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PAULO FREIRE
PAULO FREIRE
MÚLTIPLOS OLHARES
Organizador
Peri Mesquida
Diagramação: Marcelo Alves
Capa: Gabrielle do Carmo
P331 Paulo Freire: múltiplos olhares [recurso eletrônico] / Peri Mesquida (org.).
Cachoeirinha : Fi, 2024.
148p.
ISBN 978-65-85725-93-4
DOI 10.22350/9786585725934
APRESENTAÇÃO 7
Peri Mesquida
1 13
O FALAR POPULAR E SUA BONITEZA PARA DIZER O MUNDO: A LINGUAGEM POPULAR
PARA A COMUNICAÇÃO E A EDUCAÇÃO LIBERTADORAS À LUZ DE PAULO FREIRE
Rafaela Bortolin Pinheiro
2 39
FREIRE E CHAMPAGNAT: POSSÍVEIS APROXIMAÇÕES
Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda
3 65
DESAFIOS PARA A FORMAÇÃO DE EDUCADORAS E EDUCADORES NA E PARA A
DIVERSIDADE CULTURAL SOB O OLHAR DE PAULO FREIRE
Luci Frare Kira
4 87
PEDAGOGIA VICENTINA EM DIÁLOGO COM A PEDAGOGIA FREIREANA
Suzane Tizott
5 119
DA DIALÉTICA OPRESSOR/OPRIMIDO PARA UM CAMINHO EDUCACIONAL DE
LIBERDADE E HUMANIZAÇÃO
Maurício Eduardo Bernz
mentes, mas também, e com muita força, pela ação dos “poderes e dos
micropoderes que mantém a hegemonia política, econômica e cultural
das elites”. Para se sobrepor a isso, educadoras e educadores precisam
se munir de um referencial teórico-prático poderoso que, pela ação de
um processo de “conscientização”, lhes possibilite superar as situações-
limite e trilhar o caminho da humanização, verdadeira vocação
ontológica dos seres humanos (Freire, 1975), afirmando a sua cultura.
No quarto capítulo, Pedagogia vicentina em diálogo com a pedagogia
freiriana, Suzane Tizott coloca em contato o pensamento de São Vicente
de Paulo e Paulo Freire, pensando na sua complementaridade como base
não somente para a elaboração de um currículo, como ainda para a
prática pedagógica em instituições de ensino. Enquanto a Rede
Vicentina se propõe a “educar crianças, adolescentes e jovens,
orientados pelos valores humanos, cristãos e vicentinos” (Rede
Vicentina de Educação, 2019, p. 29), Suzane acredita que para alcançar
esse objetivo é fundamental que haja uma proposta de diálogo, na
diversidade, com toda a comunidade, isto é, o diálogo fundado no
humanismo cristão de Paulo Freire, tal como aparece na obra Educação
como prática da liberdade (1997), onde os conceitos de caridade,
comunhão, alteridade, comunicação, respeito e liberdade estão em
sintonia com uma “educação pautada em valores cristãos
humanizadores e libertadores”. Portanto, não se trata de realizar uma
reflexão destituída dos “valores cristãos...desvinculada da existência
concreta e histórica em que o drama da vida se desenrola, mas a partir
da realidade histórica em que vivem os homens e as mulheres, em
especial as ‘esfarrapadas/os do mundo’” (Freire, 1975, p. 32),
desumanizados/as à espera de ações humanizadoras.
Peri Mesquida • 11
REFERÊNCIA
INTRODUÇÃO
1
Este texto é um desdobramento de uma investigação iniciada na tese de doutorado “O jornal escolar
para a formação de consciência crítica à luz de Paulo Freire: a expressão da palavra silenciada para
materializar o diálogo autônomo e libertador” (PINHEIRO, 2017), orientada pelo professor doutor Peri
Mesquida dentro do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (PUCPR).
14 • Paulo Freire: múltiplos olhares
2
“Os comunicados são os ‘significados’ que, ao se esgotarem em seu dinamismo próprio, transformam-
se em conteúdos estáticos, cristalizados. Conteúdos que, à maneira de petrificações, um sujeito deposita
nos outros, que ficam impedidos de pensar, pelo menos de forma correta” (FREIRE, 2011c, p. 88).
