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Prof. Dr. Alejandro Pimienta Betancur Prof. Dr. João Ricardo Viola dos Santos
Universidad de Antioquia (Colômbia) Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)
Prof. Dr. Alexandre Pacheco Prof. Dr. José Messildo Viana Nunes
Universidade Federal de Rondônia(UNIR) Universidade Federal do Pará (UFPA)
VOLUME 2
Organizador
Eduardo Vicentini de Medeiros
Diagramação: Marcelo Alves
Capa: Gabrielle do Carmo
Fotografia / Imagem de Capa: The Lovers, 1855 - William Powell Frith
v. 2 ; 252p.
ISBN 978-65-85725-63-7
DOI 10.22350/9786585725637
CDU 141-058.8
APRESENTAÇÃO 11
Eduardo Vicentini de Medeiros
1 18
“HETEROSSEXISMO CIENTÍFICO”: A NATURALIZAÇÃO DA CATEGORIA DE GÊNERO E
DA HETERONORMATIVIDADE NAS CIÊNCIAS
Camila Palhares Barbosa
Resumo: O presente texto busca desenvolver uma abordagem feminista aos métodos científicos, a partir de
uma leitura crítica dos pressupostos generificados e naturalizados pelos discursos dominantes das ciências,
mais especificamente, enquanto exemplos paradigmáticos, da neurociência e da psicologia evolucionista. Em
ambos campos, tanto aspectos morfológicos quanto cognitivos e de tomada-de-decisão, partem de uma
clara pressuposição de diferenças sexuais. Assim, fundamentada em uma ampla gama de críticas de
feministas, proponho demonstrar um tensionamento na premissa da diferença sexual e suas consequências
para as formas do conhecimento. Proponho, então, a nomenclatura de “Heterossexismo Científico” os discursos
que tenham como premissa básica a. a diferença sexual entre homens e mulheres como biologicamente
implicada, e, b. assumam como natural a heterossexualidade compulsória.
Palavras-chave: Ciência. Feminismo. Método. Neurosexismo. Psicologia Evolucionista.
2 57
A ANTROPOLOGIA DE EDITH STEIN OU O PAPEL DA MULHER E DO HOMEM PARA
ALÉM DA REALIZAÇÃO DO CASAMENTO
Danilo Souza Ferreira
Resumo: Buscamos nesse texto descrever a relação entre literatura e gênero na obra de Edith Stein, em
especial no livro A mulher: sua missão segundo a natureza e a graça, tomando por base a interpretação dada
por Edith Stein a Ingunn do romance Olav Audunssön, de Sigrid Undset, a personagem Nora da peça Casa
de bonecas, de Henrik Ibsen e Ifigênia da obra homônima de Goethe, partindo assim da investigação do
modo como a filósofa conjuga análise fenomenológica e literária, para descrever como eram a
representação dos tipos femininos e obter uma nova visão da individualidade humana com
especificidades femininas.
Palavras-chave: Edith Stein, Literatura, Gênero
3 80
AS FACETAS DO AMOR EM BELL HOOKS
Halina Leal
Resumo: O presente artigo tem como objetivo apreender os principais pontos da proposta de bell hooks
acerca do amor, na direção de abrir espaço para que consigamos pensar sobre nossas situações reais de
existência e interações sociais em condições opressivas. Serão, assim, apresentadas as noções de ética do
amor, de interdependência e como a articulação destas noções permite compreender situações de
grupos subalternizados, sobretudo negros e mulheres em contextos de “interações amorosas”, segundo
hooks. Neste sentido, tenta-se estabelecer elementos e expandir as análises, a partir das considerações da
pensadora, para que se reflita acerca das facetas do amor no casamento.
Palavras-Chave: amor; bell hooks; ética; interdependência; opressões
4 93
“CIMENTO DA SOCIEDADE”: MÉTODO E METAFÍSICA NA TEORIA DO CASAMENTO DE
MARY WOLLSTONECRAFT
Katarina Ribeiro Peixoto
Resumo: Neste estudo, pretendo contribuir para esclarecer o sentido e a função do casamento no
pensamento de Mary Wollstonecraft (1759-1797), em “Reivindicação dos direitos da mulher” (1792). É nesse
texto que a filósofa teoriza sobre o casamento como instituição pedagógica e política a desempenhar
papel estruturante na transformação da sociedade. Para tanto, ela estabelece um diálogo crítico com
Rousseau, em “Emílio, ou: da Educação” (1762). Para Wollstonecraft, a igualdade de gênero se fundamenta
metafisicamente e é alcançada por meio da educação moral. A função do casamento, para a filósofa, é
articular as esferas privada e pública, de maneira engajada nos requisitos revolucionários, como uma
categoria estruturante da transformação social. Este é o sentido da noção de “cimento da sociedade” que
pretendo apresentar.
Palavras-chave: Mary Wollstonecraft, Jean-Jacques Rousseau, Liberdade, Método, Casamento
5 138
AMOR E CASAMENTO: UMA ANTINOMIA PARA EMMA GOLDMAN
Larissa Guedes Tokunaga
Resumo: O escrutínio das entranhas conceituais do matrimônio foi um exercício anarquista que Emma
Goldman realizou em forma de manifesto. Ao contrapor amor e casamento a militante não só expõe como
o primeiro é afeto e o segundo um conceito abstrato, como também escancara a impossibilidade de uma
sociedade emancipada existir enquanto esses polos forem faceados como sinônimos. Este singelo ensaio
buscará mostrar como Goldman constrói sua argumentação mobilizando a literatura, a sexologia e a
filosofia em alinhamento a uma natureza avessa a artifícios forjados historicamente pelas instituições.
Palavras-chave: Casamento; Anarquismo; Amor; Feminismo; Filosofia.
6 151
SOBRE A SUBORDINAÇÃO DA MULHER NO LAR: A ONTOLOGIA HEIDEGGERIANA E
SUA INFLUÊNCIA NO FEMINISMO DE SIMONE DE BEAUVOIR SOB A ÓTICA DE YOUNG
E IRIGARAY
Luana Goulart de Castro Alves
Resumo: Neste ensaio pretendo mostrar como a argumentação de Iris Marion Young é decisiva para o
pensamento sobre a identidade das mulheres e a formação de suas subjetividades. Esses tópicos são de
especial relevância na construção e compreensão de sua crítica à ontologia de Martin Heidegger, que, por
sua vez, é central na fundamentação do feminismo de Simone de Beauvoir. A discussão apresentada por
Young, à luz do pensamento de Luce Irigaray, traz à tona aspectos urgentes de consideração a respeito
das reivindicações éticas e políticas feministas, tendo como eixo principal a relação de subordinação entre
homens e mulheres nos lares.
Palavras-chave: ontologia, gênero, subordinação, lar, feminismo.
7 171
EMMA GOLDMAN E O CASAMENTO COMO INSTITUIÇÃO IRREFORMÁVEL
Mariana Lins Costa
Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar e desenvolver a crítica da pensadora política e
militante anarquista Emma Goldman ao casamento, de modo a elucidar por que para ela tratar-se-ia de
uma instituição irreformável. Sob uma perspectiva materialista e anarquista, Goldman desvela o
casamento como nada mais do que uma das facetas da instituição da propriedade privada. E daí que
defina, de um lado, o casamento como uma forma de prostituição – já que a esposa se vende por toda
vida, enquanto a prostituta, por período determinado –; e, de outro, a prostituição como uma instituição
necessária à instituição casamento – dado que o ideal de monopólio sexual só foi efetivamente exigido à
mulher, pois ao homem sempre foi socialmente admitida a variabilidade sexual com amantes ou
prostitutas. Que nos Estados Unidos à sua época, estivessem legalmente vedadas às mulheres quaisquer
acessos ou informações sobre métodos contraceptivos, também foi interpretado por ela como uma
imposição da lógica mercantil.
Palavras-chave: Casamento. Prostituição. Mulher. Sexualidade. Emma Goldman.
8 192
"MULHERES PODEM EXISTIR?" KIERKEGAARD SOBRE AS MULHERES
Natalia Mendes Teixeira
Resumo: Há um recente movimento metodológico que busca mapear exclusões históricas e questionar
criticamente o cânone filosófico. Ele está pautado na construção de uma história feminista da filosofia que
repensa seus pressupostos éticos, epistêmicos e metafilosóficos e convoca a uma nova historiografia da
filosofia. Uma das tarefas desse movimento é o rastreamento das assimetrias envolvendo as categorias do
masculino e do feminino – nas quais os homens são identificados com a razão e a objetividade (atributos
filosóficos reconhecidamente importantes) e as mulheres com a emoção e a subjetividade (seus pares
femininos supostamente indesejáveis à atividade filosófica). Este trabalho pretende contribuir para esta
discussão ao investigar qual o lugar da mulher na obra do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard.
Palavras-chave: Kierkegaard. História Feminista da Filosofia. Cânone. Século XIX.
9 212
REFLEXÕES SOBRE O AMOR ROMÂNTICO NAS OBRAS LITERÁRIAS EL ALBERGUE DE
LAS MUJERES TRISTES, DE MARCELA SERRANO, E PONCIÁ VICÊNCIO, DE CONCEIÇÃO
EVARISTO
Renata Araújo Matos
Resumo: O amor é um tema continuamente exaltado em nossas relações sociais. Nada obstante, as
experiências amorosas figuram o principal espaço de ocorrência de violências contra as mulheres. Em vista
disso, o presente trabalho busca compreender como a construção social do amor se conecta à
manutenção de relacionamentos abusivos nas obras literárias El albergue de las mujeres tristes, da chilena
Marcela Serrano (2001), e Ponciá Vicêncio, da brasileira Conceição Evaristo (2017). Cabe destacar que as
trajetórias individuais das protagonistas Floreana Fabres e Ponciá Vicêncio são reflexos das paisagens
sociais que compõem as obras, evidenciando diferenças, pautadas pelo gênero, raça e classe, que atuam
no desfecho da história de cada uma. No entanto, a existência de violências no âmbito das relações
amorosas e o adoecimento decorrente (também) das frustrações experienciadas em seus
relacionamentos são características comuns às personagens. A atribuição de papéis sociais às mulheres e
aos homens, no seio da dominação masculina operante no patriarcado, atua na manutenção de relações
abusivas, em que a ideia de cuidado como campo inerente ao feminino é fortemente evocada. Conclui-
se, assim, que o amor romântico incorpora os códigos característicos do sistema de dominação patriarcal
e, concomitantemente, influi na reprodução do mesmo.
Palavras-Chave: amor; cuidado; sistema patriarcal; El albergue de las mujeres tristes; Ponciá Vicêncio.
10 227
CAPITALISMO, SUBJETIVIDADE E AMOR
Rhuann Fernandes
Resumo: Neste ensaio teórico, discuto os processos contemporâneos de transformação na intimidade
ocorridos devido à “emancipação feminina” em curso, articulados, dentre outras conexões, à emergência
da linguagem terapêutica, o que possibilitou modificações na percepção do eu e, consequentemente, na
elaboração de uma nova ética amorosa que interroga a proeminência do amor romântico no contexto
ocidental. Ao interpretar os rumos das relações amorosas, reconheço que os indivíduos se apropriam, cada
vez mais, de uma concepção terapêutica em seus relacionamentos para se defenderem de um
subjetivismo avassalador exigido pelo racionalismo capitalista do mundo contemporâneo.
Palavras-chave: Relações amorosas, Neoliberalismo, Intimidade, Cultura Terapêutica.
