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PAULO FREIRE
PAULO FREIRE

MÚLTIPLOS OLHARES

Organizador
Peri Mesquida
Diagramação: Marcelo Alves
Capa: Gabrielle do Carmo

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

P331 Paulo Freire: múltiplos olhares [recurso eletrônico] / Peri Mesquida (org.).
Cachoeirinha : Fi, 2024.

148p.

ISBN 978-65-85725-93-4

DOI 10.22350/9786585725934

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Educação – Filosofia – Sociologia – Paulo Freire. I. Mesquida,


Peri.

CDU 37.01/.09:316:141(Paulo Freire)

Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto – CRB 10/1023


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 7
Peri Mesquida

1 13
O FALAR POPULAR E SUA BONITEZA PARA DIZER O MUNDO: A LINGUAGEM POPULAR
PARA A COMUNICAÇÃO E A EDUCAÇÃO LIBERTADORAS À LUZ DE PAULO FREIRE
Rafaela Bortolin Pinheiro

2 39
FREIRE E CHAMPAGNAT: POSSÍVEIS APROXIMAÇÕES
Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda

3 65
DESAFIOS PARA A FORMAÇÃO DE EDUCADORAS E EDUCADORES NA E PARA A
DIVERSIDADE CULTURAL SOB O OLHAR DE PAULO FREIRE
Luci Frare Kira

4 87
PEDAGOGIA VICENTINA EM DIÁLOGO COM A PEDAGOGIA FREIREANA
Suzane Tizott

5 119
DA DIALÉTICA OPRESSOR/OPRIMIDO PARA UM CAMINHO EDUCACIONAL DE
LIBERDADE E HUMANIZAÇÃO
Maurício Eduardo Bernz

MINI CURRÍCULOS 147


APRESENTAÇÃO
Peri Mesquida

Paulo Freire: múltiplos olhares é um livro que, como o próprio título


indica, lança olhares sobre campos variados do conhecimento a partir
da visão da pedagogia filosófica e sociopolítica de Paulo Freire. Assim,
desde um diálogo entre Luísa de Marillac e o educador brasileiro, até
uma crítica sociológica à situação de opressão do “pobre”, visto como
preguiçoso, ameaçador, alimentando a xenofobia, o racismo, resultado
do que Adela Cortina chamou de Aporofobia, na obra Aporofobia, a
aversão ao pobre: um desafio para a democracia (2020). É um livro de
educadoras e educadores que contam suas experiências ao longo da
tarefa de aprender e ensinar, partilhando o conhecimento que
produziram. Propõem-se desafios de realizarem investigações
científicas e socializar os resultados das suas pesquisas, abertas e
abertos a críticas, na certeza de que a crítica provoca aprofundamento
das pesquisas e novos olhares para os mesmos temas. Não são neófitos,
pois praticamente já têm um caminho percorrido na pesquisa, no
ensinar e no aprender. Fizeram leituras de obras de Paulo Freire, se
encontrando com um intelectual orgânico, portanto, militante, como
diria Gramsci (1975), capaz de expressar o amor pelo outro oprimido,
mas também, de não se conformar com as injustiças. Sim, Paulo Freire,
ao perceber, pela experiência e pela análise interpretativa e crítica da
realidade, particularmente brasileira, foi capaz de expressar sua raiva
da maldade do modo de produção em vigor no Brasil e das “classes
8• Paulo Freire: múltiplos olhares

dominantes” que excluem e condenam à morte os “pobres”, aliás, os


empobrecidos, por ele chamados de “oprimidos”. Por isso, as autoras e
os autores desta obra, como Paulo Freire, sentem que não podem estar
no mundo de maneira apática à realidade, às injustiças, à negação da
humanidade e às violências que destroem a natureza. Sabem que sua
responsabilidade é responsabilidade diante da negação, da violência.
Trata-se de uma responsabilidade ética (Mesquida, 2022), pois “é no
domínio da decisão, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura
a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade” (Freire, 1997, p. 9).
Portanto, leitoras e leitores, vocês encontrarão ao longo das páginas
deste livro um apelo ao diálogo, a um novo comportamento ético no
trato da ação pedagógica, à construção do novo na escola e na sociedade
à luz do pensamento filosófico, pedagógico e sociopolítico de Paulo
Freire.
Dessa maneira, o artigo de Rafaela Bortolin Pinheiro, O falar
popular e sua boniteza para dizer o mundo: a linguagem popular para a
comunicação e a educação libertadoras à luz de Paulo Freire, nos coloca
diante da importância de se respeitar a maneira como as “pessoas do
povo” falam e expressam seus sentimentos, suas emoções, seu
pensamento e, diante disso, o papel da educação na ação pedagógica de
lhes mostrar que a linguagem é um recurso fundamental para
“exercerem a crítica e a cidadania, refletirem de forma consciente sobre
a realidade e se comunicarem expressando suas vozes autênticas”. E,
sobretudo, se reconhecerem como “agentes que podem reescrever o
mundo ao se comunicarem numa perspectiva libertadora. Sujeitos
comunicantes em essência e em ação”. O papel da escola é de dar voz aos
silenciados, fazendo delas e deles seres capazes de denunciar as
Peri Mesquida •9

injustiças e anunciar um mundo novo, mais justo e mais humano que


ajudarão a construir. Sua palavra se torna logos.
A mestre em educação, Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda,
no segundo capítulo, Freire e Champagnat: possíveis aproximações, ao
aproximar o pensamento e a prática de dois intelectuais da educação,
separados por um século e dois Continentes de distância, Marcelino
Champagnat (1789-1840) e Paulo Freire (1921-1997), conclui que, para
ambos, a educação tem como uma das suas finalidades a formação do
caráter, e que a escola (Champagnat) e os círculos de cultura (Freire),
precisam contribuir para a formação de cidadãos e cidadãs
inconformados/as com o status quo, e capazes de lutar para a
transformação da realidade. Portanto, a educação é um “ato político”,
como dizia Paulo Freire (1975, p. 38).
O texto Desafios para a formação de educadoras e educadores na e
para a diversidade cultural sob o olhar de Paulo Freire, de Luci Frare Kira,
defende a tese de que no mundo globalizado formar educadoras e
educadores capazes de superar a cultura dominante, é possível se
formadoras e formadores, estiverem imbuídos do referencial teórico-
metodológico de Paulo Freire, tendo no horizonte a terceira tese de
Marx sobre Feuerbach: a educadora e o educador precisam ser
educada/os, e afinal, quem educado o educador e a educadora? Mostra
que se o colonialismo clássico, que impôs não somente a visão de mundo
do colonizador, mas também sua cultura, aparentemente acabou, ele
teve continuidade no que ficou conhecido por colonialidade, ou
neocolonialismo. Nesta nova versão do colonialismo, a colonização se
faz pela ideologização das mentes, as conformando à mentalidade dos
dominantes. Isso se faz não somente pela ação contínua sobre as
10 • Paulo Freire: múltiplos olhares

mentes, mas também, e com muita força, pela ação dos “poderes e dos
micropoderes que mantém a hegemonia política, econômica e cultural
das elites”. Para se sobrepor a isso, educadoras e educadores precisam
se munir de um referencial teórico-prático poderoso que, pela ação de
um processo de “conscientização”, lhes possibilite superar as situações-
limite e trilhar o caminho da humanização, verdadeira vocação
ontológica dos seres humanos (Freire, 1975), afirmando a sua cultura.
No quarto capítulo, Pedagogia vicentina em diálogo com a pedagogia
freiriana, Suzane Tizott coloca em contato o pensamento de São Vicente
de Paulo e Paulo Freire, pensando na sua complementaridade como base
não somente para a elaboração de um currículo, como ainda para a
prática pedagógica em instituições de ensino. Enquanto a Rede
Vicentina se propõe a “educar crianças, adolescentes e jovens,
orientados pelos valores humanos, cristãos e vicentinos” (Rede
Vicentina de Educação, 2019, p. 29), Suzane acredita que para alcançar
esse objetivo é fundamental que haja uma proposta de diálogo, na
diversidade, com toda a comunidade, isto é, o diálogo fundado no
humanismo cristão de Paulo Freire, tal como aparece na obra Educação
como prática da liberdade (1997), onde os conceitos de caridade,
comunhão, alteridade, comunicação, respeito e liberdade estão em
sintonia com uma “educação pautada em valores cristãos
humanizadores e libertadores”. Portanto, não se trata de realizar uma
reflexão destituída dos “valores cristãos...desvinculada da existência
concreta e histórica em que o drama da vida se desenrola, mas a partir
da realidade histórica em que vivem os homens e as mulheres, em
especial as ‘esfarrapadas/os do mundo’” (Freire, 1975, p. 32),
desumanizados/as à espera de ações humanizadoras.
Peri Mesquida • 11

O quinto capítulo do livro tem como título Da dialética


opressor/oprimido para um caminho educacional de liberdade e
humanização, de Maurício Eduardo Bernz. Trata-se de um olhar
freiriano dirigido para a realidade da educação brasileira quando esta
serve ao opressor e desumaniza o oprimido. Uma educação “bancária”
centrada na memorização acrítica do conhecimento e na superioridade
do professor, guardião do saber. Este, na sua ação pedagógica, veicula a
ideologia da conservação do status quo opressor e desumanizante,
introjetando na mente do oprimido o conformismo e o determinismo. É
um ato educativo que violenta o espírito e a mente do educando e da
educanda, como esclarece Paulo Freire (1975, p. 58): “Não haveria
oprimidos, se não houvesse uma relação de violência que os conforma
como violentados, numa situação objetiva de opressão” que os
desumaniza. É uma educação antivida, necrófila. Para Maurício Eduardo
Bernz, Paulo Freire privilegia a vida e quer que a educação se processe
no mundo da vida, sendo libertadora e humanizadora. Mais, ainda: para
Freire, a libertação da opressora e do opressor é condição para a
libertação da oprimida e do oprimido, fazendo de ambos seres biófilos.

REFERÊNCIA

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.


O FALAR POPULAR E SUA BONITEZA PARA
1
DIZER O MUNDO: A LINGUAGEM POPULAR
PARA A COMUNICAÇÃO E A EDUCAÇÃO
LIBERTADORAS À LUZ DE PAULO FREIRE 1
Rafaela Bortolin Pinheiro

INTRODUÇÃO

Seja em suas ações do cotidiano ou especificamente no dia a dia


dentro da escola, educandos e educadores estão imersos em um mundo
de comunicação: o tempo todo há momentos para falar, escutar, ler e
escrever de maneira a expressar suas opiniões, ideias e conhecimentos
e também ter contato com as opiniões, ideias e conhecimentos de outras
pessoas a partir de linguagens múltiplas e variadas.
Como explicam Micarello e Baptista (2018, p. 170), “a linguagem é o
lugar de encontro entre sujeitos, bem como de produção e
compartilhamento de sentidos sobre a experiência humana e de
construção de subjetividades”. Assim, o uso das múltiplas linguagens é
uma possibilidade tanto para transmitir aquilo que queremos
expressar, quanto para ter contato com aquilo que nossos
interlocutores objetivam dizer.

1
Este texto é um desdobramento de uma investigação iniciada na tese de doutorado “O jornal escolar
para a formação de consciência crítica à luz de Paulo Freire: a expressão da palavra silenciada para
materializar o diálogo autônomo e libertador” (PINHEIRO, 2017), orientada pelo professor doutor Peri
Mesquida dentro do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (PUCPR).
14 • Paulo Freire: múltiplos olhares

Catão (2018, p. 88) resume que “a linguagem faz com que


pensamentos e emoções de um sujeito possam habitar outro”. De maneira
mais profunda, é a possibilidade de construir sentidos de maneira
coletiva, a partir do diálogo entre as percepções, ideias e conhecimentos
dos diferentes sujeitos que compõem um processo comunicativo.
Aqui, precisamos compreender o que é a Comunicação. O
educomunicador argentino Mario Kaplún (2002) aponta que há duas
perspectivas possíveis para o termo Comunicação. A primeira é o
conceito de comunicar, geralmente associado a informar, transmitir,
emitir. A segunda seria a definição de comunicar-se, atrelada a uma
relação recíproca de diálogo, intercâmbio, partilha. Ou seja: nem sempre
quem comunica está de fato se comunicando.
Um dos autores essenciais do campo da Comunicação, o filósofo
alemão Jürgen Habermas (2001), propõe a Teoria do Agir Comunicativo,
defendendo que os sujeitos se relacionam – reflexiva e criticamente –
com o mundo a partir da comunicação. Nesse contexto, a linguagem é
fundamental, já que é por meio dela que os seres humanos podem
referir-se ao mundo.
Indo além, é pela linguagem – em seu papel como mediadora da
interação social – que pode se dar o entendimento mútuo entre os
sujeitos, o que tornaria importante romper com o modelo que nega a
homens e mulheres sua condição de sujeitos comunicantes.
Nesse sentido, é importante perceber como é permitido a apenas
alguns comunicarem – e efetivamente se comunicarem –, em um
contexto em que algumas linguagens são tidas como padrões de
comunicação, enquanto outras seriam desvios, afastamentos das normas
ou, simplesmente, falhas e erros.
Rafaela Bortolin Pinheiro • 15

A partir dessa perspectiva, Paulo Freire (2013b, p. 101) chama a


atenção para um ponto fundamental: não é possível discutir a
linguagem sem levar em conta as classes sociais, suas relações de poder
e as questões ideológicas relacionadas ao seu uso, afinal, “se há um
‘padrão culto’ é porque há outro considerado inculto. Quem perfilou o
inculto como tal?”.
Assim, precisamos refletir sobre o porquê de determinadas
linguagens serem consideradas corretas para desenvolver um processo
comunicativo, enquanto outras são vistas como erradas ou mesmo
inferiores.
Se o objetivo da linguagem é proporcionar possibilidades de
Comunicação, promovendo a compreensão entre os sujeitos
comunicantes, será que é realmente possível determinar que alguns
tipos de linguagem são melhores e mais cultos em detrimento de outros
piores e menos cultos? Quem determina essa classificação? E a quem
interessa que ela seja tão preponderante?
É a partir dessa reflexão e tomando como perspectiva o
pensamento do educador brasileiro Paulo Freire que o presente texto
tem como tema a linguagem popular e sua importância para a
comunicação e a educação libertadoras. Nosso objetivo é investigar se, e
como, a linguagem popular pode ser considerada como um meio para uma
perspectiva de comunicação e educação libertadoras à luz de Paulo Freire.
Tendo em vista esse objetivo, traçamos como caminho para a
investigação primeiramente identificar o interesse pessoal e a
importância dos estudos sobre linguagem (e sobre a Língua Portuguesa)
para os trabalhos de Freire. Em seguida, voltamos nosso olhar para a
Educação e a Comunicação segundo a perspectiva freiriana, identificando
16 • Paulo Freire: múltiplos olhares

como é possível sair de uma perspectiva de educação-comunicação


bancária para construir uma educação-comunicação libertadora.
Por fim, nosso foco está em compreender as possibilidades e
contribuições da linguagem popular para uma comunicação e uma
educação libertadoras segundo o pensamento freiriano: afinal, como as
expressões, metáforas e usos da linguagem popular expressam uma
leitura de mundo e são recursos importantes para a leitura-escrita da
palavra e posterior reescrita do mundo em uma perspectiva libertadora?
Para isso, optamos pela hermenêutica como método de pesquisa,
tendo como aporte Ricoeur (1978, 1988) e Gadamer (1999). Ao longo da
investigação, temos como referencial teórico as obras de Paulo Freire,
principalmente: Política e educação (1997), Educação e atualidade brasileira
(2003), Pedagogia do oprimido (2005), A importância do ato de ler: em três
artigos que se completam (2006) e Extensão ou comunicação? (2011c).

PAULO FREIRE: O INTERESSE POR SINTAXE, LINGUÍSTICA E COMUNICAÇÃO


O ENCANTAMENTO PELAS EXPRESSÕES E USOS POPULARES DA LÍNGUA
PORTUGUESA

Paulo Freire nasceu em 19 de setembro de 1921, em Recife, capital


de Pernambuco. Era filho de Joaquim Temístocles Freire, um sargento
do exército vindo do Rio Grande do Norte, homem muito curioso e
inteligente, de quem Freire recordava o bom domínio das línguas
portuguesa e francesa, e de Edeltrudes Neves Freire (a dona Tudinha),
mulher pernambucana, católica e base da família por sua força e doçura
(FREIRE; GUIMARÃES, 1982).
Em suas obras, Freire frequentemente citava a influência de sua
família e das experiências de sua infância em seu trabalho e em suas
propostas para a Educação. Ele relembra que foi alfabetizado pelos pais,
Rafaela Bortolin Pinheiro • 17

no quintal de casa, “[...] à sombra das mangueiras, com palavras do meu


mundo e não do mundo maior dos meus pais. O chão foi meu quadro-
negro; gravetos, o meu giz” (FREIRE, 2006, p. 15, grifo nosso).
Além da alfabetização valorizando seu vocabulário de experiências
infantis, Freire (1997, p. 83) recorda que sua disposição ao diálogo
também foi despertada pelos pais e sua maneira aberta e respeitosa de
possibilitar que os filhos perguntassem, discordassem, criticassem,
fundamentais para a compreensão “de como, desde os começos de
minha indecisa prática docente, eu já me inclinava, convicto, ao diálogo,
ao respeito ao aluno”.
Desde cedo, Freire revelou forte interesse pela Língua Portuguesa
e percebeu seu “[...] prazer pelos estudos de gramática sem resvalar
jamais para as gramatiquices” (FREIRE, 2013a, p. 92). Ele relembra que,
ainda no curso ginasial, já se desenvolvia “[...] na percepção crítica dos
textos que lia em classe, com a colaboração até hoje recordada, do meu
então professor de língua portuguesa” (FREIRE, 2006, p. 16).
Ainda em seus vinte anos, Freire se torna professor de Língua
Portuguesa das primeiras séries do curso ginasial. Neste momento, ele
contesta o ensino-padrão de língua materna: ao invés de despejar várias
regras de sintaxe e ortografia nos alunos, o educador trabalhava com a
interpretação e análise de textos de autores famosos, mas principalmente
de produções dos próprios educandos. Era desses textos que emergiam as
questões de gramática e o estudo da língua era realizado de maneira
concreta, dinâmica e viva, estimulando a curiosidade dos alunos e
possibilitando um trabalho que valorizava as expressões próprias dos
educandos em processo de produção de leitura e escrita.
18 • Paulo Freire: múltiplos olhares

Para Freire (2006), esse período foi fundamental justamente para


que pudesse perceber como leitura e escrita eram indicotomizáveis. O
educador (1997, p. 82) relembra como era intensa a experiência de
discussão coletiva com os alunos a partir de seus próprios textos, na
qual eles se engajavam

com vivo interesse, em torno de frases, de retalhos de seus trabalhos, que


eu selecionava e na análise dos quais se abria todo um horizonte temático.
[...] A sintaxe emergia esclarecedora da fala viva dos autores dos textos. Não
era transplantada das páginas frias de uma gramática.

Atraído pela sintaxe e pelo estudo da Língua Portuguesa, Freire


passou a ler obras de Linguística, Filologia, Filosofia da Linguagem e
teorias da Comunicação, interessado “[...] pelos temas do significado, dos
signos linguísticos e da necessidade real da inteligibilidade dos signos
linguísticos entre sujeitos conversando entre si para que ocorresse uma
autêntica comunicação” (FREIRE; MACEDO, 2011, p. 199, grifo nosso).
Em entrevista a Carlos Lyra (1996, p. 179-180, grifos nossos), Freire
relembra

[...] em certo momento de minhas buscas no campo da linguística, por


exemplo, aí absolutamente autodidata, sendo convidado para aquilo pelas
minhas leituras, de repente eu me encontro com problemas de teoria de
comunicação e linguagem. E foi exatamente isso que me deu, inclusive isso
teve assim um impacto que se desdobra com duas repercussões: uma, que
foi a decisão de a partir daí, da compreensão da comunicação, entrar na
educação mesmo; e a outra foi a de continuar certos estudos, certas leituras no
campo da linguagem, uma compreensão em torno da linguagem, da língua, dos
símbolos linguísticos.

Assim, Freire destaca seu interesse pela compreensão a respeito da


linguagem, suas características, suas possibilidades e seus usos, assim
Rafaela Bortolin Pinheiro • 19

como pela compreensão da Comunicação como ponto de entrada para


um pensar-agir-pensar dentro da Educação.
A partir da influência de sua primeira esposa, Elza Maria Costa
Oliveira – professora primária, depois diretora de escola –, o educador
reforça também seu interesse pela alfabetização (FREIRE; MACEDO,
2011). Aos 25 anos, ele é convidado a trabalhar no Serviço Social da
Indústria (SESI), atuando em áreas rurais e urbanas de Recife e das
proximidades da capital.
É no SESI que o educador desenvolve experiências de vinculação
entre a escola e a comunidade, a partir de debates promovidos com os
operários para que discutissem suas dificuldades comuns, os problemas
do bairro e da cidade (FREIRE, 2003). Desponta a opção freiriana pelo
diálogo democrático como meio de combater a massificação e
incentivar os sujeitos a analisarem, discutirem e conhecerem a
realidade a partir de sua própria linguagem, suas próprias expressões e
sua própria leitura de mundo, perspectiva que o acompanhará em todas
as suas obras.
Outro momento fundamental para Freire é a experiência em
Angicos, no Rio Grande do Norte. Em 1963, Freire foi procurado por
Calazans Fernandes, jornalista e secretário de Educação do Rio Grande
do Norte, para discutirem o desenvolvimento de um projeto de
alfabetização de adultos no estado potiguar. O projeto é colocado em
prática com 300 alfabetizandos e alfabetizandas, “distribuídos entre
quinze Círculos de Cultura instalados em salas de aula de escola ou de
casas da cidade” (FREIRE, 2013a, p. 223). Em apenas 40 horas, educandos
e educandas estavam alfabetizados(as).
20 • Paulo Freire: múltiplos olhares

Para Fernandes e Terra (1994, p. 8-9, grifo nosso), a experiência em


Angicos foi pioneira por se basear na defesa de que, na relação entre
educandos e educadores, é fundamental

[...] uma situação dialógica de aprendizagem. Isto é, tanto a fala e o


conhecimento do professor como a fala e a cultura do estudante são
enriquecedores para a construção do saber. [...] Rompia com alguns dos
dogmas da educação tradicional: não só as crianças aprendem; não só o
professor e a escola dominam o saber; não só os livros didáticos comandam
a rotina da sala de aula; não só o saber formal deve ser levado em conta no
processo de aprendizagem.

Em 1964, o golpe e a instauração de um período de ditadura militar


levam Freire a sair do Brasil e morar em diferentes países, como Bolívia,
Chile, Estados Unidos e Suíça. Nesse período, mais que exilado, Freire se
torna um andarilho do óbvio (FREIRE, 1991), viajando por Caribe, América
do Norte, Ásia, Europa e Oceania para ensinar e aprender sobre
alfabetização e educação popular, além do trabalho em vários países da
África, que recentemente haviam se libertado do jugo da colonização
europeia.
Sobre esse período longe do Brasil, Freire relembra que uma de
suas primeiras lições foi constatar que “[...] as culturas não são melhores
nem piores, as expressões culturais não são melhores nem piores, são
diferentes entre elas” (FREIRE; FAUNDEZ, 1985, p. 25).
É partindo dessa perspectiva que voltamos nosso olhar para a
compreensão da educação-comunicação libertadora e o papel da
linguagem popular para o desenvolvimento de um educar-comunicar
realmente problematizador.
Rafaela Bortolin Pinheiro • 21

DA EDUCAÇÃO-COMUNICAÇÃO BANCÁRIA À EDUCAÇÃO-COMUNICAÇÃO


LIBERTADORA: DIZER SUA PALAVRA PARA SE EXPRESSAR E EXPRESSAR O
MUNDO

Para Freire, os seres humanos são capazes de não apenas se


relacionar com a natureza – a qual não produzem, mas oferecem
significação –, mas serem igualmente criadores de cultura. Por isso, o
ser humano “[...] não vive autenticamente enquanto não se acha
integrado com a sua realidade. Criticamente integrado com ela”
(FREIRE, 2003, p. 11). Em caso contrário, alienado de sua cultura, tem
negada sua vocação para, como sujeito ativo, alterar a realidade.
Silenciado e tido como incapaz, deve apenas se adaptar passivamente
aos fatos.
Assim, mulheres e homens são impedidas(os) de existir, já que

transcender, discernir, dialogar (comunicar e participar) são exclusividades do


existir. O existir é individual, contudo só se realiza em relação com outros
existires. Em comunicação com eles. [...] Existir é, assim, um modo de vida
que é próprio ao ser capaz de transformar, de produzir, de decidir, de criar,
de recriar, de comunicar-se (FREIRE, 2011b, p. 57-108, grifos nossos).

É neste contexto que Freire denuncia a realidade opressora em que


as massas, desumanizadas, são obrigadas a adaptar-se à realidade e
impedidas de questionar e transformar o mundo, já que a injustiça, a
exploração e a violência dos opressores negariam aos oprimidos o
direito de humanizar-se e afirmar-se como sujeitos ao dizerem sua
palavra e se comunicarem.
Imersos em uma realidade antidemocrática, os oprimidos
permanecem mudos, sem voz e sem ação, negados em sua vocação para
ler e agir no mundo e silenciados diante de uns poucos que se
consideram os únicos capazes de pensar, falar e fazer (FREIRE, 2003).
22 • Paulo Freire: múltiplos olhares

Nesse contexto, a partir da perspectiva freiriana, compreendemos


que superar uma educação-comunicação bancária e educar-comunicar
de maneira libertadora é fundamental.
No Brasil, historicamente, temos uma educação com tendência
vertical, autoritária e fundamentada na leitura formal do mundo: como as
mudanças não são bem-vindas, alunos e alunas devem saber o suficiente
para ler a realidade como existe, mas não autônomos(as) demais a ponto
de querer questioná-la ou mesmo reescrevê-la (PINHEIRO, 2015).
Como constata Freire (2003, p. 89), há “pouco, ou quase nada, no
nosso processo educativo, que nos leve a posições mais indagadoras,
mais inquietas, mais criadoras”. Para Freire (2003), era necessária uma
revisão do processo educativo, de maneira que ele fosse enraizado na
realidade local (e, em um contexto maior, regional e nacional) de
educandos e educandas, de maneira que pudessem ler a realidade a
partir de seu tempo e seu espaço. Assim, o trabalho escolar envolveria
“[...] a própria vida comunitária local, tanto quanto possível trazida para
dentro da escola” (FREIRE, 2003, p. 84).
Essa seria uma educação baseada na pesquisa em detrimento da
enfadonha repetição de afirmações desconectadas do contexto dos
sujeitos. Principalmente, seria uma educação que abandona a palavra
oca e a verbosidade alienada e alienante dos discursos para ser diálogo
amoroso entre educadores(as) e educandos(as). Seria uma educação na
qual realmente há comunicação e não apenas transmissão de
comunicados 2. Seria, enfim, uma educação libertadora em contraponto
com o que Freire (2005) chamava de educação bancária.

