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CRÍTICAS FILOSÓFICAS DO CASAMENTO
DIRETORES DA SÉRIE
Prof. Dr. Ana Paula Leivar Brancaleoni
(Unesp/FCAV) Prof. Dr. Ricardo Scucuglia
(Unesp/IBILCE)
Prof. Dr. Humberto Perinelli Neto
(Unesp/IBILCE) Prof. Dr. Harryson Júnio Lessa Gonçalves
(Unesp/ FEIS)
Prof. Dr. Jackson Gois
(Unesp/IBILCE)

COMITÊ EDITORIAL CIENTÍFICO


Prof. Dr. Adriano Vargas Freitas Profa. Dra. Ilane Ferreira Cavalcante
Universidade Federal Fluminense (UFF) Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN)

Prof. Dr. Alejandro Pimienta Betancur Prof. Dr. João Ricardo Viola dos Santos
Universidad de Antioquia (Colômbia) Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)

Alexandre Maia do Bomfim Prof. Dr. José Eustáquio Romão


Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) Universidade Nove de Julho e Instituto Paulo Freire (Uninove e IPF)

Prof. Dr. Alexandre Pacheco Prof. Dr. José Messildo Viana Nunes
Universidade Federal de Rondônia(UNIR) Universidade Federal do Pará (UFPA)

Prof. Dr. José Sávio Bicho de Oliveira


Profa. Dra. Ana Cláudia Ribeiro de Souza
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Instituto Federal do Amazonas (IFAM)
Prof. Dr. Klinger Teodoro Ciriaco
Prof.ª Dr.ª Ana Clédina Rodrigues Gomes Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR)
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA)
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Central Michigan University (CMU/EUA)
Prof. Dr. Marcelo de Carvalho Borba
Prof.ª Dr.ª Ana Maria de Andrade Caldeira Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
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Prof. Dr. Antonio Vicente Marafioti Garnica Universidade de São Paulo (USP)
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
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Prof. Dr. Armando Traldi Júnior Universidade do Minho, Portugal
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP)
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Prof. Dr. Daniel Fernando Johnson Mardones Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)
Universidad de Chile (UChile) Prof.ª Dr.ª Olga Maria Pombo Martins
Universidade de Lisboa (Portugal)
Prof.ª Dr.ª Deise Aparecida Peralta
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) Prof. Dr. Paulo Gabriel Franco dos Santos
Universidade de Brasília (UnB)
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Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) Prof. Dr. Ricardo Cantoral
Centro de Investigação e Estudos Avanços do Instituto Politécnico
Prof. Dr. Elenilton Vieira Godoy Nacional (Cinvestav, México)
Universidade Federal do Paraná (UFPR)
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Prof. Dr. Elison Paim Universidade do Oeste do Paraná (UNIOESTE)
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Prof. Dr. Sidinei Cruz Sobrinho
Prof. Dr. Fernando Seffner Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) grandense (IFSUL/Passo Fundo)

Prof. Dr. Vlademir Marim


Prof. Dr. George Gadanidis
Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
Western University, Canadá
Prof. Dr. Wagner Barbosa de Lima Palanch
Prof. Dr. Gilson Bispo de Jesus Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL)
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
CRÍTICAS FILOSÓFICAS
DO CASAMENTO

VOLUME 2

Organizador
Eduardo Vicentini de Medeiros
Diagramação: Marcelo Alves
Capa: Gabrielle do Carmo
Fotografia / Imagem de Capa: The Lovers, 1855 - William Powell Frith

A Editora Fi segue orientação da política de


distribuição e compartilhamento da Creative Commons
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https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

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bibliográficas são prerrogativas de cada autor. Da mesma
forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e
exclusiva responsabilidade de seu respectivo autor.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C934 Críticas filosóficas do casamento [recurso eletrônico] / Eduardo Vicentini de Medeiros


(org.). Cachoeirinha : Fi, 2023.

v. 2 ; 252p.

ISBN 978-65-85725-63-7

DOI 10.22350/9786585725637

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Filosofia – Casamento – Críticas. I. Medeiros, Eduardo Vicentini.

CDU 141-058.8

Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto – CRB 10/1023


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 11
Eduardo Vicentini de Medeiros

1 18
“HETEROSSEXISMO CIENTÍFICO”: A NATURALIZAÇÃO DA CATEGORIA DE GÊNERO E
DA HETERONORMATIVIDADE NAS CIÊNCIAS
Camila Palhares Barbosa
Resumo: O presente texto busca desenvolver uma abordagem feminista aos métodos científicos, a partir de
uma leitura crítica dos pressupostos generificados e naturalizados pelos discursos dominantes das ciências,
mais especificamente, enquanto exemplos paradigmáticos, da neurociência e da psicologia evolucionista. Em
ambos campos, tanto aspectos morfológicos quanto cognitivos e de tomada-de-decisão, partem de uma
clara pressuposição de diferenças sexuais. Assim, fundamentada em uma ampla gama de críticas de
feministas, proponho demonstrar um tensionamento na premissa da diferença sexual e suas consequências
para as formas do conhecimento. Proponho, então, a nomenclatura de “Heterossexismo Científico” os discursos
que tenham como premissa básica a. a diferença sexual entre homens e mulheres como biologicamente
implicada, e, b. assumam como natural a heterossexualidade compulsória.
Palavras-chave: Ciência. Feminismo. Método. Neurosexismo. Psicologia Evolucionista.

2 57
A ANTROPOLOGIA DE EDITH STEIN OU O PAPEL DA MULHER E DO HOMEM PARA
ALÉM DA REALIZAÇÃO DO CASAMENTO
Danilo Souza Ferreira
Resumo: Buscamos nesse texto descrever a relação entre literatura e gênero na obra de Edith Stein, em
especial no livro A mulher: sua missão segundo a natureza e a graça, tomando por base a interpretação dada
por Edith Stein a Ingunn do romance Olav Audunssön, de Sigrid Undset, a personagem Nora da peça Casa
de bonecas, de Henrik Ibsen e Ifigênia da obra homônima de Goethe, partindo assim da investigação do
modo como a filósofa conjuga análise fenomenológica e literária, para descrever como eram a
representação dos tipos femininos e obter uma nova visão da individualidade humana com
especificidades femininas.
Palavras-chave: Edith Stein, Literatura, Gênero

3 80
AS FACETAS DO AMOR EM BELL HOOKS
Halina Leal
Resumo: O presente artigo tem como objetivo apreender os principais pontos da proposta de bell hooks
acerca do amor, na direção de abrir espaço para que consigamos pensar sobre nossas situações reais de
existência e interações sociais em condições opressivas. Serão, assim, apresentadas as noções de ética do
amor, de interdependência e como a articulação destas noções permite compreender situações de
grupos subalternizados, sobretudo negros e mulheres em contextos de “interações amorosas”, segundo
hooks. Neste sentido, tenta-se estabelecer elementos e expandir as análises, a partir das considerações da
pensadora, para que se reflita acerca das facetas do amor no casamento.
Palavras-Chave: amor; bell hooks; ética; interdependência; opressões
4 93
“CIMENTO DA SOCIEDADE”: MÉTODO E METAFÍSICA NA TEORIA DO CASAMENTO DE
MARY WOLLSTONECRAFT
Katarina Ribeiro Peixoto
Resumo: Neste estudo, pretendo contribuir para esclarecer o sentido e a função do casamento no
pensamento de Mary Wollstonecraft (1759-1797), em “Reivindicação dos direitos da mulher” (1792). É nesse
texto que a filósofa teoriza sobre o casamento como instituição pedagógica e política a desempenhar
papel estruturante na transformação da sociedade. Para tanto, ela estabelece um diálogo crítico com
Rousseau, em “Emílio, ou: da Educação” (1762). Para Wollstonecraft, a igualdade de gênero se fundamenta
metafisicamente e é alcançada por meio da educação moral. A função do casamento, para a filósofa, é
articular as esferas privada e pública, de maneira engajada nos requisitos revolucionários, como uma
categoria estruturante da transformação social. Este é o sentido da noção de “cimento da sociedade” que
pretendo apresentar.
Palavras-chave: Mary Wollstonecraft, Jean-Jacques Rousseau, Liberdade, Método, Casamento

5 138
AMOR E CASAMENTO: UMA ANTINOMIA PARA EMMA GOLDMAN
Larissa Guedes Tokunaga
Resumo: O escrutínio das entranhas conceituais do matrimônio foi um exercício anarquista que Emma
Goldman realizou em forma de manifesto. Ao contrapor amor e casamento a militante não só expõe como
o primeiro é afeto e o segundo um conceito abstrato, como também escancara a impossibilidade de uma
sociedade emancipada existir enquanto esses polos forem faceados como sinônimos. Este singelo ensaio
buscará mostrar como Goldman constrói sua argumentação mobilizando a literatura, a sexologia e a
filosofia em alinhamento a uma natureza avessa a artifícios forjados historicamente pelas instituições.
Palavras-chave: Casamento; Anarquismo; Amor; Feminismo; Filosofia.

6 151
SOBRE A SUBORDINAÇÃO DA MULHER NO LAR: A ONTOLOGIA HEIDEGGERIANA E
SUA INFLUÊNCIA NO FEMINISMO DE SIMONE DE BEAUVOIR SOB A ÓTICA DE YOUNG
E IRIGARAY
Luana Goulart de Castro Alves
Resumo: Neste ensaio pretendo mostrar como a argumentação de Iris Marion Young é decisiva para o
pensamento sobre a identidade das mulheres e a formação de suas subjetividades. Esses tópicos são de
especial relevância na construção e compreensão de sua crítica à ontologia de Martin Heidegger, que, por
sua vez, é central na fundamentação do feminismo de Simone de Beauvoir. A discussão apresentada por
Young, à luz do pensamento de Luce Irigaray, traz à tona aspectos urgentes de consideração a respeito
das reivindicações éticas e políticas feministas, tendo como eixo principal a relação de subordinação entre
homens e mulheres nos lares.
Palavras-chave: ontologia, gênero, subordinação, lar, feminismo.
7 171
EMMA GOLDMAN E O CASAMENTO COMO INSTITUIÇÃO IRREFORMÁVEL
Mariana Lins Costa
Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar e desenvolver a crítica da pensadora política e
militante anarquista Emma Goldman ao casamento, de modo a elucidar por que para ela tratar-se-ia de
uma instituição irreformável. Sob uma perspectiva materialista e anarquista, Goldman desvela o
casamento como nada mais do que uma das facetas da instituição da propriedade privada. E daí que
defina, de um lado, o casamento como uma forma de prostituição – já que a esposa se vende por toda
vida, enquanto a prostituta, por período determinado –; e, de outro, a prostituição como uma instituição
necessária à instituição casamento – dado que o ideal de monopólio sexual só foi efetivamente exigido à
mulher, pois ao homem sempre foi socialmente admitida a variabilidade sexual com amantes ou
prostitutas. Que nos Estados Unidos à sua época, estivessem legalmente vedadas às mulheres quaisquer
acessos ou informações sobre métodos contraceptivos, também foi interpretado por ela como uma
imposição da lógica mercantil.
Palavras-chave: Casamento. Prostituição. Mulher. Sexualidade. Emma Goldman.

8 192
"MULHERES PODEM EXISTIR?" KIERKEGAARD SOBRE AS MULHERES
Natalia Mendes Teixeira
Resumo: Há um recente movimento metodológico que busca mapear exclusões históricas e questionar
criticamente o cânone filosófico. Ele está pautado na construção de uma história feminista da filosofia que
repensa seus pressupostos éticos, epistêmicos e metafilosóficos e convoca a uma nova historiografia da
filosofia. Uma das tarefas desse movimento é o rastreamento das assimetrias envolvendo as categorias do
masculino e do feminino – nas quais os homens são identificados com a razão e a objetividade (atributos
filosóficos reconhecidamente importantes) e as mulheres com a emoção e a subjetividade (seus pares
femininos supostamente indesejáveis à atividade filosófica). Este trabalho pretende contribuir para esta
discussão ao investigar qual o lugar da mulher na obra do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard.
Palavras-chave: Kierkegaard. História Feminista da Filosofia. Cânone. Século XIX.

9 212
REFLEXÕES SOBRE O AMOR ROMÂNTICO NAS OBRAS LITERÁRIAS EL ALBERGUE DE
LAS MUJERES TRISTES, DE MARCELA SERRANO, E PONCIÁ VICÊNCIO, DE CONCEIÇÃO
EVARISTO
Renata Araújo Matos
Resumo: O amor é um tema continuamente exaltado em nossas relações sociais. Nada obstante, as
experiências amorosas figuram o principal espaço de ocorrência de violências contra as mulheres. Em vista
disso, o presente trabalho busca compreender como a construção social do amor se conecta à
manutenção de relacionamentos abusivos nas obras literárias El albergue de las mujeres tristes, da chilena
Marcela Serrano (2001), e Ponciá Vicêncio, da brasileira Conceição Evaristo (2017). Cabe destacar que as
trajetórias individuais das protagonistas Floreana Fabres e Ponciá Vicêncio são reflexos das paisagens
sociais que compõem as obras, evidenciando diferenças, pautadas pelo gênero, raça e classe, que atuam
no desfecho da história de cada uma. No entanto, a existência de violências no âmbito das relações
amorosas e o adoecimento decorrente (também) das frustrações experienciadas em seus
relacionamentos são características comuns às personagens. A atribuição de papéis sociais às mulheres e
aos homens, no seio da dominação masculina operante no patriarcado, atua na manutenção de relações
abusivas, em que a ideia de cuidado como campo inerente ao feminino é fortemente evocada. Conclui-
se, assim, que o amor romântico incorpora os códigos característicos do sistema de dominação patriarcal
e, concomitantemente, influi na reprodução do mesmo.
Palavras-Chave: amor; cuidado; sistema patriarcal; El albergue de las mujeres tristes; Ponciá Vicêncio.
10 227
CAPITALISMO, SUBJETIVIDADE E AMOR
Rhuann Fernandes
Resumo: Neste ensaio teórico, discuto os processos contemporâneos de transformação na intimidade
ocorridos devido à “emancipação feminina” em curso, articulados, dentre outras conexões, à emergência
da linguagem terapêutica, o que possibilitou modificações na percepção do eu e, consequentemente, na
elaboração de uma nova ética amorosa que interroga a proeminência do amor romântico no contexto
ocidental. Ao interpretar os rumos das relações amorosas, reconheço que os indivíduos se apropriam, cada
vez mais, de uma concepção terapêutica em seus relacionamentos para se defenderem de um
subjetivismo avassalador exigido pelo racionalismo capitalista do mundo contemporâneo.
Palavras-chave: Relações amorosas, Neoliberalismo, Intimidade, Cultura Terapêutica.
APRESENTAÇÃO
Eduardo Vicentini de Medeiros

Críticas Filosóficas do Casamento, Volume 2 é uma continuação e


ampliação dos esforços teóricos dos pesquisadores e pesquisadoras que
atuam no projeto Críticas Filosóficas do Casamento, que tenho a
satisfação de coordenar no Departamento de Filosofia da Universidade
Federal de Santa Maria. Esta obra é uma continuação pois segue-se à
publicação de Críticas Filosóficas do Casamento. Uma coletânea de ensaios,
pela editora da UFPel 1. E é uma ampliação pois estamos publicando
colaborações de novos e bem-vindos integrantes do nosso projeto.
As contribuições textuais aqui registradas originaram-se de
palestras no evento anual Till Reason Do Us Part 2, que realizou sua
terceira edição entre 09 e 12 de janeiro de 2023 e tem a quarta edição
programada para 20 a 22 de março de 2024. Este evento regular do
projeto Críticas Filosóficas do Casamento já recebeu, em suas três
edições, 54 pesquisadores das áreas do Direito, Ciências Sociais,
Filosofia, História, Letras e Psicologia, de universidades de Brasília,
Pará, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa
Catarina, São Paulo, Canadá, Estados Unidos e França, o que demonstra
sua capilaridade geográfica e seu caráter interdisciplinar.