Rafaela Bortolin Pinheiro • 23
Como define Freire (2011d, p. 56), “está aqui uma das questões
centrais da educação popular – a da linguagem como caminho de
invenção da cidadania”. Dessa forma, é fundamental construirmos uma
educação-comunicação libertadora que valoriza os conhecimentos e a
linguagem própria de oprimidas e oprimidos e reforça o sentimento de
pertencimento à comunidade, valorizando a beleza da linguagem local e
despertando tanto nos(as) educadores(as), quanto nos(as) educandos(as)
a leitura e a escrita críticas, conscientes e contextualizadas. É a
educação-comunicação para conhecer a sua própria realidade e,
compreendendo-a, se engajar na luta por mudá-la.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
CATÃO, Virna Mac-Cord. A cultura escrita e sua função social desde a educação infantil.
In: BES, Pablo et al. Alfabetização e letramento. Porto Alegre: SAGAH, 2018. p. 85-94.
FREIRE, Paulo. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Unesp, 2001.
FREIRE, Paulo. Educação e atualidade brasileira. 3. ed. São Paulo: Cortez; Instituto Paulo
Freire, 2003.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 48. ed.
São Paulo: Cortez, 2006.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 14. ed. rev. e atual. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 2011a.
36 • Paulo Freire: múltiplos olhares
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 14. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2011b.
FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? 15. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011c.
FREIRE, Paulo. Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2013a.
FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. 24. ed. rev. e atual.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013b.
FREIRE, Paulo; FAUNDEZ, Antonio. Por uma pedagogia da pergunta. 3. ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1985.
FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio. Sobre educação: diálogos. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1982. v. 1.
FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. 12. ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1986.
HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como 'ideologia'. Lisboa: Edições 70, 2001.
LYRA, Carlos. As quarenta horas de Angicos: uma experiência pioneira de educação. São
Paulo: Cortez, 1996.
PINHEIRO, Rafaela Bortolin. Leitura crítica da mídia à luz de Paulo Freire: uma reação
ao silenciamento de educandos e educadores na história da educação no Brasil. In:
CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 12.; SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE
Rafaela Bortolin Pinheiro • 37
INTRODUÇÃO
bancária “em que a única margem de ação que se oferece aos educandos
é a de receber depósitos, guardá-los e arquivá-los”. (FREIRE, 1987, p. 33).
Freire (1996, p. 13) diferencia a prática educativa que tem a lógica
bancária acrítica e caracterizada pela repetição e reprodução de uma
educação problematizadora em que há diálogo e a curiosidade
epistemológica dos(as) educandos(as) é aguçada, como assinala o Freire:
Pelo contrário, em tenra idade, já pensava que o mundo teria de ser mudado.
Que havia algo errado no mundo que não podia nem devia continuar. Talvez
seja esta uma das positividades da negatividade do contexto real em que
minha família se moveu. A de, submetido a certos rigores que outras
crianças não sofriam, ter me tornado capaz de, pela comparação entre
situações contrastantes, admitir que o mundo tivesse algo errado que
precisava de conserto. Positividade que hoje veria em dois momentos
significativos: 1) o de, experimentando-me na carência, não ter caído no
fatalismo; 2) o de, nascido numa família de formação cristã, não ter me
orientado no sentido de aceitar a situação como sendo a expressão da
vontade de Deus, entendendo, pelo contrário, que havia algo errado no
mundo e que este precisava de reparo. A minha posição, desde então, era de
otimismo crítico, isto é, da esperança que inexiste fora do embate.
Freire (1987, p. 27) também sinaliza que esse fatalismo muitas vezes
está associado à uma visão distorcida de Deus em que os sujeitos se
entregam e se conformam alegando que os acontecimentos não podem
ser transformados, uma vez que há uma vontade ‘maior’, a de Deus.