APRESENTAÇÃO
Eduardo Vicentini de Medeiros
1
A coletânea pode ser acessada gratuitamente na coleção Dissertatio do selo NEPFIL da Editora da
UFPel: https://wp.ufpel.edu.br/nepfil/
2
Canal no YouTube, com disponibilização gratuita de todas as palestras das edições online do evento
Till Reason Do Us Part: https://www.youtube.com/@tillreasondouspart
12 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
formada por All About Love: New Visions (2000), Salvation: black people
and love (2001) e Communion: the female search for love (2002). A
contribuição de Halina, ao colocar as análises de hooks sobre o amor em
perspectiva, permite sugerir quais seriam algumas das consequências
desse esforço analítico para uma compreensão interseccional das
dinâmicas do amor no casamento: “para hooks, amar verdadeiramente
é possuir consciência de gênero, raça e classe!” Um dos lembretes do
capítulo “As facetas do amor em bell hooks” para as críticas filosóficas
do casamento é, por conseguinte, ressaltar o impacto das nossas
relações amorosas na constituição do espaço público. Halina nos ajuda
a pensar de que modos a ética amorosa proposta por hooks é uma
ferramenta de resistência ao “patriarcado imperialista capitalista de
supremacia branca”, e ao fazê-lo, coloca o casamento e amor no meio da
sala de estar da Ética e da Política.
O nosso projeto de pesquisa, desde sua origem, percebeu que a
crítica filosófica do casamento ganha sua especificidade e radicalidade
com o surgimento dos protofeminismos. E nessa conversa, Mary
Wollstonecraft é uma interlocutora de primeira hora. Katarina Peixoto
nos presenteia com uma reconstrução da teoria do casamento de
Wollstonecraft, contrastando-a com a política educacional para as
mulheres que Rousseau propõe no Livro V de “Emílio, ou: da Educação”
e, ao mesmo tempo, situando-a no contexto tensionado das demandas
por emancipação feminina à época da Revolução Francesa. O capítulo
“‘Cimento da sociedade’: método e metafísica na teoria do casamento de
Mary Wollstonecraft” coloca a instituição do casamento no papel de
articulação entre as esferas privada e pública, à serviço de uma teoria
da liberdade civil como independência que, por sua vez, anda de mãos
Eduardo Vicentini de Medeiros • 15
REFERÊNCIAS
1
Professora substituta no Departamento de Filosofia da UFSM. Pesquisadora em Estágio Pós-Doutoral
na PUCRS. camilabarbosa.ri@gmail.com.
2
Teóricas feministas registram a obra “Reivindicação dos direitos da mulher” de Wollstonecraft como
primeira obra feminista, na medida em que o livro se debruça pela reivindicação social e política de
equidade de gênero, oferecendo um claro recorte da desigualdade como ‘generificada’.
Camila Palhares Barbosa • 19
3
Aqui, fala-se de opressão sistêmica as seguindo o conceito desenvolvido por Frye (1985): “Um dos mais
característicos e ubíquos aspectos do mundo que é experimentado por pessoas oprimidas é o chamado
“nó duplo”: situações nas quais nossas opções são reduzidas a muito poucas e todas elas vêm com
penas, censuras e depravações”
20 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
4
A ampliação conceitual do vocabulário político feminista do período, especialmente a partir da
distinção dos fênomenos sexo (biológico) e gênero (social), permitiram questionar a relação causal que
fundamentava as questões sociais partindo de argumentos naturalizantes. A recepção da afirmação do
“tornar-se mulher” de Beauvoir marca a transição do movimento feninista para sua ‘segunda onda’, em
que passou a ser questionada a mitologia de gênero que fundamentava amplos aspectos do
comportamento feminino e masculino, profundamente implicados nas relações sociais, quase que
exclusivamente em questões biológicas de sexo.
26 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
5
Feministas têm sido críticas às percepções de gênero nos estudos psicanalíticos, que de longa tradição
atribuem comportamentos psíquicos diferentes fundamentados nas expressões de desejo separados
pela distinção sexual. Lacan é um nome frequentemente analisado nas teorias feministas pois, se por
um lado ao tratar do masculino e do feminino como expressões simbólicas da linguagem e refletidas
na vida psíquica e deslocar-se estritamente da visão dos sexos naturais, ainda, por outro, sua afirmação
que a mulher se caracteriza pela inveja em função da ausência do falo, certamente permanece vinculado
aos ideais misóginos de discursos dominantes. Como descrito por Wittig: “nossa recusa da interpretação
totalizante da psicanálise faz com que os teóricos digam que estamos a negligenciar a dimensão
simbólica. Estes discursos negam-nos toda a possibilidade de criar as nossas próprias categorias”
(WITTIG, 1992, p. 6).
32 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
6
“[...] nos meninos o complexo de Édipo tem uma dupla orientação, passiva e ativa, de acordo com sua
constituição bissexual; [o menino deseja sua mãe e quer tomar o lugar do pai como objeto de desejo
da mãe, mas] o menino também quer tomar o lugar da mãe como objeto de desejo do seu pai – fato
que descrevemos como atitude feminina” (FREUD, 1996, p. 104).
7
GULLICKSON, Anna. Sex and Gender Through an Analytic Eye: Butler on Freud and Gender Identity, op. cit.,
p. 10.
Camila Palhares Barbosa • 35
8
Ver Hainamäa, Sara. A Phenomenology of Sexual Difference: Types, Styles and Persons. Feminist
Metaphysics, Feminist Philosophy Collection, 131, 2011
48 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
9
Há, de fato, um debate mais amplo sobre as diferenças sexuais no período. Uma das marcas dos
debates feministas da década de 1970 é o embate no campo do chamado feminismo radical, que centra
as suas premissas numa abordagem historicizada da ontologia social que se desenvolve os conceitos
de gênero como a opressão primeira. Assim, a forma de subordinação da mulher e dominação do
homem, é a estrutura fundamental da diferença sexual (ver Mackinnon, 1997). Desse debate, houveram
algumas rupturas na militância e na teoria, dando origem a algumas modificações que serão mais
atreladas à forma essencializada do gênero, afirmando que a ontologia social de gênero é relacionada
especificamente com os correlatos machos e fêmeas, colocando assim, uma experiência de gênero
como relacionada às especificidades biológicas. Essa abordagem foi chamada, dentro do próprio
movimento feminista, de TERF ou feminista radical trans-excludente (do inglês: trans-exclusionary radical
feminist). Os argumentos de feministas TERF, apesar de existentes, podem sem dúvidas ser considerados
periféricos e bastante problematizados pelos feminismos mais amplos, que como dito, usualmente tem
como método compartilhado o final da opressão específica de gênero através do questionamento da
suas premissas naturalizadas na sociedade. Assumi aqui uma contraposição com as versões mais
amplamente aceitas e dominantes do feminismo, da mesma forma, que discuto as questões de gênero
da psicologia evolucionista e psicanálise partindo de seus autores mais influentes e relevantes.
Camila Palhares Barbosa • 49
10
O termo ideologia como utilizado por Ruti busca representar um discurso universalizante pautado por
certas crenças de grupos dominantes, mas, certamente, implica em resultados demasiadamente
materiais. Wittig sinaliza esse aspecto do termo: “Ao usarmos o termo demasiado genérico ’ideologia’
para designar todos os discursos do grupo dominante, relegamos estes discursos para o domínio das
Ideias Irreais; esquecemos a violência material (física) que diretamente fazem contra as pessoas
oprimidas, violência essa produzida pelos discursos abstratos e “científicos”, assim como pelos discursos
dos mass media. Gostaria de insistir na opressão material dos indivíduos pelos discursos, e gostaria de
sublinhar os seus efeitos imediatos” (WITTIG, 1992, p.5).
Camila Palhares Barbosa • 53
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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BUTLER, J. The psychic life of power: theories in Subjection. Redwood City: Stanford
University Press, 1997.
BUSS, D. The Evolution Of Desire: Strategies Of Human Mating. Basic Books, 1994.
BUSS, D.; SMITH, S. Evolutionary Psychology and Feminism. In: Sex Roles, 64:768–787, 2011.
BUSS, D. The Future of Evolutionary Psychology. In: Psychological Inquiry, 6:1, 81-87,
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FINE, C. Testosterone rex: Unmaking the myths of our gendered minds. Icon Books, 2017
FINE, C. Delusion of Gender: how our mind, society, and neurosexism create differences.
Norton & Company, 2010.
GULLICKSO, A. Sex and Gender Through an Analytic Eye: Butler on Freud and Gender
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FOUCAULT, M. História da Sexualidade: vol. I, II, III e IV. Paz e Terra, 2020.
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FREUD, S. O ego e o id e Outros Trabalhos (1923-1925). Volume 19. Imago; Edição: 1ª edição -
Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 1996.
HYDE, J. S. The gender similarities hypothesis. American psychologist, 60(6), 581, 2005.
KRIEGER N. “Structural Racism, Health Inequities, and the Two-Edged Sword of Data:
Structural Problems Require Structural Solutions”. In: Public Health. 9:655447. doi:
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MACKINNON, C. Towards a feminist theory of the state. Harvard University Press, 1991.
RUTI, M. The age of scientific sexism: how evolutionary psychology promotes gender
profiling and fans the battle of the sexes. Bloomsbury Academic, 2015.
WITTIG, M. The Straight Mind and other Essays. Boston: Beacon, 1992.
WRIGHT, R. The Moral Animal: Why We Are, the Way We Are: The New Science of
Evolutionary Psychology. Vintage, 1994.
A ANTROPOLOGIA DE EDITH STEIN OU
2
O PAPEL DA MULHER E DO HOMEM PARA
ALÉM DA REALIZAÇÃO DO CASAMENTO
Danilo Souza Ferreira 1
INTRODUÇÃO
1
Doutorando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, Mestre em História, Mestre em
Estudos da Linguagem, ambas pela mesma Universidade.
58 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
decano havia proposto a nota Summa cum laude ” (STEIN, 1992, p. 374).
Sendo este o último marco de sua trajetória descrita nessa
autobiografia, interrompida pela tarefa confiada a ela de escrever um
ensaio biográfico sobre São João da Cruz em ocasião dos seus 400 anos
de nascimento.
Além de biógrafa que buscava registrar o seu lastro histórico e dos
demais personagens ligados à tradição judaica, como os membros da sua
família e da tradição cristã, a exemplificar o cardeal John Henry
Newman, São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila, a intelectual Edith
Stein também atuou como sujeito de seu próprio tempo, quando se
inscreve aos 20 anos de idade no dia 28 de abril de 1911, na Universidade
de Breslau, e descreve que essa conquista pessoal era fruto da conquista
do movimento das mulheres do século XX. Ela descreve:
Minha mãe abençoou com sua mão protetora. Ocasionalmente dizia ter
preferido se tivesse escolhido leis (direito). Mas se podia replicar que as
mulheres não eram ainda admitidas para o exame de direito. Para um
trabalho social nenhuma das duas pensavam. Por outro lado, a preocupação
de minha mãe era apenas uma discreta sugestão. Entendia me deixar livre:
“Ninguém, nunca te disse o que deves fazer, e não existe ninguém que possa
fazê-lo. Faça aquilo que achar justo”. Assim podia caminhar por minha
estrada sem preocupação. (STEIN, 1992, p.158)
Vemos mulheres na poesia hoje e nas últimas décadas como se elas fossem
o diabo do abismo. Em ambos os lados, temos uma grande responsabilidade.
Nosso senso e nossa vida são apresentados a nós como um problema.
(STEIN,1999, p.83)
Edith Stein não optou por uma prova filosófica que demonstra que
existe um tipo ideal de mulher, então, percebendo essa dificuldade em
estabelecer um tipo mulher, ela decide pesquisar na literatura, pois é no
fazer literário que os ‘tipos’ femininos são observados, representados e
idealizados.
Nesta tarefa de procurar por "tipos" femininos, ela escolhe três
autores. Mas não são escolhidos aleatoriamente, e sim de uma maneira
muito significativa, uma vez que os autores escolhidos são feministas
ou do seu próprio ambiente cultural. Esses escritores são: Sigrid Undset
(1882-1949), Henrik Ibsen (1828-1906) e Johann Wolfgang Von Goethe
(1749-1932). Todos os três são relativamente contemporâneos a Stein.