2
“Os comunicados são os ‘significados’ que, ao se esgotarem em seu dinamismo próprio, transformam-
se em conteúdos estáticos, cristalizados. Conteúdos que, à maneira de petrificações, um sujeito deposita
nos outros, que ficam impedidos de pensar, pelo menos de forma correta” (FREIRE, 2011c, p. 88).
Rafaela Bortolin Pinheiro • 23

Na educação bancária, o ponto fundamental é o professor, agente-


sujeito responsável por encher os alunos-objetos, obrigados a receber,
dócil, paciente e acriticamente, os depósitos dos conteúdos, memorizá-
los e repeti-los exatamente como ouviram. “A narração os transforma
em ‘vasilhas’, em recipientes a serem ‘enchidos’ pelo educador. Quanto
mais vá ‘enchendo’ os recipientes com seus ‘depósitos’, tanto melhor
educador será” (FREIRE, 2005, p. 66).
A educação bancária é um modelo em que educandas e educandos,
como objetos, não educam (são educadas(os)), não pensam, não sabem,
não dizem a palavra (apenas escutam), não questionam, não optam
(seguem prescrições), se acomodam e se adaptam ao mundo (FREIRE,
2005). Passivos(as), não agem, só recebem e respondem à ação de outros.
Em suma, é a educação do antidiálogo e da incomunicação de educandas
e educandos entre si, com os educadores e as educadoras e dos sujeitos
com o mundo (FREIRE, 2005).
A educação bancária faz parte da cultura do silêncio, situação em
que as classes oprimidas são proibidas de se expressar autenticamente.
Ela visa ao ajustamento, não encoraja o pensar autêntico e valoriza a
ingenuidade em detrimento da criticidade. É uma educação a partir de
relações narradoras e dissertadoras (tediosas) sobre fatos e objetos
desconectados e até alheios ao contexto e às experiências de educandos
e educandas, com vistas à domesticação, à dominação, ao controle, à
transferência e à transmissão de conhecimentos.
Seu contraponto é a educação problematizadora e libertadora.
Comprometida com a humanização dos sujeitos, ela estabelece uma
relação de diálogo, na qual é superada a dicotomia entre emissores(as) e
receptores(as) da informação. Saem de cena o aluno e o professor e
24 • Paulo Freire: múltiplos olhares

surgem o educador-educando e o educando-educador, seres conscientes


de seu inacabamento, que dialogam entre si e com o mundo e juntos se
educam. É, em suma, a educação que realmente “[...] nega os
comunicados e existência a comunicação” (FREIRE, 2005, p. 77).
O conhecimento não é algo estático a ser depositado ou
transferido, mas organizado e problematizado a partir do diálogo entre
os sujeitos, no sentido de explicar o mundo e repensar o estabelecido.
Para isso, educandos(as) e educadores(as) são encorajados(as) a debater,
duvidar, questionar, investigar, reinterpretar e, a partir disso,
reelaborar sua própria visão do mundo.
Por isso, a educação libertadora se fundamenta em uma pedagogia
radical, crítica e integrada ao seu tempo e seu espaço, que exige a
pesquisa, a investigação, o questionamento, a incerteza, a criatividade,
enfim, a dúvida que move os sujeitos. É menos uma pedagogia da
resposta e mais uma pedagogia da pergunta, na qual o sujeito vai “[...]
descobrindo a relação dinâmica, forte, viva, entre palavra e ação, entre
palavra-ação-reflexão” (FREIRE; FAUNDEZ, 1985, p. 49).
Politicamente engajada, a educação problematizadora parte do
saber de experiência feito, formado pela sabedoria popular, mas isso não
significa imobilizar-se ou mesmo ficar girando apenas ao redor dele:
“partir significa pôr-se a caminho, ir-se, deslocar-se de um ponto a
outro e não ficar, permanecer. [...] Partir do ‘saber de experiência feito’
para superá-lo não é ficar nele” (FREIRE, 2011d, p. 97-98, grifos do
autor).
Como explica Freire (2011c), nenhum sujeito pode pensar
autenticamente a si e ao mundo de maneira isolada, sozinho, fora da
coparticipação com outros sujeitos. A comunicação é justamente a
Rafaela Bortolin Pinheiro • 25

forma em que essa coparticipação se desenvolve, a partir da relação


pensamento-linguagem-contexto. Também é por meio dela que os sujeitos
podem compreender e se integrar à realidade. Logo, não há
conhecimento humano fora da comunicação e “somente na
comunicação tem sentido a vida humana” (FREIRE, 2005, p. 74).
Neste sentido, a educação não pode ser bancária, fundamentada
em um ato de transmissão sobre e para sujeitos silenciados e
desprezados em seu potencial de dizer a palavra. A educação precisa ser
libertadora e problematizadora, já que “[...] é comunicação, é diálogo, na
medida em que não é a transferência de saber, mas um encontro de
sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados”
(FREIRE, 2011c, p. 91).
Na perspectiva freiriana, a educação libertadora é uma educação
pela e para a comunicação, na qual o diálogo é, ao mesmo tempo, meio
e objetivo da ação educativa desenvolvida por educandas(os) e
educadoras(es), levando em conta que educandas(os) não são meras(os)
arquivadoras(es) de comunicados, mas seres em busca de seu direito de
ter voz e em luta por sua liberdade para comunicarem e se comunicarem
(FREIRE, 2011c).
A educação libertadora se fortalece na valorização da
expressividade de educandas e educandos, principalmente no estímulo
ao desenvolvimento da necessidade que homens e mulheres têm de se
expressar e expressar o mundo. É uma educação que encoraja o sujeito
a dizer sua palavra a partir da sua realidade. Para isso, a questão da
linguagem tem fundamental importância.
26 • Paulo Freire: múltiplos olhares

A LINGUAGEM POPULAR E SUA BONITEZA PARA DIZER O MUNDO: A


EDUCAÇÃO-COMUNICAÇÃO PARA CONHECER A REALIDADE E,
COMPREENDENDO-A, SE ENGAJAR POR MUDÁ-LA

Encantado pela Língua Portuguesa (principalmente por suas


expressões populares) e curioso diante de questões da sintaxe, da
Linguística e da Comunicação, Freire (2011d) dizia que desde a
adolescência se interessava pela sonoridade da fala popular.
Quando adulto, a partir de experiências de educação popular e
leituras na área da Linguística, ele relembra que se familiarizou com a
linguagem que emergia do povo e teve sua sensibilidade aguçada “à
boniteza com que sempre falam entre si, até de suas dores, e do mundo”
(FREIRE, 2011d, p. 95).
Partindo tanto de seu interesse pela Linguística, quanto de seu
encantamento pelas formas populares de se expressar, em suas obras
Freire considera a linguagem em dois níveis: a linguagem utilizada pela
escola para se comunicar com educandos(as) e como a escola percebe a
linguagem de educandos(as) para se comunicarem.
Neste sentido, Freire, em diálogo com Sérgio Guimarães, aponta
que um problema grave dizia respeito à linguagem utilizada na e pela
escola e como ela “[...] nem sempre corresponde à dos meninos
populares. Eu até diria que quase sempre não corresponde” (FREIRE;
GUIMARÃES, 1982, p. 35, grifo dos autores).
Para que a comunicação seja possível, a rede de significação precisa
ser acessível a todos os sujeitos envolvidos, de maneira que todos
tenham condições de compreender e serem compreendidos. É
equivocado (para não dizer arrogante) usar uma linguagem acadêmica
cheia de jargões para se comunicar com camponeses ainda não
alfabetizados, por exemplo. Ou usar o chamado padrão culto da Língua
Rafaela Bortolin Pinheiro • 27

Portuguesa com educandos crianças ou adultos que possivelmente não


ouvem esse tipo de expressão em seu cotidiano.
Nessas condições, provavelmente os sujeitos estarão impedidos de
dialogar e a professora ou professor, indiferente, fará discursos – ou, na
linguagem freiriana, emitirá comunicados – e não comunicará. Enfim,
se não há compreensão entre os sujeitos, como é possível educar?
Como resume Freire (1997, p. 55), um educador “[...] que não seja
sensível à linguagem popular, que não busque intimidade com o uso das
metáforas, das parábolas no meio popular, não pode comunicar-se com
os educandos, perde a eficiência, é incompetente”.
Sem levar em conta as especificidades da linguagem utilizada por
seus educandos no dia a dia, esse educador não é capaz de educar, já que
não é capaz de se comunicar verdadeiramente com seus interlocutores.
Enfim, ele falha em seu papel como educador-comunicador e se torna
mero transmissor de informações ou emissor de comunicados.
Considerar (e valorizar) as diferentes expressões e os diversos usos
da linguagem que os(as) educandos(as) realizam em sua comunicação, é
uma maneira de questionar a chamada norma culta da Língua Portuguesa
como único recurso adequado ou correto para a Comunicação entre os
sujeitos e pensar como as variações linguísticas são fundamentais para a
riqueza do processo comunicativo em diferentes contextos.
Aqui, Freire (2013b, p. 101) chama a atenção para um fato
importante: não é possível discutir a linguagem sem levar em conta as
classes sociais, suas relações de poder e as questões ideológicas
relacionadas ao seu uso, afinal, “se há um ‘padrão culto’ é porque há
outro considerado inculto. Quem perfilou o inculto como tal?”. Indo um
pouco além, precisamos nos questionar a quem interessa que haja essa
28 • Paulo Freire: múltiplos olhares

restrição de um único padrão ou uma única forma culta de se comunicar?


Afinal, o que seria uma forma inculta de comunicação?
Quando a criança ouve em casa e na comunidade a expressão a
gente fomos e, com ela, é capaz de se comunicar (ou seja, compreender e
ser compreendida), ela incorpora essa forma de se expressar e escreve
a gente fomos durante as aulas, quando está na escola. Porém, ali é
repreendida (mesmo humilhada) e tem inibida a sua escrita (FREIRE,
2001). Nesse caso, o problema, para Freire (2001), não é de sintaxe: é
ideológico.
Assim, a gente fomos não é considerado errado simplesmente
porque, sintaticamente, reúne um sujeito que exige um verbo conjugado
na terceira pessoa do singular, enquanto o verbo utilizado está
conjugado na primeira pessoa do plural, mas sim porque representa
uma maneira de expressão popular, utilizada no cotidiano para se
comunicar fora do ambiente escolar. Uma expressão que desobedece ao
que seria considerado culto ou padrão.
Por isso, seria importante que a escola tivesse como ponto de
partida a linguagem de educandas e educandos, de maneira a trabalhar
com o universo cultural dos sujeitos e, tomando-o como referência,
atingir um nível mais rigoroso de expressão da realidade (FREIRE;
SHOR, 1986; FREIRE; MACEDO, 2011). Dessa forma, a ação educativa
possibilitaria que educandas(os) se reconhecessem e se valorizassem
como possuidoras(es) de uma maneira própria de expressarem sua
realidade, que não é errada, mas apenas diversa.
Com isso, perceberiam que sua maneira de se comunicar é legítima
e seus códigos linguísticos não são inferiores, mas apenas diferentes do
padrão (FREIRE; MACEDO, 2011). Em conjunto com o educador ou a
Rafaela Bortolin Pinheiro • 29

educadora que demonstra a educandas e educandos que respeita e


compreende a linguagem do povo, percebem, enfim, que seu falar não é
errado e digno de vergonha, mas que há boniteza na sua forma de dizer
e escrever o mundo (FREIRE; SHOR, 1986).
É importante destacar como Freire (2013b, p. 101) explica que jamais
disse que as “[...] classes populares não devessem aprender o chamado
‘padrão culto’ da língua portuguesa do Brasil, como às vezes se afirma”.
Ao ensinar e aprender as formas padronizadas da linguagem – a
chamada norma culta da Língua Portuguesa –, educando(a) e educador(a)
precisam estar conscientes de que devem dominá-las – e não serem
dominados(as) por elas –, para fundamentar sua luta pela liberdade e
contra a opressão das classes dominantes (FREIRE; SHOR, 1986; FREIRE,
1997).
A linguagem é fundamental para compreendermos um processo
muito importante no trabalho freiriano: a alfabetização. Como questiona
Freire (2013b), de que maneira seria possível compreender as dificuldades
do processo de alfabetização de uma criança sem levar em conta que seus
pais não puderam aprender a ler e escrever em detrimento de outra que
tem pais que leem e escrevem com frequência? Como não levar em conta
as diferenças para a alfabetização de um educando ou uma educanda de
classe média urbana, cujos pais fazem uso da norma culta da língua com
frequência em suas falas, e o filho ou a filha de pais-camponeses que
utilizam essencialmente a expressão popular?
Martín-Barbero (2014, p. 18) afirma que a grande inovação trazida
por Freire foi analisando as técnicas conservadoras (bancárias) de
alfabetização e percebendo o esvaziamento de sentido que sofria a
linguagem, traçar “um projeto de prática que possibilite o desvelamento
30 • Paulo Freire: múltiplos olhares

de seu próprio processo de inserção no (e apropriação do) tecido social


e, portanto, de sua recriação”.
Mais que ler e escrever frases propostas pelo(a) educador(a), “os
alfabetizandos necessitam perceber a necessidade de um outro
aprendizado: o de ‘escrever’ a sua vida, o de ‘ler’ a sua realidade, o que
não será possível se não tomam a história nas mãos para, fazendo-a, por
ela serem feitos e refeitos” (FREIRE, 2011a, p. 20). Indo além do mero
aprendizado mecânico da leitura e da escrita, a alfabetização freiriana é
desenvolvida na dialética entre pronunciar e transformar a realidade.
Para compreender a alfabetização na perspectiva freiriana é
fundamental levar em conta a dialética que o educador defendia entre o
mundo e sua representação, a palavra. Assim, a alfabetização só pode
existir no sentido de uma aprendizagem da leitura e da escrita da
palavra comprometida com a leitura e a reescrita da realidade.
Como ato político e emancipador, não pode se restringir ao
aprendizado mecânico da leitura e da escrita, já que esses atos não se
esgotam na decodificação da palavra, mas implicam sempre a
compreensão crítica e a reescrita tanto do texto, quanto do contexto.
Como explica o próprio Freire (2006, p. 11-20, grifo nosso),

a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura


desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e
realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada
por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o
contexto. [...] Podemos ir mais longe e dizer que a leitura da palavra não é
apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma certa forma de
‘escrevê-lo’ ou de ‘reescrevê-lo’, quer dizer, de transformá-lo através de
nossa prática consciente.
Rafaela Bortolin Pinheiro • 31

Para Freire (2013b), leitura e escrita não são momentos separados,


é um equívoco dicotomizá-los e ambos não estão desvinculados da
expressão oral. Falar, ler e escrever são ações dentro de um processo
muito maior: o processo de conhecer. Desde os primeiros momentos
do(a) educando(a) na escola, ele(a) precisa ser estimulado(a) a se
expressar, tanto pela fala, quanto pela escrita.
Assim como a leitura não pode ser considerada apenas o ato
mecânico de decodificar letras em um determinado texto, a escrita não
se trata somente de imprimir letras no papel, na tela do computador ou
em outro suporte material: ambas dão conta de ações contextualizadas,
cotidianas e que têm intencionalidade comunicativa, exigindo a
construção de sentidos a partir de uma infinidade de ações, como
perceber, interpretar, compreender, estabelecer conexões, criar
conclusões ou construir conhecimentos a partir da comunicação.
Na alfabetização freiriana, texto e contexto (linguagem e mundo)
não se encerram em si mesmos, mas oferecem significados (e
ressignificam) um ao outro. Por isso, não pode ser realizada de maneira
alheia à realidade concreta dos sujeitos e precisa levar em conta a
linguagem dos(das) alfabetizandos(as), possibilitando a compreensão da
rede de significações que as palavras têm em seu contexto.
A alfabetização não é um trabalho com a palavra alienada e
alienante, mas, a partir da própria realidade dos sujeitos, de maneira
que aprendam a compreender e a expressar o mundo e a si mesmos no
mundo de forma autêntica.
Também é uma maneira de romper com o modelo ainda vigente do
uso da linguagem como recurso de poder e diferenciação na sociedade,
uma atividade reservada às classes hegemônicas a partir de sua norma
32 • Paulo Freire: múltiplos olhares

culta. Neste contexto, as diferentes formas de expressão da linguagem


popular dificilmente são reconhecidas como válidas (ou mesmo
verdadeiras) e tendem a ser depreciadas diante da norma padrão utilizada
pela escola e manifestada nos meios de comunicação.
A partir de Freire e tomando uma perspectiva de educação-
comunicação libertadora, compreendemos que é preciso romper com
esse modelo de supressão da linguagem popular. Ao contrário, se faz
necessário valorizar as expressões próprias (e muito ricas) das
diferentes possibilidades de uso da linguagem popular, encharcadas de
formas tão próprias de ler-escrever (perceber-expressar) o mundo.
Ao respeitar a linguagem de uma comunidade, a educação-
comunicação libertadora considera o modo de se expressar daqueles
sujeitos – inclusive usando expressões que só eles conhecem,
pesquisando sobre a origem dessa forma própria de falar,
compreendendo o contexto de onde vem essa maneira própria de ler o
mundo. Afinal, o que é a linguagem senão a forma que encontramos
para representar o mundo ao comunicá-lo? Entre duas linguagens
diferentes não há uma certa e uma errada: existem duas formas
diferentes de ler e expressar a realidade.
Por isso, é fundamental que a educação leve em conta a linguagem
utilizada pelos sujeitos em seu cotidiano, sem desconsiderar nem mesmo
ignorar (menos ainda depreciar) a linguagem própria da comunidade.
Não se trata de escrever errado ou fomentar uma escrita alheia à
chamada norma culta: o(a) educando(a) precisa aprender que existe uma
norma hegemônica da Língua Portuguesa e que só a compreendendo e a
dominando será capaz de lutar contra a opressão que ela representa
(FREIRE, 1997).
Rafaela Bortolin Pinheiro • 33

Como define Freire (2011d, p. 56), “está aqui uma das questões
centrais da educação popular – a da linguagem como caminho de
invenção da cidadania”. Dessa forma, é fundamental construirmos uma
educação-comunicação libertadora que valoriza os conhecimentos e a
linguagem própria de oprimidas e oprimidos e reforça o sentimento de
pertencimento à comunidade, valorizando a beleza da linguagem local e
despertando tanto nos(as) educadores(as), quanto nos(as) educandos(as)
a leitura e a escrita críticas, conscientes e contextualizadas. É a
educação-comunicação para conhecer a sua própria realidade e,
compreendendo-a, se engajar na luta por mudá-la.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desta investigação, compreendemos como a linguagem e


a Comunicação (especialmente a linguagem popular e a Comunicação
enquanto diálogo) são elementos fundamentais para a educação
libertadora à luz do pensamento de Paulo Freire.
Nesse sentido, identificamos como Freire tinha um grande
interesse pessoal pela Língua Portuguesa, sendo atento às questões da
sintaxe, da Linguística e da Comunicação, mas principalmente
interessado pelas expressões, metáforas e usos populares da Língua
Portuguesa.
Freire considerava a linguagem em dois níveis: tanto a linguagem
utilizada pela escola para se comunicar com educandas(os), quanto a
forma como a escola percebe a linguagem de educandas(os) para se
comunicarem.
Nesse sentido, compreende como a linguagem utilizada na e pela
escola não corresponde à linguagem popular, o que impede que a
34 • Paulo Freire: múltiplos olhares

comunicação seja de fato construída entre educandos e educadores – e


deles juntos com o mundo.
Assim, em uma perspectiva freiriana, a leitura e a escrita não
podem ser trabalhadas de forma mecânica, como mera repetição de
fórmulas gramaticais dentro do que é considerado o padrão ou a norma
culta, mas como ações que se desenvolvem a partir das diversas
possibilidades de expressão da linguagem popular. Principalmente,
levando em conta que a comunicação não acontece de maneira isolada,
mas se dá no diálogo dos(as) educandos(as) entre si, com os(as)
educadores(as) e com o seu contexto.
Por isso, é fundamental que a educação libertadora possibilite que
os(as) educandos(as) se aproximem das diversas linguagens que formam
a comunicação humana, compreendendo e trabalhando com a variedade
de possibilidades que cada pessoa tem para se expressar e ter contato
com a expressão dos outros.
Principalmente, é importante que as linguagens apresentadas não
sejam alheias ao contexto dos(as) educandos(as): pelo contrário, é
essencial que despertem a atenção, o interesse e a curiosidade,
dialogando com aquilo que os(as) educandos(as) já conhecem para que
possam construir novos conhecimentos participando ativamente do
desenvolvimento da leitura e da escrita de forma que a colaboração, a
comunicação e a construção cooperativa de sentidos sejam o foco.
Concluímos que, ao invés de uma educação-comunicação bancária
em prol unicamente da chamada norma culta da língua, o foco de uma
Educação-Comunicação libertadora está na comunicação dialógica
entre os sujeitos, partindo do falar popular para trabalhar com o
universo cultural de educandos(as) e educadores(as).
Rafaela Bortolin Pinheiro • 35

Tomando essa linguagem popular como referência, é possível que


educandos(as) e educadores(as) se conscientizem de que precisam
dominar as formas tidas como padrão da Língua Portuguesa, mas não
serem dominados(as) por elas em sua reflexão-ação-reflexão
transformadora quanto à realidade.
Compreenderem, enfim, a linguagem como recurso fundamental
para exercerem a crítica e a cidadania, refletirem de forma consciente
sobre a realidade e se comunicarem expressando suas vozes autênticas.
Principalmente, se reconhecerem como agentes que podem reescrever
o mundo ao se comunicarem numa perspectiva libertadora. Sujeitos
comunicantes em essência e em ação.

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36 • Paulo Freire: múltiplos olhares

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Rafaela Bortolin Pinheiro • 37

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS, SUBJETIVIDADE E EDUCAÇÃO, 3.; SEMINÁRIO


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Anais... Curitiba: Champagnat, 2015. v. 1. p. 25281-25297.

PINHEIRO, Rafaela Bortolin. O jornal escolar para a formação de consciência crítica à


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autônomo e libertador. 2017. 281f. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade
Católica do Paraná, Curitiba, 2017 Disponível em: <https://archivum.grupomarista.
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Imago, 1978.

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2
FREIRE E CHAMPAGNAT: POSSÍVEIS APROXIMAÇÕES
Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda

INTRODUÇÃO

Este artigo tem origem na minha dissertação de Mestrado que


buscou investigar convergências no pensamento pedagógico de
Marcelino Champagnat, religioso e fundador da instituição marista com
Paulo Freire, brasileiro conhecido e reconhecido no mundo todo por sua
concepção de educação libertária, transformadora e pela abordagem
progressista de alfabetização de jovens e adultos. Neste percurso, a
interpretação do pensamento pedagógico freiriano foi realizada a partir
de algumas de suas categorias fundantes e, neste artigo, a amorosidade é
o objeto de interlocução com a pedagogia de Marcelino Champagnat de
forma a compreender se esta categoria se refletia (ou não) na pedagogia
marista. Essa análise interpretativa revelou as seguintes aproximações: a
opção preferencial pelos pobres, a dedicação e preocupação com a questão
da formação dos(as) professores(as) e uma abordagem educativa
permeada pela amorosidade. Pudemos concluir que as aproximações
suscitadas entre o pensamento de ambos os educadores pesquisados,
caminham na contramão de uma educação reprodutora e mecanicista à
medida que propõem uma pedagogia referenciada no diálogo, no afeto,
na reflexão, na alegria, na ética e na estética.
Marcelino Champagnat (1789-1840), foi fundador da Instituição de
ensino que nasceu na França com o nome de “Pequenos Irmãos de
40 • Paulo Freire: múltiplos olhares

Maria”, em meio à Revolução Francesa, cujo lema dos revolucionários


era “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. No contexto de pós-
revolução e com a força revolucionária deste período, nasce o “Instituto
dos Irmãos Maristas” que começa com dois jovens junto ao padre
Champagnat, então com 27 anos. Esta instituição se dedica à formação
de crianças e jovens, especialmente dos mais vulneráveis, estando
presente em 79 países e desenvolvendo uma missão educativa e
evangelizadora (UMBRASIL, 2019, p. 31).
Champagnat foi um homem sensível às necessidades dos mais
pobres, especialmente das crianças, homens e mulheres do campo, em
um pequeno povoado da França onde sentia o descaso e a crise que a
sociedade francesa vivia na região de La Valla. Este foi o fato que o fez
decidir por uma congregação de irmãos educadores que trabalhassem
com crianças da zona rural. O ano de 1816 é talvez o ano mais importante
para este educador, pois é o ano em que Marcelino Champagnat é
ordenado e enviado para trabalhar na pequena paróquia de La Valla.
Nesta localidade, encontra-se com o jovem Jean-Baptiste Montagne,
que morreu logo após a visita do Padre Champagnat sem saber ler nem
escrever e sem nunca ter ouvido falar de Deus. Esse episódio é decisivo
no carisma fundacional da instituição marista (FURET, 1999, p. 52).
O segundo educador objeto deste artigo é Paulo Freire (1921-1997),
batizado como Paulo Reglus Neves Freire, nascido no Recife,
Pernambuco. Principal representante da pedagogia progressista e
crítica do Brasil, foi professor e educador reconhecido em todo o
mundo. Freire desenvolveu um sistema de alfabetização de jovens e
adultos, no entanto, sua contribuição foi muito além deste método, mas
especialmente por sua pedagogia crítica que combatia uma educação
Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda • 41

bancária “em que a única margem de ação que se oferece aos educandos
é a de receber depósitos, guardá-los e arquivá-los”. (FREIRE, 1987, p. 33).
Freire (1996, p. 13) diferencia a prática educativa que tem a lógica
bancária acrítica e caracterizada pela repetição e reprodução de uma
educação problematizadora em que há diálogo e a curiosidade
epistemológica dos(as) educandos(as) é aguçada, como assinala o Freire:

O necessário é que, subordinado, embora, à prática “bancária”, o educando


mantenha vivo em si o gosto da rebeldia que, aguçando sua curiosidade e
estimulando sua capacidade de arriscar-se, de aventurar-se, de certa forma
o “imuniza” contra o poder apassivador do "bancarismo". Neste caso, é a
força criadora do aprender de que fazem parte a comparação, a repetição, a
constatação, a dúvida rebelde, a curiosidade não facilmente satisfeita, que
supera os efeitos negativos do falso ensinar. Esta é uma das significativas
vantagens dos seres humanos – a de se terem tornado capazes de ir mais
além de seus condicionantes. Isto não significa, porém, que nos seja
indiferente ser um educador “bancário” ou um educador
“problematizador”.

Em sua proposta entendia educandos/as e professores/as (como


Paulo Freire costuma nomear) como sujeitos que ensinam e aprendem
juntos(as), conforme afirma: “ninguém educa ninguém, ninguém educa
a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”
(FREIRE, 1996, p. 39).
Paulo Freire contribuiu de forma significativa nos processos
educativos não só no contexto brasileiro, mas mundo afora por ser um
educador que acreditava no poder transformador da educação e em um
futuro melhor para os homens e mulheres por meio da formação para a
humanização, para a criticidade e por sua incansável esperança nas
pessoas (1987, p. 27).
42 • Paulo Freire: múltiplos olhares

Freire refutava a visão fatalista diante da vida. “O fatalismo cede,


então, seu lugar ao ímpeto de transformação e de busca de que os
homens se sentem sujeitos” (FREIRE, 1987, p. 27). As experiências
vividas desde sua infância, incluindo a dificuldade de adaptação de sua
família em aceitar a decadência financeira de que foi acometida, e a
partir disso a difícil vida em Jaboatão, alimentaram dentro do pequeno
Paulo, a necessidade de não se entregar ao fatalismo. Aspectos que são
explicitados por Freire (2003, p. 38) em Cartas a Cristina: reflexões sobre
minha vida e minha práxis, quando afirma:

Pelo contrário, em tenra idade, já pensava que o mundo teria de ser mudado.
Que havia algo errado no mundo que não podia nem devia continuar. Talvez
seja esta uma das positividades da negatividade do contexto real em que
minha família se moveu. A de, submetido a certos rigores que outras
crianças não sofriam, ter me tornado capaz de, pela comparação entre
situações contrastantes, admitir que o mundo tivesse algo errado que
precisava de conserto. Positividade que hoje veria em dois momentos
significativos: 1) o de, experimentando-me na carência, não ter caído no
fatalismo; 2) o de, nascido numa família de formação cristã, não ter me
orientado no sentido de aceitar a situação como sendo a expressão da
vontade de Deus, entendendo, pelo contrário, que havia algo errado no
mundo e que este precisava de reparo. A minha posição, desde então, era de
otimismo crítico, isto é, da esperança que inexiste fora do embate.

