
pensar e encarar a vida, que nos chamam a atenção em sua poesia, pois
apresentam esta constituição de um espaço íntimo que a poetisa demonstra ter
procurado materializar por meio de sua escrita poética. Por meio dos versos, a
autora procurou expressar suas tristezas, seus medos, suas dores, assim como os
desejos e sonhos que imaginava que não poderia realizar por causa de sua
condição de tísica e da proximidade da morte. Exemplo disso podemos ler em
Falando ao Coração, em que a poetisa, falando diretamente para seu próprio
coração, diz: “Esquece a louca e pálida amargura/ Que há tantos anos meu viver
tortura.../ Canta o teu hino de ilusão querida,/ Esquece tudo o que não seja a Vida/
E, para o Céu das alegrias mansas,/ Conduz nas asas minhas esperanças…”181.
Podemos perceber, dessa forma, um desejo da poetisa de esquecer as amarguras e
torturas de sua vida, no entanto, ela direciona ao “Céu” suas alegrias e esperanças,
176
SOUZA, 2008, p.78.
177
SOUZA, 2008, p.78.
178
SOUZA, 2001, p.146.
179
SOUZA, 2001, p.234.
180
Henrique Castriciano assim descreve, na última frase de sua Nota escrita para a segunda edição
do Horto, o sofrimento vivido pela irmã (SOUZA, 2001, p.275).
181
SOUZA, 2001, p.244.
60
ao paraíso prometido por sua devoção religiosa e que encarava como o seu destino
breve. Porém, os versos que julgamos expressarem mais claramente esses
sentimentos de tristeza, aceitação da morte e distanciamento da vida se apresentam
em Hoje182, soneto escrito pela poetisa em seu aniversário de 18 anos, em 12 de
setembro de 1894:
“Tão moça e mártir”, Auta de Souza expressa seu momento de alegria ao sentir
sua alma voar aos sonhos do passado, ao ninho amado de sua infância, sempre
lembrada em seus poemas por meio das imagens de crianças, da mãe e dos irmãos.
Mas essa ventura dura somente um dia, o dia de seu aniversário, dia de Santa Auta,
também virgem e mártir – como descreveu Cascudo –, sentindo um pavor repentino
de morte cortar seu voo, talvez um acesso de tosse ou um calafrio, não lhe deixando
viver plenamente esses momentos de paz e encanto.
Mas como essas características pessoais e íntimas da vida de Auta de Souza
são apresentadas nas biografias da poetisa? Esses aspectos são utilizados por
alguns de seus biógrafos para classificar sua obra como pertencente à Segunda
Geração Romântica da literatura brasileira. Nesse sentido, a Profa. Dra. Ana
Laudelina F. Gomes, biógrafa da poetisa, cita o advogado e professor Mário Moacyr
Porto (1912-1997), que declara:
182
SOUZA, 2001, p.261.
61
183
PORTO apud GOMES, 2013, p.197.
184
CASCUDO, 2008, p.63.
185
CASCUDO, 2008, p.64.
186
Câmara Cascudo declara este fato em carta escrita a Henrique Castriciano, datada de 23 de
fevereiro de 1943, ao escrever que “Não fui do número dos que a conheceram de perto” (CASCUDO,
2008, p.121).
187
CASCUDO, 2008, p.24-25.
62
Auta de Souza, uma vez que a poetisa precisou realizar constantes viagens desde
1890, aos 14 anos de idade, em razão de sua doença. Ela demonstra saudades das
amigas nos títulos, dedicatórias e conteúdo de alguns de seus poemas. Até mesmo
seu Horto – a obra de sua vida, este espaço íntimo que ela procurou construir
poeticamente – é dedicado “Às boas irmãs do Colégio da Estância, em Pernambuco,
almas formosas e santas que me educaram o coração e o espírito, ofereço o que há
de mais puro nestes singelos versos”188, amizades “que acompanharam
espiritualmente sua alegria, sonho, mágoa, exílio simbólico, presentes nas horas
melancólicas”189.
Porém, aqueles que mais estão presentes na obra de Auta de Souza são os
seus familiares: os que com ela conviveram por toda a sua vida – a sua avó
Dindinha e seus irmãos Eloy de Souza, Henrique Castriciano e João Câncio – e
principalmente aqueles que a deixaram muito cedo – sua mãe Henriqueta
Leopoldina, seu pai Eloy de Souza e seu irmão Irineu Leão de Souza. A esses
últimos, Auta de Souza dedica alguns de seus poemas mais cheios de tristeza e de
saudade, versos que revelam um estado de espírito atormentado pela proximidade
da morte não apenas para si mesma, mas também para aqueles a quem amava.
Sobre sua mãe, falecida em 1879, a poetisa escreveu em Mater: “Depois que te
partiste e os teus pobres filhinhos,/ Pequeninos e sós, deixaste na orfandade,/
Ficamos a chorar - implumes passarinhos! -/ Que os pássaros também soluçam de
saudade”190. Também em Chorando191, que dedica “À alma santa de minha Mãe”,
Auta de Souza escreve:
188
SOUZA, 2001, p.10.
189
CASCUDO, 2008, p.58.
190
SOUZA, 2001, p.75.
191
SOUZA, 2001, p.166-167.
63
192
SOUZA, 2001, p.164.
193
SOUZA, 2009, p.265
194
SOUZA, 2001, p.201.
195
SOUZA, 2001, p.51.
196
SOUZA, 2001, p.166-167.
197
SOUZA, 2001, p.187.
198
SOUZA, 2001, p.81.
64
199
ALBUQUERQUE JR., 2011, p.78.
200
CASCUDO, 2008, p.187.
201
REESINK, 2012, p.380.
202
BERTINI, 2016, p.5.
203
GOMES, 2013, p.253.
65
Não sabem? É o Coração…/ É dentro dele que mora,/ E dentro dele que chora,/ A
alma do meu irmão!”204. A poetisa demonstra sua dor e saudade do irmão também
no soneto que intitula Irineu205:
204
SOUZA, 2001, p.86.
205
SOUZA, 2001, p.255.
206
REESINK, 2012, p.379.
207
Cantai (SOUZA, 2001, p.138).
208
SOUZA, 2001, p.162.
66
Penas de garça que “Quando eu morrer, vou assim/ Sustendo meu coração…/
Saudade da terra? Sim!/ Saudade da vida? Não!”. Como seria possível sentir
saudade da terra, mas não da vida? Sobre o assunto, Ana Laudelina Gomes aponta
que
209
GOMES, 2013, p.253.
210
Cores (SOUZA, 2001, p.130).
211
SOUZA, 2008, p.79.
212
CASCUDO, 2008, p.152; GOMES, 2013, p.194.
67
213
SOUZA, 2008, p.82.
214
Agnus Dei (SOUZA, 2001, p.259-260).
215
SOUZA, 2008, p.79.
216
CASCUDO, 2008, p.17.
217
CASCUDO, 2008, p.121.
218
FOUCAULT apud SILVA; MOREIRA, 2016, p.2.
68
No entanto, não devemos pensar que Auta de Souza tenha vivido apenas
momentos tristes e que não tenha desejado viver mais. Devemos levar em
consideração que
219
ARAGÃO, 1992, p.4.
69
220
LIMA; SANTIAGO, 2010, p.29.
221
BACHELARD, Gaston. A dialética do exterior e do interior. In: ______. A poética do Espaço. São
Paulo: Martins Fontes, 1993. pp.215-233.
222
SOUZA, 2001, p.274.
223
SOUZA, 2008, p.79.
70
224
LOPES, 2016, p.104.
225
SOUZA, 2001, p.274.
226
SOUZA, 2008, p.79.
227
CASCUDO, 2008, p.110.
72
228
LEÃO, 1986, p.2.
229
LEÃO, 1986, p.277.
230
GOMES, 2013, p.170.
231
GOMES, 2013, p.157-158.
232
LEÃO, 1986, p.4.
233
GOMES, 2013, p.352.
73
234
GOMES, 2013, p.356.
235
GOMES, 2013, p.99.
236
GOMES, 2013, p.101.
237
SILVA, 2015, p.66.
74
238
. Ana Laudelina Gomes, por sua vez, ressaltou que “Constatada a doença de
Auta, sua avó passou a viajar constantemente com ela e os irmãos para locais de
clima seco, ao agreste e ao sertão norte-rio-grandense, em busca de melhoras para
a saúde da menina”239. Após ter que abandonar os estudos, a poetisa passou a
realizar constantes deslocamentos pelo Rio Grande do Norte, procurando amenizar
os sintomas da tuberculose, doença quase sempre mortal até a descoberta da
penicilina pelo médico e bacteriologista escocês Alexander Fleming (1881-1955), em
1928. Como ressaltado por Cascudo, no século XIX, “o remédio clássico, herdado de
Portugal e secular na Europa, era a mudança de ares”240 e as “horas de descanso”241
. O biógrafo da poetisa descreveu uma parte dessas mudanças de ares realizadas
por Auta de Souza entre os anos de 1896 e 1899 ao escrever que
238
CASCUDO, 2008, p.59.
239
GOMES, 2013, p.73.
240
CASCUDO, 2008, p.65-66.
241
CASCUDO, 2008, p.184.
242
CASCUDO, 2008, p.83-90.
