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DIÁRIO DE LEITURA

Mês de setembro de 2020


David Ferreira Severo

GADOTTI, M. (Org.). Paulo Freire: uma biobibliografia. São Paulo:


Cortez, 1996.

06/09/_______________
Caro diário,
Em minhas mãos chega essa obra magnífica: “Paulo Freire: uma
biobibliografia”… Já pelo título, sugere-se um verdadeiro compêndio sobre a vida e
as ideias desse que é, provavelmente, o maior pensador da filosofia da educação na
contemporaneidade. O volume consta com mais de 700 páginas! Para a nossa sorte,
foi-nos incumpida a missão de ler apenas a primeira parte, aquela que apresenta a
biografia do autor, dividida em quatro textos de diferentes autores. A propósito, dei
uma rápida olhada, na internet, e vi que o livro custa entre 65,00 e 180,00, o que
considero um pouco caro, não pelo valor cultural da obra, mas pelos padrões
brasileiro de livros. Mas graças ao Instituto Paulo Freire, a obra pode ser baixada
gratuitamente pela internet.
A primeira parte do livro intitula-se “Prológo biográfico a quatro vozes”, ou
seja, quatro estudiosos diferentes escrevem sobre a biografia de Paulo Freire em
quatro capítulos separados, sendo o primeiro texto assinado por Ana Maria Araújo
Freire que traz como título “A voz da esposa: a trajetória de Paulo Freire”.
É uma biografia escrita por sua esposa, o que nos indica o tom afetivo que o
texto carregará, justificado pelo carinho que a mulher sente pelo seu marido. Eu
também tenho um apreço especial por Paulo Freire e, por causa de várias razões: ele é
nordestino, assim como eu (mas sou de Alagoas e Paulo Freire é de Pernambuco);
tive um primeiro contato com Paulo Freire ainda na graduação em Letras, lá pelos
idos de 2007, mas foi um contato rápido, situado em alguma disciplina pedagógica do
curso. Se minha memória não falha, devo ter lido a “Pedagogia da autonomia”. Mas o
interesse maior em estudar detidamente a obra desse educador, remonta o ano de
2018, quando o nome de Paulo Freire ganhou espaço na mídia, principalmente por
uma militância de extrema-direita que atribuía ao educador, o fracasso da educação
em nosso país. Evidentemente vários estudiosos e políticos, admiradores de Freire,
saíram em sua defesa. Enfim, decidi então investigar o que há de tão subversiva na
pedagogia crítica que Freire desenvolveu e acredito que seja interessante começar
também por sua biografia, pois conhecendo um autor e o momento histórico em que
se desenvolveu a suas ideias, é possível fugir dos riscos da leitura apressada e mesmo
de anacronismos injustos…
… Das páginas que li neste dia, descobri algumas coisas interessantes que
dividirei com o leitor (no caso, eu mesmo rsrs). Para esclarecer, Ana Maria (a Nita,
como é conhecida) casou-se com Paulo Freire após a morte da primeira mulher do
autor, Elza Maia Costa Freire, ocorrida em 1986. O casamento ocorreu após quase
dois anos de ele ter ficado viúvo.
Bem, feito esses esclarecimentos iniciais, relato que achei interessante a forma
organizada com a qual Ana Maria Freire escreve sobre Paulo Freire, seguindo a
ordem cronológica dos fatos, a autora descreve minuciosamente a infância, a
adolescência e as primeiras experiências profissionais de Paulo Freire. Descreve
ainda, o nascimento de Freire em 1921, as alegrias e tristezas pelas quais ele passou
no Recife, sobretudo, com a morte precoce de seu pai, quando o menino ainda tinha
apenas 13 anos. A família passou por muitas dificuldades financeiras depois disso. A
mãe de Paulo Freire teve de trabalhar muito, e sozinha, para sustentar os quatro
filhos. É impossível eu não fazer uma relação com a minha própria vivência:
abandonada por meu pai, quando eu tinha uns sete anos de idade, a minha mãe
também teve de trabalhar sozinha para sustentar a mim e a meus quatro irmãos.
Foram anos de muitas dificuldades financeiras, então, imagino os dilemas que a
família Freire teve de suportar no início do século XX, quando as condições
históricas eram ainda piores do que na minha época, provavelmente.
Apesar das dificuldades, Paulo Freire conseguiu prosseguir nos estudos
secundários e fazer a faculdade de Direito, embora não tendo exercido a profissão, ele
foi admitido como professor de filosofia da educação na Universidade do Recife, em
1961. Antes, ele já tinha trabalhado como professor de Língua portuguesa e depois
trabalhou por uma década no SESI como professor e diretor, o que o aproximou da
educação para a classe trabalhadora.

