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POR UMA PEDAGOGIA

TRANSGRESSORA: PAULO FREIRE VIVE1


J​ ORGE ANTÔNIO DA SILVA SITÓ
2

Resumo: ​O presente artigo objetiva resgatar e analisar algumas dimensões do pensamento do


educador Paulo Freire. Busca, inicialmente, uma sistematização sintetizada de sua biografia
como referencial de compreensão de seu legado. Sequencialmente, apresenta as principais
contribuições teóricas da reflexão do autor e o vigor dos seus pensamentos no campo
educacional. Em processo de desfecho, utilizando algumas categorias freireanas, busca
compreender à luz da contemporaneidade, a atualidade do seu pensamento como orientador
para um projeto alternativo de educação lastreado pela perspectiva de uma Pedagogia
Transgressora.

Palavras-chave: ​Educação. Transgressão. Cultura. Política. Humanização.

FOR A TRANSGRESSIVE PEDAGOGY:


PAULO​ ​FREIRE LIVES

Abstract: ​The present article aims to rescue and analyze some dimensions of the thought of
educator Paulo Freire. It seeks, initially, a synthesized systematization of his biography as a
reference for understanding his legacy. Sequentially, it presents the main theoretical
contributions of the author's reflection and the vigor of his thoughts in the educational field.
In the process of ending, using some Freirean categories, it seeks to understand, in the light of
contemporaneity, the actuality of his thought as the mastermind of an alternative project of
education​ ​guided by the perspective of a Transgressive Pedagogy.

Keywords: ​Education. Transgression. Culture. Policy. Humanization.

1
​Artigo elaborado como requisito de avaliação no Curso de Mestrado em Docência Universitária – UTN – Buenos
Aires ( Argentina-2007) e reorganizado para subsidiar reflexões na VII Semana de Debates do Pensamento
Freireano e IV Prêmio Educador Paulo Freire, eventos promovidos pela Secretaria Municipal de Educação e
Cultura de Alegrete – RS (2015). Ressignificado para a I Jornada de Debates do Legado Freireano, IEEOA (2017).

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Graduado em Pedagogia (URCAMP), Especialista em Supervisão Educacional (FAPA) e Organização Escolar
(UFSM), Secretário Municipal de Educação e Cultura – Alegrete - RS.
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1 INTRODUÇÃO

Para se compreender um autor, beber na fonte de sua obra ou do seu legado, não basta
a restrição aos seus escritos de forma desenraizada, é necessário conhecer a sua trajetória, o
contexto histórico de referência de suas reflexões, os cenários e paisagens que deram
conformação à sua práxis e o consequente sabor e vigor à sua produção teórica.
É preciso conceber que esse exercício de rigorosidade e de curiosidade epistemológica
de (re) visitação é orientado por uma intencionalidade política, ou seja, o estudo de um autor
não se dá em um vazio de propósitos; é pautado por balizadores políticos.
Assim, ao pensar sobre a Pedagogia Freireana, ao “torcermos” e “distorcemos” suas
concepções, não podemos cair no processo reducionista do “congelamento”, da
“cronificação”, ou na falsa possibilidade de transposição mecânica de suas ideias. Pois essa
perspectiva configura, contraditoriamente, uma atitude anti-freireana, considerando que o
pensamento em análise tem como pressuposto a atitude crítica, a provocação, a exigência de
uma postura dialética; refuta a constituição de discípulos, a reprodução pela reprodução.
Desse modo, é necessário que as ideias que orientam a Filosofia Freireana, sejam
recriadas à luz do tempo histórico vivido, pautadas pelas exigências multifacetadas em
termos de circunstâncias que constituem as novas paisagens e os novos cenários que marcam
a sociedade e a educação no descortinar do século XXI.
Também pressupõe conceber e exercitar o necessário vínculo entre teoria e prática
como condicionalidade da ação pedagógica libertadora, rompendo com a tendência histórica
da dicotomização. Todavia, a teoria não pode ser concebida como salvadora da prática, mas
sim como base de “iluminação” desta; a prática, por sua vez, encarada como
problematizadora e recriadora da produção teórica. Esse é o desafio dialético de
construção/reconstrução epistemológica, mediatizada pela realidade e pela prática social.
Com base nessas premissas, este artigo busca resgatar alguns traços da história do
educador brasileiro Paulo Freire, história essa marcada pelo gosto da relação com a aventura,
com a liberdade, com o prazer, com a dor, com a paixão, com o sentimento, com os limites,
com a ternura, com a rigorosidade na aproximação do sujeito ao objeto ou fenômeno a ser
analisado, com a preocupação de instaurar a vocação ontológica da natureza humana, a de ser
mais.
Paulo foi um pensador “clássico” que viveu apaixonadamente o seu tempo e construiu
uma pedagogia que brota da luta pela vida. Como afirmam seus estudiosos, foi e continua
sendo um educador multicultural que tinha todo o mundo como sua sala de aula, apesar do
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sabor completamente brasileiro de suas emoções, sua linguagem e seu universo de


pensamento.
Paulo Freire, como argumenta Vera Barreto (1998), “realizou a façanha de reunir as
questões locais com as universais, o professor de Recife com o pedagogo universal, a
intuição nascida na prática cotidiana com a reflexão original que desafiava e desafia a
epistemologia e a antropologia modernas.”
O pensamento de Freire é decorrente de sua própria ação, ou seja: é um produto da
existência e história de uma vida de luta, que é a sua própria vida. Dessa militância, surge a
sua ‘práxis pedagógica”, entendida como ato de empoderamento para a reflexão- ação dos
homens sobre o mundo para transformá-lo.