75
Tabela 1 – Poemas de Auta de Souza que apresentam o registro do local onde foram
produzidos
Ao Dr. Celestino
Wanderley, em
Passando Araçá 1895
agradecimento à
Sua Morte de Cecy
À memória do
Mistério Macaíba Março 1895
pequeno Alberto
A meu irmão
Cantando Macaíba 1896
Henrique
A Edwiges de Sá
Cantai Macaíba 1896
Pereira
A Eugênia de
Teus Anos Angicos 02 maio 1896
Albuquerque Melo
A Maria Fausta e a
Ao Luar Angicos Junho 1896
Mercês Coelho
A Palmyra
Olhos Azuis Angicos 1896
Magalhães
À memória da
Loli Jardim 1897 pequena Loli, das
carícias
A Joaquina
Ao Senhor do Bom Fim Serra da Raiz 10 janeiro 1898 Felismina da
Conceição
A Maria da Glória
De Joelhos Serra da Raiz Fevereiro 1898
Pena
A D. Ignez Maria de
Fefa Serra da Raiz Fevereiro 1898
Almeida
A essa criancinha
de olhos castanhos
e sorriso claro, que
Gentil Macaíba Março 1899 eu vejo sempre à
tarde, descalcinha e
loura. Sacudindo
beijos…
A meu irmão
Noite Cruel Alto da Saudade
Henrique
A Generosa
Falando ao Coração Barro Vermelho
Pinheiro
Fonte: tabela produzida pelo autor a partir dos poemas de Auta de Souza que apresentam o
local onde foram produzidos.
Fonte: mapa produzido pelo autor a partir da Carta da República dos Estados Unidos do
Brazil (1892)243. Os locais destacados no mapa são: (1) Natal, (2) São Gonçalo – município
onde estavam localizados Utinga e o Alto da Saudade –, (3) Macaíba, (4) Angicos, (5)
Jardim, (6) Nova Cruz e (7) Serra da Raiz, na Paraíba. Não conseguimos encontrar registros
em nossas fontes acerca da localização de Araçá. Tudo o que sabemos sobre o local é que
243
USA, Library of Congress. Carta da República dos Estados Unidos do Brazil (1892). Disponível
em: <https://www.loc.gov/item/2001620473/>. Acesso em: 30 jul. 2021.
78
Auta de Souza lá esteve no ano de 1895, em viagem entre Jardim (5) e Macaíba (3), além
de estar registrado em um único poema de Auta de Souza, intitulado Passando.
244
GOMES, 2013, p.35.
245
CASCUDO, 1984, p.351.
246
GOMES, 2013, p.44.
247
GOMES, 2013, p.38.
248
PREFEITURA de Macaíba. História de Macaíba. Disponível em:
<https://www.macaiba.rn.gov.br/p/historia-de-macaiba>. Acesso em: 16 maio 2021.
249
CASCUDO, 2008, p.21.
79
250
SOUZA, 2009, p.67.
251
SOUZA, 2009, p.144.
252
SOUZA, 2009, p.212.
253
SOUZA, 2009, p.213.
254
CASCUDO, 2008, p.94.
255
CASCUDO, 2008, p.97.
80
256
GOMES, 2013, p.93.
257
CASCUDO, 2008, p.115.
258
CASCUDO, 2008, p.118.
259
CASCUDO, 1984, p.349.
260
CASCUDO, 2008, p.83; GOMES, 2013, p.83.
261
CASCUDO, 2008, p.107.
262
SOUZA, 2009, p.89.
263
SOUZA, 2009, p.47.
81
264
SOUZA, 2009, p.51.
265
SOUZA, 2009, p.57-58.
266
SOUZA, 2009, p.66.
267
SOUZA, 2009, p.104.
268
SOUZA, 2009, p.119.
269
CASCUDO, 1984, p.337.
82
270
CÂMARA Municipal de Jardim do Seridó. História do município. Disponível em:
<https://www.jardimdoserido.rn.leg.br/pt/historia>. Acesso em 16 maio 2021.
271
SOUZA, 2009, p.56.
272
SOUZA, 2009, p.134.
273
SOUZA, 2009, p.101.
274
SOUZA, 2009, p.224-225.
275
CASCUDO, 1984, p.351.
276
PREFEITURA de Nova Cruz. História do município. Disponível em:
<https://novacruz.rn.gov.br/municipio/historia-do-municipio/>. Acesso em: 16 maio 2021.
83
variadas, como a percepção das diferentes fases da vida, indo desde a alegria da
infância até as “ruínas da mocidade”, narradas em Cores277; uma prece de adoração,
em Sancta Virgo Virginum278; a admiração aos cabelos de uma garota chamada
Maria, em Ciúme279; e a narrativa poética das mortes de Zirma280, no poema assim
intitulado, e de Irineu, irmão da poetisa, em Goivos281.
Sobre a localidade de Araçá, que aparece como local de composição de alguns
de seus versos, tudo o que sabemos é que tratava-se de uma propriedade
pertencente a um comendador chamado Joaquim Inácio Pereira, onde a poetisa
esteve em sua viagem entre Jardim e Macaíba, no ano de 1895282. Nesse local, Auta
de Souza registrou apenas o poema Passando283, com dedicatória “ao Dr. Celestino
Wanderley, em agradecimento à Sua Morte de Cecy”. Em Passando, a poetisa narra
uma visão equivocada que as pessoas teriam ao vê-la “passar risonha e calma”,
revelando, por fim, que “Meu pobre coração dentro do peito/ - Triste doente a
agonizar no leito -/ Vai soluçando dolorosamente…”.
Utinga é considerada uma das povoações mais antigas do município de São
Gonçalo do Amarante, localizada a cerca de 30 km de distância de Natal284. O local
teria servido de rota para a exploração holandesa no início do século XVII285. Auta de
Souza registrou dois de seus poemas nesse local: Eterna Dor e Crepúsculo, o
primeiro em outubro e o segundo em novembro de 1898. Em Eterna Dor286, a poetisa
conversa com sua finada mãe, descrevendo-a como “Alma de meu amor, lírio
celeste,/ Sonho feito de um beijo e de um carinho,/ Criatura gentil, pomba de
arminho,/ Arrulhando nas folhas de um cipreste”, mas, logo em seguida, se pergunta
“Ó minha mãe/ Por que no mundo agreste,/ [...] abandonaste o ninho?”, revelando,
por fim, que “Aqui na vida - que tamanha mágoa! -/ O próprio olhar de Deus
encheu-se d’água.../ Ó minha mãe, como este mundo é triste!”. Já em Crepúsculo287,
277
SOUZA, 2009, p.102.
278
SOUZA, 2009, p.94-95.
279
SOUZA, 2009, p.127-128.
280
SOUZA, 2009, p.124-126.
281
SOUZA, 2009, p.59-61.
282
CASCUDO, 2008, p.76.
283
SOUZA, 2009, p.88
284
CASCUDO, 1984, p.51.
285
PREFEITURA de São Gonçalo do Amarante. Comunidades históricas. Disponível em:
<https://saogoncalo.rn.gov.br/comunidades-historicas/>. Acesso em: 16 maio 2021.
286
SOUZA, 2009, p. 57.
287
SOUZA, 2009, p.120.
84
Auta de Souza fala sobre a paisagem local, iniciando com a descrição de que “Há
pelo espaço um ciciar dolente/ De prece, em torno da Igrejinha em ruína…”. A
“Igrejinha em ruína” vista pela poetisa é, muito provavelmente, a capela de Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro, que ainda existe no local. Segundo documentos
oficiais, a atual capela foi erguida por volta de 1730, porém, o frontispício da capela
registra o ano de 1787, representando, provavelmente, a época em que o templo
sofreu alguma reforma288. Desde 30 de agosto de 1989 o local é tombado como
monumento histórico pelo Governo do Estado, por indicação realizada pela
Fundação José Augusto e aprovação do Conselho Estadual de Cultura 289.
288
PREFEITURA de São Gonçalo do Amarante. Comunidades históricas. Disponível em:
https://saogoncalo.rn.gov.br/comunidades-historicas/. Acesso em: 16 maio 2021.
289
GOVERNO do Estado do Rio Grande do Norte. Bens Tombados pelo Governo do Estado -
DOE. Disponível em:
http://www.adcon.rn.gov.br/ACERVO/secretaria_extraordinaria_de_cultura/DOC/DOC000000000207
484.PDF. Acesso em: 16 maio 2021.
85
290
SOUZA, 2009, p.130-131.
291
SOUZA, 2009, p.138.
292
SOUZA, 2009, p.142-143.
293
SOUZA, 2009, p.149-150.
294
LEÃO, 1986, p.68-69.
295
SOUZA, 2001, p.27.
296
LEÃO, 1986, p.14.
297
GOMES, 2013, p.88.
86
298
CASCUDO, 2008, p.93.
299
SOUZA, 2009, p.164-167.
300
SOUZA, 2009, p.180.
301
SOUZA, 2009, p.186-187.
302
SOUZA, 2009, p.189.
303
SOUZA, 2009, p.58.
304
LEÃO, 1986, p.65.
305
SOUZA, 2009, p.213.
87
“Depois que te partiste [sic] e os seus pobres filhinhos,/ Pequeninos e sós, deixaste
na orfandade, […]/ Criancinha sem berço, em busca de um abrigo/ No berço de
tu’alma alabastrina e pura”306, assim como em Meu Pai, nos versos “Quando
morreste eu era bem criança,/ Balbuciava, sim, o nome teu”307.
Esses são os locais documentados por Auta de Souza em seus poemas. No
entanto, dos 148 poemas de que temos conhecimento308, apenas 49, ou seja, 1/3 de
sua obra, apresentam o registro do local onde foram produzidos. Desse modo,
somos levados a pensar que a poetisa passou por outros locais que não foram
explicitamente registrados em seus textos. Devemos levar em consideração que
todos esses deslocamentos foram realizados sobre o lombo de animais, a maior
parte do tempo, e a pé, ocasionalmente. Em seu livro Memórias, Eloy de Souza
comentou acerca “[...] dos sacrifícios dessas viagens por caminhos ínvios, ao
compasso dos cargueiros em comboios que as tornavam mais compridas e
fatigantes”309. Se ao mais velho, saudável e longevo dos irmãos Castriciano de
Souza, esses deslocamentos eram considerados compridos e fatigantes,
imaginamos como deviam ser ainda mais desgastantes para a jovem e doente Auta
de Souza.