Sigrid Undset, é a única mulher do grupo que é norueguesa, assim
como o dramaturgo Henrik Ibsen. Conforme aponta Cristina Ruiz
Alberdi Fernández, os países nórdicos foram os primeiros países em que
o movimento feminista alcançou mais conquistas (FERNÁNDEZ, 2010,
p.217). Johann Wolfgang Von Goethe é alemão como Edith Stein. Cada
Danilo Souza Ferreira • 69
No caso de Sigrid Undset, ninguém pensará que o motivo tenha sido l'art
pour· l'art. Sua literatura é confissão sem concessões. Tem-se até a
Impressão de que ela sente uma verdadeira compulsão de expressar o que a
realidade brutal lhe impõe. E eu acho que todo aquele que observa a vida
com sinceridade e objetividade não pode negar que ela trabalha com tipos
reais, mesmo que tenham sido escolhidos com uma certa unilateralidade.
Parece que essa unilateralidade exprime uma determinada tendência: ela
destaca o elemento animalesco e instintivo em oposição a um idealismo
mentiroso e um intelectualismo exagerado que gostaria de elevar-se acima
da realidade terrena. (STEIN, 1999, p. 111)
Sra. Linde - E então? Você nunca confiou em seu marido? -Nora- Deus não
permita! Como você teve essa ideia? Ele, tão severo por essas coisas! De
resto, Torvaldo (Helmer), com sua auto-estima como homem, acharia muito
doloroso e humilhante saber que ele me devia algo. Nossos relacionamentos
teriam sido estragados e a felicidade de nossa casa teria sido abandonada
para sempre. (IBSEN, 1999, p.27)
verdade, porém sua reação é contra Nora, além de dizer que a despreza
mas ficaria ao seu lado apenas para manter as aparências sociais.
A partir da fala de Helmer, Nora percebeu que o primeiro dever é
consigo mesma. A despedida questiona se realmente existe um
casamento real. Quando Nora sai, Helmer a lembra do que costumava
dizer, que um milagre pode acontecer. E Nora, com certo ceticismo,
responde:
Helmer - Oh, é odioso!" Trair os deveres mais sagrados! -Nora- Como você
chama seus deveres mais sagrados. Helmer-Terei de lhe contar? Seus
deveres para com seu marido e filhos? - Nora-eu tenho outros deveres não
menos sagrados. (IBSEN, 1999, p.27)
Rei Thoas - Embora eu devesse esperar. Ele não sabia, talvez, que estava
lidando com uma mulher? -Ifigênia- Não deprecie nosso pobre sexo, ó rei!
Armas não são como suas mulheres refulgentes; mas nem ignóbil. Acredite
que estou à sua frente em algo; em que sua felicidade é melhor do que você
imagina. Sem te conhecer ou me conhecer, você se dá a ilusão de que uma
união entre os dois mais próximos de ambos o faria feliz. Encorajados pela
melhor intenção e pela melhor vontade, você me incentiva a concordar; mas
agradeço aos deuses por me emprestarem a integridade necessária para
recusar uma união que eles não aprovam. (GOETHE, 1869, p.1735)
de que um dia ela poderá retornar à sua terra natal. Seu irmão Orestes
e sua amiga Pilades decidem resgatá-la do país dos citas. Eles chegam
na praia e são pegos pelos guardas do rei. Era costume naquele país que
estrangeiros fossem sacrificados aos deuses.
Quando Ifigênia descobre que há dois homens sob sentença de
morte, ela intercede pelo rei. No começo, ela não os reconhece, mas
Pilades fala com ela e diz quem são e o que queriam quando a
procuravam. O caráter de Orestes representa o homem que sofre com o
remorso do crime. Ele precisa ser libertado pelo perdão dos deuses.
Pilades conversa com Ifigênia para explicar que seu irmão precisa se
libertar da angústia de seu passado. Ifigênia, Pilades e Orestes estão
convencidos de que o rei os matará quando descobrir que eles foram
procurar Ifigênia para levá-la com eles, portanto planejam escapar. Mas
para isso é necessário roubar a imagem da deusa Diana, pois foi ela
quem libertou Ifigênia da morte. Ifigênia precisa tomar uma decisão que
envolve a luta entre verdade e mentira. É o grande teste que ela precisa
passar. Diga a verdade ao rei, apesar do risco de morrer ou escapar.
Ifigênia decide falar com o rei e dizer a verdade. A primeira reação do
rei é muito violenta, ele quer lutar contra Orestes; no entanto, a
sinceridade de coração que ele observa em Ifigênia o desarma de tal
maneira que ele lhes permite retornar à sua terra natal:
Ifigênia-Não! Essa prova sangrenta não é necessária, ó rei! Tire sua mão do
aço! Pense em mim e no meu destino. A breve luta imortaliza o homem; em
um instante ele cai e os poetas o elogiam em suas canções. Mas a
prosperidade silenciosamente passa as lágrimas, as infinitas lágrimas das
mulheres que sobreviveram abandonadas e o bardo de milhares de noites e
dias não dizem nada que, a planície consome uma alma mansa, dissolvendo-
se em vão invocações ao amigo prematuramente perdido, em meio a dores
abrasadoras. (GOETHE, 1869, p.1735)
Danilo Souza Ferreira • 75
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BELLO, Angela Ales. Edith Stein e o nazismo. Roma: Città Nuova, 2005.
BELLO, Angela Ales. Edith Stein. La passione per la verità. Padova: Messaggero,2003.
GELBER, Lucy. Prefácio dos Editores. In: STEIN, Edith. A mulher: sua missão segundo a
natureza e a graça. Bauru, SP: EDUSC, 1999.
LOWY, Michael. Notas sobre os Intelectuais Judeus. In: Judeus Heterodoxo Brasil: Editora
Perspectiva, 2012.
SCHELER, Ferdinand Max. A posição do homem no cosmo. ed. Rio de Janeiro: Editora
Florense Universitária, 2003.
STEIN, Edith. A mulher: sua missão segundo a natureza e a graça. São Paulo. Ed: EDUSC,
1999.
STEIN, Edith. Live in a Jewish Family - her unfinished autobiographical account in The
Collected Works of Edith Stein. Washington: Publications.1986.
STEIN, Edith. Vida de uma família judia e outros escritos autobiográficos. São Paulo. Ed:
Paulus, 2018.
INTRODUÇÃO
1
Doutora em Filosofia (USP)
Professora do Quadro da Universidade Regional de Blumenau, FURB
Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional, PPGDR-FURB
e-mail: halina.leal@gmail.com
Halina Leal • 81
2
Obra traduzida em 2020 pela Editora Elefante.
82 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
A ÉTICA DO AMOR
Indivíduos que escolhem amar podem alterar e alteram a própria vida para
honrar a primazia da ética amorosa. Nós fazemos isso ao escolher trabalhar
com indivíduos que admiramos e respeitamos; ao nos comprometermos a
nos entregar inteiramente em nossos relacionamentos; ao abraçar uma
visão global em que vemos nossa vida e nosso destino como intimamente
ligados aos de todas as outras pessoas do planeta. O compromisso com uma
ética amorosa transforma nossa vida ao nos oferecer um conjunto diferente
de valores pelos quais viver. Em grande e em pequena escalas, fazemos
escolhas baseadas na crença de que a honestidade, a franqueza e a
integridade pessoal precisam ser expressas nas decisões públicas e
privadas. (hooks, 2020, p. 123-124)
outras e com tudo que as cerca, e hooks salienta o quanto isso é difícil
em sociedades estruturadas em relações de poder e opressão. Segundo
ela, a “cultura de dominação” em que vivemos se reforça ao colonizar
nosso entendimento de nós mesmas/os. Isso ocorre, na medida em que
a principal dinâmica de sociedades marcadas por relações de opressão
é a desvalorização e desumanização das pessoas. No modo como os
sistemas opressivos funcionam, as pessoas respondem à desumanização
pela qual são submetidas, atacando individualmente umas às outras ou
grupos entre si, mais do que se voltando contra o sistema que mantém
essa lógica de desvalorização, de desumanização e de cisão entre as
pessoas. Na sua análise, hooks salienta o quanto o “patriarcado
capitalista supremacista branco” se beneficia com essa cisão e com a
falta de conexão das pessoas umas com as outras.
Para hooks, compreender como esse processo funciona é essencial
para caminharmos em direção ao amor. Diz ela:
INTERDEPENDÊNCIA
3
hooks, B. WEST, C. Breaking Bread: Insurgent Black Intellectual Life. Boston: South End. Press, 1991.
Halina Leal • 87
Sem uma ética do amor moldando a direção de nossa visão política e nossas
aspirações radicais, muitas vezes somos seduzidas/os, de uma maneira ou
de outra, para dentro de sistemas de dominação — imperialismo, sexismo,
racismo, classismo. (...) Até todos nós sermos capazes de aceitar a natureza
interconectada e interdependente dos sistemas de dominação e
reconhecermos as formas específicas de manutenção de cada sistema,
continuaremos a agir de forma a minar nossa busca individual por
liberdade e nossa luta por libertação coletiva.
A capacidade de reconhecer pontos cegos só pode surgir à medida em que
expandimos nossa preocupação sobre a política de dominação e nossa
capacidade de nos preocuparmos com a opressão e exploração de outrem.
Uma ética do amor torna possível essa expansão. (hooks, 2006, p. 289-290 –
tradução da autora)
Quando ela traz esse ponto, ela foca suas análises nos movimentos
de libertação de opressões, sobretudo de raça e de gênero. Ela nos diz
que sem a ética do amor a moldar nossa visão política e nossas
“aspirações libertárias”, somos atraídas e atraídos para a lógica da
dominação. hooks sempre expressou espanto pelo fato de mulheres e
homens comprometidas e comprometidos com seus trabalhos de
resistência, resistirem a outros movimentos que não os “seus”. (hooks,
2006) Ela afirma:
AS MULHERES E O AMOR
Uma ética do amor requer trabalho em nome dos outros. Isso facilita uma
“renovação do espírito” e nos conduz a “viver em comunidade”, no sentido
de que os outros estão conosco na luta pela mudança. Esta ética do amor é
uma forma de garantir que nossas intenções sejam puras: Sem amor, nossos
esforços para libertarmos a nossa comunidade mundial da opressão e
exploração estão condenados. (hooks, 2006, p. 206 – tradução da autora)
REFERÊNCIAS
hooks, b. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Tradução Stephanie Borges. São Paulo:
Elefante, 2020.
_________. Salvation: Black People and Love. New York: Harper Perennial, 2001.
_________. Communion: The Female Search for Love. New York: Harper Perennial,
2003.
WEST, C and hooks, b. Breaking Bread: Insurgent Black Intellectual Life. Boston: South
Press, 1991.
4
“CIMENTO DA SOCIEDADE”:
MÉTODO E METAFÍSICA NA TEORIA DO
CASAMENTO DE MARY WOLLSTONECRAFT
Katarina Ribeiro Peixoto
INTRODUÇÃO
“O homem nasce livre e, em toda parte, ele está acorrentado. Tanto se crê
mestre dos outros, que não deixa de ser ainda mais escravo que eles. Como
se dá essa mudança? Eu o ignoro. O que a pode tornar legítima? Acredito
que posso resolver essa questão” (Rousseau 1819, p. 666).
