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ROTINAS DE PENSAMENTO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES


DIRETORES DA SÉRIE
Prof. Dr. Ana Paula Leivar Brancaleoni
(Unesp/FCAV) Prof. Dr. Ricardo Scucuglia
(Unesp/IBILCE)
Prof. Dr. Humberto Perinelli Neto
(Unesp/IBILCE) Prof. Dr. Harryson Júnio Lessa Gonçalves
(Unesp/ FEIS)
Prof. Dr. Jackson Gois
(Unesp/IBILCE)

COMITÊ EDITORIAL CIENTÍFICO


Prof. Dr. Adriano Vargas Freitas Profa. Dra. Ilane Ferreira Cavalcante
Universidade Federal Fluminense (UFF) Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN)

Prof. Dr. Alejandro Pimienta Betancur Prof. Dr. João Ricardo Viola dos Santos
Universidad de Antioquia (Colômbia) Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)

Alexandre Maia do Bomfim Prof. Dr. José Eustáquio Romão


Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) Universidade Nove de Julho e Instituto Paulo Freire (Uninove e IPF)

Prof. Dr. Alexandre Pacheco Prof. Dr. José Messildo Viana Nunes
Universidade Federal de Rondônia(UNIR) Universidade Federal do Pará (UFPA)

Prof. Dr. José Sávio Bicho de Oliveira


Profa. Dra. Ana Cláudia Ribeiro de Souza
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA)
Instituto Federal do Amazonas (IFAM)
Prof. Dr. Klinger Teodoro Ciriaco
Prof.ª Dr.ª Ana Clédina Rodrigues Gomes Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR)
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA)
Prof.ª Dr.ª Lucélia Tavares Guimarães
Prof.ª Dr.ª Ana Lúcia Braz Dias Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)
Central Michigan University (CMU/EUA)
Prof. Dr. Marcelo de Carvalho Borba
Prof.ª Dr.ª Ana Maria de Andrade Caldeira Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
Prof.ª Dr.ª Márcia Regina da Silva
Prof. Dr. Antonio Vicente Marafioti Garnica Universidade de São Paulo (USP)
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
Prof.ª Dr.ª Maria Altina Silva Ramos
Prof. Dr. Armando Traldi Júnior Universidade do Minho, Portugal
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP)
Prof.ª Dr.ª Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida
Prof. Dr. Daniel Fernando Johnson Mardones Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)
Universidad de Chile (UChile) Prof.ª Dr.ª Olga Maria Pombo Martins
Universidade de Lisboa (Portugal)
Prof.ª Dr.ª Deise Aparecida Peralta
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) Prof. Dr. Paulo Gabriel Franco dos Santos
Universidade de Brasília (UnB)
Prof. Dr. Eder Pires de Camargo
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) Prof. Dr. Ricardo Cantoral
Centro de Investigação e Estudos Avanços do Instituto Politécnico
Prof. Dr. Elenilton Vieira Godoy Nacional (Cinvestav, México)
Universidade Federal do Paraná (UFPR)
Prof. Dr. Rodrigo Ribeiro Paziani
Prof. Dr. Elison Paim Universidade do Oeste do Paraná (UNIOESTE)
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Prof. Dr. Sidinei Cruz Sobrinho
Prof. Dr. Fernando Seffner Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) grandense (IFSUL/Passo Fundo)

Prof. Dr. Vlademir Marim


Prof. Dr. George Gadanidis
Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
Western University, Canadá
Prof. Dr. Wagner Barbosa de Lima Palanch
Prof. Dr. Gilson Bispo de Jesus Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL)
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
ROTINAS DE PENSAMENTO NA
FORMAÇÃO DE PROFESSORES

RELATOS DE EXPERIÊNCIA

Organizadora
Débora Mariz
Diagramação: Marcelo Alves
Capa: Gabrielle do Carmo

A Editora Fi segue orientação da política de


distribuição e compartilhamento da Creative Commons
Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

M343 Rotinas de pensamento na formação de professores: relatos de


experiência [recurso eletrônico] / Débora Mariz (org.). –
Cachoeirinha : Fi, 2024.

148p.

ISBN 978-65-85725-94-1

DOI 10.22350/9786585725941

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Educação – Formação de professores – Relato de experiência.


I. Mariz, Débora.

CDU 37.01:1/.09-057.8

Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto – CRB 10/1023


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 7
Débora Mariz

1 15
PENSANDO SOBRE MÚSICA: UMA EXPERIÊNCIA DE ROTINA DO PENSAMENTO NO
PANORAMA DA MÚSICA DE CONCERTO
Júlia Campolina Araújo

2 33
O ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO ATRAVÉS DE OBRAS DE ARTE: UM
RELATO DE EXPERIÊNCIA COM UMA “ROTINA DE PENSAMENTO” SOBRE
INFERÊNCIAS
Débora Saraiva Dalmaso

3 49
EXPLORANDO O LIVRO-IMAGEM SOB O PRISMA DAS ROTINAS DE PENSAMENTO
Julia Maria Xavier Leite
Sarah Carvalho Saturno Miranda

4 67
RELATO DE UMA AULA DE BIOÉTICA A RESPEITO DA INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA
GRAVIDEZ COM ROTINA DE PENSAMENTO
Daniel Melo Soares

5 81
ARTE E PENSAMENTO NA ESCOLA PÚBLICA: UMA EXPERIÊNCIA DE APLICAÇÃO DE
“ROTINA DE PENSAMENTO” DO PROJECT ZERO EM ESCOLA PÚBLICA DE ENSINO
MÉDIO DE BELO HORIZONTE
Luciana Telles Machado Da Silva

6 95
MASSINHA, PAPEL E TESOURA: DESENVOLVENDO HABILIDADES COM A
CONSTRUÇÃO DE MAQUETES
Tawan Luis da Silva
Viviane de Oliveira Costa Gomes
Vinícius Minelli Moreira
Fábio Silva Prates
Bárbara Ramos Azalim
Reinaldo de Freitas
7 115
ESTRATÉGIAS DE ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO: UM ESTUDO
COMPARATIVO
Lucca Moreira de Carvalho Gonzaga

8 129
ROTINAS DE PENSAMENTO: ARTE E PENSAMENTO CRÍTICO
Maria Eduarda Ferreira Ezequiel
Poliana Leles de Oliveira
Renata Guerreiro Freire

SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES 145


INTRODUÇÃO
1
Débora Mariz

Enquanto seres humanos temos a capacidade de pensar, contudo,


esta capacidade não se desenvolve sem estímulo, ao contrário,
precisamos aprender a “pensar bem” e isso requer aprendizagem. Nesse
sentido, é preciso educar para a excelência do pensar, o que implica no
desenvolvimento de ferramentas intelectuais para questionar, analisar
e criticar os discursos através do raciocínio lógico-argumentativo.
A excelência do pensar envolve vários aspectos do cotidiano, como
ser curioso e questionador, tomar decisões após reflexão cuidadosa,
perceber atentamente as próprias crenças e em que medida elas
interferem nas escolhas e julgamentos, ser meticuloso e tenaz nas
investigações, observar sob diferentes perspectivas um mesmo
fenômeno e desenvolver a empatia, a escuta e o diálogo com os outros.
Essa prática demanda a compreensão dos elementos que
estruturam a argumentação e o seu exercício em diferentes contextos,
incluindo o diálogo em sala de aula. Dentre eles estão os aspectos lógicos
do discurso, como a possibilidade de fazer inferências, emitir razões
convincentes, descobrir pressupostos e suposições, classificar, dar

1
Professora Adjunta de Ensino de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Docente
Orientadora do Núcleo Filosofia do Programa Residência Pedagógica (Edital CAPES n° 24/2022) da
UFMG. Graduada em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FA-JE), Graduada em
Terapia Ocupacional, Especialista em Temas Filosóficos, Mestre e Doutora em Filosofia pela UFMG,
deboramariz@gmail.com
8• Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

explicações, relacionar causa e efeito, definir, descrever, interpretar e


estabelecer critérios.
Considerando o filosofar como uma das faces da busca pelos
fundamentos do conhecimento e da existência humana, investigamos
metodologias de ensino que pudessem estimular a excelência do pensar
no contexto escolar. E, nessa busca, encontramos na interface entre arte
e educação uma proposta metodológica capaz de potencializar a
aprendizagem e a livre expressão dos estudantes aliado às temáticas
próprias aos componentes curriculares da educação básica.
As experiências foram tão potentes que gostaríamos de comunicá-
las a outras pessoas; daí nasceu a proposta desse livro!
Através das “Rotinas de Pensamento”, uma metodologia
desenvolvida por um grupo de pesquisadores da Faculdade de Educação
da Universidade de Harvard, o Projeto Zero, oferecemos no 1° semestre
de 2023 uma disciplina optativa intitulada “O Pensamento Crítico
Através da Arte”. Participaram da disciplina 20 (vinte) licenciandos de
diversos cursos da UFMG: Música, Educação Física, Pedagogia, Física e
Biologia. Propusemos, então, a criação e aplicação de, pelo menos, uma
rotina em contextos escolares e/ou não escolares. Nesse mesmo ano
propusemos também aos estudantes do Programa Residência
Pedagógica em Filosofia da CAPES/ UFMG, a elaboração e aplicação das
rotinas de pensamento com obras de arte no contexto do ensino de
filosofia. E, por fim, convidamos os licenciandos matriculados na
disciplina “Prática de Ensino de Filosofia” no 2° semestre de 2023 a
realizarem uma rotina de pensamento em espaços formais ou não-
formais de educação.
Débora Mariz •9

Os relatos que se seguem são frutos dessas práticas e representam


tanto a unidade entre pesquisa e prática na formação docente, desde a
graduação, quanto múltiplas possibilidades de apropriação de obras de
arte em sala de aula.

ROTINAS DE PENSAMENTO

As rotinas de pensamento são ferramentas pedagógicas utilizadas


para facilitar a prática do pensamento crítico. Elas possibilitam ao
professor desenvolver junto aos estudantes estratégias de ensino não
tradicionais, através da aplicação de passos simples a serem realizados
em sala de aula. Além disso, as rotinas podem ser usadas em diversos
contextos e componentes curriculares, em atividades individuais ou em
grupo.
Desenvolvidas pelo Projeto Zero, um centro de experimentação e
inovação pedagógica de caráter interdisciplinar fundado há mais de
cinquenta anos na Universidade de Harvard, as rotinas de pensamento
fundamentam-se, principalmente, em duas pesquisas: uma delas
intitulada Artful Thinking, desenvolvida por Shari Tishman (1999, 2006,
2018) e a outra intitulada Making Thinking Visible coordenada por Ron
Ritchhart (2011).
Essas pesquisas se propuseram a estudar a metacognição, isto é, de
que modo pensamos o nosso próprio pensamento e, a partir desse
estudo, desenvolver metodologias de ensino que pudessem ser aplicadas
em sala de aula a fim de incentivar a visualidade do pensamento de
professores e estudantes, facilitando a compreensão e o
desenvolvimento das disposições de pensamento no contexto
educacional.
10 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

Para tanto, foram desenvolvidas rotinas de pensamento utilizando


obras de arte visuais e musicais, considerando-se seis categorias do
pensar, a saber: 1. Observar e descrever; 2. Comparar e conectar; 3.
Questionar e investigar; 4. Raciocinar com evidências; 5. Explorar
diferentes pontos de vista e; 6. Descobrir complexidades 2. As rotinas
seguem níveis distintos de complexidade considerando essas seis
categorias.
Como prática inicial propusemos a aplicação da rotina
“Ver/Pensar/Perguntar”, pela simplicidade na aplicação e por trabalhar
elementos essenciais no desenvolvimento das disposições de
pensamento. Elas estimulam a capacidade de observar e descrer a partir
da observação atenta, vagarosa e silenciosa de uma obra de arte e é
composta por três momentos:

ROTINA DE PENSAMENTO “VER, PENSAR, PERGUNTAR”

1° Momento: VER - O que você vê?


Apresentar aos estudantes a imagem de uma obra de arte impressa
em papel A3, convidando-os a contemplá-la, em silêncio, direcionando
o olhar para todas as partes da obra. Em seguida, pedir que escrevam
cinco coisas que eles viram no quadro, como cores, formas, figuras. Após
a escrita, as percepções de cada estudante serão compartilhadas em
grupo e eles também serão convidados a identificar na imagem
impressa aquilo que observaram.

2° Momento: PENSAR: O que está acontecendo nessa obra?

2
Essas rotinas estão disponíveis para download no site do Project Zero. Também estão disponíveis
traduções para o português de algumas rotinas no site Opcevê e no e-book elaborado pela Ativa
Educação.
Débora Mariz • 11

Em seguida, os estudantes serão provocados com a pergunta: “o


que está acontecendo nesta obra?” e deverão partilhar suas
perspectivas.

3° Momento - PERGUNTAR: Que perguntas você gostaria de saber sobre


isto? O que você quer saber?
Para finalizar estimulamos os estudantes a questionar a obra de
arte, fazendo as perguntas que desejarem. Podemos utilizar outras
questões como: “se a/o artista estivesse aqui na sala, o que vocês
perguntariam para ele/a?”, “qual título vocês dariam para esta obra?”

Em seguida foram desenvolvidas outras rotinas visando o


desenvolvimento do raciocínio com evidência, bem como a exploração
de diferentes perspectivas. Além das rotinas propostas pelo Projeto Zero
e traduzidas para o português, alguns estudantes criaram rotinas
próprias.
O termo “rotina” remete aos padrões pelos quais operamos e
aprendemos a trabalhar em contextos educacionais. Podemos pensar as
rotinas como qualquer procedimento, processo ou padrão de ação usado
repetidamente para gerenciar e facilitar a realização de metas ou
tarefas específicas. Esses padrões também auxiliam no gerenciamento
do comportamento e das interações entre os estudantes, estabelecendo
regras de comunicação e ordenando o processo de aprendizagem. Elas
podem ser simples, como ler um texto e responder às perguntas ao final
do capítulo, ou podem ser elaboradas para promover o pensamento dos
alunos, como perguntar o que eles sabem, o que eles querem saber e o
12 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

que eles aprenderam como parte de uma unidade de estudo (Tishman;


Palmer, 2006, p.14).
O que torna as rotinas de pensamento verdadeiramente “rotinas”
é sua aplicação repetidas vezes em sala de aula, tornando-se parte da
cultura escolar. Assim elas se tornam um modo habitual pelo qual os
alunos realizam o processo de aprendizagem. Estes passos são
importantes para o estudante desenvolver o hábito da autorreflexão,
dando razões às suas afirmações, bem como desenvolvendo o
pensamento cuidadoso, meticuloso e a coragem intelectual.
Vale ressaltar que o tempo para aplicação das rotinas variam de
acordo com a proposta. Usualmente, no trabalho com crianças as
rotinas não ultrapassam trinta minutos, com adolescentes esse tempo
poderá se estender para até sessenta minutos.

OBRAS DE ARTE

Por que utilizar obras de arte?


Porque elas nos convidam a pensar e permitirem múltiplas
significações. As obras de arte são metafóricas e expressam tanto as
intenções dos artistas quanto diversos significados e propósitos. Além
disso, as obras de arte são feitas com o propósito de atrair nossa
atenção. Os artistas geralmente querem que olhemos, ponderemos e
exploremos. Há uma profunda conexão entre olhar para a arte e
aprender a pensar: a arte convida a aprofundar o pensamento (Tishman;
Palmer, 2006, p. 11).
Além disso, é possível associar os trabalhos de arte com o currículo
criando significados multifacetados a depender de cada tema a ser
abordado. Nesse sentido, a Arte poderá articular-se aos conteúdos de
Débora Mariz • 13

Matemática, História, Filosofia, Geografia, Biologia entre outros


componentes curriculares. Pode-se levantar questões introdutórias
acerca de um tema, evocar a criação de conexões e, de várias maneiras,
transformar a forma da investigação efetuando-a de modo pessoal.
Qual obra de arte devo escolher?
Considerando que os professores de diversas áreas do
conhecimento possuem, usualmente, pouco conhecimento acerca da
história da arte é comum a pergunta: como e qual obra de arte devo
escolher para trabalhar com os estudantes?
Enfatizamos que não é preciso ser um conhecedor de arte, nem ter
formação específica nesta área para aplicar as rotinas de pensamento.
Isso porque à medida em que elas são aplicadas, os professores vão
integrando e ampliando seus conhecimentos com aqueles evocados
pelas obras de arte.
A seleção das obras pode ser feita a partir das ilustrações contidas
nos livros didáticos da disciplina que são, muitas vezes, ignoradas
durante o semestre letivo. Outra possibilidade são os recursos didáticos
disponibilizados pelos educativos dos museus, incluindo catálogos das
exposições. Além disso, o professor pode recorrer a coleções impressas
de história da arte disponíveis em bibliotecas. Além disso, o site
O´pcevê! disponibiliza curadorias de obras de arte visuais e sugestões
de rotinas de pensamento fomentando a prática docente a partir de
temáticas diversas 3.
Se o professor tem conhecimento da língua inglesa poderá utilizar
os materiais desenvolvidos pela Galeria Nacional de Arte de Washington

3
Disponível em: http://opceve.art.br/
14 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

e disponibilizados gratuitamente no site dessa instituição 4. Também


poderá recorrer ao material disponibilizado no curso on-line Teaching
Critical Thinking Through Art, desenvolvido pela Smithsonian
Institution 5.
Esperamos através desses relatos contribuir com práticas de
ensino que promovam a excelência do pensar!

4
Disponível em: https://www.nga.gov/learn/learningresources.html
5
Disponível em: https://www.edx.org/learn/critical-thinking-skills/the-smithsonian-institution-
teaching-critical-thinking-through-art-with-the-national-gallery-of-art
1
PENSANDO SOBRE MÚSICA: UMA EXPERIÊNCIA DE
ROTINA DO PENSAMENTO NO PANORAMA DA
MÚSICA DE CONCERTO
Júlia Campolina Araújo 1

A experiência que proponho relatar neste capítulo decorre da


união dos estudos acerca do pensar sobre o pensamento com as
peculiaridades da escuta musical, em uma conversa entre a Faculdade
de Educação e a Escola de Música da UFMG. A partir das temáticas em
torno da construção de uma cultura do pensamento em sala de aula
elaborada por autores e autoras da Harvard Graduate School of Education,
foi proposta uma Rotina do Pensamento sobre uma obra musical num
contexto escolar de Educação Musical, neste caso do ensino superior.
Aqui, além de relatar essa intervenção da disciplina Desenvolvimento
do Pensamento Crítico Através da Arte sobre o Panorama da Música de
Concerto, proponho reflexões sobre as virtudes intelectuais, a escuta
criativa e suas relações.
As Rotinas do Pensamento são conjuntos de perguntas
estruturadas acerca de um material sobre o qual se quer pensar, o que
pode ser um conteúdo de Biologia, uma escultura grega ou um quadro
modernista. Propostas pelo Project Zero da Harvard Graduate School of
Education, as rotinas preocupam-se justamente com isso, a organização

1
Graduanda do Curso de Música - Licenciatura da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG,
juliacaraujo2@gmail.com
16 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

sistemática e contínua de uma pedagogia que tem como finalidade a


construção de uma cultura do pensar nas salas de aula.
Considerando que em todo espaço coletivo os sujeitos organizam-
se e compartilham de hábitos e valores comuns é interessante
pensarmos que toda sala de aula possui uma cultura própria.
Naturalmente,

nem todas as salas de aula têm a mesma atmosfera cultural: algumas são
rígidas, outras abertas; algumas valorizam respostas, outras valorizam
perguntas. Mas todas as salas de aula têm alguma forma de cultura. Entre
outras coisas, é este sentido cultural da educação que faz da experiência da
escolaridade algo muito maior que a soma de suas partes (Tishman, Perkins,
Jay, 1999, p. 13).

Tishman, Perkins e Jay (1999) elaboram que, para construir um


espaço escolar que estimule o pensamento e forme alunos
virtuosamente pensantes é preciso ensinar a pensar, ou melhor, ensinar
as habilidades que compõem as virtudes intelectuais. Segundo Baehr
(2015) “virtudes intelectuais são traços de caráter de um bom pensador
ou aprendiz”, o que não depende apenas de possuir habilidades
referentes ao pensamento, mas também diz respeito a uma motivação
própria, uma disposição para pensar. Sobre isso e considerando o
contexto deste trabalho, quais virtudes intelectuais seriam
interessantes para uma sala de aula inserida em uma faculdade de
Música?
Composta por instrumentistas, cantores e futuros professores, a
sala de aula sobre a qual este trabalho relata reunia-se às sextas de
manhã para aprender sobre a história da música de concerto ocidental
na disciplina obrigatória Panorama da Música de Concerto. As virtudes
intelectuais necessárias para a formação de artistas e professores-
Júlia Campolina Araújo • 17

artistas são desenvolvidas em que tipo de cultura de sala de aula? As


possibilidades são inúmeras, mas para esta turma sob a orientação do
Prof. Dr. André Cavazotti, a criatividade era central para compreender
a Música e uma parte de sua história.
Portanto, a experiência da escuta em um ambiente criativo
alinhada às Rotinas do Pensamento se mostrou uma forma potente de
pensar sobre a música, se apropriar dela e traduzir pensamentos
abstratos em palavras para a troca coletiva de ideias. Este trabalho se
debruça sobre essa potência observada nesta sala de aula do Ensino
Superior em Música sobre uma obra de Beethoven, o que resultou em
comentários e discussões profundas dos estudantes sobre as imagens,
impressões e sensações criadas a partir desse estímulo musical.

METODOLOGIA

A Rotina de Pensamento sobre a qual este trabalho propõe


descrever ocorreu no dia 12 de maio de 2023 na disciplina Panorama da
Música de Concerto na Escola de Música da UFMG, sob orientação do
Prof. Dr. André Cavazotti. Como monitora da área de Música e Cultura,
acompanhei esta disciplina em 2020, 2021 e 2023, sendo que neste último
ano tive oportunidades de propor algumas intervenções nas aulas como
práticas de iniciação à docência.
O Panorama da Música de Concerto é uma disciplina obrigatória
comum a vários cursos da Escola de Música que aborda a história da
música de concerto no ocidente, caracterizando os períodos históricos
da Arte. As turmas contam com estudantes de cursos do Bacharelado,
Licenciatura, Musicoterapia e Música Popular e, de forma geral,
comportam em torno de 40 a 50 alunos.
18 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

Como todo conteúdo, existem diversas formas de abordagem e


foco, cabendo ao professor a escolha do que ele ou ela considera
relevante propor aos estudantes em sala de aula. No que tange ao
conteúdo particularmente histórico que, neste caso, engloba dez séculos
da Música europeia de concerto, é necessário que o professor selecione
repertórios, fatos históricos relevantes, exemplos de outras
representações artísticas além da música, certos compositores e,
sobretudo, uma perspectiva.
A perspectiva escolhida pelo Prof. Dr. André Cavazotti sobre a
música ocidental de concerto acontece em torno da expressão artística
dos amores humanos e divinos: eros, ágape e cáritas 2. Conforme a
ementa da disciplina Panorama da Música de Concerto:

Ementa e conteúdo programático: Estudo da expressão dos amores (eros,


ágape e cáritas) como representações do drama humano ao longo da
história da música ocidental, dos séculos X ao XX. Por meio de escutas
comentadas de obras musicais selecionadas, e espelhando um esquema
teatral, a disciplina será estruturada em seis “atos”: música medieval,
música renascentista, música barroca, música clássica, música romântica e
música moderna. Cada “ato” será inspirado em temas caros à produção
musical de cada indeterminação no modernismo. Além de uma breve
contextualização sociocultural, a escuta das obras será acompanhada pela
leitura de trechos escolhidos da literatura de cada período.

É interessante considerarmos que a própria linguagem utilizada


pelo professor se dá de forma metalinguística na medida em que se fala
de um conteúdo programático sobre as Artes através de termos próprios

2
A classificação dos amores é referenciada por diversos autores e literaturas de diferentes épocas, como
Platão e C.S.Lewis. A referência escolhida pelo professor é de uma carta encíclica de 25 de dezembro de
2005, ‘Deus caritas est’, pelo Papa Bento XVI, disponível em: <https://www.vatican.va/content/benedict-
xvi/en/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20051225_deus-caritas-est.html>
Júlia Campolina Araújo • 19

do mundo artístico. Considero relevante contextualizar que Tishman,


Perkins e Jay (1999, p.15) apontam como uma das dimensões da cultura
do ‘bom pensar’ a linguagem do pensar, compreendida como “termos e
conceitos usados em sala para se falar sobre o pensar”. Nesse sentido,
podemos observar no texto da ementa supracitada a utilização de
termos bem pensados para se falar sobre arte num movimento de
construção da linguagem sobre o pensar artístico.
Além disso, a escolha do professor de considerar o amor como
ponto de partida e chegada da disciplina nos diz sobre qual cultura está
sendo projetada para esta sala de aula. Por meio do trabalho cênico,
poético, criativo e musical sobre afetos históricos constrói-se uma
cultura de apropriação sensível da História da Arte e seus períodos pré-
estabelecidos. Para além de uma perspectiva histórico-conteudista, o
Panorama da Música de Concerto relatado neste trabalho tem objetivos
culturais outros, como o desenvolvimento da criatividade, da
expressividade, da linguagem artística e da autonomia sensível 3 dos
estudantes.
A intervenção proposta para a turma ocorreu em uma aula sobre o
período do Classicismo, compreendido entre 1750 e 1820. A obra musical
sobre a qual foi elaborada a rotina de pensamento é de Ludwig van
Beethoven, o segundo movimento do Concerto para Piano e Orquestra
nº4 em Sol Maior, op. 58 4 composta entre 1805 e 1806. Prevista no
repertório de música clássica e selecionado pelo professor para a
disciplina, a apresentação da obra contou com contextualização prévia

3
Aqui me refiro à tomada de consciência sobre sensações provocadas por algum estímulo (como a
música), e a construção de uma linguagem múltipla (que conta com elementos além das palavras, como
movimentações) que as descrevam.
4
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=_DLbGfENx-4&t=1113s>
20 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

por meio da leitura de um excerto do Testamento de Heiligenstadt


(1802), uma carta de Beethoven para seus irmãos:

Para meus irmãos Carl e ... [Johann] van Beethoven,


Ó, vós homens, que pensam ou dizem que eu sou maldoso, teimoso ou
misantropo, como vocês estão equivocados. Vocês não sabem a causa
secreta que me faz parecer assim para vocês... Eu preciso viver quase só
como alguém que foi banido, eu só posso conviver em sociedade quando é
necessário... Que humilhação para mim quando alguém perto de mim ouviu
uma flauta à distância e eu não escuto nada, ou quando alguém ouviu um
pastor cantando e eu novamente não ouvi nada. Tais incidentes me levaram
às bordas do desespero, um pouco mais e eu teria posto fim à minha vida –
só a minha arte me deteve. Ah, pareceu impossível para mim deixar este
mundo até que eu tivesse realizado tudo aquilo que eu sentia que estava
dentro de mim (Beethoven, 2020).