2. NAS PEGADAS DA UTOPIA: ALGUNS ASPECTOS BIOGRÁFICOS

É exatamente a vida, que aguçando nossa curiosidade, nos leva ao


conhecimento; é o direito de todos à vida que nos faz solidários; é a
opção pela vida que nos torna éticos. (Paulo Freire)

O mais importante pensador da educação nascido no Brasil, cuja obra e prática


atravessaram as fronteiras do país, para se tornar um educador do mundo.
Paulo Freire nasceu em Recife, na rua do Encanamento, nº 724 no dia 19 de setembro
de 1921. Seu nome completo: Paulo Reglus Neves Freire.
Seu pai, Joaquim Temístocles Freire, foi oficial da polícia militar de Pernambuco e sua
mãe Edeltrudes Neves Freire, uma zelosa dona de casa.
Desde muito cedo se interessou pela leitura. Começou a aprender a leitura da palavra
com a sua mãe e seu pai, com palavras da sua realidade.
A sala de aula era o quintal da sua casa. O chão de terra era a mesa, cadeira e a folha e
os gravetos, os lápis. Aos 6 anos de idade foi para a escola e teve como professora Eunice
Vasconcelos, da qual recebeu as melhores lições de aprendizagem e amorosidade.
Aos 10 anos, Paulo foi morar em Jaboatão, aproximadamente, a 18 km de Recife. Em
Jaboatão, experimentou todo o tipo de contradições em termos de sentimentos: dor/prazer,
sofrimento/amor, angústia/crescimento. Porém, considerou esse período como um tempo de
aprendizagens, como se fora, nas suas próprias palavras “um segundo exílio”.
Freire, aos treze anos de idade, enfrentou a dor da perda de seu pai e a ampliação das
dificuldades.
O contexto de 1937 a 1945 é marcado por alguns fatos significativos: o período da
Segunda Guerra Mundial e a ascensão de governos autoritários em várias partes do mundo. O
Brasil vive o processo da ditadura Vargas, que traz como propósito a industrialização do
país, o qual tem uma economia atrasada, baseada em produtos primários, borracha, algodão,
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açúcar e café, com preços instáveis no mercado da Europa e dos Estados Unidos.
Essas circunstâncias conjunturais e estruturais acabam por gerar o aprofundamento da
crise no nordeste brasileiro, cuja economia é exclusivamente da cana de açúcar, que ocupa
grandes áreas, os latifúndios, que vão exigir o emprego de muita mão-de-obra, mas mal
remunerada e sem nenhuma instrução.
Durante o desenrolar desses fatos e sob as influências desse cenário, Freire ingressa no
colégio Osvaldo Cruz (Recife), pois em Jaboatão não tinha escola secundária, através da
concessão de uma bolsa de estudos pelo diretor da respectiva instituição.
Em relação a essa experiência, Freire relata: “...quando terminei meu exame de
admissão, era alto, grande, anguloso, feio. Apesar desse tamanho pesava 47 quilos. Usava
calças curtas porque minha mãe não tinha condições de comprar calça comprida, consegui
fazer, Deus sabe como, o primeiro ano do ginásio com 16 anos. Idade com que meus colegas
de geração, cujos pais tinham dinheiro, já estavam entrando na faculdade.”
A vida e o pensamento de Freire são influenciados pelos processos históricos
experienciados e pelas contradições explicitadas. O cenário do Nordeste,
exemplificativamente, onde se tem uma relação de simetria com a África Negra, é marcado
por essas contradições.
O espaço geográfico de exploração produtiva que constitui a base da riqueza tem como
referência a Zona da Mata, imensa, bem regada, rica. A questão é que esse espaço foi
ocupado pela monocultura que expulsava a população para áreas secas, obrigando-a a
sobreviver miseravelmente, submetida a precariedade e sazonalidade da safra nas lavouras de
cana, portanto não havendo o interesse de empregá-los o ano todo.
O quadro traçado nos permite afirmar que o Nordeste não é pobre, o Nordeste não é
seco, o Nordeste não é improdutivo, é um espaço geográfico marcado pela monopolização,
resultante das contradições estruturais históricas.
Superando as extremas adversidades, Paulo consegue ingressar aos 22 anos na secular
Faculdade de Direito de Recife. Era a única faculdade na área de Ciências Humanas na
época, por isso optou por ela.
Em 1944, casou-se com Elza Maria Costa Oliveira, professora primária e teve cinco
filhos com ela. Neste período, torna-se professor de Língua Portuguesa no Colégio Osvaldo
Cruz. Foi seu trabalho como professor de Português mais seu corpo franzino que o
impediram de ir para a II Grande Guerra.
Embora tenha se formado advogado, Paulo apenas ensaiou ingressar na profissão, pois
teve uma única e frustrante experiência nesta área, em decorrência de seus princípios. Pouco
tempo depois de deixar a advocacia, Freire trabalhou no SESI, no setor de educação, órgão
recém criado pela confederação nacional da indústria, no acordo com o governo Vargas,
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permanecendo nessa atividade por um período de dez anos. Após a experiência do SESI,
assume a docência na universidade de Recife como professor de História e Filosofia da
Educação. Obteve o título de doutor na universidade supracitada, a partir da defesa da tese
“Educação e Realidade Brasileira”. Em 1958, tem um processo de engajamento no II
Congresso Nacional de Educação, no contexto do governo de Kubitschek.
Sequencialmente, em 1960, na administração de Miguel Arraes como prefeito de
Recife, integra-se com outros intelectuais no MCP (Movimento de Cultura Popular), vindo a
participar de campanhas de alfabetização como a campanha “De pés no chão também se
aprende a ler”, com 300 alunos alfabetizados em 45 dias. Também se destacou na
participação no Programa Nacional de Alfabetização.
A coragem de pôr em prática um autêntico trabalho de educação que identificava a
alfabetização como um processo de conscientização, capacitando o oprimido tanto a
aquisição dos instrumentos de leitura e escrita quanto para a sua libertação fez dele um dos
primeiros brasileiros a serem exilados, com o golpe militar de 1964.
O exílio durou 16 anos, tendo Freire andarilhado por vários países, desenvolvendo as
suas ideias, acumulando experiências no exercício de sua sensibilidade e compromisso com a
superação das desigualdades sociais.
Em 1969, trabalhou como professor na Universidade de Harvard, em estreita
colaboração com numerosos grupos engajados em novas experiências educacionais tanto em
zonas rurais quanto urbanas. Durante os 10 anos seguintes, foi Consultor Especial do
Departamento de Educação do Conselho Mundial das Igrejas Cristãs, em Genebra (Suíça).
Nesse período, deu consultoria educacional junto a vários governos do Terceiro Mundo,
principalmente na África.
No mês de junho de 1980, com o processo de abertura democrática, Freire retorna
definitivamente ao Brasil e declara que “chegava para reaprender a sua pátria”. Inicia, então,
um novo desafio para o grande educador, já famoso internacionalmente, mas pouco
conhecido e discutido em seu próprio País.
Com a humildade que é característica de todo o grande intelectual, Freire se lança a
novos desafios, dentre os quais é possível destacar: busca uma nova inserção no contexto da
universidade brasileira; enfrenta a discussão de sua obra pedagógica em um novo contexto
político do Brasil – a redemocratização.
Em 1989, tornou-se Secretário de Educação no Município de São Paulo, maior cidade
do Brasil. Durante seu mandato, fez um grande esforço na implantação/implementação de
movimentos de alfabetização, de planejamento educacional, de revisão curricular, de gestão
democrática, de avaliação escolar na perspectiva da Escola Cidadã, empenhando-se também
na recuperação salarial dos professores. Esse movimento marca uma busca de ressignificação
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da concepção e práxis da Educação Popular, no contexto do sistema público, da escola