07/09/_______________
Hoje é uma segunda-feira, dia da independência política do Brasil ocorrida em
1822, segundo nos relata os historiadores. O fato é que ainda não conseguimos
conquistar verdadeiramente a nossa independência, porque ainda é preciso
democratizar a riqueza em busca de igualdade de bens essenciais para a subsistência
do povo brasileiro.
Ora, foi exatamente em busca desses ideiais que Paulo Freire sistematizou uma
metodologia de ensino que buscava a conscienntização das pessoas por meio da
alfabetização, numa época (entre as décadas de 1950 e 1960) em que quase metade da
população brasileira ainda não sabia ler e nem escrever, de modo que elas eram
proibidas de participar das decisões políticas da nação, por meio do voto nas eleições,
por exemplo.
Esse é o cenário que Ana Maria Araújo Freire descreve na continuação da
biografia sobre Paulo Freire no tópico “O ‘Metodo Paulo Freire’” (p. 37-48). Lendo
essas páginas hoje tive a leve sensação de que o Brasil teria sido outro se o Programa
Nacional de Alfabetização proposto por Freire, em 1964, tivesse sido implantado no
Brasil. Não que eu acredite num milagre que certas campanhas de alfabetização
possam provocar, mas porque a ausência desse tipo de projeto representa uns degraus
atrás de um país que busca a autonomia de seu povo. Uma sociedade com a
capacidade de pensamento crítico diante da realidade, dificilmente se deixa alienar
facilmente, seja por ideologia de direita, seja por ideologia de esquerda.
O método de ensino que Paulo Freire desenvolveu teve o mérito de, naquele
contexto histórico, adequar o interesse em aprender a ler e a escrever a partir da
necessidade e curiosidade do/a próprio/a educando/a. As palavras geradoras usadas na
aprendizagem da língua foram selecionadas da comunidade onde a experiênca fora
feita. Além do processo de codificar e decodificar as palavras, Freire sempre
antecipava uma reflexão em torno dessas palavras. A oralidade dos/as educandos/as
era valorizada, bem como o trabalho que eles desenvolviam em seu dia a dia. Aliás
uma das primeiras palavras usadas nos círculos de cultura foi justamente a palavra
TRABALHO, inserida na representação de uma situação concreta: homens
trabalhando numa construção (p. 38-39).
Eu acredito que o ensino que se aproxima da realidade dos/as educandos/as,
levando em consideração as suas necessidades e experiências, tende a ser mais
interessante, uma vez que as prátcas de leitura e escrita não ficam desvinculadas do
mundo concreto. Afinal para que aprendemos a linguagem, senão para realizarmos
uma intervenção no mundo? Desse modo, a escola e vida precisam se interligar
intimamente.