1
A coletânea pode ser acessada gratuitamente na coleção Dissertatio do selo NEPFIL da Editora da
UFPel: https://wp.ufpel.edu.br/nepfil/
2
Canal no YouTube, com disponibilização gratuita de todas as palestras das edições online do evento
Till Reason Do Us Part: https://www.youtube.com/@tillreasondouspart
12 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

Para oferecer a nossos leitores um roteiro para Críticas Filosóficas


do Casamento, Volume 2, farei um breve comentário a cada um dos
capítulos, evidenciando suas conexões com os objetivos do projeto de
pesquisa que nos une.
Camila Palhares Barbosa enfrenta um desafio metodológico
importante em ““Heterossexismo Científico”: a naturalização da categoria
de gênero e da heteronormatividade nas ciências”. Por heterossexismo
científico, Camila compreende algumas das formulações presentes nos
discursos da ciência, em especial os reflexos da biologia evolutiva nas
ciências do comportamento, que partem de dois pressupostos: que a
diferença sexual entre homens e mulheres seja biologicamente
informada, e que assumam a heterossexualidade compulsória como
natural. Uma das recomendações de método do capítulo é utilizar as
diversas contribuições dos feminismos contemporâneos sobre as
complexas relações entre sexo e gênero como antídotos ao
heterossexismo científico.
Do ponto de vista do projeto Críticas filosóficas do casamento, a
contribuição do capítulo é central dado que um dos objetivos é avaliar a
adequação e a capacidade explanatória da definição do casamento como
uma técnica de coordenação, via sistemas de parentesco, para buscar
soluções de desafios adaptativos da evolução humana nas esferas do
desejo sexual e da afetividade, da reprodução e cuidado com a prole, da
transmissão intergeracional de recursos e da cooperação e da coesão
social.
Buscar este objetivo demanda uma investigação filosófica,
informada por hipóteses da Antropologia Evolucionista e da Psicologia
Evolucionista das estratégias de casamento e sistemas de parentesco
associados. A partir da abordagem proposta por Camila Barbosa, o
Eduardo Vicentini de Medeiros • 13

desafio teórico passa a ser realizar este objetivo sem cair no


heterossexismo científico.
O capítulo de Danilo Souza Ferreira, “A antropologia de Edith Stein
ou o papel da mulher e do homem para além da realização do
casamento” atende, simultaneamente, dois objetivos centrais de nosso
projeto de pesquisa, que são estabelecer uma ampla e inclusiva linha do
tempo da crítica do casamento, considerando distintas tradições
investigativas na Filosofia, bem como suas inter relações e diálogos com
outras áreas das ciências humanas e, igualmente, apresentar e analisar
as tramas dessa linha do tempo e seus reflexos nas representações
estéticas do casamento na literatura ficcional e na dramaturgia.
Danilo nos mostra como Edith Stein formula uma tipologia feminina
a partir de uma análise fenomenologicamente informada das
personagens Ingunn do romance Olav Audunssön, de Sigrid Undset, Nora
de Casa de bonecas, de Henrik Ibsen e Ifigênia da obra homônima de
Goethe. Em especial, devemos observar que nos três enredos narrativos
escolhidos por Edith Stein, a instituição do casamento ocupa um lugar de
destaque. Os esforços de método de Stein para realizar essa tipologia
ilustram à perfeição as afirmações de Martha Nussbaum, muito caras ao
nosso projeto, de que “[...] certas verdades sobre a vida humana só podem
ser adequada e acuradamente enunciadas na linguagem e nas formas
características do artista narrativo”, bem como “[...] que certos textos
literários (ou certos textos similares a estes em certos aspectos
relevantes) são indispensáveis para uma investigação filosófica na esfera
ética: de modo algum suficientes, mas fontes de insights sem os quais a
investigação não pode se completar” (Nussbaum, 1990).
Halina Leal contribuí para a construção da linha do tempo da
crítica do casamento a partir das reflexões de bell hooks na trilogia
14 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

formada por All About Love: New Visions (2000), Salvation: black people
and love (2001) e Communion: the female search for love (2002). A
contribuição de Halina, ao colocar as análises de hooks sobre o amor em
perspectiva, permite sugerir quais seriam algumas das consequências
desse esforço analítico para uma compreensão interseccional das
dinâmicas do amor no casamento: “para hooks, amar verdadeiramente
é possuir consciência de gênero, raça e classe!” Um dos lembretes do
capítulo “As facetas do amor em bell hooks” para as críticas filosóficas
do casamento é, por conseguinte, ressaltar o impacto das nossas
relações amorosas na constituição do espaço público. Halina nos ajuda
a pensar de que modos a ética amorosa proposta por hooks é uma
ferramenta de resistência ao “patriarcado imperialista capitalista de
supremacia branca”, e ao fazê-lo, coloca o casamento e amor no meio da
sala de estar da Ética e da Política.
O nosso projeto de pesquisa, desde sua origem, percebeu que a
crítica filosófica do casamento ganha sua especificidade e radicalidade
com o surgimento dos protofeminismos. E nessa conversa, Mary
Wollstonecraft é uma interlocutora de primeira hora. Katarina Peixoto
nos presenteia com uma reconstrução da teoria do casamento de
Wollstonecraft, contrastando-a com a política educacional para as
mulheres que Rousseau propõe no Livro V de “Emílio, ou: da Educação”
e, ao mesmo tempo, situando-a no contexto tensionado das demandas
por emancipação feminina à época da Revolução Francesa. O capítulo
“‘Cimento da sociedade’: método e metafísica na teoria do casamento de
Mary Wollstonecraft” coloca a instituição do casamento no papel de
articulação entre as esferas privada e pública, à serviço de uma teoria
da liberdade civil como independência que, por sua vez, anda de mãos
Eduardo Vicentini de Medeiros • 15

dadas com um projeto educacional emancipatório, tanto para homens


quanto para mulheres.
Os textos de Larissa Guedes Tokunaga e Mariana Lins Costa
combinam esforços para ampliar a investigação sobre Emma Goldman,
uma autora absolutamente central na linha do tempo da crítica
filosófica do casamento pois inaugura um modelo triádico de análise
que intersecta o comportamento sexual, a vida psíquica e a
macroestrutura socioeconômica capitalista. A oposição irreconciliável
entre amor e casamento, a moldagem institucional do casamento
dentro da dinâmica da propriedade privada, a expansão da analogia
entre casamento e prostituição, o controle da sexualidade feminina e as
políticas relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos, são temas
fundamentais para Emma e são devidamente analisados e
contextualizados em "Amor e Casamento: uma antinomia para Emma
Goldman" e "Emma Goldman e o casamento como instituição
irreformável".
A crítica filosófica do casamento, em especial nas versões atentas
às demandas emancipatórias dos feminismos contemporâneos, sempre
colocou a devida ênfase nas relações múltiplas e, por vezes, conflitivas,
entre os espaços públicos e privados. Em "Sobre a subordinação da
mulher no lar: a ontologia heideggeriana e sua influência no feminismo
de Simone de Beauvoir sob a ótica de Young e Irigaray", Luana Goulart
de Castro Alves mobiliza de Beauvoir, Luce Irigaray, bell hooks e, em
especial, Iris Marion Young para um reexame das noções de habitação,
do lar e do espaço privado na fenomenologia hermenêutica de
Heidegger. Este reexame, na leitura de Young, permite uma reavaliação
positiva do espaço da domesticidade como um lugar de afirmação da
subjetividade feminina sem recair na versão patriarcal do
16 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

confinamento do gênero feminino no espaço da casa, no modo da


preservação e no trabalho exclusivo do cuidado.
Para compreender as dinâmicas de uma relação interpessoal é
fundamental perceber as especificidades dos agentes que estão na
relação. No caso do casamento heterossexual importa, sobremaneira,
identificar a existência e listar as assimetrias entre as categorias do
masculino e do feminino. Esta é parte da tarefa de Natália Mendes
Teixeira em "'Mulheres podem existir?' Kierkegaard sobre as mulheres"
e um dos seus resultados é desenhar um lugar para Kierkegaard na linha
do tempo das críticas filosóficas do casamento. Este lugar é definido a
partir da consideração de que homens e mulheres constroem um self
autêntico utilizando-se de categorias e disposições existenciais muito
diversas.
No capítulo "Reflexões sobre o amor romântico nas obras literárias
El albergue de las mujeres tristes, de Marcela Serrano, e Ponciá
Vicêncio, de Conceição Evaristo", Renata Araújo Matos dá passos
seguros na direção do objetivo de mapear as representações estéticas do
casamento na literatura ficcional. Nos casos em tela, as narrativas
imaginadas por Evaristo e Serrano afluem simultaneamente para um
mesmo ponto, a saber, a perversa e paradoxal presença da violência
contra a mulher nos espaços de convivência amorosa.
O capítulo que fecha nossa coletânea, "Capitalismo, subjetividade e
amor" de Rhuann Fernandes, explora o surgimento de uma concepção
terapêutica dos relacionamentos amorosos contemporâneos. Uma
concepção que surge como consequência dos modos de construção das
subjetividades que emergem sob a marca do neoliberalismo. Neste
processo de subjetivação destacam-se três elementos básicos: a busca
da autenticidade de si, a prevalência das escolhas individuais e a busca
Eduardo Vicentini de Medeiros • 17

da satisfação pessoal. Estes elementos, por sua vez, moldam a


compreensão do valor, das expectativas e das dinâmicas dos
relacionamentos amorosos.
A diversidade de áreas de investigação, mas também a variedade
regional dos pesquisadores e pesquisadoras, bem como a ampla gama
temática e metodológica dos textos que constituem a presente
coletânea, nos alegram sobremaneira. Coordenar o projeto de pesquisa
"Críticas filosóficas do casamento" é promover a arte dos bons
encontros intelectuais, onde as perspectivas se encontram e conversam
na direção do benefício mútuo.
Agradeço o trabalho de revisão e comentário textual das bolsistas
de iniciação científica Isabela Castro Simões e Thuany Naressi dos
Santos.
Entregamos a coletânea Críticas Filosóficas do Casamento, Volume 2
para a comunidade de leitores e leitoras com a certeza de que estamos
ampliando a discussão pública esclarecida sobre a instituição do
casamento e a variedade das estruturas familiares.

REFERÊNCIAS

Nussbaum, M. Love’s knowledge: Essays on philosophy and literature. Oxford: Oxford


University Press, 1990.
“ HETEROSSEXISMO CIENTÍFICO”:
1
A NATURALIZAÇÃO DA CATEGORIA DE GÊNERO E DA
HETERONORMATIVIDADE NAS CIÊNCIAS
Camila Palhares Barbosa 1

Desde sua origem com o texto de Mary Wollstonecraft (1776) 2, o


pensamento feminista tem disputado o significado de gênero e sua
constituição nas estruturas sociais. Especialmente, autoras feministas
buscaram apontar para as consequências da divisão binária de gênero
pautada pela naturalização dos comportamentos enquanto
biologicamente determinados. Certamente, a famosa articulação de
Simone de Beauvoir no “O Segundo Sexo” (1985) sobre o ‘torna-se mulher’,
abriu caminhos para a reivindicação da desconstrução da categoria de
gênero enquanto refletindo uma condição essencial e natural dos
sujeitos nascidos com determinados sexos. Assim, ao menos desde a
segunda onda do feminismo, busca-se entender como as estruturas
generificadas que marcam a vida social e política são construídas
socialmente, historicamente determinadas e mantidas em função dos
processos de opressão do patriarcado.
A conceituação teórica do gênero enquanto refletindo construções
sociais, contudo, não surge de maneira acrítica. Um dos principais
dilemas e desafios internos ao pensamento feminista é a articulação de

1
Professora substituta no Departamento de Filosofia da UFSM. Pesquisadora em Estágio Pós-Doutoral
na PUCRS. camilabarbosa.ri@gmail.com.
2
Teóricas feministas registram a obra “Reivindicação dos direitos da mulher” de Wollstonecraft como
primeira obra feminista, na medida em que o livro se debruça pela reivindicação social e política de
equidade de gênero, oferecendo um claro recorte da desigualdade como ‘generificada’.
Camila Palhares Barbosa • 19

uma concepção de mulher capaz de expressar a condição de


subordinação e as demandas de emancipação, permitindo, ao mesmo
tempo, reconhecer a desigualdade gerada pela opressão sistêmica 3 que
ideias sobre o papel de gênero exercem e desnaturalizam o ‘mito’ do
comportamento feminino que apresenta limites à participação social,
política e econômica de mulheres; junto à necessidade de um
reconhecimento da situação material e posição epistêmica particular
desses sujeitos, sem o apagamento das suas diferenças. Esse dilema é
chamado de ‘paradigma bivalente' por Nancy Fraser (2006) que, segundo
a autora, são marcados por um duplo polo de injustiça: por um lado, a
disputa pela equidade e apagamento da divisão que fundamenta a
opressão, e, por outro, a demanda por reconhecimento de aspectos
essenciais da identidade. Raça e gênero são marcados pela ‘bivalência’
para Fraser, o que implica numa dupla articulação entre redistribuição
(material) e reconhecimento (normativo), porém seus desdobramentos
em termos pragmáticos muitas vezes apresentam-se como
contraditórios.

Mas o caráter bivalente do gênero é a fonte de um dilema. Uma vez que as


mulheres sofrem, no mínimo, de dois tipos de injustiça analiticamente
distintos, elas necessariamente precisam, no mínimo, de dois tipos de
remédios analiticamente distintos: redistribuição e reconhecimento. Os
dois remédios pendem para direções opostas, porém, não é fácil persegui-
las ao mesmo tempo. Enquanto a lógica da redistribuição é acabar com esse
negócio de gênero, a lógica do reconhecimento é valorizar a especificidade
de gênero. Eis, então, a versão feminista do dilema da redistribuição-
reconhecimento: como as feministas podem lutar ao mesmo tempo para

3
Aqui, fala-se de opressão sistêmica as seguindo o conceito desenvolvido por Frye (1985): “Um dos mais
característicos e ubíquos aspectos do mundo que é experimentado por pessoas oprimidas é o chamado
“nó duplo”: situações nas quais nossas opções são reduzidas a muito poucas e todas elas vêm com
penas, censuras e depravações”
20 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

abolir a diferenciação de gênero e para valorizar a especificidade de gênero?


(FRASER, 2006, p. 235).

Esse dilema crítico dos discursos sobre identidades sociais e


subjetividades, parece estar contextualizado e fundamentado na
história, especialmente, do pensamento moderno. Esse ponto foi bem
desenvolvido por Genevieve Lloyd em “Man of Reason” (1985), obra que
remonta como a filosofia foi se estruturando a partir de conceitos
dicotômicos, que não apenas separam corpo e mente em duas instâncias
valorativamente diferentes, mas também que segregam os discursos
entre racional, ativo, moral, público, universal e masculino; e emotivo,
passivo, privado, particular, logo, feminino. Primeiramente, destaca-se
como categorias políticas ‘descorporificadas’ (HAWKESWORTH, 2016)
moldaram os projetos de instituições justas e igualitárias, através de
noções desarticuladas no corpo, como de ‘juízos transcendentais’
(KANT, 2001), "razão discursiva” (HABERMAS, 2012), “posição original”
e “véu da ignorância” (RAWLS, 2011), entre outros. Carole Pateman
(1988) argumenta, neste sentido, que a ideia do contrato social que
moldou as estruturas políticas modernas está fundamentada,
justamente, num “contrato sexual”, isto é, pautam-se pelas formas
exclusivas e opressoras que sustentam certos modos de produção (mão-
de-obra) e reprodução (da família), a partir da disciplinarização de
certos corpos em realizar certas atividades. Num argumento análogo,
Charles Mills (1999) denunciou a racialização fundamental dos
contratos das sociedades modernas ocidentais, que explora o trabalho e
marginaliza corpos racializados do acesso igualitário ao domínio
público. As tradições das teorias da justiça e teorias morais partem
“justamente de uma tentativa de reduzir todas as diferenças a uma
Camila Palhares Barbosa • 21

uniformidade e unidade abstrata: na promessa pouco convincente de


que todos são iguais perante a lei está pressuposto que isso é possível
graças a uma lei que não vê diferenças, como raça, religião ou gênero”
(YOUNG, 1990). Por outro lado, as leituras voltadas para diferenças
sexuais buscaram retomar as marcas corporificadas que constituem os
modos de vidas possíveis de sujeitos materiais (IRIGARAY, 1993;
HAINAMAA, 1997; ALCOFF, 2005; POTTER, 1993). Além disso, como bem
destaca Emily Lee (2014), há uma relação significativa entre “a
materialidade do corpo com sentidos e significação”, fazendo com que
“corporificação seja central para raça” (LEE, 2014, p. 11). Assim, as
críticas feministas permitiram um deslocamento das concepções
universalistas das experiências e de atributos das categorias homem e
mulher, e buscaram retomar como as categorias identitárias são
marcadas no corpo a partir de sua inserção culturalmente e
historicamente situada, e passaram a incorporar as diversas e
relacionadas formas de opressões que perpassam nossa economia
política, de maneira interseccional.
Como bem destaca Monique Wittig em “A mente hétero” (1992), o
dilema da identidade que perpassa os debates sobre gênero, sexo e
sexualidade está fundamentado na ‘semiótica política’ que estrutura a
realidade social de forma dicotômica. Wittig retoma o papel da
linguagem e as estruturas discursivas que atravessam a compressão da
realidade e da objetividade, especialmente, articulado juntamente às
concepções científicas, que “produz[em] uma estática confusa para o(a)s
oprimido(a)as, que o(a) faz perder de vista a causa material da sua
opressão e o(a)s lança numa espécie de vácuo a-histórico” (WITTIG,
1992, p. 3). Nesse sentido, a linguagem simbólica tratou de estruturar a
vida política e social a partir de critérios quase-estáticos e
22 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

categoricamente invariantes (por exemplo, comportamentos


determinados masculinos e comportamentos determinados femininos),
que projetam gerações de indivíduos “não tocados pela história e não
trabalhados por conflitos de classe, com psiques idênticas porque
geneticamente programadas” (WITTIG, 1992, p. 4). Podemos considerar,
assim, que enquanto a filosofia se ocupava de investigações
descorporificadas, da racionalidade ao sujeito transcendental, era
apenas na articulação com as ciências que o corpo aparecia, não como
sujeito, mas como objeto de investigação, especialmente, voltada para
análises daqueles corpos cujo seu status não permitia o acesso ao
universal e intelectual, mas que permaneciam condicionados à sua
fundamentação e determinação biológica, àqueles corpos marginais,
selvagens, afeminados e de cor. Como bem destaca Linda Alcoff em
“Visible Identities” (2005), deslocar-se do fato do próprio corpo é uma
das instâncias mais presente do privilégio, pois àqueles sujeitos cujo
papel foi marginalizado nas instituições sociais, não pode desvincular-
se deste “aprisionamento no corpo”, por exemplo, “parte do privilégio
[branco] tem sido precisamente a habilidade de ignorar as formas em
que a identidade branca tem seus benefícios”.
O pensamento de Foucault auxiliou na compreensão do papel que
discursos hegemônicos científicos tiveram na naturalização e
formatação política de corpos enquanto normais e não-normais, com
seus comportamentos vinculantes e legitimados, compondo os
processos de sujeição de si (formas de constituição de um eu). Em “Vigiar
e Punir” (2005), por exemplo, Foucault destaca o caráter disciplinar do
poder sobre os corpos e suas condições de legitimidade nos espaços
simbólicos e materiais das sociedades modernas. Para Foucault, a
disciplina como formulada na modernidade torna o corpo disciplinado
Camila Palhares Barbosa • 23

enquanto dócil e útil ao discurso científico, o que permite que as


expressões fundamentais da vida, como gênero e sexualidade, possam
ser mensuradas, quantificadas, recortadas em partes, vinculadas aos
usos apropriados. Assim, “o momento histórico das disciplinas é o
momento histórico em que nasce uma arte do corpo humano”
(FOUCAULT, 2005, p. 110). É essa arte fundamentada nas formas
científicas e política que transforma a erótica (ars erotica da sexualidade
humana) em ciência sexual (Scientia Sexualis) como descrita ao longo dos
quatro volumes da “História da Sexualidade” (2020), e que transforma o
corpo e seus dispositivos em discursos controlados, especializados e
distribuídos sob o véu da objetividade e da neutralidade científica
(FOUCAULT, 2020, p. 52).