Ao contrário do fatalismo ou determinismo, encontramos na
proposta de Paulo Freire (1987) a esperança que pressupõe crer no
possível e atuar para transformar o que parece impossível, isso era o
Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda • 43
que este educador defendia. Diante das situações- limite, ele propunha
o inédito viável, a utopia capaz de atualizar o futuro, ou a esperança em
movimento. Para Freire (1996, p. 29), a esperança é uma exigência para
aqueles escolhem por ofício o ensinar. Nesse sentido, a utopia como
“revolucionária”, pode contribuir na prática do/a educador/a que,
esperançoso/a, desperta nos/as educandos/as a possibilidade de “ser
mais” 1. A utopia a que nos referimos está ligada a um sonho possível. “A
esperança é necessidade ontológica” (FREIRE,1992, p. 10), ou seja, na sua
natureza o homem carrega consigo o sonho e a esperança os quais por
algumas razões, se perdem ao longo da vida. A este respeito Freire (1992,
p. 5) afirma: “Não sou esperançoso por pura teimosia, mas por
imperativo excepcional e histórico”. Este educador defende que a visão
fatalista pode ser combatida por meio da consciência crítica. Segundo
Zikoski, (2008, p. 191) no Dicionário Paulo Freire:
1
Paulo Freire apresenta este conceito “ser mais” no livro Pedagogia do Oprimido (1987), p.42, como
sendo a possibilidade da luta pela humanização, a desalienação e da afirmação dos homens como
pessoas.
2
Encharcado (a) é um termo que Paulo Freire usa em suas obras para falar em um sentido figurado “estar
tomado, inundar-se, embeber-se”.
44 • Paulo Freire: múltiplos olhares
do ato de afeto para com o outro por meio do diálogo, para Champagnat
é a base da relação educador/a-educando/a.
Freire, em seu livro Pedagogia da Autonomia (1996, p. 27)), traz o
seguinte questionamento: “como ser educador, se não desenvolvo em
mim a indispensável amorosidade aos educandos com quem me
comprometo e ao próprio processo formador de que sou parte?”. Furet
(1999, p. 501) indica que, segundo Champagnat, “para educar é preciso
antes de tudo amar: amar as crianças é jamais esquecer que elas são
seres frágeis e, portanto, devem ser tratadas com bondade, caridade e
indulgência, e serem instruídas e formadas com muita paciência". Nesse
sentido, podemos inferir que, para Marcelino Champagnat, a
amorosidade é o ato, a ação, assim como para Paulo Freire a
amorosidade é caridade e luta em movimento em favor dos oprimidos.
Ainda que seja clara a distância temporal e histórica entre Freire e
Champagnat, consideramos que ambos, dentro de suas realidades,
elegeram a amorosidade, a alegria, a ética e a estética, além da
preocupação com os pobres, como elementos essenciais para o ato
educativo e são, portanto, pontos de conexão na proposta educativa dos
dois educadores, como demonstramos ao longo desta investigação.
Acreditamos que promover uma reflexão propondo uma
interlocução dos princípios de Paulo Freire com os da missão marista
junto às infâncias e juventudes, contribuirá em alguma medida,
subsidiando professores/as no desenvolvimento de uma formação
integral das crianças e jovens apoiados na amorosidade, no diálogo e no
afeto para a vivência de um mundo mais justo e solidário por meio da
educação.
Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda • 45
Era exatamente por isso que desejava estar com os Irmãos. No seu entender,
o melhor meio de afeiçoá-los à vocação, levá-los ao amor da pobreza, à vida
regular e todas as virtudes de seu estado, seria pôr-se à frente deles, unir
sua sorte à deles, identificar-se com eles, dar-lhes o exemplo e ser o
primeiro a praticar antes de ensinar.
3
Este termo já foi utilizado antes, mas carece de um esclarecimento.” Irmãozinhos de Maria” foi o nome
dado aos Irmãos que atuavam nas escolas do Padre Champagnat conforme lemos na obra Vida de São
Marcelino Champagnat, Furet, p.363: [... deu-lhe o nome de Irmãozinhos de Maria (Petitis Frère de Marie)
a fim de que, através do nome, se lembrassem continuamente do que deviam ser.
48 • Paulo Freire: múltiplos olhares
É impossível ensinar sem essa coragem de querer bem, sem a valentia dos
que insistem mil vezes antes de uma desistência. É impossível ensinar sem
a capacidade forjada, inventada, bem cuidada de amar. Daí que se diga no
terceiro bloco do enunciado: Cartas a quem ousa ensinar. É preciso ousar, no
sentido pleno desta palavra, para falar em amor sem temer ser chamado de
piegas, de meloso, de a-científico, senão de anti-científico. É preciso ousar
para dizer, cientificamente e não bla-bla-blantemente, que estudamos,
aprendemos, ensinamos, conhecemos com o nosso corpo inteiro. Com os
sentimentos, com as emoções, com os desejos, com os medos, com as
dúvidas, com a paixão e também com a razão crítica (grifos no original).
Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda • 53
Pai nenhum teve mais afeto por seus filhos do que o Pe. Champagnat por
seus Irmãos. Seu coração, naturalmente bondoso e cheio de caridade para
com as pessoas em geral, transbordava de carinho pelos membros do seu
Instituto. Amava a todos os Irmãos igualmente, os jovens e os anciãos, os
imperfeitos e os mais virtuosos, embora estes lhe dessem maiores alegrias.
Nenhum deles o entrevistava ou lhe escrevia, sem dele receber alguma
prova de afeição.
Eu vos peço também, meus queridos Irmãos, com toda a afeição de minha
alma e por toda a afeição que tendes por mim, procederdes sempre de tal
modo que a santa caridade se mantenha sempre entre vós. Amai-vos uns
58 • Paulo Freire: múltiplos olhares
aos outros como Jesus Cristo vos amou. Que não haja entre vós senão um
mesmo coração e um mesmo espírito. Que se possa dizer dos Irmãozinhos
de Maria como dos primeiros cristãos: ‘Vede como eles se amam’... É o mais
ardente voto de meu coração neste último momento de minha vida. Sim,
meus caríssimos Irmãos, atendei às últimas palavras de vosso pai, pois são
as mesmas de nosso amado Salvador: ‘Amai-vos uns aos outros’. [...]. Uma
devoção terna e filial por nossa boa Mãe vos anime em todo tempo e em
todas as circunstâncias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não. Cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho
d’Água, 1997.
FREIRE, Paulo. Cartas à Cristina: Reflexões sobre minha vida e minhas práxis. Ana
Maria Araújo Freire (org.). 2. ed. São Paulo: UNESP, 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da tolerância. Ana Maria Araújo Freire (Org. e Notas). São
Paulo, UNESP, 2004.
FURET, João Batista et al. Guia das Escolas para uso nas casas dos Pequenos Irmãos de
Maria: Documento do 2º Capítulo Geral do Instituto Marista. Tradução de João José
Sagin; Virgílio Josué Balestro. Brasília, DF: UMBRASIL, 2009.
FURET, João Batista. Vida de São Marcelino José Bento Champagnat. Tradução de
Ângelo José Camatta. São Paulo: Loyola; SIMAR, [1856]1999.
GREEN, Michael. A Educação Marista a partir de 1993: sua vitalidade e seu potencial
para a criação de uma nova realidade. 1. ed. (Memorial Marista; v. 3). Curitiba: FTD,
2017.
STRECK, Danilo.; REDIN, Euclides.; ZITKOSKI, José. (org). Dicionário Paulo Freire. Belo
Horizonte: Autêntica, 2008.
ZITKOSKI, Euclides. Fatalismo. In: STRECK, Danilo; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, José.
(org). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte, 2008.
3
DESAFIOS PARA A FORMAÇÃO DE EDUCADORAS E
EDUCADORES NA E PARA A DIVERSIDADE CULTURAL
SOB O OLHAR DE PAULO FREIRE
Luci Frare Kira
INTRODUÇÃO
entre identidades nunca são vias de mão única. Mesmo quando uma
identidade é imposta sobre as demais, as identidades oprimidas sempre
influenciarão em alguma medida a identidade dominante. Assim,
nascem identidades híbridas que não são mais as identidades que as
originaram, mas que guardam traços delas.
Conforme Silva (2000), o fato de a hibridização não ser
determinada apenas por uma identidade dominante faz com que ela
possibilite o questionamento desta identidade fixa e hegemônica,
causando uma instabilidade que afeta as relações de poder. E estes
movimentos que desestabilizam e subvertem a tendência de fixação de
uma identidade acontecem, sobretudo, por meio das ações concretas
dos grupos sociais.
De acordo com Silva (2000), abordar a diversidade cultural na
educação implica em ir além da questão da tolerância e do respeito,
porque estas atitudes, por mais nobres que sejam, podem impedir que
se veja a identidade e a diferença como processos de produção social que
envolvem relações de poder. Isto é, defende que é preciso superar a visão
mágica que acredita que as identidades podem dialogar de forma
consensual e harmônica sem se questionar criticamente o sistema de
poder em que estão imersas. Afinal, “a identidade e a diferença têm a
ver com a atribuição de sentido ao mundo social e com disputa e luta em
torno dessa atribuição” (Silva, 2000, p. 96).