Dos 14 aos 24 anos, Auta de Souza viveu em meio a essas idas e vindas dos
sintomas de sua enfermidade e, em razão desta, entre os locais que destacamos
anteriormente. Seu irmão Eloy de Souza caracterizou esses deslocamentos da
poetisa como “peregrinações” ao declarar, em suas Memórias, que “Muitas foram
suas peregrinações pela terra natal na esperança de melhoras”310. Cascudo também
faz uso do termo ao escrever que “a saúde fazia-a peregrinar de Macaíba para o Alto
da Saudade e daí para Macaíba e um breve salto a Natal”311. Nalba Leão, em sua
dissertação de mestrado intitulada A obra poética de Auta de Souza312, também
comenta que “essas peregrinações [de Auta de Souza] tinham intervalos em Natal,
306
SOUZA, 2009, p.51.
307
SOUZA, 2009, p.219.
308
SOUZA, 2009.
309
SOUZA, 2008, p.81.
310
SOUZA, 2008, p.80.
311
CASCUDO, 2008, p.110.
312
LEÃO, Nalba Lima de Souza. A obra poética de Auta de Souza. 1986. 293 f. Dissertação
(Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Literatura, Centro de Comunicação e Expressão,
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis - SC, 1986. Disponível em:
<https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/75361>. Acesso em: 31 jan. 2021.
88
313
LEÃO, 1986, p.14-15.
314
DUPRONT apud MÓNICO et al., 2018, p.200.
315
MÓNICO et al., 2018, p.200.
316
SANTOS, 2000, p.39.
317
ESPÍRITO-SANTO apud MÓNICO et al, 2018, p.200.
318
SANTOS, 2000, p.39-40.
89
319
CARNEIRO, 2012, p.69.
320
STEIL e CARNEIRO, 2008, p.112.
321
STEIL e CARNEIRO, 2008, p.108.
322
SOUZA, 2009, p.192.
90
imagem que veio a torná-la um dos mais significativos expoentes da literatura do Rio
Grande do Norte, patamar que alcançou desde suas primeiras produções,
publicadas em jornais e revistas, chegando a poetisa a tornar-se conhecida e
admirada tanto entre a elite intelectual do estado quanto entre “[...] um público leitor
pouco letrado e com forte enraizamento nas tradições orais”323.
“Considerando tratar-se de uma moça nascida e criada no final do século XIX,
é compreensível que Auta de Souza, através de temas associados ao cotidiano
feminino, tenha feito ecoar em sua poesia um mundo próprio”324. No entanto, esse
“mundo próprio”, que chamamos aqui de espaço íntimo, não estava isolado do
contexto em que Auta de Souza vivia, pelo contrário, este era um dos temas mais
constantes e vivos em seus versos. Essa característica nos faz pensar no significado
que a escrita poética tinha na vida de Auta de Souza e em como isso se
apresentava, em meio a tantas mudanças, enquanto um registro dos caminhos, bem
como das histórias e dos momentos neles vistos e vividos. Por meio de sua
peregrinação, a poetisa vivenciou experiências, tais como conhecer outros locais,
pessoas e histórias que transformou em versos e eternizou em seu Horto, que
provavelmente não teria vivido caso tivesse uma vida de esposa e mãe de família,
algo tido como padrão para uma mulher de seu tempo.
Ao lermos o Horto percebemos que Auta de Souza procurou transformar em
versos algumas histórias, principalmente de crianças, de que ela tomou
conhecimento durante seus deslocamentos. Por meio desse processo podemos
observar como os espaços interior e exterior tocam-se, ligam-se e entrelaçam-se,
resultando em uma produção tão singular quanto a escrita poética. Dentre as muitas
histórias de crianças poetizadas por Auta de Souza, a maior parte delas trata da
morte, característica que nos chama a atenção pela forma sensível, singela e
poética utilizada para descrever um evento tão triste e traumático quanto a morte de
uma criança. Para compreendermos a recorrência desse tema e o modo como ele
se apresenta na poesia de Auta de Souza, devemos ter em mente o período e o
local no qual a poetisa viveu: o Norte do Brasil em fins do século XIX. Ressaltamos o
fato de que, embora Auta de Souza vivesse no estado do Rio Grande do Norte, não
323
GOMES, 2013, p.189.
324
GOMES, 2013, p.287.
91
podemos nos referir ainda à região Nordeste, pois, como nos apresenta o historiador
Durval M. de Albuquerque Jr. em seu livro A invenção do Nordeste e outras artes:
Dessa forma, o termo Nordeste passa a ser utilizado como agrupador dos
estados pertencentes à região do Brasil que atualmente recebe este nome somente
a partir de 1919. O historiador ressalta ainda que “A seca torna-se o tema central no
discurso dos representantes políticos do Norte, que a instituem como o problema de
suas províncias ou Estados. Todas as demais questões são interpretadas a partir da
influência do meio e de sua ‘calamidade’: a seca”326.
Auta de Souza nasceu no ano de 1876, ano anterior a uma das secas mais
severas de que temos conhecimento: a seca de 1877, também conhecida como “a
seca dos dois sete”.
Era o ano da seca, “a seca dos dois sete”. Macaíba era o caminho
dos “retirantes” (o vocábulo é deste ano) descidos dos sertões do
Seridó e do oeste, exaustos, sujos, famintos, taciturnos, procurando o
refrigério das praias, vendo pela primeira vez água corrente e perene,
mas verde, salgada, inútil. Iam aos magotes para o Rio Grande,
sinônimo sertanejo da cidade do Natal. As obras para fixá-los eram
improvisadas e eram distribuídos mantimentos, farinha de mandioca,
milho, carne do Ceará, jabá, charque seca, dura, coriácea […]327.
Diante desse cenário, o Nordeste tornava-se “[…] em grande medida, filho das
secas; produto imagético-discursivo de toda uma série de imagens e textos,
produzidos a respeito deste fenômeno, desde que a grande seca de 1877 veio
colocá-la como o problema mais importante desta área”328. Cascudo apresenta um
pouco do contexto desse período para o Rio Grande do Norte ao tratar da
administração do presidente de província José Nicolau Tolentino de Carvalho:
325
ALBUQUERQUE JR., 2011, p.81.
326
ALBUQUERQUE JR., 2011, p.72.
327
CASCUDO, 2008, p.51.
328
ALBUQUERQUE JR., 2011, p.81.
92
Podemos perceber, portanto, que a seca dos dois sete deixou marcas
profundas em todo o estado do Rio Grande do Norte por muitos anos. A família
Castriciano de Souza testemunhou algumas das histórias de perdas ocasionadas
pela seca, fossem elas materiais, de pessoas que deixaram seus locais de moradia
para fugir da seca e buscar uma condição de vida melhor, geralmente no litoral, ou
de vidas que não resistiram às mazelas dos anos de estiagem severa. Eloy de
Souza narra uma dessas perdas ocasionadas pela seca de 1877 ao lembrar da
primeira pessoa que viu morrer:
329
CASCUDO, 1984, p.184.
330
CASCUDO, 1984, p.383-384.
93
“Jesus, Maria e José, minha alma vossa é!” Palavras que ouvi pela
primeira vez e que nunca esqueci [...]331.
331
SOUZA, 2008, p.56.
332
ALPINO et al, 2016, p.810.
333
ALPINO et al, 2016, p.813.
334
VICTOR apud GOMES, 2013, p.173.
335
SOUZA, 2008, p.33.
94
336
ROCHA POMBO, 1922.
337
MEDEIROS, 2006, p.33.
338
DIAS, 2018, p.1.
339
MEDEIROS, 2006, p.9.
340
MEDEIROS, 2006, p.14.
95
341
LIRA apud ROCHA POMBO, 1922, p.60.
342
ROCHA POMBO, 1922, p.347.
343
MEDEIROS, 2006, p.22.
344
CASCUDO, 1984, p.285.
345
CASCUDO, 1984, p.281.
346
CASCUDO, 1984, p.287.
347
ARAÚJO apud MEDEIROS, 2006, p.10.
348
MEDEIROS, 2006, p.10.
96
349
GAZÊTA, Arlene A. B. Dossiê História & Saúde: com a varíola, nasce a saúde pública. História
Ciências Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/dossie-historia-saude-com-a-variola-nasce-a-saude-publica/>.
Acesso em: 16 maio 2021.
350
MCNEILL apud SCHATZMAYR, 2001, p.1526.
351
GAZÊTA, Arlene A. B. Dossiê História & Saúde: com a varíola, nasce a saúde pública.
352
FIOCRUZ. Os últimos dias da varíola. Revista de Manguinhos, 2005, p.44-45. Disponível em:
<https://agencia.fiocruz.br/sites/agencia.fiocruz.br/files/revistaManguinhos/RevistadeManguinhos08.p
df>. Acesso em: 16 maio 2021.
353
SCHATZMAYR, 2001, p.1526.
354
CASCUDO, 1984, p.275.
355
ROCHA POMBO, 1922, p.368.
97
[sic] de vidas”356. Por sua vez, “em 1872, no relatório do Dr. Henrique Câmara,
Inspetor da Saúde, dizia-se que a Varíola assaltara novamente a província. Em Natal
adoeceram mais de quinhentas pessoas”357. Cascudo aponta ainda que a “peste das
bexigas” prolongou-se até início do século XX, observando-se, entre os anos de
1904 e 1905, “[...] cenas dolorosas da epidemia variolosa. Ruas e ruas
despovoadas, doentes em abandono, fome, o Governo em pleno combate
desvairado contra dois inimigos clássicos: varíola e seca”358. Nesse período, com a
cidade repleta de sertanejos fugidos da seca, morriam, entre eles, cerca de vinte por
dia359.