Vinculou-se, com isso, uma prática médica insistente e indiscreta, volúvel


no proclamar sua repugnância, pronta para correr em socorro da lei e da
opinião dominante; mais servil ante às potências da ordem do que dócil às
exigências da verdade. Involuntariamente ingênua nos melhores dos casos
e, voluntariamente mentirosa, nos mais frequentes, cúmplice do que
denunciava, altiva e provocadora, essa medicina instaurou toda uma
licenciosidade do mórbido, característica do final do século XIX [...] os
grandes mitos evolucionistas às modernas instituições da saúde pública,
pretendia assegurar o vigor físico e a pureza moral do corpo social,
prometia eliminar os portadores de taras, degenerados e as populações
abastardadas. Em nome de uma urgência biológica e histórica, justificava
os racismos oficiais, então iminentes. (FOUCAULT, 2020, p. 55)

A crítica foucaultiana aos discursos normalizantes e disciplinares


na clínica, na medicina e na psicologia, forneceram a possibilidade de
disputar no campo simbólico social os discursos sobre a verdade
progressiva e neutralizada da ciência, que permaneceu servindo as
estruturas dominantes e dicotômicas ao, frequentemente, justificar a
24 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

partir de uma descrição evolucionista e enviesada, os mitos e


classificações de comportamentos que fundamentam as injustiças e
opressões. Esses vieses de gênero e sustentações naturalizadas dos
sujeitos, sem contar com um posicionamento histórico mais abrangente
e situado, que vá além da perspectiva evolucionista, que é chamado aqui
de “heterossexismo científico”.
É partindo da dificuldade e dos dilemas apresentados para o
pensamento feminista, influenciado pela disputa simbólica e linguística
acerca da representação do corpo sexuado e generificado enquanto
estruturante da nossa sociedade, que o presente artigo buscará
apresentar um mapeamento das críticas às considerações sobre gênero
e sexo como marcadores na pesquisa científica, especialmente, da
medicina e da psicologia. Em um primeiro momento será exposto a
crítica feminista ao sexismo científico e ao neurosexismo,
demonstrando como muitas pesquisas são fortemente impactadas e
prejudicadas por vieses naturalizados dos papéis de gênero/sexo. Num
segundo momento, o foco será centrado no campo da psicologia
evolucionista, oferecendo críticas e preocupações à forma de
fundamentação do pensamento evolutivo e das justificações
interespécies pressupostas pelo campo. Com isso, buscarei demarcar a
psicologia evolucionista como assentada no “heterossexismo científico” e
reforçar a necessidade de uma visão mais crítica para os métodos das
ciências.

ENFRENTANDO O “TESTOSTERONA-REX”: O PROBLEMA DO SEXISMO NAS


CIÊNCIAS.

Na terceira onda feminista (a partir da década de 1980), houve uma


abertura ao discurso feminista na ciência - em grande medida vinculado
Camila Palhares Barbosa • 25

à lenta inserção e ampliação de participação de mulheres em diversos


campos da ciência - que possibilitaram questionar os métodos e
discursos científicos que tomavam como uma pressuposição acrítica as
diferenças de sexo e as relacionaram causalmente com aos papéis
comportamentais de gênero 4. Em grande medida, a inserção de uma
perspectiva feminista nas ciências tem se desdobrado, como categoriza
Sandra Harding em “Whose science? whose knowledge?: thinking from
women's lives” (1986), em três grandes abordagens: a) uma que se vincula
a “filosofia feminista empiricista”, que busca investigar os métodos e
pressupostos daquilo que pode ser considerado ‘má-ciência’, ou seja
revisitar os pressupostos científicos partindo de um olhar mais
cuidadoso às fundamentações das conclusões aparentemente
aceitáveis; b) “epistemologia feminista situada”, comumente associada à
epistemologias de standpoint, que consideram que o local geo-espacio-
temporal ocupado pelo agente transmissor de conhecimento é sempre
marcado historicamente, e, nesse sentido, repensa os critérios de
transmissão, geração e acesso ao conhecimento levando em conta a
situabilidade dos falantes-ouvintes dos testemunhos proposicionais; e,
por fim, c) “feminismo pós-moderno” que busca uma crítica mais
radical à toda metodologia e a vinculação hegemônica que se constitui
com a verdade do pensamento iluminista, propondo pontos de rupturas
e descontinuidades frente às estruturas que fundamentam o
conhecimento (HARDING, 1986, p. 11).

4
A ampliação conceitual do vocabulário político feminista do período, especialmente a partir da
distinção dos fênomenos sexo (biológico) e gênero (social), permitiram questionar a relação causal que
fundamentava as questões sociais partindo de argumentos naturalizantes. A recepção da afirmação do
“tornar-se mulher” de Beauvoir marca a transição do movimento feninista para sua ‘segunda onda’, em
que passou a ser questionada a mitologia de gênero que fundamentava amplos aspectos do
comportamento feminino e masculino, profundamente implicados nas relações sociais, quase que
exclusivamente em questões biológicas de sexo.
26 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

Uma nova visão acerca do método pressuposto nas ciências parte


da disputa novamente em torno das categorias universais que apostam
numa objetividade acrítica quanto a sua fundamentação, ou, como
esclarece Donna Haraway em “Saberes localizados: a questão da ciência
para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial” (1995), o “[...] eu
cognoscente [que] é parcial em todas suas formas, nunca acabado,
completo, dado ou original; é sempre construído e alinhavado de
maneira imperfeita e, portanto, capaz de juntar-se a outro, de ver junto
sem pretender ser outro”. Haraway busca salientar que não existe ponto
de vista de lugar nenhum, isto é, que àqueles sujeitos que empregam o
método científico não são receptáculos passivos e desinteressados, mas
participam de “sistemas de percepções ativos, construindo traduções e
modos específicos de ver” (HARAWAY, 1995, p. 22). Tanto Harding
quanto Haraway estão construindo essa visão do feminismo enquanto
um método que visa sanar as opressões sistêmicas e discriminações
desavisadas ou afirmadas em má-fé, que articulam o pensamento
objetivo da ciência retratando sob a carapuça da universalidade um
único ponto vista, aquele masculino, branco, heteronormativo e
ocidental.
Com isso, ao menos como abordado aqui, não se disputa um caráter
relativista e descontínuo do pensamento científico, mas procura-se
destacar as consequências de pressupor sem uma real preocupação a
influência da situabilidade e dos vieses implicados na ciência uma vez
que essa lida com complexos sistemas de construção social que nublam
as fronteiras de uma demarcação simplista entre natureza e cultura.
Pode-se afirmar que, de fato, objetividade e subjetividade estão em um
constante processo de formação, ou seja, que estão dialeticamente
relacionados (FIUMARA, LAZREG, 1994), de tal forma que sua
Camila Palhares Barbosa • 27

'bivalência' não pode ser ignorada sem consequências políticas, éticas e


sociais.

Uma maneira de ver esse problema é perceber que, embora os métodos


científicos são selecionados, dizem, exatamente para eliminar todos os
valores sociais da investigação, eles são realmente operacionalizados para
eliminar apenas aqueles valores que diferem dentro do que quer que seja
considerado pela comunidade de cientistas. Se valores e interesses que
podem produzir as mais críticas perspectivas sobre a ciência são silenciadas
por meio de ações sociais e práticas discriminatórias, o padrão, concebido
estreitamente como método científico, não terá a menor chance de
maximizar a neutralidade de valor ou objetividade. (HARDING, 1986, p. 41)

Um exemplo interessante de crítica à má-ciência tem sido


desenvolvido por Cordelia Fine e Janet Hyde (2005), especialmente,
pautada pelo desenvolvimento da pesquisa intitulada “Hipótese da
Semelhança” (HYDE, 2005). Tanto a neurociência quanto a psicologia
juntas formam um estudo de caso interessante para os riscos que as
pressuposições naturais e acríticas das métricas de sexo e gênero na
percepção, acolhimento e interpretação de dados geram do ponto de
vista ético e social, na medida em que pautam, ao menos desde final do
século XIX, as justificações e racionalizações para inferiorização de
mulheres. Lembremos da concepção científica popular entre os
especialistas de que a inferioridade intelectual da mulher se dava ao fato
de sua estrutura cerebral ser menor e mais leve (FINE, 2010, p. 280).
O trabalho de Fine na área da neurociências serve como um
apontamento daquilo que pode ser considerado problemático nos
métodos unidimensionais. Segundo a autora, a neurociência padrão foi
estabelecida a partir de pressuposições misóginas e machistas,
formulando aquilo que a autora chama de Neurosexismo. Fine nota que a
28 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

neurociência tem obsessivamente se preocupado com os sistemas de


diferença sexual, o que parece mascarar o fato de que mais de 78% do
cérebro é anatomicamente idêntico em homens e mulheres (FINE, 2010;
2012). Além disso, “a ênfase na diferença é institucionalizada em bancos
de dados que permitem apenas buscas por diferenças de sexo/gênero,
não por semelhanças” (Kaiser et al., 2009). Mapeando as pesquisas no
campo da neurociência, a pressuposição de que diferenças naturais e
essenciais entre o cérebro e a consciência de homens e mulheres
fundamentam suas diferenças comportamentais, como, por exemplo,
na tomada de decisão, destacam-se na literatura. O uso de neuroimagem
(fMRI) tem ampliado a pesquisa das diferenças ao conseguir expor as
diferenças de funcionamento e processamento em cérebros
generificados (FINE, 2012).

A primeira dificuldade é a possibilidade de erros falso-positivos que surgem


quando são feitas comparações entre os sexos. O segundo obstáculo está na
compreensão do que significa, se é que existe, uma diferença de sexo na
atividade cerebral em termos de diferenças nos processos mentais. As
diferenças de grupo na atividade cerebral não são prontamente traduzidas
em diferenças psicológicas e essa lacuna no conhecimento das relações
cérebro-mente cria o perigo de que, como no passado, os estereótipos de
gênero sejam usados para preencher a lacuna. A terceira questão é que as
diferenças entre os sexos no cérebro e no comportamento são
potencialmente maleáveis, ou plásticas, o que significa que não é possível
obter uma visão das origens do desenvolvimento ou da situação das
diferenças entre os sexos no cérebro e até que ponto os fatores sociais às
aumentam, reduzem, eliminam ou até mesmo as revertem por meio de
comparações simples e rápidas entre os cérebros masculino e feminino. O
tratamento inadequado dessas dificuldades cria um potencial para uma
tendência ao exagero da extensão, da importância funcional e da fixidez das
diferenças sexuais no cérebro. (FINE, 2012, p. 369).
Camila Palhares Barbosa • 29

Apesar de fatores como a neuroplasticidade e a importância do


ambiente para morfologia no cérebro serem amplamente aceitas, as
pressuposições sobre comportamentos de homens e mulheres, o tipo de
investigação voltado para justificar as diferenças e a tendência a
naturalizar certos aspectos do comportamento humano, como sexo e
sexualidade, parecem gerar o impacto de uma objetividade pelo viés
masculino e consolidar a masculinidade enquanto dominante no campo.
Özlem Sahin e Nur Soylu Yalcinkaya (2021) expuseram que as métricas
de diferenciação entre homens e mulheres, assim como de diferenças
raciais e sexuais, foram tradicionalmente essencializadas através de
argumentos pautados pela biologia, como genes, DNA, ou fatores
hormonais (SAHIN, YALCINKAYA, 2021).
Os reconhecidos trabalhos de Tranel et al. (2005) e Bechara (2005),
são exemplos desse tipo de abordagens. Dentro dessa perspectiva
biológica, Bechara buscou salientar que há diferenças fundamentais
entre homens e mulheres em suas estratégias na tomada de decisões.
Bechara conduziu estudos baseados em lesões na área do córtex pré-
frontal ventromedial, responsável por funções sociais, processamento
de emoções e tomada de decisões. Bechara argumenta pelo diagnóstico
de que os homens tomam decisões pautados por lógica e racionalização
enquanto mulheres por questões emocionais e de empatia. Partindo da
distinção funcional cerebral, em que o lado direito do córtex pré-frontal
ventromedial tem maior influência nessas ações cognitivas apresentou
mais atividades na tomada de decisão, enquanto o lado esquerdo,
apresenta uma menor relevância para essas ações, Bechara pauta-se no
fato de que a única mulher presente no estudo, não manteve o padrão
comportamental da pesquisa, isto é, não apresentou o mesmo nível de
atividade no lado direito do córtex pré-frontal ventromedial na tomada
30 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

de decisão. O que levou Bechara a questionar “diferenças relacionadas a


gênero na maneira com a qual estruturas cerebrais pré-frontais
mediam funções relacionadas a processamento de emoções, e de
tomada de decisão” (Tranel, 2005). O estudo com recorte de gênero,
segundo Bechara, demonstrou diferenças fundamentais na forma com
a qual homens e mulheres elaboram estratégias de tomada de decisão –
o que leva Bechara a concluir que “homens são de Vênus, mulheres são
de Marte”.
Contudo, essas diferenças essenciais não precisam ser inatas e
fixas para serem métricas reais e materiais, mas, na grande maioria das
vezes, são construídas a partir de vieses e crenças socialmente
enraizadas. É importante perceber que a questão não é propriamente
em termos de dados, ou seja, que há evidências relativas à diferenças de
sexo e gênero quando analisamos fatos biológicos dos indivíduos, mas
antes, é trazer uma preocupação crítica em como o método é feito, quais
vieses sociais estão implicados nessa categorização, e, principalmente,
quais fatores históricos e sociais podem afetar os resultados
encontrados. Certamente, do ponto de vista da metodologia, generalizar
o comportamento de mulheres na tomada de decisão a partir de um
baixo número de participantes, sem estar acompanhada de uma
descrição mais detalhada e reflexiva da situabilidade (como fatores de
métricas como cor, classe, idade, etc.) podem interferir e explicar os
resultados encontrados.
Em “Delusions of Gender” (2010), Fine questiona justamente essa
narrativa contada de dois cérebros que cria uma fundamentação
imutável e atemporal da psicologia humana e serve para justificação e
explicação satisfatória dos status quo presentes de gênero (FINE, 2010,
p. 24). Apesar de haver diferenças sexuais, há uma quantidade
Camila Palhares Barbosa • 31

significativa de gaps, inconsistências, pressuposições, saltos


metodológicos e erros que sustentam uma concepção socialmente
constituída de como e porque essas diferenças estão presentes (FINE,
2010, p. 29). Em certo sentido, essas pressuposições acabam fazendo um
recorte exacerbado da realidade, por exemplo, pelo fato de destacar de
forma quase unânime as diferenças ao invés das semelhanças, mas
também ao relacionar diretamente uma causalidade simplista e direta
entre comportamentos e fatores biológicos.
Nesse sentido, em “Testosterona Rex: Unmaking the Myths of Our
Gendered Minds” (2017), Fine destaca a narrativa sobre a masculinidade
construída a partir do recorte específico hormonal, nisso, que a
testosterona tem sido usada no vocabulário científico como ferramenta
de justificação e naturalização de uma porção de comportamentos de
homens que, sem dúvidas, estão muito interligados às construções
sociais do imaginário simbólico da masculinidade. Não muito distinta
da tradição psicanalítica, especialmente lacaniana 5, a constituição da
mulher é entendida a partir da falta, especialmente, da ausência da
testosterona no desenvolvimento intrauterino, o que explicaria
aspectos como a falta de ação e atividade no comportamento de
feminino. E, novamente, não há disputa quanto à diferentes
composições hormonais em corpos de homens e mulheres (incluindo,

5
Feministas têm sido críticas às percepções de gênero nos estudos psicanalíticos, que de longa tradição
atribuem comportamentos psíquicos diferentes fundamentados nas expressões de desejo separados
pela distinção sexual. Lacan é um nome frequentemente analisado nas teorias feministas pois, se por
um lado ao tratar do masculino e do feminino como expressões simbólicas da linguagem e refletidas
na vida psíquica e deslocar-se estritamente da visão dos sexos naturais, ainda, por outro, sua afirmação
que a mulher se caracteriza pela inveja em função da ausência do falo, certamente permanece vinculado
aos ideais misóginos de discursos dominantes. Como descrito por Wittig: “nossa recusa da interpretação
totalizante da psicanálise faz com que os teóricos digam que estamos a negligenciar a dimensão
simbólica. Estes discursos negam-nos toda a possibilidade de criar as nossas próprias categorias”
(WITTIG, 1992, p. 6).
32 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

em sujeitos transgêneros que fazem transição de sexo via aplicação


hormonal), contudo, quando afirma-se que há uma falta, certamente
essa visão não é neutra e sem carga valorativa. É através da forma de
publicar os dados, as perguntas fundamentais que compõem a pesquisa,
os métodos, as pressuposições de causa-efeito, que o sexismo científico
se estabelece.

Este é o Testosterona Rex: aquela familiar, plausível, persuasiva e poderosa


história do sexo e sociedade. Fazendo correlações interligadas entre
evolução, cérebros, hormônios, e comportamento, oferece uma perspectiva
descolada e convincente de nossas persistentes e aparentes intratáveis
desigualdades sociais de sexo. Testosterona Rex pode aparecer como
imbatível. Quando vamos fazer o valioso debate sobre inequidades de sexo
e o que fazer sobre isso, ele é o gigante elefante com testículos no ambiente.
[...] Cave um pouco mais fundo que descobrirá que rejeitar a visão do
Testosterona Rex não implica negar a evolução, diferenças e biologia. (FINE,
2017, p.36)

Não apenas a pressuposição problemática de que o sexo biológico é


sinônimo e determinante de gênero, parte de uma concepção binária
entre homem e mulher que não dá conta da pluralidade de gêneros e
identidades humanas; mas, também, é em grande parte estruturado a
partir de perspectivas heteronormativas sobre os comportamentos. Ou
seja, ao pressupor a heterossexualidade enquanto biologicamente
‘natural’, os discursos hegemônicos nas ciências contribuíram para a
sustentação de visões desiguais e opressivas socialmente e
historicamente articuladas. É, nesse sentido, que autoras feministas
têm destacado a necessidade de obter um olhar mais crítico à má-
ciência, que toma de forma imediata uma causalidade entre sexo e
gênero e explica a partir desta distinção diversos dos comportamentos
Camila Palhares Barbosa • 33

humanos, também de incluir perspectivas situadas de maneira mais


plural, sendo capaz de apreender a ‘grande figura’ complexa dos
comportamentos humanos e suas correlações com as estruturas sociais.
A má-ciência não apenas ‘entende errado’ a relação de causalidade,
nem apenas está desinformada quanto aos seus pressupostos implícitos
que diretamente influenciam as conclusões que esses estudos chegam,
mas, e mais importante, ela se serve desses mesmos pressupostos e
articula sua pesquisa de maneira a intencionalmente comprová-los.
Assim, é fundamental destacar os tipos de perguntas que conduzem e
orientam essas investigações. Em alguns casos, a visão do testosterona
rex descrito por Fine não apenas está presente na sala dos estudos, mas
é ele que está com o instrumento da pesquisa junto a testosterona em
mãos, a cada momento de fazê-la, buscando reafirmar sua posição, ao
naturalizar o status de domínio da visão patriarcal. Um exemplo
emblemático desse tipo de pesquisa é a forma como a psicologia
evolucionista, com seus mais importantes nomes (em grande medida,
de homens brancos - não surpreendentemente), tem sustentado uma
divisão da psique e dos comportamentos centrado nas concepções
biológicas do sexo.