08/09/_______________
Hoje é mais um dia de leitura da biografia de Paulo Freire, produzida por Ana
Maria Freire, esposa do autor. Das páginas 48 a 58, a biógrafa descreve a repercussão
da obra de Paulo Freire no Brasil e no mundo. É de impressionar a quantidade de
livros que Paulo Freire escreveu. Sozinho, ele deve ter produzido mais de 15 obras,
além de outras tantas que foram publicadas em parceria com outros intelectuais.
Soma-se a esse volume, os artigos publicados, as entrevistas concedidas e as
conferências ministradas em várias partes do mundo. Para se ter uma noção da
contribuição do pensamento pedagógico de Freire para a ciência, o livro “Pedagogia
do oprimido” foi traduzido para quase vinte línguas.
Além disso, ele recebeu várias homenagens ao longo de sua vida, bem como o
título de doutor honoris causas, em universidades em quase toda a America Latina,
Europa e em alguns países da África, Índia e Oceania. Várias instituições, escolas e
ruas adotaram o nome de Paulo Freire, de modo que é inegável o valor positivo que
ele representa.
Mas há uma homenagem especial que Paulo Freire sentia muito orgulho,
segundo Ana Maria Freire. Trata-se de uma escultura, esculpida em pedra numa
praça, feita pela artista sueca Pye Engstron em 1972, na Suécia, colocando Paulo
Freire ao lado de Pablo Neruda, Angela Davis, Mao Tsé-Tung e mais três intelectuais
daquele país, que contribuíram na luta contra a opressão dos povos. “Em forma de
banco em uma pequena praça no bairro de Västertorp, em Estocolmo, Freire
permanece aberto e coberto pelo frio do Norte a quem queira nele sentar-se” (p. 53).
Não está na biografia, mas é preciso mencionar que em 2012, o Congresso
Nacional brasileiro, muito acertadamente, escolheu Paulo Freire como o patrono da
educação, pelo seu trabalho em favor da alfabetização e da escola pública. É verdade
que o governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro tentou retirar, quando assumiu o
poder em 2019, o reconhecimento concedido a Freire, mas sem sucesso.
09/09/_______________
O mundo, provavelmente, acorda hoje consternado: o presidente dos E.U.A.
será indicado ao Prêmio Nobel da Paz. É o típo de notícia que até parece piada
malfeita, considerando a figura que este senhor representa na política atual. Para
quem não conhece Trump, é só olhar para o que temos debaixo de nosso nariz
(Bolsonaro), multiplicar por dois e teremos o tamanho da hipocrisia, intolerância,
xenofobia, machismo, dentre outros adjetivos que escapam à memória. Mas pensando
bem é melhor não dar valor à indicação, considerando que qualquer um pode ser
indicado ao prêmio, sem muito critério, como foi o caso de Hitler, antes da Segunda
Guerra Mundial.
Eu só evoquei este fato, porque, ao ler hoje a biografia de Paulo Freire, vi que
ele também foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz em 1993. Mas nesse caso, a
indicação pareceu justa, uma vez que o brasileiro despendeu esforço e dedicação a
uma causa tão importante como a educação, no Brasil e no mundo.
Eis então as últimas páginas da biografia sobre Paulo Freire, escrita por sua
própria esposa, a pesquisadora Ana Maria Araújo Freire, também chamada
carinhosamente de Nita. Aqui vamos conhecer um pouco mais sobre o escritor e o ser
humano Paulo Freire. A biógrafa relata como se dá o processo de produção escrita de
Paulo Freire, exemplicando a partir dos seus últimos quatro livros: “Pedagogia da
esperança”, “À sombra da mangueira”, “Professora sim, tia não: cartas a quem ousa
ensinar” e “Cartas a Cristina”. Esses livros em conjunto mostram, segundo Ana Maria
Araújo, um Paulo Freire mais preocupado com os temas atuais de busca por
igualdades de direitos entre homens e mulheres, o respeito a pessoas de todas as
raças, regiões, gêneros e orientações sexuais, ou seja, contra a toda forma de
discriminação. Fiquei bastante interessado em conhecer essas obras e já as colocarei
na minha lista de desejos…
Ao apresentar Paulo Freire, Ana Maria descreve um humanista comprometido
com as pessoas mais simples que lutava constantemente por um mundo mais
democrático, em que houvesse menos desigualdades social. Aliás, essas são as
utopias que nós cidadãos do século XXI tanto almejamos ainda. Apesar disso, Ana
Maria de Araújo Freire, como esposa que conhece bem o seu marido, apresenta um
homem também frágil, sonhador, temeroso. Há várias curiosidades que ela descreve
na biografia, como por exemplo: o medo de andar de avião, o desejo de ganhar uma
bola de couro, a vontade de andar de bicicleta, frustações que ele sempre teve, pois os
tempos de pobreza nunca permitiram realizar essas simples conquistas. Além disso,
ela menciona o vício que Freire tinha por cigarro, que trouxe consequências graves a
sua saúde, e o desejo de ter sido cantor, dentre outras curiosidades que só quem
convive juntos pode saber.