pública. Essa experiência perdura até o ano de 1991.
No dia 2 de maio de 1997, cheio de planos e contando o tempo para ver a virada do
século, Paulo encerrou a sua passagem por esse mundo.
Frei Beto (apud VERA BARRETO, 1998) traduz em seu texto de homenagem ao
grande educador que partia; algumas dimensões importantes da sua concepção:

“Pedro viu a uva, ensinavam os manuais de alfabetização. Mas o professor


Paulo Freire, com seu método de alfabetizar conscientizando, fez adultos e
crianças, no Brasil e na Guiné-Bissau, na Índia e na Nicaraguá, descobrirem
que Pedro não viu apenas com os olhos. Viu também com a mente e se
perguntou se a uva é natureza ou cultura.
Pedro viu que a fruta não resulta do trabalho humano. É criação, é natureza.
Paulo Freire ensinou a Pedro que semear uva é ação humana na e sobre a
natureza. É a mão, multiferramenta, despertando as potencialidades do fruto.
Assim como o próprio ser humano foi semeado pela natureza em anos de
evolução do Cosmo. Colher uma uva, esmagá-la e transformá-la em vinho é
cultura, assinalou Paulo Freire. O trabalho humaniza e, ao realizá-lo, o homem
e a mulher se humanizam.
Trabalho que instaura o nó de relações, a vida social. Graças ao professor, que
iniciou sua pedagogia revolucionária com os operários do SESI de
Pernambuco, Pedro viu também que a uva é colhida por boias-frias, que
ganham pouco, e comercializada por atravessadores que ganham melhor.
Pedro aprendeu com Paulo que, mesmo sem ainda saber ler, ele não é uma
pessoa ignorante. Antes de aprender as letras, Pedro sabia erguer uma casa,
tijolo a tijolo. O médico, o advogado ou o dentista, com todo o seu estudo, não
eram capazes de construir como Pedro. Paulo Freire ensinou a Pedro que não
existe ninguém mais culto do que o outro, existem culturas paralelas, distintas,
que se complementam na vida social.
Pedro viu a uva e Paulo Freire mostrou-lhe os cachos, a parreira, a plantação
inteira. Ensinou a Pedro que a leitura de um texto é tanto melhor compreendida
quanto mais se insere o texto no contexto do autor e do leitor. É dessa relação
dialógica entre o texto no contexto que Pedro extrai o pretexto para agir. No
início e no fim do aprendizado é a práxis de Pedro que importa. Práxis
teoria-práxis, num processo indutivo que torna o educando sujeito histórico.
Pedro viu a uva e não viu a ave que, de cima, enxerga a parreira e não vê a uva.
O que Pedro vê é diferente do que vê a ave. Assim, Paulo Freire ensinou a
Pedro um princípio fundamental da epistemologia: a cabeça pensa onde os pés
pisam. O mundo desigual pode ser lido pela ótica do opressor ou pela ótica do
oprimido. Resulta uma leitura tão diferente uma da outra como entre a visão de
Ptolomeu, ao observar o sistema solar com os pés na terra, e a de Copérnico,
ao imaginar-se com os pés no Sol.
Agora Pedro vê a uva, a parreira e todas as relações sociais que fazem do fruto
festa no cálice de vinho, mas já não vê Paulo Freire, que mergulhou no amor
na manhã de 2 de maio, deixando-nos uma obra inestimável de competência e
coerência.
Paulo deveria estar em Cuba, onde receberia o título de doutor honoris causa,
da Universidade de Havana. Ao sentir dolorido seu coração que tanto amou,
pediu que eu fosse representá-lo. De passagem marcada para Israel, não me foi
possível atendê-lo. Contudo, antes de embarcar fui rezar em torno do seu
semblante tranquilo: Paulo via Deus.”
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3. CONTRIBUIÇÕES COMO EDUCADOR: SÍNTESE DO FECUNDO E