PSICOLOGIA EVOLUCIONISTA E A JUSTIFICAÇÃO DO TESTOSTERONA REX:


NORMALIZANDO O MACHO ALFA E A FÊMEA RECATADA NO PLANO DE
FUNDO.

Os estudos do campo da psicologia tem sido historicamente


emblemático frente às questões de gênero. Se, por um lado, ao buscar
fundamentar as formas de desejo e explicitar os aspectos simbólicos que
são articulados pela psique à psicologia trouxeram novas possibilidades
em debater questões de sexualidade e comportamento; por outro, sua
34 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

própria investigação, iniciada pelos chamados “pais da psicologia” como


Freud e Lacan, partiram sob o ponto de vista masculino e ainda
profundamente arraigado nas diferenças sexuais e na
heteronormatividade.
Assim, ainda que Freud tenha admitido uma orientação bissexual
originária nas formas do desejo no desenvolvimento da infância na sua
fundamentação do Complexo de Édipo, na medida em que tanto a mãe
quanto o pai tornam-se objetos de desejos 6, a normalização da
heteronormatividade permanece servindo de plano de fundo ao
desenvolvimento das mesmas formas de desejo. Como aponta Anna
Gullickson (2000), Freud foca do desenvolvimento do desejo da menina
pelo pai, e quase não desenvolve a relação do menino com o mesmo 7, ao
explicar a origem do desenvolvimento do desejo feminino através da
percepção da ausência do pênis, o que transfere o objeto de desejo do
seio (para mamar) da mãe para o pai, gerando na criança ‘menina’ inveja
da mãe por ocupar o lugar como objeto de desejo. No menino é que de
fato ocorre a descoberta da própria genitália, o principal objeto de
desejo, e a repressão é feita pelos pais ao toque no objeto de desejo
(forma da castração). Assim, apesar da ambiguidade e da bissexualidade
originária, a fundamentação do Complexo de Édipo se dá partindo das
diferenças biológicas de sexo e vê a bissexualidade apenas como uma
etapa para a heterossexualidade, que permanece sendo o ponto de
realização da identidade sexual. É nesse sentido que Judith Butler (1997)

6
“[...] nos meninos o complexo de Édipo tem uma dupla orientação, passiva e ativa, de acordo com sua
constituição bissexual; [o menino deseja sua mãe e quer tomar o lugar do pai como objeto de desejo
da mãe, mas] o menino também quer tomar o lugar da mãe como objeto de desejo do seu pai – fato
que descrevemos como atitude feminina” (FREUD, 1996, p. 104).
7
GULLICKSON, Anna. Sex and Gender Through an Analytic Eye: Butler on Freud and Gender Identity, op. cit.,
p. 10.
Camila Palhares Barbosa • 35

destaca o problema teórico do desenvolvimento freudiano, pois apesar


de Freud indicar predisposições bissexuais primárias de masculinidade
e feminilidade, o processo de internalização da identificação torna-se,
sempre, heterossexual.

O conflito de Édipo pressupõe que o desejo heterossexual já foi realizado,


que a distinção entre heterossexuais e homossexuais já foi estabelecida
(uma distinção que, no final das contas, não tem necessidade); nesse
sentido, a proibição do incesto pressupõe a proibição da homossexualidade,
uma vez que assume a heterossexualização do desejo. (BUTLER, 1997, p. 135)

Também podemos citar o tensionamento da teoria lacaniana em


sua vinculação com leituras feministas. A construção do feminino e
masculino como simbólicos em Lacan, partindo da crítica à biologia
naturalizada freudiana, recorre à linguagem como os simbólicos de
subjetivação e de sexualização, o que serviu à leituras feministas como
de Irigaray (1984) e Kristeva (1977). Ainda, as feministas não colocaram
de lado a problemática e o desconforto político da classificação do
simbólico pelo fálico, do feminino pelo não-Falo, enquanto do
masculino pelo ter-Falo, que fundamentam a ordem simbólica de Lacan
por um processo de regulação do sexos, em suas diferentes posições,
ainda, pautado pela diferença sexual. Butler (2003) também faz o
certeiro diagnóstico de que a binaridade de gênero, característico da
heteronormatividade, permanece como postulado nas premissas da
psicologia lacaniana. Servindo como uma máscara lógico-formal, ainda
há formas desconcertantes de descrição do corpo feminino e a
permanencia na matriz heterossexual, que são simbolicamente
significantes, como afirma a autora, “[...] é preciso entender o drama do
Simbólico, do desejo, da instituição da diferença sexual, como uma
36 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

economia significante autônoma que detém o poder de demarcar e


excluir o que pode e o que não pode ser pensado nos termos da
inteligibilidade cultural” (2003, p.117-18). Ainda, Butler argumenta que
a compreensão da homossexualidade feminina no pensamento de Lacan
como “[advindo] de uma heterossexualidade desapontada”, demonstra
seu pensamento masculino e heteronormativo, que entende a matriz
heterossexual enquanto a sexualidade per se (BUTLER, 2003, p. 81).
Como bem articulado nas já mencionadas críticas foucaultianas as
formas clínicas, a matriz heteronormativa adentra no dicurso médico-
jurídico da psicanálise, psicologia e psiquatria, especialmente a partir
do século XIX (FOUCAULT, 2020, p. 40), com o propósito tanto de
reforçar a ‘natureza’ homogênea da sexualidade em si, ao normatizar as
diversas práticas em relação às “leis naturais da matrimonialidade e
regras imanentes da sexualidadae”. Com isso, a investigação das
‘sexualidades periféricas’, contra-naturais, refletiram o desejo
homessexual “menos como um tipo de relações sexuais do que como
uma certa qualidade da sensibilidade sexual, uma certa maneira de
inverter, em si mesmo, o masculino e o feminino [...] o sodomita era um
reincidente, agora o homossexual é uma espécie” (FOUCAULT, 2020, p.
44). Aqui, Foucault descreve como pertencente à episteme da
modernidade e da scientia sexualis precisamente os discursos que
reforçam a matriz heteronormativa, ao reservar aos sujeitos não-
héteros não apenas como uma morfologia específica, como uma sub-
espécie de investigação, como uma anomalia às leis naturais, mas
também colocando como “um hermafroditismo da alma” (FOUCAULT,
2020, p. 43).
Em seu texto comovente Can a monster Speak? A report to an
academy of psychoanalysis (2020), o filósofo Paul Preciado descreve sua
Camila Palhares Barbosa • 37

experiência enquanto homem transexual frente às formas da psicologia


“da gaiola do masculino e feminino”, em suas compreensões acerca do
sexo e do gênero, e das formas de orientação sexual. Preciado questiona
o local de ‘corpo-objeto’ que a medicina, psicologia e psicanálise
colocam os sujeitos, simplificando sua taxonomia em limites claros
binários. Assim, “uma vez que a psicanálise e a psicologia normativas
fornecem sentido ao processo de subjetivação de acordo com o regime
heterossexual de sexo binário diferença”, é a partir dessa que “toda
sexualidade não heterossexual, todo processo de transição de gênero ou
qualquer identificação como gênero não binário desencadeia uma série
de diagnósticos” (PRECIADO, 2020, p. 24). Mais importante que um
diagnóstico da “mente patriarcal-colonial européia”, que perpassa as
origens da psicologia e que torna legítima as formas de poder e
hierarquia pautada fundamentalmente nos “contos mito-psicológicos”
da diferença sexual, é denunciar as consequências de tais discursos em
formas reais de vida.

Todas as coisas que são terríveis e assustadoras sobre transexualidade e


transição de gênero não são encontradas no processo de transição em si, mas
na forma como as fronteiras entre os sexos punem e ameaçam matar qualquer
um que se atreva a cruzá-los. Não é a transição de gênero que é horrível e
perigosa, mas o regime da diferença sexual (PRECIADO, 2020, p. 31)

Levando a sério o problema das fronteiras do regime epistêmico da


diferença sexual, que não é nem de ordem natural, nem psico-social,
mas sempre politicamente articulado, quero propor estarmos abertos e
engajados para as críticas a certas formas de discursos em suas
fundamentações mais problemáticas. Pois, se como exposto acima,
vemos indícios na tradição da psicologia e da psicanálise da
38 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

manifestação das formas patriarcal-colonial sendo consolidadas e


repercutindo ao limitar e patologizar as possibilidades de compreensão
de si, é importante levar igualmente a sério o pedido de Preciado em
aproveitar o momento para uma espécie de ‘sessão de terapia’ da
terapia, partindo de uma posição de escuta. Se entendemos o regime da
diferença sexual como uma das forças centrais de manutenção do status
quo de nossas estruturas sociais, certamente sua crítica implica em
revisões profundas da nossa compreensão de mundo, da visão que
temos daqueles com quem compartilhamos nossa vida em sociedade e
de nós mesmos. Isso exige uma postura e abertura crítica que pode ser,
num primeiro momento, pouco convidativa e recebida de forma
defensiva. Nisso retomo a solicitação de Preciado, podemos nós, os
desviantes da matriz heterossexual, os monstros, falar e sermos
ouvidos?

Peço-lhe, por favor, que não tente negar a cumplicidade da psicanálise no


epistemologia heteronormativa do sexo, gênero e diferença sexual. Eu estou
oferecendo-lhe a possibilidade de uma crítica epistemológica das suas
teorias psicanalíticas, uma terapia política para suas práticas
institucionais. Mas tais processos não podem ocorrer sem uma crítica
exaustiva de seus pressupostos. Não os reprima, não os negue, não os
sufoque, não os desloque. (PRECIADO, 2020, p. 40)

Para falar e ser ouvido, desafiar as estruturas mais engessadas do


regime da diferença sexual, parece um bom começo apontar para suas
pressuposições mais basais, os momentos da má-ciência e a economia
de popularização de discursos assentados por uma máscara
perfeitamente confortável aos olhares da heteronormatividade. Assim,
volto-me ao campo da psicologia evolucionista que tem se destacado por
articular, partindo de uma divisão binária das diferenças sexuais, como
Camila Palhares Barbosa • 39

os comportamentos entre homens e mulheres seguem uma lógica


determinada pela biologia para fins de autopreservação e reprodução da
espécie.
Em grande medida, os estudos da psicologia evolucionista se
baseiam numa descrição generalizada de que a diferença entre machos
e fêmeas, por sua determinação biológica, é mais central e essencial do
que, por exemplo, as diferenças entre espécies. Nesse sentido, boa parte
das pesquisas se dão por uma correlação dos comportamentos de
diferentes espécies pautados pela distinção de sexo, que explicariam as
suas estratégias de acasalamento e, consequentemente, os seus
comportamentos sociais.
Duas dimensões de pressuposições implícitas podem ser
destacadas, aqui, de forma crítica: a) gendering profiling, a distinção
binária de sexo servindo de base inteiramente para a criação de perfis
identitários, e, b) heterossexualidade compulsória. O termo
heterossexualidade compulsória é aqui entendido conforme a descrição
de Adrienne Rich enquanto uma ideologia ou instituição política,
voltada para manutenção do domínio masculino através do poder da
ideia da heterossexualidade.

Algumas das formas de o poder masculino se manifestar são mais


facilmente reconhecidas do que outras, ao reforçar a heterossexualidade
sobre as mulheres. No entanto, cada uma das que eu listei vem adicionar-se
ao feixe de forças pelo qual as mulheres têm sido convencidas de que o
casamento e a orientação sexual voltada aos homens são vistos como
inevitáveis componentes de suas vidas – mesmo se opressivos e não
satisfatórios. (RICH, 2010, p. 26)

Segundo Rich, a naturalização dos comportamentos de gênero


serve também para manter o status da relação heterossexual enquanto
40 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

uma instituição política no sentido de reforçar as instâncias de domínio


masculinos através de um amplo conjunto de comportamentos
entendidos como determinados e, principalmente, como aceitáveis. Isso
gera pressões não apenas em relação à necessidade da orientação
heterossexual, mas também reforça quais tipos de comportamentos em
sujeitos masculinos e femininos são justificados em função de
estratégias de reprodução. Assim, a heterossexualidade compulsória
forma uma sofisticada narrativa que conecta uma pulsão sexual de
caráter incontrolável dos homens com uma falta de apetite sexual nas
mulheres, que são conduzidas pelas emoções em busca do romance
heterossexual “irradiada na jovem desde sua mais tenra infância por
meio dos contos de fada, da televisão, do cinema, da propaganda, das
canções populares e da pompa dos casamentos” (RICH, 2010, p. 25). Essa
narrativa da heterossexualidade compulsória que é, então, pautada pelo
“conto do ‘predador’ e da ‘recatada’” (RUTI, 2005) que a psicologia
evolucionista se sustenta.
Mari Ruti em “The Age of Scientific Sexism: How Evolutionary
Psychology Promotes Gender Profiling and Fans the Battle of the Sexes”
(2005), salienta os pressupostos essencialistas que os pais fundadores da
psicologia evolucionista, Robert Wright e David Buss, articulam em suas
respectivas teorias a fim de sustentar precisamente o gendering profiling
pautado de uma narrativa evolucionista que leva em conta, quase
exclusivamente fatores reprodutivos, transmissão genética,
determinação biológica e seleção natural. Para Ruti, a ‘ciência’ da
psicologia evolucionista é pautada por uma descrição romantizada do
acasalamento (mating behavior) que, para eles, representa questões
exclusivas referentes ao sexo e ao sexo enquanto estratégia de
acasalamento (RUTI, 2005, p. 15) - assim, temos implicitamente
Camila Palhares Barbosa • 41

fundamentando o pensamento da psicologia evolucionista, tanto uma


narrativa binária e normativa dos perfis de gênero, quanto a
pressuposição natural da heteronormatividade. Ruti parece articular
uma válida preocupação com o campo de investigação da psicologia
evolucionista, na medida em que: a) ela se fundamenta por uma visão
restritiva e imutável dos comportamentos de gênero; b) ela é dogmática
na medida em que todas suas afirmações partem de uma descrição já
assumida dos comportamentos sociais generificados; c) não há um
diálogo com outros campos (por exemplo, investigações feministas e de
ontologia social não são citadas e contrapostas às pressuposições); e,
mais importante, d) ela é escrita de forma literária, sem rigor científico,
facilitando a linguagem para consumidores fora da academia - ou seja,
vendem bestsellers que reforçam os pressupostos e preconceitos sociais
utilizando estudos e abordagens pouco científicas, mas que escapam ao
olhar não-familiarizado com o método científico. Como toda abordagem
dogmática, as refutações às críticas e contra-exemplos são usualmente
tidos como exposições anti-evolutivistas, porém, evidentemente, não é
necessário uma visão criacionista para questionar métodos e seus
resultados. Não precisamos “jogar o bebê fora com a água do banho”, é
perfeitamente plausível demonstrar os erros da psicologia
evolucionista ao voltar-se à uma descrição mais abrangente e cuidadosa
das relações de mútua formação entre história, sociedade e natureza.
Um exemplo preocupante para qualquer comprometimento com
perspectivas feministas, está nas afirmações de um dos principais
nomes do campo, Wright no texto “The Moral Animal” (1994), parte do
que chama de a “estratégia do bom estuprador dos orangotangos", para
compreender as ‘estratégias’ de seleção de parceiros de homens e
mulheres. Para Wright, a resistência feminina, isto é, o recato (coyness),
42 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

é valioso à adaptação do ponto de vista evolutivo na medida em que


garante que os genes mais vigorosos daqueles machos que “conseguem
penetrar” possam perpassar para a próxima geração. Ainda, ele
argumenta que “aquilo que a seleção natural quer e que o indivíduo quer
não é necessariamente o mesmo”, assim, muitas vezes quando a fêmea
diz que não, não é bem o que ela quer. Evidentemente, embora os
estudos sejam com primatas, Wright tenta demonstrar que,
evolutivamente, o comportamento de gênero das espécies tem uma
correlação natural. O autor, em linhas gerais, afirma que as bases da
diferença sexual são, naturalmente, que o homem busca a reprodução
(com a maior frequência e maior número de parceiras possíveis para
garantir a reprodução e continuação genética) e as mulheres são
naturalmente recatadas (é resistente à prática sexual, sua natureza é
quase assexual).
Um argumento similar é feito por Steven Pinker (2002), ao afirmar
que o estupro pode ser explicado em termos de sexo e as diferenças
naturais de machos e fêmeas em sua sexualidade. Segundo Pinker, a
“cópula forçada” é encontrada nas mais diversas espécies, e tem sua
fundamentação na necessidade biológica de reprodução e acesso ao sexo
(PINKER, 2002, p. 367). Sendo assim, o estupro é o resultado do desejo
masculino – em grande medida determinado em termos hormonais –
ao sexo. Pinker assume como fatores óbvios que “homens normalmente
querem fazer sexo com mulheres que não querem ter sexo com eles” e
“alguns homens usam violência para conseguirem aquilo que querem,
independentemente do sofrimento que causam”, portanto, Pinker
conclui que “seria um fato extraordinário [...] se homens não
utilizassem da violência para terem sexo” (PINKER, 2002, p. 362). A
forma de lidar com o estupro na sociedade atual, seria através de
Camila Palhares Barbosa • 43

normas punitivas que incentivassem os homens a não cometer o ato,


por exemplo, através da aplicabilidade de punições graves, que
tornariam o estupro não viável frente ao custo-benefício. Considerando
o cenário atual normativo que puni o ato do estupro, apenas homens
com patologias cometeriam o ato de estupro, na medida em que estes
não conseguiriam perceber o custo à irracionalidade de seus atos dado
o contexto social.
Aqui, ambos autores não oferecem qualquer tipo de distinção entre
as noções de cópula, sexo, relação sexual e comportamento de gênero.
Não apenas sexo biológico e gênero são identificados enquanto
sinônimos, mas a cópula - a união dos órgãos sexuais de dois animais
que se reproduzem sexualmente para inseminação e reprodução - com
a relação sexual entre seres humanos. Não se está afirmando que a
relação sexual não possa envolver a cópula, mas de forma alguma, a
compreensão do sexo entre seres humanos e o que constitui seu
comportamento sexual, certamente não envolve apenas uma descrição
como a de cópula. Esta narrativa engana facilmente ao reduzir os
fatores biológicos relevantes para o sexo como apenas aqueles de taxas
hormonais, quando na verdade, as relações humanas passam por
fatores, também biológicos, mas mais complexos, como por exemplo,
emoções e moralidade. Além disso, qualquer leitura cética levaria a
suspeita de como a descrição dos comportamentos naturais se
assemelha com a perspectiva patriarcal de dominação masculina e
submissão feminina, como, sem dúvidas, a naturalização do estupro
como um comportamento naturalmente masculino.
Essa visão naturalizante dos comportamentos associados à
dominação e subordinação são, há muito tempo, pauta central dos
esforços feministas. Catherine Mackinnon, por exemplo, argumenta
44 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

que a principal arma do sexismo é fetichizar e sexualizar a submissão


da mulher como forma de tornar justificada e aceitável sua condição de
sub-humanidade, ou seja, de objetificação.