Após a leitura, a obra foi reproduzida em arquivo de áudio sem


exibição da partitura e, em seguida, quatro perguntas foram projetadas
no quadro e a proposta foi explicada: os alunos deveriam pensar e
rascunhar suas respostas em cinco minutos para posterior discussão
entre a turma. Sob permissão dos alunos, a conversa foi gravada para
fins de estudo e pesquisa. As perguntas da rotina de pensamento foram
as seguintes:

* O que você imaginou enquanto escutava a música?


* Quais sensações e sentimentos você sentiu ao ouvir a música?
* Pode-se identificar duas ‘vozes’ na obra - as cordas e o piano. Como você
caracteriza cada uma delas?
* O que você perguntaria ao compositor, se pudesse?

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Considero relevante pontuar que tanto o caráter das perguntas


quanto a decisão de não disponibilizar acesso a partitura da obra foram
Júlia Campolina Araújo • 21

escolhas que tinham o objetivo de provocar uma escuta mais criativa e


não tanto analítica, abrindo espaços para pensamentos imagéticos,
metafóricos e sensoriais. Nos termos da educadora musical Lucy Green,
a atividade buscou considerar outras significações extramusicais, os
chamados significados delineados.
A Teoria dos Significados é uma teoria sociológica sobre o
fenômeno musical que aborda a construção dos significados sociais em
torno de uma manifestação musical. Para isso, Green (1997) propõe uma
distinção sobre aquilo que considera estritamente musical, referente
aos materiais sonoros e aquilo que diz respeito aos demais elementos
associados à música que são de ordens culturais e sociais: os significados
inerentes e delineados, respectivamente. É importante ressaltar que
esses significados não possuem a capacidade de fragmentar uma
manifestação musical e devem necessariamente coexistir.
Quando tratamos da escuta de uma obra musical é comum que
sejam elaborados pensamentos analíticos sobre os significados inerentes
sobre aquela música, ou seja, significados construídos a partir das
“interrelações convencionais dos materiais sonoros captadas pela
capacidade perceptiva do ouvinte” (Green, 1997, p. 28). Sob esta
perspectiva são elaborados pensamentos sobre aspectos sonoros que
compõem estruturalmente uma obra, como melodia, harmonia, forma
e cadências musicais, por exemplo.
Por outro lado, os significados delineados são as elaborações acerca
dos fatores simbólicos que estão inseridos em manifestações musicais.
Portanto, a escolha de ocultar a partitura no momento de escuta e a
leitura do testamento de Beethoven tinham o objetivo de provocar
pensamentos e comentários também delineados dos alunos, ou seja,
22 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

referente às imagens, sensações e outros aspectos extra sonoros sobre


o fenômeno musical. É evidente que os significados inerentes também
são importantes e estão presentes nas falas dos alunos, mas estão
sempre em costura para a construção de uma significação mais ampla e
sensível.
A seguir, alguns comentários dos estudantes 5 após a escuta da
obra:

A primeira coisa que me veio na cabeça foi um filme que eu relacionei com
a sonoridade da peça, se chama Atonement, Desejo e Reparação. O que eu
senti com a música foi uma tragédia, uma coisa muito grande, dramática,
que muda sua vida de maneira grandiosa. E aí eu senti que as cordas e o
piano faziam como se fosse uma dança em que o piano, essa coisa anterior
a esse drama, como se fosse o normal, digamos assim, que essa vida deveria
ser. E as cordas estão puxando, é o motor que faz a sua vida e traz esse
drama. O que eu perguntaria ao compositor eu acho que se teve algum
evento específico que inspirou ele (Renata)

Eu imaginei uma pessoa tocando um piano num palco com uma luz só nele.
E aí, enquanto as cordas apareciam era como se fossem pessoas vestidas de
preto, apareciam por um lado, a luz piscava e mostrava as pessoas atrás,
puxando ele. Aí, tipo assim, tem aquele momento em que as cordas falam, é
como se o desespero começasse a entrar nele também. (Jéssica)

Os comentários dos alunos evidenciam a potência criativa que uma


experiência de escuta é capaz de provocar. Danças, cenas, imagens,
paisagens e movimentos são exemplos dos materiais estéticos criados
pelos estudantes a partir de pensamentos imaginativos simultâneos à
escuta da obra de Beethoven. Qual tipo de virtude intelectual foi
estimulada nessa experiência?

5
A fim de preservar o anonimato dos estudantes foram utilizados pseudônimos em suas falas
Júlia Campolina Araújo • 23

Borba (2020), analisando Baehr, propõe uma taxonomia das


virtudes intelectuais agrupando-as em tipos de disposições de
pensamento. A criatividade é classificada no grupo das virtudes de
desenvoltura que, segundo o autor,

diz respeito ao desafio que por vezes se apresenta aos pesquisadores em


função de precisarem confrontar um assunto que é, em si mesmo,
extremamente complexo, ou mesmo um assunto que é simplesmente alheio
ao modo corriqueiro de se pensar sobre o mundo (Borba, 2020, p.111).

Ora, o que é uma obra musical senão a expressão de uma ideia


complexa que escapa à linguagem e ao pensamento corriqueiro? Para
compreender a Música é necessário, então, a desenvoltura do
pensamento para “pensar fora da caixa” com alguma criatividade para
pensar além das palavras. Portanto, para a elaboração de pensamentos
sobre uma obra musical – compreendida enquanto fenômeno complexo
sobre o qual palavras são, muitas vezes, insuficientes – é preciso, em
adição a mente aberta, a abertura dos ouvidos, olhos e poros.
Nesse sentido, se para pensar sobre uma obra musical precisamos
ser virtuosamente criativos, podemos considerar a escuta como um ato
de criação? Bem, considerando que o som é polissêmico, ou seja, capaz
de produzir sentidos diferentes, é interessante pensar que a escuta é um
meio sui generis de criação de ideias, ou sentidos. Tem peculiaridade
própria por ser captado de maneiras não apenas verbais, mas também
sensoriais e, além disso, requer desenvoltura para tal captação e para a
elaboração de pensamentos e ideias. A escuta musical é capaz de
produzir imagens, cenas, novas palavras, metáforas para sentimentos e
emoções únicas de cada pessoa que a escuta. Portanto, se cada pessoa
24 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

escutante 6 exercita sua desenvoltura criativa a fim de criar um


pensamento sobre um momento musical não pode tratar-se de um
processo meramente passivo, mas sim criativo, tal como evidenciado
pelos comentários dos estudantes.

Então, quando começou, eu já imaginei ele numa casinha bem simples,


isolada, num ambiente mais rural, e aí fiquei imaginando o tormento que
ele estava passando porque essa obra foi a obra que ele escreveu nesse
momento de isolamento. E aí eu senti empatia, pensando o quanto ele
deveria estar sofrendo e como se fosse uma injustiça da própria vida e a vida
sendo impiedosa. Independente se isso é o seu instrumento de trabalho,
você vai perder isso mesmo e vai ter que lidar com isso. (Gabriel)

Eu pensei bem no campo rural também. Arcade. O arcadismo e o classicismo


são próximos, né? E então eu imaginei o céu preto. É uma cena que eu tenho
uma memória afetiva dessa cena, é onde alguns familiares meus moram, na
zona rural mesmo. É um céu assim, num fim de tarde que vai começar a
chover daqui a pouco. A sensação eu acho que prevalece uma interioridade,
a gente com a gente mesmo, como se aquilo também fosse paisagem no
nosso próprio pensamento. É uma solitude, que é um pouco diferente de
solidão, né? Existe um certo conforto em estar com a gente mesmo.
(Mariana)

O que torna o pensar sobre a música diferente? Márcia Tiburi


(2004) propõe uma diferenciação entre o ver e o olhar, quando afirma
que “ver é reto, olhar é sinuoso. Ver é sintético, olhar é analítico. Ver é
imediato, olhar é mediado”. Apesar de associar a lentidão ao olhar e a
rapidez ao ver, a autora compreende que os dois se complementam num
jogo de perdas e ganhos. O ato de olhar após ver exige um trabalho de

6
Se estamos aqui estabelecendo uma distinção entre ouvir e escutar, proponho a figura do ‘escutante’
em contraponto ao ‘ouvinte’
Júlia Campolina Araújo • 25

reconstrução daquilo que se vê, proporcionando uma síntese mais


profunda oriunda do processo de ver-olhar.
Mas tanto o ver quanto o olhar são escolhas, afinal é possível
apenas fechar os olhos. Considero essa a principal diferença sobre o
pensar próprio sobre a música pois, como dito por Schafer (2011) "os
ouvidos não possuem pálpebras". Se, inspirados, pela relação ver-olhar,
ousássemos aqui propor uma diferença entre ouvir e escutar é
necessário partir do princípio de que o som é invasivo, ele não pede
permissão. Portanto, para pensar sobre ele é preciso aguçar nossa
percepção mental sobre sons e ruídos, sejam desejáveis ou não.
Murray Schafer, compositor e educador musical, quando propõe a
‘Limpeza de Ouvidos’ afirma que este é um pré-requisito necessário a
todos os ouvintes e executantes de música, que consiste na escuta atenta
aos sons que não prestamos atenção, como os sons do ambiente. No fim,
tudo parte de uma disposição para pensar sobre o que ouvimos, como
uma motivação que nos provoque e instigue a prestar atenção naquilo
que nos atravessa a todo o momento. Trata-se de uma escolha por
escutar: este é o primeiro passo da verdadeira escuta.
E quando escutamos aquilo que foi feito para ser escutado? Um
concerto de Beethoven, por exemplo. Passado o primeiro passo da
escolha por escutar, como é possível pensar sobre aquilo que chega aos
nossos ouvidos e cérebro no instante presente, mas que faz parte de algo
maior? Como pensar na música como um todo, de seu primeiro som até
o último silêncio? Afinal, quando pensamos no que acabou de soar aos
nossos ouvidos algo novo já é apresentado. Então, depois da escolha vem
a atenção.
26 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

O que não significa que seja uma atenção apenas mental, porque o
som não é compreendido apenas por palavras. Muitas vezes a atenção é
sobre os sentidos: sensações e emoções que se manifestam por meio do
corpo ou, ainda, quando o som é captado pelos poros em vez dos ouvidos.
Nesse sentido, a caminhada da escuta expande para a sensibilidade,
após a escolha e a atenção.
O próximo desafio é linguístico: como condensar tudo que foi
escutado, percebido e sentido em palavras? Este é mais um diferencial
do pensar sobre sons; ele é necessariamente metafórico e utiliza de
imagens fabricadas pela nossa mente para descrever um fenômeno
invisível que acontece no ar. Mas, claro, como todas as coisas, nada
escapa ao pensamento. Esta foi a proposta oferecida à turma de
estudantes do Panorama da Música de Concerto: pensar sobre uma
música.
Pode-se até pensar que estudantes de Música estejam habituados a
essa prática, mas quanto realmente se pensa sobre a construção desses
pensamentos? E, sobretudo, com que frequência os estudantes são
submetidos a essa experiência de estruturar o pensar sobre a música?
Acredito que todos os professores concordam que um dos objetivos
centrais de uma escola é estimular o pensamento, e até mesmo o
pensamento crítico, mas o que tem sido feito, de fato, para a formação
de sujeitos pensantes?
E o que eu perguntaria? Ah, eu não perguntaria nada. (Leonardo)
Schafer (2011) elabora que, no processo de criação dos sons “é dada
ao indivíduo a possibilidade de ter um gesto livre, depois é que vem a
disciplina para estabelecer conexões”. Para que o escutante, assumindo
sua posição de criador, esteja atento a essa possibilidade, é interessante
Júlia Campolina Araújo • 27

que percorra o caminho descrito por Palmer e Tishman (2007) sobre a


apropriação das disposições do pensamento.
As disposições de pensamento são o passo à frente para além das
habilidades; trata-se de tendências intelectuais de um sujeito frente ao
que desperta o pensamento, como a tendência de ter a mente aberta,
dispor de curiosidade e atenção, e elaborar bons questionamentos e
raciocínios.
Entretanto, para construir disposições de pensamento é necessário
o exercício de elementos que Tishman e Palmer (2007, p.3) identificam
como a sensibilidade, a inclinação e a habilidade: “Sensibilidade diz
respeito à atenção às oportunidades, a inclinação refere-se à tendência
de engajar sobre as oportunidades detectadas e a habilidade preocupa-
se com a capacidade de prosseguir de forma apropriada”. Nesse sentido,
a escuta como ato de criação é uma possibilidade que será apenas
identificada através da sensibilidade do sujeito para perceber
oportunidades de escutar. Uma vez percebida, é necessário que o
escutante escolha escutar (em vez de simplesmente ouvir) e, para que
essa escolha ocorra de maneira satisfatória, habilidades como atenção e
concentração serão essenciais.
Considerando isso, é interessante pensar que a escola pode ser um
espaço facilitador para as oportunidades de escuta se manifestarem e,
em adição a isso, deve preocupar-se também com o exercício das
habilidades que tornam a escuta apropriada. Uma vez que
compreendemos a sala de aula como um ambiente de cultura própria, é
possível para um contexto de Educação Musical a possibilidade de
construir uma cultura da escuta criativa, pautada na premissa do
pensar sobre Música.
28 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

O que me parece que é exposto é um sentimento de dor, uma incompreensão


muito grande sobre o estado dele. As pessoas olham, julgam a pessoa como
uma pessoa arrogante, agressiva, mas que na verdade está passando por um
momento de muita dor e incompreensão. Ninguém entende isso. (Henrique)

Considero que os resultados dessa experiência são importantes por


proporcionar aos alunos a oportunidade de escutar criativamente,
instigar a estruturação de pensamentos sobre música por meio de
perguntas e oferecer um espaço para a apropriação sensível de uma obra
de um compositor consagrado.
Além disso, é relevante relatar que A Rotina do Pensamento no
Panorama da Música de Concerto teve repercussões posteriores no
trabalho final da disciplina, que consistia na apresentação de uma
proposta criativa criada e encenada pelos alunos. Em um dos grupos da
turma, os alunos aplicaram um formulário com perguntas sobre a
apresentação após performar uma cena cujo tema se dava em torno dos
conflitos internos dos sujeitos. As perguntas questionavam as
impressões e sentimentos dos espectadores sobre aquilo que assistiram.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considero apropriado concluir este trabalho com algumas


perguntas: para quê estamos educando os estudantes? Quais são as
prioridades educacionais que estabelecemos para uma sala de aula?
Sobre essas prioridades, Baehr elabora que:

uma preocupação sobre tais abordagens é que elas não são suficientemente
centradas nos estudantes - que lhes falta uma sensibilidade adequada aos
estágios de desenvolvimento dos alunos, e custam o esgotamento de suas
curiosidades, seus questionamentos e motivações naturais (Baehr, 2015,
p.31).
Júlia Campolina Araújo • 29

Muitas vezes o foco das abordagens pedagógicas se dá em torno do


conteúdo visando uma transferência, por vezes passiva, do professor
aos alunos. O autor propõe uma abordagem que desenvolva as virtudes
intelectuais dos sujeitos em sala de aula para que, além de
compreenderem o conteúdo, sejam capazes de se apropriarem deste de
forma crítica, aberta e atenta.
Quanto ao contexto musical e a temática da história da música de
concerto, algumas abordagens possíveis podem ser focadas na
quantidade de obras musicais produzidas, nos tratados de Música
publicados ao longo dos séculos ou nos compositores importantes de
cada período, por exemplo. No entanto, é interessante questionarmos
sobre os objetivos dessas abordagens e os meios pelos quais os
alcançamos.
É evidente que o conhecimento sobre tais temáticas e conteúdos é
relevante e deve ser estudado pelos alunos de cursos superiores em
Música. Mas a maneira como os abordamos pode ser significativa,
transformadora e capaz de formar sujeitos criativamente expressivos e
autônomos. Uma sala de aula que não considera os contextos e
potencialidades de seus estudantes em nome de uma abordagem
conteudista deixa passar oportunidades importantes para a construção
de pensamentos virtuosos. Para que tal construção seja possível os
alunos devem ser capazes de se expressarem, se apropriarem do
conteúdo e serem motivados a fazê-lo.
De acordo com Watson (2018), o que caracteriza uma virtude e a
difere de uma habilidade é justamente uma motivação própria e
verdadeira para o seu exercício. Em seu exemplo, felizmente musical, o
autor elabora:
30 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

O pianista habilidoso que toca puramente para ganho financeiro ainda é um


pianista habilidoso, ao passo que o homem honesto que é motivado a dizer
a verdade exclusivamente para ganho financeiro não será (na maioria das
circunstâncias) considerado virtuosamente honesto (Watson, 2018, p.2).

Pensando nisso e pensando na formação de musicistas e


professores/as-musicistas, quais virtudes intelectuais estamos
cultivando nas salas de aula do ensino superior em Música? Estamos
buscando apenas o aprimoramento de habilidades? E, sobretudo, o
quanto estamos pensando sobre a música, seus significados e no que ela
nos provoca? Proponho que, além de pensarmos nas habilidades
necessárias para tocar música, pensemos também em como a música
nos toca.

REFERÊNCIAS

BAEHR, Jason. Cultivating Good Minds: A Philosophical & Practical Guide to Educating
for Intellectual Virtues. 2015. Disponível em: intellectualvirtues.org. Acesso em: 20
de março de 2023.

BORBA, Alexandre Ziani de et al. Uma investigação acerca da natureza da virtude


intelectual e do seu estatuto enquanto ideal regulador da educação. 2020. Tese de
Doutorado. Universidade Federal de Santa Maria.

GREEN, Lucy. Pesquisa em sociologia da educação musical. Revista da ABEM, v. 4, n. 4,


p. 25-35, 1997.

SCHAFER, Murray R. O ouvido pensante. 2. ed. São Paulo: Editora da Unesp, 2011.

TIBURI, M. Aprender a pensar é descobrir o olhar. Jornal do Margs, edição 103, set/out
2004.

TISHMAN, Shari; PALMER, Patricia. Works of Art are Good Things to Think About.
Conference proceedings Evaluating the Impact of Arts and Cultural Education,
Paris, p.89-101, 2007.

TISHMAN, Shari; PERKINS, David. N; JAY, Eileen. A cultura do pensamento na sala de


aula. Trad. Cláudia Buchweitz. Porto Alegre: ArtMed, 1999.
Júlia Campolina Araújo • 31

VAN BEETHOVEN, Ludwig. Testamento de Heiligenstadt. Agenda Cultural Alma Máter,


n. 281, 2020.

WATSON, Lani. Educating for Good Questioning: a tool for Intellectual Virtues
Education. Acta Analytica, vol. 33, p.353–370, 2018.
O ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO
2
ATRAVÉS DE OBRAS DE ARTE: UM RELATO DE
EXPERIÊNCIA COM UMA “ROTINA DE PENSAMENTO”
SOBRE INFERÊNCIAS
Débora Saraiva Dalmaso 1

No Núcleo do Programa de Residência Pedagógica de Filosofia da


Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob a supervisão da
professora Débora Mariz, trabalhamos a interessante possibilidade de
utilizar, no ensino de filosofia, as “rotinas de pensamento”,
desenvolvidas pelo Project Zero, na Faculdade de Educação de Harvard,
que visam explorar a contemplação de obras de arte para diferentes
propósitos que envolvem um pensamento mais consciente de seus
processos. O seguinte relato se trata da experiência da aplicação da
“rotina das inferências” na Escola Estadual Pedro II, em Belo Horizonte,
pela professora Leila Miranda, que pude acompanhar e auxiliar.
Acredito na relevância de tal experiência e seus resultados por
considerar que pode contribuir para a atual discussão sobre o ensino de
filosofia no ensino básico público no Brasil. Por um lado, é preciso levar
em conta o que dizem as diretrizes como as apresentadas pela Base
Nacional Comum Curricular (BNCC), assim como as críticas e discussões
sobre as potencialidades e riscos do caráter interdisciplinar que marca
o Novo Ensino Médio. Por outro lado, porém, há a discussão sobre os

1
Graduanda do curso de filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e bolsista do
Programa de Residência Pedagógica (CAPES), deboradalmaso@hotmail.com.
34 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

problemas, diríamos, filosóficos, que envolvem o ensino de filosofia, em


autores como Rodrigo (2009) e Cerletti (2004), como a delimitação de seu
objeto, as escolhas dos conteúdos, se há ou não uma didática
propriamente filosófica, além da visão tradicionalmente consolidada de
distância que a área teria do público não especializado, que parece
implicar que a obrigatoriedade de seu ensino nas escolas de massa
incorreria num risco constante de cair no didatismo. Num tal contexto,
nos deparamos com diferentes horizontes e objetivos que um professor
pode ter diante de sua atividade no ensino básico, problemas teóricos e
práticos sobre os quais documentos oficiais, como a BNCC, pouco tem a
dizer.
A BNCC afirma, de maneira geral, sobre as Ciências Humanas e
Sociais Aplicadas no Ensino Médio, que

As operações de identificação, seleção, organização, comparação, análise,


interpretação e compreensão de um dado objeto de conhecimento são
procedimentos responsáveis pela construção e desconstrução dos
significados do que foi selecionado, organizado e conceituado por um
determinado sujeito ou grupo social, inserido em um tempo, um lugar e
uma circunstância específicos. De posse desses instrumentos, os jovens
constroem hipóteses e elaboram argumentos com base na seleção e na
sistematização de dados, obtidos em fontes confiáveis e sólidas. A
elaboração de uma hipótese é o primeiro passo para o diálogo, que
pressupõe sempre o direito ao contraditório. É por meio do diálogo que os
estudantes ampliam sua percepção crítica tanto em relação à produção
científica quanto às informações que circulam nas mídias, colocando em
prática a dúvida sistemática, elemento essencial para o aprimoramento da
conduta humana (Brasil, 2018, pp. 561-562).
Débora Saraiva Dalmaso • 35

Diante dessa perspectiva, e mais explicitamente na habilidade


específica EM13CHS103 2, é possível pensar que uma das contribuições
que a filosofia pode oferecer para a formação do estudante do Ensino
Médio trata-se das ferramentas que, ainda que façam parte de toda
construção de conhecimento, são por excelência ferramentas de toda
tradição filosófica, que se debruça sobre a argumentação e elaboração
de hipóteses, aqui supondo com otimismo o valor do desenvolvimento
de tais habilidades para o futuro do estudante para além de sua vida
escolar, o que sabemos se tratar de um grande desafio.
Para mim e para a professora Leila, um horizonte de sentido
importante alinhado a isso é o de buscar instigar uma “atitude
filosófica”, um “olhar agudo que não quer deixar nada sem rever, essa
atitude radical que permite problematizar os eventuais fundamentos ou
colocar em dúvida aquilo que se apresenta como óbvio ou naturalizado”
(Cerletti, p.27-28). Pensando nesse desafio e assumindo a importância
do lugar da argumentação no ensino de filosofia, afirmando com
Velasco (2017) que se trata de um conhecimento necessário (ainda que
não suficiente) ao seu estudo, apresentarei a experiência de aplicação
da rotina de pensamento das inferências como interessante
instrumento a ser utilizado em sala de aula no ensino do rigor da
atividade filosófica e prática de articulação de argumentos, assim como
levantarei pontos de discussão a serem considerados sobre esta prática.