Jackson de Figueiredo procurou ressaltar que Auta de Souza, em seus
deslocamentos à procura de melhores condições para seus sofrimentos físicos, pôde
observar o espetáculo desolador da seca no sertão, com todo o imenso e gigantesco
cortejo de miséria, dores e sofrimento humano que lhe é consequente360. Assim,
podemos observar alguns traços do contexto, desse espaço exterior vivenciado por
Auta de Souza durante seus deslocamentos, na produção de suas poesias. A seca e
a morte são, desse modo, elementos que compõem a poesia de Auta de Souza a
partir da vivência dos espaços proporcionados a ela em seus deslocamentos. Diante
dessas informações, buscamos ampliar a perspectiva do espaço interior, que
discutimos no capítulo anterior, acerca da morte na obra de Auta de Souza – voltada
para as perdas de entes queridos e à tuberculose –, apresentando o espaço exterior
observado e vivenciado por ela, que também se encontrava marcado por doenças e
pela morte. Por meio dessas vivências observamos os momentos de contato entre
os espaços exterior e interior, pois, como nos diz Bachelard, “O exterior e o interior
são ambos íntimos [e] estão sempre prontos a inverter-se, a trocar sua hostilidade.
Se há uma superfície-limite entre tal interior e tal exterior, essa superfície é dolorosa
dos dois lados”. Essa “superfície dolorosa” parece bastante evidente na vida, na
obra e no contexto vivenciado por Auta de Souza, estando esses três aspectos
conectados por meio da poesia. A tuberculose deixou marcas profundas na vida e na
356
PINAJÉ apud DIAS, 2018, p.9.
357
CASCUDO, 1984, p.279.
358
CASCUDO, 1984, p.280.
359
CASCUDO apud MEDEIROS, 2006, p.12.
360
FIGUEIREDO, 2012, p.17.
98
361
ROCHA POMBO, 1922, p.368.
362
BRUNA, Maria Helena V. Febre amarela. Disponível em:
<https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/febre-amarela/>. Acesso em: 16 maio 2021.
363
WITTER apud DIAS, 2018, p.7.
364
ARAÚJO e MACEDO apud DIAS, 2018, p.11.
99
No ano de 1856, uma nova doença se instala no Rio Grande do Norte. Dessa
vez foi o cólera (ou cólera-morbo) que atingiu a província, sendo relatado pelo
presidente provincial Antônio Bernardo de Passos 365. Segundo Cascudo:
365
DIAS, 2018, p.12.
366
CASCUDO, 1984, p.278.
367
MEDEIROS, 2006, p.15.
368
CASCUDO, 1984, p.278.
369
MEIRA apud CASCUDO, 1984, p.279.
370
BRUNA, Maria Helena V. Cólera. Disponível em:
<https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/colera/>. Acesso em: 16 maio 2021.
100
371
DIAS, 2018, p.9-11.
372
MEDEIROS, 2006, p.35.
373
FIOCRUZ, 2005, p.44.
374
GOVERNO do Estado de Goiás. Cólera. Disponível em:
<https://www.saude.go.gov.br/biblioteca/7548-c%C3%B3lera>. Acesso em: 28 jul. 2021.
375
CASCUDO, 2008, p.175.
101
376
ARAÚJO, 1997, p.130.
377
ROSEN apud DIAS, 2018, p.10.
378
ARAÚJO, 1997, p.129.
379
SANTOS & NASCIMENTO, 2014, p.175.
380
CASCUDO, 1984, p.279.
102
381
MEDEIROS, 2006, p.23.
382
MACHADO apud ARAÚJO, 1997, p.128.
383
ALCKERKNECHT, 1948; ALMEIDA, 2011 apud DIAS, 2016, p.39.
384
ARAÚJO, 1997, p.134.
385
SOUZA, 2009, p.33.
103
386
ARAÚJO, 1997, p.133.
387
SARMENTO apud MONTEIRO, 2015, p.95.
388
GONÇALVES apud MEDEIROS, 2006, p.16.
389
DIAS, 2019, p.7.
104
390
DIAS, 2019, p.9.
391
DIAS, Dayane Júlia Carvalho. O comportamento da mortalidade no Rio Grande do Norte entre
1801 e 1870. 2016. 51f. Dissertação (Mestrado em Demografia) - Centro de Ciências Exatas e da
Terra, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016. Disponível em:
<https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/21743>. Acesso em: 16 maio 2021.
105
392
DIAS, 2019, p.10.
393
DIAS, 2019, p.11.
106
“Fechar na terra os olhos”, “nunca mais ouvir a música sonora”, “os dois olhos
sem luz”... Esses enunciados, apresentados em um poema que recebeu o título de
Noite cruel – que podemos compreender como um eufemismo para a proximidade
da morte ou à morte em si –, constroem a ideia do momento da morte como algo
solitário e sombrio, o adeus “A tudo o que se ama, a tudo o que se adora”. Aos que
ficam, restariam as memórias e a saudade de quem se foi, enquanto aos que se vão
restaria o vazio, a dúvida, a ausência. Auta de Souza conhecia bem como era perder
um ente querido e ter que conviver com isso. Assim, a poetisa, por meio dessas
vivências e da sensibilidade que transparece em seus poemas e nos depoimentos
daqueles que a conheceram, demonstra uma compreensão, afeto e proximidade em
relação às perdas de outras pessoas narradas em seus versos. Há, portanto, uma
conexão entre espaço íntimo, ou interior, e o exterior, que entra em contato com a
394
SOUZA, 2009, p.33.
395
LOPES, 2016, p.104.
396
Idem.
397
SOUZA, 2008, p.216.
107
398
BACHELARD, 1993, p.205.
399
SOUZA, 2008, p.80.
400
SOUZA, 2001, p.37.
401
Os poemas de Auta de Souza que tratam sobre a morte são: Mater, Celeste, Desalento, Goivos,
Angelina, Ao Mar, Lídia, Mistério, Agonia do Coração, Um Sonho, Morta, Loli, À Memória de uma Ave,
A Morte de Helena, Nunca Mais, Dolores, Zirma, Melancolia, De Joelhos, Simples, Bendita,
Chorando, Ao Senhor do Bom Fim, No Jardim das Oliveiras, Palavras Tristes, Meu Pai, Quando eu
Morrer, Consolo Supremo, Eterna Dor, Jesus! Maria!, Clarisse, Saudade, Noite Cruel, Adeus, Gentil!,
Sylvio, Penas de Garça, Tudo Passa, Ao Pé do Túmulo, Lágrimas, Meu pai, Os Canários, Irineu,
Hoje, Dadá, Fio Partido, "À...", Reminiscência, Visita a um Túmulo, Meu Coração, Minha Mãe e No
Cemitério.
108
alcançada pela poetisa e ressaltada por todos os estudiosos de sua vida e obra,
como já apresentamos no início deste capítulo.
Fica então a dúvida: de que forma Auta de Souza constrói esse espaço afetivo,
essa conexão entre seu espaço íntimo e aquilo que vivenciou em seus
deslocamentos, suas viagens, suas peregrinações, ou seja, essa espacialidade
exterior? Para responder a essa questão, vamos observar alguns trechos de poemas
de Auta de Souza. Comecemos pela história de uma criança chamada Laura,
apresentada no poema que recebe o significativo título de Morta402:
No cetíneo caixãozinho,
Mais puro que as alvoradas,
Depuseram seu corpinho,
Entre as cambraias nevadas,
402
SOUZA, 2009, p.93.
403
SOUZA, 2009, p.63-64.
109
Em Zirma404, Auta de Souza nos conta a história da “[…] pobre Zirma, nívea
açucena”, provavelmente mais uma criança que a poetisa conheceu e que veio a
falecer, aspecto que podemos perceber quando a personagem é apresentada como
uma “Camélia branca murchada na haste”. A morte teria ocorrido em dezembro de
1896 ou 1897, uma vez que a poetisa registra o poema em “Nova Cruz – 1897” e
inicia escrevendo que “Foi em dezembro, no mês bendito,/ No mês de festa, que ela
partiu”. Por fim, “No esquife azúleo, feito a capricho,/ Por entre rosas de alvura
tanta,/ Deitaram Zirma como no nicho/ Guarda-se a imagem de alguma Santa”.
Já em Sylvio405, esse personagem nos é apresentado com a revelação de que
“Sylvio morreu. Docemente./ Su’alma se foi voando/ Como uma pomba dolente/ Que
deixa a terra cantando”. No entanto, Auta de Souza se refere nesse poema ao
sofrimento da mãe, nos versos que declaram: “Pobre mãe! Não chores tanto/ O filho
do coração”. Tal como em Sylvio, Dadá406 também apresenta o sofrimento de uma
mãe diante da morte de seu filho, pois “Aquela criancinha era o tesouro,/ O
imaculado encanto do seu lar./ Dadá o amava tanto que no mundo,/ Su’alma em
coisa alguma achava brilho./ Nada alterava aquele amor profundo:/ Só via o berço
onde sonhava o filho”. “Desde que o esposo para o Além se fora”, Dadá só tinha
olhos para seu filho Lauro e a ele dedicava todo o seu amor e cuidado, “Não
consentia que ele um só minuto/ Dos cuidados maternos se afastasse […]/ E se às
vezes a gárrula criança/ Disparava a correr jardim afora,/ Dadá pensava que sua
esperança/ Ia fugindo ou que morria a aurora”. Isso leva a poetisa a levantar a
questão “Se ele morresse, o que seria dela?”. O medo então se realiza, pois “Um
404
SOUZA, 2009, p.124-126.
405
SOUZA, 2009, p.190-191.
406
SOUZA, 2009, p.233-235.