“Iludido por seu respeito à bondade de deus, que certamente deu vida
apenas para transmitir a felicidade - pois qual homem de bom senso e
sentimento duvidaria disso? - considera o mal positivo e obra do homem,
sem levar em conta que exalta um atributo em detrimento de outro,
igualmente necessário à perfeição divina”. (Wollstonecraft 2016, p. 33)
moral, como ponto de partida para o estado civil, recusa a tese com a
qual Rousseau rompe com a tradição, ao não aceitar o paradigma
antropológico da bondade natural que acarretaria uma irredutibilidade
normativa da vontade atual. A crítica de Wollstonecraft se torna clara,
filosoficamente, não pela estrutura panfletária de seus sermões morais,
mas pela defesa consistente, preservada em todos os capítulos do texto,
de que a vontade atual (tal como apresentada em seus efeitos, dentre os
quais a doutrina da sensibilidade e sua educação moral deletéria para as
meninas, crianças e famílias) não pode ser o paradigma para o papel
fundacional da educação. Por que? Porque a vontade atual, tal como
Rousseau a trata, desumaniza e desnaturaliza a mulher. É este o efeito
da teoria da vontade de Rousseau que ocupa o ponto central da crítica
de Wollstonecraft, em todo o texto. Já ao fim do primeiro capítulo de
“Reivindicação dos direitos da mulher”, podemos ler:
“o falso sistema dos modos femininos, que desposa todo o sexo de sua
dignidade e classifica a sua beleza e opacidade como as flores sorridentes
que apenas adornam a terra. (…). Assim, o entendimento, estritamente
falando, tem sido negado à mulher, sublimado em perspicácia e astúcia para
as coisas da vida” (Wollstonecraft 2016. pp. 45-6)
“Rousseau declara que uma mulher não deveria, nem por um momento,
sentir-se independente, que ela deveria ser governada pelo temor de
exercitar sua astúcia natural e feita uma escrava coquete, a fim de tornar-
se um objeto de desejo mais sedutor, uma companhia mais doce para o
homem, quando este quiser relaxar. Ele leva ainda mais longe o argumento,
que alega extrair dos indícios da natureza e insinua que verdade e força
moral, pedras angulares de toda virtude humana, deveriam ser cultivadas
com certas restrições, porque, no que diz respeito ao caráter feminino, a
obediência é a grande lição a ser inculcada com extremo rigor”
(Wollstonecraft 2016, p. 47).
“Nós nascemos, por assim dizer, duas vezes: uma para existir e outra, para
viver; uma para a espécie e outra, para o sexo (…). É este o segundo
nascimento (…). É aqui que o homem nasce verdadeiramente para a vida, e
que nada de humano lhe é estranho. (…) Esta época em que termina a
122 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
“dá às mulheres um espírito tão agradável e fino; (…) quer que elas pensem,
que julguem, que amem, que conheçam, que cultivem o espírito tanto
quanto sua aparência; estas são as armas que ela lhes dá para suprir a força
que lhes falta e para que governem a nossa. Elas devem aprender muitas
coisas, mas apenas aquelas que lhes convém saber (Rousseau 2004, p. 526,
minhas ênfases)”.
para toda a sociedade. Afirma a filósofa: “Não nos é dito em que consiste
a existência das mulheres quando não há casamento nem promessa de
casamento” (Wollstonecraft 2016, p. 55). Em que consiste a existência das
mulheres, quando se toma o casamento como uma categoria da vida
social e da educação para a liberdade? Esta é a questão conceitual que a
situa como uma teórica do casamento. Para apresentar essa teoria,
então, vamos seguir os passos de alguns dos usos do conceito ao longo
do texto. Ao final, a formulação de que o casamento é o “cimento da
sociedade” poderá ser compreendida em sua extensão, no feminismo de
Wollstonecraft.
“Reivindicação dos direitos da mulher” é dedicado a Talleyrand-
Périgord, antigo bispo de Autun, e um dos responsáveis pela reforma
educacional no processo revolucionário iluminista, na França. Em 1791,
Talleyrand publicou o Rapport sur l’instruction publique, um documento
base para fixar a estrutura do sistema educacional da França
republicana. Para Wollstonecraft, o intelectual não teria enfatizado
suficientemente a necessidade de articular o acesso universal a uma
educação republicana ao acesso das meninas ao sistema, na medida em
que reservou a educação das meninas ao seio familiar. Neste breve
texto, a filósofa defende os direitos da mulher como produto da
educação das meninas: “se a mulher não for preparada pela educação para
se tornar a companheira do homem, ela interromperá o progresso do
conhecimento e da virtude; pois a verdade deve ser comum a todos”
(Wollstonecraft 2016, p. 18). A educação, portanto, precisa ser, também
e necessariamente, pública.
Ora, a educação no seio da família é, para Rousseau, um requisito
metodológico para a formação moral da criança. Ao tomar o casamento
como uma categoria filosófica, Wollstonecraft, defende uma articulação
Katarina Ribeiro Peixoto • 127
por isso que se pode dizer que uma das primeiras feministas modernas
foi, em acepção própria, uma filósofa do casamento.
Em um dos capítulos finais do texto de 1792, Wollstonecraft
apresenta o que ela quer dizer com a afirmação de que o casamento é o
“cimento da sociedade”:
1
A acepção de metafísica como o que estaria além da física, aqui, não parece ter cabimento. O recurso
de Wollstonecraft a uma criação divina não tem um papel teológico senão como um um recurso deísta.
A metafísica pressuposa é uma metafísica da natureza humana, como razão a ser aperfeiçoada em seres
naturalmente racionais, independentemente do seu sexo e gênero. Para ler uma leitura distinta, ver o
texto de Sandrine Bergês, mencionado ao longo deste estudo.
130 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
passivas e indolentes, não são boas esposas (p. 56), porque o tempo do
direito divino dos maridos, tal qual o direito divino dos reis, nesta época
iluminista, é de se esperar que seja questionado sem perigo (p. 64). Para
que mulheres e homens sejam independentes, eles precisam aprender a
sê-lo desde a tenra infância, sendo ensinados a “pensarem e a agirem por
conta própria” (p. 70) Somente assim podem existir e eventualmente
sobreviver a um marido, por mais sensato que esse seja, caso venha a
morrer e a deixá-la com uma grande família (p. 72).
A mulher, portanto, deve ser formada, deve desenvolver o seu
entendimento, mesmo que se case por afeto. E se o marido não for
virtuoso, tanto mais a mulher necessitará de princípios independentes
(p. 74), cuja obtenção deve ser a tarefa da vida de uma mulher, porque,
do contrário, serão muito pouco talhadas para dirigir uma família (p.
94). Ceder à prostituição legal, isto é, ao projeto do casamento como
único destino de sustento possível, torna a mulher refém da astúcia e
da melancolia solitária do despreparo para lidar com as dificuldades da
vida e da criação de filhos (pp. 86 e 93). A mulher que não tiver a mente
expandida pelo cultivo pode vir a tiranizar o lar, tornando-se uma
gestora da casa ou, ainda, uma escrava doméstica (p. 94). Essas mulheres
dependentes, afirma a filósofa, serão sempre as “senhoras dos maridos”
(no sentido de propriedade deles), carentes de independência e de
reflexão (p. 95). Em vez de as jovens se casarem apenas para melhorar
sua condição, elas deveriam tornar-se virtuosas, por meio do exercício
de suas habilidades e de seu entendimento, de onde surge a verdadeira
graça (p.124).
Essas teses, que ocupam “Reivindicação dos direitos da mulher” e
eram distribuídas em panfletos depois reunidos em capítulos, não
conformam um conjunto de aparência consistente. Por um lado,
132 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
“Para ser uma boa mãe, a mulher deve ter bom senso e aquela
independência da mente que poucas possuem, já que são ensinadas a
depender inteiramente do marido. Esposas submissas são, em geral, mães
tolas, desejando que seus filhos as amem acima de tudo e se posicionem, em
134 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
segredo, contra o pai, que é apontado como um espantalho. (…). Seu afeto de
mãe, de fato, raras vezes merece esse nome quando não a leva a amamentar
os filhos. (…) Que afinidade exercita uma mãe que manda seu bebê para uma
ama de leite e ou pega para enviá-lo à escola? (Wollstonecraft 2016, p. 197)”
AGRADECIMENTOS:
REFERÊNCIAS
OBRAS DE WOLLSTONECRAFT:
OBRAS DE ROUSSEAU:
Du Contrat Social ou: principe du droit politique. In: Ouvres Complètes de J. J. Rousseau, avec
des notes historiques, Tome I. Paris, Chez Alexandre Roussiaux, Librarie, 1819:
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k206990x
Emílio ou: Da Educação. Tradução: Roberto Leal Ferreira, São Paulo, Martins Fontes,
2004.
LITERATURA SECUNDÁRIA:
BURKE, E. Reflections on the Revolution in France. In: Select Works of Edmund Burke.
Foreword and Biographical Note by Francis Canavan. Indianapolis: Liberty Fund.
Vol. 2, 1999.
FRICKER, M. Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. Oxford Scholarship,
2007.
PRICE, Richard. A Discourse on the Love of our Country, delivered on Nov. 4, 1789, at the
Meeting-House in the Old Jewry, to the Society for Commemorating the Revolution in
Britain. With an Appendix. Second edition. London: T. Cadell, 1789.
AMOR E CASAMENTO:
5
UMA ANTINOMIA PARA EMMA GOLDMAN
Larissa Guedes Tokunaga 1
INTRODUÇÃO
1
Bacharela e licenciada em História, pela FFLCH/USP, Mestra e Doutora em Ciências pelo Programa de
Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e outras Legitimidades – DIVERSITAS/FFLCH/USP. O presente
trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -
Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Contato: lariguetokunaga@gmail.com
Larissa Guedes Tokunaga • 139
2
Cf. CALVERTON, Victor Francis. Sex expression in literature. New York: Boni &Liveright, 1926.
FISCHER, Jacques. Love and Morality: an attempt at a physiological interpretation of human thought. New
York: Alfred A. Knopf, 1927.
BLOCH, Iwan.The Sexual Life of Our Time in Its Relations to Modern Civilization (1908). Arkose Press, 2015.
140 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
3
Profundamente afinada com a emergente bibliografia na área da sexologia, Emma Goldman realizou
um embasamento teórico a partir de obras como A Psicologia do Sexo (1933), de Havelock Ellis. Em 1916,
a anarquista ofereceu uma palestra sobre a obra The Intermediate Sex, de Carpenter, defendendo o
reconhecimento da homossexualidade como uma realidade emocional e sexual.
Larissa Guedes Tokunaga • 141
É verdade que somos mais esclarecidos do que éramos, mas ainda não
atingimos o estágio em que a simples menção ao sexo não provoque
respostas de reprovação ou insultos. Não são poucas as pessoas que
defendem que o “conhecimento sexual” é algo questionável, ou, na melhor
das hipóteses, algo que deve ser mantido em sigilo no interior dos “livros de
medicina”; ou, ainda, há quem considere a posse desse conhecimento uma
banalidade característica aos irremediavelmente desavergonhados. Como
resultado, a literatura pseudocientífica acerca do “sexo” é derramada sobre
as nossas emoções, deixando os fatos intocados, quando não os apresenta
sob disfarces. Muito do que é produzido não possui fundamentação
biológica ou qualquer relação com as leis da vida que governam o ser
humano, não menos do que a qualquer outro ser vivo. É o medo (às vezes
chamado de “reverência”) que nos faz “deixar o sexo em paz”. São o recato
dissimulado e a vergonha estúpida, disfarçados sob o nome de “decência”,
142 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
Até que a mulher aprenda a desafiar todos eles [os tiranos internos], a
permanecer firme em seu próprio terreno, a insistir na sua liberdade
irrestrita, a ouvir a voz da sua natureza, seja esta voz um chamado para o
146 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
sacrifícios cruéis à sua alma. Sobre o seu corpo cheio de vigor pende uma
cabeça cansada de morte, e as maçãs pálidas do seu rosto denunciam a
sangria lenta da sua juventude. Pobre criança, quantas vezes as paixões
bateram na porta do seu coração e os intensos poderes da juventude
reclamaram os seus direitos? Quando a sua cabeça revirava no travesseiro
macio, como a natureza desperta tremia pelos seus membros, como o
sangue inchava as suas veias e fantasias ardentes derramavam o brilho da
volúpia nos seus olhos! Mas aí aparecia o fantasma da alma e da sua bem-
aventurança eterna. Você ficava aterrorizada, suas mãos se recolhiam, seus
olhos atormentados se voltavam para o alto, você rezava. As tempestades
da natureza foram silenciadas, a calmaria deslizou sobre o oceano dos seus
desejos. [...]Adormecias, e despertavas pelas manhãs para novas batalhas e
novas orações. Agora, o hábito da renúncia gela o calor do seu desejo e as
rosas da sua juventude estão se tornando pálidas na anemia da sua
beatitude. A alma está salva, o corpo pode perecer. (GOLDMAN, 1935, p.251)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
CALVERTON, Victor Francis. Sex expression in literature. New York: Boni &Liveright,
1926.