Freire (1987, p. 27) também sinaliza que esse fatalismo muitas vezes
está associado à uma visão distorcida de Deus em que os sujeitos se
entregam e se conformam alegando que os acontecimentos não podem
ser transformados, uma vez que há uma vontade ‘maior’, a de Deus.
Ao contrário do fatalismo ou determinismo, encontramos na
proposta de Paulo Freire (1987) a esperança que pressupõe crer no
possível e atuar para transformar o que parece impossível, isso era o
Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda • 43

que este educador defendia. Diante das situações- limite, ele propunha
o inédito viável, a utopia capaz de atualizar o futuro, ou a esperança em
movimento. Para Freire (1996, p. 29), a esperança é uma exigência para
aqueles escolhem por ofício o ensinar. Nesse sentido, a utopia como
“revolucionária”, pode contribuir na prática do/a educador/a que,
esperançoso/a, desperta nos/as educandos/as a possibilidade de “ser
mais” 1. A utopia a que nos referimos está ligada a um sonho possível. “A
esperança é necessidade ontológica” (FREIRE,1992, p. 10), ou seja, na sua
natureza o homem carrega consigo o sonho e a esperança os quais por
algumas razões, se perdem ao longo da vida. A este respeito Freire (1992,
p. 5) afirma: “Não sou esperançoso por pura teimosia, mas por
imperativo excepcional e histórico”. Este educador defende que a visão
fatalista pode ser combatida por meio da consciência crítica. Segundo
Zikoski, (2008, p. 191) no Dicionário Paulo Freire:

O pensar crítico e a consciência da forma de ser no mundo, segundo Freire


(1994), convergem para um modo coerente de conceber a história que,
refutando veementemente os fatalismos e/ou determinismos, confere à
espécie humana a capacidade e a responsabilidade de definir, por si mesma,
o próprio futuro para si e para o mundo.

Uma escola encharcada 2 de amorosidade, é essencial para que a


educação seja útil na formação para a cidadania de crianças e jovens, o
que pareceu ser um ponto de conexão entre Marcelino Champagnat e
Paulo Freire, pois a amorosidade que para Paulo Freire é a concretude

1
Paulo Freire apresenta este conceito “ser mais” no livro Pedagogia do Oprimido (1987), p.42, como
sendo a possibilidade da luta pela humanização, a desalienação e da afirmação dos homens como
pessoas.
2
Encharcado (a) é um termo que Paulo Freire usa em suas obras para falar em um sentido figurado “estar
tomado, inundar-se, embeber-se”.
44 • Paulo Freire: múltiplos olhares

do ato de afeto para com o outro por meio do diálogo, para Champagnat
é a base da relação educador/a-educando/a.
Freire, em seu livro Pedagogia da Autonomia (1996, p. 27)), traz o
seguinte questionamento: “como ser educador, se não desenvolvo em
mim a indispensável amorosidade aos educandos com quem me
comprometo e ao próprio processo formador de que sou parte?”. Furet
(1999, p. 501) indica que, segundo Champagnat, “para educar é preciso
antes de tudo amar: amar as crianças é jamais esquecer que elas são
seres frágeis e, portanto, devem ser tratadas com bondade, caridade e
indulgência, e serem instruídas e formadas com muita paciência". Nesse
sentido, podemos inferir que, para Marcelino Champagnat, a
amorosidade é o ato, a ação, assim como para Paulo Freire a
amorosidade é caridade e luta em movimento em favor dos oprimidos.
Ainda que seja clara a distância temporal e histórica entre Freire e
Champagnat, consideramos que ambos, dentro de suas realidades,
elegeram a amorosidade, a alegria, a ética e a estética, além da
preocupação com os pobres, como elementos essenciais para o ato
educativo e são, portanto, pontos de conexão na proposta educativa dos
dois educadores, como demonstramos ao longo desta investigação.
Acreditamos que promover uma reflexão propondo uma
interlocução dos princípios de Paulo Freire com os da missão marista
junto às infâncias e juventudes, contribuirá em alguma medida,
subsidiando professores/as no desenvolvimento de uma formação
integral das crianças e jovens apoiados na amorosidade, no diálogo e no
afeto para a vivência de um mundo mais justo e solidário por meio da
educação.
Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda • 45

A educação problematizadora que a abordagem progressista


propõe é bastante desafiadora para professores/as ainda engessados/as
em modelos autoritários e verticalizados, mas é necessário que o
modelo tecnicista seja superado para que possamos promover uma
educação que seja relevante para nossos/as educandos/as.
Nesta direção, o/a professora/ assume uma posição de mediador
entre o conhecimento elaborado já previamente pelo(a) estudante e
aquele ainda a ser adquirido. O(A) estudante, por sua vez, é ativo no
processo, crítico, reflexivo, questionador e consciente que também é
responsável por suas aprendizagens. Como afirma Moraes (1997, p. 150):

Quem educa aprende, transforma-se no próprio ato de educar na relação


que se estabelece entre o professor e o aluno. O aprendiz, por sua vez, ao
aprender, também educa, com base na unidualidade existente na relação
educador-educando. Ao falar do educador, reconhecemos sua posição de
educando e vice-versa.

Utiliza-se nesta abordagem uma metodologia de problematização


na qual se valoriza o diálogo e se discutem temas relevantes e os
conteúdos possuem relação com a vida dos sujeitos; professores/as e
educandos/as. Já a avaliação é exigente, criteriosa, mas construída por
educandos/as e professores/as e considera as produções individuais e
em grupo que os/as alunos/as constroem, sendo processual, contínua e
transformadora.
A partir da convicção de que a educação precisa contribuir para a
formação integral do indivíduo, a escola necessita conter um caráter
emancipador e que dê condições para que os sujeitos atuem como atores
sociais no mundo, de forma consciente e justa.
46 • Paulo Freire: múltiplos olhares

Promover uma educação em que o(a) estudante possa dialogar com


o conteúdo ensinado e aprender para a vida, são pressupostos do
pensamento dos dois educadores objetos deste artigo. Apesar da
distância temporal, os pressupostos da educação marista preconizada
por Marcelino Champagnat e da educação “progressista”, libertadora,
na pedagogia de Paulo Freire, buscam uma escola que gere sujeitos mais
reflexivos, solidários e humanos.
Ao entrar em contato com os princípios da pedagogia de Marcelino
Champagnat, assim como com o pensamento de Paulo Freire na
educação, identificamos que mesmo em contextos e épocas
absolutamente distantes, duas prioridades estavam no foco de atenção,
tanto de Freire quanto de Champagnat em relação à preparação dos/as
professores/as: a qualidade profissional por meio de uma formação
contínua e a importância do testemunho, pois como observa Freire,
“não há pensar certo fora de uma prática testemunhal que o re-diz em
lugar de desdizê-lo” (FREIRE,1996, p.16).
Da mesma maneira, ambos discorrem sobre a coerência e o
testemunho como sendo virtudes que devem ser buscadas pelo/a
professor/a que visa a emancipação e o sentido da vida para homens e
mulheres. A este respeito, Freire ressalta na sexta carta da obra
Professora sim, tia não- cartas a quem ousa ensinar (1997) que a relação
entre o/a professor/a e educando/a precisa ser perpassada pela
confiança e pelo respeito pautados no exemplo. Pois, como afirma Freire
(1997, p. 51):

Considero o testemunho como um “discurso” coerente e permanente da


educadora progressista. Tentarei pensar o testemunho como a melhor
maneira de chamar a atenção do educando para a validade do que se propõe,
para o acerto do que se valora, para a firmeza na luta, na busca da superação
Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda • 47

das dificuldades. À prática educativa em que inexiste a relação coerente


entre o que a educadora diz e o que ela faz é, enquanto prática educativa,
um desastre.

Champagnat, da mesma maneira, dedicou-se a esse aspecto e


recomendava aos seus irmãos que as crianças por eles educadas
deveriam reconhecer em cada um os dons da graça de Deus e os valores
de um bom professor e para isso, antes, procurava ser exemplo também
para seus “irmãozinhos 3”. Assim, o irmão educador precisava antes de
tudo ser exemplo do que falava para as crianças e jovens, como esclarece
Furet (1999, p. 501):

A educação é, portanto, em primeiro lugar, questão de bom exemplo, porque


a virtude fortalece a autoridade: porque é da natureza do homem imitar o
que vê fazer, e os atos têm mais força para convencer e persuadir do que
palavras e instruções. A criança aprende mais pelos olhos do que pelos
ouvidos.

Identificamos que a coerência e o exemplo são virtudes muito


evidentes na vida desses dois educadores. A pedagogia de Freire nasce
das dificuldades vividas por ele, de sua crença no ser humano e de sua
fé. Assim também, Champagnat torna-se exemplo para seus irmãos
buscando ser antes o que esperava deles, conforme Furet, (1999, p. 66):

Era exatamente por isso que desejava estar com os Irmãos. No seu entender,
o melhor meio de afeiçoá-los à vocação, levá-los ao amor da pobreza, à vida
regular e todas as virtudes de seu estado, seria pôr-se à frente deles, unir
sua sorte à deles, identificar-se com eles, dar-lhes o exemplo e ser o
primeiro a praticar antes de ensinar.

3
Este termo já foi utilizado antes, mas carece de um esclarecimento.” Irmãozinhos de Maria” foi o nome
dado aos Irmãos que atuavam nas escolas do Padre Champagnat conforme lemos na obra Vida de São
Marcelino Champagnat, Furet, p.363: [... deu-lhe o nome de Irmãozinhos de Maria (Petitis Frère de Marie)
a fim de que, através do nome, se lembrassem continuamente do que deviam ser.
48 • Paulo Freire: múltiplos olhares

Ambos dedicaram seus esforços enquanto em vida, na promoção


de uma educação que exigia dos/as professores/as muito além de
capacidade técnica e domínio de conteúdos cientificamente produzidos,
para que a mediação que conduzissem no ofício de professor/a fosse
capaz de influenciar e formar sujeitos: crianças e jovens conscientes de
seus direitos e deveres, cidadãos criativos e não meros repetidores.
Marcelino Champagnat contava com irmãos catequizadores e
professores e para tanto, preocupava-se e investia na formação do
grupo de irmãos que conduziriam suas obras.
Champagnat dedicava muitas vezes o tempo que lhe sobrava de
descanso para a tarefa de formar os irmãos educadores. As ocupações
materiais o absorviam, mas não a ponto de o fazerem descurar da
formação dos noviços. Aproveitava as horas de recreio e os domingos
para formá-los na piedade e ministrar-lhes os conhecimentos
necessários (FURET, 1999, p. 94).
Identificamos, portanto, uma aproximação do foco na formação
dos/as professores/as em ambos os educadores, Freire e Champagnat,
uma vez que também Freire dedica-se à temática da formação docente
que é mote de muitas das suas obras, como: Medo e ousadia – o cotidiano
do professor (FREIRE; SHOR, 1986), Pedagogia da autonomia: saberes
necessários à prática docente (FREIRE, 1996) e em Professora sim, tia não:
cartas a quem ousa ensinar (FREIRE, 1997). Essa atividade exige que sua
preparação, capacitação, formação, se tornem processos permanentes.
Sua experiência docente, se bem percebida e bem vivida, vai deixando
claro que ela requer uma formação permanente do ensinante
(FREIRE,1997, p. 19). Conforme esclarece Paulo Freire (2004, p. 146):
Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda • 49

A formação docente é um tema que sempre me tocou e sobre o qual eu


acabei de escrever um livro. A prática docente e a prática discente – porque,
no fundo, você não pode separar o ensinar do aprender; é impossível
aprender a prática do ensinante sem compreender a prática do aprendiz –
são momentos de um único processo: o processo de produção do
conhecimento em nível sistemático [...]. Por isso o título desse livro que
acabei de escrever é Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática
educativa. [...] O bom pra mim é que, na experiência formadora do futuro
professor, da futura professora, estes saberes sejam postos à reflexão
crítica e teórica dos que vão amanhã ensinar e dos que estão hoje ensinando
e aprendendo. Um destes saberes, que eu considero primordial, é mudar é
difícil, mas é possível. Isso é um saber que eu produzi ao longo da minha
experiência no mundo. É um saber que já virou sabedoria.

A formação docente para a promoção de uma educação


emancipadora e que seja libertadora, está no alicerce da proposta
educativa de Freire e do educador Marcelino Champagnat.
O/a professor/a pesquisador/a, que se percebe como inacabado/a e,
portanto, busca desenvolve-se e formar-se constantemente, precisa
buscar diminuir a distância entre o ser e o agir que são aspectos centrais
para Champagnat e eram considerados primordiais para Paulo Freire.
Um/a professor/a ético/a e amoroso/a é promotor/a, portanto, para
esses dois educadores, de uma educação assertiva e promotora de vida.
Para realizar uma análise interpretativa, buscamos a categoria da
amorosidade, em Paulo Freire, demonstrando, também, como essa se
apresenta na pedagogia marista a partir da narrativa bibliográfica de
seu fundador, Marcelino Champagnat. Compreendemos que a
amorosidade é um pilar fundante no fazer e pensar a educação na teoria
e na prática dos dois educadores.
50 • Paulo Freire: múltiplos olhares

A AMOROSIDADE EM FREIRE E CHAMPAGNAT

Destacamos que ambos os educadores, Paulo Freire e Marcelino


Champagnat, são cristãos, portanto, têm o amor como princípio
primeiro, a partir do Cristo. Amam, os dois, a educação e acreditam no
amor como parte do ofício do/a professor/a, bem como no sério
compromisso que ambos assumem com a missão educativa.
A partir destes autores, identificamos que a amorosidade é um
princípio para aqueles/a que atuam na educação. A apropriação que
ambos fazem do amor na educação tem nuances diferentes, mas tanto
Freire como Champagnat defendem que para educar é necessário amar.
Amar o seu ofício de professor/a que necessita ser vivido com
alegria e com esperança. Freire (1996, p. 38) observa: “como ensinar na
medida em que mais amava ensinar mais estudava a respeito”. Amar
também crianças e jovens na sua inteireza que levam para o contexto
escolar e com quem se constroem o conhecimento, a leitura do mundo
e a conscientização, estabelecendo condições para tal.
Em determinado momento Paulo Freire faz a seguinte indagação:
“Como ser educador, se não desenvolvo em mim a indispensável
amorosidade aos educandos com quem me comprometo e ao próprio
processo formador de que sou parte?” (FREIRE, 1996, p. 27).
A amorosidade é uma categoria transversal em todo pensamento
freiriano. Não é possível, assim, que a educação ocorra longe desta
característica eminentemente humana que por muitas razões deixa de
estar presente nas relações educativas entre professores/as e
educandos/as e vice-versa A amorosidade na obra de Freire, é uma
condição para o ato de educar e aprender. No que tange às emoções,
Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda • 51

reafirma a afetividade e a amorosidade como fatores básicos da vida


humana e da educação (FREIRE, 2000, p. 13).
Essa ideia pressupõe que a educação é um ato de amor (FREIRE,
2000, p. 93). No entanto, ao tratar do amor na educação, Freire não fala
de um amor ingênuo, piegas ou banalizado, mas aquele ato que
transforma comprometendo os sujeitos uns com os outros e com um
projeto de sociedade mais fraterna e justa. Conforme afirma Paulo
Freire (1996, p. 27):

Como ser educador, sobretudo numa perspectiva progressista, sem


aprender, com maior ou menor esforço, a conviver com os diferentes? Como
ser educador, se não desenvolvo em mim a indispensável amorosidade aos
educandos com quem me comprometo e ao próprio processo formador de
que sou parte? Não posso desgostar do que faço sob pena de não fazê-lo
bem.

Sendo o amor um ato de coragem, ele é transformador. Portanto,


não é possível pensar em processos de ensinar e aprender sem a
presença da amorosidade. Assim, para Paulo Freire, a educação não se
dá separada da amorosidade e essa está ligada ao diálogo. Esse educador
comprometido busca superar a educação mecanicista, bancária,
desigual, sem envolvimento com o seu fazer pedagógico e educativo,
mas corajosamente oportuniza a troca, a participação sem sentir-se
menor por esta atitude. A este respeito Freire (2013, p.110-111) cita:

Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo. Daí que seja


essencialmente tarefa de sujeitos e que não possa verificar-se na relação de
dominação. Nesta, o que há é patologia do amor: sadismo em quem domina;
masoquismo nos dominados. Amor, não. Porque é um ato de coragem,
nunca de medo, o amor é compromisso com os homens.
52 • Paulo Freire: múltiplos olhares

Freire sempre lutou com a ideia de uma educação que se opõe à


uma pedagogia autoritária. A educação dita bancária, que aliena os/as
educandos/as e os/as submete a receber sem questionar, sem dialogar,
ou seja, uma educação que pouco ou nada contribui para a formação
integral que prepara as crianças e jovens para a vida. Freire (1996, p. 56)
esclarece:

Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que


os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e
repetem. Eis aí a concepção “bancária” da educação, em que a única margem
de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-
los e arquivá-los.

A relação educativa, quando atravessada pela amorosidade,


favorece uma educação mais humana e libertária. Para Freire, portanto,
o processo educativo de ensino, aprendizagem e das relações entre os
sujeitos no âmbito da escola que precisa estar molhada ou encharcada
de amorosidade. O amor para este educador é atitude e se concretiza por
meio do diálogo, da afetividade, da preocupação e do agir em prol de si
mesmo e dos outros. A este respeito Freire (1997, p. 8) afirma:

É impossível ensinar sem essa coragem de querer bem, sem a valentia dos
que insistem mil vezes antes de uma desistência. É impossível ensinar sem
a capacidade forjada, inventada, bem cuidada de amar. Daí que se diga no
terceiro bloco do enunciado: Cartas a quem ousa ensinar. É preciso ousar, no
sentido pleno desta palavra, para falar em amor sem temer ser chamado de
piegas, de meloso, de a-científico, senão de anti-científico. É preciso ousar
para dizer, cientificamente e não bla-bla-blantemente, que estudamos,
aprendemos, ensinamos, conhecemos com o nosso corpo inteiro. Com os
sentimentos, com as emoções, com os desejos, com os medos, com as
dúvidas, com a paixão e também com a razão crítica (grifos no original).
Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda • 53

Quando recebemos os/as educandos/as os/as acolhemos na sua


inteireza, com seus sonhos, suas tristezas, seus desejos e incompletudes
e como professores/as, amorosamente dialogamos com eles e elas
dentro do contexto educativo da escola.
Essa educação libertária, para ser então amorosa, requer cuidado,
limite e presença. Na obra Pedagogia da Indignação, Freire (2000) deixa
claro sobre a confusão da educação conscientizadora e libertária com
uma em que tudo se pode.
A possibilidade de se desenvolver uma educação que inspire e que
crie condições para a liberdade dos meninos e meninas por meio do
diálogo não se dará longe da amorosidade do/a professor/a para com
seu ofício e pelos seus/suas educandos/as.
Freire defende a amorosidade, mas também aponta que esta
categoria não deve estar dissociada da tensão entre autoridade e
liberdade. Esta tensão é que traz o limite amoroso e é necessária ao
desenvolvimento do caráter ético de crianças e jovens. A este respeito,
Freire (2000, p.18) diz:

Estou convencido de que nenhuma educação que pretenda estar a serviço


da boniteza da presença humana no mundo, a serviço da seriedade, da
rigorosidade ética, da justiça, da firmeza do caráter, do respeito às
diferenças, engajada na luta pela realização do sonho da solidariedade pode
realizar-se ausente da tensa relação dramática entre liberdade e
autoridade.

Sendo assim, Freire assevera que a materialização da amorosidade


na relação professor/a – educando/a acontece onde existe o diálogo e
vice-versa: onde há o diálogo, ali está presente a afetividade. “Não há
diálogo, porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos homens e
às mulheres” (FREIRE, 1996, p. 79).
54 • Paulo Freire: múltiplos olhares

Nas obras de Freire vemos de forma bastante insistente que o


diálogo é uma ferramenta que proporciona aos/às educandos/as a
oportunidade de se colocarem no mundo sendo uma condição do existir
da mesma maneira que deve ser um princípio e uma atitude do/a
professor/a amoroso/a que se interessa pelo saber dos/as educandos/as,
ensina o que sabe e com eles/as também aprende. Nessa perspectiva, o
diálogo é a força que impulsa o pensar crítico-problematizador em
relação à condição humana no mundo. Segundo (STRECK; REDIN;
ZITKOSKI, 2008, p. 37):

Freire trabalha com a concretude da produção do sentido e do sentir


amorosidade/amor como uma potencialidade e uma capacidade humana
que remete a uma condição de finalidade existencial ético-cultural no
mundo e com o mundo. Uma amorosidade partilhada que proporcione
dignidade coletiva e utópicas esperanças em que a vida é referência para
viver com justiça neste mundo.

Da mesma forma não há afeto se não houver o diálogo, como uma


via de “mão dupla”, não em que só o(a) professor(a) fale e estudante
ouça, numa atitude unilateral e verticalizada, pois isto desumaniza,
afasta, formaliza, distancia, mas num movimento dialético-
problematizador em que a palavra é de todos, combatendo assim, a
unilateralidade e a supremacia de um dos envolvidos nas relações. Essa
posição requer disponibilidade e uma atitude ética e humanista
necessárias do/a professor/a comprometido/a e forjado/a na esperança.
Freire (1996, p. 45) afirma que:

É preciso que saibamos que, sem certas qualidades ou virtudes como


amorosidade, respeito aos outros, tolerância, humildade, gosto pela alegria,
gosto pela vida, abertura ao novo, disponibilidade à mudança, persistência
na luta, recusa aos fatalismos, identificação com a esperança, abertura à
Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda • 55

justiça, não é possível a prática pedagógico-progressista, que não se faz


apenas com ciência e técnica.

A possibilidade de se desenvolver uma educação que inspire e que


crie condições para a liberdade dos meninos e meninas por meio do
diálogo, não se ocorrerá longe da amorosidade do/a professor/a para
com seu ofício e pelos/as educandos/as. Nesta possibilidade de abertura
e humildade é que o sujeito se desenvolve no contato com o/a outro/a,
na possibilidade da utopia, do sonho, da luta e de uma amorosidade que
permeie todas estas relações. De acordo com Freire (1997, p. 38):

Mas é preciso juntar à humildade com que a professora atua e se relaciona


com seus alunos, uma outra qualidade, a amorosidade, sem a qual seu
trabalho perde o significado. E amorosidade não apenas aos alunos, mas ao
próprio processo de ensinar. Devo confessar que, sem nenhuma cavilação,
não acredito que, sem uma espécie de “amor armado”, como diria o poeta
Tiago de Melo.

Da mesma maneira não há amorosidade na relação estabelecida


entre o/a professor/a e o/a educando/a se não houver compromisso. A
partir do com-pro-misso com o outro/a, com seu contexto, é que se dá
uma relação afetuosa entre professor/a e educando/a. Portanto, amor é
compromisso e não bajulação. É dessa amorosidade que trata o educador
pernambucano.
A amorosidade também foi uma das marcas do educador francês
que é expressa na frase que lhe é atribuída: “Para bem educar as crianças
é preciso amá-las e amá-las todas igualmente” (FURET, 1999, p. 501). Ao
tratar do amor, Marcelino Champagnat também o atrelava aos
compromissos que os irmãos assinavam ao ingressar na Congregação.
Entre as promessas que os primeiros irmãos assumiram. segundo Balko
(1979, p. 38), está a de:
56 • Paulo Freire: múltiplos olhares

[...] comprometer-nos a dar ensino gratuito a todos os meninos indigentes,


apresentado pelo pároco da Paróquia ensinar-lhes, assim como a todos os
demais meninos que nos forem confiados, o catecismo, a oração, a leitura,
a escrita e os outros conteúdos do ensino primário, segundo as necessidades
deles.

Champagnat tratava a educação amorosa como sendo


comprometimento com àqueles/as que chegavam para aprender sem
distinção no tratamento ou no tempo dedicado que os irmãos deveriam
oferecer às crianças e jovens independente da condição familiar, social
e econômica: a tratativa dos irmãos com estes/as educandos/as deveria
ser a mesma: fossem crianças de condição social mais privilegiada,
fossem indigentes.
Além de apontar para as qualidades que o/ professor/a precisa ter
ou desenvolver, Champagnat tratava de maneira conjunta a firmeza e a
ternura necessárias na educação de crianças e jovens, de acordo com o
Projeto Educativo do Brasil Marista (UMBRASIL, 2010, p. 1976):

Se examinarmos a educação ideal, aquela que a criança recebe da boa


família, arrolaremos duas qualidades indispensáveis que nela se encontram
invariavelmente, apesar das diferenças de posição, riqueza, tempo, lugares
ou caracteres. A educação familiar é feita de amor e de autoridade. O amor
lhes torna leve e fácil a tarefa não raro penosa e ingrata. Por outro lado, a
autoridade dos pais é sagrada; confunde-se no espírito da criança com a
própria voz da razão e da consciência. A um só tempo doce e firme, pode
facilmente obter o empenho da criança. Como a escola continua a família, o
mestre verdadeiramente cristão deve possuir deve possuir estas duas
qualidades que tornam tão fecunda a influência dos pais. Ele amará as
crianças por motivos sobrenaturais, pela ascendência moral que o seu
procedimento sempre digno e reservado lhe conferirá, vai exercer sobre os
alunos om autêntica autoridade.
Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda • 57

O princípio de uma educação marista pautada no amor se justifica


quando entramos em contato com o ambiente afetivo em que o pequeno
Marcelino cresceu e que certamente contribuiu na personalidade
amável que encontramos como característica deste educador. Sua mãe,
Maria Teresa Chirat, terna, amorosa e firme e seu pai, João Batista
Champagnat, homem eloquente e muito acolhedor, lhe garantiram a
suficiente base amorosa que mais tarde, o Padre Champagnat viverá
com os Irmãozinhos de Maria na vida em comunidade e se revelaria em
seu método educativo que abominava os castigos físicos comuns a
época, mas instruía que seus irmãos educadores agissem com
amorosidade e cuidado.
Sobre ele, o fundador da Congregação dos Irmãos Maristas, diziam
os irmãozinhos, seus seguidores, segundo Furet (1999, p. 390):

Pai nenhum teve mais afeto por seus filhos do que o Pe. Champagnat por
seus Irmãos. Seu coração, naturalmente bondoso e cheio de caridade para
com as pessoas em geral, transbordava de carinho pelos membros do seu
Instituto. Amava a todos os Irmãos igualmente, os jovens e os anciãos, os
imperfeitos e os mais virtuosos, embora estes lhe dessem maiores alegrias.
Nenhum deles o entrevistava ou lhe escrevia, sem dele receber alguma
prova de afeição.

Esta característica da amorosidade era atribuída ao Pe.


Champagnat, mas também por ele era exigida na atuação dos Irmãos
das escolas maristas. Já muito doente e acamado, segundo Hüttner
(2000, p. 38), Champagnat recomenda aos irmãos no seu testemunho
espiritual:

Eu vos peço também, meus queridos Irmãos, com toda a afeição de minha
alma e por toda a afeição que tendes por mim, procederdes sempre de tal
modo que a santa caridade se mantenha sempre entre vós. Amai-vos uns
58 • Paulo Freire: múltiplos olhares

aos outros como Jesus Cristo vos amou. Que não haja entre vós senão um
mesmo coração e um mesmo espírito. Que se possa dizer dos Irmãozinhos
de Maria como dos primeiros cristãos: ‘Vede como eles se amam’... É o mais
ardente voto de meu coração neste último momento de minha vida. Sim,
meus caríssimos Irmãos, atendei às últimas palavras de vosso pai, pois são
as mesmas de nosso amado Salvador: ‘Amai-vos uns aos outros’. [...]. Uma
devoção terna e filial por nossa boa Mãe vos anime em todo tempo e em
todas as circunstâncias.