110
dia, ao acordar, Lauro queixou-se/ De que o corpinho todo lhe doía. […]/ E ele
chorava que fazia pena […]/ Pálida a face como uma açucena”. Assim, “Antes do sol
pender sobre o horizonte/ O querubim cessava de existir […]/ Lauro morrera...
Branca flor pendida/ Caíra murcha num esquife aberto!”. Por fim, a poetisa revela
que Dadá teria enlouquecido diante da morte de seu filho querido, beijando, entre
soluços e risos, seu filho que já não mais vivia: “Ela bem vira quando carregavam/ O
meigo arcanjo dentro de um caixão.../ Almas cruéis! Do seio lhe arrancaram/ E com
ele também seu coração”.
Laura, Angelina, Zirma, Sylvio e Lauro não tiveram oportunidade de aproveitar
muito deste mundo, mas tiveram suas histórias e suas breves vidas eternizadas nos
versos de Auta de Souza. Essa recorrência do tema da morte, assim como da ideia
do céu como paraíso cristão e a associação da imagem das crianças com anjos, são
aspectos marcantes na obra de Auta de Souza, que em diferentes momentos
reacendem a discussão acerca da
407
LEÃO, 1986, p.45.
408
MUZART, Zahidé L. Entre quadrinhas e santinhos: a poesia da Auta de Souza. Travessia, n.23
(1991): Mulheres - Século XIX, p.149-153. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/travessia/article/view/17168>. Acesso em: 16 maio 2021.
409
MUZART, 1991, p.150.
111
Nalba de Souza Leão, por sua vez, “defendendo o caráter Simbolista da obra
de Auta, argumentava que era justamente o forte traço popular de sua obra […] que
a tornava uma poeta simbolista”410. Segundo Leão, “o exemplo de Auta de Souza é
típico, pois com o Horto ela ficou na alma do povo [...]”411. A razão disso estaria no
fato de que “[…] a Autora soube expressar os sentimentos característicos de nosso
povo: a saudade, a tristeza, a melancolia, a religiosidade, […] [assim como]
aproveitar as tradições populares e inseri-las no seu universo poético”412. Os poemas
de Auta de Souza contando a história de crianças falecidas, como as que
apresentamos anteriormente, são um exemplo dessa expressão dos sentimentos do
povo, desse contato com um universo exterior, que a poetisa pôde vivenciar em
grande parte graças aos seus deslocamentos, dessa inserção do exterior em seu
universo poético.
A partir desse olhar mais cuidadoso sobre a poesia de Auta de Souza e
colocando em evidência esses poemas que tratam da morte, podemos perceber
uma constante inconformidade com a perda de pessoas queridas – aspecto referido
na epígrafe deste capítulo –, uma reação natural “[…] de quem se percebe perdendo
pedaços queridos de seu ser”413. Auta de Souza procura retratar tal sentimento nas
atitudes da mãe de Angelina, que em meio à dor e agonia beija a face fria de sua
filha morta, ou da mãe de Sylvio, que se entrega à tristeza e ao choro infindáveis, ou
o caso extremo de Dadá, mãe do pequeno Lauro, que enlouquece diante da perda
de seu filho, passando a contemplar o céu dizendo “[…] que seu filho está na estrela
d’Alva”414. Esse modo de lidar com a morte apresentado tanto por Auta de Souza em
relação a seus familiares – discutido no capítulo anterior – quanto das mães que
lidam com a perda de seus filhos – retratadas nos versos da poetisa –, nos revela
“[...] um esforço de reconstrução de seu espaço interior e exterior com estes
pedaços de passado”415. Para Auta de Souza, o meio de reunir esses pedaços de
passado era a poesia, processo que realizou colocando lado a lado suas dores e as
dores da população de seu estado.
410
LEÃO apud GOMES, 2013, p.189.
411
LEÃO, 1986, p.277.
412
LEÃO, 1986, p.1.
413
ALBUQUERQUE JR., 2011, p.78.
414
SOUZA, 2009, p.235.
415
ALBUQUERQUE JR., 2011, p.148.
112
[...] até que ponto elas não seriam apenas resultado de fantasias
literárias masculinas, isto é, imagens de mulheres filtradas através do
olhar do escritor? Que estereótipos e que valores representam?416
416
DUARTE, Constância Lima. Reflexões acerca de mulher e literatura no Rio Grande do Norte. In:
______. Mulher e Literatura no Rio Grande do Norte. Natal: UFRN/CCHLA, 1994, p.5. (Coleção
Humanas Letras)
114
causa medo…/ Será a Morte, meu Deus? Mas é tão cedo!/ Deixai-me inda [sic]
viver”417. Ou quando pede, no poema Horto: “Jesus amado, reza comigo…/ Afasta a
noite, divino amigo!”418. Também em Jesus! Maria!, ao escrever que: “Jesus! Maria!
invocando/ Em vós o sol que alumia,/ Quero morrer soluçando:/ Jesus! Maria!”419. No
entanto, como alerta Ana Laudelina Gomes, a centralidade dada por praticamente
todos os críticos e biógrafos de Auta de Souza ao caráter religioso de sua poesia
acaba por incorrer em uma interpretação limitada da obra e também da vida da
poetisa, uma vez que a produção literária de Auta de Souza tem sido, de modo
geral, perspectivada por uma espécie de beatificação de suas realizações. Para boa
parte dos comentadores, ela teria vivido rumo à santificação, e seus poemas seriam
um reflexo direto desse comportamento pessoal de caráter religioso420. Essa aura de
santificação que é atribuída à obra de Auta de Souza e à sua vida é descrita por
Genilson Farias, ao dissertar que:
A partir de sua morte, como foi salientado por Ana Laudelina Gomes
(2000), tudo o que foi triste na vida de Auta repercutiu como uma
sombra que vem acompanhando boa parte da crítica de sua obra.
Nos escritos que se fizeram sobre ela, Auta foi alçada à condição de
mulher modelo, a boa moça, irmã exemplar, virgem-mártir, santa
sofredora que sentiu todo o medo da morte resignada, agarrada a um
terço mariano421.
417
SOUZA, 2001, p.159.
418
SOUZA, 2001, p.65.
419
SOUZA, 2001, p.188.
420
GOMES, 2013, p.27-28.
421
FARIAS, 2103, p.64.
115
santos católicos. Para o caso de Auta de Souza, o segmento religioso por ela
praticado, vivenciado e propagado foi a religião católica, tendo inicialmente
aprendido e herdado sua ligação com o catolicismo por meio de seus familiares.
Esse aspecto fica evidente logo ao atentarmos para o fato de que Auta de Souza e
seus irmãos foram batizados com nomes de santos católicos homenageados nos
dias em que nasceram: embora tenha nascido no dia 4 de março de 1873, Eloy
Castriciano de Souza herdou o nome do pai, que nasceu no dia 1° de dezembro de
1842, dia de Santo Eloy e São Castriciano422; em 28 de junho de 1875, dia de Santo
Irineu, nasceu Irineu Leão Rodrigues de Souza423; em 12 de setembro de 1876, dia
de Santa Auta, nasceu Auta de Souza424; e em 20 de outubro de 1877, dia de São
João Câncio, por sua vez, nasceu João Câncio Rodrigues de Souza425.
Auta de Souza teve uma formação profundamente religiosa tanto em meio à
sua família quanto em sua educação formal. Essa formação é ressaltada por
Câmara Cascudo e por Ana Laudelina Gomes, biógrafos da poetisa, ao
apresentarem que Auta de Souza era frequentadora constante da igreja, ajudando
as zeladoras na organização material do cerimonial e no ensino religioso junto aos
grupos de catequistas. Além disso, no dia da primeira comunhão dos alunos que
preparava, organizava uma homenagem em sua casa, servindo café e bolos para a
meninada426. Silvina de Paula Rodrigues – ou Dindinha –, avó de Auta de Souza,
também teve importante participação na formação religiosa dos netos. Embora
analfabeta, Dindinha teria sido a iniciadora dos netos na doutrina cristã,
recompensando a pequena Auta de Souza por seu progresso com bonecas e com
livros de histórias427. Analisando de forma atenta o que foi escrito sobre Silvina,
percebemos que a imagem construída acerca dela pelos seus netos, e também por
Cascudo, estava enquadrada “[...] dentro de um padrão de avó que se idealizava
naquele contexto: educadora, companheira e propagadora de valores, sobretudo
religiosos”428. Eloy de Souza escreveu que sua avó “Dindinha era uma criatura de
422
CASCUDO, 2008, p.40.
423
CASCUDO, 2008, p.46.
424
CASCUDO, 2008, p.46.
425
CASCUDO, 2008, p.51.
426
CASCUDO, 2008, p.62; GOMES, 2013, p.77.
427
GOMES, 2013, p.67.
428
FARIAS, 2013, p.94.
116
bondade infinita. [...] Era tranqüila [sic] e corajosa, o que lhe permitiu sofrer com
estóica resignação dores sem conta”429. Auta de Souza, por sua vez, descreveu sua
avó como santa no poema No Horto: “E, quando a tarde vier deixando/ Nos lábios
todos saudosos ais,/ E a pobre santa falar chorando:/ ‘A minha neta não volta
mais?’”430. Já em Minha Avó, Auta de Souza descreve Dindinha como Anjo bendito,
nos versos: “Minh’alma vai cantar, velhinha amada!/ Rio onde correm minhas
alegrias…/ Anjo bendito que me refugias/ Nas tuas asas contra a sina irada!”431.
Embora a velhice das mulheres, de uma forma geral, não se apresente enquanto um
material histórico digno de registro e notoriedade, as figuras de avós parecem
emergir sempre nos relatos autobiográficos. No coração dos descendentes, é quase
sempre a avó que sobrevive por mais tempo, que é lembrada como a testemunha
mais antiga, a ternura mais persistente432. Encontramos essas descrições e
sentimentos nos escritos dos netos de D. Dindinha.