Nessa direção, Silva (2000) se questiona se as questões de
identidade e diferença se esgotam nas posições liberais da educação e se
elas são suficientes para sustentar pedagogias críticas e questionadoras.
Lança, então, um desafio para a educação em geral:
Luci Frare Kira • 71
Não deveríamos, antes de mais nada, ter uma teoria sobre a produção da
identidade e da diferença? Quais as implicações políticas de conceitos como
diferença, identidade, diversidade, alteridade? O que está em jogo na
identidade? Como se configuraria uma pedagogia e um currículo que
estivessem centrados não na diversidade, mas na diferença, concebida
como processo, uma pedagogia e um currículo que não se limitassem a
celebrar a identidade e a diferença, mas que buscassem problematizá-las?
(Silva, 2000, p. 73).
Para Brandão (2015, p. 11), “Paulo Freire foi um dos militantes mais
presentes em todo o trabalho de cultura popular que em pouco tempo se
espalhou do Norte ao Sul do Brasil”. Por isso, as palavras cultura e
política apareciam frequentemente em suas falas e seus escritos,
principalmente nas suas primeiras obras, se configurando também
como categorias epistemológicas chave de seu pensamento
sociopolítico-pedagógico.
Freire queria, além de ensinar pessoas do povo a ler e a escrever,
fazer com que mulheres e homens fossem capazes de ler criticamente
as palavras e o mundo, assim como de escrever criticamente as suas
próprias palavras.
O fenômeno da globalização reduziu tempos e espaços e
aproximou as múltiplas identidades e culturas existentes no mundo.
Mais do que isso, diminuiu a distância entre o colonialismo de séculos
atrás e o mundo atual, reproduzindo suas ideologias.
Luci Frare Kira • 77
CONSIDERAÇÕES FINAIS
[...] a reflexão sobre esta temática tem sua especificidade e vai penetrando
lentamente na vida acadêmica. No cotidiano escolar ainda está muito pouco
presente. Nos anos que levamos aprofundando esta temática não foi fácil
identificar propostas educativas concretas que tenham uma referência
explícita a questões que podem ser situadas no âmbito das preocupações
multiculturais (Candau, 2002, p. 156).
1
Na perspectiva heideggeriana, a ontologia diz respeito ao ser como um todo, ou seja, suas múltiplas
formas de existência (Heiddeger, 1995). Sendo assim, vocação ontológica é a vocação do ser.
Luci Frare Kira • 81
REFERÊNCIAS
BRANDÃO, C. R. Hoje, tantos anos depois. In: SOUZA, A. I. Paulo Freire: vida e obra. 3.
ed. São Paulo: Expressão Popular, 2015. p. 7-19.
FREIRE, L. C. Paulo Freire por seu filho. In: SOUZA, A. I. Paulo Freire: vida e obra. 3. ed.
São Paulo: Expressão Popular, 2015. p. 305-318.
FREIRE. P. Pedagogia do oprimido. 64. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017.
GADOTTI, M. Diversidade cultural e educação para todos. São Paulo: Graal, 1992.
INTRODUÇÃO
mesmo tempo, salvo e liberto das muitas formas de opressão que caem
sobre ele. Seria uma forma de anacronismo pretender simplesmente
nivelar estas diferenças, tornando-as menos evidentes ou menos
influentes. Nossa opção metodológica, portanto, é assumi-las de forma
consciente e explícita, sabendo que a pretensão de estabelecer tal
diálogo entre Luísa de Marillac, Vicente de Paulo e Paulo Freire não pode
pretender ofuscar as muitas diferenças que existem entre eles. Ao
mesmo tempo, contudo, segundo nossa compreensão, tais diferenças
também não tornam esse diálogo uma mera utopia.
O segundo diz respeito ao fato de que Luísa de Marillac e Vicente
de Paulo não eram, propriamente, pedagogos e nem especialistas em
educação: sua pedagogia pode ser de alguma forma destilada do modo
como entendiam a necessidade e a importância da educação no
horizonte da missão vicentina, assim como da forma como orientavam
as Filhas da Caridade no serviço aos pobres realizado também por meios
das escolas. Embora não houvesse em Luísa e Vicente uma explícita
teorização pedagógica, no sentido mesmo de uma produção intelectual
sobre o campo da educação, não se pode negar que havia uma autêntica
intencionalidade pedagógica e, mais ainda, uma práxis pedagógica.