Champagnat foi na contramão do contexto da época em que a


correção e a punição eram naturais aos/às educandos/as que de alguma
maneira cometiam algum tipo de indisciplina. Algumas dessas punições
eram físicas. Por exemplo: “Considerava tão grave o abuso dos castigos
corporais, que dizia que um irmão severo, violento e que se permite
facilmente bater nos alunos ou maltratá-los com palavras, não convinha
ao ensino” (FURET et al, 2009, p. 143).
Marcelino Champagnat compromete os irmãos-professores a
desenvolverem uma pedagogia da presença e do amor. Essas
características fundantes do seu jeito de educar nasceram da
sensibilidade do padre educador diante da realidade que o cercava
quando enviado à pequena paróquia de La Valla encontrou no homem,
na mulher e nas crianças do campo, a realidade da pobreza, da
ignorância religiosa e a falta de estudo. Segundo Green (2017, p. 90-91):

Ao considerar os objetivos das ideias educacionais de Champagnat e o


espírito de sua abordagem como é revelado a partir das evidências
documentadas, Bergeret (1993) resume o que considera ser as três
características subjacentes das quais depende a tradição de ensino marista
estabelecida por Champagnat. Primeiramente, ele conclui que há uma
pedagogia que depende da proximidade com os alunos, de uma relação entre
professor e alunos baseada no amor, tendo a presença e o bom exemplo
como características constitutivas.
Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda • 59

Podemos pensar que Champagnat, ao fazer a descoberta da


experiência pessoal com Deus e do seu chamado, na pessoa do jovem
amigo que deixava este mundo, o menino-jovem Montagne, que tinha
por volta dos seus 17 anos, sentiu as palavras de João, o evangelista e
discípulo mais jovem de Jesus, de que Deus é Amor e vocaciona o homem
para praticá-lo em situações concretas, é conduzido pela experiência do
atendimento do chamado à vivência comunial da communio caritatis,
comungar com o outro, servindo.
É nessa experiência unitiva de si mesmo com o outro e deste com
o outro objeto do serviço, que Champagnat percebe que a comunhão
com Deus exige uma relação de comunhão diacônica com o outro. É por
meio desta relação de comunhão que o sujeito se reconhece como ser e,
como diria Freire, ser mais. O amor, experiência transcendente no mais
imanente dos planos (na mais limítrofe das situações), é o próprio Deus,
assim experimentável, por meio da relação em abandono a esse mesmo
dínamo amoroso. E o chamado jamais aliena do que é essencial.
Trata-se aqui da adesão à animação pelo Espírito Santo que se
traduz, misteriosamente, por doação e abandono, mas vividos, já, na
moção divina originária. Essa pneumatologia (Espírito Santo) amorosa
de âmbito essencialmente relacional é a transcensão de todos os limites,
ainda que experimentada em situação.
Podemos, então, chegar, de Champagnat a Paulo Freire com o seu
conceito de amorosidade, isto é, o amor em atuação na relação
professor/educando/a. Os dois educadores, portanto, Champagnat e
Paulo Freire, cada um a seu modo procuraram cultivar a amorosidade
afetiva sim, mas não omissa. Ademais, na amorosidade que
professores/as, pais e familiares precisam desenvolver na relação com
60 • Paulo Freire: múltiplos olhares

crianças e jovens, o exemplo é sem dúvida o melhor educador. A


educação encontra sentido como veículo para que crianças e jovens,
homens e mulheres como inacabados, possam “ser mais”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo, propôs uma interlocução entre o pensamento


pedagógico de Paulo Freire, a partir da categoria da amorosidade,
buscando investigá-la como e se de alguma maneira esta/estava
refletida na pedagogia marista de Marcelino Champagnat.
No decorrer da investigação para este artigo, foi possível a
confirmação de que existem aproximações tanto conceituais, quanto
filosóficas e históricas, entre os educadores Marcelino Champagnat
(1789-1840) e Paulo Freire (1921-1997). Para ambos, a educação tem
finalidade da formação de caráter, precisa contribuir na constituição de
cidadãos/ãs capazes de transformarem suas realidades, bem como
reafirmam a importância de que professores/as se constituam em sua
caminhada docente em educadores/as éticos/as, amorosos/as e
comprometidos/as com a vida e o contexto de seus educandos/as.
Este artigo procurou investigar a contribuição valorosa de um
educador coerente com seus princípios, amoroso, inquieto com as
desigualdades e desumanidades, que teve a justiça, a ética e estética
como categorias fundamentais de seu pensamento e do legado
pedagógico e humano que deixa para todos os que, com seu pensamento
se identificam desde o começo de ações educativas.
A respeito de Champagnat, não tivemos a pretensão e revelar a face
de santidade, mas sim, do educador que preocupado com questões
sociais e religiosas de sua época, desenvolveu um pensamento
Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda • 61

educacional que reverbera até os dias de hoje com apropriações da


contemporaneidade.
Para além do pressuposto de que a amorosidade é indispensável
para quem educa, a influência familiar na vida de ambos e uma
inquestionável escolha preferencial pelos pobres são pontos de ligação
entre esses dois educadores.
A proximidade entre os dois educadores poderá ser verificada,
ainda, na consideração que se apresenta na obra educativa, tanto de
Freire quanto de Champagnat, de que a escola precisa constituir-se num
ambiente agradável, afetuoso, alegre e cheio de vida. Que seja oferecido
para as crianças e jovens um ensino fundado no diálogo e na liberdade,
elementos pedagógicos necessários para que criança e jovem encontrem
espaço para “ser mais”.
Procuramos, assim, contribuir nos estudos e na formação de
professores/as, que inquietos/as com uma educação reprodutora e
mecanicista, acreditam que a educação para e com crianças e jovens
precisa ser revitalizada a partir do pensamento crítico, do diálogo, na
presença do olhar estético, da postura ética e amorosa que a docência
requer.
A escola que Paulo Freire e Marcelino Champagnat nos inspiram a
viver, é a da possibilidade de que os/as educandos/as encontrem nela
recursos para que possam de forma criativa, alegre e bonita, apontar
caminhos de transformação social, experienciem uma escola que seja
capaz de superar práticas pedagógicas que atendam tão somente às
exigências do mercado.
62 • Paulo Freire: múltiplos olhares

REFERÊNCIAS

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Brasil, 1979.

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HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua


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Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda • 63

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ZITKOSKI, Euclides. Fatalismo. In: STRECK, Danilo; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, José.
(org). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte, 2008.
3
DESAFIOS PARA A FORMAÇÃO DE EDUCADORAS E
EDUCADORES NA E PARA A DIVERSIDADE CULTURAL
SOB O OLHAR DE PAULO FREIRE
Luci Frare Kira

INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é mostrar que em um mundo globalizado,


formar educadoras e educadores para superar a cultura única
dominante, é possível mediante o pensamento sociopolítico e
pedagógico de Paulo Freire.
O nosso objetivo é: em um mundo globalizado, pode-se educar
(formar) educadoras e educadores para superar a cultura única
dominante mediante a ação radical do pensamento sociopolítico e
pedagógico de Paulo Freire no espaço educativo dos Círculos de Cultura.
Para isso, contextualizamos o fenômeno da globalização e seu impacto
no conceito de cultura; apontamos os desafios impostos por esse mundo
globalizado para uma formação de educadoras e educadores na e para a
diversidade cultural; interpretamos o pensamento sociopolítico-
pedagógico de Paulo Freire e mostramos como ele se configura como
caminho para a superação desses desafios.
Este artigo se justifica porque, no seio de uma educação
conservadora que reproduz os modelos educacionais norte-americanos
e europeus e perpetua os valores positivistas e capitalistas de um mundo
globalizado, a formação de educadoras e educadores não é feita na e
para a diversidade cultural. A metodologia utilizada foi o círculo
66 • Paulo Freire: múltiplos olhares

hermenêutico, por meio do qual fizemos o movimento do todo para as


partes e, novamente, das partes para o todo para uma nova
compreensão do tema. A pergunta que deu origem a este trabalho foi: o
pensamento sociopolítico-pedagógico de Paulo Freire pode se
configurar como caminho possível para uma formação de educadoras e
educadores na e para a diversidade cultural? O percurso realizado por
nós comprovou que em um mundo globalizado, formar educadoras e
educadores para superar a cultura única dominante é possível mediante
o pensamento sociopolítico e pedagógico de Paulo Freire.
Vivemos em sociedades compostas por múltiplas identidades e
culturas que se relacionam de maneira cada vez mais próxima e
complexa devido à redução do tempo e do espaço provocada pelo
fenômeno da globalização. Esse fato coloca a diversidade cultural no
centro dos debates das sociedades contemporâneas. Naturalmente, essa
multiplicidade de identidades e culturas e o contato entre elas também
estão presentes nos espaços escolares, tornando-se um tema de
extrema importância para a área da educação.
Há muito tempo as escolas conservadoras ignoram as identidades
e as culturas daquelas e daqueles que fazem parte dela, principalmente
suas educandas e seus educandos. As lutas pelo acesso universal e
gratuito a uma educação que tenha significado teórico e prático para
todas e todos, especialmente aquelas voltadas para a diversidade
cultural, pressionaram diversos países do mundo a realizarem
iniciativas nessa direção. Contudo, muitas vezes os discursos oficiais
são aparentes e há uma distância entre a teoria e a prática. Logo, essas
lutas precisam continuar.
Luci Frare Kira • 67

Quando pensamos especificamente na formação de educadoras e


educadores, também nos deparamos com modelos conservadores que
perpetuam valores positivistas, capitalistas e elitistas, alinhados com os
valores das escolas conservadoras. Nestes casos, não há uma formação
feita na e para a diversidade cultural. Pelo contrário, o que está em jogo
é uma cultura única dominante e ser disseminada pela educação.
A relevância social deste artigo está na possibilidade da educação
se apresentar à sociedade em geral e, sobretudo, à área na Área das
Ciências Humanas, como um estudo aprofundado que propicia a
reflexão sobre a realidade e a transformação dela por meio de ações
conscientes.
Cabe ressaltarmos ainda a importância desta discussão para os
profissionais da educação e também de outras áreas, pois a formação de
um profissional pode e deve conduzir o ser no sentido ontológico do ser
mais, como nos diz Freire, para que possa desempenhar uma prática
humanizada, amorosa e dialógica.

CONTRIBUIÇÕES DE PAULO FREIRE PARA UMA PEDAGOGIA


EMANCIPADORA

De acordo com Silva (2000), tanto as identidades (assumindo


identidade como o conjunto de características que torna uma pessoa
única) que compõem essa diversidade quanto as diferenças entre elas
não são simplesmente definidas, elas são produzidas no seio das
relações sociais construídas pela humanidade ao longo da história,
relações não horizontais e sim hierarquizadas, que instituíram um
campo de forças global. Consequentemente, as identidades estão
68 • Paulo Freire: múltiplos olhares

distribuídas de forma desigual neste campo e, portanto, situadas de


maneira distinta em relação ao poder.
Campo, para Bourdieu e Passeron (2014) é o espaço das relações
objetivas e simbólicas entre os indivíduos e as instituições, que
disputam pela dominação de recursos específicos. Nessa direção:

As relações de concorrência entre as instâncias obedecem à lógica


específica do campo de legitimidade considerado (político, religioso ou
cultural) sem que a autonomia relativa do campo exclua jamais totalmente
a dependência relativamente às relações de força. A forma específica que
tomam os conflitos entre as instâncias que pretendem a legitimidade num
campo dado é sempre a expressão simbólica, mais ou menos transfigurada,
das relações de força que se estabelecem neste campo entre estas
instâncias, e que não são jamais independentes das relações de forças
exteriores ao campo (a dialética da excomunhão, da heresia e da contestação
da ortodoxia na história literária, religiosa ou política) (Bourdieu; Passeron,
2014, p. 40).

Essa é uma das razões pelas quais as diferentes identidades não


convivem harmoniosamente, pois estão em constante disputa pelo
acesso privilegiado aos recursos materiais necessários ao viver e, mais
do que isso, pelos recursos simbólicos da sociedade, ou seja, pelo poder
de definir as identidades e de marcar as diferenças. Nas palavras de
Silva (2000, p. 80) “a identidade e a diferença não são, nunca, inocentes”.
A partir do momento em que o grupo dominante impõe a sua
identidade como norma, ele demarca fronteiras e determina os(as) que
pertencem e os(as) que não pertencem ao grupo. Ele inclui e exclui,
separa o “‘nós’ do ‘eles/elas’, classifica os ‘bons’ e os ‘maus’, os ‘puros’ e
os ‘impuros’, os ‘desenvolvidos’ e os ‘primitivos’, os ‘racionais’ e os
‘irracionais’, os ‘normais’ e os ‘anormais’”, entre outras marcas da
presença do poder (Silva, 2000, p. 81).
Luci Frare Kira • 69

Esta escolha arbitrária de determinada identidade como a


identidade padrão, que se torna um parâmetro a partir do qual as
demais identidades são qualificadas e atribui a ela apenas
características positivas, restando às outras características negativas, é
definido pelo autor como “normalização”. Para ele, este é um dos
processos mais sutis de manifestação do poder nas relações identitárias,
que hierarquiza e coloca a “identidade normal” como algo natural, como
“a identidade”. Nessa direção:

Numa sociedade em que impera a supremacia branca, por exemplo, “ser


branco” não é considerado uma identidade étnica ou racial. Num mundo
governado pela hegemonia cultural estadunidense, “étnica” é a música ou a
comida dos outros países. É a sexualidade homossexual que é “sexualizada”,
não a heterossexual. A força homogeneizadora da identidade normal é
diretamente proporcional à sua invisibilidade (Silva, 2000, p. 83).

Por outro lado, as constantes relações de disputa entre estas


identidades posicionadas de forma desigual em relação ao poder
propiciam o contato entre diferentes grupos identitários, mesmo que
um contato conflituoso, fazendo com que tais identidades se
hibridizem. Este fenômeno, chamado de hibridismo na perspectiva da
teoria cultural contemporânea, abala as concepções de mundo que
defendem as identidades como essencialmente separadas, visto que
“confunde a suposta pureza e insolubilidade dos grupos que se reúnem
sob as diferentes identidades nacionais, raciais ou étnicas” (Silva, 2000,
p. 87).
Essa hibridização acontece tanto de maneira espontânea quanto
imposta, por meio de hibridizações forçadas em contextos de
colonização, invasão e ocupação. De uma forma ou de outra, as trocas
70 • Paulo Freire: múltiplos olhares

entre identidades nunca são vias de mão única. Mesmo quando uma
identidade é imposta sobre as demais, as identidades oprimidas sempre
influenciarão em alguma medida a identidade dominante. Assim,
nascem identidades híbridas que não são mais as identidades que as
originaram, mas que guardam traços delas.
Conforme Silva (2000), o fato de a hibridização não ser
determinada apenas por uma identidade dominante faz com que ela
possibilite o questionamento desta identidade fixa e hegemônica,
causando uma instabilidade que afeta as relações de poder. E estes
movimentos que desestabilizam e subvertem a tendência de fixação de
uma identidade acontecem, sobretudo, por meio das ações concretas
dos grupos sociais.
De acordo com Silva (2000), abordar a diversidade cultural na
educação implica em ir além da questão da tolerância e do respeito,
porque estas atitudes, por mais nobres que sejam, podem impedir que
se veja a identidade e a diferença como processos de produção social que
envolvem relações de poder. Isto é, defende que é preciso superar a visão
mágica que acredita que as identidades podem dialogar de forma
consensual e harmônica sem se questionar criticamente o sistema de
poder em que estão imersas. Afinal, “a identidade e a diferença têm a
ver com a atribuição de sentido ao mundo social e com disputa e luta em
torno dessa atribuição” (Silva, 2000, p. 96).
Nessa direção, Silva (2000) se questiona se as questões de
identidade e diferença se esgotam nas posições liberais da educação e se
elas são suficientes para sustentar pedagogias críticas e questionadoras.
Lança, então, um desafio para a educação em geral:
Luci Frare Kira • 71

Não deveríamos, antes de mais nada, ter uma teoria sobre a produção da
identidade e da diferença? Quais as implicações políticas de conceitos como
diferença, identidade, diversidade, alteridade? O que está em jogo na
identidade? Como se configuraria uma pedagogia e um currículo que
estivessem centrados não na diversidade, mas na diferença, concebida
como processo, uma pedagogia e um currículo que não se limitassem a
celebrar a identidade e a diferença, mas que buscassem problematizá-las?
(Silva, 2000, p. 73).

Logo, com base na teoria de Silva (2000), pode-se dizer que a


colonização configura um novo campo de forças entre culturas e
identidades. Coloca o pensamento único eurocêntrico no polo positivo,
como a identidade modelo a ser seguida, e as demais identidades no polo
negativo, discriminadas e marginalizadas. Dessa maneira, hierarquiza
as identidades com base em uma intensa produção da diferença.
Uma das formas utilizadas pelos colonizadores para impor sua
visão de mundo eurocêntrica foi a educação, oferecendo escolas de
primeiras letras aos indígenas a fim de letrá-los em português e, assim,
utilizá-los como mão de obra escrava e catequizá-los, enquanto
ofereciam colégios aos filhos da elite colonial para que absorvessem a
cultura europeia e se preparassem para assumir cargos de
administração na colônia (Saviani, 2013).
Mais tarde, foram fundadas universidades nas colônias. De acordo
com Estermann, Tavares e Gomes (2017), a construção do modelo
universitário na América-Latina como um todo seguiu os fundamentos,
os princípios e os objetivos das universidades europeias e estas
instituições se tornaram locais de disseminação dos valores ocidentais,
configurando-se como verdadeiros pilares de sustentação da civilização
cristã ocidental. Segundo os autores:
72 • Paulo Freire: múltiplos olhares

Até meados do século XVIII, as universidades latino-americanas foram


bastiões de legitimação intelectual e científica do poder colonial, da suposta
superioridade do “espírito” europeu e da fundamentação da inferioridade
das raças negra, índia e mestiça (Estermann; Tavares; Gomes, 2017, p. 19).

Além disso, as universidades latino-americanas também passaram


a reproduzir pressupostos assimilados da tradição filosófica e cultural
do ocidente da segunda metade do século XVIII, como as ideias dos
racionalistas europeus e dos empiristas ingleses. Já no século XIX, estas
universidades passam a ser influenciadas pelo modelo universitário dos
Estados Unidos, continuando a reproduzir uma cultura estrangeira
como a dominante (Estermann; Tavares; Gomes, 2017). Foi assim que:

As universidades na América Latina, conjuntamente com a igreja católica e


o poder político crioulo, foram, durante mais de 400 anos, o sustentáculo do
projeto da civilização ocidental – cristã por meio de uma estratégia de
imitação, adaptação e incorporação das ideias filosófico-teológicas vigentes
na Europa e, posteriormente, nos Estados Unidos da América (Estermann;
Tavares; Gomes, 2017, p. 20).

Portanto, o colonialismo em sua forma clássica acabou à medida


que as colônias foram adquirindo sua independência em relação às
metrópoles, porém sua ideologia persiste naquilo que alguns chamam
de colonialidade, outros de neocolonialismo. No universo educacional,
este fenômeno se dá por meio da colonização das mentes, dos poderes e
dos micropoderes que mantém a hegemonia política, econômica e
cultural das elites (Estermann; Tavares; Gomes, 2017).
Isto significa que as formas de dominação, de opressão e as
violências de outrora estão presentes nas sociedades contemporâneas,
mesmo que, evidentemente, o contexto de hoje seja bastante distinto
daquele em que o colonialismo se efetivou. Apesar das diferenças entre
Luci Frare Kira • 73

estes momentos históricos, o fato é que a globalização não é algo novo,


visto que suas versões hegemônicas existem pelo menos desde os
séculos XV e XVI, ligadas às formas de expansão europeia e o nascimento
do capitalismo, segundo Santos Sousa (2003).
Da mesma forma, a globalização também não é um fenômeno
natural, mas sim um fenômeno produzido pelo capitalismo, que vem
crescendo e se expandindo para cada vez mais lugares do mundo,
envolvendo cada vez mais pessoas e sujeitando-as às leis do mercado
capitalista. Dessa forma, promove o desenvolvimento econômico,
político e social de algumas nações em detrimento de outras,
aumentando as disparidades entre elas e acentuando a periferização do
mundo (Mesquida, 2020). Hoje:

Ao redor do mundo, democracia e cidadania parecem estar em crise. Além


de eventos específicos como a eleição de Donald Trump e Jair Bolsonaro,
várias tendências globais foram identificadas como potencialmente
minando a democracia. Além disso, países ao redor do mundo enfrentam
desafios como crescentes desigualdades quanto a tanto riquezas e renda;
crescente chegada de imigrantes escapando da pobreza, guerra e outras
circunstâncias; e o crescimento do extremismo. Além disso, a dominância e
culturas e práticas tecnocráticas e burocráticas está gradualmente
reduzindo o escopo para engajamento político e acesso à cidadania plena
(Mesquida, 2020, p. 67).

Para Santos Sousa (2003, p. 17), este fenômeno é o “clímax” de todo


esse processo histórico que vem se desenrolando desde séculos passados
e traz com ele a presença de todos estes passados: “de alguma maneira,
todos os passados estão conosco”. Por isso, a ideia de que a globalização
seria capaz de promover uma unicidade sustentada por relações
74 • Paulo Freire: múltiplos olhares

harmônicas torna-se ilusória, porque na realidade ela é o auge de


séculos de produção da diferença e de relações desiguais de poder.
O capitalismo também propaga a sua hegemonia por meio do
neoliberalismo, que funciona como “o ‘motorista principal’ da
globalização” na visão de Mesquida (2020, p. 67). Juntos, têm um grande
impacto nas sociedades, as quais adentram também suas instituições.
Nessa direção, Figueiredo e Frantz (2018) afirmam que a imposição
de uma visão hegemônica de mundo adentra na esfera política,
econômica, social e cultural e, mais especificamente, nos espaços
educativos, “colonizando-os” por meio da disseminação da lógica
capitalista da globalização e seus valores. Uma lógica individualista,
meritocrática, patriarcal e conservadora, que coloca o dinheiro como
medida de todas as coisas, valorizando a competitividade, o
consumismo desenfreado, o lucro infinito e a dominação inconsequente
dos bens naturais.
De acordo com Akkari e Mesquida (2000), o etnocentrismo se
manifesta em dois aspectos das ciências da educação. O primeiro deles
é o aspecto histórico, em que os intelectuais de destaque costumam ser
homens de origem europeia ou norte-americana (como Rousseau,
Pestalozzi, Dewey, Skinner, Freinet, Piaget, entre outros). Raramente
são de origem asiática, africana ou latino-americana (como Freire, por
exemplo), intelectuais que costumam ficar à margem das principais
correntes da área.
Nessa direção, promover uma formação de professoras e
professores na e para a diversidade cultural é um horizonte que precisa
ser discutido e ampliado nas universidades brasileiras. O pensamento
sociopolítico-pedagógico de Paulo Freire pode contribuir para a
Luci Frare Kira • 75

superação dos desafios impostos pela globalização à educação, mais


especificamente para a superação da situação-limite da cultura única
dominante na formação de educadoras e educadores.
Sendo assim, o diálogo e o amor se configuram como duas
categorias epistemológicas essenciais para o pensamento sociopolítico-
pedagógico de Freire. Delas nascem categorias como a conscientização,
o respeito, a autonomia, a liberdade, entre outras que sustentam a
pedagogia do oprimido, a pedagogia para a liberdade pensada e
praticada pelo educador.
Freire dizia que cada pessoa é um sujeito situado e datado e
colocava isso em prática em sua vida, vivendo sempre intensamente no
seu tempo e no seu espaço (Brandão, 2015), se preocupando com a
realidade opressora do capitalismo e da globalização que marginalizava
homens e mulheres, relegados a uma condição de vida desumana.
Essa consciência o levou a questionar e a criticar o sistema
econômico vigente e, mais especificamente, uma educação
conservadora chamada por ele de bancária imposta aos estudantes ano
após ano. Por isso, se dedicou a construir coletivamente uma pedagogia
crítica e libertadora, promotora de uma conscientização que leva à
emancipação, na qual pessoas livres compartilham suas identidades e
criam cultura, pensando e agindo no mundo e com o mundo (Brandão,
2015).
Por acreditar que a educação “é um ato político, e sendo político
implica em uma escolha: ou se é a favor dos opressores ou se é a favor
dos oprimidos” e que “o ato político também é amoroso, pois implica
num gosto, numa escolha, num porquê” (Freire, 2015, p. 316), Freire se
envolve em projetos de educação popular justamente quando o Brasil
76 • Paulo Freire: múltiplos olhares

vivia uma efervescência cultural e política entre o final da década de


1950 e começo dos anos de 1960, pouco antes da ditadura civil-militar
que vai sufocar esses movimentos:

No campo e na cidade os trabalhadores começavam a viver um novo


momento de organização e de mobilização. As Ligas Camponesas, no
Nordeste, foram o melhor exemplo disto. Em outra direção – e as duas irão
se cruzar em pouco tempo – começam a ser formar grupos, equipes,
organizações de educadores, de artistas, de militantes políticos, de
estudantes e de outros profissionais que em pouco tempo se aglutinam em
centros e em movimentos que se chamaram de “cultura-popular”. Centros
Populares de Cultura (os CPCs, sobretudo estudantis) e os Movimentos de
Cultura Popular. Dada a importância do Nordeste em todo este processo,
celebrou-se no Recife, em 1963, o Primeiro Encontro Nacional de Cultura
Popular (Brandão, 2015, p. 11).

Para Brandão (2015, p. 11), “Paulo Freire foi um dos militantes mais
presentes em todo o trabalho de cultura popular que em pouco tempo se
espalhou do Norte ao Sul do Brasil”. Por isso, as palavras cultura e
política apareciam frequentemente em suas falas e seus escritos,
principalmente nas suas primeiras obras, se configurando também
como categorias epistemológicas chave de seu pensamento
sociopolítico-pedagógico.
Freire queria, além de ensinar pessoas do povo a ler e a escrever,
fazer com que mulheres e homens fossem capazes de ler criticamente
as palavras e o mundo, assim como de escrever criticamente as suas
próprias palavras.
O fenômeno da globalização reduziu tempos e espaços e
aproximou as múltiplas identidades e culturas existentes no mundo.
Mais do que isso, diminuiu a distância entre o colonialismo de séculos
atrás e o mundo atual, reproduzindo suas ideologias.
Luci Frare Kira • 77

Portanto, o mundo capitalista prega um discurso de igualdade, mas


na realidade os valores que o sustenta são o individualismo; a
competitividade; as relações verticais de poder; a hierarquia; o elitismo;
a imposição de uma cultura única dominante; entre outros. e que estas
pessoas percebessem que também faziam cultura e eram capazes de
pensar e agir sobre e na realidade em que viviam. Com a certeza de que
toda educação é um ato político e que não existe neutralidade em
educação é que propôs uma educação como prática da liberdade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na educação, o tema da diversidade cultural está presente nos


debates atuais, mas ele nunca foi discutido com prioridade e apareceu
de fato nas práticas políticas, sociais e pedagógicas. Por mais que as
lutas nessa direção tenham levado a mudanças nas políticas públicas
educacionais, muitas vezes isso acontece de forma aparente ou fica
distante da realidade propriamente dita da educação.
A diversidade é concebida como um trunfo para otimizar o
processo educativo e não como empecilho à própria aprendizagem.
Mediante essas práticas, promover-se-ia uma sociedade mais inclusiva.
Nesse contexto, a educação, como instrumento elementar de
construção de novos paradigmas, adota, por meio dos órgãos oficiais,
políticas de inclusão escolar, respeito às diversidades, pedagogias de
combate ao racismo e igualdade social.
Para Gadotti (1992, p. 21):

Equidade em educação significa igualdade de oportunidade para todos


poderem desenvolver suas potencialidades. Ela só pode ser atingida quando
as classes populares entrarem e permanecerem numa escola que lhes
78 • Paulo Freire: múltiplos olhares

interessa. “Igual para todos” não significa uniformidade monocultural.