GENEROSO LEGADO

A obra de Freire é muito mais que uma construção acadêmica. O coração, a crença
inarredável no ser humano, na sua vocação ontológica de ser mais, na capacidade do ato
sensível e solidário de significar e ressignificar a vida, são processos que dão substância a sua
obra, onde o conhecimento eivado desses pressupostos deriva, na relação educativa, como
um mecanismo em potência para a superação de qualquer forma de sujeição. É uma obra que
pela sua amplitude e vigor, continuará a influenciar gerações de educadores, ativistas e
estudiosos em todo mundo.
Paulo Freire publicou cerca de 30 livros em 35 países. Donaldo Macedo referenciou,
em 1987, cerca de 6000 títulos em língua inglesa. Em 1988, Ademardo Serafin de Oliveira
reuniu 1400 títulos de trabalhos de ou referentes a Freire.
A Pedagogia do Oprimido, o livro mais conhecido de Paulo Freire escrito no período
de exílio no Chile, foi traduzido em mais de 20 idiomas diferentes e teve 17 edições na
Língua Portuguesa, 27 na Língua Inglesa e 35 em Castelhano.
O educador de Recife teve outras inúmeras contribuições teóricas, tais como:
co-autoria de livros com educadores brasileiros e de todo mundo, participação em outros
livros, artigos em revistas, introduções e/ou prefácios de obras de outros autores, brasileiros e
internacionais. Sua obra teórica, resultante da reflexão sobre sua prática, tem servido para
fundamentação teórica de trabalhos acadêmicos e inspirando práticas em diversas partes do
mundo, desde os mocambos do Recife às comunidades barakumins do Japão, passando pelas
mais consagradas instituições educacionais do Brasil e do exterior.
Segundo Ana Maria Araújo, a influência freireana abrange as mais diversas áreas do
saber: a pedagogia, filosofia, teologia, antropologia, serviço social, ecologia, medicina,
psicoterapia, psicologia, museologia, história, jornalismo, artes plásticas, teatro, música,
educação física, sociologia, pesquisa participante, metodologia de ciências e letras, ciência
política, currículo escolar e a política de educação dos meninos e meninas de rua, entre outras
áreas.
A passagem contada pelo professor da PUC-SP, Mário Sérgio Cortella, elucida um
pouco tamanho prestígio. Lembra que, em março de 1986, numa aula inaugural da pós
graduação em Educação da PUC, resolveu provocar seu mestre. Perguntou se ele se
considerava um “clássico”, citando a célebre pérola de Millôr Fernandes, que diz que
“clássico é um escritor que não se contentou em chatear apenas os seus contemporâneos”.
Sem titubear, Freire respondeu: “Sou um clássico, sim. Não porque subjetiva e
presunçosamente deste modo me considere, mas, porque como clássico sou considerado por
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todas aquelas e todos aqueles que encontram em minha obra um instrumento para enfrentar
um clássico problema: a existência de opressores e oprimidos. Por isso, enquanto esse
problema persistir, quero continuar chateando, incomodando e fustigando os que,
contemporâneos meus ou não, defendam a permanência das desigualdades.”
Assim, não dá para pensar a educação na contemporaneidade sem considerar o legado
de Freire, não em uma atitude de “discípulo reprodutor”, mas sim de “estudioso rigoroso”, na
perspectiva da reinventividade, orientada pela busca de superação dos tensionamentos e
demandas latentes que marcam a vida neste tempo histórico.
A extensão dessa concepção e de compromisso da educação e do educador podem ser
melhor compreendidos, na própria fala de Freire, no encerramento do Simpósio que levou o
seu nome, realizado em Vitória, Espírito Santo, em setembro de 1996, envolvendo diversos
estudiosos de sua obra.
No processo de encerramento do evento, entre outras questões, Freire (1996) ponderou
essas falas significativas:

Uma das coisas que nos agradam é saber, em vida, que a gente existe.
Eu sou discutido, recriado, distorcido e lembrado. O trágico é passar
pela vida sem ser torcido e distorcido; Precisamos ter cuidado com a
anestesia da ideologia neoliberal: ela é fatalista, vive de um discurso
fatalista. Mas não há nenhuma realidade senhora dela mesma. O
neoliberalismo age como se a globalização fosse uma realidade
definitiva e não uma categoria histórica; eu sou profundamente um
adivinhador, muito intuitivo. Contudo, meu esforço é não ficar no
achado de minhas intuições, mas submetê-las ao crivo da
rigorosidade; toda a atividade democrática na escola implica que se
vá além do conteúdo. Não podemos enganar a curiosidade dos
alunos; eu fui um menino conectivo, conjuntivo, entre a classe média
e a popular; ​ο ​educador não tem por que esconder suas opções
políticas.

4 ATUALIDADE DO SEU PENSAMENTO: POR UMA PEDAGOGIA


TRANSGRESSORA3

​Há pensamentos que incomodam certo tempo e depois se acomodam. O pensamento


de Freire continua incomodando, por isso se mantém atual.
Nesse sentido, resgatar Paulo Freire e sua filosofia de Educação e/ou Teoria do
Conhecimento é recriá-lo à luz das exigências do atual quadro social e educacional, como um
paradigma pulsante na geração de inéditos viáveis, nos horizontes do processo
emancipatório. Pois prospecta-se que, apesar dos matizes do pensamento teórico pós
moderno que refutam categorias do pensamento teórico crítico, a exemplo de Freire, o seu

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​Nesse propósito, é estabelecida a conexão da concepção freireana com a perspectiva de uma pedagogia
transgressora, entendendo-a como uma ação pedagógica pautada por uma intervenção em potência, capaz de
romper com as condicionalidade do assujeitamento, rumando para os propósitos do protagonismo e da
emancipação.
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legado traz um conjunto de pressupostos que podem orientar, em potência, um projeto, de


reinvenção da educação da sociedade e da vida.