Desse modo, compreendemos que é plenamente possível que, com tais
atributos, a Pedagogia Vicentina possa entabular um diálogo com a
Pedagogia Freiriana.
Entendemos, com efeito, que na Pedagogia Vicentina e na
Pedagogia Freiriana há um mesmo horizonte ou uma mesma
perspectiva a partir do que se pode pensar a educação e refletir sobre
seus principais sujeitos e atores. Nossa intenção, portanto, é mostrar
que tal aproximação e diálogo são possíveis porque, em ambas as
Suzane Tizott • 93
A libertação que Cristo traz aos pobres é, na visão de São Vicente, integral,
e daí é que se deve servir aos pobres corporal e espiritualmente; para São
Vicente, a evangelização e a promoção humana são complementares.
Atender ao corpo, ensinar a ler e a escrever, assistir de modo geral a pessoa
dos pobres mas sem esquecer de orientá-los para Deus (MORANTE, p. 60, in
CEME, 1997, tradução nossa).
O outro é parte da ação, por isso Luísa e Vicente atuavam com uma
sensibilidade para perceber que as ações podem ser complementadas
pela alteridade. A educação é o processo de humanização que acontece
no encontro face a face. A partir da ética da alteridade, encontrar e
interagir com o outro é acolher o seu jeito de ser.
Libertação, humanização e vocação para superar-se são temas
profundamente interligados no pensamento de Paulo Freire. Por isso,
ele afirma: “Os oprimidos, nos vários momentos de sua libertação,
precisam reconhecer-se como homens, na sua vocação ontológica e
histórica de Ser Mais” (FREIRE, 1974, p. 57).
leu o evangelho de Lucas [Lc 4,18-19] e ficou cativado pelo texto em que
Jesus se apresenta como aquele que fez da opção pelos pobres o traço
distintivo de sua missão. [...] Este Cristo Pobre, que se dirige principalmente
aos pobres e se declara seu evangelizador, polariza a consciência vicentina
(MORANTE, p. 58, in CEME, 1997, tradução nossa).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A educação como prática da dominação, que vem sendo objeto desta crítica,
mantendo a ingenuidade dos educandos, o que pretende, em seu marco
ideológico, (nem sempre percebido por muitos dos que a realizam) é
indoutriná-los no sentido de sua acomodação ao mundo da opressão
(FREIRE, 1974, p. 76).
toda vez que se suprime a liberdade, fica ele um ser meramente ajustado ou
acomodado. E é por isso que, minimizado e cerceado, acomodado a
ajustamentos que lhe sejam impostos, sem o direito de discuti-los, o homem
sacrifica imediatamente a sua capacidade criadora (FREIRE, 1997, p. 42).
é sobre este homem abstração nem sobre este mundo sem homem, mas
sobre os homens em suas relações com o mundo (FREIRE, 1974, p. 81).
É por esta razão que a libertação não pode vir apenas como uma
espécie de dádiva externa, que alguém recebe de forma acabada, sem
envolvimento nem participação. Este necessário processo de
conscientização é já uma forma inicial de envolvimento, de
participação, de engajamento, muito embora não signifique, por si só, a
Suzane Tizott • 113
REFERÊNCIAS
BOFF, Leonardo. Teologia do cativeiro e da libertação. 6. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.
DALLA ROSA, Luís Carlos. Educar para a Sabedoria do Amor: A Alteridade como
paradigma educativo. São Paulo: Paulinas, 2012.
DUSSEL, Enrique D. Para uma ética da libertação latino-americana. São Paulo: Loyola, 1987.
GUTIÉRREZ, Maria Cruz. Santa Luísa, educadora. In: CEME. El carisma vicenciano en la
educación. Barcelona, 1997.
MARILLAC, Santa Luísa de. Correspondência e escritos. São Paulo: Editora Legis
Summa, 1983. MESQUIDA, Peri et all. Paulo Freire e o sonho possível: Da Paideia
Libertadora à utopia como militans spes atualizadora do futuro. In: BORGES, Valdir
e MESQUIDA, Peri. Paulo Freire: Filosofia, Linguagem, Educação e Sociedade.
Curitiba: CRV, 2021, p. 33-47.