“Educação para todos” significa acesso de todos à educação,
independentemente de posição social ou econômica, acesso a um conjunto
de conhecimentos e habilidades básicas que permitam a cada um
desenvolver-se plenamente, levando em conta o que é próprio de cada
cultura.

O preconceito social e cultural, em suas diversas manifestações, é


uma realidade em nossa sociedade. E ser diferente em qualquer aspecto
rotula o indivíduo e o conduz, muitas vezes, ao ridículo perante os
outros componentes do grupo. Gadotti (1992, p. 21) afirma, ainda, que a
diversidade é a riqueza da humanidade e, “[...] por isso, a escola tem que
ser local como ponto de partida, mas tem que ser internacional como
ponto de chegada; assim como a equidade só pode ser atingida quando
as classes populares entrarem e permanecerem numa escola que lhes
interesse”.
Isso mostra que o tema da diversidade cultural está presente nos
debates do campo da educação há algumas décadas. Discussões em que
se busca socializar estudos e experiências pedagógicas voltadas para
questões étnicas, culturais, de gênero, de classe e para os diferentes
saberes que circulam na escola. Contudo, mesmo sendo pauta das
discussões atuais e suscitando a preocupação de certas agendas
governamentais, Candau (2013) lamenta que o tema ainda não seja
discutido com prioridade e apareça de forma acanhada nas práticas
políticas, sociais e pedagógicas.
De acordo com Candau (2013), a primeira proposta educacional
brasileira colocada pelo Ministério da Educação que incorporou a
pluralidade cultural aos temas transversais do currículo foram os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) publicados em 1997, apesar
Luci Frare Kira • 79

das controvérsias em relação à concepção, construção e estruturação do


documento. Entretanto, a autora defende que é preciso que a
diversidade cultural esteja presente não apenas nas políticas
educacionais e nos currículos, mas também na práxis educativa. Nessa
direção, na realidade brasileira:

[...] a reflexão sobre esta temática tem sua especificidade e vai penetrando
lentamente na vida acadêmica. No cotidiano escolar ainda está muito pouco
presente. Nos anos que levamos aprofundando esta temática não foi fácil
identificar propostas educativas concretas que tenham uma referência
explícita a questões que podem ser situadas no âmbito das preocupações
multiculturais (Candau, 2002, p. 156).

Assim, como, os conceitos de cultura e identidade foram se


transformando com o passar dos anos, o olhar sobre a diversidade
cultural também e alguns termos nos ajudam a compreender esta
evolução. Entretanto, para Oliveira (2015, p. 43) “a importância do debate
sobre cultura na ação educativa é viabilizar a conscientização crítica do
educando que ele é um ser cognoscente e cultural, capaz de conhecer e
intervir como sujeito no mundo” (Oliveira, 2015, p. 43).
Nesse contexto, as diferenças identitárias e culturais podem até
ser reconhecidas nos espaços educativos, mas as desigualdades geradas
pela produção dessas diferenças não. Assim, um dos primeiros desafios
para uma formação de educadoras e educadores na e para a diversidade
cultural é ter uma teoria sobre a produção da identidade e da diferença,
com o intuito de problematizá-la.
Os desafios se estendem para a superação dos valores do mundo
capitalista e globalizado presentes nos espaços educacionais
conservadores, nos quais as relações são verticalizadas e hierárquicas;
80 • Paulo Freire: múltiplos olhares

predomina o individualismo, a disciplina e a ordem; os conteúdos


prontos e acabados são impostos após uma seleção não democrática e
elitista; professoras e professores autoritários transferem estes saberes
para alunas e alunos passivos(as); as avaliações, de modo geral, são
performáticas e classificatórias; a responsabilidade do sucesso escolar
é transferida para professores(as) e alunos(as) etc.
Estes valores, baseados sobretudo no positivismo, levam ao
desinteresse pelas múltiplas identidades e culturas presentes nos
espaços educativos, que continuam a ser monoculturais, mesmo que de
uma maneira não explícita. Isso leva ao desafio de romper com o
predomínio de uma cultura única dominante considerada positiva e
ideal e acabar com o preconceito, a discriminação e demais violências
contra as identidades e culturais tidas como inferiores e não ideais.
O pensamento sociopolítico-pedagógico de Paulo Freire e como ele
se apresenta como um caminho para a superação dos obstáculos
apontados no primeiro capítulo que, em uma perspectiva freireana,
podem ser considerados situações-limite a serem superadas por meio
de atos-limite na direção da realização do inédito viável.
Porém, Freire (2017) entende que apenas a primeira opção, ou seja,
a humanização, é a verdadeira vocação ontológica dos seres humanos. 1

A partir do momento em que essa vocação é negada por meio da


exploração, da opressão, da violência, da desigualdade, da injustiça no
seio das relações humanas, a desumanização se impõe.
Diante disso, Freire percebe a importância de “reconhecer a
desumanização não apenas como viabilidade ontológica, mas como

1
Na perspectiva heideggeriana, a ontologia diz respeito ao ser como um todo, ou seja, suas múltiplas
formas de existência (Heiddeger, 1995). Sendo assim, vocação ontológica é a vocação do ser.
Luci Frare Kira • 81

realidade histórica”, porque compreende que é “a partir desta dolorosa


constatação, que os homens se perguntam sobre a outra viabilidade – a
de sua humanização” (Freire, 2017, p. 40). Surge, então, o desejo por
liberdade, por igualdade, por justiça, que se torna o combustível da luta
dos oprimidos pela liberdade e pela conquista da humanidade que lhes
foi roubada.
Nas palavras de Freire (2017, p. 41), a desumanização:

É distorção possível na história, mas não vocação histórica. Na verdade, se


admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada
mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total
desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação,
pela afirmação dos homens como pessoas, como “seres para si”, não teria
significação. Esta somente é possível porque a desumanização, mesmo que
um fato concreto na história, não é porém, destino dado, mas resultado de
uma “ordem” injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos.

Ao longo de toda a história, essa violência sempre foi exercida por


uma classe dominante opressora sobre classes dominadas oprimidas.
Essa relação opressora nunca partiu das oprimidas e dos oprimidos.
Quem inaugurou esta violência foram aquelas e aqueles que exploravam
e continuam a explorar outros seres humanos, relegando-os à condição
de oprimidas e oprimidos. Inauguraram, assim, “o desamor, não os
desamados, mas os que não amam, porque apenas se amam” (Freire,
2017, p. 58).
O ser menos gerado por esta violência é o oposto do ser mais. Leva
à exclusão de mulheres e homens que ficam à margem das sociedades,
excluídos das políticas públicas de governo e inconscientes de seus
direitos e deveres como cidadãs e cidadãos. Contudo, cedo ou tarde,
oprimidas e oprimidos percebem a violência praticada contra si e
82 • Paulo Freire: múltiplos olhares

passam a lutar contra esta realidade em busca da libertação e do ser


mais, a verdadeira vocação ontológica dos seres humanos.
Essa violência e essa opressão impõem toda uma forma de ser e de
se comportar, isto é, impõe uma cultura única dominante e suas visões
de mundo. Na posição de quem possui essa cultura única dominante e a
impõe aos demais, opressoras e opressores assumem uma consciência
de possessividade. Julgam-se donos do mundo, das pessoas e de todos
os bens materiais. Porém, essa consciência os(as) deixa tão presos(as) a
esta realidade que fora dela eles e elas simplesmente não podem ser
(Freire, 2017).
Estas são consciências necrófilas, diz Freire (2017) com base em
Eric Fromm, porque tentam transformar todas as coisas que as cercam
em objetos de seu domínio, sufocando-as e matando-as. Dentro desta
lógica capitalista, elitista e conservadora das opressoras e opressores:

Nesta ânsia irrefreada de posse, desenvolvem em si a convicção de que lhes


é possível transformar tudo a seu poder de compra. Daí a sua concepção
estritamente materialista da existência. O dinheiro é a medida de todas as
coisas. E o lucro, seu objetivo principal. Por isto é que, para os opressores, o
que vale é ter mais e cada vez mais, à custa, inclusive, do ter menos ou do
nada ter dos oprimidos. Ser, para eles, é ter e ter como classe que tem
(Freire, 2017, p. 63).

A imposição dessa cultura única dominante sufoca as demais


culturas e identidades, dividindo a consciência dos(as) oprimidos(as),
que ora se identificam com suas próprias identidades e culturas, ora se
identificam com a cultura dos(as) opressores(as). Essa dualidade
existencial leva estes(as) oprimidos(as) a hospedar o(a) opressor(a) e a
introjetar a sua sombra, sendo eles(as) e o(a) outro(a) ao mesmo tempo,
diz Freire (2017). E, é dessa forma que oprimidas e oprimidos devem ser
Luci Frare Kira • 83

compreendidos, segundo o educador: como seres duais, contraditórios


e divididos devido a situação de opressão na qual se constituem, que
os(as) impede de ser.
Indignado com a situação de opressão gerada pela dominação de
seres humanos que se consideram superiores sobre outros, condição
histórica legitimada pelo capitalismo e disseminada pela globalização,
Freire propõe uma Pedagogia do Oprimido baseada em categorias
epistemológicas como o diálogo e o amor. Seu objetivo é a concretização
de uma pedagogia crítica que promova a conscientização de mulheres e
homens para que libertem a humanidade da opressão, resgatando a
vocação ontológica dos seres humanos de ser-mais.
O educador chama esta educação conservadora de bancária,
denunciando a reprodução dos valores positivistas, capitalistas e
elitistas feita nestes espaços educativos. Propõe, então, uma pedagogia
totalmente oposta a estes valores, que promova, entre outras coisas, a
conscientização de mulheres e homens de que são sujeitos que fazem
cultura. Logo, anuncia uma educação voltada para o reconhecimento da
diversidade identitária e cultural e o respeito a todas elas.
Freire deixou um legado de inúmeras obras, intensamente
estudadas e analisadas atualmente. Mais do que isso, deixou um legado
de esperança, mas não a esperança do verbo “esperar” e sim do verbo
“esperançar”, levando mulheres e homens a lutarem por pedagogias
críticas diretamente influenciadas por seu pensamento sociopolítico-
pedagógico em busca da libertação de opressores e oprimidos, da
igualdade e da felicidade.
A escola precisa de educadoras e educadores críticos(as) que abram
caminhos para educandas e educandos também críticos, dotados de
84 • Paulo Freire: múltiplos olhares

suas identidades e culturas e fazedores de cultura. Concluímos que ele


estava. preocupado com uma formação de educadoras e educadores, isto
é, intelectual comprometido com a classe oprimida na direção da
autonomia e da emancipação.

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4
PEDAGOGIA VICENTINA EM DIÁLOGO
COM A PEDAGOGIA FREIREANA
Suzane Tizott

INTRODUÇÃO

A história da educação ocupa um lugar fundamental ao tratarmos


de intervenções educativas nas formações sociais. As concepções de
educação, de conhecimento e de aprendizagem, assim como os
planejamentos e as ações que temos hoje fazem parte de uma memória,
uma história e uma trajetória. O Carisma vicentino é um legado de
cuidado e inquietude com a vida, mas as mudanças ocorridas nos
contextos sociais, políticos e econômicos têm contribuído para, ao
ignorá-lo, o empobrecerem: daí a necessidade de aprofundar seu
sentido histórico, para iluminar a prática pedagógica contemporânea
das instituições vicentinas.
A educação ocupa um lugar de interlocução e ação privilegiado.
Assim, pensar em um currículo que, em fidelidade criativa às origens,
seja significativo para o mundo de hoje, atualizando a identidade da
Educação Vicentina, apresenta-se como um desafio e um propósito. Tal
perspectiva está presente na missão assumida pela Rede Vicentina de
Educação na Província de Curitiba, que toma como seu horizonte de
ação “educar crianças, adolescentes e jovens, orientados pelos valores
humanos, cristãos e vicentinos”, mediando o desenvolvimento de suas
“competências e habilidades como sujeitos proativos de transformação
social” (REDE VICENTINA DE EDUCAÇÃO, 2019, p. 29). Esclarecemos que
88 • Paulo Freire: múltiplos olhares

o sentido dado ao vocábulo “competência” tem a ver com o


desenvolvimento das potencialidades de crianças, adolescentes e
jovens, e não com uma formação para a competição, pois o carisma
vicentino está intimamente ligado à solidariedade, à colaboração, à
cooperação, à misericórdia, nas pegadas cristãs de São Vicente de Paulo
e Luísa de Marillac.
Consideramos que uma das maiores contribuições do campo dos
estudos sócio pedagógicos para o processo educativo seja a proposta de
diálogo, na diversidade, com toda a comunidade educativa. O
humanismo cristão de Paulo Freire, tal como aparece na obra “Educação
como prática da liberdade” (1997), em que ganham espaço os conceitos
de caridade, comunhão, diálogo, alteridade, comunicação, respeito e
liberdade, está em sintonia com uma educação pautada em valores
cristãos. No seu entendimento, as identidades são construídas na
relação entre as diferenças, o que está em plena sintonia com a proposta
de vida e de ação de Luísa de Marillac e Vicente de Paulo. No campo
teórico dos estudos culturais, cada cultura tem suas próprias e distintas
formas de classificar o mundo e é pela construção de sistema
classificatório que a cultura nos propicia os meios pelos quais podemos
dar sentido ao mundo social e construir significados.
A proposta desse capítulo e que norteou, ou suleou, como queria
Paulo Freire, o texto, pretende mostrar, à luz da herança vicentina,
portanto, do outro Paulo, o Vicente, quais são os elementos
constitutivos da proposta educativa na Província de Curitiba, em
diálogo com o humanismo existencial cristão da pedagogia de Paulo
Freire, colocando, portanto, em diálogo essas duas pedagogias. O
caminho escolhido da escrita oportunizou um mergulho nas fontes, um
Suzane Tizott • 89

olhar atento aos escritos de Santa Luísa de Marillac e São Vicente de


Paulo. Entre as cartas, conferências e colóquios que ambos realizaram
com as primeiras Irmãs, foi possível avançar no trabalho de
conhecimento do propósito assumido pela Rede Vicentina de Educação.
A proposta pedagógica vicentina e o seu currículo necessitam estar
em consonância simultaneamente com o carisma e com a legislação
atual. Vamos buscar nas fontes os elementos que constituem a proposta
educativa e o jeito que a Instituição propõe atender as crianças e jovens
nos seus processos de aprendizagens. O currículo escolar tem impacto
direto no desenvolvimento da aprendizagem e na formação humana
integral, pois, conforme afirma Arroyo (2007, p. 22), “uma vez que se
reconheça o papel constituinte dos educandos sobre o currículo e deste
sobre os educandos, somos obrigados a repensar os currículos e as
lógicas em que os estruturamos”. Este entendimento dos educandos
como sujeitos protagonistas da sua história e atuantes na
transformação da sociedade está em sintonia com a missão da educação
vicentina, assim como no ideal de educação libertadora de Paulo Freire.
Esse sujeito precisa ser acolhido, reconhecido, respeitado, valorizado,
estimulado na construção da sua identidade, ao mesmo tempo que tem
deveres com o seu próximo, com o qual compartilha um itinerário de
aprendizagem, sendo, portanto, não somente ator no drama da vida,
mas autor da sua própria história. Desse modo, o currículo, suas bases
e suas diretrizes, assumido por todos que fazem parte da Educação
Vicentina, é fundamental para assegurar a identidade das suas
instituições e, ao mesmo tempo, para assegurar essa condição de sujeito
dos seus estudantes.
90 • Paulo Freire: múltiplos olhares

A sociedade está em constante mudança. Com a globalização e as


tecnologias, a educação se coloca em uma situação de travessia, mas ela
carrega consigo a herança que recebe. Sob a perspectiva da contribuição
acadêmica para o campo de estudos da história da educação, essa
investigação pode possibilitar uma ampliação na sistematização do que
a Rede Vicentina de Educação na Província de Curitiba vem fazendo na
sua prática.
Do ponto de vista metodológico, nos valemos da ênfase na pesquisa
de natureza básica ou teórica, bibliográfica e documental que, conforme
Gerhardt e Silveira (2009) e Malheiros (2011), nos auxilia como
pesquisadores na busca de novos conhecimentos, sem finalidade de uso
prático imediato, mas, contribui para o avanço das ciências como um
todo. Tem implicitamente, como método, o aporte da fenomenologia de
Edmund Husserl, tal como apresentada nas obras Meditações cartesianas
(2001), Conferências de Paris (2017) e A ideia de fenomenologia (2000), que
nos permitiu desvelar o carisma vicentino, particularmente aquele que
abraça a educação, colocando, pela ação da busca da essência, um olhar
inquiridor sobre a pedagogia vicentina e a pedagogia freireana, por
meio do diálogo. Neste sentido, nos valemos da abordagem qualitativa,
seguindo o que entendem como pesquisa qualitativa Richard Bogdan e
Sary Biklen na obra Investigação qualitativa em educação (1994, p. 31),
uma vez que esse tipo de pesquisa objetiva

compreender os fenômenos pela ótica do sujeito. Neste sentido, têm como


premissa que nem tudo é quantificável e que a relação que a pessoa
estabelece com o meio é única e, portanto, demanda uma análise profunda
e individualizada.
Suzane Tizott • 91

É precisamente a partir desta perspectiva qualitativa que


entendemos ser possível analisar as concepções de educação vicentina
e freiriana, com suas respectivas intencionalidades.
Entendemos por herança vicentina um conjunto de experiências,
historicamente vinculadas à vida e à obra dos Fundadores,
particularmente de Luísa Marillac, orientadas por princípios filosóficos
e teológicos próprios. Para tais elementos se propõe uma releitura sob
a perspectiva pedagógica, considerando seu desenvolvimento e
expressão ao longo dos séculos, de modo particular na trajetória da
Província de Curitiba e na práxis educacional por esta assumida.

PEDAGOGIAS VICENTINA E FREIRIANA: APROXIMAÇÕES E POSSIBILIDADES


DE DIÁLOGO

Tentar estabelecer uma via de aproximação e de diálogo entre a


Pedagogia Vicentina e a Pedagogia Freiriana é o objetivo desse capítulo.
Evidentemente, ao propor essa ação, não deixamos de levar em
consideração dois elementos decisivos:
O primeiro ter a ver com os diferentes contextos históricos e
socioculturais dessas duas pedagogias, que nos obrigam a entender que
não haverá unicidade plena de categorias conceituais e nem mesmo
linguísticas neste diálogo. Por exemplo, enquanto podemos encontrar
em Luísa de Marillac e Vicente de Paulo a ideia de “salvação”, será mais
comum encontrar em Paulo Freire a noção de “libertação”:
evidentemente, do ponto de vista hermenêutico, trata-se de dois
conceitos distintos, com vieses próprios. No entanto, neles podemos
encontrar uma simetria de intenção, à medida que se orientam para
uma mesma realidade ontológica: o ser humano, que precisa ser, ao
92 • Paulo Freire: múltiplos olhares

mesmo tempo, salvo e liberto das muitas formas de opressão que caem
sobre ele. Seria uma forma de anacronismo pretender simplesmente
nivelar estas diferenças, tornando-as menos evidentes ou menos
influentes. Nossa opção metodológica, portanto, é assumi-las de forma
consciente e explícita, sabendo que a pretensão de estabelecer tal
diálogo entre Luísa de Marillac, Vicente de Paulo e Paulo Freire não pode
pretender ofuscar as muitas diferenças que existem entre eles. Ao
mesmo tempo, contudo, segundo nossa compreensão, tais diferenças
também não tornam esse diálogo uma mera utopia.
O segundo diz respeito ao fato de que Luísa de Marillac e Vicente
de Paulo não eram, propriamente, pedagogos e nem especialistas em
educação: sua pedagogia pode ser de alguma forma destilada do modo
como entendiam a necessidade e a importância da educação no
horizonte da missão vicentina, assim como da forma como orientavam
as Filhas da Caridade no serviço aos pobres realizado também por meios
das escolas. Embora não houvesse em Luísa e Vicente uma explícita
teorização pedagógica, no sentido mesmo de uma produção intelectual
sobre o campo da educação, não se pode negar que havia uma autêntica
intencionalidade pedagógica e, mais ainda, uma práxis pedagógica.
Desse modo, compreendemos que é plenamente possível que, com tais
atributos, a Pedagogia Vicentina possa entabular um diálogo com a
Pedagogia Freiriana.
Entendemos, com efeito, que na Pedagogia Vicentina e na
Pedagogia Freiriana há um mesmo horizonte ou uma mesma
perspectiva a partir do que se pode pensar a educação e refletir sobre
seus principais sujeitos e atores. Nossa intenção, portanto, é mostrar
que tal aproximação e diálogo são possíveis porque, em ambas as
Suzane Tizott • 93

propostas pedagógicas, existe um fundamento comum, que serve como


elo ou ponto de ligação e que, apesar das muitas diferenças, permite a
aproximação dialógica.
Em que consiste, precisamente, este fundamento comum entre a
Pedagogia Vicentina e a Pedagogia Freiriana? Em nossa compreensão,
trata-se de um mesmo princípio norteador ou suleador, para relembrar
a expressão freiriana, não apenas de base teórico-conceitual, nem
somente de caráter pedagógico-metodológico, mas, essencialmente, de
natureza ético-prática. De modo mais claro, podemos dizer que tanto na
Pedagogia Vicentina quanto na Pedagogia Freiriana é possível
encontrar uma mesma intencionalidade ética, que se alinha em um
mesmo programa de ação, ou, em termos mais freirianos, em uma
mesma práxis. Trata-se, portanto, de duas propostas pedagógicas que
se aproximam e podem dialogar a partir de um mesmo horizonte ético
e de uma mesma perspectiva de ação.
Quanto ao mesmo horizonte ético, fundado em uma mesma
intencionalidade ética, cumpre destacar os valores comuns que servem
como baliza para ambas as pedagogias. Nesse sentido, podemos dizer,
seguindo a análise de Mesquida, que, assim como Vicente e Luísa,
também

Paulo Freire acredita que a educação, na medida em que alcança a


consciência do homem e da mulher oferecendo-lhes condições de conhecer
o mundo (pelo saber), pode realizar nela e nele uma “metanóia”, uma
conversão, uma transformação radical. Essa “metanóia” não é somente uma
mudança interior, mas uma mudança de concepção de mundo que se
exterioriza na forma de uma práxis libertadora. Uma práxis libertadora que
se concretiza fundada na esperança da conquista de uma vida melhor e mais
94 • Paulo Freire: múltiplos olhares

humana e na transformação do mundo em um mundo mais humano”


[MESQUIDA et all. in: MESQUIDA e BORGES (org.), 2021, p. 39].

E ainda, assim como Vicente e Luísa, também Paulo Freire “fez a


opção de se engajar em favor dos humildes, dos excluídos da sociedade
capitalista, dos analfabetos, enfim, do povo” [MESQUIDA et all. in:
MESQUIDA e BORGES (org.), 2021, p. 43]. Quanto à mesma perspectiva
de ação, assentada em um mesmo programa de ação, deve-se considerar
a práxis que é iluminada e promovida por estes mesmos valores
comuns. Como veremos a seguir, na Pedagogia Vicentina e na Pedagogia
Freiriana estes quatro pilares constituem a pedra de toque, aquilo que
pode ser considerado para ambas a base da sua intencionalidade ética e
do seu programa de ação.

PERSPECTIVA HUMANISTA INTEGRAL

Entendemos por perspectiva humanista integral aquele modo de


compreender a educação a partir de uma concepção integral da pessoa
humana. Isso significa uma visão ampla, profunda, completa e global do
ser humano, avessa a compreensões unilaterais, restritivas ou parciais.
Desse modo, por exemplo, a partir desta perspectiva humanista
integral, a educação não se restringe a um tipo de formação intelectual
e meramente cognitiva, pois o ser humano não é apenas uma “mente
pensante” e, de outro lado, também não se restringe a um tipo de
formação exclusivamente técnica e operacional para o trabalho, dado
que a existência do ser humano vai além da esfera profissional e
operativa.
A perspectiva humanista integral tem uma base essencialmente
antropológica, a partir da qual o ser humano é compreendido em sua
Suzane Tizott • 95

totalidade existencial, que abrange as dimensões físico-corporais,


afetivo-emocionais, cognitivo-intelectuais, socioculturais, prático-
operacionais, histórico-políticas e transcendente-espirituais. Em suma,
é o ser humano em sua completude, em sua totalidade, em sua
integralidade. É este ser humano total e integral que é, ao mesmo tempo,
sujeito e objeto da prática pedagógica.
Tanto na Pedagogia Vicentina quanto na Pedagogia Freiriana
podemos encontrar uma mesma intencionalidade ética e um mesmo
programa de ação que nascem, precisamente, desta compreensão da
educação em perspectiva humanista integral.

PERSPECTIVA HUMANISTA INTEGRAL NA PEDAGOGIA VICENTINA

É do domínio geral que o humanismo, enquanto um novo


paradigma filosófico-cultural, desenvolveu-se na época do
Renascimento, entre os séculos XIV e XVI. Este é, precisamente, o marco
histórico em que se deve situar o movimento europeu das Letras e das
Artes, que foi decisivamente influenciado pela corrente humanista.
Porém, enquanto categoria filosófico-cultural, o humanismo ultrapassa
os limites das artes e da literatura, alcançando os espaços religiosos,
políticos, sociais e mesmo pedagógicos e influenciando os valores, a
ética e a ciência de então.
De forma sumária, podemos dizer que o humanismo se
fundamenta na concepção de que o ser humano é o centro da história e
do cosmos, em razão de ser a única criatura dotada de razão e de
liberdade. Neste sentido, a nota característica do humanismo é a
perspectiva antropocêntrica, que se contrapõem ao teocentrismo
medieval. Com efeito, na Idade Média, a sociedade e a cultura estavam
96 • Paulo Freire: múltiplos olhares

profundamente entrelaçadas em uma visão de mundo de fundo


teológico (enquanto teorização do sagrado) e religioso (enquanto
relação com o sagrado). A partir desta visão de mundo, a vida privada e
a pública eram articuladas em suas múltiplas dimensões. Contudo, a
partir do século XIV, uma nova cosmovisão começa a se estabelecer,
como resultado de uma ênfase mais acentuada na filosofia racionalista
e empirista (Descartes, Pascal, Bacon, Locke, por exemplo) e nas ciências
naturais (Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, por exemplo). Assim,
deixa-se de lado a perspectiva teocêntrica, apoiada decisivamente na
filosofia Patrística e Escolástica, que desde o século V até então servira
como lente para enxergar a vida e o mundo e para interpretar a
realidade.
O humanismo não elimina a religião, mas permite que esta seja
entendida e praticada a partir e em direção do ser humano: os temas
teológicos da criação e da redenção deixam de ser lidos
preponderantemente em sentido vertical e passam a ser interpretados
também em sentido horizontal. Em outras palavras: o humanismo
contribui para a compreensão de que já não basta uma religião que
somente nos faça olhar para o céu, sem que também nos ajude a
enxergar e a viver bem na terra; não basta uma religião que glorifica a
Deus e que se esquece do ser humano; não basta uma religião de serviço
a Deus sem que também seja uma religião de serviço ao homem. Desse
modo, o dualismo corpo-alma, Deus-homem, céu-terra, tempo-
eternidade, religiosidade-mundanidade, sagrado-profano são, por
assim dizer, reconciliados.
Podemos afirmar que em Luísa de Marillac e Vicente de Paulo pulsa
um profundo espírito humanista, que os impulsiona a sair de si mesmos
Suzane Tizott • 97

e abandonar a possibilidade de encerrar-se num claustro, para seguir


pelas ruas e aldeias, procurando pelos homens e mulheres a quem
poucos queriam procurar porque eram, na linguagem freireana, os
“esfarrapados do mundo” e os “condenados da terra” (FREIRE, 1974, p.
31-32).
É neste sentido que podemos compreender que

o humanismo vicentino se caracteriza pelo que hoje chamamos “a


civilização do amor”. Sua originalidade consiste no cultivo da fé e da
caridade, virtudes que partem e se dirigem a Deus, mas que tem o homem
como cenário de realização. Nesta linha teológica, o compromisso caritativo
e social vicentino comunica à ação os traços que deveriam definir a conduta
humana e cristã em dependência para com Deus e em solidariedade
fraterna com toda a humanidade [FLORES, Miguel et all (org.), 1995, p. 289,
tradução nossa].