15/09/_______________
Vamos adentrar, caro diário, na segunda biografia do livro intitulada “A voz do
biógrafo brasileiro: a prática à altura do sonho”, escrita pelo próprio organizador da
obra, Gadotti, que, como sabemos por meio da leitura, foi amigo de Paulo Freire
desde a deácada de 1970.
Nesta biografia, Gadotti se detém na análise específica do Método Paulo Freire
que, para o autor, seria mais adequado denominá-lo de Teoria do conhecimento ou
Filosofia da educação, uma vez o seu pensamento pedagógico não é simplesmente
um sistema de método que deveria ser aplicado em diversos contextos de
alfabetização, como se um manual de uso, mas era guiado pelo pensamento prático.
A sua abordagem de ensino é dialógica, ou seja, ela não enxerga o processo de
aprendizagem de maneira vertical, como se o/a professor/a detivesse todo o
conhecimento e o depositasse em seus/suas estudantes (a educação bancária), mas
Freire ver na educação a oportunidade de interação entre educandos/as e
educadores/as numa horizontalidade, em que um não sabe mais do que os outros, mas
têm saberes diferentes e se complementam, sem com isso desmerecer a autoridade
do/a docente (que não se confunde com autoritarismo). Isso é respeito ao saber do/a
educando/a e à diversidade, aliás, temas que foram desenvolvidos, segundo Gadotti,
nos últimos livros publicados por Freire.
Gadotti também situa Paulo Freire no contexto do pensamento pedagógico
contemporâneo, comparando-o a grandes pensadores de várias partes do mundo, os
quais buscaram a transformação através da consciência crítica por meio da educação.
São vários estudiosos, a maioria dos quais não conhecia: Pichon-Rivière (Genebra),
Theodore Brameld (E.U.A.), Januz Korczak (polonês), Carl Rogers, dentre outros,
sendo a referência mais conhecida, o russo Lev Vygotsky.
O biógrafo também destaca a passagem de Paulo Freire como secretário de
educação da cidade de São Paulo (1989-1991), ressaltando a capacidade
administrativa que Freire teve à frente da pasta, ao desburocratizar os processos
administrativos, dando autonomia às escolas e abrindo os espaços da mesma à
comunidade. Ele opera mudanças estruturais nas escolas e restabelece os conselhos
de escola e os grêmios estudantis. O registro de sua passsagem pela secretaria, Paulo
Freire documentou no livro "A educação na cidade" (1991), afirma Gadotti. Além
disso, ele ainda desenvolveu um programa de formação permanente do professor e
criou um movimento de alfabetização de jovens e adultos (MOVA) que, até onde
tenho notícia, funciona até hoje como educação popular. Paulo Freire só não ficou
mais tempo na secretaria por causa de seus compromissos firmados com palestras e
assessosria, tanto no Brasil quanto fora dele. Mas, apesar disso, ele foi formou uma
equipe capaz de substituí-lo na secretaria, liderada por Mário sérgio Cortela.
Por último, Gadotti sugere algumas reflexões importantes que Paulo Freire
despertou em seus últimos livros: A educação na cidade (1991), Pedagogia da
esperança (1992), Política e educação (1993), Professora sim, tia não (1993), Cartas a
Cristina (1994) e À sombra desta mangueira (1995). Ele estava preocupado sobre que
tipo de educação os homens e as mulheres necessitavam para viver num mundo tão
globalizado e em constante transformação. Conforme Gadotti sintetiza: Paulo Freire
pensava numa educação para a diversidade, as pessoas necessitam de uma ética da
diversidade e de uma cultura da diversidade. Uma sociedade multicultural deve
educar o ser humano multicultural, capaz de ouvir, de prestar atenção ao diferente,
respeitá-lo. Neste novo cenário da educação será preciso reconstruir o saber da escola
e a formação do educador.
Nunca estas ideias foram tão necessárias e urgentes nos dias atuais em que
vivemos, num país cada vez mais polarizado e sem rumo. Ou melhor, com um rumo
sim: a crescente intolerância e desrespeito aos direitos humanos. Com aguçada
desigualdade e a volta da pobreza e da fome (conforme dados do IBGE divulgados
este mês). Fiquei interessado em consultar esses livros citados por Gadotti, pois,
quem sabe, ele nos dar a substância necessária e argumentos suficientes para lutar
contra o totalitarismo.