A sexualidade, à luz feminista, não é uma esfera discreta de interação ou


sentimento ou sensação ou comportamento em que as divisões sociais
preexistentes podem ou não ser jogadas fora. é uma dimensão penetrante
da vida social, aquele que permeia o todo, uma dimensão ao longo da qual o
gênero ocorre e por meio do qual o gênero é constituído socialmente [...] a
dominação erotizada define os imperativos da masculinidade, a submissão
erotizada define a feminilidade. [...] ser uma coisa para uso sexual é
fundamental para isso. Esta abordagem identifica não apenas uma
sexualidade que é moldada sob condições de desigualdade de gênero, mas
revela que essa própria sexualidade é a dinâmica da desigualdade dos sexos.
(MACKINNON, 1991, p. 130)

A crítica feminista tem se debruçado em desmantelar aspectos


essencializantes e naturalizantes de gênero, compreendendo-os como
um fenômeno muito mais amplo e mais relacionado a práticas
histórico-culturais do que restritivamente ao sexo biológico. Mais que
isso, ao presumir a divisão dicotômica pautada pelo sexo, a
heterossexualidade é entendida como ‘normalidade’ nas descrições de
mating, que é estruturada pelas diferenças generificadas descritas. Essa
compreensão heteronormativa do desejo sexual é clara na descrição de
David Buss “The Evolution of desire” (1994), pautado numa pesquisa
internacional, contando com 10.047 pessoas de 37 países diferentes,
Buss tenta ‘provar’ que as diferenças entre homens e mulheres são
significantes, trazendo aspectos do sexo biológico como constitutivos
dos papéis de gênero. Segundo Ruti, “o impulso geral de seu livro é que,
quando se trata de seleção de parceiros, homens e mulheres têm quase
Camila Palhares Barbosa • 45

nada em comum e que as diferenças entre eles são genéticas” (RUTI,


2015, p. 52).
Buss afirma que homens e mulheres buscam uns nos outros
características diferentes, enquanto mulheres buscam “saúde, status
social, maturidade, ambição e engenhosidade, confiabilidade e
estabilidade, inteligência”, como os principais critérios na ‘seleção’ de
parceiros, os homens, tendem a valorizar mais, “juventude, beleza,
proporção corporal, virgindade e fidelidade”. De maneira conclusiva,
Buss destaca que “dinheiro” ou “estabilidade financeira” estão entre os
fatores mais procurados em parceiros por mulheres; enquanto para os
homens, a “atração física” fica com a prioridade.
Entretanto, quando nos debruçamos de forma crítica ao estudo,
vemos que as considerações conclusivas de Buss são pautadas por
diferenças não tão substanciais e significativas quanto a narrativa
parece indicar. Por exemplo, a “boa situação financeira” foi ranqueada
em 12º lugar por mulheres e 13º lugar por homens; a atração física foi
ranqueada em 5º por homens e em 7º por mulheres; no caso da
estabilidade emocional ou maturidade, as mulheres dão a esta qualidade
uma preferência equivalente à 2,68%, enquanto os homens a avaliam em
2,47%. Ainda assim, a frase conclusiva do parágrafo afirma que “em
todas as culturas, com efeito, as mulheres atribuem um valor tremendo a
essas características” (BUSS, 1994, p. 32). No quesito saúde, na qual
homens avaliam em 4º (2,31%) e mulheres na 6º (2,28%), ou seja, homens
classificam a saúde como sendo mais importante do que as mulheres,
Buss faz a inferência, “a primazia das mulheres sobre a saúde de um
homem garante que os maridos serão capazes de fornecer esses
benefícios [financeiros] a longo prazo (...) essas múltiplas facetas das
preferências de acasalamento das mulheres atuais correspondem,
46 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

portanto, perfeitamente com as múltiplas facetas dos problemas


adaptativos que foram enfrentados por nossas mulheres ancestrais há
milhares de anos” (BUSS, 1994, p. 48). Ou seja, o gender profiling que
sustenta as diferenças cruciais das estratégias de mating entre homens
e mulheres, é pautado por diferenças estatisticamente pequenas.
No texto Evolutionary Psychology and Feminism (2011), Buss e David
Smith argumentam em favor de uma aproximação dos estudos
empíricos da psicologia evolucionista com os debates e agenda
feministas, que “tinham tendência a ver com antipatia” o projeto da
psicologia evolucionista. Tentando argumentar por uma proximidade
profícua entre as áreas, Buss e Smith afirmam que nenhum dos campos
é unívoco quanto ao seu conteúdo argumentativo e que, em alguma
medida, ambos buscam compreender as relações de diferenças sexuais.
Entretanto, apesar de conceder o ponto de que em ambos os campos há
uma variedade argumentativa que torna problemática uma redução dos
termos feminismo e psicologia evolucionista, ainda há certamente um
cuidado conceitual que une perspectivas diversas sob uma mesma
investigação. Buss e Smith argumentam que:

Embora todos compartilhem a visão de que a seleção natural e sexual são os


principais processos causais que moldaram a psicologia humana, eles diferem
em sua ênfase nas adaptações de domínio específico versus domínio geral,
no papel e na importância das diferenças individuais dentro dos gêneros e
no papel causal da cultura dentro da estrutura explicativa (BUSS; SMITH,
2011, p. 770, ênfase adicionada).

Esse é, precisamente, o ponto de tensão fundamental. Poderia


dizer, apesar de que feminismos diferem em muito em suas ênfases à
solução de problemas de gênero, as formas sociais e institucionais da
cultura generificada, ainda, há uma premissa básica compartilhada de
Camila Palhares Barbosa • 47

que o feminismo é uma tentativa de acabar com a opressão de gênero,


e, para tanto, a diferença sexual precisa ser problematizada,
especificamente, em sua naturalização. Ou seja, o que está em jogo é a
própria relação causal atribuída entre sexo e gênero, o que permanece
sendo admitido como parte dos princípios fundamentais da psicologia
evolucionista (BUSS; SMITH, 2011, p. 769).
Buss e Smith pretendem demonstrar que o ‘feminismo da
diferença’, enquanto uma corrente particular dos feminismos que
reforça a necessidade de prestar atenção nas diferenças sexuais para
construção da agenda política e demanda por igualdade, se serviria das
premissas desenvolvidas pelas teorias da psicologia evolucionista que
admitem as implicações culturais nos comportamentos generificados,
forma com que Buss descreve sua própria abordagem. Novamente é
preciso um cuidado com a aproximação realizada pelos autores. Apesar
de o feminismo da diferença, que marca os debates da segunda onda,
bastante influenciado pela obra O Segundo Sexo de Beauvoir,
precisamente reforçar a compreensão do corpo e da materialidade do
ser mulher como ponto de partida do feminismo, ainda, é preciso
destacar que usualmente a diferença é considerada uma forma
corporificada (ou seja, encarnada) das relações sociais e culturais que
formam as subjetividades como tal. Nesse sentido, a diferença é usada
justamente para contrapor a naturalização e relação causal
sexo/gênero. As formulações sobre o feminismo da diferença sexual,
influenciados pelos trabalhos de Beauvoir (1949) e Irigaray (1984)
principalmente, por exemplo, são usualmente formulados por bases
fenomenológicas 8 ou pós-estruturalistas pautadas pela simbólica

8
Ver Hainamäa, Sara. A Phenomenology of Sexual Difference: Types, Styles and Persons. Feminist
Metaphysics, Feminist Philosophy Collection, 131, 2011
48 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

linguística. Que contrapõem-se drasticamente com a ideia essencialista


que naturaliza em qualquer sentido a concepção de gênero 9.
As formas de compreensão corporificada de diferenças identitárias
estão já aparecendo em formas qualificadas na ciência. Nancy Krieger
(2021) faz um argumento convincente de como essas métricas
identitárias, especialmente de gênero, podem ser inseridas nas
pesquisas quantitativas sem recair no que chamamos de “heterossexismo
científico”. Krieger salienta que uma abordagem ampliada e menos
determinista da biologia (que ela chama de ecosocial) nos auxilia com o
problema da “espada de dois gumes”: a) podemos excluir um número
expressivo de indivíduos ao não incluir características específicas dos
participantes em estudos; b) se operacionalizarmos tais variáveis de
modo equivocado ou incompleto, ficamos com dados não confiáveis, o
que pode acarretar no uso prejudicial ou enviesado, que afetará tanto
na análise de evidências científicas resultantes de tais estudos, quanto
na formulação de leis e políticas públicas. A abordagem ecosocial de
Krieger é um bom exemplo de como trabalhar fatos empíricos sem

9
Há, de fato, um debate mais amplo sobre as diferenças sexuais no período. Uma das marcas dos
debates feministas da década de 1970 é o embate no campo do chamado feminismo radical, que centra
as suas premissas numa abordagem historicizada da ontologia social que se desenvolve os conceitos
de gênero como a opressão primeira. Assim, a forma de subordinação da mulher e dominação do
homem, é a estrutura fundamental da diferença sexual (ver Mackinnon, 1997). Desse debate, houveram
algumas rupturas na militância e na teoria, dando origem a algumas modificações que serão mais
atreladas à forma essencializada do gênero, afirmando que a ontologia social de gênero é relacionada
especificamente com os correlatos machos e fêmeas, colocando assim, uma experiência de gênero
como relacionada às especificidades biológicas. Essa abordagem foi chamada, dentro do próprio
movimento feminista, de TERF ou feminista radical trans-excludente (do inglês: trans-exclusionary radical
feminist). Os argumentos de feministas TERF, apesar de existentes, podem sem dúvidas ser considerados
periféricos e bastante problematizados pelos feminismos mais amplos, que como dito, usualmente tem
como método compartilhado o final da opressão específica de gênero através do questionamento da
suas premissas naturalizadas na sociedade. Assumi aqui uma contraposição com as versões mais
amplamente aceitas e dominantes do feminismo, da mesma forma, que discuto as questões de gênero
da psicologia evolucionista e psicanálise partindo de seus autores mais influentes e relevantes.
Camila Palhares Barbosa • 49

reduzir ao natural, olhando para as identidades sociais como sendo,


precisamente, socialmente constituídas.
Enquanto Buss e Smith argumentam que a psicologia evolucionista
pode perfeitamente ser compatível com a ‘hipótese das similaridades’
de Hyde, pois “fornece uma meta-teoria para prever quando e onde
esperar diferenças de gênero e quando e onde esperar semelhanças de
gênero” (BUSS; SMITH, 2011, p. 769). Os autores permanecem afirmando
que certos diagnósticos das diferenças e a forma como homens e
mulheres adaptam suas estratégias com base nelas, podem ter valor
para as investigações feministas. Utilizando questões como mating e
sexualidade como base empírica para tais argumentos, ao destacar
questões como gravidez e amamentação enquanto preocupação
adaptativa de mulheres, e incerteza de paternidade enquanto
preocupações de homens, por exemplo, ambos autores perdem de vista
os pontos críticos e de tensionamento dos debates de gênero. Ideais de
maternidade e paternidade são socialmente implicados, ideais de
mulheres e homens enquanto gênero são socialmente implicados, as
formas que estabelecem as preocupações econômicas e emocionais dos
relacionamentos são socialmente implicados, e não podem ser
vinculados como resultado causal da relação do sexo biológico. Isso
porque, por exemplo, se a forma com que gravidez é central para
“preocupação adaptativa” de mulheres, ela pode estar mais relacionada
com a enorme carga social do papel materno na criação dos filhos do
que com questões biológicas. Em termos de precisão conceitual, parece
também interessante questionar de forma crítica as trocas entre termos
aparentemente próximos como filhos e prole, fêmeas e mulheres,
machos e homens, sexualidade e heterossexualidade, que em vários
momentos são colocados de forma intercambiável e naturalizada. O
50 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

problema não está em colocar a gravidez como uma experiência da


mulher em si, mas ao fato de tornar essa experiência biologicamente
mais determinada do que socialmente carregada.
Para Buss e Smith sua abordagem “‘biossocial’ permite diferenças
físicas evoluídas, sobre as quais a sociedade age ao atribuir papéis
sociais, e assume que a arquitetura subjacente psicológica evoluída do
acasalamento é fundamentalmente sexualmente monomórfica” (BUSS;
SMITH, 2011, p. 782). Apesar de reconhecer méritos nos esforços dos
autores em buscar uma reconciliação com a agenda feminista, que
parece ser em alguma medida aceita como importante, ainda mostra-se
incapaz de enfrentar as questões difíceis que as teorias feministas e
queer tem apresentado para análises que partem da matriz binária, pois
ainda permanecem atrelados tanto a pressuposição causal entre sexo,
gênero e comportamento, quanto investidos em entender uma ordem
natural que subjaz a social, e, assim, coloca-a numa posição privilegiada
no objeto de pesquisa.
Ainda, é válido destacar a sutil valoração dos campos como exposta
por Buss e Smith quando enfatizam que “psicologia evolucionista é um
paradigma meta-teórico científico concebido para compreender a
natureza humana e não tem agenda política”, enquanto, “o feminismo,
ao contrário, é em parte um empreendimento científico acadêmico, mas
também frequentemente contém agendas explicitamente políticas”
(BUSS; SMITH, 2011, p. 770). Aqui, vale retomar o argumento de Harding
mencionado acima, que uma investigação deve estar constantemente
localizado também naquele que investiga e em suas possíveis
pressuposições histórico-sociais, pois “as melhores pesquisas
feministas [...] insistem que o pesquisador/a situe a si mesmo/a no
mesmo plano crítico que o objeto em questão, assim retomando todo o
Camila Palhares Barbosa • 51

processo da pesquisa para escrutínio nos resultados da pesquisa”


(HARDING, 1987, p. 9). Ao afirmar um caráter apolítico na pesquisa, Buss
e Smith ignoram precisamente uma longa tradição de mulheres
pesquisadoras que colocam a universalidade e objetivismo da ciência
como estratégia de consolidação do ponto de vista masculino. Mais que
isso, em The Future of Evolutionary Psychology (2009) numa tentativa de
responder às diversas críticas feministas, Buss oferece um conselho as
feministas que fazem análises críticas das bases da psicologia
evolucionista, afirmando que antes devemos “articular uma metateoria
alternativa convincente e demonstrar na arena de testes empíricos de
que a alternativa é superior pelos padrões normais da ciência” (BUSS,
2009, p. 85). Tal afirmação parece estar em contradição e assumindo
uma postura pouco profícua frente a proposta de diálogo entre os
estudos de feminismos e da psicologia evolucionistas (2011), afinal,
como abrir um caminho para um diálogo apenas assumindo como
“conhecimento” dados empíricos e seus pressupostos “apolíticos” sem
tensionar suas contradições e dificuldades? Muito longe de uma leitura
metodologicamente feminista, Buss parece preocupado em aplicar a
estratégia que Harding chama de “adicionar mulher” (HARDING, 1987, p.
4), ou seja, forçar a argumentação de sua própria abordagem ao
demonstrar como mulheres podem ser incluídas e beneficias, sem,
contudo, revisitar seus pontos de partidas problemáticos. Para Harding,
essas tentativas “deixam padrões androgênicos firmemente em seu
lugar, ao assegurar apenas análises parciais e distorcidas de gênero e
das atividades sociais de mulheres” (HARDING, 1987, p. 4-5).
Especialmente, mas não somente, em campos das ciências e do
conhecimento que por tanto alienaram, excluíram e menosprezaram a
participação e contribuição de mulheres, parece cruelmente injusto
52 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

esperar que tenhamos as respostas consolidadas para problemas que o


‘heterossexismo científico’ desenvolveu ao longo de tantos anos de
privilégio. Parece que, na verdade, o ônus da prova e a responsabilidade
em responder às questões emergentes, deve estar nas mãos daqueles
que permanecem numa relação hierárquica de poder com o
conhecimento. Como dito, questionar a forma padrão de ver o mundo
sob as lentes da matriz heteronormativa são frequentemente recebidos
de forma defensiva, o que por si só, não parecem favorecer um real
debate.
Assim, a crítica de Ruti é bastante precisa ao concluir que ambos
os autores estão pautados por uma visão "ideológica" sobre gênero 10, na
medida em que, “considerando os seus dados, ele poderia facilmente ter
escrito um livro que nos diz que homens e mulheres são essencialmente
muito semelhantes em suas abordagens ao amor, romance, casamento
e relacionamentos” (RUTI, 2015, p. 54). Não apenas os gêneros são mais
plurais do que o escopo narrativo desses estudos - transgêneros,
agêneros, não-binários, queer, demonstram a riqueza da diversidade
humana de autocompreensão e expressão -, mas também que o próprio
determinismo do sexo pode ser ampliado. Levando em consideração a
consciência crítica feminista, podemos disputar, contra o sexismo
científico, não apenas a necessidade de mais mulheres e outros sujeitos
plurais liderando as pesquisas nos mais diversos campos das ciências,