Portanto, para Luísa de Marillac e Vicente de Paulo, a vida cristã


não pode ser compreendida simplesmente como uma relação individual
com Deus (em sentido vertical), mas como uma relação com Deus que
passa pela relação com os outros homens (em sentido horizontal), com
os irmãos e, de modo especial, com os pobres. O profundo sentido
teológico desta atitude, que é plenamente compreendido e assumido por
Luísa e Vicente, pode ser encontrado nestas palavras de Jesus: “Todas as
vezes que fizestes isso a um destes mais pequenos, que são meus irmãos,
foi a mim que o fizestes!” (Mt 25,40). Assim, a dicotomia entre a relação
vertical com Deus e a relação horizontal com os outros é integrada
numa única e mesma relação de amor. Em outras palavras: é na relação
horizontal com os outros que se estabelece também a relação com Deus.
Essa perspectiva horizontal da relação com Deus, que Luísa e
Vicente assumem como um verdadeiro projeto de vida, para si e para as
98 • Paulo Freire: múltiplos olhares

Filhas da Caridade, encontra ainda sua base teológica na compreensão


de que o próprio Cristo não nos veio libertar apenas em perspectiva
vertical, isto é, apenas espiritualmente, mas de forma integral. Com
efeito, como afirma Morante,

A libertação que Cristo traz aos pobres é, na visão de São Vicente, integral,
e daí é que se deve servir aos pobres corporal e espiritualmente; para São
Vicente, a evangelização e a promoção humana são complementares.
Atender ao corpo, ensinar a ler e a escrever, assistir de modo geral a pessoa
dos pobres mas sem esquecer de orientá-los para Deus (MORANTE, p. 60, in
CEME, 1997, tradução nossa).

Veja-se que o humanismo integral de Vicente de Paulo e Luísa de


Marillac parte do fato de que “os pobres [os] impactam em uma dupla
perspectiva: material e espiritual. Nenhuma destas perspectivas fica
excluída pela aparente opção por uma delas” (VILA, p. 29, in CEME, 1997,
tradução nossa).
Outro aspecto importante do humanismo vicentino refere-se ao
tratamento que se deve dar aos pobres. Segundo Flores,

o espírito de “doçura, compaixão, cordialidade, respeito e devoção” deve


impregnar o serviço que as servas dos pobres tributam a seus “amos e
senhores” [...] estas cinco características que acompanham o serviço
demonstram a alta dignidade do homem, que quanto mais pobre com mais
mimo deve ser atendido. São características que distinguem o otimismo
antropológico vicentino marcado pela concepção do homem como “imagem
de Deus”, “filho de Deus” e “membro do corpo de Cristo” [FLORES, Miguel
et all (org.), 1995, p. 292, tradução nossa].

Essas três condições da pessoa humana (enquanto “imagem de


Deus”, “filho de Deus” e “membro do corpo de Cristo”) correspondem,
cada uma a seu modo, a exigências concretas:
Suzane Tizott • 99

Como imagem de Deus, o homem é objeto de direitos inalienáveis: a


liberdade, o amor e a ajuda em casos de necessidade. Como filho de Deus,
salvo pelo sangue de Cristo, forma uma mesma família com todos os
redimidos, é herdeiro do Reino e espera todos os auxílios para alcançar a
salvação última. Como membro do corpo de Cristo, pede a solidariedade e a
compaixão evangélicas, que devem vir a ele a partir dos outros membros do
mesmo corpo [FLORES, Miguel et all (org.), 1995, p. 292-293, tradução nossa].

O objetivo da Pedagogia Vicentina, de acordo com as Regras


Particulares para as Escolas, elaboradas por Luísa de Marillac e Vicente
de Paulo, é claro: “formar bons cristãos, mas também proporcionar-lhes
os meios para que possam ganhar honradamente a vida: promoção
integral, humana e cristã” [FLORES, Miguel et all (org.), 1995, p. 152,
tradução nossa]. Aí está, em bela síntese, o ideal do humanismo cristão
e integral de Luísa de Marillac e de Vicente de Paulo.

PERSPECTIVA HUMANISTA INTEGRAL NA PEDAGOGIA FREIRIANA

Paulo Freire não entende a pedagogia ou a educação como


instrumento de mera formação intelectual. Para ele, a educação é um
instrumento capaz de contribuir para a construção do ser humano como
um todo, ou seja, para a sua plena humanização. A humanização, como
Lévinas nos ajuda a compreender, é fruto do processo de interpretação
da cultura:

a cultura pode, primeiramente, ser interpretada – e esta é a dimensão


privilegiada do Ocidente greco-romano (e sua possibilidade de
universalização) – como intenção de retirar a alteridade da Natureza, que,
estranha e prévia, surpreende e marca a identidade imediata que é o Mesmo
de eu humano. Daí surge o humano como o eu do “eu penso”, indo até a
consciência de si e até a identidade em si-mesma do idêntico e do não
idêntico (LEVINAS in: DALLA ROSA, 2012, p. 104).
100 • Paulo Freire: múltiplos olhares

Já nas primeiras linhas da obra Pedagogia do Oprimido, pode-se


perceber esta inclinação humanista que inspira Paulo Freire:

M em valores cristãos Não se trata, pois, de uma reflexão pedagógica sem


concretude, simplesmente teórica e idealista, alheia aos problemas do
homem, desvinculada da existência concreta e histórica em que o drama da
vida se desenrola. Ao contrário, é uma pedagogia que se desenvolve a partir
da realidade histórica em que vivem os homens e, de modo especial, aqueles
que se encontram na condição existencial, concreta e histórica de
“oprimidos”, “condenados da terra” e “esfarrapados do mundo” (FREIRE,
1974, p. 32), isto é, na condição de desumanização.

O binômio humanização-desumanização revela a própria condição


do homem enquanto um ser incompleto, inacabado, um ser ainda em
vias de vir a ser e inserido em um contínuo processo de construção de
si mesmo. Com efeito, escreve Paulo Freire, a “humanização e
desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto,
objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos e
conscientes de sua inconclusão” (FREIRE, 1974, p. 30).
Nota-se, assim, que o humanismo de Paulo Freire assume uma
perspectiva existencialista, ou seja: ao invés de pensar o homem como
uma essência que se manifesta (perspectiva essencialista), de forma
acabada e definida, como um ser completo e realizado plenamente, com
um destino fatalisticamente já determinado, Paulo Freire assume a
posição de enxergá-lo como alguém que, ao longo da própria existência
(perspectiva existencialista), da própria história de vida, vai
construindo a si mesmo, apesar das contingências históricas e dos
condicionamentos limitadores que a ele se impõem.
Essa perspectiva existencialista é importante para entendermos a
ênfase que Paulo Freire dá ao fato do ser humano ser entendido como
Suzane Tizott • 101

sujeito ativo da construção da própria vida e da transformação do


mundo, ao invés de vê-lo como objeto passivo da dominação de um
outro. Assim, podemos compreender o peso desta afirmação de Freire:
“Os oprimidos, como objetos, como quase ‘coisas’, não têm finalidades.
As suas, são as finalidades que lhes prescrevem os opressores” (FREIRE,
1974, p. 50). Para que deixem de ser como “objetos” e “quase coisas”,
precisam se libertar, para poderem, então, de fato, se humanizar. A
libertação conduz à humanização; e a humanização supõe a libertação.
Daí que Paulo Freire entenda a sua “pedagogia do oprimido” como, ao
mesmo tempo, uma “pedagogia humanista e libertadora” (FREIRE, 1974,
p. 44).
Muito mais do que uma nota característica do ser humano, ao lado
de outros predicados, Paulo Freire entende que o processo existencial
de humanização é a autêntica vocação do homem que, incompleto, é
chamado a ser mais. A possibilidade de humanizar-se (ou, ao contrário,
de desumanizar-se) revela a mesma perspectiva existencialista, dado
que esta vocação humana pode, eventualmente, não se realizar: pois é
uma possibilidade existencial e não já um fato determinado. Sendo uma
possibilidade, corre o risco de não se concretizar historicamente e,
assim, surge o seu contrário, a desumanização, como uma verdadeira
distorção da vocação originária do ser humano.
Por ser uma possibilidade, que corre o permanente risco de não se
realizar, o processo de humanização exige do homem o empenho e o
esforço da “luta pela humanização” (FREIRE, 1974, p. 59) e a “luta contra
os obstáculos à sua humanização” (FREIRE, 1974, p. 134).
Em Luísa, pelos seus escritos e cartas enviadas as Irmãs
principalmente, entendemos essa relação de liberdade e confiança pelo
102 • Paulo Freire: múltiplos olhares

encontro com o outro, a alteridade, a “outra face” que revela o amor e a


bondade unidos em função de garantir dignidade à pessoa.
Segundo Rosa (2012, p. 144),

o outro se apresenta para mim como possibilidade de um ensinamento que


me abre para a relação ética. A partir da sabedoria do amor que irradia o
desejo de estabelecer com o outro uma relação de cuidado, de bondade, de
ternura, enfim, desejo ético a serviço do próximo, desdobra-se a
possibilidade de uma educação para o êxodo, aqui entendido como
movimento do eu que se abre hospitaleiramente a outrem.

O outro é parte da ação, por isso Luísa e Vicente atuavam com uma
sensibilidade para perceber que as ações podem ser complementadas
pela alteridade. A educação é o processo de humanização que acontece
no encontro face a face. A partir da ética da alteridade, encontrar e
interagir com o outro é acolher o seu jeito de ser.
Libertação, humanização e vocação para superar-se são temas
profundamente interligados no pensamento de Paulo Freire. Por isso,
ele afirma: “Os oprimidos, nos vários momentos de sua libertação,
precisam reconhecer-se como homens, na sua vocação ontológica e
histórica de Ser Mais” (FREIRE, 1974, p. 57).

COMPREENSÃO DA EDUCAÇÃO COMO PRÁTICA DA LIBERDADE

O humanismo integral implica a consciência do respeito pela


liberdade do ser humano como valor fundamental. É a vocação do
homem ao ser mais que exige a liberdade, como pressuposto de
realização dessa mesma vocação. Sem liberdade, o homem estaria
mergulhado nos limites de uma existência determinada, definida,
acabada, pronta. É em razão de ser constituído pela dimensão da
liberdade que o homem pode escolher ser mais, pode empenhar-se
Suzane Tizott • 103

sempre para completar a própria existência, para plenificar seu ser no


mundo e na história. Portanto, a perspectiva humanista e a dimensão
da liberdade são noções que se completam mutuamente na reflexão
sobre a Pedagogia Vicentina e a Pedagogia Freiriana.
Os temas da libertação e da pedagogia da libertação são amplos
demais para serem tratados nesta seção. Contudo, entendemos que é
possível acenar para alguns elementos essenciais, que sustentem a
reflexão e sejam suficientes para os propósitos deste capítulo.
A categoria linguístico-conceitual de “libertação” não aparece no
ideário vicentino dos primeiros tempos: ali fala-se mais propriamente
de “salvação”, conceito bíblico-teológico que compreende não apenas a
dimensão espiritual (salvação da alma), mas também a dimensão
material (a salvação do povo oprimido no Egito, por exemplo, conforme
o relato do livro do Êxodo, ou mesmo a salvação da opressão romana, no
tempo de Jesus). Evidentemente, os conceitos de ‘liberdade” e de
“libertação” já aparecem nos textos bíblicos, sobretudo nos escritos
paulinos, como por exemplo, nesta passagem da Carta aos Gálatas: “Para
que gozemos de liberdade é que Cristo nos libertou” (Gl, 5,1). No texto
bíblico que se tornou referência e serviu de inspiração para Vicente de
Paulo, também aparece a noção de liberdade e de libertação:

O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu [escolheu]; e enviou-


me para anunciar a Boa-Nova aos pobres, para curar os contritos de
coração, para anunciar aos cativos a redenção [salvação, libertação], aos
cegos a restauração da vista, para pôr em liberdade os cativos (Lc 4,18-19).

Uma análise histórica e existencial da vida de Jesus revela, sem


dificuldades, que a interpretação desta passagem não pode ser feita em
sentido estritamente espiritual. De fato, Jesus trabalhou tanto para
104 • Paulo Freire: múltiplos olhares

libertar os cativos no sentido espiritual (a libertação do mal e do


pecado), quanto no sentido material (curando as doenças físicas,
alimentando as multidões, incentivando as pessoas à prática da
compaixão, ensinando a fraternidade como condição para criar uma
sociedade melhor etc.).
A ideia de liberdade, na França de Luísa de Marillac e de Vicente de
Paulo, vai amadurecer nos séculos seguintes, configurando-se como o
traço determinante da Revolução Francesa. Trata-se, nesse contexto, de
uma liberdade acentuadamente política: é a liberdade frente ao
absolutismo monárquico. É esse sentido de liberdade e de libertação que
vai inspirar todos os movimentos de independência que, pouco a pouco,
vão se espalhar nas muitas “colônias” espalhadas pelos quatro cantos do
mundo.
Contudo, o sentido da promoção integral da pessoa, assumido por
Vicente de Paulo e Luísa de Marillac vai além dessa dimensão
meramente “política” da liberdade. Com efeito, a sociedade em que
ambos viviam

era uma sociedade dominada por grandes desigualdades sociais, em que a


classe baixa – camponeses e artesãos – era cada vez mais pobre porque
sobre ela recaíam os grandes impostos, os maiores desastres das guerras e
das epidemias, assim como as consequências das más colheitas. Estavam
fortemente diferenciados: a nobreza, a burguesia, o clero, os mendigos e
vagabundos (GUTIÉRREZ, p. 85 in: CEME, 1997, tradução nossa).

Desse modo, pode-se dizer que, de alguma forma, Luísa de Marillac


e Vicente de Paulo e já antecipavam uma compreensão mais ampla de
liberdade, que vai se tornar mais amplamente discutida a partir do
século XIX, com a contribuição do pensamento marxista, e que diz
Suzane Tizott • 105

respeito não apenas à liberdade política, mas também à liberdade das


condições socioeconômicas que geram pobreza e desigualdade.
No caso da compreensão freiriana, a ideia de liberdade e de
libertação segue também esse sentido novo e original, que corresponde
mais propriamente à realidade do contexto latino-americano: trata-se
da libertação daqueles que são oprimidos social, cultural, política e
economicamente... e, como não poderia deixar de ser, também
pedagogicamente.
Essa noção original de liberdade e de libertação, no contexto
latino-americano, em sua manifestação teorizada, aparece
inicialmente, a partir da década de 1960, em produções de diferentes
disciplinas, como por exemplo: na obra do filósofo argentino Enrique
Dussel, que começa a desenvolver as primeiras linhas de uma Filosofia
da Libertação (DUSSEL, 2005) e de uma Ética da Libertação (DUSSEL,
1987); na mesma perspectiva, o teólogo peruano Gustavo Gutiérrez
elabora as primeiras concepções daquilo que vai se tornar a Teologia da
Libertação (GUTIÉRREZ, 1975), cuja expressão mais fecunda, em solo
brasileiro, pode-se encontrar na obra do teólogo Leonardo Boff (1988;
1998). Em termos pedagógicos, a noção mais ampla e clara de uma
Pedagogia da Libertação vai surgir, propriamente, com Paulo Freire
(1974; 2007). Em Dussel (1987), já aparece uma reflexão sobre a
“dimensão pedagógica” da ética libertadora (como momento que
complementa a “dimensão erótica” e a “dimensão política” da ética).
Contudo, é em Paulo Freire, segundo nossa compreensão, que o conceito
de uma Pedagogia da Libertação terá uma envergadura maior.
106 • Paulo Freire: múltiplos olhares

COMPREENSÃO DA EDUCAÇÃO COMO PRÁTICA DE LIBERDADE NA


PEDAGOGIA VICENTINA

Por mais que não houvesse, no tempo de Luísa de Marillac e


Vicente de Paulo, um uso explícito do conceito de “libertação”, no
sentido que o entendemos hoje, ambos não deixaram de trabalhar em
prol da libertação daqueles a quem dirigiam, de forma prioritária, o seu
trabalho eclesial, social, de promoção humana e, de modo muito
especial, educativo. Com efeito, a obra, o legado vicentino foi tão
importante e extraordinário, a ponto de podermos dizer:

Vicente de Paulo marcou profundamente a realidade eclesial e social de seu


tempo. Sua notável contribuição se deu no âmbito da reforma da Igreja,
especialmente na formação do clero, e na organização de uma vasta rede ad
intra [para dentro] e ad extra [para fora] de relações e parcerias para o
atendimento dos pobres e superação das estruturas de pobreza (REDE
VICENTINA DE EDUCAÇÃO, 2019, n. 26, p. 21).

Aparentemente, a formação do clero e o atendimento aos pobres são


dois objetivos sem conexão, são duas realidades em contextos diferentes.
Mas, para Vicente de Paulo, as duas realidades estavam imbrincadas. Com
efeito, era preciso que o clero fosse formado a partir de uma atitude de
retorno e fidelidade ao Evangelho, sobretudo quanto à prioridade que o
próprio Jesus dava aos pobres. De fato, na França daqueles dias, havia no
clero uma preocupação de promoção social, uma forma de compreender a
vida clerical como um meio de garantir ascensão social e segurança
econômica para si e para a própria família dos clérigos.
Na vida de Vicente de Paulo, aconteceu um momento de ruptura
radical com aquele projeto clerical elitista. Isso aconteceu quando Vicente
Suzane Tizott • 107

leu o evangelho de Lucas [Lc 4,18-19] e ficou cativado pelo texto em que
Jesus se apresenta como aquele que fez da opção pelos pobres o traço
distintivo de sua missão. [...] Este Cristo Pobre, que se dirige principalmente
aos pobres e se declara seu evangelizador, polariza a consciência vicentina
(MORANTE, p. 58, in CEME, 1997, tradução nossa).

A partir de então, Vicente de Paulo faz do trabalho de


evangelização e de promoção dos pobres a forma radical e concreta de
viver o Evangelho, a exemplo do próprio Jesus. Deixa de lado a
perspectiva espiritualista e apenas vertical de salvar as almas, que
dominou a mentalidade eclesial durante séculos, para adotar uma
atitude humanista e integral que objetiva libertar o homem inteiro, no
corpo e na alma.
No caso de Luísa de Marillac, deu-se um processo semelhante de
abertura de sua vida para a perspectiva dos pobres, apesar das
diferenças biográficas entre ela e Vicente de Paulo. Ela tinha uma
sensibilidade especial para com os menos favorecidos. Sua origem nobre
não fez sombra a este seu jeito próprio de perceber a dor do próximo e
ao desejo de com ele se comprometer. Além disso, sob a direção
espiritual do Padre Vicente de Paulo, “os primeiros anos de viuvez de
Luísa (1625-1629) serão de descoberta e preparação para a grande
missão: ‘Deus é amor e quer que se vá a ele por amor’” (GUTIÉRREZ, p.
91, in CEME, 1997, grifos no original, tradução nossa).
As crianças abandonadas, os órfãos, os mendigos e os doentes são
aqueles que, de modo prioritário, receberão a atenção de Luísa e Vicente.
As lições de catecismo serão acompanhadas do cuidado, da assistência, da
caridade que dá alimento e remédio e da iniciativa de promoção social,
mediante o aprendizado de um ofício. Assim, podemos compreender que
a obra de Vicente de Paulo e de Luísa de Marillac, “enquanto se refere à
108 • Paulo Freire: múltiplos olhares

educação, se inscreve no contexto de toda a sua ação em favor dos pobres


de seu tempo” (MORANTE, p. 62, in CEME, 1997, tradução nossa). Em
suma, nenhuma miséria humana os deixou indiferentes.
A inserção das Filhas da Caridade no âmbito da educação corresponde
à perspectiva vicentina de uma visão integral da pessoa humana que deve
ser atendida em suas múltiplas dimensões. Assim, no contexto das muitas
obras que Vicente de Paulo e Luísa de Marillac idealizaram e promoveram,
“uma obra, não menos importante que as outras, é a das ‘Escolas’”.
(MORANTE, p. 63, in CEME, 1997, tradução nossa). Vicente e Luísa
conheciam claramente o problema da ignorância tanto nos adultos quanto
nas crianças. Estão convencidos de que o analfabetismo é uma forma real
de pobreza, que contribui para manter os pobres à margem da sociedade.
E deve-se precisamente a Luísa de Marillac a iniciativa de
“institucionalização do ensino” (GUTIÉRREZ, p. 94, in CEME, 1997,
tradução nossa), como vimos no capítulo primeiro, quando do envio, ao
Chantre da Catedral de Paris, da carta de solicitação de autorização para
abertura de uma escola. “Esta carta é uma das primeiras afirmações
decididas e programáticas que mais tarde levarão a sociedade a tomar
consciência do direito de todos ao ensino livre e gratuito” (GUTIÉRREZ, p.
94, in CEME, 1997, grifos no original, tradução nossa).
No que tange, de modo especial, à visão de Luísa de Marillac sobre a
necessidade de educação da população mais necessitada, assim se expressa
a Irmã María Cruz Gutiérrez (p. 94, in CEME, 1997, tradução nossa):

Por meio de seus contatos e visitas às Confrarias da Caridade, [Luísa] havia


compreendido que deixar o povo na ignorância significava abandoná-lo à
miséria e inferioridade, debaixo do domínio dos ricos e poderosos, e
impedir sua promoção humana.
Suzane Tizott • 109

1A dimensão de prática libertadora da Pedagogia Vicentina


evidencia-se, de forma muito particular, na clara orientação dada pelos
fundadores de que as escolas vicentinas, diferentemente de outras
escolas, devem ser uma “escola para os pobres”. Assim afirmou Vicente
de Paulo em uma de suas conferências (IX, 1.147), nas quais costumava
dar orientações para as Filhas da Caridade:

Vossa Companhia, minhas queridas Irmãs, tem também a finalidade de


instruir as crianças nas escolas [...] e isto vós tendes em comum com as
Ursulinas [outra congregação religiosa dedicada à educação]. Porém, como
elas têm casas grandes e ricas, os pobres não podem ir para lá e têm
procurado a vós (MORANTE, p. 63, in CEME, 1997,

A Pedagogia Vicentina tem, em sua raiz, uma perspectiva


explicitamente libertadora. Ela serve a um projeto de emancipação das
pessoas, sobretudo dos mais sofredores e oprimidos. Mais do que
simplesmente instruí-los para mantê-los nas condições existenciais e
históricas em que se encontram, pretende-se estar ao lado deles, para
que, juntos, em comunhão e solidariedade, os pobres e os que realmente
se solidarizam pelos pobres, possam construir os caminhos da
libertação. É neste sentido que Vicente de Paulo ensinava às Filhas da
Caridade: “o vosso claustro seja as ruas” (FILHAS DA CARIDADE, 2004,
p. 33), para assim mostrar a elas a forma como deveriam fazer-se pobres
com os pobres, para com eles (e não apenas para eles) forjar a sua
libertação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos afirmar que a Pedagogia Freireana se caracteriza, de


modo muito especial, por sua intencionalidade libertadora. Desde seus
110 • Paulo Freire: múltiplos olhares

primeiros escritos até os últimos, o tema de uma educação que conduz


à libertação é a tônica de suas ideias pedagógicas, como também de sua
práxis. Como afirmam Silva e Mesquida, “a pedagogia freireana surge
da realidade dos(as) e com os(as) oprimidos, e se concretiza no binômio
reflexão-ação, isto é, na práxis que propicia a consciência crítica dos
sujeitos” (2022, p. 3).
Essa sua opção teórico-prática é claramente uma opção em favor
dos mais pobres, dos necessitados, dos excluídos, dos esfarrapados. Com
efeito, como ele afirma, “nenhuma pedagogia realmente libertadora
pode ficar distante dos oprimidos” (FREIRE, 1974, p. 43). Portanto, quem
faz a opção pela pedagogia da libertação, necessariamente deve colocar-
se com os oprimidos, tornando-se assim “companheiro dos educandos,
em suas relações com estes” (FREIRE, 1974, p. 71). Optar por uma
pedagogia libertadora e manter-se distante dos pobres, dos oprimidos,
dos sofredores é uma declarada contradição.
Freire entende que a educação pode servir a dois projetos bem
distintos: por um lado, um projeto de libertação dos oprimidos e, por
outro lado, um projeto de dominação dos oprimidos. Tais projetos são
incompatíveis e irreconciliáveis. Para deixar de lado um deles e fazer a
escolha pelo outro, é preciso passar por um profundo processo de
conversão, de metanoia, ou seja, de mudança de direção. Porque a
libertação e a dominação são esforços que seguem em oposição. São
forças que se repelem e se anulam reciprocamente: quem liberta
extingue a dominação; quem domina, mata a liberdade.
Poderíamos perguntar qual é, na concepção de Paulo Freire, o
objetivo do projeto de dominação que é construído por meio da
educação? A resposta é inequívoca:
Suzane Tizott • 111

A educação como prática da dominação, que vem sendo objeto desta crítica,
mantendo a ingenuidade dos educandos, o que pretende, em seu marco
ideológico, (nem sempre percebido por muitos dos que a realizam) é
indoutriná-los no sentido de sua acomodação ao mundo da opressão
(FREIRE, 1974, p. 76).

Este processo de “indoutrinação”, como o chama Paulo Freire, deve


ser entendido, literalmente, como uma introjeção de doutrinamento, no
sentido de fazer com que os educandos aceitem, a partir da interioridade
de sua própria consciência, ainda que de forma ingênua, os pressupostos
ideológicos da acomodação diante da opressão. Trata-se, em outras
palavras, de um esforço para fazer com que os oprimidos aceitem
docilmente a situação de opressão, como se nada pudessem fazer em
contrário. É no sentido determinista da opressão, considerada como algo
dado a priori, contra o que não se pode fazer nada, que se engendra a
ideologia que os opressores querem indoutrinar nos oprimidos.
Como resultado desse processo, continua Paulo Freire,

toda vez que se suprime a liberdade, fica ele um ser meramente ajustado ou
acomodado. E é por isso que, minimizado e cerceado, acomodado a
ajustamentos que lhe sejam impostos, sem o direito de discuti-los, o homem
sacrifica imediatamente a sua capacidade criadora (FREIRE, 1997, p. 42).

Parece-nos que, para Freire, a distinção fundamental entre estes


dois projetos (da educação que liberta e da educação que oprime) parece
residir na forma como se compreende o homem. Por isso, assim escreve:

A educação como prática da liberdade, ao contrário daquela que é prática da


dominação, implica na negação do homem abstrato, isolado, solto,
desligado do mundo, assim também na negação do mundo como uma
realidade ausente dos homens. A reflexão que propõe, por ser autêntica, não
112 • Paulo Freire: múltiplos olhares

é sobre este homem abstração nem sobre este mundo sem homem, mas
sobre os homens em suas relações com o mundo (FREIRE, 1974, p. 81).