1
Doutoranda em Filosofia no Husserl Archiv da Albert Ludwigs-Universität Freiburg e em Sociologia na
Universidade Estadual do Ceará. Email: s.luanagoulart@gmail.com
2
YOUNG. I. M., House and Home: Feminist Variations on a Theme. In. Feminist interpretations of Martin
Heidegger. edited by Nancy J. Holland and Patricia Huntington. The Pennsylvania State University, 2001,
p.252.
3
Muitas feministas como, por exemplo, Teresa Lauretis e Bonnie Honig entendem o lar como um
elemento patriarcal e absolutamente negativo e, por essa razão, defendem o abandono do mesmo.
Young não nega essa perspectiva, nem se coloca completamente contrária aos argumentos que a
sustentam. Todavia, ela buscará outra perspectiva com a qual também seja possível pensar o lar sob
uma ótica feminista. Nas palavras dela: “The question for postmodern living is whether an end to such
exploitation requires rejecting entirely the project of supporting identity and subjectivity embodied in
the patriarchal ideology of home. The feminist writers with whom I engage in Section VI answer this
question affirmatively. While I accept many of their reasons for leaving home, I wish to explore another
possibility. Is it possible to retain an idea of home as supporting the individual subjectivity of the person,
where the subject is understood as fluid, partial, shifting, and in relations of reciprocal support with
others? This is the direction in which I find Irigaray pointing to an alternative to the desire for fixed
identity that historically imprisons women.” (YOUNG, 2011,p.260)
152 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
4
A principal obra de Heidegger na qual estão baseados os apontamentos desse texto é: Martin
Heidegger, Poetry, Language, Thought, trad. Albert Hofstadter. New York: Harper and Row, 1971.
5
É preciso notar que o termo em inglês utilizado por Young, “dwell”, é frequentemente traduzido para
o português como “morar” ou “habitar”. Entretanto, a forma como ele é empregado aqui faz referência
ao pensamento e vocabulário de Martin Heidegger e, portanto, sua tradução para o português, a partir
dessa matriz conceitual, passa por algumas dificuldades. Em primeiro lugar, precisamos notar que a obra
seminal de Heidegger “Ser e Tempo” teve sua primeira tradução, no final da década de oitenta, realizada
por Marcia Sá Cavalcante Schuback, feita diretamente do alemão para o português. Nela o termo alemão
“Dasein” é frequentemente traduzido por “presença”. Em outras traduções de Heidegger para o
português, o termo “ser-aí” também se configura como uma tradução possível para “Dasein”, como no
livro Compreender Heidegger de Marco Antonio Casanova (2014). Por conta dessa dificuldade de
tradução, optei por tratar “dwell” e suas variações por aquilo que a própria Young parece sugerir na
passagem: “I begin by noting Martin Heidegger’s equation of dwelling with the way of being that is
human” (p.253), isto é, modo de ser humano.
Luana Goulart de Castro Alves • 153
humano, pois, tal como Young aponta para nós ao longo do texto, a
construção é associada a atividades eminentemente realizadas por
homens.
Para que seja possível uma melhor compreensão das ideias
destacadas acima, analisaremos mais detalhadamente como a autora
percebe e descreve o modo de ser tal como ele aparece no arcabouço
conceitual heideggeriano. Em primeiro lugar, é preciso estar ciente de
que a ontologia de Heidegger é descrita em um registro universalista.
Heidegger é, pelo menos nesse sentido, um filósofo bem tradicional.
Quando ele nos oferece descrições ontológicas, ele se insere na tradição
filosófica, buscando elucidar, inclusive, a compreensão, ou má
compreensão, do Ser (Sein), segundo sua utilização e desdobramentos
filosóficos desde a filosofia metafísica da Grécia Antiga até o
pensamento filosófico contemporâneo. Isso significa que quando
Heidegger aborda a ontologia, ele não está se dirigindo aos aspectos
materiais e sociais de nossa vida, que dão-lhe particularidade e
especificidade, pois isso se encontra, segundo ele, na perspectiva ôntica.
Logo, quando Heidegger desenvolve sua ontologia, ele não descreve o
Ser segundo distinções de gênero, raça, idade, ou qualquer aspecto que
se determina na esfera ôntica. Esse destaque é importante, pois ele pode
evitar muitos desvios e erros de compreensão quando buscamos
compreender e associar a participação dos gêneros na ontologia de
Heidegger. Todavia, a ontologia de Heidegger é formulada com o intento
de descrever e, assim, fundamentar o que ocorre na esfera ôntica. Isso
significa que o que ocorre na esfera ôntica deve estar em consonância
com a ontologia, e vice-versa, isto é, que o que é descrito na ontologia
tem como base os acontecimentos ônticos. Entrelaçando e tensionando
a relação entre ontologia e onticidade, é possível trazer alguns
154 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
6
Como diz Young: “Even today, when women have moved into so many typically male activities,
building houses and other structures remains largely a male activity in most parts of the world.”(YOUNG,
2011,p. 255)
Luana Goulart de Castro Alves • 155
7
O que daqui para frente se refere ao aspecto da construção no modo de ser humano tem origem no
termo em inglês utilizado por Young em seu texto de 2011 como “building”. Neste presente ensaio não
entraremos nos meandros de significado do termo, passando ao largo da caracterização dos dois
aspectos de “building”: “cultivating” e “construction”. De forma simplificada, optamos por traduzir
“building” como “construção”.
8
Acho importante notar que essa prevalência da construção no pensamento de Heidegger, segundo
gostaria de sugerir, pode ser entendida como reminiscência e herança da tradição hermenêutica que
tanto influenciou o pensamento do filósofo. Assim como Georgia Warnke aponta ao longo de seu livro
de 1987,”Gadamer: Hermeneutics, Tradition and Reason”, um dos conceitos mais centrais na tradição
hermenêutica, destacada especialmente em um de seus mais emblemáticos pensadores, isto é,
Friedrich Schleiermacher, é precisamente o momento da criação/construção. Na hermenêutica de
Schleiermacher a compreensão adequada, tal como ele aponta em seus escritos sobre a metodologia
hermenêutica, depende, primordialmente, da possibilidade e capacidade de acessar as intenções do
autor no momento em que ele construiu ou criou a obra interpretada. Esse privilégio da posição do
criador na atividade de interpretação e compreensão não fica restrito ao pensamento de
Schleiermacher, pois é herdado por diferentes pensadores na tradição hermenêutica, destacando-se
entre eles o próprio Wilhelm Dilthey que tanto influenciou o pensamento de Heidegger. É preciso notar,
portanto, que, em primeiro lugar, os pensadores da hermenêutica estavam em um diálogo entre si, isto
é, um diálogo entre homens, e que a maior parte dos exemplos dados por eles em seus textos e
propostas filosóficas se referem aos trabalhos e feitos de outros homens. Além disso, é ter em mente
que, em um primeiro momento, esses pensadores estavam discutindo problemas oriundos da
interpretação de obras literárias e artísticas, ou seja, pensando a compreensão dentro de um contexto
bem restrito. Todavia, também é preciso notar que, gradualmente, o contexto vai se ampliando e passa
a se referir às possibilidades e metodologias para a compreensão em geral. Essa nota busca, dessa forma,
registrar, de forma sucinta, que a relação entre universalismo, criação/construção e gênero é anterior ao
pensamento Heideggeriano, evidenciando seu desenvolvimento na hermenêutica, tradição esta que
aparece com um dos pilares fundamentais para o desenvolvimento do pensamento heideggeriano.
156 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
Man can build and dwell in the world in patriarchal culture, she suggests,
only on the basis of the materiality and nurturance of women. In the idea
of ‘‘home,’’ man projects onto woman the nostalgic longing for the lost
wholeness of the original mother. To fix and keep hold of his identity man
makes a house, puts things in it, and confines there his woman who reflects
his identity to him. The price she pays for supporting his subjectivity,
however, is dereliction, having no self of her own.(YOUNG, 2011,p.253).
9
Paradigmaticamente temos o trabalho de Donna Haraway. Cf. HARAWAY. D., Simians, Cyborgs and
Women. New York: Routledge, 1991.
Luana Goulart de Castro Alves • 157
10
É importante ressaltar que a própria Young compreende as considerações feitas por Irigaray sobre
esses aspectos dos lares como eminentemente gerais e universalistas, frutos de uma concepção de lar
extremamente burguesa e que podemos encontrar outras concepções de lar para além desta abordada
por ela em diferentes configurações sociais existentes. Além disso, ela reforça que a ideia de possuir e
consumir objetos para suplantar carências existenciais, seria uma noção fundamentalmente capitalista.
A respeito dessas duas observações bem como exemplos de outras organizações de lares e de como a
autora relaciona identidade com propriedade em uma aberta crítica ao capitalismo, ver a seção do texto
de Young denominada Commodified Home (YOUNG, 2011,pp.260-263) e Contemporary Feminist Rejection
of Home (YOUNG, 2011,pp.277-282).
158 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
11
A palavra “criança” em português, diferentemente de “Kind” em alemão, ou “kid”/”child” em inglês
conserva em seu radical a “criação”. Chamamos de “criação” também, não apenas a geração do corpo
160 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
corpo da mãe. Mais do que isso, ela é gerada (criada) e nutrida (mantida)
no corpo da mãe até seu nascimento. Além disso, ao nascer, a
preservação da vida da criança, isto é, sua “criação” também se
encontram sob a responsabilidade da mãe. 12 Logo, a criança, seja ela do
sexo que for ou do gênero que for, se encontra, desde o momento de sua
geração no útero da mulher, em uma relação de dependência. Todavia,
essa dependência não é simétrica. A mãe pode preservar sua própria
vida, mas nessas situações, a criança depende da mulher para
sobreviver. Assim sendo, percebemos que uma das primeiras relações
assimétricas em que nos encontramos é com nossas mães. Esse é um
importante sentido em que Heidegger “esquece” o nascimento: segundo
sua ontologia, somos seres jogados, e com isso, ele “esquece” a
dependência da mulher que nos constitui primariamente. Muito pelo
contrário, o que demonstramos nos parágrafos acima é como sua
filosofia implica uma inversão dessa assimetria: o gênero feminino
passa a depender existencialmente do masculino. É como se ele
reconhecesse que as mulheres, talvez pensadas a partir do paradigma
da mãe, tal como Irigaray propõe que Heidegger o faz, sejam percebidas
por um dos aspectos associados à maternidade: a
preservação/manutenção da vida da criança. Contudo, ainda que ele
reconheça a dependência que isso gera, há uma inversão causal oriunda
de uma tal redução, pois a existência da mulher não se reduz à
da criança, mas a educação e os mais diversos cuidados infantis destinados à manutenção da vida e
bem estar da criança. Dessa forma, a ideia de “criação” apresenta em si as duas facetas do modo de ser
humano: construção/criação e preservação/manutenção. Em alemão traduzimos “criação” por Erziehung
e para inglês rase ou bring up, e, em ambos os casos essa aglutinação das duas perspectivas sob um
mesmo signo, bem como o caráter de ambiguidade do termo também se perdem.
Não reclamo uma pretensão normativa com essa caracterização, faço apenas uma descrição com base
12
em percepções sociais sobre o acontecimento. Também não defendo que esta é uma descrição
naturalista, pois como disse, tomo como base a percepção do que acontece na esfera social.