4.1 ALGUMAS CONCEPÇÕES DA OBRA FREIREANA BALIZADORAS PARA


UMA PEDAGOGIA TRANSGRESSORA NO CONTEXTO DO SÉCULO XXI

a) Alargamento do Conceito de Educação


Esse pressuposto é provocador no sentido de superação do histórico e reducionista
conceito que concebe a educação como prática solitária, descontextualizada, desenraizada,
mecânica, cronificada.
A preocupação de Freire em termos de paradigma educativo é a de estabelecer uma
relação estreita com um ser humano concreto, histórico, situado. Portanto, um sujeito de
múltiplas relações e práticas sociais no mundo e com o mundo.
Nessa linha de raciocínio se estabelece uma superação das dicotomias educação formal
e educação informal, entre conhecimento “de experiência feito” e conhecimento científico. A
educação é o resultado do entrelaçamento complexo das várias dimensões que marcam os
dramas, as tramas, as angústias e as positividades da ação dos homens como seres
protagônicos em seus contextos, tensionando as circunstâncias condicionantes, superando as
situações limites, na busca do seu reconhecimento como imperativo existencial histórico.
Portanto, o ato de educar é resultante da tomada de consciência dos fatos que marcam a
complexidade da vida em suas múltiplas dimensões, rumando para a conscientização como
condição de intervenção nesta realidade.
Uma educação humanista-libertadora, nessa perspectiva alargada proposta por Freire,
precisa ter como ponto de partida os fenômenos concretos que constituem o universo
existencial da vida humana. E, a partir desse universo, o desafio dialógico-crítico converge
para a luta em prol das transformações sociais necessárias e imprescindíveis para atingir uma
vida mais digna, notadamente para os setores sociais que mais sofrem a opressão ou
exclusão.Na ousadia epistemológica que abarca esse conceito é possível afirmar que a
mesma, filosoficamente, estabelece uma síntese entre a fenomenologia e a dialética.
“Minha perspectiva é dialética e fenomenológica. Eu acredito que daqui temos que
olhar para vencermos esse relacionamento oposto entre teoria e práxis: superando o que não
deve ser feito num nível idealista.” (FREIRE apud ZITKOSKI; REDIN, 2008)
Desse modo a educação como processo enredado com a prática social, deriva para os
intercâmbios entre os saberes de experiências feito e os saberes científicos, mediatizados pela
realidade, buscando uma síntese problematizadora a serviço da autonomia individual e
coletiva.
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b) Novo significado a palavra educador


O conceito de educador assume na obra freireana uma ampliada significação. O
educador é concebido como um sujeito de “ensinagens”, mas também como um sujeito de
“aprendências” no processo de produção de conhecimentos. “ O educador já não é o que
apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser
educado, também se educa” (ZITKOSKI; REDIN, 2008). A Educação, a relação
estabelecida, permeada pelo diálogo é vista como um evento de partilha de saberes.
O educador, nessa relação dinâmica e dialógica com o educando, assume as condições
de intelectual orgânico, ativista social, crítico, filósofo, político. O novo significado que deve
ser traduzido na práxis, incorporando as dimensões expressas, pressupõe a (re) educação do
educador. A preocupação central é com a formação profissional e com o compromisso
sociopolítico desse educador, concebido como ser inacabado, mas que ao tomar consciência
desse inacabamento, com ele dialoga como forma de busca permanente e incessante da
profissionalização e o seu pleno exercício.
Freire entende que essa (re)educação é processual, lenta e construída na cotidianidade
docente que, por sua vez, está inserida em um contexto sociocultural particular, que é
condicionador, mas não determinante dela.
“Ninguém começa a ser educador numa certa terça-feira às quatro horas da tarde.
Ninguém nasce educador. A gente se faz educador, a gente se forma como educador,
permanentemente, na prática e na reflexão sobre a prática.”(FREIRE, 1995)

c) Politicidade Inerente
Esse é um pressuposto que atravessa o seu legado, contribuindo na compreensão de
que o ato pedagógico é político e que essa ação política possuí uma dimensão pedagógica.
Freire demarca em sua obra a impossibilidade da neutralidade na ação humana e educativa.
Sob essa égide, necessário se faz que, no exercício da práxis pedagógica, ocorra o
balizamento por questões pertinentes como: a favor de quem? Para quem? Contra o que é
exercida nossa docência?

O sistema não teme o pobre que tem fome. Teme o pobre que sabe
pensar. O que mais favorece o neoliberalismo não é a miséria
material das massas, mas sua ignorância. Esta ignorância as conduz a
esperarem a solução do próprio sistema, consolidando sua condição
de massa de manobra. A função central da educação de teor
reconstrutivo político é desfazer a condição de massa de manobra,
como bem queria Paulo Freire. (DEMO, 2001)

Fatores esses que ganhando clareza e, devidamente exercitados, à luz da


intencionalidade política expressa na prática educativa podem gerar os contornos e em
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sequência a definição da imperiosa função social da escola e do educador(a) pelas avenidas


da transformação.

d) Esperança/Sonho
Essas dimensões são processos muito presentes em seus escritos, traduzindo o vigor de
um pensador e poeta, profético, esperançoso e sonhador, mas com os pés fincados na
realidade histórica concreta.
E que falta faz que sejam incorporadas essas dimensões à educação contemporânea, em
função da avalanche de visões fatalistas, dos “decretos” de fim da história, das teses
acusativas da morte dos sonhos e da esperança, dos processos inexoráveis da exclusão.
O sonho na visão de Freire, tem forte conotação política e está associado à visão da
história como possibilidade. Essa concepção fica claramente expressa na obra Educação na
cidade, quando Paulo, em entrevista a Carlos Torres afirma: “Uma das tarefas políticas que
devemos assumir é viabilizar os sonhos que parecem impossíveis” (Freire, 1994).
Ao falar sobre a esperança e o sonho, em Pedagogia da Esperança, Freire expressa:

Sem sequer poder negar a desesperança como algo concreto e sem


desconhecer as razões históricas, econômicas e sociais que a
explicam, não entendo a existência humana e a necessária luta para
fazê-la melhor, sem esperança e sem sonho. A esperança é
necessidade ontológica; a desesperança, esperança que, perdendo o
endereço, se torna distorção da necessidade ontológica.