Para Paulo Freire, a educação, entendida e realizada como prática


de liberdade, tem uma perspectiva antropológica, ou seja, uma
orientação clara para o homem, para a pessoa humana. Por isso, afirma
que nós “não podemos esquecer que a libertação dos oprimidos é
libertação de homens e não de ‘coisas’” (FREIRE, 1974, p. 58). Isso
significa que o processo de libertação, que se dá por meio da educação,
não pode ser uma ação de mão única, em que alguém se comporta de
modo ativo (aquele que liberta), enquanto o outro comporta-se de modo
passivo (aquele que é libertado). Pensar que a educação libertadora
possa ser algo semelhante a isso é deixar de perceber que, como afirma
Paulo Freire, “se não é autolibertação – ninguém se liberta sozinho,
também não é libertação de uns feita por outros” (FREIRE, 1974, p. 58).
O processo de uma educação libertadora é, em suma, um processo
de conscientização, por parte dos oprimidos, da sua situação de
opressão. Por isso,

até o momento em que os oprimidos não tomem consciência das razões de


seu estado de opressão "aceitam" fatalistamente a sua exploração. Mais
ainda, provavelmente assumam posições passivas, alheiadas, com relação à
necessidade de sua própria luta pela conquista da liberdade e de sua
afirmação no mundo. Nisto reside sua "conivência" com o regime opressor
(FREIRE, 1974, p. 55).

É por esta razão que a libertação não pode vir apenas como uma
espécie de dádiva externa, que alguém recebe de forma acabada, sem
envolvimento nem participação. Este necessário processo de
conscientização é já uma forma inicial de envolvimento, de
participação, de engajamento, muito embora não signifique, por si só, a
Suzane Tizott • 113

conquista plena da liberdade. Com efeito, alguém pode saber-se


oprimido e conhecer as razões de sua opressão e, nem por isso, estará
livre ou em vias de libertar-se.
O processo de libertação também exige que se descubra com
clareza a face da opressão. Afinal, ninguém consegue combater um
inimigo desconhecido ou invisível. Assim,

somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e se


engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si
mesmos, superando, assim, sua "conivência" com o regime opressor. Se esta
descoberta não pode ser feita em nível puramente intelectual, mas da ação,
o que nos parece fundamental, é que esta não se cinja a mero ativismo, mas
esteja associada a sério empenho de reflexão, para que seja práxis (FREIRE,
1974, p. 56).

Note-se aqui a ênfase que Paulo Freire dá à práxis. No sentido mais


radical (ou seja, na sua raiz), o termo práxis corresponde a uma ação que
é iluminada por uma reflexão. Portanto, poderíamos dizer, trata-se de
um conceito composto: a práxis é ação-refletida. Assim, afasta-se do
puro ativismo (ação sem reflexão) e, também, do puro intelectualismo
(reflexão sem ação). A educação libertadora é, assim, ao mesmo tempo,
uma ação-refletida, uma prática-teorizada, um comportamento-
pensado. Por isso, como afirma Paulo Freire,

se o momento já é o da ação, esta se fará autêntica práxis se o saber dela


resultante se faz objeto da reflexão crítica. [...] A não ser assim, a ação é puro
ativismo. Desta forma, nem um diletante jogo de palavras vazias - quebra-
cabeça intelectual - que, por não ser reflexão verdadeira, não conduz à ação,
nem ação pela ação. Mas ambas, ação e reflexão, como unidade que não deve
ser dicotomizada (FREIRE, 1974, p. 57).
114 • Paulo Freire: múltiplos olhares

Mais ainda: não basta unicamente a reflexão do educador ou da


educadora que se compromete com a libertação dos oprimidos. Os
próprios oprimidos precisam participar deste processo de libertação-
reflexão. Pois, “pretender a libertação deles sem a sua reflexão no ato
desta libertação é transformá-los em objeto que se devesse salvar de um
incêndio. É fazê-los cair no engodo populista e transformá-los em
massa de manobra” (FREIRE, 1974, p. 56-57).
A ideia de “comunidade aprendente”, que é muito cara para a
Pedagogia Vicentina, faz parte de uma concepção libertadora da educação.
De fato, como afirma Paulo Freire, “a razão de ser da educação libertadora
está no seu impulso inicial conciliador. Daí que tal forma de educação
implique na superação da contradição educador-educandos, de tal
maneira que se façam ambos, simultaneamente, educadores e educandos”
(FREIRE, 1974, p. 67). E ainda: “Desta maneira, o educador já não é o que
apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o
educando que, ao ser educado, também educa” (FREIRE, 1974, p. 78).
A comunidade aprendente, em que todos ensinam e todos
aprendem, está em oposição com aquilo que Freire chama de educação
bancária. O “bancarismo” (FREIRE, 1974, p. 70) é uma proposta de
educação (ou, mais propriamente, de des-educação) que nega a vocação
original das pessoas e, portanto, se torna instrumento de dominação.
Com efeito, “se os homens são estes seres da busca e se sua vocação
ontológica é humanizar-se podem, cedo ou tarde, perceber a
contradição em que a "educação bancária” pretende mantê-los e
engajar-se na luta por sua libertação” (FREIRE, 1974, p. 70).
Para Paulo Freire, o fundamento da educação bancária está na
oposição que se instala entre o educador e o educando. Com efeito,
Suzane Tizott • 115

o antagonismo entre as duas concepções, uma, a "bancária", que serve à


dominação; outra, a problematizadora, que serve à libertação, toma corpo
exatamente aí. Enquanto a primeira, necessariamente, mantém a
contradição educador-educandos, a segunda realiza a superação (FREIRE,
1974, p. 78).

Em que consiste, pois, tal contradição? Consiste precisamente no


fato de se admitir que o educador é aquele que sabe, enquanto o
educando é aquele que não sabe. Consiste no fato de considerar que ao
educador cabe o conhecimento, enquanto ao educando resta apenas a
ignorância. É, portanto, uma contradição de base cognitiva. À medida
que esta contradição é compreendida como algo natural, contra o que
nada se pode fazer, abre-se a porta para a dominação de quem sabe (o
educador) sobre quem não sabe (o educando). Da mesma forma, quando
o educador entende que deve (ou foi treinado para) manter tal
contradição, considerando a si mesmo como um ser conhecedor diante
de seres ignorantes, abre-se a possibilidade da dominação de quem
conhece sobre quem não conhece, sobre quem detém o conhecimento
sobre quem detém a ausência de conhecimento.
Porém, a realidade da opressão que se pode instaurar na relação
pedagógica, quando se assume a concepção “bancária”, não é a única
possibilidade. Pode-se pensar a educação a partir de outro prisma. E
mesmo um educador-opressor, mesmo um educador-bancário, pode se
converter, pode mudar de direção. Assim, como afirma Paulo Freire,

No momento em que o educador "bancário" vivesse a superação da


contradição [entre o educador e os educandos] já não seria "bancário". Já
não faria depósitos. Já não tentaria domesticar. Já não prescreveria. Saber
com os educandos, enquanto estes soubessem com ele, seria sua tarefa. Já
116 • Paulo Freire: múltiplos olhares

não estaria a serviço da desumanização. A serviço da opressão, mas a


serviço da libertação (FREIRE, 1974, p. 71).

Para concluir este artigo, podemos refletir sobre a advertência de


Paulo Freire quanto ao tipo de educação que realmente é uma prática de
libertação:

A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a


libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres
"vazios" a quem o mundo "encha" de conteúdos; não pode basear-se numa
consciência espacializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos
homens como "corpos conscientes" e na consciência como consciência
intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da
problematização dos homens em suas relações com o mundo (FREIRE, 1974,
p. 77).

O compromisso de Luísa de Marillac e de Vicente de Paulo com a


educação dos mais pobres corresponde a esta perspectiva libertadora,
embora, naturalmente, eles não pudessem compreender a questão com
as mesmas categorias teóricas que Paulo Freire propõe.

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Suzane Tizott • 117

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5
DA DIALÉTICA OPRESSOR/OPRIMIDO
PARA UM CAMINHO EDUCACIONAL
DE LIBERDADE E HUMANIZAÇÃO
Maurício Eduardo Bernz

INTRODUÇÃO

Em obras e escritos freirianos, acumulam-se reflexões acerca da


crítica de Paulo Freire à educação brasileira de sua época, a qual intitula,
de forma explícita, “educação bancária”. Debruçado com atenção diante
desses escritos, resgatamos o contexto histórico do educador, bem como
a conjuntura educacional brasileira da época, de modo a entender as
raízes da opressão diagnosticada por Freire. Aprofundamos, inclusive,
alguns conceitos-chave de seu pensamento, tais como “opressores-
oprimidos”, “educação bancária” e “educação problematizadora”
Para melhor compreensão da crítica de Paulo Freire à educação
vigente em sua época, bem como sua proposta educacional, abordada
futuramente, torna-nos necessário refletir e entender algumas
perspectivas do contexto brasileiro daquele tempo: político, social e,
consequentemente, educacional.
Nesse período, investigado por Freire, o Brasil se encontrava
diante de uma grande passagem – um trânsito. Muitos afirmariam que
seria uma época de mudança, contudo, segundo o pensador brasileiro,
se tratava de uma mudança de época. Com tantas novidades e
transtornos políticos, o reflexo na educação não seria diferente.
Apresentou-se, para os educadores deste período, uma larga dificuldade
120 • Paulo Freire: múltiplos olhares

em abordar seus temas cotidianos e específicos, uma vez que esta


cultura, inovadora e desafiadora, se instalava gradativamente. Tudo se
esvaziava, na sociedade brasileira, ao longo desta passagem. Freire
(1969, p. 47) comenta: “Todos os temas e todas as tarefas características
de uma sociedade fechada. Sua alienação cultural, de que decorria sua
posição de sociedade reflexa e a que correspondia uma tarefa alienada e
alienante de suas elites”.
O povo brasileiro, inserido neste processo, encontrava-se isolado e
inexistente, distante de qualquer capacidade de decisão. Bastava apenas
corresponder às exigências postas de antemão. Sua função, talvez em
um trocadilho, era não ter função; apenas estar sob, simplesmente
seguir, ser comandado pelas elites que pairavam sobre ele.
Uma vez posta em trânsito 1 e fechada em si mesma, muitos temas
não satisfaziam e muito menos eram lembrados pela sociedade
brasileira, a saber, democracia, participação popular, liberdade, entre
outros. Para Freire, diante desta realidade, a educação se fazia uma
tarefa altamente importante – a sua força e potência estariam na
capacidade de se incorporar ao dinamismo da época do trânsito para
realizar no interior dessa época, uma mudança capaz de tornar o futuro
que começaria no presente, um período de humanização e justiça.
“Dependeria de distinguirmos lucidamente na época do trânsito o que
estivesse nele, mas não fosse dele, do que, estando nele, fosse realmente
dele”. (FREIRE, 1969, p. 48).

1
O momento de trânsito propicia o que vimos chamando, em linguagem figurada, de “pororoca”
histórico-cultural. Contradições cada vez mais fortes entre formas de ser, de visualizar, de comportar-se,
de valorar, do ontem e outras formas de ser de visualizar e de valorar, carregadas de futuro. Na medida
em que se aprofundam as contradições, a “pororoca” se faz mais forte e o clima dela se torna mais e
mais emocional. (FREIRE, 1969, p. 46).
Maurício Eduardo Bernz • 121

Ressaltamos que a dinâmica do trânsito não se fazia de forma


linear, contínua e perfeita. Muitas foram as idas e vindas, os avanços e
recuos, que talvez em vez de contribuir para a razão do ser humano,
confundia-o ainda mais. Avanços sempre se mostram significativos,
enquanto recuos mal interpretados podem trazer fortes desesperanças
e medos. Contudo, vale ressaltar que, mesmo com recuos, a transição
não para sua atividade. Segundo Freire, os recuos não são um trânsito
para trás – podem retardar ou distorcer, mas não o deter.

Os novos temas, ou a nova visão dos velhos, reprimidos nos recuos, insistem
em sua marcha até que, esgotadas as vigências dos velhos temas, alcancem
a sua plenitude e a sociedade então se encontrará em seu ritmo normal de
mudanças, à espera de novo momento de trânsito, em que o homem se
humanize cada vez mais. (FREIRE, 1969, p. 48).

De forma a entender mais precisamente esta época de trânsito,


resgatamos, brevemente, seu ponto de partida. A sociedade se
encontrava fechada 2, predatória, reflexa apenas em sua economia e
cultura – para Freire, distante de qualquer resquício de liberdade 3. Por
isso, totalmente alienada, jamais como sujeito de si mesma. Com altos
índices de analfabetismo e propostas educacionais atrasadas, seguia
regida por uma elite dominadora, ao invés de integrada.

2
Ao mencionar o termo “sociedade fechada”, Freire traz presente a reflexão de Karl Popper em sua obra
“A Sociedade Democrática e seus Inimigos” (2006). Popper diferencia a sociedade aberta e fechada da
seguinte forma: enquanto que na aberta existe espaço para a liberdade crítica e alteração ou
conservação de leis e costumes, na fechada as leis e costumes são vistos como tabus imunes à crítica e
avaliação pelos indivíduos.
3
Cf. FREIRE, 1969, p. 49
122 • Paulo Freire: múltiplos olhares

OPRESSORES E OPRIMIDOS DO RECONHECIMENTO DOS OPRIMIDOS E DO


MEDO DA LIBERDADE

A obra Pedagogia do Oprimido reforça a necessidade constante de


ação. Longe de qualquer passividade, o indivíduo não pode se tornar um
objeto de dominação. “Precisamente porque inscrito, como radical, num
processo de libertação, não pode ficar passivo diante da violência do
dominador” (FREIRE, 2015, p. 35). De forma natural e gradativa o
dominador buscará sempre frear o processo, ou seja, domesticar o tempo
e os homens; enquanto os dominados, iludidos no processo, fazem uma
leitura equivocada da realidade e acabam por deixar-se conduzir.

A consciência do oprimido foi modelada pela concepção de mundo do


opressor. Dessa forma, o oprimido adere aos valores, às ideologias, aos
interesses do opressor, o que não lhe permite ser livre. A consciência do
oprimido abriga a consciência do opressor. (MESQUIDA, 2007, p. 25).

Deste modo, concretiza-se a relação entre os dominadores e


dominados, ou como Freire intitula em sua obra: opressores e oprimidos
– caminho este para desumanização do ser humano. Reconhecendo sua
desumanização, o homem e a mulher encontram-se num vazio,
buscando ao menos entender o sentido de sua vida.

Constatar esta preocupação implica, indiscutivelmente, reconhecer a


desumanização, não apenas como viabilidade ontológica, mas como
realidade histórica. É também, e talvez sobretudo, a partir desta dolorosa
constatação que os homens se perguntam sobre a viabilidade – a de sua
humanização. Ambas, na raiz de sua inconclusão, os inscrevem num
permanente movimento de busca. (FREIRE, 2015, p. 40).

Notamos que esta relação de desumanização se perfaz de forma


natural para aquele que domina. Conforme mencionamos
Maurício Eduardo Bernz • 123

anteriormente, torna-se um processo domesticar os oprimidos como


seus objetos. Nesta falsa generosidade e com tremenda hipocrisia, os
opressores intitulam seus domesticados de “essa gente ou de essa massa
cega e invejosa, ou de selvagens, ou de nativos, ou de subversivos” (Cf.
FREIRE, 2015, p. 59), de modo a tomar tudo que a eles pertencem.

Daí que tendam a transformar tudo o que os cerca em objetos de seu


domínio. A terra, os bens, a produção, a criação dos homens, os homens
mesmos, o tempo em que estão os homens, tudo se reduz a objeto de seu
comando. (FREIRE, 2015, p. 63)

Dessa maneira, sobretudo, instaura-se a violência entre estas duas


camadas sociais e sua maneira peculiar de pensar e agir, a saber, a
violência dos opressores – aquela que desumaniza os oprimidos e a si
mesmos, e a passividade conformista dos oprimidos, “violentados”:

Não haveria oprimidos, se não houvesse uma relação de violência que os


conforma como violentados, numa situação objetiva de opressão.
Inauguram a violência os que oprimem, os que exploram, os que não se
reconhecem nos outros; não os oprimidos, os explorados, os que não são
reconhecidos pelos que os oprimem como outro. (FREIRE, 2015, p. 58).

Sendo assim, na medida em que os opressores determinam a


dominação, de modo a inibir todo o pensar e criar dos oprimidos, estes
acabam por matar a vida. Mostra-se a realidade opressora: “Matar a vida,
freá-la, com a redução dos homens a puras coisas, aliená-los, mistificá-
los, violentá-los são o próprio dos opressores”. (FREIRE, 2015, p. 174).
Uma característica dos oprimidos, que contribui para este processo
de desumanização é a falta de confiança, sua autodesvalia. Falam de si
mesmos e se entendem como aqueles que pouco ou nada sabem. Como
124 • Paulo Freire: múltiplos olhares

abordamos anteriormente, basta apenas saber das decorrências


cotidianas.

De tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem nada, que
não podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em
virtude de tudo isto, terminam por se convencer de sua incapacidade. Falam
de si como os que não sabem e do doutor como o que sabe e a quem devem
escutar. Os critérios de saber que lhe são impostos são os convencionais.
(FREIRE, 2015, p. 69).

Contudo, inseridos nesta distorção da realidade, cedo ou tarde os


oprimidos sentem por sua humanidade perdida. “E aí está a grande
tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos
opressores”. (FREIRE, 2015, p. 41). Segundo o pensamento freiriano, não
cabe aos opressores, também desumanizados, consertar esta relação,
mas sim aos oprimidos, que se tornam a própria condição para gerar a
humanização de ambos.
Aos olhos de Freire, ainda que estes tenham se reconhecido como
oprimidos, desprovidos de toda autonomia e distantes do processo
humanizador, não significa terem abraçado a luta por sua causa. Ao
dizer não para a libertação, optam pela assimilação. “Daí essa quase
aberração: um dos polos da contradição pretendendo não a libertação,
mas a identificação com o seu contrário”. (FREIRE, 2015, p. 44).
Não basta tomar consciência, é preciso conscientização – ação
transformadora – que seja capaz de dar início a esta revolução.

Daí a necessidade que se impõe para superar a situação opressora. Isto


implica o reconhecimento crítico, a razão desta situação, para que, através
de uma ação transformadora que incida sobre ela, se instaure uma outra,
que possibilite aquela busca do ser mais. (FREIRE, 2015, p. 46).
Maurício Eduardo Bernz • 125

Porém, não pode fugir de nosso conhecimento uma realidade tão


nefasta e real, a saber, o medo da liberdade 4. Vale ressaltarmos que, ao
reconhecerem-se como oprimidos, os homens podem criar sentimentos
tanto quanto distantes do projeto de humanização; seja em pretender
se colocarem também como opressores, em um tom de vingança, quanto
acomodarem-se neste status de oprimidos em que não há grandes
exigências. Uma vez alcançada a liberdade, exigiria, dos oprimidos,
tomarem a frente de suas opções, isto é, ser dono de suas escolhas e
autonomia. Freire confirma:

Os oprimidos, que introjetam a sombra dos opressores e seguem suas


pautas, temem a liberdade, na medida em que esta, implicando a expulsão
desta sombra, exigiria deles que preenchessem o vazio deixado pela
expulsão com outro conteúdo – o de sua autonomia. (FREIRE, 2015, p. 46).

Avaliamos desta forma, que os oprimidos, acomodados e imersos


na estrutura dominadora, temem a liberdade, visto que não se sentem
capazes de correr o risco de assumi-la. A generalização não é mais do
que uma reação de medo diante da diferença. Torna-se nítido, frente
aos dominados, um sentimento de autodefesa, expresso claramente na
coletividade.
Nesta perspectiva, esse tipo de homem e mulher ressentidos, se
torna necessariamente dependente, não conseguindo jamais se colocar
como finalidade. Ou seja, sem oportunidades de se colocarem como fim
último, esses homens e essas mulheres, se acomodam na

4
Este medo da liberdade também se instala nos opressores, mas, obviamente, de maneira diferente.
Nos oprimidos, o medo da liberdade é o medo de assumi-la. Nos opressores, é o medo de perder a
liberdade de oprimir. (Cf. FREIRE, 2015, p. 45).
126 • Paulo Freire: múltiplos olhares

desumanização, passando a ser domesticados, quando deveriam ver-se


como referência

SIM À VIDA: CONSTANTE BUSCA DA LIBERDADE

Um grande empecilho para a libertação dos homens e das mulheres


mostrou-se na acomodação e imersão dos oprimidos na estrutura
dominadora, visto que temem sua liberdade e não buscam correr o risco
de assumi-la. Conforme afirmamos anteriormente, não basta tomar
consciência de sua opressão, é preciso superá-la, isto é, libertar-se.
Dessa forma, o verdadeiro sentido desta luta se torna superar a
contradição em que se encontram.
Freire acredita que esta superação se torna a condição do
surgimento do novo homem. “A superação da contradição é o parto que
traz ao mundo este homem novo não mais opressor; não mais oprimido,
mas homem libertando-se”. (FREIRE, 2015, p. 48). Usando das palavras
de Freire, torna-se um “parto” resgatar e usufruir sua liberdade, bem
como salvar os opressores. Mesquida explica esse atuar da pedagogia do
oprimido: “Ela se alicerça na reflexão sobre o homem e a mulher
oprimidos e sobre a situação de opressão na qual se encontram, mas
também, sobre a ação que os anima a sair do estado de escravidão em
que se encontram” (MESQUIDA, 2007, p. 22).
Nesta perspectiva, aquela desesperança instalada nas sociedades
alienadas passa a ser substituída pela esperança 5; quando os homens e
as mulheres começam a ver com os seus próprios olhos o caminho da
liberdade, eles se tornam capazes de projetar. Diante deste tempo e

5
Paulo Freire insiste que precisamos ter esperança do verbo “esperançar” e não do “esperar”. Isso porque
a esperança do verbo “esperar”, para o autor, é somente uma espera, mas esperançar é mais do que isso,
é se levantar e buscar, de fato, a esperança; construí-la e não desanimar ou desistir.
Maurício Eduardo Bernz • 127

espaço, descobrindo-se inacabados, tornam-se capazes de se projetar,


torna-se visível a consciência crítica.

Aí é que a posição anterior de autodesvalia, de inferioridade, característica


da alienação, que amortece o ânimo criador dessas sociedades e as
impulsiona sempre às imitações, começa a ser substituída por uma outra,
de autoconfiança. (FREIRE, 1969, p. 54).

Relatamos anteriormente que ao longo deste processo, estipulado


e mantido pelos opressores, os oprimidos foram sempre rebaixados a
meros objetos, isto é, objetivados como coisas – eis o processo de
desumanização. Todavia, torna-se imprescindível aos explorados,
enquanto homens, tomarem a frente de sua luta. “É precisamente
porque reduzidos a quase coisas, na relação de opressão em que estão,
que se encontram destruídos” (Cf. FREIRE, 2015, p. 76). Ao passo que
buscam a libertação, precisam necessariamente reconhecer-se como
seres humanos, ou seja, é preciso existir – eis sua vocação ontológica e
histórica.

Existir ultrapassa viver porque é mais do que estar no mundo. É estar nele
e com ele. E é essa capacidade ou possibilidade de ligação comunicativa do
existente com o mundo objetivo, contida na própria etimologia da palavra,
que incorpora ao existir o sentido de criticidade que não há no simples
viver. Transcender, discernir, dialogar (comunicar e participar) são
exclusividades do existir. (FREIRE, 1969, p. 40).

Afirmamos que a liberdade é uma conquista, exige uma busca


firme e constante. Para tanto, tal busca só pode ser assumida num ato
de responsabilidade. Ninguém tem liberdade para ser livre, mas luta-se
por ela precisamente porque não a tem. (Cf. FREIRE, 2015, p. 46). Neste
sentido, em sua obra Pedagogia da Autonomia, o pensador brasileiro
128 • Paulo Freire: múltiplos olhares

intensifica a decisão e a responsabilidade como caminhos para


liberdade.

A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a


ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da
autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão
e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade.
(FREIRE, 2016, p. 105).

Não podemos estar no mundo de forma neutra. Parafraseando


Freire (1969, p. 75), “não posso estar no mundo de luvas nas mãos
constatando apenas”. A acomodação torna-se apenas um caminho para
a mudança, que implica decisão e intervenção na realidade. É preciso,
destacamos bem, que se entregue à práxis libertadora, isto é, reflexão e
ação dos homens e das mulheres sobre o mundo para transformá-lo
Em virtude destes fatos, Freire afirma a pedagogia do oprimido –
agora entendida como pedagogia humanista e libertadora – em dois
grandes momentos:

O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão


comprometendo-se, na práxis, com a sua transformação; o segundo, em
que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do
oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente
libertação. (FREIRE, 2015, p. 57).

Quando o educador brasileiro afirma que existir é transcender,


discernir, participar e, sobretudo, pensar sua existência, aposta na
autonomia e liberdade do ser humano; faz delas a base para uma vida
repleta de amadurecimento, uma existência significativa e, sobretudo,
um ser de espírito livre. Só quem diz constantemente sim à vida,
respondendo ao seu incessante chamado, carrega consigo o espírito
livre, isto é, faz uso de sua autonomia.
Maurício Eduardo Bernz • 129

A EDUCAÇÃO LIBERTADORA: O CAMINHO PARA HUMANIZAÇÃO,


EDUCAÇÃO BANCÁRIA E A DESUMANIZAÇÃO DO SER HUMANO

Da mesma maneira que os oprimidos exercem sua alienação diante


dos opressores, os educandos, aos olhos de Freire, reconhecem em sua
ignorância a condição da existência errônea do educador.

O educador, que aliena a ignorância, se mantém em posições fixas,


invariáveis. Será sempre o que sabe, enquanto os educandos serão sempre
os que não sabem. A rigidez destas posições nega a educação e o
conhecimento como processo de busca. (FREIRE, 2015, p. 81).

Ao invés de usar do diálogo, de comunicar-se, o educador resume


sua ação em fazer comunicados e depósitos aos educandos, enquanto os
educandos, meros objetos deste processo, recebem de forma paciente,
memorizam e repetem o recebido. “Eis a concepção bancária da
educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos
é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los” (FREIRE, 2015,
p. 80). Na visão bancária da educação, aquilo que seria o mais precioso
do processo educacional – o saber – transformou-se em uma doação
daqueles que se julgam sábios diante dos que, em sua concepção, nada
sabem.
Anteriormente, afirmávamos que o verdadeiro sentido da luta
entre oprimidos e opressores deveria ser a superação da contradição em
que estes se encontram, de modo a não existir mais nem opressores,
muito menos oprimidos. Distante desta superação, a educação bancária
estimula necessariamente a contradição, Freire relata que nela:

a) o educador é o que educa; os educandos, os que são educados;


b) o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem;
130 • Paulo Freire: múltiplos olhares

c) o educador é o que pensa; os educandos, os pensados;


d) o educador é o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam docilmente;
e) o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados;
f) o educador é o que opta e prescreve sua opção; os educandos, os que seguem
a prescrição;
g) o educador é o que atua; os educandos, os que têm a ilusão de que atuam, na
atuação do educador;
h) o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais ouvidos
nesta escolha, se acomodam a ele;
i) o educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, que
opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes devem adaptar-se às
determinações daquele;
j) o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, meros objetos.
(FREIRE, 2015, 82-83).

Nesta perspectiva, quanto mais se enchem os recipientes com seus


depósitos, melhor educador será; quanto mais autoridade e
determinação dos educadores, tanto mais acomodação e adaptação por
parte de seus educandos. Em contrapartida, quanto mais os educandos
deixam-se encher docilmente, melhores educandos serão perante os
olhos de seus educadores. Segundo Freire, a educação se torna um ato
de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador, o
depositante.