ILVA, R. F. da; MESQUIDA, P. Paulo Freire: uma educação do cuidado da vida, do diálogo
e do amor ao mundo. Olhar de Professor, [S. l.], v. 25, p. 1–18, 2022. DOI:
10.5212/OlharProfr.v.25.17035.006. Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.
php/olhardeprofessor/article/view/17035. Acesso em: 1 ago. 2022.
DALLA ROSA, Luís Carlos. Educar para a Sabedoria do Amor: A Alteridade como
paradigma educativo. São Paulo: Paulinas, 2012.
118 • Paulo Freire: múltiplos olhares
INTRODUÇÃO
1
O momento de trânsito propicia o que vimos chamando, em linguagem figurada, de “pororoca”
histórico-cultural. Contradições cada vez mais fortes entre formas de ser, de visualizar, de comportar-se,
de valorar, do ontem e outras formas de ser de visualizar e de valorar, carregadas de futuro. Na medida
em que se aprofundam as contradições, a “pororoca” se faz mais forte e o clima dela se torna mais e
mais emocional. (FREIRE, 1969, p. 46).
Maurício Eduardo Bernz • 121
Os novos temas, ou a nova visão dos velhos, reprimidos nos recuos, insistem
em sua marcha até que, esgotadas as vigências dos velhos temas, alcancem
a sua plenitude e a sociedade então se encontrará em seu ritmo normal de
mudanças, à espera de novo momento de trânsito, em que o homem se
humanize cada vez mais. (FREIRE, 1969, p. 48).
2
Ao mencionar o termo “sociedade fechada”, Freire traz presente a reflexão de Karl Popper em sua obra
“A Sociedade Democrática e seus Inimigos” (2006). Popper diferencia a sociedade aberta e fechada da
seguinte forma: enquanto que na aberta existe espaço para a liberdade crítica e alteração ou
conservação de leis e costumes, na fechada as leis e costumes são vistos como tabus imunes à crítica e
avaliação pelos indivíduos.
3
Cf. FREIRE, 1969, p. 49
122 • Paulo Freire: múltiplos olhares
De tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem nada, que
não podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em
virtude de tudo isto, terminam por se convencer de sua incapacidade. Falam
de si como os que não sabem e do doutor como o que sabe e a quem devem
escutar. Os critérios de saber que lhe são impostos são os convencionais.
(FREIRE, 2015, p. 69).
4
Este medo da liberdade também se instala nos opressores, mas, obviamente, de maneira diferente.
Nos oprimidos, o medo da liberdade é o medo de assumi-la. Nos opressores, é o medo de perder a
liberdade de oprimir. (Cf. FREIRE, 2015, p. 45).
126 • Paulo Freire: múltiplos olhares
5
Paulo Freire insiste que precisamos ter esperança do verbo “esperançar” e não do “esperar”. Isso porque
a esperança do verbo “esperar”, para o autor, é somente uma espera, mas esperançar é mais do que isso,
é se levantar e buscar, de fato, a esperança; construí-la e não desanimar ou desistir.
Maurício Eduardo Bernz • 127
Existir ultrapassa viver porque é mais do que estar no mundo. É estar nele
e com ele. E é essa capacidade ou possibilidade de ligação comunicativa do
existente com o mundo objetivo, contida na própria etimologia da palavra,
que incorpora ao existir o sentido de criticidade que não há no simples
viver. Transcender, discernir, dialogar (comunicar e participar) são
exclusividades do existir. (FREIRE, 1969, p. 40).
Na medida em que esta visão bancária anula o poder criador dos educandos
ou o minimiza, estimulando sua ingenuidade e não sua criticidade, satisfaz
aos interesses dos opressores: para estes, o fundamental não é o
desnudamento do mundo, a sua transformação. (FREIRE, 2015, p. 83).
Para ele, quem escuta sequer tem tempo próprio, pois o tempo de quem
escuta é o seu, o tempo de sua fala. Sua fala, por isso mesmo, se dá num
espaço silenciado e não num espaço com ou sem silêncio. Ao contrário, o
espaço do educador democrático, que aprende a falar escutando, é cortado
pelo silêncio intermitente de quem, falando, cala para escutar a quem,
silencioso, e não silenciado, fala. (FREIRE, 2016, p. 115).