Como programa, a desesperança nos imobiliza e nos faz sucumbir no fatalismo, onde
não é possível juntar as forças indispensáveis ao embate recriador do mundo. Não sou
esperançoso por pura teimosia, mas por imperativo existencial e histórico.” (1994)
Paulo Freire integra a esperança e o sonho possível não apenas na sua produção teórica.
Essas categorias incorporam-se à sua presença no mundo e alimenta a sua busca e as suas
lutas, seja entre os camponeses nordestinos, com estudantes universitários, ou na experiência
de gestão pública. A esperança e o sonho consubstanciados com a ação impedem o
conformismo, a acomodação pragmática à realidade e o assujeitamento. São motores e
combustível para a práxis engajada e emancipadora no percurso histórico.
Assim, a esperança e o sonho precisam estar no horizonte do nosso olhar e como
centralidade da nossa ação no mundo e com o mundo.

e) Ética e Estética
A ética é também uma referência central na obra freireana. Categoria essa que deve
permear o nosso discurso e prática, ou seja, demarcar o processo da “práxis pedagógica” e a
“práxis da vida cotidiana”.
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A ética deve ser compreendida como um ato de compromisso com a vida, de respeito e
crença no outro, de fé no humano, no acato de suas diferenças. Portanto, é decorrente de um
respeito à vida em todas as suas dimensões. Pressupõe o não desejar para o outro aquilo que
não gostaria para o meu ser ou para os seres que me são caros.
“Não é possível pensar o seres humanos longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela.
Estar longe ou pior, fora da ética, entre nós, mulheres e homens, é uma transgressão” (Freire,
1996).
Freire (1996), ainda pondera: “A necessária promoção da ingenuidade à criticidade
não pode ou não deve ser feita à distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da
estética. Decência e boniteza de mãos dadas.”
Embora Freire não tenha uma obra que trate da especifidade da ética ou da estética,
essas categorias atravessam a sua produção teórica que é marcada por uma visão humanista.
Sua visão humanista se manifesta com clareza na sua ética da libertação e da solidariedade
que assume o compromisso de lutar pela dignidade do oprimido, do excluído e pela justiça
global.

f) Conscientização
Tem como foco a busca de sujeitos cognoscentes comprometidos. Sujeitos esses
capazes de, no processo de seus atos, transformarem as realidades adversas à plena existência
humana. Entretanto, é preciso superar os equívocos de práticas nessa dimensão, pois estar
conscientizado não pressupõe o exercício de busca de um hospedeiro para depositar o nível
de conscientização construído. Esse movimento caracterizaria uma situação tão autoritária e
bancária como depositar conteúdos prontos.
Paulo parte do pressuposto de que existe na experiência dos setores populares, um
nível de consciência a ser estimulada, instigada, partilhada, ou seja, nos conscientizarmos em
comunhão, a partir da leitura dinâmica e atenta dos contextos em que estamos imersos,
permitindo a compreensão das condicionantes que desumanizam, a interpretação dessas
estruturas e a consequente intervenção objetivando a transformação das condições
impeditivas da humanização.

g) Cultura
O ato educativo é um ato cultural, pois homens e mulheres são sujeitos culturais. A
cultura é a matriz constitutiva do humano, portanto, é mais envolvente e ampliada que o
conhecimento.
Segundo Paulo Freire, fazer cultura implica aprender a expressar “uma permanente
atitude crítica, único modo pelo qual o homem realizará sua vocação natural de integrar-se,
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superando a atitude do simples ajustamento ou acomodação, apreendendo temas e tarefas de


sua época” (FREIRE, 1978).
Desse modo, concebendo a cultura nessa dimensão pensada por Freire, é
imprescindível a superação dos processos que acabam por aleijar a cultura nas matrizes
curriculares e nas ações pedagógicas no espaço da educação formal. Reinventar a educação
popular por esse espaço requer uma nova atitude de entrelaçamento entre cultura e
conhecimento. É necessário promover o direito a cultura, como condição ​sine qua non ​ao ato
de apropriação de conhecimentos. Cultura e conhecimento, conhecimento e cultura numa
relação dialética formando as condições para o exercício de uma educação libertadora, para
“uma ação cultural para a liberdade”.

h) Humanização e Desumanização

A vocação de ser mais, isto é, ser mais humano, comum a todos


homens e mulheres, se realiza pela Educação. Mas esta vocação de
ser mais deixa de concretizar-se quando a relações entre os homens se
desumanizam. Isto se deu historicamente, quando os que detinham o
poder passavam a abusar dele e obter privilégios para si e para seus
iguais, em prejuízo dos outros (Barreto, 1998)

O ato de educar precisa ser compreendido como um processo de fazer com que o
sujeito inacabado construa a sua natureza humana. Homens e mulheres são projetos que se
projetam, permanentemente, ou seja, são movidos pela ideia existencialista de projeção, no
sentido de transcender, mudar, justamente porque entendem-se como seres inconclusos e o
modo de ser no mundo é projetar-se, é fazer-se, é construir-se, para tornar-se aquilo que vai
ser. Assim, a ação educativa tem que ser movida pelo compromisso de resgate com
aqueles(as) que têm a sua humanidade negada, seres humanos quebrados na sua existência.
Como afirma Miguel Arroyo (2001):

Todo projeto educativo tem que ser um projeto de humanização; isto


implica reconhecer a desumanização ainda que seja uma dolorosa
constatação. Juntar os cacos de humanidade de tantos milhões de
brasileiros triturados pela injustiça, fome, provocados pela
brutalidade do capitalismo. Buscar a viabilização da sua humanização
no contexto real, concreto, do Brasil. Este é o desafio pedagógico do
Projeto Popular. Recuperar a humanidade roubada do povo.