Na medida em que esta visão bancária anula o poder criador dos educandos
ou o minimiza, estimulando sua ingenuidade e não sua criticidade, satisfaz
aos interesses dos opressores: para estes, o fundamental não é o
desnudamento do mundo, a sua transformação. (FREIRE, 2015, p. 83).

O ciclo desta educação, desumanizadora, consiste em preservar a


situação em que os educadores se intitulam, de forma enganosa,
beneficiários do processo educacional, quando na verdade tornam-se
Maurício Eduardo Bernz • 131

também reféns do processo. Não há práxis, não há processo de


libertação – encontram-se todos distantes do pensamento crítico e do
autêntico saber.

No fundo, porém, os grandes arquivados são os homens, nesta equivocada


concepção bancária da educação. Arquivados, porque, fora da práxis, os
homens não podem ser. Educador e educandos se arquivam a medida em
que, nesta distorcida visão da educação, não há criatividade, não há
transformação, não há saber. (FREIRE, 2015, p. 81).

Não há diálogo, não há saber, apenas constantes discursos pré-


estabelecidos e organizados. Neste sentido, o fundamento da educação
torna-se apenas a narração e, consequentemente, este se torna sua
função – narrar, sempre narrar. Há aqueles que se digam donos do
processo, como seu único agente e responsável, como o real sujeito
frente aos seus objetos, cuja tarefa se resume a encher os demais de
conteúdo; enquanto do outro lado, nada importante, os objetos
pacientes, apenas ouvintes, meras peças para que o processo possa ser
realizado, as eternas vasilhas. Eis o processo de desumanização, que
mata continuamente a educação.

Narração de conteúdos que, por isso mesmo, tendem a petrificar-se ou a


fazer-se algo quase morto, sejam valores ou dimensões concretas da
realidade. Narração ou dissertação que implica um sujeito – o narrador – e
objetos pacientes, ouvintes – os educandos. (FREIRE, 2015, p. 79).

Revela-nos, desta forma, a grande característica da educação


bancária, desta educação dissertadora: a sonoridade da palavra. Longe
de qualquer projeto transformador, a força da palavra se desgasta em
mera sonoridade. O educador, sujeito do processo e portador da
narração, apenas conduz os educandos a memorização dos conteúdos
132 • Paulo Freire: múltiplos olhares

por ele narrados. Na condição de vasilhas, isto é, recipientes a serem


cheios, o fazem tudo de forma mecânica e sistemática.
Segundo Freire, nesta concepção de Educação não pode haver
conhecimento, visto que os educandos não são convidados a conhecer,
contudo, apenas memorizar a narração do educador. “Não realizam
nenhum ato cognoscitivo, uma vez que o objeto que deveria ser posto
como incidência de seu ato cognoscente é posse do educador e não
mediatizador da reflexão crítica de ambos. (FREIRE, 2015, p. 96).
Inserido neste processo, o educador se distancia cada vez mais do
caminho crítico, visto que se torna também um memorizador; ao invés
de promover discussões e tomar o papel de um grande desafiador do
processo educacional, transforma-se em um repetidor de frases e ideias
prontas, todas pré-estabelecidas em seu plano. Repete de forma precisa
o que leu, porém raramente produz algo pessoal. Seu discurso promove
a dialética, contudo pensa e expõe tudo de forma mecânica.
Distante de um projeto educacional democrático, o educador cala
seus educandos para nada falar, enquanto perde a oportunidade de
ouvir e aprender.

Para ele, quem escuta sequer tem tempo próprio, pois o tempo de quem
escuta é o seu, o tempo de sua fala. Sua fala, por isso mesmo, se dá num
espaço silenciado e não num espaço com ou sem silêncio. Ao contrário, o
espaço do educador democrático, que aprende a falar escutando, é cortado
pelo silêncio intermitente de quem, falando, cala para escutar a quem,
silencioso, e não silenciado, fala. (FREIRE, 2016, p. 115).

Se o pensamento deste educador e desta educadora se torna a única


e exclusiva opção correta, consequentemente eles jamais poderão
escutar quem pensa ou discute de forma diferente da sua, ou seja, eles
não escutam quem fala ou escreve fora de seus padrões dominantes.
Maurício Eduardo Bernz • 133

Certamente, este seja o processo estipulado e desejado, uma vez que seu
anseio seja pura e simplesmente impor a passividade aos seus
educandos. Na leitura de Freire, quanto mais passivos os educandos
tornarem-se, tanto mais ingênuos se apresentarão; isto é, eles tendem
a adaptar-se ao mundo estabelecido, à realidade nos depósitos que
receberam. Segundo o educador brasileiro (2015, p. 84), os opressores
pretendem justamente transformar a mentalidade dos oprimidos e não
a situação que os oprime, pois quanto mais adaptados e inseridos
estiverem a esta realidade, com mais facilidade os dominarão.
Notamos que o cerne da questão está na maneira como se pensa,
ou seja, pensar autenticamente pode tornar-se perigoso. Para tanto,
prevendo esta possível catástrofe, os opressores usam de vários
artifícios que inibem o pensamento crítico, de modo a instalar nos
educandos a passividade.

Nas aulas verbalistas, nos métodos de avaliação dos conhecimentos, no


chamado controle de leitura, na distância entre o educador e os educandos,
nos critérios de promoção, na indicação bibliográfica, em tudo, há sempre
a conotação digestiva e a proibição ao pensar verdadeiro. (FREIRE, 2015, p.
89).

Os sistemas de avaliação pedagógica de alunos e de professores,


insistindo em se passar por democráticos, tornam-se, nesta época,
meros discursos verticais 6. A educação brasileira, vítima nesse
processo, é regida de cima para baixo; conforme refletimos
anteriormente, educadores e educandos abrem mão do projeto de
criação e transformação.

6
Cf. FREIRE, 2016, p. 113
134 • Paulo Freire: múltiplos olhares

Em sua obra Pedagogia do Oprimido (2015), Freire utiliza a figura do


animal para expressar a falta de compromisso com a transformação
social, ou seja, aquele que se coloca distante do pensamento crítico e
reflexivo. Afirma o educador: “Daí que, como um ser fechado em si, ao
produzir um ninho, uma colmeia, um oco onde viva, não esteja
realmente criando produtos que tivessem sido o resultado de atos-
limites – respostas transformadoras”. (FREIRE, 2015, p. 127). Diante da
educação bancária – diagnosticada por Freire, sobretudo pela narração
e sonoridade – conseguimos avançar nossa reflexão e descobrir no
sistema educacional o processo de massificação daquela época.
Destacamos que o dominador, na sua busca de dominação, não
possui outro caminho senão negar às massas populares a chamada
práxis verdadeira, ou seja, negar a estes o direito de proferir sua
palavra, de pensar certo. Ampliamos, portanto nossa reflexão: se o
educando, em seu processo educacional, concebe seu formador como
sujeito da relação enquanto ele se considera mero objeto, torna-se,
desta forma, mero receptor de conteúdos acumulados daquele que sabe
e transfere. Freire resume tal ação como um ato de conquista:

Todo ato de conquista implica um sujeito que conquista e um objeto


conquistado. O sujeito da conquista determina suas finalidades ao objeto
conquistado, que passa, por isto mesmo, a ser algo possuído pelo
conquistador. Este, por sua vez, imprime sua forma ao conquistado que,
introjetando-o, se faz um ser ambíguo. Um ser, como dissemos já,
hospedeiro do outro. (FREIRE, 2015, p. 186).

Este demonstra ser o método que os opressores utilizam para


permanecer no poder. Conforme as classes populares emergem,
ganham expressão e deixam-se tomar pela esperança, mesmo que
repentina e momentânea, as elites, tomadas pelo susto, porém cientes
Maurício Eduardo Bernz • 135

de seu poder, tendem a silenciar as massas populares, domesticando-as


com soluções de força ou paternalistas, conforme refletido
anteriormente. Para evitar qualquer manifestação das massas
populares, as elites dominadoras utilizam constantemente da
manipulação. Seguindo os escritos freirianos, a regra das elites
apresenta-se bem clara: “Não deixar que as massas pensem, o que vale
dizer: é não pensar com elas. Em todas as épocas os dominadores foram
sempre assim – jamais permitiram às massas que pensassem certo”.
(FREIRE, 2015, p. 177).
Por isso, toda vez que se nega a liberdade ao homem, torna-se ele
um ser ajustado, mero objeto. “E, quando julga que se salva seguindo as
prescrições, afoga-se no anonimato nivelador da massificação, sem
esperança e sem fé, domesticado e acomodado: já não é sujeito. Rebaixa-
se a puro objeto” (FREIRE, 1969, p. 43). Ao abrir mão de seus direitos,
mesmo que das discussões destes o homem e a mulher sacrificam
imediatamente sua força criadora.
Se o pensamento do educador se torna a única e exclusiva opção
correta, consequentemente ele jamais poderá se colocar no processo de
escuta, sua fala se dá em um tempo silenciado 7. O educador bancário se
propõe a não escutar quem fala ou escreve fora de seus padrões
dominantes, seu anseio torna-se pura e simplesmente impor a
passividade aos seus educandos. Aos olhos do pensador brasileiro, tanto
o educador quanto os educandos se arquivam na medida em que não há
criatividade nem saber.

7
Cf. FREIRE, 2016, p. 115
136 • Paulo Freire: múltiplos olhares

EDUCAÇÃO PROBLEMATIZADORA: DA LIBERDADE PARA A HUMANIZAÇÃO

Em contrapartida à educação bancária, Freire propõe um caminho


de libertação, que abarca não somente os educandos, na situação de
oprimidos, mas também os educadores. Ao passo que estes homens e
estas mulheres descobrem sua posição, bem como o sistema que os
coloca em determinado lugar, a saber, de quase coisas – meros objetos
neste processo de desumanização, esperamos que, inseridos nesta
situação-limite 8, instantaneamente estes tomem as devidas atitudes e
reações.

Para alcançar a meta da humanização, que não se consegue sem o


desaparecimento da opressão desumanizante, é imprescindível a superação
das “situações-limite” em que os homens se acham quase coisificados.
(FREIRE, 2015, p. 131).

Freire revela aqui esta dimensão da revolução, que diz da ação


criadora – biófila 9. Faz-se necessário passar por esta situação, talvez
não tão agradável e doce, para alcançar aquilo que se intitula vida: “Não
há vida sem morte, como não há morte sem vida, mas há também uma
morte em vida” (FREIRE, 2015, p. 233). Esta reflexão denuncia aquela
vida que não consegue viver, que constantemente é proibida de respirar,
isto é, que oprimida e desumanizada, abre mão de sua vitalidade. Eis o
apelo de Freire pela revolução, que transpira o poder de criação, que é

8
Tomando para si a reflexão do Professor Álvaro Vieira Pinto, Freire destaca que as “situações-limite”,
distante da dimensão pessimista, não são o conforto infranqueável onde terminam as possibilidades,
mas a margem real onde começam todas as possibilidades; não são a fronteira entre o ser e o nada, mas
a fronteira entre o ser e o ser mais. (Cf. PINTO, 1960, p. 284).
9
Freire traz à reflexão os termos “biófila” e “necrófila”, inspirados na obra de Erich Fromm – O coração
do Homem. A consciência biófila é motivada por sua atração pela vida e alegria; o esforço moral consiste
em fortalecer o aspecto amante da vida em si mesmo, enquanto que a necrófila é ordeira, obsessiva e
pedante. (Cf. FROMM, 1970).
Maurício Eduardo Bernz • 137

capaz de transformação, que busca constantemente o caminho para a


libertação – sua humanização.
Nessa perspectiva, os oprimidos e desumanizados só começam a
desenvolverem-se quando se fazem seres para si, isto é, se colocam
como finalidades. Ao dissertar acerca desta busca por libertação,
Mesquida descreve o caminho de conversão e transformação:

Paulo Freire acredita que a educação, na medida em que ela alcança a


consciência do homem oferecendo-lhe condições de conhecer o mundo
(pelo saber), pode realizar nele a “metanóia”, uma conversão, uma
transformação radical. Esta “metanóia” não é somente uma mudança
interior, mas uma mudança de concepção de mundo que se exterioriza em
forma de uma práxis libertadora. (MESQUIDA, 2007, p. 22).

Se transcendermos esta reflexão para uma esfera maior, no que


consiste a uma sociedade também entendida como ser, concluímos que,
somente quando ela se entender como sociedade para si, ela abrirá
caminho para seu desenvolvimento – sua liberdade.
Partindo destes princípios, aqui refletidos, entendemos a
concepção bancária como processo de uma educação necrófila, ou seja,
que se nutre do amor à morte e não do amor à vida 10. Contudo, Freire
evidencia a vida e, para tanto, propõe outra concepção de educação; uma
educação que privilegia a autonomia e a liberdade. “O antagonismo
entre as duas concepções, uma a bancária, que serve à dominação; outra,
a problematizadora, que serve a libertação, toma corpo exatamente aí”
(FREIRE, 2015, p. 95). Esta educação, intitulada por Freire de
problematizadora, não se basta apenas pelos comunicados e conteúdos
depositados, pelo contrário, respondendo a vocação do homem ela busca

10
Cf. FREIRE, 2015, p. 90
138 • Paulo Freire: múltiplos olhares

problematizar – questionar, refletir, saber – e tem como base a


comunicação.

Na medida em que, servindo à libertação, se funda na criatividade e


estimula a reflexão e ação verdadeiras dos homens sobre a realidade,
responde à sua vocação, como seres que não podem autenticar-se fora da
busca e da transformação criadora. (FREIRE, 2015, p. 101).

Segundo Freire, enquanto a educação bancária se acomoda à


permanência e estabilidade, a educação problematizadora carrega o
espírito da mudança. Freire (2015, p. 102) admoesta: “Não aceitando um
presente bem-comportado, não aceita igualmente um futuro pré-dado,
enraizando-se no presente dinâmico, se faz revolucionária”.
Recordamos a dimensão da revolução, aquela que não aceita nada pré-
estabelecido de antemão, muito menos de forma vertical; torna-se mais
que necessário o pensar crítico e a opção de construir junto, segundo a
realidade pessoal.
Ao mesmo tempo em que aprofundamos na reflexão da educação
problematizadora, refletimos de forma estendida a visão libertadora
inclusa na proposta. Nesta dimensão de liberdade, proposta por Freire,
aquele conteúdo imposto ao povo anteriormente já não faz mais sentido,
visto que aqui o conteúdo nasce dele 11, em diálogo com os educadores,
trazendo sempre seus anseios e suas esperanças.

Deste modo, o educador problematizador re-faz, constantemente, seu ato


cognoscente, na cognoscitividade dos educandos. Estes, em lugar de serem

11
Se as massas populares dominadas, por todas as considerações já feitas, se acham incapazes, num
certo momento histórico, de atender à sua vocação de ser sujeito, será pela problematização de sua
própria opressão, que implica sempre uma forma qualquer de ação, que elas poderão fazê-lo. (Cf. FREIRE,
2015, p. 227).
Maurício Eduardo Bernz • 139

recipientes dóceis de depósitos, são agora investigadores críticos, em


diálogo com o educador, investigador crítico, também. (FREIRE, 2015, p. 97).

Freire destaca que o respeito à autonomia e a dignidade de cada


homem é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não
conceder, conforme nossa vontade. Desta forma, o educador deve
colocar a autonomia do educando em primeiro plano, respeitando sua
dignidade e identidade. Na prática cotidiana, deve buscar a coerência do
ensino com o saber de seu educando.

É preciso insistir: este saber necessário ao professor – de que ensinar não é


transferir conhecimento – não apenas precisa ser apreendido por ele e
pelos educandos nas suas razões de ser – ontológica, política, ética,
epistemológica, pedagógica –, mas também precisa ser constantemente
testemunhado, vivido (FREIRE, 2016, p. 47).

Contudo, vale ressaltarmos que, para Freire, um educador não pode


atrofiar sua autoridade, visando a hipertrofia da liberdade dos
educandos 12. Não se pode entender a liberdade nem como autoritarismo,
muito menos como licenciosidade. Para o pensador, “o autoritarismo é
a ruptura em favor da autoridade contra a liberdade e a licenciosidade,
a ruptura em favor da liberdade contra a autoridade” (FREIRE, 2016, p.
86). Neste caso, as duas vertentes negam a vocação ontológica do ser
humano.

Contra toda e qualquer concepção da prática educativa autoritária


(absolutista) ou relativista (licenciosa), ambas antiéticas por natureza,
Freire opta por uma saída ponderada pautada pela ética do bom-senso: a
moderação da autoridade e a limitação da liberdade. (PEROZA, 2014, p. 242).

12
Cf. FREIRE, 1995, p. 72.
140 • Paulo Freire: múltiplos olhares

Nesta base educacional, onde vigora o respeito e a autonomia de


ambos os interlocutores, o homem deixa de ser objeto da história e
começa a colocar-se como sujeito dela. Em todos os mundos possíveis –
cultural, político, histórico – este homem, agora em processo de
libertação, não precisa mais se adaptar ou acomodar; ele torna-se capaz
de mudança, de transformação e principalmente de criação. Aquela
dependência que preenchia todo seu espaço vai dando lugar para a
autonomia e, neste caminho de coragem e decisão o homem e a mulher
vão resgatando aquilo que lhes é próprio, a saber, sua liberdade e
humanização.
O antes oprimido, agora neste caminho de humanização, descobre
novamente o sabor de ser um ser humano – o sabor de sua liberdade.
Não se coloca mais como criatura pré-comandada, pelo contrário, quer
perfazer seu próprio caminho, distante de qualquer determinismo.

Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que minha passagem pelo
mundo não é predeterminada, preestabelecida. . Que o meu destino não é
dado, mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso
me eximir. Gosto de ser gente porque a história em que me faço com os
outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades, e não de
determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse
sua inexorabilidade. (FREIRE, 2016, p. 52).

Desta forma, a educação problematizadora exige do homem e da


mulher uma resposta perante a vida. O homem e a mulher que visam
sua liberdade, devem assumir-se como seres sociais e históricos, como
seres pensantes, comunicantes, transformadores, criadores. Ao se
reconhecerem como objetos do processo, homens e mulheres tomam a
capacidade de assumirem-se como sujeitos. Afirma Freire (2016, p. 105):
“A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é
Maurício Eduardo Bernz • 141

vir a ser. Não ocorre em data marcada”. São nestes fundamentos que
uma pedagogia que visa a autonomia, ou seja, deve centrar em
experiências de decisão e responsabilidade, em experiências respeitosas
da liberdade.
A vida não está para o ser humano, entretanto, é o ser humano que
está para a vida; homens e mulheres precisam, portanto, colocarem
sentido na sua existência e não ao contrário. O mesmo pensamento deve
permear a sala de aula.

Nada que possa estimular a falta de solidariedade, de companheirismo.


Nada que trabalhe contra a formação de séria disciplina do corpo e da
mente, sem a qual se frustram os esforços por saber. Tudo em favor da
criação de um clima na sala de aula em que ensinar, aprender, estudar são
atos sérios, mas também provocadores de alegria. (FREIRE, 1995, p. 72).

Colocando-se contrário a toda e qualquer padronização imposta, o


educador brasileiro denuncia a educação que se mantém estagnada,
afirmando a educação que diz sim à vida. Segundo Freire (1995, p. 72), “o
ato de ensinar, de aprender, de estudar são fazeres sérios, que não
apenas provocam contentamento, mas que em si já são alegres”. Freire
ressalta que a educação não pode matar a criatividade e a autonomia,
mas deve ser um processo de prática libertadora, imprescindível para a
humanização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na visão bancária da educação, aquilo que seria o mais precioso do


processo educacional, transformou-se em uma doação daqueles que se
julgam sábios diante dos que, em sua concepção, nada sabem. Neste
sentido, não há práxis, não há processo de libertação – encontram-se
142 • Paulo Freire: múltiplos olhares

todos distante do pensamento crítico e do autêntico saber. De um lado


encontram-se aqueles que se dizem donos do processo, como o real
sujeito frente aos seus objetos, cuja tarefa se resume a encher os demais
de conteúdo; enquanto do outro lado, nada importante, os objetos
pacientes, apenas ouvintes, meras peças do processo, as eternas
vasilhas.
Ao mencionarmos o processo de opressão, naturalmente
recordamos os dois papeis centrais, a saber, os opressores e os
oprimidos. “Não haveria oprimidos, se não houvesse uma relação de
violência que os conforma como violentados, numa situação objetiva de
opressão”. (FREIRE, 2015, p. 58).
Contudo, embora os dominados e oprimidos recebam
constantemente golpes de violência (moral e existencial), ressaltamos
seu ponto fraco – o medo da liberdade. O caminho para liberdade
apresenta-se demasiado exigente, nesta perspectiva, esse tipo de ser
humano ressentido, se torna necessariamente homem e mulher
dependentes, não conseguindo jamais se colocarem como finalidade.
Sem oportunidades de se colocarem como sujeitos no processo,
acomodam-se no caminho da desumanização.
Dentro da perspectiva freiriana, não basta ao homem e à mulher
descobrirem-se oprimidos e desumanizados, isto viria apenas de uma
tomada de consciência, e tomar consciência ainda se encontra longe de
uma práxis libertadora. É preciso conscientização, é preciso que os
homens e as mulheres tomem parte daquilo que lhes pertence.
Diante deste constante processo de humanização, aquela
dependência que preenchia todo seu ser vai dando lugar para a
autonomia e, neste caminho de coragem e decisão o ser humano vai
Maurício Eduardo Bernz • 143

resgatando aquilo que lhe é próprio, a saber, sua liberdade. Nestes


parâmetros, a educação exige dos homens e das mulheres uma resposta
perante a vida. Homens e mulheres que visam sua liberdade devem
assumir-se como seres sociais e históricos, como seres pensantes,
comunicantes, transformadores, criadores.
Freire evidencia a vida e, para tanto, propõe outra concepção de
educação; uma educação que privilegia a autonomia e liberdade – a
educação problematizadora. Porém, essa educação exige diretamente
uma interpretação e mudança, tanto dos educadores, quanto dos
educandos. É preciso diálogo para a investigação; a educação passa a ser
crítica, transformadora e criadora. O homem e a mulher deixam de ser
objetos da história e começam a colocar-se como sujeitos. Em todos os
mundos possíveis – cultural, político, histórico – este homem e esta
mulher, agora em processo de libertação, não precisam mais se adaptar
ou acomodar; tornam-se capazes de mudança, de transformação e
principalmente de criação.
Para Freire, o ato de ensinar, de aprender e de conhecer se
apresenta como caminho árduo, porém prazeroso. Os estabelecimentos
de ensino não podem restringir a educação à pura descrição de
conceitos, ou aos conteúdos memorizados mecanicamente pelos alunos.
Freire (1995, p. 76) indaga: “É curiosa a preocupação com a memorização
mecânica de conteúdos, o uso de exercícios repetitivos que ultrapassam
o limite razoável enquanto fica de lado uma educação crítica da
curiosidade”. Educadores e educandos precisam descobrir e sentir a
alegria de se buscar o conhecimento, a curiosidade de aprender.
Desta forma, o processo educacional não é apenas uma atividade
humana entre outras, mas uma dimensão presente em qualquer
144 • Paulo Freire: múltiplos olhares

atividade do homem na sociedade, ou seja, a educação não se limita ao


sistema formal de educação, mas se perfaz cotidianamente na busca
pessoal pela humanização. A teoria freireana fundamenta-se em uma
educação inspirada na relação do homem no mundo, isto é, estar no
mundo e na construção de seu ser no mundo com os outros.
Uma vez que escrevemos aquilo que vivemos, continuamos com a
sensação de que muitas questões do âmbito educacional podem ser
problematizadas, sobretudo no que se refere à educação brasileira.
Diante da indagação: “O Brasil tem jeito?”, Freire afirmou: “Respondo
que sim. Só tem jeito na medida em que nos determinarmos a forjá-lo.
Nenhum jeito aparece por acaso” (FREIRE, 1995, p. 39).
Que possamos continuamente aprofundar nossos estudos nas
reflexões freirianas, buscando soluções para o grito dos oprimidos
(desumanizados). Aos passos de Paulo Freire, ressaltamos o verbo
“esperançar”, principalmente quando direcionado à educação que
prioriza a autonomia e liberdade de nossos homens e mulheres, visando
constantemente sua humanização.

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1969.

FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. 2ª ed. São Paulo: Olho d’água: 1995.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 59ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 53ª


ed. São Paulo: Paz e Terra, 2016.

FROMM, Erich. O coração do Homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.


Maurício Eduardo Bernz • 145

GADOTTI, Moacir (Org.); FREIRE, Ana Maria Araújo; CISESKI, Ângela Antunes; TORRES,
Carlos Alberto; et al. PAULO FREIRE – Uma bibliografia. São Paulo: Editora Cortez,
1996.

MESQUIDA, Peri. A Paidéia freireana: a utopia da formação como prática da liberdade.


In: BEHRENS, Marilda Aparecida; ENS, Romilda Teodora; VOSGERAU, Dilmeire
Sant’Anna Ramos (Orgs.). Discutindo a educação na dimensão da práxis. Curitiba:
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PEROZA, Juliano. Provocações antecipatórias ou a esperança como inédito viável: a


contribuição do pensamento utópico de Paulo Freire para a formação de
professores. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em Educação,
Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Curitiba, 2014.

PINTO, Alvaro Vieira. Consciência e realidade nacional. Rio de Janeiro: ISEB, 1960.

POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Belo Horizonte: Editora Itatiaia,
2006.
MINI CURRÍCULOS

Maurício Eduardo Bernz


Doutorando e Mestre em Educação (Pontifícia Universidade Católica do Paraná),
graduado em Filosofia e Pedagogia. Possui conhecimento e experiência nas áreas da
Educação, Pedagogia, Filosofia e Gestão educacional. Atualmente Consultor Pedagógico
do Bernoulli Sistema de Ensino.

Suzane Tizott
Filha de Caridade. Graduada em Pedagogia (Pontifícia Universidade Católica do Paraná),
Mestre em Educação (Pontifícia Universidade Católica do Paraná), Articuladora
Institucional da Comissão de Educação da Província de Curitiba, Diretora da Escola
Vicentina Nossa Senhora das Mercês.

Karin Eliana Nicolau dos Santos Lacerda


Mestre em Educação pela PUCPR, com aprofundamento em Educação Infantil na
abordagem de Reggio Emilia pela UNICAMP, pós-graduada nos cursos de Gestão de
Processos Pastorais, Gestão Estratégica de Educação Básica e Gestão Executiva
Educacional pela PUCPR. Graduada em Pedagogia pela UTP, possui experiência na
educação e atua no Grupo Marista, na Diretoria Executiva de Educação Básica na
coordenação geral do segmento da Educação Infantil das escolas do Brasil Marista, Diretor
Geral do Marista Escola Social Ecológica, localizada em Almirante Tamandaré, no Paraná.

Luci Frare Kira


Graduada em Pedagogia - Especialização em Psicopedagogia - UEM Maringá, Mestre em
Educação pela UNIMEP, Doutora em Educação pela PUCPR na linha História e Políticas
da Educação. Atuou na Escola de Educação e Humanidades da Pucpr, campus Maringá.
Tem experiência na docência de filosofia, educação e sociologia. Especialista no
pensamento filosófico, pedagógico e sociopolítico de Paulo Freire. Pesquisa história da
educação, políticas educacionais, formação de professores e Paulo Freire.
148 • Paulo Freire: múltiplos olhares

Rafaela Bortolin Pinheiro


Garduada em Comunicação Social com habilitação em jornalismo, mestra e doutora em
Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professora de cursos de
graduação no Centro Universitário Católica de Santa Catarina (Católica SC).

Peri Mesquida
Doutor em Ciências da Educação. Pós-doutor em epistemologia dos métodos de pesquisa
em Educação. Professor titular da Pucpr. Professor convidado das Universidades de
Genebra e Fribourg, na Suíça e colaborador da Université Catholique de l’Ouest - Angers,
França.
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