10
O termo ideologia como utilizado por Ruti busca representar um discurso universalizante pautado por
certas crenças de grupos dominantes, mas, certamente, implica em resultados demasiadamente
materiais. Wittig sinaliza esse aspecto do termo: “Ao usarmos o termo demasiado genérico ’ideologia’
para designar todos os discursos do grupo dominante, relegamos estes discursos para o domínio das
Ideias Irreais; esquecemos a violência material (física) que diretamente fazem contra as pessoas
oprimidas, violência essa produzida pelos discursos abstratos e “científicos”, assim como pelos discursos
dos mass media. Gostaria de insistir na opressão material dos indivíduos pelos discursos, e gostaria de
sublinhar os seus efeitos imediatos” (WITTIG, 1992, p.5).
Camila Palhares Barbosa • 53

mas também trazer perspectivas que veem “mulheres e ações de


mulheres como respostas complexas a condições que elas não fazem ou
controlam, mas em que são contextualizadas e situalizadas”
(MACKINNON, 1991, p. 47)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As características pautadas pelas diferenças sexuais, como


exemplificado nos estudos mencionados, parecem informar e sustentar
a narrativa clássica quanto aos papéis de gênero específicos, que
funcionam para sustentar o modelo patriarcal e heteronormativo -
homens como provedores, hipersexuais, que precisam espalhar seus
genes, melhores tomadores de decisões, mais racionais; enquanto
mulheres são recatadas, quase assexuais, voltadas para o cuidado e
preservação da família, mais emotivas, etc. Essas narrativas,
especialmente quando enraizadas no ponto de vista científico, ganham
força e permanecem estruturando as injustiças ontológicas sociais de
gênero e sexualidade. Entretanto, na medida em que ignoram
diferenças fundamentais entre sexo, gênero e sexualidade, esses
estudos continuam numa tradição de domínio masculino apoiado sob
véu da objetividade, ao apoiar-se em “resultados sexistas, racistas,
imperialistas e “orientalistas” de pesquisas científicas nas áreas de
biologia e ciências sociais [que] justificaram imposições legais,
econômicas e sociais que privam as mulheres de alguns direitos de
cidadania” (HARDING, 2007, p. 164).
Seguindo o argumento de Harding, uma leitura crítica feminista
não implica em descartar o método científico e critérios mais objetivos
e universalizáveis de pesquisa, contudo, é preciso romper com uma
tradição da ciência que por tanto tempo excluí as perspectivas plurais,
54 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

assumindo de forma crítica o ‘contexto de descoberta’ e o ‘contexto de


justificação’ na qual a pesquisa é desenvolvida (HARDING, 2007, p. 166).
Nesse sentido, podemos considerar formas em que as diferenças
identitárias e sociais são reais (materializadas) e integrá-las como
recortes necessários nas análises quantificativas das ciências, o ponto é
que a essencialização dessas categorias acabam perdendo de vista a
complexidade e correlação entre fatores sociais , biológicos e
morfológicos, com sua formulação conjunta com aspectos sociais.
Como bem destaca Wittig, “os discursos que acima de tudo nos
oprimem, lésbicas, mulheres, e homens homossexuais, são aqueles que
tomam como certo que a base da sociedade, de qualquer sociedade, é a
heterossexualidade”, assim, esses discursos científicos falam sobre
nossa realidade inferindo sua dominação através da neutralidade e
“alegam dizer a verdade num campo apolítico, como se qualquer coisa
que significa algo pudesse escapar ao político neste momento da
história, e como se, no tocante a nós, pudessem existir signos
politicamente insignificantes” (WITTIG, 1992, p. 6).
Ao estarmos cientes das práticas do sexismo científico e suas
consequências práticas nas vidas dos sujeitos que suas análises se
debruçam sobre, podemos atentarmos para campos expostos à ‘má-
ciência’ e denunciá-los. A psicologia evolucionista, como destacado, é
uma das áreas que uma crítica feminista mais aprofundada seria
importante, não apenas para disputar versões mais fundamentadas
sobre a relação de sexo, gênero, sexualidade e comportamento humano
com aspectos biológicos e sociais, mas também, e na verdade,
principalmente, para evitar que um discurso científico com autoridade
epistemológica sirva para a popularização da narrativa romantizada
característica do modelo patriarcal do gendering profiling.
Camila Palhares Barbosa • 55

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A ANTROPOLOGIA DE EDITH STEIN OU
2
O PAPEL DA MULHER E DO HOMEM PARA
ALÉM DA REALIZAÇÃO DO CASAMENTO
Danilo Souza Ferreira 1

INTRODUÇÃO

A vida de Edith Stein se desenvolve entre os anos 1891-1942.


Transcorre sua existência num período marcado pelos fomentos da
República de Weimar (1919-1933) e pelo advento do nazismo, de Adolf
Hitler (1933). Por meio de sua história, podemos conhecer os
fundamentos de uma vida familiar judia, que permite o
desenvolvimento de uma personalidade completa e harmônica, a
determinação interior diante das horas mais difíceis da existência; a
evolução e a estruturação de seu pensamento, sua atividade acadêmica
e social, sua passagem do judaísmo para o cristianismo e sua escolha
para a vida religiosa como carmelita. Como afirma Ângela Ales Bello:
não é possível compreender (sua história de vida) sem considerar este
pano de fundo, [...] os eventos do seu tempo não foram passivamente
vividos por ela, mas incitaram tomadas de posição de um ponto de vista
moral e social (BELLO, 2003, p.14).
Diferente de seu orientador, Edmund Husserl, que vinculou-se
durante os seus respectivos anos de formação universitária às áreas de
Matemática e às Ciências Físicas, Edith Stein, durante o seu período de

1
Doutorando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, Mestre em História, Mestre em
Estudos da Linguagem, ambas pela mesma Universidade.
58 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

formação na Universidade de Breslau, havia escolhido disciplinas de


natureza humanística, além de Filosofia e Psicologia e, em particular,
Literatura e História. Além disso, não é secundária, principalmente na
juventude, a sua atenção às questões políticas e sociais, o que a faz
entender como a vida, na multiplicidade de seus aspectos, está presente
nas suas preocupações teóricas e práticas, bem como nas manifestações
pelo voto feminino na Alemanha, nas eleições de 1919, e o seu apoio ao
Partido Social-Democrata Alemão. Trata-se de uma intelectual que
buscou registrar as transformações de seu presente, como afirma L.
Gelbe, organizador da edição das obras completas em italiano, e que
afirma: “Quis (Edith) revelar também para nós a forma como olhava
para suas relações familiares mais íntimas” (GELBE, 1992, p.7).
Em 1933, no livro A estrutura da Pessoa Humana, a filósofa Edith
Stein, ao refletir sobre as Ciências Humanas, que compreendia como
uma forma de ascensão espiritual do “ente”, em especial no momento
em que o cientista social exerce a sua função, isso é, ao escrever um
texto o historiador além de sua fidelidade na análise documental, busca
dar vida ao texto, ao arquivo, pela leitura que faz. E mesmo sendo sua
metodologia rigorosa, é sua sensibilidade que transparece em seu estilo
e faz existir a pessoa ou o momento histórico, descrito pelo historiador.

Se o conhecimento é uma captação espiritual de um ente, é lícito dizer que


conhecemos o modo de ser próprio de um homem: este modo de ser se
mostra através das múltiplas formas de expressão nas quais o “interior” se
“exterioriza” e nós compreendemos esta linguagem (...). O modo de ser
próprio de uma pessoa se expressa em formas que podem seguir existindo
separadas dela em sua letra, no estilo que se reflete em suas cartas ou em
outras manifestações literárias, em todas as suas obras, e também nos
efeitos que produziram em outros homens. (STEIN, 2000, p. 583)
Danilo Souza Ferreira • 59

Edith Stein descreve que durante a escrita ocorre um duplo


movimento: o primeiro, uma expressão “interior” que é o conjunto de
vivências, e o segundo, as subjetividades presentes que compõe o autor
e também a expressão “exterior” que são as formas de escrita, isso é, a
forma em que compõe o texto. Assim, o interesse dos historiadores pela
pessoa e pela variabilidade de suas formas em função da estrutura das
sociedades faz parte de uma sensibilidade pelo espaço subjetivo de
reflexão e de interrogação.

Recolher estas fontes e restos, do modo mais completo possível é o trabalho


preliminar do historiador. Sua tarefa principal é compreendê-los: penetrar
na individualidade por meio da linguagem desses signos [...]. Em seguida
vem a missão ulterior de pôr ao alcance de outros a individualidade que se
captou. Não se pode lograr este fim dando à individualidade uma
denominação universal ou enumerando muitas características suas (por sua
vez captadas de modo universal). Ou tampouco vendo-a como a intersecção
de diferentes tipos. Tudo isso são apenas instrumentos que talvez tenham
que ser usados. Mas o importante na hora de permitir a alguém que capte
uma individualidade quando não se pode proporcionar um encontro vivo é
assinalar o caminho pelo qual alcançou a meta. Para que se possa executar
o ato de compreender se deve relatar traços especialmente eloquentes e
sobretudo, sempre que possível, oferecer expressões originais da pessoa em
questão. Conseguir executar isto reside a arte da exposição, na qual as
tarefas do historiador e do artista coincidem em boa parte assim como a
arte da interpretação, isto é, a reflexão acerca de expressões pessoais, que é
comum a ambos. (STEIN, 1996, p. 584-585)

Podemos perceber que, para Edith Stein, a História, entendida


como ofício, tem como tarefa fundamental compreender o conjunto de
fenômenos que compõem a individualidade de cada personagem
inserido, possibilitando desvelar a dignidade da pessoa que compõe os
personagens históricos retratados no texto historiográfico,
60 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

aproximando, assim, o historiador da figura do artista, pois ambas


funções podem revelar as expressões pessoais dos retratados.
Edith Stein escreve a sua autobiografia intitulada História de uma
família judia. Traços autobiográficos: infância e os anos juvenis, redigida,
em sua maior parte, no ano de 1933. A escrita dessa autobiografia pode
ser compreendida como uma reação à tomada do poder político da
Alemanha pelo Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemão e,
consequentemente, a ascensão de Adolf Hitler e das políticas
antissemitistas propostas por ele.

Eu quero fazer um relatório daquilo que tenho conhecido como humanidade


judaica. [...] Aquilo que irei escrever nestas páginas, não quer ser uma
apologia do judaísmo, e (nem menos da história de minha família). Para
desenvolver a ideia da religião judaica, ou escrever a história do povo judeu,
para tudo isso existe pessoas competentes. E quem gostaria de se informar
a propósito, encontrará uma ampla bibliografia. (STEIN, 1992, p.24)

Edith Stein havia sido demitida do cargo de assistente


universitária de Munster e como não conseguiria se manter na cidade
sem o emprego, retornou para sua cidade natal, Breslau, onde se
dedicou durante seis meses (abril até setembro) à redação do primeiro
capítulo de: Memórias de minha mãe. Continuando a escrever o segundo
capítulo O mundo de duas irmãs mais jovens, durante os seis meses
sucessivos, apenas interrompendo a elaboração dessa obra em maio de
1935, a pedido de seus superiores, que a orientaram a dar continuidade
ao seu estudo filosófico e teológico, intitulado por Ser finito e ser eterno,
continuando a elaboração deste trabalho até o dia 27 de abril de 1939, no
primeiro aniversário da morte de Edmund Husserl. A obra é como um
tributo descrevendo a experiência vivenciada pelos dois no dia da defesa
de sua tese em Friburgo: “Husserl estava radiante de alegria. O próprio
Danilo Souza Ferreira • 61

decano havia proposto a nota Summa cum laude ” (STEIN, 1992, p. 374).
Sendo este o último marco de sua trajetória descrita nessa
autobiografia, interrompida pela tarefa confiada a ela de escrever um
ensaio biográfico sobre São João da Cruz em ocasião dos seus 400 anos
de nascimento.
Além de biógrafa que buscava registrar o seu lastro histórico e dos
demais personagens ligados à tradição judaica, como os membros da sua
família e da tradição cristã, a exemplificar o cardeal John Henry
Newman, São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila, a intelectual Edith
Stein também atuou como sujeito de seu próprio tempo, quando se
inscreve aos 20 anos de idade no dia 28 de abril de 1911, na Universidade
de Breslau, e descreve que essa conquista pessoal era fruto da conquista
do movimento das mulheres do século XX. Ela descreve:

Todos os pequenos auxílios, que a carteirinha de estudante nos garantia –


os descontos nos bilhetes para o teatro e para os concertos e assim por
diante – eu considerava com carinho o zelo que o Estado tinha para com
seus filhos, e isso suscitava em mim o desejo de retribuir e agradecer ao
povo e ao Estado com minha futura profissão. Ficava indignada com a
indiferença com que a maioria dos meus colegas estudantes se posicionava
diante das questões de caráter geral: a maior parte deles, durante o
primeiro semestre, pensava apenas na diversão, outros se preocupavam
apenas com superar os exames e, em seguida, certificar-se do pão cotidiano
(alimento). Foram estes sentimentos fortes de responsabilidade social que
me levaram, também, a lutar pela causa do direito de voto para as mulheres.
(STEIN, 1992, p.173)

Michael Lowy apresenta que os intelectuais de origem judaica,


provenientes das regiões da Europa central, como Breslau na Silésia,
Alemanha (desde 1945, Wroclaw, Polônia), região onde Edith Stein
nasceu, procuraram durante o final do século XIX e início do século XX
62 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

ascender socialmente através da atuação nas universidades e


academias, pois a geração anterior dos seus pais e avós havia conseguido
estabilidade econômica. (LOWY,2009, p.12)
Acreditamos que Edith Stein faz parte desse movimento de
legitimação social e intelectual através da sua participação em grupos
durante o período em que atuou na universidade de Breslau, como a
associação acadêmica de estudantes pedagógicos e os do círculo
fenomenológico de Gotinga. Sendo assim, foi através de sua produção
intelectual que ela procurou compreender a pessoa humana em sua
pluralidade e a partir disso criar laços de empatia e afeição.

1. A FORMAÇÃO ACADÊMICA DE EDITH STEIN

Os escritos de Edith Stein percorrem temáticas femininas por meio


de dados históricos, interpretações e fontes variadas, bem como
possibilitam conhecer seu percurso, sua identidade, sua relação com a
história familiar e a história do povo judeu, a história das ciências
humanas e dos intelectuais na Alemanha no século XX.
Rosvitha Blume Friesen descreve que somente a partir das
primeiras décadas do século XIX, com o advento do romanticismo,
possibilitou-se um gradual processo de emancipação intelectual da
mulher, apesar de que neste período era privilégio de algumas poucas
mulheres da classe social mais elevada, que buscavam reconhecimento
ante um vasto público leitor e perante a crítica literária (BLUME
FRIESEN, 2000, p.718). Esse é o cenário herdado por Edith Stein.
Ela se apresenta como mulher que deixou uma herança intelectual,
não apenas na História da Filosofia Contemporânea, mas também na
História do Pensamento Feminino. Em sua filosofia, são delineados “os
Danilo Souza Ferreira • 63

traços de uma filosofia no feminino” (BELO, 2005, p.199), que começava


a se fazer presente nos meios intelectuais alemães.
Podemos perceber a presença desses ‘traços de uma filosofia
feminina’, no período de 1913, em que se inscreve na Faculdade de
Filosofia de Gottingen, para ter aulas com Edmund Husserl, fazendo
parte de um grupo denominado Sociedade Filosófica, onde , sob a
orientação de Edmund Husserl, estavam homens como Adolf Reinhard,
Hans Theodor Conrad, Mortiz Geiger, Alexandre Koyré, Roman
Ingarden e Johannes Hering, e também intelectuais mulheres como
Grete Ortmann, Érika Gothe, Rose Guttmann, Betty Heymann, Dietrich
von Hildebrand (MORAN, 2011, p.59) e Hedwig Conrad-Martius, com
quem vai desenvolver uma forte amizade e inspiração intelectual, vindo
a ser sua madrinha de batismo, quando se converte ao cristianismo.
Alles Belo descreve Hedwig Conrad-Martius:

Hedwig Conrad-Martius nasceu em Berlim, morreu em Mônaco em 1966.