Olhar para o atual cenário e refletir sobre a categoria da humanização, em oposição


radicalizada a desumanização, implica em se perceber os mecanismos de sujeição, de
degeneração que marcam, tragicamente vidas humanas nesse tempo histórico. O que dizer da
naturalização da violência em suas múltiplas facetas? Como aceitar a banalização da vida,
com “gente brincando de matar gente”, traduzido esse fenômeno em vários episódios no
planeta? Como não conceber como drama humano a fuga migratória massiva de milhares de
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refugiados de seus países de origem, pelo processo de exploração, deserdados da condição de


“gentitude”, configurada na morte de perspectivas? Como não se sensibilizar com as
consequências dessas fugas, exemplificada na emblemática e trágica morte do menino Sírio
Aylan de apenas três anos de idade, inerte nas areias de uma praia da Turquia? Como ficar
insensível frente as atrocidades decorrentes das ações terroristas pelo mundo, protagonizadas,
principalmente pelo Estado Islâmico? Como admitir o aguçamento da intolerância em várias
dimensões, étnica, religiosa, de gênero, de orientação sexual, entre outras? Como tolerar
processos de linchamento de imigrantes de forma absurda?
Essas são questões que desafiam a humanidade no contexto desse século, provocando
um mal estar que remete a uma profunda reflexão acerca do nosso compromisso, na condição
de cidadãos planetários e educadores engajados, no sentido de promovermos a capacidade de
entender e intervir nesse tempo de “maravilhas tecnológicas”, de revolução digitalizada, de
avanço das ciências, mas também um tempo que, paradoxalmente, nos gera perplexidades por
não contemplar direitos e necessidades básicas. Um tempo que seduz, mas que,
contraditoriamente, reduz para contingentes significativos o direito de ser gente, ao mutilar
sonhos e desarmar possibilidades. Essas devem ser preocupações prementes no universo de
uma Pedagogia Transgressora, onde os princípios da sensibilidade, da solidariedade, da
fraternidade e da ternura tornem-se imperativos como impulsionadores para uma nova
condição civilizatória.
Ao perdermos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades contra os outros,
perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados.
Na perspectiva da humanização como desafio histórico, os (as) educadores (as) têm
muito a aprender e a praticar nessa direção, orientados pelo que pensou e prospectou Freire
nos seus ensinamentos e que, hoje, configura-se como extraordinária fonte em termos de
potência para o sonho latente de uma educação emancipadora, aliançada com a vocação
ontológica de ser mais.
Esse é um dos desafios de uma Pedagogia Transgressora: recuperar a dignidade e a
humanidade “roubada” de milhões de seres humanos, efetivamente quebrados na sua
existência.

i) Dialogicidade como exigência ontológica


Apesar de Freire ter vivido em processos históricos e culturais marcados pelo
autoritarismo e a consequente negação da palavra, sufocada pelo silêncio, jamais ignorou o
exercício da palavra como condição necessária à construção de sujeitos históricos. Destacava
a importância do diálogo na educação, mas não o restringia a esse processo, compreendia o
diálogo como uma exigência da natureza humana.
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No que tange ao ato educativo, o papel do educador não é propriamente falar ao


educando, sobre a sua visão de mundo ou lhe impor esta visão, mas dialogar com ele sobre a
sua visão e a dele. Sua tarefa não é falar, dissertar, mas problematizar a realidade concreta do
educando, problematizando-se ao mesmo tempo.
Nesse sentido, não se pode cair em alguns equívocos sobre a concepção de diálogo,
como um falar por falar, somente como um ato de marcar posição, no sentido de dizer estou
aqui, desprovido de uma intencionalidade política e de uma rigorosidade no ato de construir
conhecimentos. Outro equívoco caracterizado é o de que o educador progressista, ao
promover uma exposição narrativa, estaria caindo no “bancarismo”. Sobre esse equívoco
Freire busca a superação, argumentando:

Pode haver diálogo na exposição crítica, metódica, de um educador a


quem os educandos assistem não como quem “come” a fala, mas
como quem aprende a sua intelecção. É que há um diálogo invisível,
em que não necessito de inventar perguntas ou fabricar respostas. Os
educadores não ‘estão’ - ‘são’ dialógicos.

Assim, o diálogo como categoria que atravessa a proposta freireana é um processo


rigoroso e potente, enquanto ato metodológico de desvelamento da realidade e suas
condicionalidades.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS (PROVISÓRIAS)