2
“Elaborar hipóteses, selecionar evidências e compor argumentos relativos a processos políticos,
econômicos, sociais, ambientais, culturais e epistemológicos, com base na sistematização de dados e
informações de natureza qualitativa e quantitativa (expressões artísticas, textos filosóficos e
sociológicos, documentos históricos, gráficos, mapas, tabelas etc.).” (Brasil, 2018, p. 560)
36 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

METODOLOGIA E REFERENCIAL TEÓRICO

As rotinas de pensamento aplicadas no Núcleo de Filosofia do


Programa de Residência Pedagógica da UFMG foram inicialmente
desenvolvidas pelo Project Zero, um projeto da Faculdade de Educação de
Harvard fundado em 1967 pelo filósofo Nelson Goodman e que hoje
possui várias frentes de pesquisa e prática voltada para as artes,
humanidades e educação. A ideia das rotinas é fruto da união de
algumas de suas iniciativas, como a “Visible Thinking” e “Artful Thinking”,
que propõem a professores o uso de obras de arte em sala de aula, como
uma prática que

foca em observar e interpretar arte, mais do que fazer arte, e seu objetivo é
duplo: ajudar os professores a criar ricas conexões entre obras de arte e
tópicos que eles estejam ensinando; e usar o poder da arte como uma força
para desenvolver as disposições de pensamento dos estudantes (Tishman;
Palmer, 2007, p.2, tradução nossa). 3

Tais “disposições de pensamento” estão associadas a habilidades


que envolvem processos mais autoconscientes de interpretação e
articulação de informações e argumentos que se tornam habituais aos
estudantes se as tornamos parte, de alguma forma, da sua rotina
escolar, possibilitando que exerçam as habilidades que visamos em
outros contextos. Ou seja, há uma prática de “ensinar a pensar” que não
é uma exposição de “pensamentos prontos”, nem apenas uma estratégia
metodológica pontual. As rotinas podem ser formuladas com diferentes
objetivos e recursos, dentro de diversas áreas do saber, porém o objetivo

3
“It focuses on looking at and interpreting art, rather than making art, and its goals are twofold: To help
teachers create rich connections between works of art and topics they are teaching; and to use the
power of art as a force for developing students’ thinking dispositions.”
Débora Saraiva Dalmaso • 37

geral se trata de engajar os alunos a contemplar e pensar


profundamente acerca de determinada obra e, consequentemente,
sobre o tópico em questão, e ainda que as perguntas norteadoras da
rotina variem, o fio condutor delas está associado ao que o aluno vê e ao
que o faz afirmar o que afirma sobre o que vê. Para ilustrar e descrever
a estrutura e condução de uma rotina de pensamento, apresentarei já a
rotina utilizada na experiência, chamada “rotina das inferências”.
Cada rotina é, em geral, realizável no tempo de uma aula (50
minutos). No caso da rotina das inferências, dependendo se a turma já
estiver familiarizada com o significado de “inferência” ou não, caberá
ao professor discernir, segundo seus objetivos e planejamento, se será
proveitoso fazer uma explicação antes de aplicar a rotina, o que pode
exigir, portanto, mais de uma aula para que a rotina seja aplicada.
Considerando inferência “um raciocínio que pretende concluir
algo com base no encadeamento de informações pressupostas” (Velasco,
2017), a rotina objetiva trabalhar nos estudantes as disposições de
observar, descrever, estabelecer hipóteses e analisar argumentos. O
primeiro passo se trata de apresentá-los a uma obra de arte para que
todos observem cuidadosamente e com tanto silêncio quanto for
possível pelo tempo que o professor considerar conveniente (a imagem,
no entanto, deve ficar visível e disponível para novas consultas em
qualquer momento durante a condução da rotina), sem, no entanto,
oferecer nenhuma informação sobre ela. O segundo passo será pedir aos
estudantes que pensem, elaborem e exponham uma hipótese sobre o
que está acontecendo na imagem apresentada, levantando os
argumentos (baseando-se nos elementos da imagem como evidências
disponíveis) que sustentem a hipótese, que será preferencialmente
38 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

escrita no quadro, para que todos possam acompanhar a análise e


também propor argumentos contra a hipótese. Nesse momento de
discussão, não é preciso (nem possível, em turmas grandes) que todos
os alunos elaborem hipóteses, mas sejam incentivados a participar da
discussão, assumam posições e levantem novos argumentos para a
ponderação, em busca da “melhor explicação possível”. Durante todo o
processo, aquele que conduz a rotina deve realizar a mediação
lembrando principalmente o fator de objetividade que deve envolver a
busca pela melhor explicação, visto que todos partem de um dado
comum: os elementos presentes na obra. O terceiro e último passo,
terminada a discussão, é informar o título da obra, o ano de sua criação,
o autor e o que mais achar conveniente, a depender da obra e os
objetivos do professor.
A experiência que será relatada de uma aplicação da rotina das
inferências ocorreu na Escola Estadual Pedro II, localizada no bairro
Santa Efigênia, no centro de Belo Horizonte/MG, que atende pela manhã
doze turmas de Ensino Médio (com 30 a 40 alunos por sala) e à tarde
doze turmas dos anos finais do Ensino Fundamental. Trata-se de uma
escola com uma boa gestão e que encerra notáveis particularidades, com
edifício em estilo neocolonial, inaugurada de 1926, com frequente
visibilidade midiática, e sendo considerada uma escola estadual de
referência, já tendo sediado a iniciativa do estado de oferta de atividades
extracurriculares, que infelizmente foi encerrada. Para compreender o
perfil dos alunos da escola, é preciso considerar que, como ocorre com
as outras escolas do centro da cidade, se tratando de área comercial e
hospitalar, não há uma comunidade escolar vizinha. A maioria dos
alunos é moradora da zona leste de Belo Horizonte, o que significa que
Débora Saraiva Dalmaso • 39

os alunos são, em geral, de classe média, vindo de famílias que têm


condição de investir em uma ou duas passagens de ônibus para que os
filhos possam ir à escola.
A rotina foi aplicada nas aulas de filosofia pela professora
preceptora Leila Miranda, graduada e mestra pela UFMG, que está há
mais de dez anos na escola, e atualmente também ministra as aulas do
componente curricular “Projeto de Vida” e dos itinerários formativos
“Problema e Ação” e “Aprofundamento em ENEM”. A professora, muito
querida pelos alunos, em geral conduz aulas expositivas bem dialogadas,
se esforçando mesmo para aproximar o conteúdo de temas e referências
que os interessem. Apesar disso, se tratando de avaliações, acaba por
lidar com os mesmos problemas que outras disciplinas: em provas
objetivas, em geral há notas baixas e medianas que, para os professores
da escola, são resultado da falta de um “costume” de estudar e revisar
fora da escola, enquanto em avaliações escritas, nota-se o grande déficit
dos estudantes em interpretação de comandos e em escrever de maneira
coerente e coesa. No caso da professora, devido à quantidade de turmas
e disciplinas assumidas na escola, não há uma correção por escrito das
atividades desenvolvidas pelos estudantes e, consequentemente, não há
um hábito da escrita, correção e reescrita de textos. Isso é preocupante
se considerarmos a importância que tem para o desenvolvimento de um
aluno a experiência do pensamento e escrita (e reescrita) individual de
uma atividade.
Na escola, já havia sido aplicada em algumas turmas, por diferentes
residentes, uma mesma rotina de pensamento de modelo simples, para
introduzi-los à dinâmica própria de tal atividade, usando obras
diferentes para levantar discussões introdutórias dos conteúdos de
40 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

filosofia que seriam trabalhados, e todos pudemos observar o


engajamento e interesse dos alunos durante a realização da proposta.
Realizar a rotina das inferências em turmas de primeiro ano foi
iniciativa da professora preceptora para, nesse momento em que eles
ainda estão aprendendo sobre a origem da filosofia segundo a tradição
ocidental, seus métodos, e o que caracteriza o conhecimento e a
investigação filosófica, tentar desfazer a imagem do senso comum de
que a filosofia é algo subjetivo, distante, sem rigor etc. Conhecer os
conceitos básicos da lógica e os desafiar a exercitá-los possibilita um
contato direto e, de certa forma, trabalhoso, com o rigor argumentativo
que já afirmamos ser útil aos alunos e presente no horizonte do ensino
de filosofia, lembrando a tese de Velasco (2017) de que em

Diversas circunstâncias cotidianas, sejam estas corriqueiras ou


relacionadas ao exercício profissional e institucionalizado, faz-se
necessário argumentar para fundamentar nossas ações, decisões e pontos
de vista; pode-se citar, como exemplo, os momentos em que devemos
declarar apoio a certas causas, justificar nossos direitos como consumidor,
defender uma ideia em um debate político, jurídico, científico ou
educacional (Velasco, 2017, p. 522).

A imagem escolhida para a realização da rotina foi a “Gravura de


Flammarion” em uma de suas versões coloridas. A figura se trata de uma
gravura em madeira de autoria desconhecida, mas assim chamada por
ter sido registrada no livro A atmosfera: meteorologia popular, de 1988, de
Camille Flammarion, sendo uma representação moderna da cosmologia
medieval. Estas informações, lembro, são “reveladas” à turma somente
após toda a discussão, que é, afinal, o mais importante da atividade.
Débora Saraiva Dalmaso • 41

Figura 1- Gravura de Flammarion

Fonte: artista desconhecido, século XIX 4

Tendo sido excepcionalmente realizada em duas aulas em cada


turma em que foi aplicada, na primeira aula a professora se dedicou a
explicar sobre o que são inferências para então dar aos alunos tempo
para observar a obra e abrir para o levantamento das hipóteses,
enquanto na segunda aula deu-se continuidade à discussão dos
argumentos ao redor das hipóteses. Minhas observações se concentram
nas discussões da segunda aula de aplicação da rotina, realizadas do dia
26 de maio de 2023, com as turmas 104 (vista na escola como uma turma
particularmente apática) e 105 (vista na escola como uma turma
particularmente bagunceira e imatura).

4
Disponível em: <https://comciencia.br/imaginando-o-redondo/camille-flammarion/>. Acesso em 19
ago. 2023.
42 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O debate se concentrou, nas duas turmas, basicamente em volta de


duas ou três hipóteses principais, sobre as quais vários alunos
contribuíam com os argumentos a favor ou apresentavam
contrapontos, com participação ativa, ou ao menos atenta, de quase
todos os alunos. As primeiras hipóteses, talvez inconscientemente
associando as cores e ilustrações a artes de caráter psicodélico, e
chamando a atenção para a aparente dualidade da obra, apelavam para
uma interpretação de que se tratava de algo onírico ou de um plano de
alguma maneira psicológico. Alguns diziam, por exemplo, se tratar de
alguém que se recusava a olhar a própria realidade e estava “fugindo”
pela imaginação. Vários questionavam, porém, que o uso das cores frias
e quentes pareciam indicar que a personagem estaria indo de um lugar
feliz para um lugar triste. À princípio, a postura dos alunos era, pois, de
bastante liberdade imaginativa, mas à medida que eram exigidos de
apontar os elementos da imagem que sustentavam suas hipóteses,
rapidamente tendiam a ignorar os argumentos contra (que também
deveriam partir objetivamente do que podiam observar na imagem),
como se não houvesse problema em manter sua posição por ser “sua
opinião”, “seu ponto de vista” e, assim, a condução da rotina envolveu
intervir falas como essa para relembrar o propósito da atividade, que
era confrontar argumentos a fim de buscar a melhor explicação possível
a partir dos elementos dados pela imagem, relembrando, portanto, do
que se tratam as inferências. Ao mesmo tempo, era preciso lembrá-los,
quando alguns tomavam uma postura defensiva contra colegas que
apresentavam argumentos contra sua hipótese, que o debate não é
apenas aceitável, como necessário e intrínseco à atividade filosófica (e
Débora Saraiva Dalmaso • 43

científica) se desejamos buscar objetivamente as melhores respostas


sobre dado problema.
Na turma 105, em pouco tempo alguns alunos associaram o estilo e
certos elementos a algo que lembrasse o período medieval. Logo a
maioria dos alunos estava engajado confirmando argumentos que
sustentavam essa hipótese, e o debate (vivo e empolgado) passou a se
debruçar sobre dúvidas que restavam sobre certos elementos, e por um
momento suspenderam as conclusões. Já na turma 104 esse movimento
demorou mais, mas com a ajuda da incitação de explorar os
questionamentos para os quais os alunos não pareciam estar buscando
respostas, um aluno ousou trazer a nova possibilidade de se tratar de
uma obra muito antiga, talvez medieval. No fim, para ambas as turmas
já parecia impossível não partir dessa informação para afirmar
qualquer coisa sobre o que estava acontecendo na imagem, e os
questionamentos, que cada vez tomavam formas mais precisas,
buscando em seu arcabouço cultural respostas que fizessem sentido no
contexto pensado: a personagem, que antes foi vista como uma mulher
por sua veste parecer-se com um vestido, agora transitava entre ser um
clérigo ou um pastor de ovelhas; lembrava-se a ideia de que para os
medievais a terra seria plana e o modelo cosmológico era o geocêntrico
e poderia ter a ver com isso, mas por que a personagem estaria caída ou
engatinhando para o outro lado? Este outro lado, com as rodas e linhas
que parecem réguas, significaria a descoberta de novos conhecimentos?
Por isso, essa personagem seria um filósofo? A árvore na imagem seria
uma referência à árvore da vida e ao Éden? O que significa o escrito “Urbi
et Orbi” na moldura da imagem? Por que há algumas feras nessa
moldura?
44 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

No final da rotina, os alunos de ambas as turmas já afirmavam com


mais certeza o que observavam como um todo, mas mostravam-se
receosos em apresentar uma hipótese final sobre do que se tratava a
imagem, embora vissem claramente estar ligada a uma visão do mundo
medieval. Os minutos finais das aulas foram dedicados para apresentar
as informações sobre a obra, e pude contribuir com um pequeno
comentário sobre o sentido e o rigor das investigações filosóficas, sobre
como em todos os aspectos da vida estamos o tempo todo assumindo
conclusões sem muitas vezes ter consciência das premissas e do
raciocínio que percorremos e porquê isso importa quando queremos ou
precisamos tratar, em sociedade, de questões com consequências de
grande importância, em que não podemos nos satisfazer com a
subjetividade, então precisamos de boas ferramentas para pensá-las.
É interessante notar que, ao longo da discussão na turma 105, em
meio às nossas intervenções, uma aluna chegou a comentar sobre nossa
animação em conduzir a rotina, e da parte dos alunos, que já haviam se
mostrado participativos em outras rotinas de pensamento, foi ainda
mais interessante vê-los engajados nesta que se tratou de uma
experiência mais “trabalhosa” para eles, que também demonstraram, ao
final de seus esforços, compreender o propósito do que tinham feito.
Afinal, da mesma maneira que sequer podemos dar todas as respostas
sobre a intenção e significado por trás de cada detalhe da imagem (como
aliás ocorre tantas vezes ao analisarmos obras de arte muito distantes
de nós no tempo), podemos, como todos os que não trabalham com
ciências exatas, tecendo argumentos, chegar a um consenso sobre o que
parece ser melhor sustentado.
Débora Saraiva Dalmaso • 45

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por mais de uma experiência, podemos afirmar que a proposta do


Project Zero tem um profundo potencial interdisciplinar de mobilizar
diferentes saberes dos estudantes ao redor de um modelo de aula que os
permite uma ativa construção consciente de conhecimento a partir da
interessante experiência do olhar atento e demorado de uma obra de
arte, o que pode ser empolgante para os alunos e muito útil para
professores que desejam engajá-los com os mais diversos objetivos. A
rotina das inferências foi capaz de engajar com seriedade e empolgação,
com a devida condução, turmas consideradas “difíceis”, servindo, além
da própria atividade de articular informações e pensamentos em busca
de fazer as melhores inferências, para combater a imagem do senso
comum de que a filosofia é uma atividade sem qualquer rigor.
Dito isso, é preciso lembrar também que as rotinas de pensamento
não foram pensadas para serem simplesmente estratégias didáticas
pontuais, mas para, como sugere o nome, fazerem parte da “rotina”
escolar, e isso pode ser essencial para que os objetivos do ensino, como
já pontuados a partir da BNCC, sejam alcançados. Tishman, Perkins e
Jay (1999), envolvidos com tal proposta, falam sobre a necessidade de
toda uma cultura escolar voltada para o pensar:

Então, por que enfocar a cultura da sala de aula? Em círculos educacionais,


nos últimos anos, muito tem sido dito sobre habilidades de pensamento -
habilidades de pensamento crítico, habilidades de pensamento criativo,
habilidades de resolução de problemas e assim por diante. Não há dúvida de
que as habilidades de pensamento são importantes. Cruciais, na verdade.
Contudo, só o fato de possuir uma habilidade não é garantia de que você vai
usá-la. Para que as habilidades passem a fazer parte do comportamento do
46 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

dia-a-dia, elas precisam ser cultivadas em um ambiente que valorize e


sustente seu desenvolvimento (Tishman; Perkins; Jay, 1999, p. 14).

E ainda que não consideremos isso, que nosso propósito com o


ensino de filosofia seja mais modesto, e tratemos as rotinas como
estratégias pontuais, é preciso questionar a eficácia destas atividades a
partir das necessidades e realidade de cada escola. No caso da
experiência relatada, por exemplo, ainda que o deslumbre com a
atividade seja visível e possamos perceber no momento a compreensão
dos estudantes com relação ao propósito da atividade, será que podemos
pensar na contribuição desta atividade para o desenvolvimento das
habilidades de articulação dos alunos diante de seu maior déficit, a
escrita? Se sim, até que ponto? Para isso, parece ser necessária e
desejável que a realização da rotina fosse acompanhada de uma
atividade escrita que sistematizasse a discussão dos argumentos, mas a
dificuldade da professora (como é também a cansativa realidade de
tantos professores de filosofia que precisam assumir mais disciplinas
ou trabalhar em mais de uma escola por questões financeiras devido à
baixa carga horária da disciplina atualmente) em corrigi-las e devolvê-
las permaneceria impossibilitando que isso fosse feito de maneira
proveitosa.
Diante de tais desafios, a partir deste relato desejamos continuar a
discussão destas questões, convidando o leitor, se interessado nas
rotinas de pensamento e em experimentá-las em sala como simples
estratégia pedagógica, a também engajar-se na busca dos melhores
caminhos para lidar com os presentes problemas, se visamos um ensino
que de fato incentive, tanto quanto possível, o pensamento crítico e
autônomo dentro e fora da escola.
Débora Saraiva Dalmaso • 47

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.

CERLETTI, Alejandro A. Ensinar filosofia: da pergunta filosófica à proposta


metodológica. In: KOHAN, Walter O. (org.). Filosofia: caminhos para seu ensino. Rio
de Janeiro: DP&A, 2004. p. 19-42.

FLAMMARION, Camille. A atmosfera: meteorologia popular. 1888. Disponível em:


https://www.comciencia.br/imaginando-o-redondo/camille-flammarion/. Acesso
em: 19 ago. 2023.

HARVARD SCHOOL OF EDUCATION. Project Zero, 2022. Disponível em:


https://pz.harvard.edu/who-we-are/about. Acesso em: 11 ago. 2023.

RODRIGO, Lídia Maria. Filosofia em sala de aula: teoria e prática para o ensino médio.
São Paulo: Autores Associados, 2021.

TISHMAN, Shari; PALMER, Patricia. Works of Art are Good Things to Think About.
Conference proceedings Evaluating the Impact of Arts and Cultural Education,
Paris, p.89-101, 2007.

TISHMAN, Shari; PERKINS, David. N; JAY, Eileen. A cultura do pensamento na sala de


aula. Trad. Cláudia Buchweitz. Porto Alegre: ArtMed, 1999.

VELASCO, Patrícia Del Nero. Sobre o lugar da argumentação na filosofia como disciplina.
Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 517-538, jan./abr. 2017. Disponível
em: https://seer.ufu.br/index.php/EducacaoFilosofia/article/view/32175. Acesso
em: 7 ago. 2023.
EXPLORANDO O LIVRO-IMAGEM SOB O
3
PRISMA DAS ROTINAS DE PENSAMENTO
Julia Maria Xavier Leite 1
Sarah Carvalho Saturno Miranda 2

Em contrapartida, ao olhar e aprendizado passivo e a absorção de


informações desprovida de reflexão, a compreensão plena de um
assunto requer experiências imersivas. O aprendizado ativo pode ser
definido como o ato de examinar e expandir as suas próprias
observações, impressões e pensamentos, e agir sobre eles de modo a
formar novas ideias.
Como educador, é necessário guiar seus estudantes e pensar
estratégias que os auxiliem a se tornar indivíduos críticos. Poder-se-ia
assumir que um bom ponto de partida é ensinar a habilidade de
racionalizar e de pensar logicamente, porém, ocasionalmente perdemos
oportunidades de utilizar essas competências - mesmo quando elas já
se encontram bem desenvolvidas - simplesmente por não identificar
momentos em que elas podem nos ser úteis. Portanto, embora o ensino
dessas habilidades seja fundamental, deve-se questionar se é suficiente.
De acordo com Shari Tishman, o pensamento crítico vai além do
saber pensar de forma profunda, é também sobre possuir um amplo
repertório de movimentos de pensamento ao qual se pode recorrer, é

1
Graduanda do Curso de Licenciatura em Física da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG,
juliamxavier02@ufmg.br;
2
Graduanda do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG,
ssaturno@ufmg.br;
50 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

ter como hábito os atos de observar, analisar e questionar.


Tradicionalmente, os esforços para ensinar a pensar têm sido centrados
nas capacidades: colocam em primeiro plano o ensino de raciocínio e de
resolução de problemas com o pressuposto de que o desenvolvimento
das competências necessárias é tudo o que é preciso para assegurar o
comportamento desejado. Mas se queremos que os alunos utilizem as
suas competências frequentemente, se queremos que as transfiram
para contextos diversos e novos, se queremos que se sintam
comprometidos com certos padrões de comportamento intelectual em
certas circunstâncias, que se sintam empenhados em explorar
fenômenos científicos e sociais a partir de múltiplas perspectivas, ou
empenhados em dedicar tempo a formar interpretações ponderadas
sobre obras literárias e artísticas, então o simples fato de ensinar
competências de raciocínio pode não ser suficiente.
Como alternativa, o programa Artful Thinking, desenvolvido por
pesquisadores da universidade de Harvard como parte do Project Zero,
utiliza o poder da arte para ensinar o pensamento crítico uma vez que
obras de arte são objetos complexos e pensar sobre elas ajuda a
desenvolver o tipo de cultura de pensamento de que necessitamos para
pensar sobre objetos complexos que fazem parte do mundo em que
vivemos e em que os alunos também vivem.
A utilização de obras de arte como método de ensino-
aprendizagem é uma forma eficaz de estimular a criatividade, a
sensibilidade estética e o pensamento crítico dos alunos, pois através da
arte pode-se explorar e expressar a sua própria identidade e valores,
bem como compreender e apreciar diversas perspectivas. As rotinas de
pensamento podem ser utilizadas para guiar a análise e a interpretação
Julia Maria Xavier Leite; Sarah Carvalho Saturno Miranda • 51

das obras de arte, ajudando os alunos a construírem uma compreensão


mais profunda e significativa sobre elas.
O programa Artful Thinking foi concebido para ser utilizado pelo
professor do ensino regular, não necessariamente por especialistas em
artes. O programa centra-se na experiência e na apreciação da arte, em
vez de na criação de arte, embora seja compatível com a criação de arte.
O programa tem dois objetivos gerais: (1) ajudar os professores a criar
ligações ricas entre obras de arte e tópicos curriculares; e (2) ajudá-los
a utilizar a arte como um estímulo para desenvolver as disposições de
pensamento dos alunos.
Para isso, o programa funciona em paralelo com o currículo
regular, aperfeiçoando o que já está sendo ensinado, em vez de ser mais
um conteúdo, fornecendo técnicas e criando um ambiente que envolve
os alunos numa aprendizagem ativa. Os alunos tornam-se sensíveis às
oportunidades de utilizar os seus movimentos de raciocínio na
natureza, ajudando-os a desenvolver hábitos mentais que irão aguçar a
sua curiosidade dentro e fora da sala de aula.
A proposta do Artful Thinking concentra-se em um conjunto de seis
disposições de pensamento que possuem potencial para explorar obras
de arte e outros tópicos complexos no currículo. Elas são: questionar e
investigar, observar e descrever, raciocinar, explorar pontos de vista,
comparar e conectar, e encontrar complexidade. Cada uma dessas seis
disposições representa formas de pensamento poderosas para explorar
e apreciar obras de arte, assim como são importantes para a construção
de compreensão em outras disciplinas.
Cada uma dessas disposições possui comportamentos intelectuais
específicos associados a ela. O raciocínio envolve construir argumentos
52 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

e buscar evidências; explorar pontos de vista envolve olhar para as


coisas de diferentes perspectivas; encontrar complexidade envolve
descobrir múltiplas dimensões e camadas; comparar e conectar envolve
explorar justaposições e buscar conexões; questionar e investigar
envolve formular perguntas e encontrar caminhos de investigação;
observar e descrever envolve uma observação atenta e uma
apresentação detalhada. Como um conjunto, as seis disposições são
sinérgicas: observar naturalmente leva ao raciocínio, que se conecta ao
questionamento, que, por sua vez, se liga à criação de conexões, e assim
por diante.
As rotinas de pensamento que os pesquisadores do Project Zero
desenvolveram são baseadas nesse conceito e convidam alunos de
qualquer idade a serem observadores atentos, a organizarem as suas
ideias, a raciocinarem cuidadosamente e a refletirem sobre a forma
como estão dando sentido às coisas. Estas rotinas são suficientemente
flexíveis para serem utilizadas para envolver os alunos em qualquer
conceito, incluindo os seus próprios processos de pensamento.
Rotinas de pensamento são estruturas simples que podem ser
utilizadas isoladamente ou em grupo, foram concebidas para serem
fáceis de memorizar, práticas e para trabalharem uma vasta gama de
movimentos de pensamento. São bem adaptadas para tirar partido do
poder do pensamento colaborativo e transferem-se facilmente para
qualquer contexto, convidando os alunos para além do superficial,
tornando o complexo acessível através da prática.
No contexto educacional, o pensamento crítico é uma habilidade
fundamental que deve ser desenvolvida em todos os níveis de ensino.
Ele permite que os alunos aprendam a pensar de forma autônoma e
Julia Maria Xavier Leite; Sarah Carvalho Saturno Miranda • 53

independente, analisando informações, questionando suposições,


avaliando evidências e construindo argumentos sólidos. As rotinas de
pensamento oferecem formas diretas de sustentar os alunos na sua
investigação de problemas complexos fazendo perguntas,
estabelecendo ligações, apresentando explicações, desafiando essas
explicações e explorando perspectivas alternativas. A utilização de
rotinas de pensamento na sua sala de aula cultiva uma comunidade de
pensadores com uma cultura de pensamento que apoia os alunos e se
torna intencional na sua busca partilhada de uma compreensão
profunda.