Luana Goulart de Castro Alves • 161
13
Segundo a descrição feita por Young sobre o pensamento de Irigaray, a existência do homem se
caracteriza pela nostalgia. Essa nostalgia se deve a falta que o homem sente de seu primeiro lar: o útero
da mãe. Sua existência, portanto, segue uma busca constante de re-construir esse lar perdido, e para
realizar essa empreitada, ele se utiliza da matéria-prima mulher. Em oposição a nostalgia temos o
relembrar, que caracteriza a existência da mulher e se distingue da nostalgia, na medida em que, o
primeiro é uma busca por algo que se encontra em outro lugar/tempo, e o segundo é a afirmação do
que nos trouxe até o presente. Young diferencia os dois da seguinte maneira: “Where nostalgia can be
constructed as a longing flight from the ambiguities and disappointments of everyday life,
remembrance faces the open negativity of the future by knitting a steady confidence in who one is from
the pains and joys of the past retained in the things among which one dwells.”(YOUNG, 2011, p. 275).
Para um aprofundamento na distinção entre nostalgia e o relembrar, Young recomenda: On the
distinction between nostalgia and memory, see Gayle Greene, ‘‘Feminist Fiction and the Uses of
Memory,’’ Signs 16, 2. Winter, 1991, pp.290–321.
14
A ontologização da referida dependência que o homem apresenta é, inclusive, um fator que
dificultaria a possibilidade de responsabilização moral do próprio homem por esta dependência.
15
As considerações desta seção do ensaio tomam como base, especialmente, aquelas formuladas por
Young na parte do seu texto sob o título de “Historicity, Preservation, and Identity - Beauvoir on
Housework'' (pp. 267-277).
162 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
16
“In the existentialist framework Beauvoir uses, transcendence is the expression of individual
subjectivity.” (YOUNG, 2011,p.268).
17
Essa articulação entre passado, presente e futuro recebe o nome de “projeto”, e este conceito também
é herdado da filosofia heideggeriana.
18
A associação entre progressão e manutenção com transcendência e imanência pode ser verificada em
Simone de Beauvoir, The Second Sex, trans. H. M. Parshley. New York: Random House, 1952, p. 430.
Luana Goulart de Castro Alves • 163
19
“In his occupation and in his political life he encounters change and progress, he senses his extension
through time and the universe; and when he is tired of such roaming, he gets himself a home, where
his wife takes care of his furnishings and children and guards the things of the past that she keeps in
store.” (DE BEAUVOIR, 1952, p.430).
164 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
20
“The activities of sustaining life, however, according to Beauvoir, cannot be expressions of
individuality. They are anonymous and general, as the species is general. Thus if a person’s existence
consists entirely or largely of activities of sustaining life, then she or he cannot be an individual subject.
Women’s work is largely confined to life maintenance for the sake of supporting the transcending
individual projects of men and children.” (YOUNG, 2011, p. 268).
“As in Irigaray’s account, for Beauvoir man’s subjectivity draws on the material support of women’s
21
work, and this work deprives her of a subjectivity of her own.” (YOUNG, 2011, p.268).
22
Young utiliza o termo “to care for”, e, por isso, ele foi traduzido como “cuidar”. (YOUNG, 2011, p.269).
23
“But such a completely negative valuation flies in the face of the experience of many women, who
devote themselves to care for house and children as a meaningful human project.” (YOUNG, 2011,
p.269).
Luana Goulart de Castro Alves • 165
24
Visto nossa discussão aqui desenvolvida por Young a respeito das dicotomias criação/construção x
manutenção/preservação e transcendência x imanência, encontramos uma certa dificuldade para
traduzir o termo para o português e ainda assim manter a ideia que Young nos transmite com o mesmo,
bem como a fluidez deste ensaio. Homemaking é a forma como Young nos mostra que a construção de
um lar e sua manutenção são tarefas realizadas, muitas vezes, por meio das mesmas atividades,
demonstrando a dificuldade em separar as duas ideias, nas práticas do trabalho doméstico. Dessa forma,
optamos pela utilização do termo em inglês, tal como ele aparece empregado por Young.
D. J. Van Lennep, The Hotel Room,’’ in Joseph J. Kockelmans, ed., Phenomenological Psychology: The
25
26
No original: “Material things and spaces themselves become layered with meaning and personal value
as the material markers of events and relationship that make the narrative of a person or group.”
(YOUNG, 2011, p.271).
Luana Goulart de Castro Alves • 167
27
Young identifica o mesmo tipo de redução às categorias de transcendência e imanência nas distinções
entre labor e work realizadas por Hannah Arendt em seu livro de 1958, “A condição humana”.
28
“As a founding construction, making, is a rupture in the continuity of history. But recurrence is the
temporality of preservation.” (YOUNG, 2011,p. 274).
29
É importante notar aqui a identificação das atividades realizadas pelas mulheres na interpretação e
reinterpretação de significados como eminentemente hermenêuticas. Young tenciona, portanto, o
sexismo presente na tradição hermenêutica e parcialmente descrito na nota 29, ao acentuar o aspecto
hermenêutico das atividades realizadas pelas mulheres nos lares.
168 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
30
Young faz referência às ressignificações especialmente em duas passagens: “(...)They must be cleaned,
dusted, repaired, restored; the stories of their founding and continued meaningful use must be told and
retold, interpreted and reinterpreted.” (YOUNG, 2011, p.273) e “The work of preservation entails not only
keeping the physical objects of particular people intact, but renewing their meaning in their lives.”
(YOUNG, 2011,p.274).
31
É preciso iluminar também que a discussão sobre esse conservadorismo político é mais profunda do
que possamos imaginar inicialmente. Se por um lado, a manutenção dos significados dá espaço para
preconceitos que fundamentam o racismo e o sexismo, por exemplo, por outro, a manutenção dos
mesmos pode implicar em resistência política para minorias. Tomada como um exemplo pela própria
Young, bell hooks trata de forma mais direta a relação entre a manutenção de tradições e significados
realizada nas práticas das mulheres nos lares com a resistência política e a constiuição de identidade e
subjetividade para negras e negros nos EUA. Sobre a discussão, ver: YOUNG, 2011, pp. 281-282 e bell
hooks,1990, p.42.
32
“We should not romanticize this activity. Preservation is ambiguous; it can be either conservative or
reinterpretive.”(YOUNG, 2011, p.275) (...) “Like the other aspects of home that I have discussed,
preservation is ambiguous; it can be both conservative and reinterpretive, rigid and fluid.” (YOUNG,
2011, p.277)
Luana Goulart de Castro Alves • 169
REFERÊNCIAS
GADAMER, G. Truth and Method. 2nd edn. London: Sheed and Ward, 1989.
GREENE. G., Feminist Fiction and the Uses of Memory. Signs, 16, 2, pp. 290–321, 1991.
HARAWAY. D. Simians, cyborgs, and women: the reinvention of nature. New York:
Routledge, 1991.
HEIDEGGER. M. Poetry, Language, Thought. Trad. Albert Hofstadter. New York: Harper
and Row, 1971.
hooks. b. Homeplace: A Site of Resistance. In: Yearning: Race, Gender, and Cultural
Politics. Boston: South End Press, 1990.
IRIGARAY. L. The Forgetting of Air in Martin Heidegger. University of Texas Press, 1999.
VAN LENNEP. D. J. The Hotel Room. In: KOCKELMANS, J.J. (ed), Phenomenological
Psychology: The Dutch School. Dordrecht: Martinus Nijhoff, 1987, p. 209–215.
WARNKE. G. Gadamer: Hermeneutics, Tradition and Reason. Oxford: Polity Press, 1987.
YOUNG. I. M. House and Home: Feminist Variations on a Theme. In: HOLLAND, N.J,
HUNTINGTON, P. (eds) Feminist interpretations of Martin Heidegger. The
Pennsylvania State University, 2001, p. 252-288.
EMMA GOLDMAN E O CASAMENTO COMO
7
INSTITUIÇÃO IRREFORMÁVEL 1
Mariana Lins Costa 2
1
O presente texto é composto, na sua maior parte, de excertos retirados da “Introdução” para o livro
GOLDMAN, EMMA. Sobre anarquismo, sexo e casamento. Tradução, organização e notas Mariana Lins. São
Paulo: Hedra, 2021. Uma primeira versão deste texto, para fins de divulgação da coletânea então recém-
lançada, foi publicada no site A terra é redonda, em dezembro de 2022.
2
Professora de Ética e Filosofia Política da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Endereço eletrônico:
marianalins_@hotmail.com
172 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
3
Em 1873 a lei que conhecida pelo nome do seu autor, Comstock Act, foi aprovada pelo governo federal
– e, dentre outros absurdos, tornava crime sujeito à cárcere possuir, distribuir ou fornecer informações
sobre métodos contraceptivos ou o aborto. Somente em 1936 essa lei foi considerada inconstitucional;
não obstante apenas em 1972, os métodos de controle de natalidade foram liberados para as mulheres
solteiras em todo território estadunidense.
174 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
4
Talvez não seja um erro supor que apesar de todos avanços e conquistas na pauta feminista da época
de Goldman para cá, o casamento como o emprego par excelence ou primeiro da mulher permanece
ainda, no mínimo, como uma verdade simbólica. Circunscrevendo-nos ao Brasil, basta, para nos
inclinarmos a tal conclusão, uma simples observação da quantidade de casamentos e relacionamentos
“estáveis” infelizes em que se encontram metidas mulheres (heterossexuais) financeira e
intelectualmente emancipadas. Os nossos índices de feminicídio que só cresceram durante a pandemia
podem ser também interpretados como uma prova substancial dessa suspeita. E nesse ponto, vale citar
um excerto do texto de Goldman A tragédia da mulher emancipada (1910) que sugere certo
entendimento do porquê dessa preferência por um relacionamento infeliz à vida de solteira: “Já foi
demonstrado repetida e conclusivamente que o casamento tradicional restringe a mulher à função de
mera serva e incubadora de filhos. E, no entanto, encontramos muitas mulheres emancipadas que
preferem o casamento, com todas as suas desvantagens, às limitações de uma vida de solteira:”; vida de
solteira “limitada e insuportável por conta das amarras do preconceito moral e social que enfaixam e
sufocam a natureza [da mulher]” (GOLDMAN, 2021, p. 136) .
176 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
conta do seu “seu sexo”: o ato sexual. “Por mais estranho que pareça”,
escreve Goldman em Casamento e amor, é permitido à mulher saber
“muito menos sobre a sua função do que um artesão comum sobre o seu
ofício” (GOLDMAN, 2021, p. 144). Note-se aqui a charada através da qual
a mulher foi subjugada naquilo que é, sob a perspectiva da anarquista, o
mais fundamental: o elemento sexual. Pois, ao mesmo tempo em que era
incutido na mulher, desde a infância, que o casamento seria o seu
objetivo final, o sexo, paradoxalmente, era-lhe um tema-tabu, impuro e
imoral, a ponto de ser uma indecência a simples menção à temática. Sem
saber nada da “função mais importante que deveria ser exercida na sua
vida”, conclui do modo simples e direto que lhe é característico: era
inexorável que uma mulher, em geral, não soubesse “cuidar de si
mesma”, o que a tornava uma presa não só do casamento, como também
da prostituição; ou o que é ainda uma triste realidade: uma presa fácil
de parceiros homens abusivos – abusivos justamente na medida em que
reduzem um ser humano à posição de objeto sexual destinado à sua
gratificação (GOLDMAN, 2021, p. 102).