A partir desses ideais em torno da figura feminina ao longo do século XIX no
Brasil, podemos observar que as mulheres eram ensinadas desde meninas a serem
mães e esposas, e sua educação estava centrada na formação doméstica: cozinhar,
costurar, cuidar da casa, dos filhos e do marido, sendo restringidas ao espaço
privado como seu único lugar, e sem contestar, pois seu espaço estava determinado
433
.
429
SOUZA, 2008, p.23-24.
430
SOUZA, 2009, p.44.
431
SOUZA, 2009, p.45.
432
PERROT, 2007, p.49.
433
OLIVEIRA, 2009, p.1.
434
OLIVEIRA, 2009, p.3.
117
435
SILVA, 2014, p.561.
436
CASCUDO, 2008, p.44.
437
FARIAS, 2013, p.94.
118
religião era mais a da oração e da caridade, caridade tão ativa que estava sempre
atenta em não afligir ou humilhar o próximo”438. Assim, percebemos que as crenças e
os ensinamentos de Dindinha estavam pautados pelas diretrizes das práticas de um
catolicismo popular em detrimento do catolicismo oficial, através da oração, da
caridade e da ajuda aos próximos e aos mais necessitados439. Para Cascudo, essa
prática de um catolicismo popular podia ser observada também em Auta de Souza
pela forma que “Iluminava a todos a luminosidade tranqüila [sic] de sua fé, profunda
e doce, tudo quanto Dindinha lhe ensinara. Não perdeu na vida uma só das jóias do
seu tesouro religioso”440. Essas “jóias de um tesouro religioso”, descrição construída
a partir da vida e dos comportamentos de uma mulher, denotam um caráter sexista
dessa mentalidade do século XIX – característica que, mesmo em nossos dias,
ainda é muito comum nos discursos acerca do que seria uma mulher ideal: o “anjo
do lar”441, como apresenta Ana Laudelina Gomes442. Esse ideal de mulher cristã
contrastava com a liberdade de aprender, escrever e de circular nos meios
intelectuais vivenciada por Auta de Souza, uma vez que:
438
SOUZA, 2008, p.27.
439
FARIAS, 2013, p.94-95.
440
CASCUDO, 2008, p.172.
441
Ana Laudelina Gomes caracteriza o que seria o anjo do lar a partir de uma citação da escritora
britânica Virginia Woolf (1882-1941): “Você pode não saber o que quero dizer com o Anjo do Lar... Ela
é intensamente compreensiva. É desmedidamente encantadora. Ela é absolutamente altruísta. Ela se
supera nas difíceis artes da vida familiar. Ela se sacrifica diariamente... Ela nunca tem um
pensamento ou um desejo próprio... E quando eu começo a escrever eu a encontro em minhas
primeiras palavras... Ela aparece por detrás de mim e murmura: Minha querida, você é uma jovem
mulher... Seja compreensiva; seja terna; agrade os outros; engane; use todas as artes e ardis de
nosso sexo. Nunca deixe ninguém perceber que você tem uma mente própria…” (WOOLF apud
TELLES, 1987, p.73).
442
GOMES, 2013, p.206-207.
443
GOMES, 2013, p.21.
119
para uma mulher. Afinal, devemos ter em conta que, em termos de aceitação, as
obras cujas temáticas não contribuíssem, no plano das ideias, para desestabilizar o
domínio patriarcal vigente ou, no mínimo, não se opusessem a ele444, eram não
apenas aceitas como também aclamadas pela crítica.
[...] alcançou uma intensidade de sentimento cristão que até hoje não
envelheceu [...]. Não se desprendera nem dos afetos nem dos
encantos terrenos. Vivia, isso sim, em plena angelitude. Tudo via sob
o véu de uma virgindade de alma absolutamente cândida e sensível
às mais delicadas sensações de alegria e de sofrimento, sobretudo
dessas últimas. [...] E toda se voltava, então, para Aquele que veio ao
mundo, como escreveu Claudel - “não para suprimir o sofrimento,
mas para sofrer conosco”. Auta de Souza sofria unida à Cruz do
Salvador447.
444
GOMES, 2013, p.207.
445
GOMES, 2013, p.25-26.
446
GOMES, 2013, p.287.
447
LIMA apud CASCUDO, 2008, p.159-160.
120
Jackson de Figueiredo, por sua vez, declarou que “Auta de Souza, [...] essa
indomável heroína cristã, que, mesmo quando ‘não vê o sol’, não desespera. Sabe
que a noite do cristão faz adivinhar outros sóis, milhares de sóis, postos ainda mais
altos pela mesma poderosa mão do Senhor”448. Além dos já citados, outros
intelectuais também idealizaram a vida e a obra de Auta de Souza após a sua morte,
utilizando de discursos marcados por uma devoção católica que ora a
representavam como mediadora entre as esferas divinas superiores e o plano
terrestre, ora a viam como uma devota a caminho da santificação449. A morte de Auta
de Souza suscitou a publicação de uma série de artigos em jornais e revistas que
louvaram a poetisa e sua obra unicamente a partir de uma perspectiva cristã.
Citaremos a seguir alguns trechos que demonstram essa visão sobre Auta de
Souza:
Imortal, o que descendo para o nada, sobe para a Glória, envolto nas
bênçãos da posteridade e aureolado desse brilhante diadema que
cintila na fronte dos gênios! Tal é o teu destino, cotovia mística das
rimas, que deixando a terra foste cantar nos céus!452.
Foi um Anjo que se fez Mártir para ensinar aos fracos o sublime
Evangelho da resignação!453.
448
FIGUEIREDO, 2012, p.29.
449
GOMES, 2013, p.24.
450
Diário de Natal, n° 1892, 8 de fevereiro de 1901 (LEÃO, 1986, p.160).
451
Auta de Souza (LEÃO, 1986, p.167).
452
Oasis, 16 de fevereiro de 1901 (LEÃO, 1986, p.170).
453
Glorificação, texto de Segundo Wanderley (LEÃO, 1986, p.194).
454
Phantasia da magua, texto de Ezequiel Wanderley (LEÃO, 1986, p.201-202).
121
Não temos como afirmar quais os motivos que levaram esses homens a
construírem uma imagem tão idealizada e imaculada acerca de Auta de Souza, mas
podemos nos questionar acerca das relações construídas em torno da produção de
uma figura feminina idealizada que pudesse ser propagada a partir dos ideais
atribuídos à poetisa. Nesse sentido, concordamos com Ana Laudelina Gomes, ao
apresentar que a tradição religiosa católica é utilizada como balizadora para toda
uma série de representações predominantes até hoje nas produções de caráter
biográfico sobre Auta de Souza, submetendo-a “[...] à condição de heroína cristã,
segundo a qual ela teria suportado a dor e sofrimento da qual foi vitimada com a
maior resignação justamente por entender que se tratava de desígnios de Deus”455.
Mas quais elementos são utilizados para a construção dessa idealização
católica em torno de Auta de Souza? Para respondermos a essa questão,
precisamos ressaltar que, em nossa perspectiva, existem dois espaços acerca da
vida e obra de Auta de Souza que permeiam essa discussão: um deles de caráter
interior, construído e expresso por Auta de Souza em sua obra, vivenciado e
poetizado por ela a partir de sua subjetividade, seu aprendizado e suas práticas no
meio católico; e outro de caráter exterior, produzido por muitos de seus
comentadores, críticos e biógrafos como forma de propagar a doutrina católica e um
ideal de mulher cristã. Quanto ao primeiro espaço, de caráter interior, ressaltamos a
particularização do “[...] local onde os cristãos acreditam que Jesus teria padecido
em tormento”456: o Horto das Oliveiras. Nos versos do poema intitulado No Horto,
Auta de Souza escreve: “Jesus amado, reza comigo…/ Afasta a noite, divino amigo!/
Eu disse... e as sombras se dissiparam./ Jesus descia sobre o meu Horto.../ Estrelas
lindas no céu brilharam,/ Voltou-me o riso, já quase morto”457.
455
GOMES, 2013, p.24-25.
456
GOMES, 2013, p.258.
457
SOUZA, 2009, p.41.
458
LEÃO, 1986, p.55.
122
459
FIGUEIREDO, 2012, p.51.
460
LEÃO, 1986, p.66.
461
FIGUEIREDO, 2012, p.12-13.
462
SOUZA, 2009, p.35.
463
GOMES, 2013, p.152.
123
prefácio escrito pelo poeta Olavo Bilac para o Horto. Em seu prefácio, Bilac defende
que “[...] a nota mais encantadora do livro é a do misticismo”464. Cascudo, em sua
biografia sobre Auta de Souza, descreveu a repercussão do comentário de Bilac à
obra da poetisa da seguinte forma:
464
SOUZA, 2009, p.30.
465
CASCUDO, 2008, p.28.
466
CASCUDO, 2008, p.118.
467
CASCUDO, 2008, p.28.
468
SOUZA, 2008, p.34.
469
SOUZA, 2008, p.138.
124
mestrado, Nalba Leão pergunta a Câmara Cascudo se Auta de Souza seria ou não
uma poetisa mística. Cascudo responde que: “[...] a minha geração de Natal
recebera Auta como poetisa mística. Mas todos estavam enganados. [...] Auta não é
mística. Ela é, sim, uma mensageira da sensibilidade feminina na poesia brasileira e,
ainda, uma poetisa profundamente religiosa”470. Embora, na entrevista concedida a
Nalba Leão, Cascudo não se inclua entre aqueles que “estavam enganados” –
diferentemente do que afirmou em sua biografia sobre Auta de Souza, ao escrever
que “Estávamos todos enganados. Eles e nós”471 –, o que se mostra de grande
relevância para nós em meio a essas discordâncias são as disputas em torno da
construção de um discurso predominante sobre Auta de Souza. “Cada qual com seu
saber, cada qual com seu poder no mundo das ideias, cada um tecendo sua
construção biográfica da poeta”472.