METODOLOGIA

A rotina de pensamento a ser descrita foi desenvolvida como parte


da disciplina “Desenvolvimento do Pensamento Crítico Através da
Arte”, lecionada pela professora Débora Mariz na Faculdade de
Educação da UFMG e é baseada na concepção de Artful Thinking, sendo
capaz de estimular o pensamento crítico de diversas maneiras. Esta
rotina foi elaborada para explorar livros de imagens, ou seja, obras de
literatura infantil cuja narrativa se dá principalmente através de uma
sequência de ilustrações. Contudo o foco da rotina não é apenas o
público infantil, mas também se estende às demais idades, visto que a
análise de livros infantis a partir do adulto também é importante para
explorar as possíveis vivências que a literatura pode proporcionar.

Define-se, então, livro-imagem como um livro com imagens em sequência


e que conta uma história, geralmente selecionando uma situação, um
enredo e poucos personagens. Constitui-se como uma narrativa visual, que
aproxima duas condições básicas para sua realização: a dimensão temporal
(sequência linear das imagens) e a dimensão espacial (a lógica de
54 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

organização espacial dos elementos que compõem as imagens). A


possibilidade de o livro de imagens poder contar uma história, de penetrar
no mundo do encantamento, faz o tempo do real e da magia conviverem,
por exemplo, na mesma página, podendo alterar a lógica temporal e
espacial, tudo isso apenas através das imagens. Os códigos imagéticos (como
as cores, o traço, o volume, a posição dos objetos na página, entre outros)
dão destaque à narrativa, por isso é que se diz que podemos “ler imagens”.
E essa leitura não precisa ser simplificada, presa apenas ao enredo, porque
a imagem não diz tudo, como alguns ainda pensam. Ela não é somente
descritiva, colada à realidade exterior, usada como uma referência da
existência dos objetos, mas semanticamente enriquecida para dar às
condições de leitura um tempo de reflexão, um espaço de maturação de
sentidos. O livro de imagens não precisa explicitar todos os sentidos, mas
convida, com seus implícitos e suas metáforas visuais, o leitor a pensar,
confiando na sua capacidade leitora (Belmiro, 2011).

A escolha desse tipo de obra foi guiada por sua riqueza pedagógica,
um livro de imagens proporciona uma ampla experiência estética e
literária, possibilitando o diálogo entre múltiplas perspectivas. Deve-se
salientar que esta atividade, apesar de ter sido pensada a partir de um
livro escrito para o público infantil, não é uma proposta que se aplica
exclusivamente a crianças, como a princípio possamos entender, tanto
que foi aplicada em grupos compostos por adultos como base para o
presente relato. Dito isso, seguem as instruções para a realização da
rotina:

INSTRUÇÕES PARA A ROTINA

Observação: Comece observando cuidadosamente as ilustrações do


livro, prestando atenção nas cores, formas e padrões presentes nas
imagens.
Julia Maria Xavier Leite; Sarah Carvalho Saturno Miranda • 55

Descrição: Faça anotações sobre os elementos visuais que você


observou. O que chama sua atenção?
Análise: Analise os elementos que você descreveu. Pense em como
eles se relacionam entre si e como esses elementos trabalham juntos
para criar um enredo.
Interpretação: Reflita sobre o que as ilustrações sugerem sobre a
história. Qual é a mensagem subjacente?
Conexões: Faça conexões sobre a obra. Em quais aspectos a obra se
relaciona com suas vivências?
Exploração: Use sua criatividade para criar um final alternativo
para a história. Faça como o autor e represente os personagens e
eventos de uma maneira única e criativa através da arte.
Comunicação: Compartilhe suas ideias com os colegas.

A primeira etapa da rotina é a observação cuidadosa. Isso envolve


prestar atenção aos detalhes e refletir sobre o que é contemplado. Esse
processo requer habilidades de observação e compreensão ativa, o que
ajuda a desenvolver a capacidade de observar o mundo ao redor de
forma analítica.
A análise dos elementos individuais da obra é uma etapa crítica na
rotina de pensamento, uma vez que envolve a habilidade de avaliar
informações e identificar padrões, requisitos essenciais para o
desenvolvimento do pensamento crítico.
As etapas de interpretação e conexão se relacionam às capacidades
de fazer suposições sobre o significado da obra e avaliar se ela está
transmitindo a mensagem pretendida. Isso requer a disposição de
avaliar e interpretar informações, identificando possíveis significados
56 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

e conexões subjacentes, além da habilidade de transferência, esta


demanda um pensamento crítico e criativo capaz de identificar
semelhanças e diferenças entre a obra e o mundo pela perspectiva do
leitor.
A última etapa da rotina envolve a exploração e estimula a
criatividade e a inovação, bem como a inclinação para desenvolver
soluções criativas para problemas.
O material que inspirou essa etapa do trabalho foram as rotinas
“What Can Be?” 3 e “Slow Complexity Capture” 4, elaboradas pelo Project
Zero, da universidade de Harvard, cujo objetivo é exercitar a
criatividade e a imaginação, bem como encorajar a exploração de
possibilidades através do desafio de criar ou aprimorar um
instrumento.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Tivemos a oportunidade de aplicar e vivenciar a experiência da


rotina desenvolvida em diferentes contextos: primeiramente em sala de
aula, com alunos de graduação que compunham a turma da disciplina
“Desenvolvimento do Pensamento Crítico Através da Arte”, tachado em
outro momento, no núcleo familiar de uma das autoras. Optamos por
trabalhar obras literárias diferentes em cada uma das experiências, com
o objetivo de validar a capacidade de adaptação da rotina.
A turma mencionada era composta por aproximadamente 15
alunos, todos adultos, dentro de uma ampla faixa etária. Antes de iniciar
a atividade, organizamos a sala disponibilizando materiais de arte para

3
Disponível em: https://pz.harvard.edu/resources/slow-complexity-capture
4
Disponível em: https://pz.harvard.edu/resources/what-can-be
Julia Maria Xavier Leite; Sarah Carvalho Saturno Miranda • 57

a fase de Exploração, na qual os alunos devem ilustrar um final


alternativo para a obra escolhida e, além disso, explicamos o propósito
da experiência e como ela seria aplicada. Os estudantes demonstraram
interesse e entusiasmo, o que contribuiu para um ambiente propício ao
aprendizado e à participação ativa.
A primeira etapa consistiu em exibir a obra escolhida, o livro de
imagens A Luzinha Curiosa, do autor Roberto Caldas, que tem como
personagem principal uma luz misteriosa que viaja por lugares
diferentes conhecendo outros seres e encontra um semelhante com o
qual se identifica, a obra apresenta uma visão poética da busca e do
encontro e a narrativa é construída de forma a aguçar a curiosidade do
leitor. Ocultamos o final da história, de modo que os alunos pudessem
desenvolver o próprio final e trabalhar sua criatividade sem
interferência. Logo em seguida, disponibilizamos as instruções da
rotina e demos espaço para os estudantes desenvolverem seu trabalho.
Durante essa fase, circulamos pela sala, observando o progresso dos
alunos, tirando dúvidas e fornecendo orientações sempre que
necessário.
Ao final da atividade, os alunos apresentaram seus resultados para
toda a turma, a criatividade empregada nos trabalhos produzidos
trouxe muitas perspectivas e interpretações que superaram a obra
original. Apresentamos abaixo algumas obras produzidas nessa
prática 5:

5
Os participantes autorizaram o uso das imagens e não serão identificados neste relato.
58 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.


Julia Maria Xavier Leite; Sarah Carvalho Saturno Miranda • 59

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.


60 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.


Julia Maria Xavier Leite; Sarah Carvalho Saturno Miranda • 61

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.

Como citado anteriormente, a rotina também foi aplicada no


núcleo familiar de uma das autoras, composto também por adultos. Para
realizar a dinâmica foram feitas algumas mudanças como a escolha da
obra e a adaptação ao público. Dessa vez, foi utilizado o livro AKIKÓ, de
Regina Miranda. O livro narra visualmente a história de um ovo de ave
que, após um acidente no ninho, eclode em um ambiente desconhecido.
Durante o momento de observação das imagens, o público fez
alguns comentários e criou hipóteses em relação ao caminho que a
narrativa tomaria. Além disso, eles também perceberam uma relação
intertextual entre a história lida e o conto O patinho feio, de Hans
Christian Andersen.
Nas fases de análise e exploração foi particularmente interessante
observar a distinção entre as reflexões realizadas e os desafios
enfrentados por cada um, além da reação nostálgica de adultos ao terem
que interromper sua rotina para realizar uma atividade pedagógica
tradicionalmente infantil, envolvendo uma produção artística, o que
não faz parte de seus hábitos. Segundo eles, foi um momento divertido,
em que tiveram a oportunidade de interagir e se envolver na tarefa de
criar um fim para a história.
62 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

Ao final da dinâmica, eles compartilharam suas ideias e reflexões


e relacionaram a obra às experiências vividas por eles, ambos
comentaram sobre situações de preconceito vivenciadas e sobre como
seria possível abordar esse assunto com crianças através desta obra.
Após a fase de comunicação, o final original da história foi exibido.
Ambas as experiências de aplicação das rotinas - em sala de aula e
no ambiente doméstico - mostraram-se proveitosas em diversos
sentidos. A aplicação da rotina de pensamento no ambiente doméstico
mostrou-se mais específica, pois ao ser aplicada com menos pessoas,
priorizou-se as individualidades e percepções de cada um. Já em sala de
aula, foi possível perceber que a presença do coletivo contribui nos
processos de análise e pensamento crítico, de forma a possibilitar maior
socialização, contudo, não é possível contemplar as especificidades de
cada reflexão, focando assim mais no grupo do que no individual. Por
esse motivo, sugerimos fazer pausas entre as etapas da rotina para que
os participantes possam dialogar e trazer suas reflexões sobre cada fase.
Essa experiência em sala de aula reforçou a importância de criar um
ambiente de aprendizado estimulante e interativo, que promova a
comunicação entre os estudantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste trabalho identificamos aspectos relevantes e


complexos relacionados ao tema, os quais nos permitiram ampliar
nossa compreensão sobre o assunto. As diferentes abordagens adotadas
permitiram uma análise crítica dos resultados encontrados.
No entanto, vale ressaltar que este estudo apresenta algumas
limitações, as quais devem ser consideradas em futuras aplicações. Tais
Julia Maria Xavier Leite; Sarah Carvalho Saturno Miranda • 63

limitações incluem a disponibilidade para trabalhar a atividade com


públicos ainda mais diversos e faixas etárias mais abrangentes.
Em futuras atividades, deve-se explorar mais a comunicação e o
diálogo entre os estudantes em cada uma das fases da rotina,
adaptando-a aos diferentes temas e necessidades da turma e a diversas
obras literárias. O processo de ensino-aprendizagem é contínuo, e
experiências como essa nos motivam como educadoras em formação a
buscar constantemente novas formas de enriquecer o aprendizado.
Esperamos que as informações apresentadas neste artigo possam ser
úteis para inspirar o uso da metodologia e promover o desenvolvimento
de novas rotinas de pensamento.
Gostaríamos de finalizar este trabalho citando uma experiência
vivida pela professora Claudia Pimentel durante sua pesquisa de
doutorado:

Maria folheava o livro e criava pequenas histórias. A cada página, terminava


a narrativa com a mesma fórmula: “Então, acabou a história”. Sônia, vendo
o que Maria fazia, começou a comentar comigo:
Sônia: Ela não está lendo, está só vendo as imagens.
Maria: Então, acabou a história.
Sônia: Não acabou, não. Continua na outra página.
Maria: Ela está apaixonada por ele. Se arrumou e colocou um
colar. Pronto, acabou a história.
Sônia: A história não acabou. Não.
Sônia: Tia, ela não está lendo, está só vendo. Não pode.
[Maria larga o livro. Sônia pega o livro de Maria, começa a ler
apontando para as ilustrações, e cria uma história que não
termina a cada página.]
Eu pergunto: Pode ler as imagens?
Sônia: Pode.
(Pimentel, 2011)
64 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

A experiência de Pimentel foi compartilhada no material “Livros


Infantis: Acervos, Espaços e Mediações” e é um exemplo de como as
imagens de um livro infantil podem fornecer uma preciosa experiência
literária, mesmo quando não acompanhado de uma narrativa verbal.
Podemos perceber que as crianças possuem sua própria compreensão
de uma história e demonstram estratégias para criar a própria
narrativa. Por esse motivo, atividades e projetos envolvendo livros
devem valorizar os conhecimentos de cada aluno e dar a eles a
oportunidade de desenvolver sua criatividade com autonomia, de forma
a ampliar a capacidade de análise, interpretação e inferência,
habilidades intrinsecamente ligadas ao desenvolvimento do
pensamento crítico.

REFERÊNCIAS

BELMIRO, Celia Abicalil. Glossário Ceale: Livro de imagens. Faculdade de Educação da


UFMG / Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEALE). Disponível em:
<https://www.ceale.fae.ufmg.br/glossarioceale/verbetes/livro-de-imagens>.
Acesso em: 27 jul. 2023.

BOWN, Claire. How to use “Slow Complexity Capture”: thinking routine to slow down
and explore objects. Thinking Museum. Disponível em:
<https://thinkingmuseum.com/2021/01/07/how-to-use-slow-complexity-capture-
thinking-routine-to-slow-down-and-explore-objects/>. Acesso em: 27 jul. 2023.

HARVARD SCHOOL OF EDUCATION. Project Zero, 2022. Disponível em:


https://pz.harvard.edu/who-we-are/about. Acesso em: 11 ago. 2023.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, Secretaria de Educação Básica. Livros infantis: acervos,


espaços e mediações. MEC: Brasília, 2016.

PIMENTEL, Claudia. Espaços de livro e leitura: um estudo sobre as salas de leitura de


escolas municipais da cidade do Rio de Janeiro. 2011. 264 f. Tese (Doutorado em
Educação) Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2011.
Julia Maria Xavier Leite; Sarah Carvalho Saturno Miranda • 65

RAMOS, Graça. A imagem nos livros infantis-caminhos para ler o texto visual.
Autêntica: Belo Horizonte, 2018.

TISHMAN, Shari; PALMER, Patricia, Artful Thinking: Stronger thinking and learning
through the power of art, 2006.
4
RELATO DE UMA AULA DE BIOÉTICA A RESPEITO DA
INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GRAVIDEZ COM
ROTINA DE PENSAMENTO
Daniel Melo Soares 1

Recentemente, na sessão do dia 04 de outubro de 2023, a Comissão


de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou uma Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) em que autorizava a venda de plasma
humano, ou seja, aproximadamente 55% do conteúdo de quando o
sangue é retirado. 2 Javier Milei, candidato à presidência da Argentina,
tem feito constantes menções em sua campanha a legalização da venda
de órgãos. 3 Passeatas “pró-vida” avolumam-se nas ruas, 4 tão logo a
ministra do STF, Rosa Weber, votou a favor da descriminalização da
interrupção voluntária da gravidez. 5 Todos esses temas, que inundaram
os noticiários nas últimas semanas, têm como pano de fundo a discussão

1
Graduando do Curso de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG,
danielmelo912@hotmail.com
2
PEC que libera venda de plasma humano é aprovada em comissão no Senado. Disponível em:
<https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2023/10/04/plasma-humano-pec-do-
plasma-senado-ccj-iniciativa-privada-sangue-hemobras.htm>. Acesso em: 9 out. 2023.
3
“Dinamitar” Banco Central, venda de órgãos e fim da educação obrigatória: as propostas
radicais de Javier Milei. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/08/15/dinamitar-
banco-central-venda-de-orgaos-e-fim-da-educacao-obrigatoria-as-propostas-radicais-de-javier-
milei.ghtml>. Acesso em: 9 out. 2023.
4
Bolsonaro culpa 8 de Janeiro por ato esvaziado contra o aborto em BH. Disponível em:
<https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2023/10/08/bolsonaro-culpa-8-de-
janeiro-por-ato-esvaziado-contra-o-aborto-em-bh.htm>. Acesso em: 9 out. 2023
5
FALCÃO, M. Rosa Weber vota para descriminalizar aborto até a 12a semana de gestação. Disponível em:
<https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/09/22/rosa-weber-vota-para-descriminalizar-aborto-ate-
a-12a-semana-de-gestacao.ghtml>.
68 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

ao redor da bioética. Tema geral esse que escolhi para a aplicação da


minha rotina de pensamento.
O tema e o público surgiram juntos. Tendo eu algum convívio com
graduandos da área da saúde reparei em suas falas a constante
reclamação da ausência da discussão e tematização sobre bioética.
Portanto, unindo os fatos recentes ao interesse, reuni um grupo de 9
pessoas, em sua maioria graduandos de áreas da saúde, e propus
apresentá-los a área. Contava no grupo uma médica recém-formada
(Alice), um graduando em medicina em seu penúltimo período
(Adriano), um graduando em fonoaudiologia no último período de curso
(Douglas) e três graduandas em fisioterapia, sendo duas no penúltimo
período (Laura e Lorena) e, a outra, já no último período (Aruana). Os
três alunos restantes eram: um graduando de arquitetura (Victor), outro
de física (Valdomiro) e o último de letras (André), que manifestaram
interesse tão logo ouviram falar sobre a aula. Segue abaixo uma foto da
reunião retirada e utilizada com o consentimento de todos: 6

Fig. 1: Participantes da aula de bioética com rotina de pensamento (Arquivo Pessoal, 2023)

6
Perguntei aos alunos a melhor maneira de me referir a eles no relato e, visto o consenso ao redor da
utilização do primeiro nome e a autorização de todos, empreguei tais aqui e ao longo do texto. Os
termos de autorização dos participantes foram assinados e estão sob a guarda da organizadora do livro.
Daniel Melo Soares • 69

Dado o tema geral e o grupo, passei a buscar um tema específico.


Considerando o atraso do tema no Brasil em relação a outros países
(BIRCHAL, 2023) e a polêmica das últimas notícias, optei por tratar do
aborto ou, dito corretamente, da interrupção voluntária da gravidez. A
primeira referência que me surgiu tratou-se da filósofa brasileira, vinda
da UFMG, Telma Birchal e a segunda, a obra de arte, primeiro tive a vaga
impressão de já ter visto o tema sendo tratado pela artista mexicana
Frida Kahlo, impressão essa que se confirmou verdadeira nas pesquisas
preliminares para a aplicação da rotina.

ROTINA DE PENSAMENTO APLICADA E OBRA DE ARTE

A rotina de pensamento aplicada foi Vejo, Penso, Pergunto, (VPP)


levemente modificada pela rotina Pensar, Sentir, Preocupar-se (PSP). 7 A
rotina VPP recomenda que três perguntas sejam feitas, são elas: (a) o
que vocês estão vendo? (b) o que vocês pensam/acreditam estar
acontecendo? (c) se pudessem fazer uma pergunta, ao quadro ou a
artista, qual pergunta fariam? o que desejam saber? Ela foi selecionada
por mim, pois, conhecendo o perfil do grupo, sabendo que muitos deles
não possuíam o costume de frequentar museus, galerias, exposições de
arte, etc., busquei instigá-los ao olhar atento e demorado a obra, as
nuances da pintura.
A rotina PSP visa fazer com que os alunos possam se colocar, talvez,
assumir momentaneamente, os valores e emoções vindas de uma outra
perspectiva ou posição em dada situação. As perguntas norteadoras
dessa rotina, são: (a) Como a pessoa em questão compreende esse
sistema e seu papel dentro dele? (b) Qual é a resposta emocional que a

7
Para mais informações sobre ambas as rotinas, ver referências.
70 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

pessoa tem acerca do sistema e de sua posição nele? (c) Quais são os
valores, prioridades e motivações dessa pessoa em respeito ao sistema?
O que é importante para essa pessoa?
A modificação feita na rotina VPP, inspirada na rotina PSP, foi o
acréscimo de uma pergunta: como se sente a mulher ao centro do
quadro? ou quais emoções sentiram ao observar a pintura? Com essa
pergunta busquei fazer com que os alunos se sensibilizassem com a cena
retratada, com a mulher ao centro da pintura e toda sua vida orbitando
ao redor da cama de hospital onde, supostamente, ocorreu o aborto. A
versão modificada de VPP seguiu a seguinte ordem: (a) o que vocês estão
vendo? (b) como se sente a mulher ao centro do quadro? ou quais
emoções sentiram ao observar a pintura? (c) o que vocês
pensam/acreditam estar acontecendo? (d) se pudessem fazer uma
pergunta, ao quadro ou a artista, qual pergunta faria? o que desejam
saber?
A pintura em questão é a seguinte:
Daniel Melo Soares • 71

Fig.2: Hospital Henry Ford, Frida Kahlo (ver bibliografia)

Tal pintura foi escolhida por tematizar, diretamente, o tema


proposto da aula e por representar variados elementos que entraram no
turbilhão existencial de Frida quando teve a decisão pela interrupção da
gravidez. A ênfase nos variados elementos existenciais ilustra o
argumento ao qual pretendia demorar mais longamente na aula, ou seja,
o argumento que afirma que há um apagamento sistemático da mulher,
da experiência de ser tornar (ou não) mãe, no debate acerca da
interrupção. Argumento esse elaborado por Telma Birchal (2023), que
será melhor desenvolvido na próxima seção.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Três foram as fontes principais para a fundamentação teórica da


aplicação da rotina: (a) Peter Singer em seu livro Practical ethics (2011),
(b) a entrevista dada por Telma Birchal ao canal do YouTube Filosofia
Acadêmica (2023), (c) Miranda Fricker em seu livro Injustiça Epistêmica
(2023).
Do livro Practical ethics (2011), retirei 5 argumentos. Sendo 2 contra
o aborto e 3 a favor da legalidade do aborto, mas, não a favor de sua
moralidade. Vejamos abaixo esses argumentos:

Argumentos contra o aborto:


1) Primeira premissa: É errado matar um ser humano inocente.
Segunda premissa: Um feto humano é um ser humano inocente.
Conclusão: Portanto, é errado matar um feto humano.
2) Primeira premissa: É errado matar um ser humano em potencial.
Segunda premissa: Um feto humano é um ser humano em potencial.
72 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

Conclusão: Portanto, é errado matar um feto humano.

Argumentos a favor do aborto (apenas de sua legalidade e não de


sua moralidade):
1) O aborto ser ilegal não faz com que as mulheres não abortem, pelo contrário,
apenas faz com que elas recorram a meios ilegais para tal. Sendo assim, o
aborto é uma questão de saúde pública. Logo, uma questão política.
2) O estado não deve interferir na vida do indivíduo, ou seja, em seus planos,
relações, sexualidade etc. Logo, ele não deve intervir sobre as decisões das
mulheres sobre interromper ou não a gravidez.
3) Ainda que o feto seja um ser humano, ou um ser humano em potencial, nada
obriga moralmente a mulher a ajudá-lo. Esse argumento é defendido através
do experimento mental de Judith Thomson:

Imagine, diz ela, que você acorda uma manhã e se encontra em uma cama
de hospital, de alguma forma conectado a um homem inconsciente em uma
cama adjacente. Disseram-lhe que este homem é um famoso violinista com
doença renal. A única maneira de ele sobreviver é conectar seu sistema
circulatório ao sistema de outra pessoa com o mesmo tipo sanguíneo, e você
será a única pessoa cujo sangue é adequado. Então, uma sociedade de
amantes da música sequestrou você, realizou a operação de conexão e aí
está você. Como você está agora em um hospital respeitável, você pode, se
quiser, pedir a um médico que o desconecte do violinista; mas o violinista
certamente morrerá. Por outro lado, se você permanecer conectado por
apenas (apenas?) nove meses, o violinista terá se recuperado e você poderá
ser desconectado sem colocá-lo em perigo (Singer, 2011, p.132)

Retirei, da entrevista (2023), 1 argumento que ataca os 5


argumentos anteriores e que se coloca a favor do aborto tanto em sua
legalidade como em sua moralidade, considerando o contexto. Do livro
Injustiça Epistêmica (2023) retirei uma premissa adicional para o último
argumento a ser considerado, sendo a premissa a seguinte: o debate
sobre a interrupção voluntária da gravidez, ao se dar sem considerar a
Daniel Melo Soares • 73

existência da mulher e sim, apenas em consideração ao embrião, sobre


o início da vida humana, ou sobre os direitos do feto em contraposição
aos da mãe, constitui uma injustiça hermenêutica. Ou seja, retira do
grupo imediatamente ligado e interessado ao tema, a possibilidade de
formular as questões em seus próprios termos. Vejamos abaixo o
argumento da Telma Birchal, acrescido do conceito de injustiça
hermenêutica de Fricker (2023):
Argumento a favor do aborto (de sua legalidade e moralidade):
Segundo Telma Birchal, os próprios termos em que se dá o debate,
as críticas e defesas do aborto, estão colocadas em termos equivocados.
O foco no embrião e na questão de quando começa a vida humana, apaga
a existência da mulher da consideração. O foco nos direitos da mulher,
pode levar a uma disputa onde ela e o feto se veem em um cabo de guerra
de direitos. Por essa razão, devemos preferir o termo “interrupção
voluntária da gravidez” ao invés de aborto, pois, evidencia-se que há
uma ação voluntária, vinda de uma mulher. Somado a isso, vários outros
aspectos contextuais e existenciais entram em questão na decisão da
mulher e na decisão sobre a moralidade de sua interrupção voluntária
da gravidez.
Elas, as mulheres, nunca apelam para justificar a interrupção o
estatuto da existência de um ser humano, não veem o feto como alguém
com que se está disputando judicialmente, mas sim, fazem
considerações como: “eu e meu parceiro não estamos prontos para tal”,
“ficar grávida agora pode atrapalhar o cuidado aos meus outros filhos”,
“...pode atrapalhar meus planos (profissionais, íntimos, afetivos, etc.)”,
“meu marido é muito infantil”, “tenho uma doença hereditária x…”, etc.
O foco no embrião e no início da vida humana, ou o foco no cabo de
74 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

guerra entre feto e mulher, apenas apagam essas considerações,


levando a uma injustiça hermenêutica. O grupo ao qual diz respeito o
tópico é silenciado, é impedido de formular o tema em seus próprios
conceitos.
Trata-se então de mudar os conceitos do debate. A gravidez passa
a ser compreendida como uma relação, entre mulher e feto, e assim
como toda relação humana, pode assumir inúmeras formas e
configurações, pode despertar dos mais variados afetos e reações.
Utilizando outros termos e conceitos para pensar a interrupção
voluntária, evitamos o apagamento sistemático da mulher do tema e
temos a chance de formulá-lo de maneira com que sejam ouvidas e
colocadas em primeiro plano.