21/09_______________
A terceira biografia “A voz do biógrafo latino-americano: uma biografia
intelectual” foi produzida por Carlos Alberto Torres, um latino-americano, estudioso
da obra de Paulo Freire. Não encontrei maiores informações sobre a sua
nacionalidade, mas ele lecionava, à época, numa universidade em Los Angeles, nos
E.U.A., quando conheceu a obra de Freire e passou a estudá-la já em meados da
década de 1960.
Torres nos deu um texto bastante complexo, pois ele contextualiza a história
das ideias no século XX, na tentativa de compreender a influência que orientou o
pensamento pedagógico de Paulo Freire, bem como o momento histórico em que o
método de alfabetização foi desenvolvido. Traça um perfil complexo da américa
latina e as revoluções socialista que estavam emergindo em vários países, com as
classes populares que começaram a questionar as elites burguesas. Esse cenário
esteve presente no Brasil e Paulo Freire percebeu a importância da conscientização
por meio da educação como processo libertador, isto é, uma educação que permite o
aprendiz a ser sujeito de seu próprio desenvolvimento. Destaca-se também as leituras
marxistas a que Freire teve acesso e a participação do desenvolvimento da teologia e
filosofia da libertação em pleno vigor a partir de 1960.
Se no Brasil as ideias sistematizadas por Paulo Freire não foram bem vista
pelas elites, culminando no golpe militar e em seu exílio, por outro lado a
popularidade do método de Freire e de sua filosofia da educação problematizadora
cresceu e alcançou educadores progressistas na América Latina, sendo adotada em
quase todos os lugares, em experiências pequenas ou nacionais de educação de
adultos, tais como no Uruguai, Argentina, México, Chile, Peru e Equador (além da
adesão que o programa de alfabetização teve nos anos 1970 em vários países da
África).
A verdade é que, segundo Torres, o método dialético de Paulo Freire atraiu
várias pessoas, pois ele consiste em uma ação cultural para libertação como um
processo através do qual a consciência do opressor ‘vivendo’ na consciência do
oprimido pode ser extraída”, e num contexto de social democracia essas ideias foram
bem-vindas, em oposição à extrema polarização política e consequente
autoritarismo, quando propostas de conscientização das massão são suprimidas, como
demonstraram as esperiências de vários países da América Latina e, principalmente
no Brasil.
Na África, a adesão à metodologia de alfabetização de Paulo Freire teve
bastante sucesso, sobretudo nos países que lutaram pela libertação do jugo português,
em Guiné-Bissau e em São Tomé e Princípe (além de outros com menos impacto,
como o Quênia), pois o ambiente socialista favoreceu ao desejo de reconstrução
nacional com a educação popular oriunda da cultura do povo. Apesar disso, a
experiência desenvolvida em Guiné-Bissau foi questionada por alguns especialistas,
a exemplo de Linda M. Harasim que alegou que o programa de alfabetização de
paulo Freire falhou em seu país, seja pelas condições ecônomicas com a falta de
recursos, seja a língua do colonizador (o português) usada na alfabetização.
O biógrafo concluir o texto mostrando que no início de 1980, Paulo Freire
volta ao Brasil depois de quase 20 anos em exílio na tentativa de reaprender o Brasil
e se engajar politicamente na educação popular, tendo sido professor da PUC e da
Unicamp, além de secretário de educação da cidade de São Paulo, conforme já
descrevemos brevemente nas outras duas biografias anteriores.