Foi uma das primeiras mulheres que completou os estudos universitários.
Formou-se em história e literatura na universidade de Rostock. De 1909 a
1912, frequentou os cursos de filosofia, psicologia e história da arte em
Mônaco e em Gottingen; segue as aulas de fenomenologia com Edmund
Husserl. Em 1912, preside a Sociedade Filosófica em Gottingen, e se forma
em filosofia sob a orientação de A. Pfänder. Casou-se com seu colega Hanns
Theodor Conrad. Em 1919, por causa das dificuldades de permanência das
mulheres na universidade, transfere-se para Bergzabern onde se dedica às
suas pesquisas e à preparação das suas conferências. Publica suas obras
maiores na área da filosofia da natureza e nas ciências, mantendo sempre
presente a perspectiva teológica. Seu grande mérito é ter encontrado uma
articulação e não uma separação entre as diferentes ciências. Examina os
princípios da fé à luz da fenomenologia. (ALES BELLO; BREZZI, 2001, p. 28)
64 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

As duas intelectuais apresentam trajetórias acadêmicas


semelhantes. Ambas mulheres fazem a sua primeira formação em
Ciências do Espírito, além de escolherem os cursos de Psicologia e
História. Seguem a fenomenologia de Edmund Husserl e tentam
conciliar a Ciências Naturais com as Ciências do Espírito. No caso de
Edith Stein, na escolha de sua profissão, os familiares esperavam que
escolhesse Medicina ou Direito, um ramo que lhe oferecesse
oportunidades econômicas, mas como naquele tempo as mulheres não
eram admitidas, nenhum familiar contrariou a escolha profissional:

Minha mãe abençoou com sua mão protetora. Ocasionalmente dizia ter
preferido se tivesse escolhido leis (direito). Mas se podia replicar que as
mulheres não eram ainda admitidas para o exame de direito. Para um
trabalho social nenhuma das duas pensavam. Por outro lado, a preocupação
de minha mãe era apenas uma discreta sugestão. Entendia me deixar livre:
“Ninguém, nunca te disse o que deves fazer, e não existe ninguém que possa
fazê-lo. Faça aquilo que achar justo”. Assim podia caminhar por minha
estrada sem preocupação. (STEIN, 1992, p.158)

Um ponto de aproximação entre as duas intelectuais foi o campo


profissional ligado à educação, em especial às Ciências do Espírito, já
que em outras profissões a participação das mulheres era limitada,
como no Direito, por exemplo. No campo de atuação da Educação e da
Filosofia ainda era incomum a participação feminina, como Ângela Alles
Belo aponta: “É, esse, um fenômeno singular, de fato, se observarmos
outros círculos filosóficos daqueles anos nos damos conta da quase total
falta de figuras femininas” (ALLES BELLO, 2005, p. 199).
Assim, apontamos a importância social e política que a reflexão de
Edith Stein sobre a questão feminina e o compromisso da mulher na
sociedade remonta à sua experiência vivida nos anos da universidade.
Danilo Souza Ferreira • 65

Foi este sentimento de responsabilidade social e de gratidão com o


Estado que impulsionou a jovem universitária a visitar as crianças
internas no instituto situado em Warteberg, próximo a Obernigk. Sua
abertura com relação aos problemas pedagógicos da atualidade a
estimulava a buscar informações acerca das instituições sociais e
centros de formação para cegos, surdos e deficientes mentais.
De fato, Edith Stein, entre os anos 1922-1933, defenderá
energicamente, em suas conferências, a inserção e a ativa participação
da mulher na vida do Estado. Como universitária em Breslau, participa
de vários movimentos e associações, empenhando-se socialmente e,
vive, o indiferentismo religioso, uma grande experiência inter-
religiosa. Já nas primeiras semanas na universidade de Breslau, conhece
Kaethe Schol, colega de estudos, que é proveniente de uma família
protestante, e membro do movimento de mulheres. Edith Stein estreita
uma forte relação de amizade com ela.

Kaethe Schol participava de diversos círculos que iniciavam as damas da


sociedade para as questões filosóficas e históricas. A “diversidade de origem
e de confissão não incomodava nossa amizade”, pois também para Kaethe
Schol, não me parecia que a Escritura significasse algo de sagrado.
(STEIN,1992, p. 172)

Os laços disciplinares da História e da Filosofia aproximam Edith


Stein, tanto de intelectuais como Kaethe Schol e do círculo das damas
de alta sociedade de Breslau, como posteriormente, em Gottingen,
também a aproxima de Hedwig Conrad-Martius, assim o campo
disciplinar da História não é apenas um campo de atuação reflexiva e
também de atuação política e social, reunindo esse grupo de
intelectuais.
66 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

Durante o período em que estudou na universidade de Breslau, fez


parte do grupo de mulheres de Kaethe Schol, que se encontrava todas as
semanas, por duas horas, durante a noite. Nas reuniões havia
conferências e debates cujo tema central eram os assuntos pedagógicos.
Os convidados para ministrar as palestras eram os reitores e
professores das diversas disciplinas que compunham a universidade de
Breslau. Quando não havia palestrante, o grupo escolhia alguns livros,
tais como os clássicos da Literatura ou da Filosofia para estudarem.
Para além da discussão e produção intelectual, havia no grupo uma
atuação social através da visita a escolas auxiliares, institutos de cegos,
surdos-mudos, colégios para órfãos e abandonados e asilos de
portadores de necessidades especiais e doentes mentais. Além desse
grupo pedagógico, Edith Stein também participou da associação
acadêmica de estudantes afiliada pela sociedade Humboldt para a
instrução popular. Os membros se colocavam à disposição para
ministrar cursos e aulas para os trabalhadores pobres, diferentes
daqueles ofertados nas universidades populares (STEIN, 1992, p.183).

2. A CONFERENCISTA EDITH STEIN: A MULHER NA ESFERA DA LITERATURA

Em fevereiro de 1916, quando estava preparando sua tese de


doutoramento, Stein entrou no magistério. O motivo era de ordem
financeira, mas ela mesma conta que pesava ainda mais a alegria e o
interesse de ensinar. A essa altura, já estava habituada a assumir uma
posição docente diante de crianças e jovens.
Depois de vários estágios no liceu feminino em Breslau, ela
ministrou, durante uma década, as aulas de alemão no instituto das
dominicanas em Speyer, tanto no seminário para professoras quanto no
liceu para moças. Posteriormente assumiu um cargo de professora no
Danilo Souza Ferreira • 67

Instituto Alemão de Ciências Pedagógicas em Münster. Depois de um


ano e meio de atividade docente, ela teve que renunciar a esse cargo em
consequência das mudanças políticas ocorridas em 1933. Sua
especialidade tinha sido o estudo da educação feminina.
Cristina Ruiz Alberdi Fernández aponta que a sociedade alemã da
década de 1920, estava testemunhando uma evolução social em que a
questão feminina era debatida pela maioria dos círculos intelectuais.
Nessa época, Edith Stein era professora na escola Dominicana de Spira,
quando um aluno lhe perguntou por que havia tanta conversa sobre a
atuação das mulheres, sobre a essência feminina, e em quais espaços
elas deveriam atuar. Tal indagação levou a Stein conversar com suas
alunas das disciplinas de Literatura e História, pois como observa a
discussão sobre o papel da mulher, despertava opiniões contraditórias
que deveriam ser discutidas:

Vemos mulheres na poesia hoje e nas últimas décadas como se elas fossem
o diabo do abismo. Em ambos os lados, temos uma grande responsabilidade.
Nosso senso e nossa vida são apresentados a nós como um problema.
(STEIN,1999, p.83)

Como educadora, Edith Stein compreende que é sua função


elucidar para as suas alunas sobre o papel da mulher e investigar como
as mulheres estavam sendo representadas pela sociedade. Para Edith
Stein investigar se haveria uma essência feminina ou não, é uma tarefa
fácil, uma vez que a Psicologia não conseguiu responder às perguntas
que foram levantadas, tendo em vista que era uma ciência incompleta
pois procurava estabelecer tipos universais de mulheres, não
valorizando as singularidades. Assim como a Teologia e a Filosofia, que
também não resolveriam o problema porque falavam de uma essência
68 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

em geral, a do ser humano, por isso também com a mesma visão


universal.

Mesmo abstraindo das Individualidades, existe um tipo de mulher? O que


ainda existe em comum no tipo de mulher que encontramos em O Sino, de
Schiller, ou em Vida e Amor de Mulher, de Chamisso ou nas mulheres
retratadas por Zola, Strindberg, Wedekind? Toda a diversidade presente na
vida concreta pode ser subordinada a um denominador comum e esse
denominador comum, por sua vez. Pode ser diferenciado da alma
masculina? Aqui não é o lugar de provar filosoficamente que existe no
âmbito do ser algo que poderíamos chamar de espécie de alma feminina e
que há uma função especial de conhecimento que permite reconhecê-la.
(STEIN, 1999, p.107)

Edith Stein não optou por uma prova filosófica que demonstra que
existe um tipo ideal de mulher, então, percebendo essa dificuldade em
estabelecer um tipo mulher, ela decide pesquisar na literatura, pois é no
fazer literário que os ‘tipos’ femininos são observados, representados e
idealizados.
Nesta tarefa de procurar por "tipos" femininos, ela escolhe três
autores. Mas não são escolhidos aleatoriamente, e sim de uma maneira
muito significativa, uma vez que os autores escolhidos são feministas
ou do seu próprio ambiente cultural. Esses escritores são: Sigrid Undset
(1882-1949), Henrik Ibsen (1828-1906) e Johann Wolfgang Von Goethe
(1749-1932). Todos os três são relativamente contemporâneos a Stein.
Sigrid Undset, é a única mulher do grupo que é norueguesa, assim
como o dramaturgo Henrik Ibsen. Conforme aponta Cristina Ruiz
Alberdi Fernández, os países nórdicos foram os primeiros países em que
o movimento feminista alcançou mais conquistas (FERNÁNDEZ, 2010,
p.217). Johann Wolfgang Von Goethe é alemão como Edith Stein. Cada
Danilo Souza Ferreira • 69

um desses escritores oferece a ela uma personagem feminina para


refletir: Undset, Ingunn; Ibsen, Nora e Goethe, Ifigênia. Com eles Edith
Stein elabora três tipos femininos.

3. OS TIPOS DE FEMININO EM UNDSET, IBSEN E GOETHE

Edith Stein escolhe do romance Olav Audunssön de Sigrid Undset a


personagem Ingunn, que cresce em um sítio nórdico, durante a Idade
Média, sem receber muitos cuidados nem educação sofisticada. É
educada para se tornar noiva de seu irmão de criação, Olav, em cuja
companhia e de outras crianças vagueia pelas redondezas, sem
disciplina de seus desejos e vontades.
O desejo afetivo é desperto aos 15 anos, e a ele, cedem Ingunn e
Olav. A vida deles se resume a ceder ao insaciável desejo de amar, porém
a família se opõe ao casamento e separa o casal, embora ambos se
considerassem unidos pelos vínculos do matrimônio. Devido a proibição
familiar, Ingunn vai encontrar compensação em seus sonhos por sua
felicidade perdida; causando crises nervosas e paralisia, e com o tempo
se torna vítima de outro sedutor. Ingunn, através de uma intervenção
divina, reconhece sua queda, reage e põe fim à relação pecaminosa.
Quando reencontra com Olav, faz uma confissão ao marido que a
assume como esposa e cria o filho dela e o torna herdeiro. Porém Ingunn
vive abatida pela consciência de sua falta. O destino também não admite
que ela seja feliz; e todos os seus outros filhos nascem mortos. Durante
anos, Ingunn e Olav aceitam o quadro trágico em silêncio. Só perto do
fim da vida de Ingunn, Olav começa a suspeitar que na alma de sua
mulher deveria ter germinado algo mais do que uma afeição surda e
irracional; haveria a compreensão de um mundo superior. Depois de
falecida, Olav continua a cuidar do filho de Ingunn.
70 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

Edith Stein compreende este romance como uma confissão de


Sigrid Undset, que busca representar o sentimento de culpa que uma
mulher poderia ter. O personagem Ingunn, para Stein, simboliza a
mulher que é instintiva, pois cresceu sem orientação familiar, como um
animal selvagem, por isso não conseguia controlar os seus desejos. Olav
só observa a esposa Ingunn no final da vida e nessa observação é que ele
percebe que a mulher que ele amava tanto e que às vezes era caprichosa
e frágil, brilhava como uma luz divina, que ele devia ter trazido à tona.
Ingunn, portanto, poderia ser compreendida como a representação
do tipo de mulher instintiva, cuja vida sempre foi organizada pelas
pessoas ao seu redor, sendo primeiro a família, depois o sedutor e por
último o marido Olav.

No caso de Sigrid Undset, ninguém pensará que o motivo tenha sido l'art
pour· l'art. Sua literatura é confissão sem concessões. Tem-se até a
Impressão de que ela sente uma verdadeira compulsão de expressar o que a
realidade brutal lhe impõe. E eu acho que todo aquele que observa a vida
com sinceridade e objetividade não pode negar que ela trabalha com tipos
reais, mesmo que tenham sido escolhidos com uma certa unilateralidade.
Parece que essa unilateralidade exprime uma determinada tendência: ela
destaca o elemento animalesco e instintivo em oposição a um idealismo
mentiroso e um intelectualismo exagerado que gostaria de elevar-se acima
da realidade terrena. (STEIN, 1999, p. 111)

A segunda personagem que representaria um tipo de mulher que é


escolhida por Edith Stein é Nora, da peça teatral A Casa de Bonecas de
Henrik Ibsen. A escolha da personagem serve como representação do
oposto da selvagem Ingunn. Nora é criada em um ambiente urbano e
moderno, possui educação sistemática, mas é mimada pelo seu pai que
Danilo Souza Ferreira • 71

a trata como boneca, e será a boneca preferida de seu esposo, e tratará


seus filhos como seus bonecos.
O pai de Nora tem problemas burocráticos e o governo encarrega a
Helmer, que é advogado, de investigar o caso. Nora e Helmer se
conhecem por causa dessa investigação e se casam e criam três filhos. A
situação econômica não é boa, mesmo assim Nora espera o
extraordinário para a sua família.
Para Nora, a família representava a centralidade de sua vida, em
especial o seu marido Helmer. Isso pode ser percebido na peça de teatro,
quando Nora, se arrepende por não ter realizado as suas vontades,
apenas obedecendo as vontades de Helmer. A única decisão autêntica
feita por Nora foi falsificar a assinatura do pai, para solicitar um
empréstimo no banco, para pagar o tratamento de saúde do marido,
mantendo em segredo dele o empréstimo. Esse segredo é confidenciado
para a Sra. Linde, personagem que representa a mulher que vive na
realidade e que, em contraposição de Nora, toma as suas próprias
decisões:

Sra. Linde - E então? Você nunca confiou em seu marido? -Nora- Deus não
permita! Como você teve essa ideia? Ele, tão severo por essas coisas! De
resto, Torvaldo (Helmer), com sua auto-estima como homem, acharia muito
doloroso e humilhante saber que ele me devia algo. Nossos relacionamentos
teriam sido estragados e a felicidade de nossa casa teria sido abandonada
para sempre. (IBSEN, 1999, p.27)

Nora é chantageada por Rank Krogstad, que havia emprestado o


dinheiro a ela, e exige que fuja com ele, mas é negado, pois Nora é fiel
ao marido Helmer. Com a negativa, Krogstad se vinga escrevendo uma
carta para Helmer, relatando que ele quem concedeu o empréstimo a
Nora e sabe que a assinatura é falsa. Helmer recebe a carta e descobre a
72 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

verdade, porém sua reação é contra Nora, além de dizer que a despreza
mas ficaria ao seu lado apenas para manter as aparências sociais.
A partir da fala de Helmer, Nora percebeu que o primeiro dever é
consigo mesma. A despedida questiona se realmente existe um
casamento real. Quando Nora sai, Helmer a lembra do que costumava
dizer, que um milagre pode acontecer. E Nora, com certo ceticismo,
responde:

Helmer - Oh, é odioso!" Trair os deveres mais sagrados! -Nora- Como você
chama seus deveres mais sagrados. Helmer-Terei de lhe contar? Seus
deveres para com seu marido e filhos? - Nora-eu tenho outros deveres não
menos sagrados. (IBSEN, 1999, p.27)

Edith Stein ao analisar a personagem Nora, da peça de Henrik


Ibsen, queria estar totalmente do lado das mulheres, endossando a
causa feminista. Nora não aprendeu a tomar decisões. A Casa de Bonecas
descreve a atmosfera típica de uma família de classe média
condicionada por preconceitos sociais. Ingunn e Nora estão cercados
pelas mentiras das pessoas ao seu redor. Nora tenta procurar a verdade,
é por isso que ela quer se encontrar. Ele percebeu seu grande vazio
interior.

Na desilusão, reconhece Nora a si própria e o marido descobrindo que o


vazio de sua convivência não merecia ser chamado de casamento. Afastado
o risco de um escândalo social, ele se dispõe a perdoar tudo e a restabelecer
as coisas em seu estado anterior. Mas agora ela já não pode voltar atrás, pois
sabe que precisa tornar-se outra pessoa antes de tentar outra vez ser esposa
e mãe. Também Robert Helmer precisaria transformar-se em ser humano,
deixando de ser apenas uma figura social, para que sua convivência pudesse
transformar-se em casamento. (STEIN, 1999, p.109)
Danilo Souza Ferreira • 73

A última obra literária analisada por Edith Stein é Ifigênia de


Tauris, de Goethe. A peça apresenta o enredo da filha de Agamenon e
Clitemnestra, irmã de Electra e de Orestes. Pertence a linhagem maldita
dos tantálidas, que foram condenados por Zeus, pela soberba, para
morrer de forma trágica. Agamenon é assassinado pela esposa, a rainha
Clitemnestra. Orestes vinga a morte de seu pai matando a mãe e sendo
condenado pelas Erínias, A irmã Ifigênia é salva pela deusa Diana,
quando seu pai decide oferecê-la em sacrifício aos deuses. Ela é
transferida para o país dos citas, governado pelo rei Thoas. Lá, ela vive
no templo e se torna a sacerdotisa da deusa Diana. Ele cresce fazendo o
bem a todos, mas sua grande ilusão é retornar à sua terra grega. Suas
orações são especialmente direcionadas ao irmão Orestes. O rei Thoas,
vendo a bondade de Ifigênia, sente-se atraído por ela e quer fazer dela
sua esposa. Ifigênia, com grande doçura, diz que não. Diante de tal
desprezo, o rei se defende humilhando a mulher.