RELATO DA APLICAÇÃO

Apliquei a rotina de pensamento esboçada acima no domingo dia


08 de outubro de 2023. Combinei com os alunos/convidados às 16:00 h,
porém, esperando que mais alguns deles chegassem, comecei a
aplicação por volta de 16:20 h. Concluí às 17:40 h.
Comecei explicando a razão de os convidar, o tema geral da aula, o
tema específico e a importância dele. Após tal, exibi a pintura no meu
notebook a uma distância em que todos pudessem ver. Também,
imprimi em tamanho A3 a pintura escolhida e deixei passar por entre
eles, para que pudessem observar o quanto quisessem. Dei
aproximadamente 3 minutos para que observassem a pintura até que fiz
a primeira pergunta: (a) o que vocês estão vendo? Pedi para que
escrevessem em um papel ao menos 6 elementos da pintura que por
acaso tenham chamado a atenção. As respostas, no geral, apelavam para
Daniel Melo Soares • 75

um dos objetos expostos no quadro, ou para a mulher e o feto, ou para o


cenário ao fundo, prédios e casas. Os laços também foram largamente
reparados. Chamou-me a atenção que apenas as mulheres citaram o
sangue na cama em suas respostas.
Passei, então, a segunda pergunta: (b) como se sente a mulher ao
centro do quadro? ou quais emoções sentiram ao observar a pintura? As
respostas giraram em torno de: tristeza, solidão, dor. Apenas dois
rapazes (Victor e Valdomiro) falaram emoções diferentes dessas, sendo
elas: morbidez, falta de perspectiva e nojo. A lágrima no rosto da mulher
ao centro da pintura teve papel crucial nesse momento.
Na terceira pergunta: (c) o que vocês pensam/acreditam estar
acontecendo? Houve maior hesitação. Nem todos falaram e, portanto,
precisei pedir. A interpretação mais destoante do quadro veio do Victor
que afirmou ser uma produção industrial de bebês. Ele foi levado a
pensar isso por observar e compreender o fundo da pintura como uma
fábrica. A interpretação geral dos demais foi de que a mulher havia
acabado de perder o bebê e se encontrava em uma situação de
isolamento, desconforto e dor, em que muitos elementos vinham a
acompanhar. Essa interpretação mais comum teve pequenas variações.
Aruana afirmou que a mulher estava entre objetos, sentindo-se
objetificada, tratada como uma coisa entre outras, sem saber se apegava
ou soltava os laços. Laura afirmou, depois de dizer que não era boa com
arte, nem com filosofia, que os objetos orbitando a cama da mulher a
oprimiam e não estavam ali por vontade mas, sim, antes, por imposição.
Alice afirmou que tratava-se de uma experiência vivida, onde a biologia
compunha uma parte, mas era apenas uma das partes, não a mais ou
menos relevante. Ela relatou ainda que ela estava longe, isolada, e que
76 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

aquela conjunção de objetos só se dava por ser uma experiência singular


e quase incompreensível para quem estivesse de fora, para quem
estivesse ao longe na cidade.
Após tal, passei a quarta parte: (d) se pudessem fazer uma
pergunta, ao quadro ou a artista, qual pergunta faria? o que desejam
saber? A maior parte das perguntas foi direcionada ao quadro e
questionavam sobre os sentimentos da mulher ao centro, se já haviam
passado, como foi viver tudo aquilo, etc. Lorena perguntou à mulher no
quadro se, hoje, estaria tudo bem, se ela conseguiu sair bem daquela
situação. Laura perguntou diretamente à pintora sobre o real
significado do quadro, sobre o que ela realmente quis dizer/transmitir.
Alice perguntou se a mulher estava segurando ou soltando os laços. E
por fim, Victor, perguntou porque um hospital especificamente em
Detroit.
No restante do tempo, optei por uma aula dialogada onde exibia os
slides, lia os argumentos e comentava eles, ouvindo impressões,
críticas, etc. Apresentei assim os 5 argumentos listados acima vindo de
Singer (2011). Surgiram boas questões e foi notável a diferença nas
expressões faciais daqueles que não eram tão favoráveis a legalidade do
aborto. Ficaram sérios. Trava-se, em especial, do Adriano e do
Valdomiro.
Caminhando para o final, resgatei algumas das discussões da
pintura e expus o argumento da Telma Birchal. Mostrei como o debate
sobre o aborto se dava apagando a experiência existencial, vivida, da
mulher, ora focando no embrião, ora focando no cabo de guerra entre
mulher e feto. Sendo esse apagamento feito mesmo naqueles
argumentos favoráveis à legalidade. Trouxe algumas imagens para
Daniel Melo Soares • 77

mostrar, também, como as mulheres são apagadas nas representações


sobre a gravidez, resultando ou em um “feto flutuante” sem lastro, ou
em, apenas, uma barriga:

Fig. 3: Print de tela da pesquisa do termo “gravidez” no Google. (Arquivo Pessoal, 2023)

Concluí expondo brevemente o conceito de injustiça hermenêutica,


da filósofa Miranda Fricker (2023).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após narrar como cheguei ao tema, a razão da escolha por


graduandos da saúde e a aplicação da rotina de pensamento e após ter
explicitado as referências teóricas utilizadas para a preparação da aula,
restam algumas observações finais. Os alunos, no geral, mostraram-se
empolgados com o tema ao final da aula e nos dias que se seguiram. Não
só a interrupção voluntária da gravidez ocupara suas falas, mas, logo
surgiram outros tópicos relacionados à bioética. Soma-se a isso a
constante reclamação de não possuírem, em seus respectivos cursos,
espaço para estudo e discussão de tais temas, sejam em disciplinas,
sejam em grupos de estudos etc. Apesar de pequena a amostra e
considerando que outros quatro alunos, também da saúde, também
convidados, faltaram por problemas pessoais e outros impedimentos,
78 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

parece haver um interesse não sanado em tratar de temas relativos à tal


campo filosófico. Por último, gostaria de observar que a obra de arte de
Frida e a aplicação da rotina de pensamento, sensibilizaram os alunos
para ouvir e estarem abertos aos argumentos. O caso mais marcante foi
de um dos rapazes que, previamente à aula, possuía opiniões contrárias
à interrupção e, posteriormente, apesar de não ter declarado
abertamente, mostrou-se aberto aos argumentos favoráveis e teve uma
considerável mudança em suas posições.

REFERÊNCIAS

BBC. “Dinamitar” Banco Central, venda de órgãos e fim da educação obrigatória: as


propostas radicais de Javier Milei. BBC News. São Paulo, 15/08/2023. Disponível em:
<https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/08/15/dinamitar-banco-central-
venda-de-orgaos-e-fim-da-educacao-obrigatoria-as-propostas-radicais-de-
javier-milei.ghtml>. Acesso em: 9 out. 2023.

BERALDO, A.; BIRCHAL, T. DE S.; MAYORGA, C. O aborto provocado: um estudo a partir


das experiências das mulheres. Revista Estudos Feministas, v. 25, n. 3, p. 1141–1157,
dez. 2017.

FALCÃO, M. Rosa Weber vota para descriminalizar aborto até a 12a semana de gestação.
TV Globo. Brasília, 22/09/2023. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/
noticia/2023/09/22/rosa-weber-vota-para-descriminalizar-aborto-ate-a-12a-
semana-de-gestacao.ghtml>.

FILOSOFIA ACADÊMICA. Ética da Interrupção da Gravidez com Telma Birchal |


Entrevistas Ao Vivo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UE6s-
23IKBo. Acesso em: 22 set. 2023.

FRICKER, M. Injustiça Epistêmica. Trad. Breno Santos. São Paulo: Editora da


Universidade de São Paulo, 2023.

FRIDA, Kahlo. El Abrazo De Amor De El Universo, La Tierra (México), Yo, Diego Y El


Señor Xólotl. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation,
2021. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=El_abrazo_de_
amor_de_El_universo,_la_tierra_(M%C3%A9xico),_Yo,_Diego_y_el_se%C3%B1
or_X%C3%B3lotl&oldid=62367830>. Acesso em: 22 set. 2023.
Daniel Melo Soares • 79

FRIDA, Kahlo. Henry Ford Hospital. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Flórida:
Wikimedia Foundation, 2023. Disponível em: https://en.wikipedia.org/w/
index.php?title=Henry_Ford_Hospital_(painting)&oldid=1170976937. Acessado
em: 22 set. 2023.

JORNAL ESTADÃO. Bolsonaro culpa 8 de Janeiro por ato esvaziado contra o aborto em
BH. Jornal Estadão, São Paulo, 08/10/2023, Caderno Cotidiano. Disponível em:
<https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2023/10/08/
bolsonaro-culpa-8-de-janeiro-por-ato-esvaziado-contra-o-aborto-em-bh.htm>.
Acesso em: 9 out. 2023.

PROJECT ZERO. See, think, wonder. Trad. Julia P. Andrade, Paola Ricci e Carmen Sforza.
Disponível em: <https://pz.harvard.edu/resources/see-think-wonder>. Acesso em:
2 nov. 2023.

PROJECT ZERO. Pensar, sentir e preocupar-se. Trad. Patrícia Agustí e María Ximena
Barrera. Disponível em: <https://pz.harvard.edu/resources/>. Acesso em: 2 nov.
2023.

SINGER, P. Practical Ethics. 3. ed. New York: Cambridge University Press, 2011.

SOBRINHO, W. P. PEC que libera venda de plasma humano é aprovada em comissão no


Senado. UOL. São Paulo, 04/10/2023. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/
saude/ultimas-noticias/redacao/2023/10/04/plasma-humano-pec-do-plasma-
senado-ccj-iniciativa-privada-sangue-hemobras.htm>. Acesso em: 9 out. 2023.
5
ARTE E PENSAMENTO NA ESCOLA PÚBLICA: UMA
EXPERIÊNCIA DE APLICAÇÃO DE “ROTINA DE
PENSAMENTO” DO PROJECT ZERO EM ESCOLA
PÚBLICA DE ENSINO MÉDIO DE BELO HORIZONTE
Luciana Telles Machado Da Silva 1

O presente relato versa sobre a minha experiência de aplicação em


sala de aula, na condição de residente, junto a alunos do 2.º ano do
Ensino Médio da E. E. Pedro II, de uma das “rotinas do pensamento”
desenvolvidas pelo Project Zero, da Harvard Graduate School of Education.
As “rotinas do pensamento” foram apresentadas aos residentes pela
Prof. Dr.ª Débora Mariz no início do Programa de Residência Pedagógica
(Edital 2022) por meio de práticas nas quais os residentes, na posição de
alunos, puderam experimentar e compreender esta que é uma
ferramenta de que dispõem professores para permitirem e fomentarem
o desenvolvimento do pensamento crítico a partir da interação dos
alunos com uma obra de arte, estimulando a capacidade de observação,
de descrição, de raciocínio com evidências, de questionamento e de
investigação. As “rotinas do pensamento” do Project Zero apostam na
centralidade do pensamento crítico no contexto educacional, na
importância do olhar atento e vagaroso de obras de arte nos processos
educacionais e em sua potência como método de ensino-aprendizagem.

1
Graduanda do Curso de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e integrante
voluntária do Programa de Residência Pedagógica (CAPES), lutellesm@uol.com.br
82 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

A escolha da experiência ora relatada se justifica em razão do que


se deu em sala de aula com a aplicação da “rotina de pensamento”
denominada Fazer Inferências. Tal “rotina do pensamento” envolve a
formulação de hipóteses por parte dos estudantes e a apresentação de
suas fundamentações, com forte protagonismo dos alunos, cabendo ao
docente que conduz a atividade apresentar as regras concernentes ao
tempo de experiência dos alunos com a obra de arte e com a formulação
de seus escritos; orientar os alunos no sentido de que devem organizar
no papel a escrita de uma hipótese sobre o que viam na obra de arte e,
necessariamente, a escrita de uma fundamentação para sua hipótese,
ambas apresentadas em voz alta pelos próprios alunos a seus pares, e;
eventualmente, esclarecer, se e quando necessário, sobre, e.g., a
distinção entre uma hipótese e uma fundamentação, sobre eventual
força ou fragilidade de uma fundamentação construída para uma
hipótese, ou mesmo explicar acerca do que é uma evidência a partir da
qual os estudantes poderiam fazer inferências.
Durante a aplicação da “rotina de pensamento”, os alunos se
surpreendiam com as hipóteses alheias e suas fundamentações,
passando a considerar o que não haviam imaginado, e até mesmo
reformulando, como ocorreu em determinado caso, a própria hipótese
e fundamentação após seu confronto com as hipóteses e
fundamentações apresentadas pelos colegas.
Uma “rotina do pensamento” se dá necessariamente em um
ambiente de forte protagonismo dos alunos, de espontaneidade do
pensamento e, sobretudo, da imaginação dos estudantes que a realizam
em razão, sobretudo, da natureza artística “aberta” do objeto que se
busca conhecer e entender (a obra de arte que observam). Portanto, a
Luciana Telles Machado Da Silva • 83

inutilidade de um planejamento minudente de aula que se pretenda


absolutamente cumprido e a estrutural impossibilidade deste integral
cumprimento se tornam evidentes em um tipo de prática de ensino-
aprendizagem com esta, que aponta para o que deveria ser a natureza
de uma aula: a de algo vivo, como um percurso cuja direção deve ser
igualmente definida pelas questões e perspectivas apresentadas pelos
alunos diante do que lhes é proposto, seja por uma exposição bem
preparada por um professor, seja pela imagem de uma obra de arte que
lhes é apresentada e que lhes mobiliza a curiosidade e a imaginação. Isto
porque, como identifica Cerletti (2004, p.39), “o limite de toda estratégia
didática é o surgimento do pensamento do outro”.
Este relato tem como objetivo analisar a importância do estímulo
à disposição de pensar dos alunos, à apresentação escrita e organizada
de seus pensamentos, ao exercício da formulação de hipóteses e da
construção de suas fundamentações e, sobretudo, à criticidade do
pensamento, a partir do exercício de análise das hipóteses e das
fundamentações do pensamento “do outro”, permitindo eventualmente
a reformulação das próprias hipóteses e dos argumentos que a
fundamentam.

A EXPERIÊNCIA DE APLICAÇÃO DA “ROTINA DE PENSAMENTO”

A aplicação da “rotina do pensamento” do tipo “Fazer inferências”


realizou-se em 31 de maio de 2023, na Escola Estadual Pedro II, em Belo
Horizonte, Minas Gerais, com uma turma do 2.º ano do Ensino Médio,
após o término da série de aulas sobre o período da Filosofia Helenista,
na transição para o período da Filosofia Medieval, o que ensejou a ideia
de a obra de arte escolhida para ser apresentada aos alunos ser O Jardim
84 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

das Delícias, de Hieronymus Bosch (c. 1450-1516). Esta obra é um tríptico


que apresenta dois jardins, o terreno e o Eden, e uma visão do inferno,
reservado aos que perseguem e se dedicam aos prazeres terrenos. Como
as ideias de jardim e de prazer (este último como um bem a ser buscado
ou evitado), estão presentes em escolas filosóficas helenistas (o “jardim”
ligado ao epicurismo e citado pelos estoicos, e o prazer ou a fuga dele,
ligado ao cinismo e ao estoicismo), pensou-se que a apresentação desta
obra de arte mobilizaria também ideias já visitadas pelos alunos,
potencializando as conjecturas que viessem a fazer com a atividade,
após analisarem as representações irreais e absurdas do tríptico.

Fig. 1: O Jardim das Delícias, 1500-05, óleo sobre madeira, painel central 220 x 195 cm,
painéis laterais 220 x 97 cm, Hieronymus Bosch, Museu do Prado, Madri.

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:The_Garden_of_Earthly_Delights_by_
Bosch_High_Resolution.jpg

A atividade foi conduzida conjuntamente pela residente e pela


Prof.ª Preceptora, que desenhou na lousa um quadro com os campos
“hipótese”, “argumentos” e contra-argumentos”. Dividiu-se a turma em
dois grupos devido ao grande número de alunos, entre trinta e quarenta.
Luciana Telles Machado Da Silva • 85

Os alunos foram informados de que deveriam se levantar de suas


cadeiras e se aproximar fisicamente, com os demais integrantes de seu
grupo, das duas lousas onde se encontravam, apoiadas, duas
reproduções de O Jardim das Delícias, em painéis de papel couché
brilhoso aplicado em papel-cartão paraná em tamanho de 84 cm X 47cm.
Os alunos se aproximaram das imagens e, por cerca de dez
minutos, observaram-nas. Em seguida, pediu-se aos alunos que
estabelecessem uma hipótese acerca do que eram aquelas
representações contidas na obra de arte, de modo escrito, para que
melhor se organizassem suas ideias, pois elas seriam apresentadas aos
demais. Neste momento, esta residente disse aos estudantes que não
havia uma resposta “correta” a ser dada, esclarecendo que o objeto de
arte não é “verdadeiro ou falso”, nem tem um significado apenas, pois o
sentido (ou a falta de sentido) que o indivíduo a ele confere integra a
própria experiência que ele tem com esse objeto de arte e esse indivíduo
nada pode dizer sobre o objeto de arte sem estar em uma experiência
com ele, sendo nesta experiência que o objeto de arte “acontece”.
Percebia-se que a ilogicidade de algumas figuras de Bosch instigou
a curiosidade da maior parte dos alunos, os quais se detiveram muito na
observação e discutiram com colegas sobre o que poderiam ser “aquelas
figuras”.
Um aluno com necessidades especiais, que, de regra, em provas e
em atividades, simplesmente abaixava a cabeça e fechava os olhos,
participou ativamente da atividade, chamando-me para me dizer qual
era a sua hipótese sobre as cenas que via ali e escrevendo em seu
caderno a sua hipótese e as razões de nela acreditar, apontando-me seus
escritos para que eu os lesse.
86 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

Outra aluna, também pessoa com necessidades especiais, que em


suas intervenções em aulas de filosofia anteriores já havia evocado
passagens bíblicas, chamou-me, depois de pouco tempo passado do
início da atividade, antes de que qualquer outro aluno houvesse falado
algo semelhante, e disse-me, apenas oralmente, que sua hipótese era a
de que: à esquerda, havia o Eden, com Deus criando Adão e Eva; no meio,
os seres humanos estavam se entregando aos pecados; e, na terceira
parte da obra, os seres humanos estavam no inferno em razão dos
pecados que cometeram.
Nesta fase de escrita das hipóteses de modo separado de sua
fundamentação, notava-se que muitos alunos não compreendiam muito
bem a diferença entre sua hipótese e os argumentos que a sustentavam
e alguns outros estudantes confundiam uma hipótese com uma opinião
sem fundamentação, apresentando-me uma hipótese escrita no
caderno e perguntando-me se tinham de dizer por que pensavam isso
ou mesmo diziam-me que não sabiam por que pensavam aquilo.
Após o momento de escrita, no caderno, de hipóteses e de suas
respectivas fundamentações, estabeleceu-se um tempo para que as
hipóteses fossem lidas em voz alta a todos em sala e fossem colocadas
na lousa pela Prof.ª Preceptora. Com o encerramento desta fase, foi
concedido um tempo para que os estudantes fizessem críticas
fundamentadas às hipóteses dos colegas.
O aluno Rafael 2, que costumava ser bem participativo em aulas, ao
se manifestar no momento de contra-argumentar, apresentou uma
nova hipótese não apresentada por ninguém, tendo a Prof. Preceptora
lhe esclarecido que ele teria de, naquele momento, apresentar um

2
Os nomes dos alunos citados nesse relato são fictícios para preservar a identidade deles.
Luciana Telles Machado Da Silva • 87

contra-argumento às hipóteses já levantadas, trabalhando a partir das


teses já apresentadas pelos colegas na etapa anterior da dinâmica.
Parecia que Rafael não tinha compreendido bem como fazer uma
contra-argumentação, talvez por confundi-la com uma argumentação
na defesa de sua própria hipótese.
Esta falta do domínio dos conceitos de hipótese, argumentação e
contra-argumentação parecia acometer outros alunos também, embora
a Prof. Preceptora lhes houvesse oralmente explicado muito bem tais
conceitos ao início das atividades, o que pode indicar que os alunos
podem não os ter exercitado antes, em outras aulas, de forma escrita e
organizada, de modo que deles pudessem se apropriar, fosse em
Filosofia ou em outras disciplinas que demandam argumentação.
Com efeito, notou-se que, ao longo das aulas expositivas de
filosofia ministradas ao longo do semestre letivo pela Prof. Preceptora,
anteriores e posteriores à aula de aplicação da “rotina do pensamento”,
os estudantes eram pouco convocados a elaborarem uma informação
que lhes era apresentada e a correspondente explicação que lhes era
dada, havendo raríssimos trabalhos escritos a serem realizados e
entregues pelos alunos e nenhum “dever de casa” para ser corrigido, em
sala, na aula seguinte.
Uma contra-argumentação, portanto, talvez fosse um passo difícil
demais para quem não praticava a argumentação, pois a contra-
argumentação envolvia o cotejamento de um pensamento organizado,
que não se exercitava, com o pensamento organizado de um “outro”,
mais especificamente em um confronto. Esta parece ter sido a maior
disfuncionalidade que identifiquei, ao longo minha residência
pedagógica naquela que, até o momento, é considerada uma das escolas
88 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

públicas de ensino médio de melhor qualidade em Belo Horizonte e que


é referência para a Secretaria de Educação do Governo de Minas Gerais.
Sem a efetiva elaboração pelos alunos, por escrito, de um
pensamento organizado a partir de conceitos que lhes sejam
apresentados em aula pelos professores e sem sua consequente
apropriação pelos estudantes, com exercícios, para integrarem o seu
próprio conjunto de ideias de que possam lançar mão para construírem
os seus juízos sobre o mundo, onde poderão confrontá-los com os juízos
“do outro”, exercitando criticidade, não há como construírem a própria
autonomia, principal objetivo da escola pública de qualidade prometida
na Constituição brasileira.
Foi sintomático observar que uma das maiores dificuldades de
muitos estudantes do ensino médio da Escola Estadual Pedro II era a de
não saberem como estudar para as provas, já que praticamente não se
usava o livro didático na disciplina, não havia textos avulsos de
referência fornecidos e trabalhados em aula com os alunos sobre os
quais versassem as provas (houve apenas uma leitura de um fragmento
de texto, de alguma complexidade, feita somente pela professora) e as
anotações feitas na lousa pela professora que constavam da maioria dos
cadernos eram, como haveriam mesmo de ser, esquemáticas e
resumidas.
Ainda sobre a aplicação desta “rotina do pensamento”, houve um
momento interessante na dinâmica em que a Professora Preceptora
explicou aos alunos que um contra-argumento, isto é, um “ataque
fundamentado” à hipótese do outro, poderia fragilizar esta hipótese
confrontada ou, caso o “ataque fundamentado” fosse bem “respondido”,
poderia fortalecer ainda mais a hipótese atacada.
Luciana Telles Machado Da Silva • 89

O aluno Moisés havia, antes desta explicação da Profª Preceptora,


colocado a hipótese de que o quadro representava uma guerra, pois
viam-se armas e a destruição da cidade e, em guerras, estes dois
elementos estavam presentes. Em seguida, o aluno “Gil” discordou de
sua hipótese, argumentando que havia armas e destruição da cidade em
apenas uma das três partes do quadro e não podia se tratar de uma
guerra porque o quadro era um só e uma guerra teria de ocupar todo o
quadro, em suas três partes, e não apenas uma terça parte dele. O aluno
“Gil”, após apontar o que acreditava ser a fragilidade da hipótese do
aluno Moisés, declarou aderir à hipótese da aluna Lorena (que terminou
não sendo colocada pela Prof. Preceptora na lousa por já haver outras
três hipóteses ali), para quem os três “lugares” que havia na obra seriam,
o jardim de Adão e Eva, a vida dos seres humanos na Terra e o inferno,
nesta ordem.
Então, o aluno Moisés viu uma “porta aberta” na fala da Prof.ª
Preceptora sobre o fortalecimento das hipóteses a partir das contra-
argumentações contra elas lançadas por outros colegas: ele levantou a
mão e perguntou se podia reformular sua hipótese, ao que lhe foi
respondido “claro que sim”. O aluno Moisés, em seguida, disse que sua
hipótese passaria a ser a de que o quadro representava três “lugares”,
que seriam o jardim de Adão e Eva, a vida dos seres humanos na Terra e
uma guerra que acontecia no inferno, nesta ordem, e sorriu, buscando
nos olhos da Prof.ª Preceptora, da residente e dos colegas o
reconhecimento de que sua hipótese havia resistido e ficado mais forte.
Ali, naquele momento, pareceu-me, o processo de ensino-
aprendizagem para a autonomia começava a acontecer.
90 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

Fig.2: Lousa na qual foram colocadas algumas das hipóteses apresentadas pelos alunos e
onde ficou apoiada uma das placas de papel-cartão com uma reprodução da obra de arte.

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.

Fig. 3: Lousa na qual foram colocadas algumas das hipóteses apresentadas pelos alunos e as
contra-argumentações contra elas lançadas.

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.