Mas o que vem a ser esse misticismo atribuído a Auta de Souza? O misticismo,
segundo o pensamento cristão, “[...] seria a experiência imediata de comunicação
com o divino, ou o treinamento para que fosse realizada, através de um itinerário
gradual de ascese que culminaria numa unificação com Deus, divinizando o sujeito
ou libertando-o do mal”473. Essa identificação com o misticismo atribuída a Auta de
Souza acabou estendendo-se a toda a vida e obra da poetisa, o que aparentemente
limitou, ou poderíamos dizer que até impediu, que os seus poemas fossem lidos,
pensados, pesquisados e estudados sob outras perspectivas. Podemos observar
essa construção de uma Auta de Souza mística, ou puramente religiosa, a partir dos
depoimentos de uma série de homens que procuraram apresentar a poetisa sob os
seguintes aspectos:
470
LEÃO, 1986, p.283-284.
471
CASCUDO, 2008, p.28.
472
GOMES, 2013, p.35.
473
GOMES, 2013, p.223.
474
CASCUDO, 2008, p.84.
125
475
Oração - proferida por Pedro Avelino à beira do túmulo da laureada poetisa Auta de Souza (LEÃO,
1986, p.187).
476
Em busca do além, texto de José Pinto (LEÃO, 1986, p.188).
477
FIGUEIREDO, 2012, p.62.
478
GOMES, 2013, p.231.
126
Ao que sabemos, “No final do século XIX, quando Auta de Souza começou a
escrever, ainda persistia na cultura ocidental a noção de que a mulher autora,
escritora, era coisa vergonhosa”480. Por que, então, Auta de Souza pôde ingressar na
vida intelectual e literária sem sofrer qualquer represália por isso, sendo inclusive
incentivada por seus familiares e aclamada pela crítica? Ana Laudelina Gomes
apresentou informações de grande relevância acerca de uma domesticação e
integração da figura de Auta de Souza ao ideário de feminilidade associado ao anjo
do lar481, discurso produzido pelos críticos da obra da poetisa. Como apresenta
Genilson Farias:
479
CASCUDO, 2008, p.121.
480
GOMES, 2013, p.206.
481
GOMES, 2013, p.217.
482
FARIAS, 2013, p.55.
483
Auta de Souza, texto publicado em jornal de 8 de fevereiro de 1901 (LEÃO, 1986, p.158).
127
[...] subir assim, pode não ser de gênio, mas é, por certo, de uma
alma santa488.
484
Homenagem, texto de Pedro Nascimento, do Grêmio Tobias Barreto (LEÃO, 1986, p.195).
485
Homenagem, texto de Pedro Nascimento, do Grêmio Tobias Barreto (LEÃO, 1986, p.196).
486
Nota, texto de Henrique Castriciano para a segunda edição do Horto, 4 de agosto de 1910
(SOUZA, 2009, p.35).
487
CASCUDO, 2008, p.21.
488
VICTOR apud GOMES, 2013, p.173.
128
escritos para amigas e para aquelas que perderam seus filhos”489. Essa forma de
encarar e representar Auta de Souza e sua obra revela uma crença de que “É divina
a missão da mulher: nos plantar a fé na alma e a virtude no coração. É o primeiro
livro santo que o menino estuda, nos conselhos de sua mãe, bebe a moral de Deus,
os princípios da religião”490. Sob esta ótica, uma vez que Auta de Souza não poderia
seguir o caminho que era destinado às mulheres de seu tempo, de casar e tornar-se
esposa e mãe – em razão de seus problemas de saúde e do controle exercido por
sua avó e seus irmãos –, restou-lhe abraçar a devoção religiosa491 e, tornando-se
santa, cuidar de todos/as aqueles/as que lhe fossem devotos por toda a eternidade.
Contudo, “Entre as religiões e as mulheres, as relações têm sido, sempre e em
toda parte, ambivalentes e paradoxais. Isso porque as religiões são, ao mesmo
tempo, poder sobre as mulheres e poder das mulheres”492. Desse modo,
entendemos que a religião se apresentava para muitas mulheres do século XIX
como um espaço de libertação, no qual poderiam almejar e construir um futuro que
não seguisse estritamente o paradigma da esposa e mãe de família restritas ao lar.
A formação em instituições de ensino católicas apresentava suas restrições, como a
vivência enclausurada, a disciplina rígida, a valorização do silêncio, da sujeição e da
virgindade. No entanto, essas mesmas instituições de ensino foram também
espaços onde “[...] as mulheres fizeram a base de um contra-poder e de uma
sociabilidade. A piedade, a devoção, era, para elas, um dever, mas também
compensação e prazer”493. A educação formal de Auta de Souza também possuiu
um caráter religioso, tendo a poetisa estudado no Colégio São Vicente de Paulo,
então dirigido pela Irmã Savignol, do grupo de professoras francesas da
Congregação Vicentina, instalado no bairro da Estância, no Recife494. Podemos
perceber essa convivência e sociabilidade de Auta de Souza não apenas na
formação religiosa de crianças que realizou em Macaíba, mas também na saudade
expressa pela poetisa em relação às “[...] almas formosas e santas que me
489
GOMES, 2013, p.173.
490
BASTOS apud SILVA, 2014, p.557.
491
GOMES, 2013, p.287-288.
492
PERROT, 2007, p.83.
493
PERROT, 2007, p.84.
494
GOMES, 2013, p.68.
129
495
SOUZA, 2009, p.27.
496
CASCUDO, 2008, p.58.
497
OLIVEIRA, 2009, p.2.
498
GOMES, 2013, p.22.
499
CASCUDO, 2006, p.56.
130
contrário, ajudaria a desfazer um pouco sua imagem somente de boa moça, na qual
todas as ‘moças de bem’ deveriam se espelhar” 500.
Compreendemos, desse modo, que foram os discursos produzidos acerca da
poetisa, principalmente após a sua morte, que construíram uma Auta de Souza
santificada, atribuindo um caráter hagiográfico à sua história de vida e a tudo que ela
realizou e produziu, com o intuito de alçá-la a uma condição de mulher modelo. No
entanto, para que esses ideais fossem efetivados, foi preciso que algumas
subalternidades fossem deixadas de lado, sublimadas, esquecidas501. Mas quais
seriam essas “subalternidades”, ainda mais em uma figura tão querida e aclamada
quanto Auta de Souza? Vejamos alguns trechos que podem nos apresentar alguns
pontos de discussão importantes acerca desse assunto:
Nessa lógica, Auta de Souza “tinha contra si” o fato de ser mulher, negra e
tísica – portadora da tuberculose. Quanto à questão de Auta de Souza ser
“desprovida de beleza física” ou “feiosa”, entendemos que se trata de um ponto de
vista pessoal. No entanto, tal como Ana Laudelina Gomes comenta acerca de alguns
aspectos apresentados por críticos da obra de Auta de Souza, nos questionamos se
semelhantes observações seriam usadas em relação a um homem504.
Aparentemente a aparência física está sempre em questão em tudo o que as
500
GOMES, 2013, p.30.
501
FARIAS, 2013, p.120.
502
GURGEL, 2003, p.13.
503
GURGEL, 2001, p.46.
504
GOMES, 2013, p.157-158.
131
mulheres realizam, mesmo que este aspecto nada tenha a ver com a carreira que
elas escolheram realizar. Percebemos que a questão do gênero – ou seja, o fato de
Auta de Souza “ser mulher, num meio tipicamente patriarcal, portanto dominado
pelos machos”505 – acabou fazendo com que a poetisa tenha sido idealizada
enquanto um modelo de mulher pautado pelos preceitos cristãos, imagem que tem
atribuído a ela o caráter de uma santa. Mas e a questão racial em torno de Auta de
Souza? Esse aspecto foi discutido pelo cientista social Genilson de Azevedo Farias
em sua dissertação de mestrado, intitulada Auta de Souza, a poeta de “pele clara,
um moreno doce” (2013). Nesse trabalho, Genilson Farias apresenta uma Auta de
Souza intelectual e afrodescendente que, tal qual outras escritoras que tinham esta
mesma condição, teve que romper barreiras de raça e gênero para poder se fazer
presente no espaço da escrita literária506. Segundo Genilson Farias,
505
GURGEL, 2003, p.13.
506
FARIAS, 2013, p.28.
507
FARIAS, 2013, p.18.
508
CASCUDO, 2008, p.180.
509
CASCUDO, 2008, p.180.
132
510
CASCUDO, 2008, p.179-180.
511
CASCUDO, 2008, p.180.
512
LEÃO, 1986, p.77.
513
LEÃO, 1986, p.77-78.
514
Ibidem.
515
FARIAS, 2013, p.64.
133
A própria Auta de Souza – que, embora fosse mulher e negra, pertencia a uma
família possuidora de poder aquisitivo e prestígio na sociedade norte-rio-grandense
– só pôde cursar três anos de uma educação formal, tendo que abandonar os
estudos após ser diagnosticada, no ano de 1890, com os primeiros sinais do que
viria a ser a tuberculose520. No entanto, as motivações acerca da retirada de Auta de
Souza do colégio não estariam somente na saúde da jovem, mas também no convite
516
HOOKS apud XAVIER, 2020, p.23.
517
GOMES, 2013, p.118.
518
GOMES, 2013, p.126.
519
OLIVEIRA, 2020, p.76.
520
CASCUDO, 2008, p.59.