21/09_______________
Chegamos, então, à terceira biografia intitulada “Uma voz européia:
arqueologia de um pensamento, texto de Heinz-Peter Gerhardt, estudioso alemão da
obra de Paulo Freire. Ao iniciar o seu texto, o autor logo afirma que Paulo Freire é
considerado, atualmente, como o mais conhecido educador de nosso tempo (p. 149),
por isso é preciso esboçar na vida do educador brasileiro, a “arqueologia do seu
pensamento”, ou seja, as raízes de sua formação teórico-crítica e o seu pensamento
pedagógico humanista. Gerhardt cita, desse modo, as primeiras influências recebidas
por Freire por seus pais ainda quando era criança; o catolicismo; o curso de Direito e
o exercício da docência; a sua esposa Elza (que tanto o ajudou nas questões
pedagógicas); o SESI, como o primeiro “laboratóro” em que Freire experimentou o
seu método de alfabetização nos anos 1950, quando ainda essa ideia era embionária.
Por fim, o seu trabalho no Movimento de Cultura Popular no Recife, a extensão na
universidade e o método implantado em Angicos, no Rio Grande do Norte, com
sucesso.
Embora o método de alfabetização de adultos não tenha logrado continuidade
no Brasil, a verdade é que ele foi amplamente desenvolvido em vários países da
América Latina (Chile, México, Nicarágua) e na África, conforme já apontamos e o
autor repete em sua biografia. Mais tarde, nas décadas de 70 e 80, destaca o biografo,
“no seu trabalho em alfabetização, um elemento do sistema foi interpretado sob a
denominação de ‘Método Paulo Freire’ e ‘conscientização’ como um passe-partout
para a revolução. Por esta razão ele parou de usar essas expressões, enfatizando o
caráter político da educação e sua necessária “reinvenção” em circuntâncias
históricas diferentes." (p. 152-153).
Heinz-Peter Gerhardt cita um episódio significativo a propósito disso, no qual a
sua visão de pedagogia parece deturpada por alguns. Vale a pena ler o excerto:

Uma cartilha de alfabetização de adultos provocou um conflito no


Departamento de Freire, relativamente ao processo de instrução e
conscientização. Os autores da cartilha, entre eles Germano Coelho,
escolheram uma diretriz política de abordagem com cinco palavras
geradoras: povo, voto, vida, saúde e pão. Das sílabas desses vocábulos,
eram formadas sentenças como “O voto pertence ao povo”, “Povo sem casa
vive nos mocambos”, “No Nordeste só haverá paz quando as injustiças
forem eliminadas em suas raízes”, “A paz surge sobre a base da justiça”.
Esperava-se que elas inspirassem discussões políticas e formatassem sua
estrutura e conteúdo. Freire opôs-se, firmemente, ao ensino de mensagens
prontas aos analfabetos. Mensagens prontas produziriam sempre “efeitos
domesticadores”, quer vindo da direita, quer vindo da esquerda. Ambos os
lados demandariam aceitação acrítica de doutrinas e a manipulação teria
início (p. 154-155)