Luciana Telles Machado Da Silva • 91

Fig. 4: Momento de observação da reprodução da obra por alunos para ilustrar como os
alunos saíram de suas carteiras para se aproximarem fisicamente da imagem (os alunos da
fotografia abaixo foram de uma turma diversa da escolhida para o presente relato de
experiência, pois, por lapso, perdi o momento de registrar, por fotografia, a observação dos
alunos da turma escolhida para este relato em razão de os estar acompanhando e
respondendo dúvidas sobre a atividade no exato momento desta observação)

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência de ensino-aprendizagem neste trabalho relatada,


por envolver a utilização de uma reprodução física de uma obra de arte,
que deveria ser observada de perto pelos alunos, retirando-os de suas
carteiras e do ambiente digital do qual não se separavam nem mesmo
durante as aulas, demonstrou que a arte é um potente mobilizador da
livre imaginação na produção de hipóteses sobre o significado de
representações, as quais, nesta prática, por serem cotejadas com
diversas outras hipóteses, precisavam de boas fundamentações para
92 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

que recebessem a adesão de um número grande de alunos, tal como se


dá na vida, na qual os grupos humanos constroem ou buscam construir
uma convergência acerca do real.
O entusiasmo de muitos estudantes para a formulação de hipóteses
sobre algo que não tem uma utilidade prática em suas vidas evidencia a
ajuda mútua que arte e pensamento se proporcionam, pois muitos dos
alunos desejaram observar vagarosamente a obra cheia de figuras
estranhas para entenderem “afinal, o que é isto” e convencerem os
demais da “verdade” daquilo que sustentavam, o que parece ter sido
facilitado pelo objeto de arte, que não pretere, a princípio, diversos
significados em favor de um só, como outros processos da razão
humana, fora do contexto da arte, fazem.
Contudo, na fase da aplicação da atividade em que os alunos
tiveram de organizar seu pensamento, por escrito, discriminando uma
hipótese de sua fundamentação, construindo uma fundamentação
capaz de resistir ao questionamento de seus pares, grande parte dos
estudantes mostrou-se sem recursos para fazê-lo por não terem
familiaridade com esta prática.
O acompanhamento de todo o semestre letivo por esta residente
permitiu observar que os alunos, nas aulas que precederam e sucederam
a experiência relatada, eram pouco convocados a elaborarem, por
escrito, uma descrição de algo que lhes tivesse sido apresentado e uma
explicação acerca das circunstâncias em que este algo havia acontecido.
Tampouco houve leitura, fosse em casa ou em sala de aula, feita pelos
próprios alunos de qualquer passagem escrita. Não existiram,
igualmente, atividades de elaboração em casa do que era discutido
oralmente em sala de aula, i.e., “deveres de casa” ou “para casa”. Havia o
Luciana Telles Machado Da Silva • 93

predomínio quase completo da oralidade, tanto em relação às aulas


expositivas (à exceção dos esquemas e pequenos resumos escritos na
lousa) quanto em relação às atividades realizadas pelos alunos. Até
mesmo as únicas provas, aplicadas bimestralmente, tinham a ampla
maioria das questões em forma de múltipla escolha.
Esta falta de prática de argumentação escrita entre os alunos pela
ausência de solicitação do docente, também observada em outro campo
de estágio em que esteve esta residente no ano anterior, constitui um
óbice à promoção da criticidade do pensamento do estudante, uma vez
que, não sendo o aluno convidado a apresentar seu entendimento acerca
das coisas do mundo a um “outro”, inviabiliza-se que haja um
questionamento formulado por um “outro” acerca da “verdade” ou do
“acerto” do que o aluno pensa, restando o seu primeiro pensamento
sobre o que está à sua volta inerte, sem qualquer reformulação
provocada pelo encontro com o pensamento alheio.
É no encontro com o pensamento do outro que se estabelece a
filosofia e, para que os alunos da escola pública pratiquem a habilidade
da argumentação e da contra-argumentação, é preciso que realizem,
com certa constância, práticas de pensamento escrito (redações e/ou
respostas a perguntas), com organização de ideias, identificando
relações de causa-consequência, continente-conteúdo, as modalidades
possibilidade-impossibilidade etc.
Com estas habilidades desenvolvidas, a espontaneidade das
argumentações dos alunos esperada durante uma “rotina de
pensamento” com uma obra de arte integrará também as aulas
expositivas, que passariam a ser efetivamente dialogadas,
estabelecendo-se o espaço de encontro com o pensamento “do outro”,
94 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

i.e., uma aula viva, na qual a implementação de um planejamento de aula


absoluto é, e deve ser, impossível. O planejamento de aula do professor,
portanto, dever ser feito, e bem-feito, para ser superado porque o
professor não dá sozinho uma aula de filosofia, mas o faz com seus
alunos (Cerletti, 2004, p.37), que precisam, portanto, se tornar aptos à
criticidade e à autonomia.

REFERÊNCIA

CERLETTI, A. A., Ensinar filosofia: da pergunta filosófica à proposta metodológica. In:


KOHAN, W (org.) Filosofia: caminhos para seu ensino. Rio de Janeiro, DP&A, 2004,
pp. 19 a 42.
MASSINHA, PAPEL E TESOURA: DESENVOLVENDO
6
HABILIDADES COM A CONSTRUÇÃO DE MAQUETES
Tawan Luis da Silva 1
Viviane de Oliveira Costa Gomes 2

Vinícius Minelli Moreira 3


Fábio Silva Prates 4
Bárbara Ramos Azalim 5
Reinaldo de Freitas 6

Uma escola, 105 estudantes no 6º ano do Ensino Fundamental, 5


estudantes do curso de licenciatura em Geografia e bolsistas no
Programa de Residência Pedagógica (PRP), um professor de Geografia
como preceptor e muitas expectativas envolvidas. Esses são os números
iniciais que envolvem este relato, cujo objetivo é descrever as etapas de
execução de representações cartográficas de pontos específicos de um
bairro, a partir da construção de maquetes, considerando o
desenvolvimento de habilidades previstas na Base Nacional Curricular
Comum (BNCC).

1
Graduando do Curso de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e bolsista do
Programa de Residência Pedagógica (PRP-CAPES, luistawan@gmail.com;
2
Graduanda do Curso de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e bolsista do PRP-
CAPES, vivianedeoliveira47@gmail.com;
3
Graduando do Curso de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e bolsista do PRP-
CAPES, viniciusminellimoreira@gmail.com;
4
Graduando do Curso de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e bolsista do PRP-
CAPES, fabiosilvaprates.fp@gmail.com;
5
Graduanda do Curso de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e bolsista do PRP-
CAPES, bramosazalim@gmail.com;
6
Doutorando em Geografia (UFMG), Mestre em Geografia (UFMG), Professor da Rede Municipal de
Educação de Belo Horizonte e preceptor do PRP-CAPES, reinaldofreitas@gmail.com.
96 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

Assim este relato envolve cronogramas, pesquisa, planejamento,


muitas trocas de mensagens, preparação de originais, cópias de
atividades, lista de materiais, escalas de trabalho, atravessar a cidade
para chegar a escola, vir de outra cidade para escola, preparação de
materiais, mediação de conflitos, conversas para alinhar os objetivos da
atividade, mais conversa, acertos, correção de rota, mais mediação de
conflitos, registro, sobe e desce de escadas, transporte de materiais,
coleta de resíduos, limpeza das salas e a construção de mais um trabalho
coletivo, com as observações do desenvolvimento da atividade ao longo
de duas semanas, que inicialmente era uma. Pareceu cansativo? E foi!
Essa pequena sequência, não linear muitas vezes, serve para que não
percamos de vista que, todo relato de experiência tem esses detalhes,
que muitas vezes são encobertos por sequências lógicas e acadêmicas,
que esses tipos de texto costumam apresentar.
Enquanto residentes do PRP, tivemos a oportunidade de
acompanhar a dinâmica da Escola Municipal Hélio Pellegrino,
localizada na regional Norte da cidade de Belo Horizonte (MG). É nesse
contexto que idealizamos e desenvolvemos uma proposta de
intervenção pedagógica que foi aplicada com três turmas do 6º ano do
Ensino Fundamental.
Duas foram as inspirações iniciais para o desenvolvimento da
proposta. A primeira delas surgiu na oficina "Desenvolvendo o
pensamento crítico através da arte", ministrada pela professora Débora
Mariz como uma das atividades do "III Seminário Práticas Docentes
Vivenciadas nas Licenciaturas da UFMG", realizado na universidade em
Tawan Silva; Viviane Gomes; Vinícius Moreira; Fábio Prates; Bárbara Azalim; Reinaldo Freitas • 97

junho de 2023. Durante a oficina foi apresentada a ideia de rotina de


pensamento, desenvolvida pelo projeto de pesquisa 7.
As rotinas de pensamento foram criadas com o propósito de
motivar os alunos a se envolverem de maneira mais profunda e crítica
com o conteúdo, a arte, a literatura e as experiências vivenciadas em
sala de aula. Elas estimulam os estudantes a considerarem diversas
perspectivas, evidências, consequências e conexões, o que torna o
processo de aprendizado mais significativo e inspirador.
Amplamente utilizadas por educadores em todo o mundo, as
rotinas de pensamento do Project Zero desempenham um papel valioso
no desenvolvimento das habilidades de pensamento crítico, criativo e
reflexivo dos alunos. Ao empregar essas rotinas, pode-se fomentar um
ambiente de aprendizagem colaborativo, no qual os alunos são
encorajados a compartilhar suas ideias, questionar e explorar diversos
pontos de vista.
A segunda fonte de inspiração foram os próprios estudantes, que
em diversos momentos durante as aulas demonstraram interesse em
realizar uma atividade prática de construção de modelos
tridimensionais, tendo em vista que era um dos conteúdos estudados
pelos sextos anos naquele momento. Ao se depararem com a proposta,
muitos alunos relembraram que no 2º ano do Ensino Fundamental
tinham construído maquetes, contudo os espaços representados
ficaram limitados ao ambiente interno da escola, por exemplo, as salas
de aula, cantina, biblioteca, sala de informática e quadra de esportes.

7
O Project Zero é um projeto da Harvard Graduate School of Education, desenvolvido em 1967 pelo
filósofo Nelson Goodman, dedicado inicialmente a pesquisas sobre educação artística. Desde então, seu
campo de atuação se estendeu para investigar e desenvolver práticas educativas em outros campos do
conhecimento. Para maiores informações consultar a página no link: <https://pz.harvard.edu/who-we-
are>. Acesso em: 31 de julho de 2023.
98 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

Ao combinarmos as rotinas de pensamento que enfatizam a


observação e a criação de conexões com a relevância da cartografia
escolar, podemos compreender que, como apontado por Castellar (2011),
a cartografia é uma linguagem essencial e um sistema de comunicação
vital em todos os níveis de aprendizado em educação geográfica. Ela
possibilita a articulação de fatos, conceitos e sistemas conceituais,
permitindo a leitura e escrita das características do território.
Portanto, incorporar as rotinas de pensamento no ensino da
cartografia, incentiva os estudantes a observarem detalhes relevantes,
fazer conexões significativas entre informações geográficas e
desenvolver habilidades de leitura e interpretação do espaço geográfico.
Dessa forma, a cartografia é uma ferramenta poderosa para o
desenvolvimento do pensamento crítico, criativo e reflexivo dos alunos,
além de contribuir para uma compreensão aprofundada do mundo que
os cerca.
Sobre a noção de experiência, partimos da compreensão de Bondía
(2002), entendo-a não apenas como evento, mas sim como algo que nos
acontece e que é fundamentalmente particular, subjetivo e contingente.
Assim sendo, esse relato busca resgatar e refletir criticamente sobre as
principais impressões que nos ocorreram durante o desenvolvimento
da atividade, considerando que esse foi um processo de ensino e
aprendizagem de mão dupla, envolvendo de um lado os estudantes da
escola e do outro os licenciandos, professores em formação.

METODOLOGIA

A proposta de intervenção pedagógica foi desenvolvida para ser


aplicada com as três turmas do 6º ano que foram acompanhadas pelos
Tawan Silva; Viviane Gomes; Vinícius Moreira; Fábio Prates; Bárbara Azalim; Reinaldo Freitas • 99

residentes. Inicialmente partiu-se do conteúdo que estava sendo


trabalhado em sala de aula naquele momento, sendo assim, ficou
decidido como temática principal as representações cartográficas.
Para o componente curricular Geografia, a BNCC apresenta este
conteúdo como parte da unidade temática "Formas de representação e
pensamento espacial”, incentivando o uso de diferentes linguagens,
como fotografias, mapas, desenhos, imagens de satélites, audiovisuais,
dentre outras, como recurso pedagógico para que os estudantes
desenvolvam suas habilidades de leitura e produção de material
cartográfico. Destaca-se ainda que os estudantes precisam ser capazes
de "compreender as particularidades de cada linguagem, em suas
potencialidades e em suas limitações", o que leva "ao reconhecimento
dos produtos dessas linguagens não como verdades, mas como
possibilidades" (Brasil, 2018, p.363).
Para o desenvolvimento da proposta foi selecionada a habilidade
EF06GE09 da BNCC (Brasil, 2018, p.385), com o intuito de desenvolver
junto aos estudantes suas capacidades de elaboração de modelos
tridimensionais a partir da representação de elementos e estruturas da
superfície terrestre.
A execução da proposta foi divida em dois momentos, que
interconectados constituem uma sequência didática em torno de um
mesmo objeto de investigação: o entorno da escola.
No primeiro momento foi realizada uma atividade a fim de
relembrar os conceitos relacionados à cartografia e desenvolver as
habilidades de localização e escala que seriam importantes para as
próximas etapas da intervenção.
100 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

Inicialmente realizou-se o reconhecimento da área de estudo a


partir da aplicação de uma rotina de pensamento desenvolvida
especificamente para a atividade, isso foi feito através da leitura e
interpretação de material cartográfico. Para isso, cada grupo teve
acesso a um mapa impresso e plastificado do entorno da escola, no qual
foram destacados onze pontos identificados com letras de A à K (Figura
1). Uma imagem de satélite extraída do software Google Earth foi tratada
graficamente em um ambiente SIG (Sistema de Informação Geográfica)
e elementos cartográficos (título, legenda, coordenadas, orientação,
fonte e escala) foram inseridos, de modo que os alunos pudessem
identificá-los e aplicá-los na leitura.

Figura 1 – Mapa da área de estudo

Fonte: Elaboração própria, 2023.

A rotina de pensamento aplicada foi elaborada a partir de outra


rotina, desenvolvida originalmente pelo Project Zero, denominada "O
Tawan Silva; Viviane Gomes; Vinícius Moreira; Fábio Prates; Bárbara Azalim; Reinaldo Freitas • 101

que te faz dizer isso?", o propósito principal é estimular os estudantes a


compartilharem suas leituras e interpretações do material que está
sendo analisado, fazendo com que compreendam a existência de
diferentes pontos de vista e promovendo o raciocínio e argumentação
baseado em evidências.
O desenvolvimento da rotina iniciou com a leitura individual do
mapa, em seguida os residentes conversaram com os grupos,
previamente formados, se eles conseguiam identificar, realizando
perguntas como: "O que você está vendo?", "O que te chama mais
atenção?", "Você consegue identificar algo?", "O que você sabe sobre
esse lugar?", "Você já foi nesses lugares?", "O que te faz dizer isso?". A
finalidade dessa interação foi entender o que os alunos já conheciam
sobre a área do entorno da escola, estimulando-os a explicitar seus
pensamentos e justificar suas afirmações.
Para registro das observações, fornecemos aos alunos uma folha
impressa com duas atividades (Figura 2). Nessa atividade, cada aluno
escreveu individualmente os elementos cartográficos presentes no mapa
e o nome de cada ponto, juntamente com sua respectiva função. Além
disso, para auxiliarem na identificação dos pontos, disponibilizamos
tablets conectados à internet, permitindo-os acesso ao aplicativo Google
Maps para visualização dos locais em três dimensões. Após a conclusão da
atividade, os pontos foram identificados de forma coletiva, com suas
observações sendo postas no quadro. Essa etapa possibilitou que os alunos
fizessem a conferência e correção das informações, compartilhando suas
descobertas em conjunto.
O segundo momento foi dedicado à construção de modelos
tridimensionais das áreas selecionadas, com destaque para a escala de
102 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

representação e a noção de proporção entre os diferentes elementos. O


intuito da proposta era capacitar os estudantes do 6º ano à analisarem
as imagens de satélite, entendendo-as como uma das possibilidades de
representar uma porção do espaço geográfico e pensarem em como
traduzir os componentes espaciais de determinado ponto, a partir da
escala da imagem, em uma maquete de tamanho A4.

Figura 2 – Atividade da rotina de pensamento

Fonte: Elaboração própria, 2023.


Tawan Silva; Viviane Gomes; Vinícius Moreira; Fábio Prates; Bárbara Azalim; Reinaldo Freitas • 103

Cada grupo ficou responsável por construir uma maquete de um


ponto específico, utilizando materiais selecionados previamente e
disponibilizados aos estudantes no dia da prática, como tinta, cartolina,
emborrachado, papel crepom, folha sulfite A4, canetinha, lápis de
colorir, massinha, cola e palitos de sorvete. Também foram manuseados
vários objetos recicláveis, solicitados aos estudantes anteriormente.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Durante a intervenção, observamos como a dinâmica da atividade


acontecia em cada turma. Logo no primeiro dia percebeu-se que cada
sala possuía uma dinâmica própria. Isto é, alguns grupos se
organizavam na sala de aula mais rápidos do que outros, alguns
estudantes estavam dispersos e outros mais concentrados. Uma das
turmas destacou-se por estarem mais adiantados em relação às demais,
resultado dessa capacidade de organização que notamos anteriormente.
Essa turma despendeu menos do nosso auxílio, ao decorrer da
elaboração da maquete, comparada as outras duas turmas que
demandaram, em média, o mesmo tempo e esforço de
acompanhamento. Percebemos que a dinâmica das atividades seguiu o
mesmo padrão característico do cotidiano de cada turma.
De maneira geral, as atividades desenvolvidas no primeiro
momento foram bem-sucedidas pois estavam engajados e
comprometidos com a proposta. Entretanto, observou-se que alguns
estudantes não se lembravam do assunto aprendido anteriormente. Por
exemplo, eles tinham dificuldade em compreender os elementos
cartográficos, demonstrando uma compreensão conceitual ainda frágil.
Todavia, quando eram encorajados a se lembrarem de algum elemento,
104 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

como a legenda, conseguiam identificar outros. Alguns estudantes


precisaram consultar o livro didático e o caderno como fonte de
referência para realizar a atividade.
Inicialmente foram reservados 5 minutos iniciais para a leitura
silenciosa do mapa, entretanto isso teve que ser adaptado à dinâmica
das turmas que estavam bem agitadas no início da atividade, não sendo
possível dedicar todo esse tempo à leitura do mapa em silêncio,
conforme planejado anteriormente. Talvez por se tratar de uma
atividade diferente, os alunos pareceram ter a impressão de que não
precisavam se concentrar tanto no exercício. Essa situação evidencia
que aplicar uma rotina de pensamento, por mais simples que seja, não é
algo fácil, exigindo um grande esforço por parte dos docentes para
garantir o engajamento dos alunos.
A tarefa de identificar pontos através de imagens de satélite
apresentou alguns desafios, com alguns estudantes necessitando de
maior auxílio na manipulação dos tablets, enquanto outros
demonstraram mais facilidade (Figura 3). A diferença observada nas
habilidades digitais dos estudantes evidencia a desigualdade no acesso
aos recursos tecnológicos, cenário que deve receber especial atenção das
escolas, já que segundo Silva (2011, p.530), “para a plena conquista da
cidadania na sociedade contemporânea, o indivíduo deve ter acesso às
ferramentas digitais”. O uso da tecnologia no ambiente escolar deve
promover o chamado letramento digital, caracterizado como “a
capacidade que o indivíduo tem de responder adequadamente às
demandas sociais que envolvem a utilização dos recursos tecnológicos
e da escrita no meio digital” (ibid).
Tawan Silva; Viviane Gomes; Vinícius Moreira; Fábio Prates; Bárbara Azalim; Reinaldo Freitas • 105

Figura 3 – Desenvolvimento da rotina de pensamento

Fonte: Arquivo pessoal, 2023.

Essa dificuldade inicial, no entanto, pode ter estimulado os alunos


a explorarem outras formas de representação, oferecendo novas
possibilidades de compreensão e referência espacial. Apesar disso, os
alunos das três turmas conseguiram localizar a maioria dos pontos de
referência, nomeando suas respectivas funções e demonstrando
interesse na atividade.
Em momentos descontraídos, alguns alunos utilizaram os tablets e
o aplicativo Google Maps para localizar suas residências e "caminhar"
pelas ruas do bairro, compartilhando com os colegas os lugares que
conheciam. Esse entusiasmo evidencia o potencial pedagógico de
utilizar as realidades dos estudantes como objeto de estudo e
investigação na sala de aula, o que pode aumentar o nível de curiosidade
e engajamento dos mesmos.
106 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

O uso de tecnologias no ensino de geografia proporciona uma


experiência educacional mais dinâmica, permitindo aos alunos uma maior
sensação de reconhecimento e pertencimento ao espaço geográfico. Ao
integrar materiais tecnológicos com atividades práticas, é possível
estimular a criatividade e a inovação, além de promover um processo de
aprendizagem personalizado. Isso significa que a tecnologia pode ser
adaptada para atender às necessidades individuais dos alunos, levando em
conta diferentes estilos de aprendizagem e níveis de habilidade.
Quando combinado com a orientação dos professores, esse uso da
tecnologia contribui significativamente para uma compreensão mais
profunda do contexto geográfico em que os alunos estão inseridos.
Como afirma Almeida (2014, p.8), "inserir o aluno em sua própria
realidade faz com que ele se veja participando da sociedade e tornando-
se assim um cidadão, sendo capaz de aproveitar as inovações
tecnológicas que fazem parte do seu cotidiano". Portanto, a integração
de tecnologia e prática manual no ensino de geografia não apenas
enriquece a experiência de aprendizado, mas também prepara os alunos
para se envolverem de maneira mais eficaz com o mundo ao seu redor.
Durante a execução do segundo momento, notamos que todos
tinham em comum o desejo de criar uma "maquete bonita", assim como
haviam feito no segundo ano do ensino fundamental. Percebemos que
faltou em nosso planejamento fornecer orientações específicas para
cada grupo, ressaltando o objetivo da atividade e o como fazer a
maquete. Como apontou Júnior (2005, p.6), o planejamento elaborado
pelo professor enquanto um guia de ação tem como função orientar e
amparar as escolhas, "mesmo que não seja capaz de antecipar todas as
decisões que serão tomadas em sala de aula" (ibid).
Tawan Silva; Viviane Gomes; Vinícius Moreira; Fábio Prates; Bárbara Azalim; Reinaldo Freitas • 107

A título de exemplo, alguns grupos utilizaram caixas de leite de um


litro já prontas, apenas revestindo-as com cartolina branca para
construir os prédios em uma maquete de tamanho A4. Isso demonstrou
que muitos apresentaram dificuldades em compreender a finalidade da
atividade. A nossa intenção, como professores em formação, não era de
que eles construíssem maquetes tendo em vista exclusivamente a
estética, mas sim que mobilizassem os conhecimentos de escala e
proporção estudados nas aulas anteriores. Neste ponto, portanto,
deveríamos ter considerado o fato de serem estudantes do 6º ano e
fornecido instruções mais diretas para evitar que se perdessem durante
o trabalho. Conforme Lira e Sarmento (2016, p.441), Schön (2000) propõe
que a prática de ensino é caracterizada por eventos que envolvem
incertezas e imprevistos, os quais não são resolvidos pelo professor,
uma vez que o "[…] seu repertório de saberes não dá as respostas
exigidas no dia a dia do exercício da profissão. As referidas situações
supõem a de saberes e de competências que ultrapassam os
conhecimentos técnicos adquiridos nos processos formativos" (ibid). Da
mesma forma, as singularidades que atravessam o cotidiano escolar,
como a dinâmica de cada turma e o próprio planejamento que, muitas
vezes, não contempla as ações necessárias.
Ademais, as autoras argumentam que os saberes teóricos docentes
não são o único conhecimento que o professor precisa desenvolver, pois
a totalidade da profissão está exatamente em "[…] aliar o
aprimoramento teórico à epistemologia da prática, com vistas a melhor
compreendê-la, para transformá-la significativamente, levando em
conta a qualidade dos processos de ensino e aprendizagem" (ibid, p.442).
Destaca-se que, como futuros docentes de geografia, essa totalidade é
108 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

reforçada durante nossa formação. O geógrafo precisa ser capaz de


articular a prática (trabalho de campo) com os conceitos e teorias
aprendidos, evitando a reprodução de dualidades e compreendendo a
existência da dialética entre o conhecimento prático e teórico, bem
como entre a geografia física e humana.
Como residentes, nunca havíamos ministrado ativamente uma
aula e tínhamos a expectativa de que duas ou três aulas seriam
suficientes para a execução da maquete. Todavia, percebemos que
existiam questões específicas relacionadas à faixa etária dos estudantes
e à dinâmica coletiva da turma, tal como às relações estabelecidas entre
os alunos. Observamos que muitos alunos encontraram dificuldades em
se organizar em grupo, reconheceram a necessidade de exercerem
funções específicas para realizar a atividade e compreenderam a
importância do planejamento antes de cortar os materiais.
Outro ponto relevante que pudemos observar foi a forma como
cada grupo reagiu ao trabalho em equipe. Identificamos que alguns
alunos foram mais receptivos às nossas sugestões e auxílio, enquanto
outros mostraram-se menos propensos a aceitar nossas orientações. A
maioria dos grupos acolheu nossa presença de forma positiva e até
dependia de nossa atenção para obter um melhor desenvolvimento do
trabalho. No entanto, alguns grupos demonstraram mais independência
nesse aspecto.
Dedicamos um tempo considerável com cada grupo, explicando o
objetivo da atividade, auxiliando na divisão de tarefas e ensinando como
deveriam executar a atividade. O tempo de duração previsto no nosso
plano de aula era de apenas uma semana das aulas de geografia, porém
com as observações ressaltadas acima a atividade se estendeu para duas
Tawan Silva; Viviane Gomes; Vinícius Moreira; Fábio Prates; Bárbara Azalim; Reinaldo Freitas • 109

semanas. Alguns grupos, notadamente, desenvolveram um


planejamento após compreenderem o trabalho e produziram maquetes
para além do esperado (Figura 4).
Durante a confecção das maquetes, um dos principais problemas
observados foi o conflito de ideias entre diferentes membros de um
mesmo grupo. Houve casos em que alguns assumiram a liderança do
trabalho, enquanto outros apenas acatavam as ideias e, em algumas
ocasiões, houve rompimento da cooperação com solicitações para que o
trabalho fosse realizado individualmente. Percebemos, portanto, que é
fundamental que o professor atue como mediador de conflitos,
utilizando o diálogo para buscar soluções coletivas junto a todos os
integrantes do grupo.