Certamente, este seja o processo estipulado e desejado, uma vez que seu
anseio seja pura e simplesmente impor a passividade aos seus
educandos. Na leitura de Freire, quanto mais passivos os educandos
tornarem-se, tanto mais ingênuos se apresentarão; isto é, eles tendem
a adaptar-se ao mundo estabelecido, à realidade nos depósitos que
receberam. Segundo o educador brasileiro (2015, p. 84), os opressores
pretendem justamente transformar a mentalidade dos oprimidos e não
a situação que os oprime, pois quanto mais adaptados e inseridos
estiverem a esta realidade, com mais facilidade os dominarão.
Notamos que o cerne da questão está na maneira como se pensa,
ou seja, pensar autenticamente pode tornar-se perigoso. Para tanto,
prevendo esta possível catástrofe, os opressores usam de vários
artifícios que inibem o pensamento crítico, de modo a instalar nos
educandos a passividade.
6
Cf. FREIRE, 2016, p. 113
134 • Paulo Freire: múltiplos olhares
7
Cf. FREIRE, 2016, p. 115
136 • Paulo Freire: múltiplos olhares
8
Tomando para si a reflexão do Professor Álvaro Vieira Pinto, Freire destaca que as “situações-limite”,
distante da dimensão pessimista, não são o conforto infranqueável onde terminam as possibilidades,
mas a margem real onde começam todas as possibilidades; não são a fronteira entre o ser e o nada, mas
a fronteira entre o ser e o ser mais. (Cf. PINTO, 1960, p. 284).
9
Freire traz à reflexão os termos “biófila” e “necrófila”, inspirados na obra de Erich Fromm – O coração
do Homem. A consciência biófila é motivada por sua atração pela vida e alegria; o esforço moral consiste
em fortalecer o aspecto amante da vida em si mesmo, enquanto que a necrófila é ordeira, obsessiva e
pedante. (Cf. FROMM, 1970).
Maurício Eduardo Bernz • 137
10
Cf. FREIRE, 2015, p. 90
138 • Paulo Freire: múltiplos olhares
11
Se as massas populares dominadas, por todas as considerações já feitas, se acham incapazes, num
certo momento histórico, de atender à sua vocação de ser sujeito, será pela problematização de sua
própria opressão, que implica sempre uma forma qualquer de ação, que elas poderão fazê-lo. (Cf. FREIRE,
2015, p. 227).
Maurício Eduardo Bernz • 139
12
Cf. FREIRE, 1995, p. 72.
140 • Paulo Freire: múltiplos olhares
Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que minha passagem pelo
mundo não é predeterminada, preestabelecida. . Que o meu destino não é
dado, mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso
me eximir. Gosto de ser gente porque a história em que me faço com os
outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades, e não de
determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse
sua inexorabilidade. (FREIRE, 2016, p. 52).
vir a ser. Não ocorre em data marcada”. São nestes fundamentos que
uma pedagogia que visa a autonomia, ou seja, deve centrar em
experiências de decisão e responsabilidade, em experiências respeitosas
da liberdade.
A vida não está para o ser humano, entretanto, é o ser humano que
está para a vida; homens e mulheres precisam, portanto, colocarem
sentido na sua existência e não ao contrário. O mesmo pensamento deve
permear a sala de aula.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1969.
FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. 2ª ed. São Paulo: Olho d’água: 1995.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 59ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
GADOTTI, Moacir (Org.); FREIRE, Ana Maria Araújo; CISESKI, Ângela Antunes; TORRES,
Carlos Alberto; et al. PAULO FREIRE – Uma bibliografia. São Paulo: Editora Cortez,
1996.
PINTO, Alvaro Vieira. Consciência e realidade nacional. Rio de Janeiro: ISEB, 1960.
POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Belo Horizonte: Editora Itatiaia,
2006.
MINI CURRÍCULOS
Suzane Tizott
Filha de Caridade. Graduada em Pedagogia (Pontifícia Universidade Católica do Paraná),
Mestre em Educação (Pontifícia Universidade Católica do Paraná), Articuladora
Institucional da Comissão de Educação da Província de Curitiba, Diretora da Escola
Vicentina Nossa Senhora das Mercês.
Peri Mesquida
Doutor em Ciências da Educação. Pós-doutor em epistemologia dos métodos de pesquisa
em Educação. Professor titular da Pucpr. Professor convidado das Universidades de
Genebra e Fribourg, na Suíça e colaborador da Université Catholique de l’Ouest - Angers,
França.
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