Pelas mesmas vias tornou-se um destino praticamente inexorável
à mulher que nem mesmo na interioridade legalizada do casamento e
do lar, finalmente lhe fosse permitido vibrar nos braços do seu prazer
sexual. Ora, apenas recentemente, e não em todos os círculos e lugares
– vale frisar –, o prazer sexual feminino passou a ser uma questão, por
assim dizer, legitimada publicamente. Daí a observação de Goldman de
que o medo de desagradar o parceiro com um comportamento julgado
inadequado a uma mulher decente fosse uma causa não desprezível da
repressão do prazer sexual de certas mulheres do seu tempo – o que,
mesmo hoje, na intimidade das quatro paredes, continua a ser uma
causa não desprezível da interdição do prazer sexual feminino; e isso a
Mariana Lins Costa • 183
5
DIA do Orgasmo: Mais da metade das mulheres não atinge clímax e sente dor no sexo. Folha de São
Paulo, 30 julho 2019. Disponível em <https://f5.folha.uol.com.br/viva-bem/2019/07/dia-do-orgasmo-55-
das-brasileiras-nao-atingem-climax-no-sexo-e-59-sentem-dor.shtml>.
6
Para essa e outras referências ver: The Clitoris: Forbidden Pleasure (Clitóris: o prazer proibido). Direção
(documentário): Michèle Dominici, Stephen Firmin, Variety Moszynski. Cats & Dogs Films, Sylicone e
ARTE France. Icarus Films, 2003. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pABz6BBuCmE
&t=159s>
184 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
7
Todas as informações relativas ao clitóris presentes nesse parágrafo encontram-se no documentário
The Clitoris: Forbidden Pleasure.
Mariana Lins Costa • 185
8
Para essas e outras informações sobre o assunto, ver: <https://sexosemduvida.com/squirt-tire-suas-
duvidas/>
9
Para um aprofundamento na temática, ver: Fabíola Rohden. A divulgação da cirurgia íntima no Brasil:
normas de gênero, dilemas e responsabilidades no campo da cirurgia plástica estética. Cad. Saúde
Pública 37 (12).
186 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
10
Para uma compreensão mais aprofundada desse texto em específico, ver “A tragédia da mulher
emancipada, segundo Emma Goldman”, disponível em: https://www.hedra.com.br/blog/hedra-
1/post/a-tragedia-da-mulher-emancipada-segundo-emma-goldman-81
188 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
1
Mestre e Doutora em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professora na
Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).
Natalia Mendes Teixeira • 193
2
Conferir, por exemplo: "Simone de Beauvoir: A Founding Feminist’s Appreciation of Kierkegaard" de Ronald
M. Green e Mary Jean Green (2011); "Feminine Devotion and Self-Abandoment Simone de Beauvoir and
Soren Kierkegaard on the Woman in Love" de Sylvia Walsh (1998); "Kierkegaard and Beauvoir: Existential
Ethics as a Humanism" de Mélissa Fox-Muraton (2020).
196 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
3
Segundo Watkin, em seu “The Logic of Søren Kierkegaard's Misogyny 1854-1855”, a misogamia de
Kierkegaard aparece, ao final da vida, como uma crítica ao casamento como a grande fonte do núcleo
cristão-burguês. Kierkegaard parecia buscar introduzir o celibatário como igualmente social e
Natalia Mendes Teixeira • 197
religiosamente desejável – se for o caso, mesmo a misogamia de Kierkegaard estaria bastante limitada
a uma visão espiritual e religiosa.
198 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
4
Álvaro Valls (2012), em seu Sobre a mulher na obra de Kierkegaard, diz: “[...] deve ter alguma influência
na filosofia o fato de a língua dinamarquesa conhecer apenas dois gêneros gramaticais: as palavras
neutras e as comuns. Sendo o gênero comum a ambos os sexos, um filósofo dinamarquês pode, se
quiser, dedicar metade de sua obra “àquele indivíduo que me lê”, e qualquer dinamarquesa lerá a
dedicatória como “àquela pessoa que me lê”. Não há diferença. [...] Ao contrário de Santo Tomás,
Descartes, Kant ou Hegel, Kierkegaard escreve bastante sobre as mulheres e para as mulheres” (VALLS,
2012, p.95).
Natalia Mendes Teixeira • 199
(Léon, 1997, p. 118). Nesse texto, como em todo o corpus, ele coloca a
mulher em uma posição de profunda conexão, supostamente inerente,
com a natureza: o homem está acima da natureza e a mulher é este ser
sub-humano que está imerso nela. O pseudônimo também satiriza a
falta de inclinação filosófica e a natureza doméstica da mulher
destacando a oratória, a persuasão, a capacidade dialética, a
superioridade intelectual, a capacidade de abstração teórica e a
eloquência doméstica das mulheres. Ele coloca, inversamente, e por
recurso retórico e irônico, os homens como mentes supostamente
covardes, servis, subalternas e inferiores que não fizeram história, nem
arte ou cultura – ao contrário das mulheres. O texto é construído de
modo a poder convencer um leitor destreinado de que se trata de fato
de uma ode elogiosa, um panegírico, um elogio solene à mulher:
[...] uma mulher que seja assim interessante conseguirá certamente agradar;
mas tal como ela abdicou da sua feminilidade, os homens a quem ela agrada
também são em geral pouco viris. Uma mulher deste gênero torna-se
interessante própria e primeiramente através da relação com os homens. A
mulher é o sexo mais fraco [...]” (Ou-Ou, p. 374/ SKS III, p. 330 – grifo meu).
Longe de mim negar que nas mulheres possam ocorrer formas masculinas
de desespero e que, inversamente, nos homens possam ocorrer formas
femininas de desespero; mas tais casos são exceções. [...] A mulher não tem
nem a noção do self egoisticamente desenvolvida, nem intelectualidade em
sentido decisivo, por mais sensível e delicada que ela seja em comparação
com o homem. Ao contrário, a essência da mulher é dedicação, entrega; e se
não for assim, é não-feminina (SUD, p.49/ SKS XI, 164 – tradução minha, grifo
meu).
Que abominações o mundo não viu nas relações entre homem e mulher, que ela,
quase como um animal, fosse um ser desprezado em comparação com o
homem, um ser de outra espécie. Que batalhas houve para estabelecer de
forma mundana a mulher em igualdade de direitos com o homem – mas o
cristianismo faz apenas uma mudança infinita e, portanto, silenciosamente.
Externamente, o velho mais ou menos permanece. O homem deve ser o senhor
da mulher e ela subserviente a ele; mas interiormente tudo mudou, mudou
por meio desta pequena pergunta à mulher, se ela consultou sua
consciência sobre ter esse homem – como mestre, pois senão ela não o
recebe. [...] Em nome do Cristianismo, pessoas fátuas têm se ocupado
insensatamente em tornar óbvio de uma maneira mundana que a mulher
deve ser estabelecida em direitos iguais com o homem – o cristianismo nunca
exigiu ou desejou isso. Fez tudo pela mulher, contanto que ela se satisfaça
cristãmente com o que é cristão; se ela não quer, então ela ganha apenas
uma compensação medíocre no fragmento de exterioridade que ela pode
obter de maneira mundana por desafio (WL XVI, 138 – grifo nosso).”
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2020.
BERTUNG, Birgit. “Yes, A Woman Can Exist”. In: LEON, Celine; WALSH, Sylvia Feminist
Interpretations of Søren Kierkegaard. University Park: Pennsylvania State University
Press, 1997.
FRIEDMAN, M. A parting of ways – Carnap, Cassirer, and Heidegger, Chicago and La Salle:
Open Court, 2000.
GREEN, Ronald M.; GREEN, Mary Jean. "Simone de Beauvoir: A Founding Feminist’s
Appreciation of Kierkegaard". Jon Stewart (Org.). Kierkegaard and Existentialism. p. 1-
19, 2011.
HOWE, Leslie A. Kierkegaard and the Feminine Self. Hypatia, v. 9, n. 4, p. 131–157, 1994.
KIERKEGAARD, S. A. Ou-Ou: fragmento de vida. Vol II. Trad. Elisabete M. de Sousa. Lisboa:
Relógio D’Água: 2017.
KIERKEGAARD, S. A. Søren Kierkegaard’s Journals and Papers, vols. 1–6, edição e tradução
de Howard V. Hong e Edna H. Hong. Bloomington and London: Indiana University
Press, 1967–78.
KIERKEGAARD, S. A. The Sickness unto Death. Trad. Howard V. Hong e Edna H. Hong.
Princeton: Princeton University Press, 1980.
PUGLIESI, Nastassja. O que é a história feminista da filosofia? São Paulo: Estadão: Estado
da Arte. Disponível em: < https://estadodaarte.estadao.com.br/anpof-pugliese-
historia-feminista/> Último acesso em: 15 de janeiro de 2022.
VALLS, Alvaro. “Sobre a mulher na obra de Kierkegaard”. In: Kierkegaard cá entre nós. São
Paulo: LiberArs, 2012, p. 95-104.
WATKIN, Julia. “The Logic of Søren Kierkegaard's Misogyny, 1854-1855”. In: Feminist
Interpretations of Søren Kierkegaard, 1997.
WITT, Charlotte; SHAPIRO, Lisa. “Feminist History of Philosophy”. In: The Stanford
Encyclopedia of Philosophy (Winter 2020 Edition) Edward N. Zalta (ed.). Disponível
em <https://plato.stanford.edu/archives/win2020/entries/feminism-femhist/>
Último acesso em 15 de janeiro de 2022.
REFLEXÕES SOBRE O AMOR ROMÂNTICO NAS
9
OBRAS LITERÁRIAS EL ALBERGUE DE LAS MUJERES
TRISTES, DE MARCELA SERRANO, E PONCIÁ
VICÊNCIO, DE CONCEIÇÃO EVARISTO
Renata Araújo Matos 1
INTRODUÇÃO
1
Doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília. E-mail para contato:
rearaujomatos@gmail.com.
Renata Araújo Matos • 213
2
Disponível em: https://www.doisniveis.com/2n-mulheres/os-direitos-humanos-das-mulheres-no-
chile/ (Acesso em jan. de 2023).
214 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
AMOR E VIOLÊNCIA
ordem do Estado e educa os filhos para que o sigam, mas também cria e
sempre reforça essa ordem” (LERNER, 2019, p. 266).
Entendemos que a noção de cuidado aperfeiçoada ao longo da
história constitui base da dominação masculina. Erika Apfelbaum (2009)
explica que em toda relação de dominação há a imposição de limites, de
sujeição e servidão àqueles que se submetem, sejam eles grupos, classes
ou indivíduos. A dissimetria se faz presente nas práticas sociais, no
campo da consciência e nas estratégias de identidade. Para
aprofundarmos essa discussão, devemos nos debruçar sobre as noções
de virilidade e mulheridade.
De acordo com Pascale Molinier e Daniel Welzer-Lang (2009), a
virilidade é apresentada como os atributos sociais ligados aos homens e
ao masculino e também enquanto forma erétil e penetrante da
sexualidade masculina. Em síntese, “A virilidade é a expressão coletiva
e individualizada da dominação masculina” (MOLINIER &
WELZERLANG, 2009, p. 102). A adesão dos homens à virilidade se molda
como uma capa contra as manifestações de sofrimentos, já que estes são
atribuídos às mulheres como prova de sua inferioridade natural.
Todavia, o homem refém da virilidade, é frágil, “Seu ego carece de
flexibilidade psíquica; não sabendo suportar, nem elaborar o
sofrimento, resiste mal aos remanejamentos de seu status social
(desemprego, aposentadoria, feminização da profissão), assim como aos
encontros amorosos” (MOLINIER & WELZER-LANG, 2009, p. 104). Ao
lado da noção de virilidade, temos a de mulheridade, ambas estabelecem
conformação às normas sexuais concernente à divisão social e sexual do
trabalho. A diferença é que enquanto aquela pode representar
valorização, esta reporta apenas à depreciação e negação de si.
“Mulheridade é o neologismo que designa a alienação da subjetividade
Renata Araújo Matos • 217
3
Devemos ainda lembrar que tanto mulheres como homens não são uma categoria homogênea. Nesse
sentido, Lerner salienta o acordo recíproco como um esquema restrito às mulheres da raça e classe
privilegiadas que “em troca de subordinação sexual, econômica, política e intelectual aos homens”,
compartilham “o poder dos homens de sua classe para explorar homens e mulheres de classes
inferiores” (LERNER, 2019, p. 268)”.