Figura 4 – Maquetes produzidas pelos estudantes

Fonte: Arquivo pessoal, 2023.


110 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

A experiência de atuação na sala de aula nos permitiu reconhecer


o que funciona e o que não funciona em cada turma, entendendo melhor
quem são nossos estudantes e quais são as dificuldades que eles
apresentam, bem como seus potenciais de desenvolvimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa experiência proporcionou valiosas lições sobre a importância


de compreender a dinâmica única de cada turma, reconhecendo suas
particularidades e necessidades específicas. A interação positiva e
colaborativa entre residentes, preceptor e alunos foi fundamental para
o sucesso da intervenção educativa, mostrando como o trabalho em
equipe pode impactar positivamente o processo de aprendizagem. Os
aprendizados adquiridos certamente serão úteis em futuras
intervenções educativas, enriquecendo nossa prática como
profissionais da educação.
Sobre a utilização da rotina de pensamento percebemos a
necessidade de maior apropriação do instrumento por parte dos
residentes, fazendo com que a proposta possa ser melhor explicada aos
alunos, facilitando, assim, sua execução. Organização e a orientação
objetiva são fundamentais para o bom desenvolvimento de uma rotina.
Em todo o caso, ficou claro que as rotinas podem ser integradas ao
ensino de geografia de maneira criativa e efetiva, sobretudo no ensino
de conteúdos que tradicionalmente já utilizam linguagens visuais, como
a cartografia.
Além disso, é importante destacar que os alunos conseguiram
perceber diferenças entre a atividade de construção de maquete
executada no 2º e no 6º ano, como, por exemplo, a reprodução de
Tawan Silva; Viviane Gomes; Vinícius Moreira; Fábio Prates; Bárbara Azalim; Reinaldo Freitas • 111

espaços localizados fora do ambiente da escola e a utilização da escala


para manter a proporção entre os elementos destacados nas imagens.
Durante a execução da atividade, ao medir o perímetro da edificação e
inferir sobre a altura para a produção de uma representação
tridimensional, os alunos enfatizaram a necessidade de manter a
proporção, passando a avaliar constantemente cada elemento
reproduzido.
Perceber esses avanços, tanto na avaliação da representação
quanto no domínio e aplicação dos conceitos que envolvem a produção
de representação em três dimensões, só foi possível graças ao
acompanhamento integral das etapas em sala de aula. Diferentemente
do que aconteceu no 2º ano, quando a participação das famílias na
execução desse tipo de atividade é muito frequente. Foi um momento
importante, cujo investimento em um número maior de aulas foi
decisivo para o sucesso da atividade.
Assim, essa experiência nos mostrou a relevância do envolvimento
ativo dos professores e o acompanhamento constante dos alunos para
que eles pudessem desenvolver suas habilidades e compreensão de
forma mais significativa. O trabalho conjunto entre educadores e alunos
demonstrou o quão importante é estabelecer uma relação colaborativa
e promover um ambiente de aprendizagem enriquecedor, onde os
estudantes podem se engajar, aprender e alcançar resultados mais
significativos em sua jornada educacional.

AGRADECIMENTOS

Gostaríamos de expressar nossos sinceros agradecimentos a toda


comunidade da Escola Municipal Hélio Pellegrino pelo caloroso
112 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

acolhimento, em especial aos estudantes que participaram ativamente


do desenvolvimento da atividade proposta e que nos inspiram
constantemente. Também estendemos nossos agradecimentos aos
demais colegas do Programa de Residência Pedagógica da UFMG, à
professora Andréa Siqueira Carvalho, coordenadora do núcleo de
Geografia nesta edição do programa, e à professora Débora Mariz pelo
convite para escrever este relato.
Ademais, não poderíamos deixar de agradecer à CAPES pelo
financiamento do programa que tem sido fundamental para a nossa
formação docente. Acreditamos que essas experiências enriquecedoras
têm impacto significativo em nossa trajetória profissional e acadêmica.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, D. S. O ensino de geografia: O uso das novas tecnologias. Vitória, 2014. P 8.

BONDÍA, J. L. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de


Educação, nº 19, abril de 2002

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.

CASTELLAR, S. V. A cartografia e a construção do conhecimento em contexto escolar.


In: ALMEIDA, R. D. (org.) Novos rumos da cartografia escolar: currículo, linguagem
e tecnologia. São Paulo: Contexto, 2011.

JUNIOR, O. G. A. Módulo II: o planejamento de ensino. Programa de Desenvolvimento


Profissional de Educadores (PDP). Governo do Estado de Minas Gerais, Secretária de
Estado de Educação, 2005.

LIRA, M. R. DE; SARMENTO, E. C. D. Professor reflexivo: um contributo à epistemologia


da prática e à formação docente. Revista Contrapontos, vol. 16, n. 3, set-dez, 2016.
Disponível em: <https://periodicos.univali.br/index.php/rc/article/view/8610>.
Acesso em: 07 de setembro de 2023.

PROJECT ZERO. O que te faz dizer isso? Harvard Graduate School of Education.
Disponível em: <https://pz.harvard.edu/resources/what-makes-you-say-that>.
Acesso em: 31 de julho de 2023.
Tawan Silva; Viviane Gomes; Vinícius Moreira; Fábio Prates; Bárbara Azalim; Reinaldo Freitas • 113

SCHÖN, D. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a


aprendizagem. Porto Alegre: Editora Artmed, 2000.

SILVA, A. C. Educação e tecnologia: entre o discurso e a prática. Ensaio: aval. pol. públ.
educ. vol.19, n.72, 2011, pp.527-554. Disponível em: <http://educa.fcc.org.br/scielo.
php?pid=S0104-40362011000300005&script=sci_abstract>. Acesso em: 10 de
setembro de 2023.
ESTRATÉGIAS DE ENSINO DE FILOSOFIA
7
NO ENSINO MÉDIO: UM ESTUDO COMPARATIVO
Lucca Moreira de Carvalho Gonzaga 1

O que se entende por “ensino tradicional” é uma metodologia


pedagógica que funciona de forma praticamente inalterada na educação
brasileira há décadas. Trata-se de um método de ensino em que o
professor ministra aulas expositivas e os alunos permanecem calados
apenas ouvindo o conteúdo, ou seja, assumindo uma posição
completamente passiva no processo de aprendizado. Nessa dinâmica
existe pouco ou nenhum espaço para se pensar novas estratégias de
ensino, fazendo com que muitos alunos se sintam desmotivados de estar
em sala de aula e, consequentemente, o problema da educação no país
se prolonga sem perspectivas de resolução. Apesar de terem surgido
muitas pessoas notáveis que foram formadas nesse sistema, o próprio
debate sobre a reestruturação do ensino e a necessidade de se pensar
novas metodologias não surgiu contemporaneamente, o que é um
indicativo da insustentabilidade desse sistema a longo prazo em escala
nacional.
De fato, dentre todas as pessoas que completam o ciclo básico da
educação, ou seja, ensino fundamental e médio, uma minoria dá
prosseguimento à sua educação no ensino superior e, dentre os que
continuam, a porcentagem dos que realizam uma pós-graduação, o

1
Graduando do Curso de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e bolsista do
Programa de Residência Pedagógica (CAPES), luccamoreira.2009@gmail.com
116 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

chamado “quarto grau” ou que seguem uma carreira científico-


acadêmica é ainda menor. Naturalmente, não se espera e talvez não seja
nem desejável que todas as pessoas passem uma parte considerável de
suas vidas aprimorando sua formação no ambiente universitário 2,
contudo, cabe se perguntar: o esvaziamento das universidades e dos
programas de pós-graduação não estaria relacionado a um problema de
base da educação nacional como um todo? Em que medida uma prática
de ensino em uma aula de filosofia pode nos ajudar a (re)pensar questões
perenes da educação brasileira?
No texto que segue, apresentaremos uma comparação entre duas
experiências de ensino praticamente idênticas em sala de aula 3, que
ocorreram no contexto do Programa de extensão Residência
Pedagógica 4, destinado ao aperfeiçoamento da formação de professores
de educação básica que cursam licenciatura. Apesar de estas
experiências terem sido postas em prática em dois contextos
educacionais com quase nada em comum entre si, notaremos como a
escolha pela estratégia de ensino produz consequências sempre maiores
do que se imagina. Tendo isso em vista, buscamos propor uma nova
perspectiva sobre o uso de práticas de ensino em sala de aula, bem como
uma reflexão sobre a verdadeira condição de estudantes de Ensino

2
Com essa afirmação, não pretendemos evocar nenhum tipo de discurso meritocrático a respeito da
aptidão de diferentes indivíduos para a educação, muito pelo contrário: reconhecendo essas diferenças,
conceder que todos tenham a liberdade para escolher se desejam se aprofundar na área acadêmica, ou
seguirem um caminho próprio dadas as possibilidades de empreendedorismo que a sociedade oferece.
3
Suas diferenças serão discutidas detalhadamente mais adiante, mas, em resumo, trata-se de duas
rotinas de pensamento, isto é, propostas de práticas pedagógicas muito semelhantes, que só se
distinguem no que tange ao objetivo específico do residente em sala de aula. Essa perspectiva também
envolve, naturalmente, a dimensão do conteúdo que está sendo lecionado, bem como a obra de arte
escolhida, questões as quais nos deteremos com profundidade neste texto.
4
Agradecemos ao apoio institucional e financeiro da CAPES, que tornou possível a realização dessas
atividades.
Lucca Moreira de Carvalho Gonzaga • 117

Médio: seria a desvaloração da educação consequência de apenas uma


postura dos alunos diante da precarização escolar promovida pelo
Estado e pela sociedade, ou os próprios professores, coordenadores e
outros especialistas de educação não teriam, também, uma parte da
responsabilidade deste problema que não é individual, mas coletivo? Em
que medida os professores podem utilizar novas estratégias e técnicas
de ensino para se estimular no aluno uma dimensão não apenas útil 5,
como também prazerosa do processo de aprendizagem? Essas e outras
questões, são o que buscaremos responder na seção que segue.

METODOLOGIA

Para fazer uma comparação entre duas abordagens, precisamos


primeiro fazer uma breve rememoração da primeira experiência de
ensino, que ocorreu na Escola Estadual Pedro II, em Belo Horizonte, às
sete horas da manhã de uma sexta-feira, em maio de 2023, para alunos
de 3º ano do Ensino Médio. Nesta aula, realizamos uma prática chamada
“Rotina de Pensamento”, mais especificamente na modalidade
“Contemplação”. Nela, o residente escolhe uma obra de arte,
preferencialmente visual, isto é, uma pintura ou uma fotografia, e
propõe aos alunos que a contemplem, tematizando com o conteúdo que
fora planejado para a aula em questão.
Apesar de funcionar excepcionalmente bem para aulas de filosofia,
em que há uma grande liberdade para se refletir sobre os mais variados
aspectos da experiência humana, as rotinas de pensamento podem
também ser usadas em outras disciplinas das humanidades e, por que

5
Segundo Marcondes (2011, p.22) a filosofia pode ter pouca relevância do ponto de vista da utilidade,
contudo, nos oferece ferramentas valiosas do ponto de vista intelectual para pensarmos nossa própria
condição no mundo.
118 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

não, até mesmo nas exatas: basta que o residente escolha uma obra de
arte que seja interessante o suficiente para não apenas captar a atenção
dos estudantes, como também estabelecer uma boa e clara relação com
o conteúdo ministrado. Em um primeiro momento, poderia-se pensar
que a filosofia tem um lugar privilegiado no tratamento de questões
transdisciplinares, o que facilitaria a aplicação das rotinas, dado seu
caráter de universalidade. Todavia, pensamos esse aspecto não como
uma limitação de outras disciplinas em relação à filosofia, mas como
possibilidade de abertura a ela, o que nos suscita a questão sobre o modo
“tradicional” de se ensinar filosofia no Ensino Médio. Se nos
aprofundamos nessas perguntas, inevitavelmente retornaremos ao
velho problema já enunciado na introdução deste trabalho, qual seja, o
atraso das atuais metodologias pedagógicas diante de novos e antigos
problemas da educação brasileira. Portanto, continuemos nossa
rememoração sobre a experiência de ensino na Escola Pedro II e seus
resultados.
Na aula em questão, havíamos preparado uma exposição sobre o
tema “Positivismo e Surgimento das Ciências Humanas”, propondo a
contemplação da pintura “As Modistas” (1885) do pintor impressionista
francês Paul Signac. Pelo caráter essencialmente transdisciplinar do
conteúdo, que poderia ser facilmente ministrado, por exemplo, em uma
aula de sociologia, pensamos em como trazer uma abordagem filosófica
para o tema, mas sem recorrer ao modo em que normalmente se ensina
filosofia no Ensino Médio, ou seja, decorando datas, ideias principais,
palavras-chave, contextualização histórica, dentre outras estratégias.
Tendo isso em vista, a escolha da obra de Signac foi pautada
sobretudo em uma proposta de contemplação, em que os estudantes não
Lucca Moreira de Carvalho Gonzaga • 119

apenas participariam de forma ativa da aula apreendendo o seu


conteúdo, como também refletiriam sobre sua própria condição no
mundo enquanto estudantes e, principalmente, enquanto pessoas.
Nossa abordagem foi, portanto, “negativa”: a obra de Signac representa
duas costureiras fazendo um trabalho monótono e repetitivo, o que
representa a alienação causada pelo capitalismo do século XIX na
condição dos operários. A ideia foi fazer com que os alunos
contrastassem o que a pintura evoca com os ideais do positivismo e com
o contexto histórico-intelectual da Europa do final do século XIX, em
que ideias otimistas e progressistas, no sentido etimológico do termo,
gozavam de grande prestígio na elite européia.
A aula, em suma, não foi um fracasso, mas teve resultados muito
inferiores às nossas expectativas. Os estudantes não aderiram
confortavelmente à prática de ensino, e a capacidade de relacionar o
quadro com o conteúdo exposto foi baixíssima. Pensamos que as
condições “materiais”, por assim dizer, da aula não são suficientes para
explicar este baixo rendimento, portanto, só nos resta uma hipótese que
explique os resultados que tivemos: a abordagem “negativa” da prática
de ensino, que exigia com que os alunos realizassem um esforço mental
duplo para acompanhar a aula, pela necessidade de apreender um
conteúdo novo e, simultaneamente, contrastá-lo com as ideias evocadas
pela pintura de Signac. Considerando, ainda, que muitos destes alunos
não tinham o hábito de contemplar obras de arte, podemos dizer que
nossa proposta talvez tenha sido demasiadamente ambiciosa, não tendo
levado em consideração a participação do aluno no processo de
aprendizado, o que é, afinal, o objetivo das aulas de todo professor.
120 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

Antes de iniciar o relato da segunda experiência, relembremo-nos da


pintura de Signac, que foi utilizada na Escola Pedro II:

Fonte: https://www.freeart.com/gallery/s/signac/signac.html

Feita essa recapitulação da primeira experiência, relatemos agora


a segunda, que ocorreu na Escola Estadual Benvinda de Carvalho, em
Belo Horizonte, às dez horas e quarenta minutos de uma sexta-feira, em
setembro de 2023, também para alunos de terceiro ano de Ensino Médio.
A Rotina de Pensamento que utilizamos desta vez foi na modalidade
“Inferência” que, apesar de guardar semelhanças com a rotina da
contemplação, se diferencia por exigir uma postura mais ativa e
questionadora por parte do aluno diante da obra de arte. A pintura que
escolhemos foi “A Morte de Sêneca” (1615) de Peter Paul Rubens e a
tematizamos com discussões filosóficas relacionadas à bioética, mais
especificamente, a partir das diferenças entre suicídio e eutanásia. É
Lucca Moreira de Carvalho Gonzaga • 121

evidente que, nesta experiência, o resultado foi muito superior, e isso


afirmamos não somente pelo que se observou em sala de aula, como
também pela proximidade da obra escolhida com o conteúdo. Por
retratar um filosófo da tradição, a articulação com o conteúdo torna-se
ainda mais fácil e clara, o que tira, por um lado, um pouco dos alunos o
seu esforço de apreensão, mas, por outro lado, compensa pela
quantidade e qualidade do aprendizado. Antes de relatarmos
detalhadamente como ocorreu a prática de ensino nesta aula, convém
observarmos o quadro que foi apresentado para os alunos:

Fonte:https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Rubens-_Der_sterbende_Seneca.jpg

Iniciamos a aula explicando aos estudantes o que havia sido


planejado, desde a própria Rotina de Pensamento até a exposição da
122 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

matéria. Em seguida, explicamos no que consistiria exatamente a


rotina: observar a pintura e levantar hipóteses sobre o que ela retrata.
Tais hipóteses seriam, então, postas à prova por meio de argumentos
contra ou a favor e, ao final da primeira metade da aula, o residente
interviria, revelando o sentido original do quadro de Rubens e a sua
relação com o tema da bioética. Como de costume, antes de iniciar a
rotina propriamente dita, fizemos questão de deixar claro para os
estudantes que não existe uma interpretação “correta” e outra “errada”
de obras de arte, mas sim diferentes pontos que vista que representam
todos um aspecto diferente da obra. Não se conhecendo a pintura, essas
perspectivas captam apenas parte da intenção do autor do quadro, não
sua totalidade. Apesar disso, o interessante de se realizar essa rotina em
sala de aula reside não no ato do residente de revelar o sentido original
da pintura aos estudantes, mas escutar coletivamente o
compartilhamento dos diferentes pontos de vista, que são sempre
surpreendentes por nos revelar um aspecto da obra de arte que antes
não se enxergava.

REFERENCIAL TEÓRICO

A primeira teoria levantada por uma aluna foi que a pintura se


tratava de um homem doente que estava sendo estudado. Segundo ela,
o fato de o homem ao centro estar quase nu e tendo seu sangue como
que coletado por uma bacia, mostra que se trata de estudantes de
medicina estudando o corpo humano. À primeira vista esta pareceu uma
resposta possível, mas que não se sustentou contra as críticas de outros
alunos, como a pergunta pelos guardas que estão ao fundo, no canto
esquerdo. Tendo isso em vista, outra aluna imaginou que se tratava de
Lucca Moreira de Carvalho Gonzaga • 123

um criminoso sendo punido, e os guardas estavam ali para impedir que


o prisioneiro escapasse. Essa teoria, no entanto, não se sustentou
quando ainda outra aluna objetou que nada na pintura pode nos levar a
supor que o homem ao centro seja um criminoso e que, portanto,
deveríamos inferir que este homem provavelmente teria sido capturado
e estava sendo torturado para que revelasse algum segredo, enquanto
os guardas estariam ali para impedir que outras pessoas vissem o que
estava acontecendo.
Uma última aluna, por fim, levantou uma teoria que causou um
pouco mais de polêmica em sala de aula. Segundo ela, o homem seria um
escravo que está sendo punido por tentar fugir, ou por alguma
indisciplina contra seu senhor, que seria, provavelmente, o homem que
está à direita no quadro. O que a fez pensar que se tratava de um escravo
foi o seu porte físico. Nesse momento, uma outra aluna comentou que o
homem não poderia ser um escravo porque é branco, o que
imediatamente inflamou os ânimos dos alunos, e a aula se encaminhou
cada vez mais para uma discussão descontrolada em toda a sala. Uma
nota sobre este acontecimento: neste momento, foi necessário não
perder de vista o propósito da prática de ensino, ainda que nossa opinião
pessoal se inclinasse mais para um dos lados da discussão. O bom
professor nem sempre é aquele que deixa sua pessoalidade ser
conhecida pelos alunos, mas sim o que abdica deste desejo egóico de ter
sua opinião validada pelos estudantes 6 em nome do bem comum, que é
o aprendizado e, principalmente, a boa convivência, já que os alunos
permanecem boa parte de sua semana convivendo entre si. Esta postura

6
É evidente que a posição de professor em uma sala de aula confere ao indivíduo certo poder,
autoridade e prestígio que podem ser usados tanto para o bem, como o controle da sala de aula, quanto
para o mal.
124 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

representa, ainda, um ato de cuidado para com os próximos professores


que ministrarão aulas para essa turma.
Terminada a primeira parte da aula, prosseguimos para a
explicação do quadro de Rubens e para uma rápida apresentação da vida
de Sêneca e da tradição filosófica em que estava inserido, a saber, o
estoicismo. Explicamos que, na Antiguidade, não exisitia um termo
específico para suicídio, e a noção da época que mais se aproximava do
sentido deste termo moderno é a de “morte voluntária”. Buscamos
explicar em que medida a “morte voluntária” é diferente do que hoje se
entende por “suicídio” ou “eutanásia”, principalmente por nela, no mais
das vezes, haver uma dimensão ética envolvida que carrega consigo
noções de “vida”, “morte”, “virtude” e “valor”, por exemplo, que são
totalmente distintas das que hoje existem no senso comum, que nada
mais é do que crenças filosóficas que não sabemos que temos. Por fim,
encerramos a aula relembrando os quatro princípios da bioética 7,
fazendo uma articulação com a prática de ensino na medida do possível.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados dessa abordagem “positiva” da rotina da inferência


foram incomparavelmente mais proveitosos que os resultados da
dinâmica realizada no colégio Pedro II. Já apresentamos, acima, as
possíveis hipóteses que expliquem isso, e feita essa exposição, cremos
que elas, agora, só podem ser confirmadas. Cabe refletir, ainda, sobre o

7
São eles: o princípio da não-maleficência, que proíbe o médico de causar qualquer tipo de dano ao
paciente; o princípio da beneficência, que obriga com que o médico cuide de um paciente, bem como
proíbe a negligência do tratamento; o princípio da autonomia, que preza pela liberdade de escolha de
um paciente a menos que sua vida esteja em risco e; por fim, o princípio da justiça, que estabelece a
necessidade de toda uma população ter acesso à saúde.
Lucca Moreira de Carvalho Gonzaga • 125

lugar que cada elemento em uma sala de aula ocupa no que diz respeito
ao rendimento de uma aula.
A partir da comparação entre as duas dinâmicas, compreendemos
que a parte mais importante de uma aula é o planejamento de sua
estratégia, pois isso está diretamente ligado com a relação de
transferência e contratransferência que haverá entre estudantes e
residente. Pode-se dizer que a estratégia de aula é, portanto, a matéria-
prima da relação de ensino-aprendizado. É a partir dela que se
determinará desde aspectos mais gerais desta relação, como o ritmo de
aula, o envolvimento dos alunos, até aspectos mais sutis, como o tom de
voz e linguagem utilizados por ambas as partes, o sentimento de se estar
presente em sala de aula, a própria sensação de passagem do tempo,
dentre outros. Sabendo disso, é não apenas irracional, como também
injusto atribuir a apenas uma parte a responsabilidade por uma ação
que é construída de forma conjunta e colaborativa, não separada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que relatamos, torna-se evidente que as Rotinas de


Pensamento são uma poderosa ferramenta didática que pode ser usada
dos mais diferentes modos em sala de aula. Além disso, o sucesso de sua
aplicação está mais relacionado às habilidades de gerenciamento de
turma do professor, do que ao conteúdo tematizado. Portanto, ao aplicar
uma Rotina de Pensamento, o professor deve não apenas explicar bem
aos alunos do que se trata a dinâmica, como também escolher uma
abordagem que não exija muitas “operações mentais”, por assim dizer,
da parte dos alunos, afinal, percebemos que o próprio ato inicial do
126 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

aprendizado de apreender uma matéria nova não é muito simples para


muitos deles.
Tendo isso em vista e estabelecendo uma relação com nossas
experiências, compreendemos que a obra de arte da Rotina de
Pensamento não pode ser nem muito abstrata, nem muito óbia no que
tange à relação com o conteúdo a ser exposto pelo professor. Se, por um
lado, a obra de arte for demasiado abstrata, os estudantes terão
dificuldade de enxergar uma conexão com o tema da aula e serão
duplamente prejudicados por não terem sido capazes de experienciar a
Rotina de Pensamento, nem de absorver o tema da aula. Se, por outro
lado, a obra de arte for muito simples, a realização da dinâmica não será
muito proveitosa do ponto de vista da experiência de contemplação de
uma obra de arte e, em vez de instigar os alunos a uma reflexão mais
profunda sobre a filosofia, será lembrada por eles apenas como um
momento “lúdico” da aula. Em nossa segunda aplicação da Rotina de
Pensamento, cremos ter atingido um meio termo entre esses dois
extremos, tanto pelo envolvimento dos alunos na aula, quanto pela
forma como se comportaram no momento em que o professor expôs o
conteúdo. Além disso, cabe destacar que os resultados se mostraram
também nos resultados de uma questão aberta relativa à Rotina de
Pensamento na prova bimestral, realizada duas semanas depois da
aplicação da Rotina, a qual boa parte dos estudantes foram capazes de
responder razoavelmente bem.
Por fim, é necessário realizarmos algumas reflexões sobre o
próprio ensino de filosofia no Ensino Médio e as possibilidades que se
abrem pela aplicação das Rotinas de Pensamento. Dizemos, no início de
nosso texto, que o “método tradicional” de ensino não vem mostrando
Lucca Moreira de Carvalho Gonzaga • 127

resultados satisfatórios no tangente à formação humana, pessoal de


cada estudante. Pelo contrário, este método parece sugerir a
transformação da educação nas escolas em uma lógica que se assemelha
à da produção no mundo do trabalho. Busca-se, com este método, não o
caráter relacional e humano do ensino, mas os seus resultados práticos,
utilitários, seja por notas em avaliações, seja por aprovações em
vestibulares.
A história dos pensadores e suas ideias nos ajuda a refletir sobre
esses problemas pela recuperação do verdadeiro sentido do filosofar.
Ensinar filosofia não pode se reduzir à mera transmissão de uma série
de conceitos prontos descontextualizados da vida de seus respectivos
filósofos, mas deve também possuir uma dimensão protréptica,
exortativa. Assim, o professor de filosofia no Ensino Médio deve
“provocar” os seus estudantes de modo a estimulá-los à reflexão sobre
questões que lhes interessam. Tal como Sócrates, que pela arte da
maiêutica não transmitia, mas apenas ajudava com que alguém
alcançasse o conhecimento, também o professor do Ensino Médio deve
confiar na potencialidade de seus alunos, e fazer com que sua aula se
diferencie das demais disciplinas transformando-a em uma
oportunidade para se refletir sobre a própria vida e condição humana.
Assim, segundo Gelamo (2018, p. 453):

Diante dos limites do ensino de filosofia marcado pela transmissão de


conteúdos supostamente filosóficos, colocamos o seguinte problea: seria
consonante com a tradição filosófica, dimensionado pelo seu percurso
histórico de mais de dois mil anos, reduzir a formação filosófica, através do
ensino de filosofia, à transmissão de “fórmulas filosóficas” para se pensar
criticamente as diversas situações conflituosas do presente, no qual o
filosofar propriamente dito estaria restrito ao campo das habilidades de
128 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

memória, de recognição e reprodução das representações abstratas,


engendradas na historicidade dos discursos filosóficos?