134
feito por Pedro Velho de Albuquerque Maranhão ao irmão mais velho da poetisa,
Eloy de Souza, que, segundo o próprio apresenta em suas Memórias, disse-lhe:
“‘Liquida este bacharelado e dize à velhinha tua avó que se mude para o Rio Grande
do Norte, onde preciso de teus serviços’. Pouco tempo depois fixamos residência em
Macaíba”521. A confluência desses acontecimentos – apontada por Ana Laudelina
Gomes522 e Genilson Farias523 – acabaram por fazer com que a família deixasse o
Recife e retornasse ao Rio Grande do Norte, ao município de Macaíba, terra natal da
família Castriciano de Souza. Enquanto isso, a jovem Auta de Souza, aos 14 anos
de idade, teve que continuar “[...] aprimorando sua formação intelectual sozinha,
tornando-se uma autodidata”524. Nesse sentido, percebemos que “[...] grande parte
dos intelectuais negros [...] foram autodidatas e conseguiram se alfabetizar em
situações ímpares e como tal conseguiram a muito custo ascender socialmente”525.
A família de Auta de Souza conseguiu ascender no meio econômico e social do
município de Macaíba, em meados do século XIX, acontecimento que permitiu aos
filhos de Eloy de Souza e Henriqueta Leopoldina alcançarem posições de destaque
na vida intelectual e política do estado, entre o final do século XIX e início do século
XX. Assim, o fato de a família Castriciano de Souza estar composta por indivíduos
mestiços também deve ser enfatizado, uma vez que tiveram que formar uma
imagem de si para poderem ser aceitos nos espaços por onde circulavam. Esses
espaços eram os mesmos onde outras famílias brancas de seu ciclo social, político e
intelectual também atuavam526.
Auta de Souza estava, portanto, inserida em um espaço que poderia lhe ser
impedido não apenas por seu gênero, como também por sua raça. No entanto,
percebemos que a receptividade em relação à poetisa era significativamente
positiva, estando ela incluída entre os escritores constituintes do Grêmio Literário Le
Monde Marche527, do Congresso Literário do jornal A Tribuna528 e do Grêmio
521
SOUZA, 2008, p.337.
522
GOMES, 2013, p.74.
523
FARIAS, 2013, p.58-59.
524
GOMES, 2013, p.130.
525
GILROY apud FARIAS, 2013, p.60.
526
FARIAS, 2013, p.78.
527
CASCUDO, 2008, p.88.
528
CASCUDO, 2008, p.88.
135
529
GOMES, 2013, p.87.
530
GOMES, 2013, p.93.
531
XAVIER, 2020, p.16.
532
ALVES, 2020, p.23.
136
Devemos ter em mente que o fato de Auta de Souza não ser até hoje
identificada enquanto negra está ligado a uma estratégia discursiva produzida por
uma série de intelectuais que, como temos ressaltado ao longo deste capítulo,
procuraram construir uma narrativa sobre a poetisa com o intuito de propagar um
ideal cristão de mulher. Isso nos faz perceber que houve de fato um silenciamento
acerca das origens afrodescendentes de Auta de Souza, silenciamento este que se
perpetuou no imaginário social do Rio Grande do Norte534. Até hoje é difícil encontrar
qualquer referência ao fato de Auta de Souza ser negra, e um exemplo significativo
disso são as imagens de Auta de Souza divulgadas em meios de comunicação.
Vejamos algumas dessas imagens para ilustrar o que estamos falando:
533
FARIAS, 2013, p.52.
534
FARIAS, 2013, 171.
137
Imagem 3 - Imagem de Auta de Souza divulgada pela Federação Espírita Brasileira 535.
535
FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA. Efeméride: Desencarnação de Auta de Souza. Disponível
em: <https://www.febnet.org.br/blog/geral/noticias/efemeride-desencarnacao-de-auta-de-souza/>.
Acesso em: 18 jul. 2021.
536
ESPIRITISMO BRASIL. Biografia de Auta de Souza. Disponível em:
<https://www.espiritismobrasil.com/biografia-de-auta-de-souza/>. Acesso em: 18 jul. 2021.
138
Imagem 5 - Imagem de Auta de Souza presente no livro Horto: cem anos de poesia,
publicado pela Editora Auta de Souza no ano de 2000 537.
537
MIRANDA, Antônio. Auta de Souza (1876-1901). Disponível em:
<http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/rio_grande_norte/auta_de_souza.html>. Acesso
em: 18 jul. 2021.
538
FARIAS, 2013, p.153.
539
CASCUDO, 2008, p.65.
139
que eram peculiares a Auta de Souza e seus familiares, vão sendo esmaecidos nas
imagens produzidas e divulgadas acerca da poetisa540. Contudo, as fotografias
existentes mostram uma Auta de Souza muito diferente:
540
FARIAS, 2013, p.153.
541
CASCUDO, 2008, p.15.
140
Imagem 7 - Auta de Souza e João Câncio, o seu irmão mais novo, a quem dedicou Caminho
do Sertão542.
542
CASCUDO, 2008, p.81.
543
FARIAS, 2013, p.27.
141
544
CARNEIRO apud EVARISTO, 2005, p.54.
545
SANSONE apud FARIAS, 2013, p.54.
546
FARIAS, 2013, p.49.
547
PALMEIRA, 2009, p.133.
142
548
FARIAS, 2013, p.76.
549
CASCUDO, 2008, p.63; p.110; p.168.
550
CASCUDO, 2008, p.51.
551
CASCUDO, 2008, p.54.
552
CASCUDO, 2008, p.180.
553
LIMA apud FARIAS, 2013, p.78.
554
GURGEL, 2001, p. 327.
143
história do nosso estado. Genilson Farias, porém, chama a atenção para o fato de
que
[...] já há algum tempo, que gira uma discussão nos círculos literários
do país, mais ou menos trinta anos, sobre a questão da escrita de
Auta não poder ser identificada como sendo de matriz
afrodescendente, fato que leva alguns críticos a terem reservas em
inseri-la enquanto uma escritora negra ou uma escritora
afro-brasileira. O motivo dessa exclusão do cânone é o fato de Auta
não fazer referência a assuntos ou personagens negros, nem se
colocar abertamente como negra em seus escritos, tal como
pressupõem alguns críticos literários555 (FARIAS, 2013, p.128-129).
555
FARIAS, 2013, p.128-129.
556
LITERAFRO. Oswaldo de Camargo. Disponível em:
<http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/360-oswaldo-de-camargo>. Acesso em: 24 jul. 2021
557
CAMARGO apud FARIAS, 2013, p.129-130.
558
GOMES, 2013, p.120.
144
militar então pela negritude se tornava ainda mais complicado”559. Porém, até mesmo
nesse ponto observamos que Auta de Souza soube utilizar-se dos ideais de sua
época para expressar sua vivência e seus pensamentos, ou seja, seu espaço
interior. Nesse sentido, percebemos que a palavra “morena” está presente em oito
dos poemas de Auta de Souza560, sendo um deles significativamente intitulado
apenas como Morena561, o qual transcrevemos na íntegra:
Morena
(À moça mais bonita de minha terra)
Ó moça faceira,
Dos olhos escuros,
Tão lindos, tão puros,
Qual noite fagueira!
Criança morena,
Teus olhos rasgados
São céus estrelados
Em noite serena!
E eu vivo adorando,
Meu anjo formoso,
O brilho radioso
Que vão derramando,
Em chamas serenas,
Tão mansas e puras,
Teus olhos escuros,
Ó flor das morenas!
559
SANSONE apud FARIAS, 2013, p.130.
560
Os oito poemas de Auta de Souza (2009) que apresentam a palavra “morena” são: Num Leque
(p.71), Morena (p.79), Versos Ligeiros (p.84-85), As Mãos de Clarisse (p.99), Crianças (p.145-148),
Palavras Tristes (p.149-150), Soledade (p.176-177) e Penas de Garça (p.199-204).
561
SOUZA, 2009, p.79.
145
562
SOUZA, 2009, p.149.
563
Morta!, poema escrito por Anna Lima com dedicatória a Auta de Souza em razão do falecimento
desta, datada de 7 de fevereiro de 1901 (LEÃO, 1986, p.171).
146
reconhecimento de uma mulher que tinha consciência de que este espaço poderia
lhe ser impedido, não apenas por seu gênero, como também por sua raça, mas que
soube utilizar de seu lugar social – uma vez que pertencia a uma família
proeminente no Rio Grande do Norte oitocentista – e da influência que lhe era
proporcionada por seus irmãos Eloy de Souza e Henrique Castriciano para participar
de grupos literários e publicar seus escritos em jornais e revistas de circulação local
e nacional, assim como publicar seu livro Horto. A presença de Auta de Souza entre
os escritores contribuintes do Grêmio Literário Le Monde Marche564, do Congresso
Literário do jornal A Tribuna565 e do Grêmio Polimático da Revista do Rio Grande do
Norte566 demonstram o prestígio alcançado pela poetisa “em função de sua inserção
social numa elite intelectual”567. No entanto, a lista de membros do Grêmio
Polimático nos dá uma ideia de como era rara a presença de mulheres no universo
literário do Rio Grande do Norte:
564
CASCUDO, 2008, p.88.
565
CASCUDO, 2008, p.88.
566
GOMES, 2013, p.87.
567
GOMES, 2013, p.211.
147
Imagem 9 - Lista de membros do Grêmio Polimático, grupo literário do qual Auta de Souza
era sócia efetiva, sendo a única mulher do grupo568.
568
LEÃO, 1986, p.243.
569
GOMES, 2013, p.93.
148
570
OLIVEIRA, 2020, p.115.
571
CASCUDO, 2008, p.121.
149
CONSIDERAÇÕES FINAIS
572
GOMES, 2013, p.98-105.
573
SOUZA, 2008, p.80.
151
574
FARIAS, 2013, p.167.
575
SOUZA, 2009, p.25.
154
FONTES
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EDUFRN, 2008. (Coleção Câmara Cascudo: Memória e Biografias).
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