4
Para análise mais detalhada das obras, ver MATOS (2021).
Renata Araújo Matos • 219
médico internista, foi para o sul com a ajuda de Elena 5, motivado por
problemas com a ex-esposa e com a clínica onde trabalhava. Advém da
decadente oligarquia chilena, tem dois filhos. Por conta dos conflitos
enfrentados no seu findado casamento, tem visão negativa sobre a
relação conjugal e acerca de todas as mulheres.
Esse personagem também está adoecido e viveu, por anos, em uma
relação abusiva. Todavia, por ele ser a exceção dentro do universo de
mulheres que compõem a obra, sente-se no direito de reivindicar para
si, na condição de homem triste, o poder de fala sobre as mulheres e a
legitimidade de performar um comportamento misógino.
A questão é que Floreana desde o início se interessou pelo médico,
não demonstrando em nenhum momento o real intento de seguir com
a castidade e de se dedicar à vivência do albergue. Se o contato físico,
materializado por um beijo, demorou toda a narrativa para acontecer,
foi pela resistência de Flavián e não dela. É importante destacar que até
mesmo Elena, a proprietária do Albergue estimula Floreana a entender
que embora o comportamento do médico seja problemático, ele pode ser
um homem melhor. O fato dele ser um homem ferido é algo irresistível
às mulheres que desejam “servir a uma causa”. Por fim, Floreana desiste
de voltar à Santiago e fica com Flavián. É nesse encontro que ela
reencontra a si.
5
Além de serem amigos de faculdades, Flavián e Elena viveram no passado um romance extraconjugal.
Renata Araújo Matos • 221
negra, que teve a infância marcada pela pobreza material, é refletida nas
histórias das diversas mulheres negras que protagonizam suas
narrativas.
Ponciá Vicêncio, protagonista da obra, é uma mulher negra que
nasceu no interior do país. Os antepassados de Ponciá foram
escravizados, seus avós paternos vivenciaram diretamente a escravidão
oficial do Estado brasileiro. No entanto, mesmo após a abolição sua
família continuou servindo aos antigos escravizadores, em condições
análogas ao antigo regime. O pai de Ponciá sempre estava a trabalhar
nas terras dos brancos. Luandi, único irmão da protagonista, desde
muito cedo o acompanhou na labuta. Desse modo, ela cresceu
praticamente sozinha com a mãe, com quem trabalhava o barro. Vale
ainda dizer que ela foi a primeira, em toda sua família, a ser
alfabetizada. Isso porque um grupo de missionários ficou certo período
na região e montou uma escola para os moradores do povoado. Quando
eles partiram, Ponciá seguiu sozinha o estudo da cartilha.
Em sua infância, Ponciá Vicêncio acreditava que se passasse por
baixo do arco-íris viraria homem. É importante que saibamos que
naquela época, ela sorria e estimava ser mulher. Aos 19 anos, Ponciá
resolveu ir morar na cidade. Sua partida foi repentina, ela temia desistir
e por isso viajou no dia seguinte à decisão. O trem tardaria a voltar ao
povoado, então não poderia perder a oportunidade. O percurso durou
três dias. Levou consigo apenas uma trouxinha.
Na cidade, conseguiu emprego como trabalhadora doméstica.
Sonhava em ter uma vida melhor, comprar uma casa e trazer sua mãe e
seu irmão para a cidade. No entanto, foi confrontada com a
continuidade da dura realidade da pobreza e do racismo. Depois de
muitos anos de trabalho, conseguiu comprar o barraco e voltou em
222 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
busca da sua família. Porém, seu irmão igualmente havia migrado para
a cidade e sua mãe saído em andanças como forma de apaziguar a
saudade que sentia dos filhos.
Após o retorno à cidade, ela iniciou uma relação amorosa. Seu
homem 6 trabalhava na construção civil e admirava as características
ativas da protagonista, mesmo que desde o início percebesse que às
vezes o espírito dela fugisse.
A conjuntura social marcada pela pobreza, pelo racismo e pela
desigualdade de gênero foram determinantes para o alheamento que vai
tomando conta da personagem ao longo da narrativa. Afinal, ela
representa uma conjuntura social que não é apenas sua, mas de todos
aqueles que compartilharam/compartilham dessa história comum.
Somado a isso, seu casamento não correspondeu às suas expectativas.
O casamento dos pais de Ponciá foi, em muito, distinto do seu. Seu
pai ficava mais na terra dos brancos, sua mãe nunca reclamou da
ausência do marido. Vivia a cantar e a trabalhar o barro. E quando ele
estava de volta, era Maria Vicêncio que decidia o que seria feito naqueles
dias e quando ele partisse. Ponciá, assim sonhava com o dia que também
teria um marido, que faria tudo que quisesse, e com os filhos que teriam.
Tal passagem reflete os desejos amorosos de Ponciá, evidenciando que
mesmo em um contexto totalmente diferente da primeira obra
analisada, o sucesso conjugal compunha as condições para a sua
realização individual.
Os acontecimentos da vida de Ponciá caminharam no sentido
contrário aos seus sonhos de menina. Ela teve sete filhos, mas todos
morreram logo após o nascimento, alguns chegaram a viver um dia.
6
É assim que ele é chamado em toda obra.
Renata Araújo Matos • 223
Pariu os cinco primeiros em casa com a parteira Maria da Luz, que junto
a ela chorava a morte dos bebês. Os dois últimos nasceram no hospital,
onde lhe disseram que os óbitos eram decorrência de problemas no
sangue. Seu homem se distanciava e dava a beber, depois voltava
disposto a fazer outro filho.
Outro ponto é que o real alcance do prazer sexual ocorreu quando
Ponciá era menina e teve a primeira experiência com a masturbação.
Muitas vezes ela se colocava a lembrar desse dia com as mãos, já que
nem sempre o prazer do marido era com ela repartido. Conforme ela se
distanciava de si, o desejo de prazer desaparecia.
O relacionamento de Ponciá é marcado por inúmeras violências
que perpassam a forma física, psíquica e emocional. Ao indagar sobre
seus sonhos desmoronados, refletia que “Lá estava ela agora com seu
homem, sem filhos e sem ter encontrado um modo de ser feliz. Talvez o
erro nem fosse dele, fosse dela, somente dela. Ele era assim mesmo”
(EVARISTO, 2017, p. 47). Nos escapes dos constantes estados de
alheamento, Ponciá era sufocada pela tristeza do presente, ela sofria e
talvez ficar longe de si fosse o melhor. Em alguma medida, está ainda
manifesto, que ela tentava justificar o comportamento violento do
homem sob a alegação da imutabilidade do seu comportamento e de que
os erros eram somente dela.
Por fim, Ponciá consegue reencontrar os seus (mãe, irmão,
ancestrais) e reencontra também a si.
REFERÊNCIAS
EVARISTO, C. Ponciá Vicêncio. 3a ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017. LERNER, Gerda. A
criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens. Tradução
de Luiza Sellera. São Paulo: Cultrix, 2019.
Red Chilena contra la Violencia hacia las Mujeres. Dossier Informativo: 2020-2021 -
Violencia contra mujeres en Chile. Chile, 2021. Disponível em: https://cl.boell.org/
sites/default/files/2021-08/Dossier-Informativo-Violencia-contra-Mujeres-2020-
2021-Red-Chilena.pdf (Acesso em jan. de 2023).
Rhuann Fernandes 2
INTRODUÇÃO
1
Este texto é resultado de minha conferência “Identidade negra e não monogamia política no Brasil”,
baseada em meu último livro (FERNANDES, 2022), que abriu a terceira edição do evento Till Reason Do
Us Part (Até que a Razão nos Separe), ocorrido em janeiro de 2023. Para mais informações, ver:
https://www.youtube.com/watch?v=riUo0ZMbp70&t=1190s, acesso em: 20 abr. 2023.
2
Doutorando em Ciências Sociais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. E-mail:
rhuannfernandes.uerj@gmail.com.
228 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
3
Em diálogo com Clifford Geertz (1997), entendo “senso comum” como um sistema de símbolos e
significados partilhados por uma determinada comunidade humana, não apenas uma sabedoria prática
e corriqueira, mas algo que também se apresenta como um sistema cultural não unificado. Esse senso
comum altera-se radicalmente de um lugar para o outro ou de um período a outro. No senso comum
há um “[...] emaranhado de práticas herdadas, crenças aceitas e juízos habituais [...]” (GEERTZ, 1997, p.
112), onde são produzidas uma espécie de “síndrome dos objetos invisíveis”, quando as coisas aparecem
para nós de modo tão natural e claro que, por vezes, é difícil notá-las. Em outros termos, quando os
tipos de simbologia mais articulados esgotam seus papéis.
Rhuann Fernandes • 229
4
De modo sucinto, pode-se dizer que a modernidade tardia, também conhecida como modernidade
reflexiva, é um processo contínuo de mudanças que transformou os fundamentos da sociedade
ocidental. Nessa nova realidade, as pessoas passam a optar entre se agarrar a certezas do passado e se
adaptar a uma nova realidade em constante mutação (BECK; GIDDENS; LASH, 1997).
5
A ideia de amor livre não era apenas sobre a liberação sexual, mas um desafio ao sistema patriarcal, à
desigualdade de gênero e à interferência do Estado. Os anarquistas dessa época acreditavam que os
indivíduos deveriam ter a liberdade de se envolver em qualquer relação sexual consensual sem
interferência, julgamento ou sanção. Uma figura importante nessas discussões foi Emma Goldman
(1869-1940), uma anarquista influente nos Estados Unidos e na Europa, que escreveu amplamente sobre
o tema do amor livre, direitos das mulheres e liberdade sexual. Ela defendeu o direito de explorar
relacionamentos fora do casamento e argumentou contra as normas sociais que criticavam e julgavam
tais relacionamentos. Goldman acreditava que o amor verdadeiro não poderia existir nos casamentos
convencionais de sua época, que ela via como arranjos econômicos, onde as mulheres eram
efetivamente vendidas para uma vida de servidão (GOLDMAN, 2015).
230 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
Um relacionamento puro não tem nada a ver com pureza sexual, sendo um
conceito mais restritivo do que apenas descritivo. Refere-se a uma situação
em que se entra em uma relação social apenas pela própria relação, pelo que
pode ser derivado por cada pessoa da manutenção de uma associação com a
234 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2
6
Essa identificação projetiva pode ser caracterizada como um processo por meio do qual os agentes se
tornam atraídos e enfeitiçados entre si, unindo-se espontaneamente. Assim, os traços do outro são
assimilados de modo quase intuitivo (GIDDENS, 1993).
Rhuann Fernandes • 235
as pessoas que sentem vontade de amar precisam se dar conta que isso
depende de vontade e esforço, algo que, aliás, não é estranho ao
romantismo. Porém, contrariamente a este, que enfatiza a paixão, a
química, a loucura etc., o intimismo defendido pelo pensamento terapêutico
prega que cuidemos, antes de tudo, do equilíbrio, do planejamento e da
reciprocidade nos relacionamentos. Para o romantismo, o principal é a
paixão. Para o intimismo, o companheirismo ou intimidade. (RÜDIGER,
2012, p. 162).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BECK, U.; GIDDENS, A.; LASH, S.. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na
ordem social moderna. São Paulo: Ed. UNESP, 1997.
BECK, U. World at risk: the new task of critical theory. Development and Society, v. 37, n.
1, p. 1-21, 2008.
GOLDMAN, E. O indivíduo, a sociedade e o estado e outros ensaios. São Paulo: Hedra, 2015.
Rhuann Fernandes • 251
VAINFAS, R. Casamento, amor e desejo no ocidente cristão. São Paulo: Ática, 1992.
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