Em suma, concluimos que as Rotinas de Pensamento, além de se


mostrarem como uma ótima prática pedagógica que pode ser
tematizada com qualquer conteúdo, abre a possibilidade para que o
professor de filosofia estimule que seus alunos sejam propriamente
formados, não apenas informados. Nesse sentido, se o problema da
reformulação do currículo do Ensino Médio se mostra com baixa
probabilidade de solução a curto prazo, então é necessário fazer o
possível para, ao menos, deixar uma impressão positiva nos estudantes,
ou seja, fazê-los acreditar que ainda existem professores que dedicam
suas vidas à docência e com um interesse legítimo de formar pessoas.

REFERÊNCIAS

GELAMO, Rodrigo P.; RODRIGUES, Augusto. O ensino de filosofia na Educação Básica:


uma problematização à luz da filosofia antiga. Educação, v. 43, n. 3, p. 449-464,
jul./set. 2018.

MARCONDES, Danilo; FRANCO, Irley F. A Filosofia: O que é? Para que serve? Rio de
Janeiro: Jorge Zahar/ PUC-Rio, 2011.
ROTINAS DE PENSAMENTO:
8
ARTE E PENSAMENTO CRÍTICO
Maria Eduarda Ferreira Ezequiel 1

Poliana Leles de Oliveira 2


Renata Guerreiro Freire 3

Este texto relata uma experiência proposta e vivida pelos


estudantes da disciplina “Desenvolvimento do Pensamento Crítico
através da Arte”, ofertada pela professora Débora Mariz, na Faculdade
de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.
A proposta partiu de uma necessidade de aplicação de uma Rotina
de Pensamento na turma, como requisito da disciplina, que muito
evidenciou as virtudes intelectuais como forma de desenvolver o
pensamento crítico e a apreciação de obras de arte como forma e objeto
para se trabalhar o olhar atento.
Durante o período letivo, a experiência em turma foi muito rica e
amplamente compartilhada entre os estudantes de forma positiva. Por
isso, ao final, em conjunto, decidimos sistematizar nossas vivências
enquanto forma de relato sobre as Rotinas de Pensamento e o que elas
abrangem.

1
Graduanda do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG,
dudaezequiel99@gmail.com;
2
Graduanda do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, polileles@gmail.com;
3
Graduanda do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG,
renataguerreirofreire@gmail.com.
130 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

O entusiasmo da turma levou-nos, então, à escrita de textos que


contassem sobre a teoria estudada, a qual embasou a prática do que
propusemos aos estudantes, em sala ou fora dela.
Neste capítulo, apresentamos conceitos e entendimentos
fundamentais para o entendimento dos termos, como “Virtudes
Intelectuais”, “Pensamento Crítico”, o uso da Arte e sua relação com a
educação, baseando-nos nos seguintes autores: Baehr (2015), Watson
(2018), Tishman (2017), Tiburi (2012), Tishman e Palmer (2007).
A partir dessas conceitualizações, propusemos a Rotina de
Pensamento aplicada e apresentamos no texto também a metodologia
pensada e articulada com os observadores e participantes. Ela deu
espaço para, primeiramente, a criação, e em seguida, observação,
análise e compartilhamento. Por meio do preparo prévio, dispusemos
de uma coleção de possibilidades de palavras advindas de textos, as
quais seriam utilizadas para a criação livre e compartilhamento.
Ao fazermos este relato, desejamos não somente, sistematizar o
nosso aprendizado e nossa vivência educativa, filosófica e social, mas
também trazer à tona nossas colocações quanto às propostas do Projeto
Zero, de Harvard, sobre como adaptações são necessárias e adequadas e
também, de maneira a trazer, se possível, a eventuais leitores deste
artigo que se proponham a aplicar as atividades e queiram previamente
(ou posteriormente) se inteirar melhor sobre as discussões em torno
deste tópico e dos desenvolvimentos apresentados.
Concluímos, por fim, analisando a importância de o pensamento
crítico ser desenvolvido nas instituições educacionais e da potência que
há na análise artística, que está para além de museus e exposições.
Maria Eduarda Ferreira Ezequiel; Poliana Leles de Oliveira; Renata Guerreiro Freire • 131

Discutimos também sobre as Rotinas de Pensamento serem


facilitadoras do processo de desenvolvimento das virtudes intelectuais.
Todo o trabalho e pesquisa para formulação desse relato foram
grandes fontes para o alcance maior de entendimentos sobre a filosofia
do pensamento crítico e da arte. O relato traz o valor que vimos em
podermos sistematizar e compreender os processos que nós mesmas
propusemos ao grupo de pessoas em questão e o que tiramos desse
momento e da prática em si.

REFERENCIAL TEÓRICO

Para o entendimento da atividade aplicada com os estudantes é


preciso, em primeiro lugar, que sejam esclarecidas as rotinas de
pensamento, enquanto um conceito geral.
O Projeto Zero de Harvard é um trabalho que objetiva pesquisar a
educação e pedagogias que sejam de fato eficientes para todos os alunos.
O pensamento crítico a partir da observação atenta e do
compartilhamento são o principal foco de tal pesquisa.
As rotinas de pensamento entram, então, como uma das
metodologias usadas para criar um ambiente de atenção, consciência e
pensamento crítico direcionado. Isso ocorre por meio da arte,
principalmente. Ela é o início das propostas, o meio e o fim. As obras
escolhidas são os objetos para os quais a atenção estará voltada e a partir
dos quais a crítica será construída.
Tendo a proposta em mente, é preciso, então, voltar alguns passos
mais para se entender o porquê da aplicação das rotinas de pensamento,
o porquê do uso da arte e o porquê da busca pelo pensamento crítico (os
quais conversam entre si).
132 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

Iniciaremos aqui, refletindo sobre o pensamento crítico. Escolher


conectar ideias dessa maneira é ser consciente sobre as possibilidades,
sobre os dados e fatos em questão e (se) questionar de modo a extrair o
máximo de sentidos coerentes e criar uma rota bem estabelecida e mais
certeira possível. Essa escolha nos move a sermos mais críticos, mais
racionais e menos moldáveis ao julgamento por padrões estereotipados
e rotulações prévias.
Watson (2018), nos apresenta isso quando, ao mesmo tempo, nos diz
o meio de se chegar a isso, que é produzindo boas perguntas. Ela afirma
que “o bom questionamento estimula a investigação intelectualmente
virtuosa” e que “o bom questionamento contribui para o desenvolvimento
das virtudes intelectuais individuais como um todo” (p. 1).
A indicação da autora nos mostra que o que move o pensamento
crítico é o bom questionamento, pois ele seleciona as respostas e nos
abre possibilidades mais concretas para conclusões.
Podemos, então, caminhar para as qualidades que Baehr (2015)
aponta como sendo de posse daqueles que são bons pensadores. Ele as
chama de “virtudes intelectuais”, sendo elas: “curiosidade, autonomia
intelectual, atenção, cuidado intelectual, meticulosidade intelectual,
mente aberta, humildade intelectual e tenacidade intelectual” (p. 17).
Apesar de bons pensadores as possuírem, Baehr esclarece que
temos níveis de habilidades na aplicação dessas virtudes e que o real
fator de interesse no pensamento sobre as virtudes intelectuais é
aprimorá-las em si, é reconhecer-se. Trabalhando-as, estamos também
construindo e reforçando nosso pensamento crítico.
A forma de construir conhecimento que o autor propõe é voltada
para um ensino e uma aprendizagem que fazem sentido e que coloquem
Maria Eduarda Ferreira Ezequiel; Poliana Leles de Oliveira; Renata Guerreiro Freire • 133

o estudante como protagonista do processo. Deve ser, também,


conectado à vivência daquele que aprende, isto é, o próprio processo de
aprendizagem não pode ser algo divergente do objetivo proposto. O fim
e o meio caminham paralelamente para que o alvo e caminho sejam
coerentes, como é dito por Baehr (2015, p. 35):

Conceber o crescimento das virtudes intelectuais como um objetivo


educacional central tem o poder de tornar os processos de ensino e
aprendizagem mais vivificantes. Isso ocorre em parte porque é uma questão
de perseguir um objetivo digno e cativante.

Algo que podemos afirmar ser necessário e central na formação do


pensamento crítico e apreensão e prática das virtudes intelectuais é a
temporalidade. É preciso compreender o formato de desenvolvimento
desses conceitos como processos formadores de caráter e aprendizagem
e compreensão de mundo. Por isso, tanto o que é feito para se formar
um bom pensador, quanto a escolha (que na verdade, são várias) de ser
um bom pensador, levam tempo e persistência.
Um movimento essencial na constituição deste pensamento é o
conceito de “Slow Looking” (Olhar vagaroso), de Tishman (2017), o qual
se refere ao não apego às primeiras impressões e superficialidades, mas
à demonstração de atenção e cautela na observação dos fatos e da vida,
em geral, para boas tomadas de decisão, para que se faça bons
julgamentos e se tenha posicionamentos coerentes.
Tiburi (2012) apresenta-nos uma perspectiva sobre esse conceito,
quando escreve sobre a diferenciação entre ver e olhar, a qual pode ser
resumida para nosso interesse, nesta seguinte citação: “A lentidão é do
olhar, a rapidez é própria ao ver” (p. 1). É por isso que o convite deste
134 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

artigo é ao olhar, pois está ligado ao desejo de não perder algo, de


conseguir extrair sentido e lógica do que se observa com atenção.
Só é possível extrair sentido real do que se olha se houver interesse
e desejo de aprofundamento. O que só vemos torna-se relance e pouco
relevante à construção do conhecimento e do caráter que desejamos.
O Projeto Zero, de Harvard, desenvolveu o “Artful Thinking”
(Pensamento Arteiro), que originou as Rotinas de Pensamento. O
objetivo central do projeto é que os estudantes possam observar
atentamente obras de arte e ter um contato mais profundo com ela,
levando-a e cruzando-a com outras áreas de conhecimento do currículo
escolar, por meio de seus professores que trazem essas propostas para
suas turmas (Palmer; Tishman, 2006).
A arte é um objeto escolhido justamente por sua versatilidade no
campo filosófico. Ela exige pensamento e abre espaço para que esse
aconteça de diversas maneiras, apresentando variadas perspectivas e,
por isso, é libertadora.
Tishman e Palmer (2007) falam da metodologia do Projeto, que se
embasa em “seis disposições que têm poder especial para explorar obras
de arte e outros temas complexos no currículo” (p.4), sendo elas:
raciocínio, exploração de pontos de vista, busca por complexidade,
comparação e conexão, questionamento e investigação, observação e
descrição.
A ideia é que os observadores, por meio da observação guiada, isto
é, por meio das Rotinas, poderão desenvolver disposições de
comportamento, as quais eventualmente não necessitarão da dinâmica.
As autoras finalizam sua escrita apontando o valor da arte na
educação e na formação dos estudantes:
Maria Eduarda Ferreira Ezequiel; Poliana Leles de Oliveira; Renata Guerreiro Freire • 135

Uma conexão profunda entre olhar para a arte e aprender a pensar é esta:
tanto por design quanto por padrão, a arte naturalmente convida a um
pensamento profundo e extenso. As obras de arte naturalmente nos
encorajam a pensar – sobre as próprias obras e sobre as ideias além delas.
Na medida em que abraçamos isso, outra coisa a procurar ao avaliar o
impacto da educação artística é a evidência de que os alunos estão vendo
mais oportunidades para pensar profundamente sobre as coisas – em obras
de arte e além. (Palmer, Tishman, 2007, p. 32)

Podemos concluir, portanto, entendendo que as rotinas de


pensamento e a arte que nelas está envolvida são ricas em oportunidades
para construção de conhecimento e formação do pensamento crítico, o
qual vimos aqui, ser de igual importância e relevância.
Foi a partir dessa compreensão, então, que trouxemos a proposta a
seguir.

METODOLOGIA

A metodologia adotada nesta atividade visa promover o


pensamento crítico e a apreciação artística. Utilizando obras literárias
e canções como estímulos, os estudantes foram desafiados a criar
produções textuais a partir de palavras embaralhadas. Posteriormente,
discutiram suas percepções individuais e coletivas, enriquecendo o
aprendizado através da reflexão e do compartilhamento de ideias. Esta
abordagem integra a arte e o pensamento crítico, proporcionando uma
experiência de aprendizado enriquecedora.
As rotinas de pensamento são um tipo de atividade estruturada e
um potente mecanismo para desenvolver a criticidade. Ao utilizar obras
de arte como estímulo, as rotinas de pensamento, dentro do espaço-
tempo escolar, possibilitam uma experiência que exercita o bom
questionamento e o pensamento, a investigação intelectual virtuosa,
136 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

coletiva e individual. Isso se dá, pois a arte é um instrumento


importantíssimo que auxilia no desenvolvimento de habilidades e
virtudes (como, por exemplo, exercitar a curiosidade de diferentes
formas, reunir informações novas, confirmar teorias anteriormente
criadas, comunicar seus desejos e necessidades), transformando em
visível o que muitas vezes é difícil de ser expresso, ajudando a sentir e
aflorando capacidades para além do que é dito apenas com palavras.
Através do exercício do pensamento crítico potencializado por
uma obra de arte, os envolvidos na rotina podem experienciar
diferentes perspectivas e interpretações. Tendo todos esses elementos
em mente, a atividade aqui apresentada é a rotina de pensamento ‘’Veja,
pense, eu, nós’’ 4 elaborada pelo ‘Project Zero’, da Universidade de
Harvard, que foi aplicada para uma turma mista da Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Optamos por
trabalhar essa rotina a partir das seguintes obras literárias e canções:

 Ego - Lali (canção)


 Cópia de Uma Cópia de Uma Cópia - Louis Tomlinson (canção)
 Armadilha - One Direction (canção)
 O segredo do Rei (conto)
 Inconstância das coisas do mundo - Gregório de Matos (poema)

Todas essas obras foram impressas, cada palavra delas recortada


separadamente e misturadas em uma sacola conjunta. Posteriormente,
essas palavras foram embaralhadas e dispostas em uma mesa, na qual
os alunos - em dupla ou individualmente - puderam selecioná-las a fim
de montar uma produção textual (podendo ser ela um conto, um poema,

4
Link para acesso à rotina: https://pz.harvard.edu/resources/see-think-me-we
Maria Eduarda Ferreira Ezequiel; Poliana Leles de Oliveira; Renata Guerreiro Freire • 137

uma frase, um texto, etc) em uma folha A4 previamente entregue a cada


um juntamente de um tubo de cola.
Depois de todos produzirem os textos, as obras foram recolhidas e
embaralhadas pelo grupo que estava aplicando a rotina e redistribuídas
aleatoriamente, para, então, a rotina de pensamento ser aplicada.
O primeiro passo da rotina pedia para que os alunos observassem
as produções artísticas e anotassem o que foi observado. O segundo
passo foi para que eles anotassem o que pensaram sobre o que leram,
enquanto o terceiro foi solicitado que cada um escrevesse como aquele
texto se relacionava com eles mesmos (pessoa que estava interpretando
a obra e não o autor). E, por fim, foi pedido que eles escrevessem como
o texto se relacionava conosco (coletivamente), sendo orientado pela
pergunta: ‘’Como o trabalho pode estar conectado a histórias maiores –
sobre o mundo e nosso lugar nele?’’.
Para finalizar a rotina, foi realizada uma roda de conversa na qual
foram compartilhadas as respostas das perguntas anteriores com todos
os participantes.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

As produções artísticas que surgiram a partir da rotina aplicada


foram diversas. Variando em formato físico e de estrutura textual.
Explorando as inúmeras possibilidades dentro da proposta, os alunos
criaram produções que percorrem sentimentos profundos, o que
possibilitou a autoexpressão e a partilha de histórias semelhantes a
contos de fadas (como é possível observar nas imagens abaixo).
As respostas às perguntas referentes à rotina de pensamento
‘’Veja, pense, eu, nós’’ envolvera questões relacionadas à subjetividade e
138 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

assuntos relacionados ao ser humano, seu pertencimento na sociedade,


dúvidas, medos, tristezas e alegrias. Através das respostas que a rotina
de pensamento provocou foi possível observar como ela possibilita o
exercício do bom questionamento e pensamento, além da investigação
intelectual virtuosa, coletiva e individual.
As rotinas de pensamento possibilitaram uma observação
profunda e intencional de obras de artes e, assim, criaram um ambiente
propício ao desenvolvimento de habilidades e virtudes como, por
exemplo, a reunião de informações novas e comunicação de seus desejos
e necessidades.
Dessa forma, é possível inferir que a atividade transformou em
visível o que muitas vezes é difícil de ser expresso, compreendido e até
sentido. Assim caracterizando e provando que as rotinas de pensamento
e as obras de artes como instrumentos que permitem a formação
integral do sujeito ao incentivar o pensamento crítico, a sensibilidade,
a apreciação estética e a criatividade.
A seguir estão as imagens das produções artísticas, feitas com base
na proposta do grupo:

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.


Maria Eduarda Ferreira Ezequiel; Poliana Leles de Oliveira; Renata Guerreiro Freire • 139

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.


140 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.


Maria Eduarda Ferreira Ezequiel; Poliana Leles de Oliveira; Renata Guerreiro Freire • 141

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.

Fonte: Arquivo Pessoal, 2023.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência acadêmica e pessoal vivenciada pelas graduandas de


Pedagogia ao aplicar a Rotina de Pensamento do "Projeto Zero" na
disciplina "Desenvolvimento do Pensamento Crítico através da Arte" foi
extremamente enriquecedora e satisfatória para a formação docente. Os
estudantes demonstraram dedicação durante o processo de
planejamento e execução, buscando a melhor abordagem para uma
turma heterogênea de diferentes licenciaturas. O engajamento dos
alunos foi notável, criando frases únicas e significativas.
142 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

O compartilhamento das frases originou diálogos enriquecedores,


permitindo a expressão de sentimentos e ideias sobre os diversos
significados interpretados por cada estudante. Esses momentos
ofereceram inúmeras oportunidades para debates e,
consequentemente, o desenvolvimento do pensamento crítico. A
atividade impulsionou o aprimoramento das habilidades de análise e
reflexão dos estudantes.
Além disso, a abordagem ao utilizar a arte como ponto central
permitiu uma formação integral do sujeito, estimulando não apenas o
pensamento crítico, mas também a sensibilidade, a criatividade e a
apreciação estética. Dessa forma, os estudantes foram incentivados a
perceber a arte como um meio relevante para expressão e reflexão,
promovendo uma educação mais abrangente e significativa, capaz de
formar cidadãos críticos, reflexivos e sensíveis ao mundo ao seu redor.

REFERÊNCIAS

BAEHR, Jason. Cultivating Good Minds: A Philosophical & Practical Guide to Educating
for Intellectual Virtues. 2015. Disponível em: intellectualvirtues.org. Acesso em
10jan21.

JOHANN, M. R., RORATTO, L. J. B. A dimensão educativa da mediação artística e cultural:


a construção do conhecimento através da apreciação na presença da obra. Revista
Digital Do LAV, 7, set. 2011.

PERKINS, David; TISHMAN, Shari. Learning That Matters: Toward a Dispositional


Perspective on Education and its Research Needs. 2006.

RITCHHART, Ron; CHURCH, Mark; MORRISSON, Karin. Making Thinking Visible: How
to Promote Engagement, Understanding, and Independence for All Learners. San
Francisco, CA: Jossey-Bass, 2011.

TIBURI, M. Aprender a pensar é descobrir o olhar. Jornal do Margs, edição 103, set/out
2004.
Maria Eduarda Ferreira Ezequiel; Poliana Leles de Oliveira; Renata Guerreiro Freire • 143

TISHMAN, Shari. Slow Looking: The Art and Practice of Learning Through Observation.
New York and London: Routledge, Taylor and Francis Group, 2018.

TISHMAN, Shari; PALMER, Patricia. Works of Art are Good Things to Think About.
Conference proceedings Evaluating the Impact of Arts and Cultural Education,
Paris, p.89-101, 2007.

TISHMAN, Shari; PERKINS, David. N; JAY, Eileen. A cultura do pensamento na sala de


aula. Trad. Cláudia Buchweitz. Porto Alegre: ArtMed, 1999.

WATSON, Lani. Educating for Good Questioning: a tool for Intellectual Virtues
Education. Acta Analytica, vol. 33, p.353–370, 2018.

WILLINGHAM, Daniel T. Critical Thinking: Why Is It So Hard to Teach? American


Educator, p. 8-19, summer 2007.
SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES

Bárbara Ramos Azalim: Graduanda do Curso de Geografia da Universidade Federal de


Minas Gerais (UFMG) e bolsista do PRP-CAPES, bramosazalim@gmail.com

Daniel Melo Soares: Graduando do Curso de Filosofia da Universidade Federal de Minas


Gerais – UFMG, danielmelo912@hotmail.com

Débora Saraiva Dalmaso: Graduanda do curso de filosofia pela Universidade Federal de


Minas Gerais - UFMG e bolsista do Programa de Residência Pedagógica (CAPES),
deboradalmaso@hotmail.com

Débora Mariz: Professora Adjunta de Ensino de Filosofia da Universidade Federal de


Minas Gerais (UFMG) e Docente Orientadora do Núcleo Filosofia do Programa
Residência Pedagógica (Edital CAPES n° 24/2022) da UFMG. Bacharel e Licenciada em
Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), Graduada em Terapia
Ocupacional, Especialista em Temas Filosóficos, Mestre e Doutora em Filosofia pela
UFMG, deboramariz@gmail.com

Fábio Silva Prates: Graduando do Curso de Geografia da Universidade Federal de Minas


Gerais (UFMG) e bolsista do Programa de Residência Pedagógica (CAPES),
fabiosilvaprates.fp@gmail.com

Júlia Campolina Araújo: Graduanda do Curso de Música - Licenciatura da Universidade


Federal de Minas Gerais - UFMG, juliacaraujo2@gmail.com

Julia Maria Xavier Leite: Graduanda do Curso de Licenciatura em Física da


Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, juliamxavier02@ufmg.br
146 • Rotinas de Pensamento na Formação de Professores: relatos de experiência

Lucca Moreira de Carvalho Gonzaga: Graduando do Curso de Filosofia da Universidade


Federal de Minas Gerais – UFMG e bolsista do luccamoreira.2009@gmail.com

Luciana Telles Machado Da Silva: Graduanda do Curso de Filosofia da Universidade


Federal de Minas Gerais – UFMG e integrante voluntária do Programa de Residência
Pedagógica (CAPES), lutellesm@uol.com.br

Maria Eduarda Ferreira Ezequiel: Graduanda do Curso de Pedagogia da Universidade


Federal de Minas Gerais - UFMG, dudaezequiel99@gmail.com

Poliana Leles de Oliveira: Graduanda do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de


Minas Gerais - UFMG, polileles@gmail.com

Reinaldo de Freitas: Doutorando em Geografia (UFMG), Mestre em Geografia (UFMG),


Professor da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte e preceptor do Programa
de Residência Pedagógica (CAPES), reinaldofreitas@gmail.com

Renata Guerreiro Freire: Graduanda do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de


Minas Gerais - UFMG, renataguerreirofreire@gmail.com

Sarah Carvalho Saturno Miranda: Graduanda do Curso de Pedagogia da Universidade


Federal de Minas Gerais - UFMG, ssaturno@ufmg.br

Tawan Luis da Silva: Graduando do Curso de Geografia da Universidade Federal de


Minas Gerais (UFMG) e bolsista do Programa de Residência Pedagógica (PRP-CAPES,
luistawan@gmail.com

Vinícius Minelli Moreira: Graduando do Curso de Geografia da Universidade Federal


de Minas Gerais (UFMG) e bolsista do Programa de Residência Pedagógica (CAPES),
viniciusminellimoreira@gmail.com

Viviane de Oliveira Costa Gomes: Graduanda do Curso de Geografia da Universidade


Federal de Minas Gerais (UFMG) e bolsista do PRP-CAPES, vivianedeoliveira47@gmail.com
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