Vinte anos após a sua passagem, o ensinamento de Paulo Freire de que a educação é
um mecanismo de politização, de conscientização, de libertação e transformação continua
influenciando e servindo de referência a inúmeros intelectuais e pessoas em todo o planeta.
Seu nome é referência para dar denominação a institutos de educação nos Estados Unidos,
Canadá, Dinamarca, Suíça, entre outros diversos países da África.
No Brasil, além do Instituto Paulo Freire em São Paulo, várias outras instituições
adotaram o nome do educador. O mestre que saiu de Recife recebeu vários outros títulos,
distinções e prêmios pelo mundo afora, constituindo-se em uma extraordinária referência
como educador-pensador, pensador-educador.
Múltiplos eventos como fóruns e outros vêm acontecendo no Brasil e
internacionalmente, analisando e reinterpretando o seu legado. Como diz Ana Freire na
biografia do autor, “nada mal para quem foi escorraçado do Brasil e, depois, do Chile,
quando irromperam as ditaduras. Qual o seu pecado? Foi ensinar o povo a ler e depois pensar
no que leu. Mostrando que a educação não rima com domesticação, mas é uma prática
cotidiana de liberdade”.
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Nesse sentido, para além dos discursos pragmáticos, conformistas e fatalistas e apesar
das teses de desconstrução que transitam na base teórica da pós-modernidade, condenando
dimensões do pensamento crítico, engessando-as como metanarrativas ou meta-relatos, o
legado de Freire é uma referência marcante que não pode ser esquecida e marginalizada.
Conclui-se que, enquanto persistir um paradigma de sociedade que nega a vocação
ontológica de homens e mulheres de serem mais, enquanto persistirem as absurdas injustiças
sociais, frutos das dominações de toda ordem, enquanto os indivíduos persistirem com
resultados pífios de uma instituição escolar que não cumpre com a sua função social, o
pensamento de Paulo “classicamente” estará provocando a todos, incomodando-os e
instigando-os a refletir comprometidamente sobre essas circunstâncias, realizando um
convite aos mesmos como intelectuais e militantes sociais, a partir de seu legado, para um ato
pedagógico e político, político e pedagógico, de transgressão.
Peter McLaren (1997), ao falar sobre o legado do mestre, assim se manifesta:

A pedagogia de Freire oferece um contexto poderoso a partir do qual


se pode considerar a reconstrução da democracia e viver e lutar por
uma melhor qualidade de vida para os oprimidos, para os não
oprimidos e para as futuras gerações. Sua pedagogia pós-moderna de
se encontrar novas formas de encararmos nossa própria fragilidade e
finitude como cidadãos globais enquanto, ao mesmo tempo,
buscamos a força de vontade e lealdade de esperança que farão com
que continuemos a sonhar com utopia na realidade.

Transitar por estas avenidas que se abrem para permitirem a travessia para outros
horizontes, exige a rigorosidade do pensar sobre as circunstâncias e categorias elencadas,
notadamente, na prática do exercício da metacognição, a de pensar sobre o que pensamos, ou
seja, sobre a concepção de mundo e de educação que nos move. Pensamento e sonho, sonho e
pensamento, entrelaçados e problematizados.
Ao refletir sobre o nascimento do pensamento e a relação com o sonho, Rubem Alves
(1994), argumenta:
O nascimento do pensamento é igual ao nascimento de uma criança:
tudo começa com um ato de amor. Uma semente há de ser depositada
no ventre vazio. E a semente do pensamento é o sonho. Por isso os
educadores e educadoras, antes de serem especialistas em ferramentas
do saber, deviam ser especialistas em amor: intérpretes de sonhos.

​Freire caminhou como pensador, como intelectual clássico nessa direção, com uma
profunda amorosidade pelo seu fazer como educador, manifesta pela crença inarredável nos
educandos, no sentido de constituírem-se sujeitos, “interpretando sonhos”, em comunhão.
É por isso que Freire vive, na expressão do seu legado, provocando (amorosamente) o
pensamento sobre a condição pós-moderna e os desafios e implicações na construção de uma
educação pós-moderna crítica, que tenha como horizonte a vida.
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Um paradigma de educação, de escola, de educador(a) referenciado por uma


Pedagogia da Transgressão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Rubem. ​A alegria de Ensinar​. 3 ed. São Paulo: Ed. ARS Poética, 1994.

ARROYO, Miguel. ​A Educação de Jovens e Adultos em tempos de exclusão​.


Alfabetização e Cidadania. São Paulo: Rede de Apoio à Ação Alfabetizadora do Brasil
(RAAA), nº11 abril 2001.

BARRETO, Vera. ​Paulo Freire para Educadores​. São Paulo: Arte & Ciência, 1998.

DEMO, Pedro. ​Conhecimento e Aprendizagem: atualidade de Paulo Freire​. In Carlos A.


Torres (org.). Paulo Freire e a Agenda da Educação Latino-Americana no Sec. XXI. Buenos
Aires: CLACSO, 2001.

FREIRE, Paulo. ​Pedagogia do Oprimido​. São Paulo: Editora Paz & Terra,

1996. ____________. ​A Educação na Cidade​. São Paulo: Cortez, 1995.

____________. ​Cartas a Cristina​. São Paulo: Editora Paz & Terra, 1994.

____________. ​Pedagogia da Autonomia​. São Paulo: Editora Paz & Terra, 1997.

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Terra, 1978.

FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio. ​Aprendendo com a própria história I​. São Paulo:
Editora Paz & Terra, 1987.

FREIRE, Ana Maria Araújo. ​A voz da esposa: a trajetória de Paulo Freire​. In: GADOTTI,
Moacir et al. ​Paulo Freire, uma biobibliografia.​ São Paulo: Cortez; Instituto Paulo Freire;
Brasília, DF: UNESCO, 1996. p. 27-67.

FREITAS, Ana Lúcia Souza. ​Pedagogia da Conscientização ​- um legado de Paulo Freire à


formação de professores. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

GADOTTI, Moacir e outros. ​Paulo Freire: uma bibliografia​. São Paulo: Editora Cortez,
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MCLAREN, P. 1997b. ​A vida nas escolas: uma introdução à pedagogia crítica nos
fundamentos da educação​. 2ª ed., Porto Alegre, Artes Médicas, 353 p.

Revista Pátio. Ano I, nº 2, AGO/OUT, 1997.

ZITKOSKI, Jaime J.; REDIN, Euclides. ​Dicionário Paulo Freire​. Belo Horizente: Editora
Autêntica, 2008.

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