Ou seja, quem quer seja que deseje estudar o Método Paulo Freire é preciso
compreender que ele é dialógico, sim, mas tem de ser visto à luz do contexto
histórico no qual foi desenvolvido e perceber as suas nuance de adaptação ao longo
do tempo. Desse modo, o seu biógrafo descreve muito bem a evolução das teses
epistemológicas de Paulo Freire.
Na primeira fase brasileira de Freire, até 1964, principalmente em conexão
com o conceito de transitividade crítica, temos: “1ª) o desenvolvimento e exercício da
consciência crítica é produto de um “trabalho educativo crítico”; 2ª) a tarefa da
educação, como instrumento do processo de desenvolvimento da consciência,
depende de duas atitudes e atividades básicas: crítica e diálogo; 3ª) a consciência
crítica é típica de sociedades com uma verdadeira estrutura democrática” (p. 161) .
Já as ênfases de Freire no exílio recaíram mais sobre o “motivo hegeliano do
opressor incorporado do que na mera ‘cultura do silêncio’”, mais nas estruturas
socioeconômicas capitalistas do que no ideal de liberdade nos termos das
democracias ocidentais. Sinceramente nunca li Hegel, por isso a referência ao
filósofo alemão é obscura para mim, pois sei apenas que ele foi um dos expoentes do
socialismo, tendo influenciado, inclusive, o materialismo histórico-dialético de Marx.
Diante disso, é possível pressupor que o biógrafo se refere ao caráter político da
ciência e da educação de Freire, conforme aponta:
[...] Com a adoção explícita de uma perspectiva política nova, seus
postulados teóricos relativos à ideologia e ao conhecimento mudaram. Do
“tático”, Freire deslocou-se para o “estratégico”. O “processo de
conscientização” tornou-se sinônimo de luta de classes. Integração cultural
mudou para revolução política. Nessa época, Paulo Freire chegou até
mesmo a parar de usar o termo “conscientização”, porque não queria
contribuir para a equivocada concepção de que seria suficiente interpretar o
mundo criticamente e não transformar, concomitantemente, as estruturas
sociais, interpretadas por ele como opressoras (p. 162)

O que Freire entende por “conscientização”, segundo Gerhardt, seria o


processo no qual as pessoas atingem uma profunda compreensão, tanto da realidade
sociocultural que conforma suas vidas, quanto de sua capacidade para transformá-la.
Ou seja, esse conceito caro a Paulo Freire “envolve entendimento praxiológico, isto
é, a compreensão da relação dialética entre ação e reflexão. Freire propõe uma
abordagem praxiológica para a educação, no sentido de uma ação criticamente
reflexiva e de uma reflexão crítica que seja baseada na prática.” (p. 169).
Enfim, após a leitura das quatro biografias do livro “Paulo Freire: uma
biobibliografia”, é por isso traçar algumas ideias gerais para leituras mais
aprofundadas posteriormente: a) a primeira biografia descreve os dados biográficos
mais pormenorizados sobre Paulo Freire, seguindo a ordem cronológica de sua
existência e alguns fatos curiosos sobre o educador; já a segunda biografia, de
Gadotti, analisa o método de alfabetização em sua prática, inclusive traçando
paralelos entre Freire e outros educadores pelo mundo; além de descrever a atuação
do brasileiro como secretário de educação, na tentativa de reaplicar o método em São
Paulo com o MOVA; a terceira biografia faz uma síntese histórica interessante dos
movimentos revolucionários na América Latina que influenciaram a atuação de Paulo
Freire. Essa é basicamente a linha de raciocínio da quarta e última biografia: mostra
um Paulo Freire intelectual, promovendo um programa de alfabetização de massa
com sucesso em todo lugar por onde passou, axceto no Brasil, por força da ditadura
militar a partir de 1964.

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