Rei Thoas - Embora eu devesse esperar. Ele não sabia, talvez, que estava
lidando com uma mulher? -Ifigênia- Não deprecie nosso pobre sexo, ó rei!
Armas não são como suas mulheres refulgentes; mas nem ignóbil. Acredite
que estou à sua frente em algo; em que sua felicidade é melhor do que você
imagina. Sem te conhecer ou me conhecer, você se dá a ilusão de que uma
união entre os dois mais próximos de ambos o faria feliz. Encorajados pela
melhor intenção e pela melhor vontade, você me incentiva a concordar; mas
agradeço aos deuses por me emprestarem a integridade necessária para
recusar uma união que eles não aprovam. (GOETHE, 1869, p.1735)

Diferente dos tipos de representação de mulheres, analisadas por


Edith Stein, isso é, Ingunn e Nora, a sacerdotisa Ifigênia, toma uma
decisão ao responder ao rei Thoas em defesa das mulheres. Ifigênia está
convencida de continuar no treinamento do templo e mantém a ilusão
74 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

de que um dia ela poderá retornar à sua terra natal. Seu irmão Orestes
e sua amiga Pilades decidem resgatá-la do país dos citas. Eles chegam
na praia e são pegos pelos guardas do rei. Era costume naquele país que
estrangeiros fossem sacrificados aos deuses.
Quando Ifigênia descobre que há dois homens sob sentença de
morte, ela intercede pelo rei. No começo, ela não os reconhece, mas
Pilades fala com ela e diz quem são e o que queriam quando a
procuravam. O caráter de Orestes representa o homem que sofre com o
remorso do crime. Ele precisa ser libertado pelo perdão dos deuses.
Pilades conversa com Ifigênia para explicar que seu irmão precisa se
libertar da angústia de seu passado. Ifigênia, Pilades e Orestes estão
convencidos de que o rei os matará quando descobrir que eles foram
procurar Ifigênia para levá-la com eles, portanto planejam escapar. Mas
para isso é necessário roubar a imagem da deusa Diana, pois foi ela
quem libertou Ifigênia da morte. Ifigênia precisa tomar uma decisão que
envolve a luta entre verdade e mentira. É o grande teste que ela precisa
passar. Diga a verdade ao rei, apesar do risco de morrer ou escapar.
Ifigênia decide falar com o rei e dizer a verdade. A primeira reação do
rei é muito violenta, ele quer lutar contra Orestes; no entanto, a
sinceridade de coração que ele observa em Ifigênia o desarma de tal
maneira que ele lhes permite retornar à sua terra natal:

Ifigênia-Não! Essa prova sangrenta não é necessária, ó rei! Tire sua mão do
aço! Pense em mim e no meu destino. A breve luta imortaliza o homem; em
um instante ele cai e os poetas o elogiam em suas canções. Mas a
prosperidade silenciosamente passa as lágrimas, as infinitas lágrimas das
mulheres que sobreviveram abandonadas e o bardo de milhares de noites e
dias não dizem nada que, a planície consome uma alma mansa, dissolvendo-
se em vão invocações ao amigo prematuramente perdido, em meio a dores
abrasadoras. (GOETHE, 1869, p.1735)
Danilo Souza Ferreira • 75

Assim, ao analisar a personagem Ifigênia, Edith Stein a descreve


como um modelo de representação de mulher capaz de tomar as suas
decisões e que foi capaz de tomar essa atitude porque foi educada no
templo de Diana. Sendo assim, pode realizar seu maior desejo que é de
retornar aos seus familiares. Ela não quer ter laços que a impeçam de
fazer essa viagem, então rejeita a proposta de casamento do rei Thoas.
Tomando a decisão de rejeitar a proposta de casamento, causa em
Ifigênia medo porque se ela escapasse com seus irmãos, essa ação a
levará a perder sua liberdade, pois ela será vítima de remorso por
ingratidão em relação ao rei e a si mesma. Ela age assim porque acredita
na bondade do rei Thoas e que ela pode dialogar com ele. No final, ele
alcança a vitória do bem sobre o mal.

A trama clássica de Goethe, a grandeza singela e a ingenuidade sublime da


mais nobre de suas figuras femininas talvez pareçam ao homem moderno
sinais da maior irrealidade. E certamente estamos diante de uma
idealização, mas nem por isso trata-se de uma construção da fantasia, é
uma imagem ideal baseada, experimentada e sentida na vida. O grande
plasmador deu forma plástica àquilo que se lhe apresentou como
humanidade pura e, ao mesmo tempo, como é eterno feminino, destituído
de qualquer intenção tendenciosa. É por isso que nos sentimos comovidos
de uma maneira que só o totalmente genuíno e eternamente verdadeiro
podem provocar. (STEIN, 1999, p.111)

Dentre os três modelos de representação feminina, apresentados


por Edith Stein, apenas Ifigênia da obra de Goethe é apresentada como
positivo, porque como religiosa do templo de Diana, segundo Stein,
possuía o desenvolvimento intelectual autêntico que a possibilitaria
conduzir necessariamente um serviço maior à comunidade,
principalmente por viver em contato direto com o povo. Destacando na
76 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

personagem de Goethe características irrenunciáveis dos servidores


intelectuais como a capacidade de empatia e de solidariedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na análise das três representações de ‘tipos’ de mulheres presentes


nas obras literárias, Edith Stein vê como traço comum entre as
mulheres o desejo de dar e receber amor dos personagens com quem
compartilham as histórias, bem como com o leitor ou espectador da
peça, isso é, de viverem em comunidades e bem como a aspiração em
serem tiradas de um meio social que as impedia de ter autonomia e
consequentemente assumirem o controle de suas próprias vidas,
presentes apenas dentro da própria obra. Tornar-se aquilo que se deve
ser e deixar amadurecer pelo amor pela humanidade, de forma latente
e individual, em especial, que foi posto em cada mulher: eis o traço
característico da alma feminina, para Edith Stein (STEIN,1999, p.113).
Assim, na busca pela compreensão da especificidade feminina,
Edith Stein procura distingui-la da especificidade do masculino,
demonstrando no ambiente cultural do Teatro e da Literatura como
estes descrevem a singularidade dos diversos tipos de ‘mulher’ como
Undset, Nora e Ifigênia, mas ao mesmo tempo revela uma característica
universal que é a capacidade de transmitir amor.
Essa análise fenomenológica de Edith Stein permite que defenda
que o amadurecimento no amor é a aspiração mais profunda do desejo
tipicamente feminino, ao passo que a aspiração tipicamente masculina
parece dirigir-se mais aos efeitos externos, à ação e ao desempenho
objetivo do que ao ser pessoal tanto do próprio homem como dos outros.
É claro que não se pode separar completamente as duas dimensões.
Em sua estrutura básica, a alma é de mesmo tipo para todo o gênero
Danilo Souza Ferreira • 77

humano, mas a alma e o corpo individuais produzem uma unidade


sólida: sobre a base da sensorialidade, que é tanto corpórea quanto
psíquica, a singularidade de cada ente humano repousa também sobre
uma dimensão espiritual, a capacidade de autoconsciência,
autorreflexão e abertura à alteridade. É essa unidade radicalmente trina
(psicofísico-espiritual) que permite a cada um entrar no mundo objetivo
dos valores e interferir no mundo pela vontade e de modo criativo.
Assim, os traços biográficos de Edith Stein como acadêmica que
procurou refletir sobre a importância das Ciências Humanas e do
âmbito cultural, bem como o seu posicionamento político em defesa da
mulher, e sua inserção no mundo do trabalho e no meio social,
possibilitam que compreendamos que o corpo humano não é matéria
animada por uma alma; é um corpo de uma alma, um corpo típico de ser
humano, dotado da possibilidade de ver-se a si mesmo e ver a alteridade.
Ao falar de “alma feminina” e “tipos de representação da mulher”,
Edith Stein não pensa sobre o modo de um dualismo substancial de uma
“alma de mulher” inserida em uma porção de matéria, nem ao modo de
um dualismo de uma “alma de homem” inserida em outra porção de
matéria. Ela pensa em modos de existir, em modos de ser totalmente
individuais, embora a individualidade seja uma forma de realizar o que
há de comum na espécie humana. A individualidade, numa palavra,
contrai o universal da espécie em unidades tipicamente femininas e
tipicamente masculinas.
Se torna fundamental para Edith Stein que as mulheres se
compreendam como indivíduos e que possam manifestar as suas
individualidades nos diversos modos de existir, sendo uma forma de
descrição dessas vivências a escrita literária e o teatro, apresentando,
78 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

assim os campos de análise cultural como uma forma da mulher


manifestar a suas características individuais e universais.

REFERÊNCIAS

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BELLO, Angela Ales. Edith Stein. La passione per la verità. Padova: Messaggero,2003.

BLUME FRIESEN, Rosvitha. Literatura alemã de mulheres e o novo movimento feminista.


In: Fragmentos. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina,
SC,n.18,2000.

FERNÁNDEZ, Cristina Mª Ruiz-Alberdi. El Pensamiento Feminista de Edith Stein: Sus


conferencias sobre la Mujer (Alemania 1930) y Nuestras Mujeres Mayores (España 2006-
2007). Madrid, 2010

GELBER, Lucy. Prefácio dos Editores. In: STEIN, Edith. A mulher: sua missão segundo a
natureza e a graça. Bauru, SP: EDUSC, 1999.

GOETHE, Johann Wolfgang Von. Ifigenia en Tauride. Madrid: Traducción Gaspar de


Cuellar,1869.

IBSEN, Henrik. Casa de muñecas. Madrid: Cátedra,1999.

LOWY, Michael. Notas sobre os Intelectuais Judeus. In: Judeus Heterodoxo Brasil: Editora
Perspectiva, 2012.

SCHELER, Ferdinand Max. A posição do homem no cosmo. ed. Rio de Janeiro: Editora
Florense Universitária, 2003.

STEIN, Edith. A mulher: sua missão segundo a natureza e a graça. São Paulo. Ed: EDUSC,
1999.

STEIN, Edith. Escritos Antropológicos y Pedagógicos: Magisterio de vida cristiana, 1926-


1933. Madrid : El Carmem .2002.

STEIN, Edith. Escritos Filosóficos Etapa fenomenológica: 1915-1920. Madri: El


Carmen.2002.

STEIN, Edith. Estrellas Amarillas. Madri: Editorial de Espiritualidad.1996.


Danilo Souza Ferreira • 79

STEIN, Edith. Estrutura da pessoa Humana. Madrid: El Carmen.1933.

STEIN, Edith. La significacíon de la fenomenología como concepcíon del mundo. Em STEIN,


Edith. La Pasíon por la Verdad. Buenos Aires: Bonum.2012.

STEIN, Edith. Live in a Jewish Family - her unfinished autobiographical account in The
Collected Works of Edith Stein. Washington: Publications.1986.

STEIN, Edith. Vida de uma família judia e outros escritos autobiográficos. São Paulo. Ed:
Paulus, 2018.

UNDSET, Sigrid. Olav Audunssön. Barcelona: Editor José Janés.1956.


3
AS FACETAS DO AMOR EM BELL HOOKS
Halina Leal 1

INTRODUÇÃO

Discorrer sobre o tema do amor em bell hooks ou sobre qualquer


tema explorado por ela, sem iniciar com uma referência a sua pessoa,
sua vida, ativismo e reflexões, embora vá, de certa forma, contra ao que
ela propôs quando cunhou seu nome em letras minúsculas e afirmou “o
mais importante em meus livros é a substância e não quem sou eu”, me
parece necessário para irmos ao encontro dessa “substância” que ela
quis que foquemos.
No trabalho de bell hooks, identificamos, como cerne de suas
análises, a compreensão do modo como se articulam pensamentos e
práticas, teorizações e experiências. Ela mesma afirma:

A decepção e uma sensação persistente de coração partido me levaram a


começar a pensar mais profundamente no significado do amor em nossa
cultura. Meu desejo de encontrar o amor não me fez perder meu senso de
razão nem de perspectiva; ele me incentivou a pensar mais, a falar de amor
e a pesquisar o tema em textos populares e [também] em estudos mais
sérios. (hooks, 2020, p.34)

1
Doutora em Filosofia (USP)
Professora do Quadro da Universidade Regional de Blumenau, FURB
Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional, PPGDR-FURB
e-mail: halina.leal@gmail.com
Halina Leal • 81

Nesse sentido, apontar elementos da vida e das experiências de bell


hooks enquanto uma mulher negra da classe trabalhadora
estadunidense, que vivenciou anos de segregação e o processo de
“dessegregação” racial, numa família em que eram reproduzidas as
diferenciações e opressões de gênero presentes na sociedade, nos
aproxima da “substância” de seu pensamento.
bell hooks foi uma mulher negra que experienciou o lugar da
margem, da não centralidade, ou seja, do não ser branca, não ser
homem, não ser pertencente a classes privilegiadas e, em sociedades
patriarcais, racistas e classistas, este é o lugar do não ser. É um lugar de
vulnerabilidade política, social, invisibilidades e violências. Este lugar a
levou a sentimentos de não pertencimento, típicos de quem se encontra
numa situação de marginalização. A compreensão deste seu lugar, como
ela sempre afirmou, veio por meio da teorização e da reflexão não
somente de quem ela era no mundo (subjetiva e individualmente), mas
de porque neste mundo no qual interagimos, pessoas como ela eram e
são marginalizadas. No decorrer de sua vida e obra, ela assume a
máxima “o pessoal é político” de uma forma radical, articulando a
dimensão subjetiva de sua experiência com análises de questões sociais
estruturais como o racismo, o machismo, o sexismo e o capitalismo.
Toda a sua obra é atravessada por essas questões e suas reflexões a
respeito de gênero, raça e classe, são encontradas de forma transversal
em eixos analíticos específicos, tais como o da crítica cultural, da
educação, do feminismo negro, de questões espirituais e acerca do amor.
Sobre o amor, entre os anos de 2000 e 2002, hooks escreve sua
trilogia: All About Love: New Visions (2000) 2, Salvation: black people and

2
Obra traduzida em 2020 pela Editora Elefante.
82 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

love. (Salvação: pessoas negras e amor) (2001), Communion: the female


search for love (Comunhão: a busca feminina pelo amor) (2002).
Nessa trilogia, hooks salienta, no amor, a ação. Ela examina a
situação de homens e mulheres em geral, de pessoas negras em particular
e de todas as pessoas que desenvolvem suas capacidades de amar em
sociedades patriarcais, racistas e classistas. Para ela, o amor enquanto
ação é comprometimento. Um comprometimento individual e coletivo, o
qual permite às pessoas se enxergarem como interconectadas e
interdependentes. Sua visão do amor segue inspirações do cristianismo
de Martin Luther King Jr., do budismo engajado de Thich Nhat Hanh, da
argumentação de Erich Fromm sobre o amor e da crítica social e ativismo,
de James Baldwin e June Jordan. Com essa base, hooks reivindica o “amor”
como importante ferramenta de combate e de transformação de
condições materiais injustas. O amor é, para ela, força espiritual e política
capaz de transformar todas as esferas da vida das pessoas, seja no âmbito
das relações íntimas, sociais ou políticas.
Nesses termos, o presente artigo busca compreender a “ação
amorosa política” ou “política amorosa” ou simplesmente “as facetas do
amor em bell hooks”, na direção de abrir espaço para pensarmos sobre
nossas situações reais de existência e interações, a partir da provocação
empreendida por ela. Para tanto, serão analisados alguns pontos da
ética do amor e da noção de interdependência apresentados por hooks,
com vistas ao modo de articulação dessas noções na compreensão de
como determinadas perspectivas amorosas incidem em indivíduos de
grupos subalternizados, em particular negros e mulheres. Tenta-se,
assim, estabelecer elementos para inferir, deixando em aberto, em que
medida ‘as facetas do amor em bell hooks’ podem contribuir em
reflexões sobre o casamento.
Halina Leal • 83

A ÉTICA DO AMOR

bell hooks, em Tudo sobre o Amor, nos diz:

Começar por sempre pensar no amor como uma ação, em vez de um


sentimento, é uma forma de fazer com que qualquer um que use a palavra
dessa maneira automaticamente assuma responsabilidade e compromisso.
Somos com frequência ensinados que não temos controle sobre nossos
“sentimentos”. Contudo, a maioria de nós aceita que escolhemos nossas
ações, que a intenção e o desejo influenciam o que fazemos. Também
aceitamos que nossas ações têm consequências. Pensar que as ações
moldam os sentimentos é uma forma de nos livrarmos de suposições aceitas
convencionalmente, como a de que pais amam filhos, de que alguém
simplesmente “cai” de amores sem exercer desejo ou escolha, de que existe
algo chamado “crime passional”, isto é, a ideia de que matou porque amava
demais. Se nos lembrássemos constantemente de que o amor é o que o amor
faz, não usaríamos a palavra de um jeito que desvaloriza e degrada seu
significado. Quando amamos, expressamos cuidado, afeição,
responsabilidade, respeito, compromisso e confiança. (hooks, 2020, p.55)

Como podemos perceber das suas inspirações, a ideia de amor em


bell hooks está relacionada a um contexto de fé, de prática espiritual.
Mas, sobretudo, de coletividade, numa compreensão de ação enquanto
ética e política. hooks salienta a capacidade do ser humano em ir além
de si próprio e trabalhar por causas que podem ou não o beneficiar
diretamente. Na sua perspectiva, uma disposição do ser humano em se
engajar em comportamentos altruístas presume a existência de
capacidade moral positiva e permite o desenvolvimento de uma ética
amorosa. Ela afirma: “Os valores que sustentam uma cultura e sua ética
moldam e influenciam a forma como falamos e agimos.” (hooks, 2020,
p. 123) E continua:
84 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

Indivíduos que escolhem amar podem alterar e alteram a própria vida para
honrar a primazia da ética amorosa. Nós fazemos isso ao escolher trabalhar
com indivíduos que admiramos e respeitamos; ao nos comprometermos a
nos entregar inteiramente em nossos relacionamentos; ao abraçar uma
visão global em que vemos nossa vida e nosso destino como intimamente
ligados aos de todas as outras pessoas do planeta. O compromisso com uma
ética amorosa transforma nossa vida ao nos oferecer um conjunto diferente
de valores pelos quais viver. Em grande e em pequena escalas, fazemos
escolhas baseadas na crença de que a honestidade, a franqueza e a
integridade pessoal precisam ser expressas nas decisões públicas e
privadas. (hooks, 2020, p. 123-124)

Nesse sentido, o amor enquanto ação, compreendido nos termos


desta ética amorosa, é possível de se desenvolver em todas as dimensões
da vida humana e “pressupõe que todos têm o direito de serem livres,
de viverem bem e plenamente” (hooks, 2020, p. 123). Para hooks, para
trazer a ética amorosa para todas as dimensões da vida humana, a
sociedade precisa se modificar. (hooks, 2020, p.123)
Influenciada pelo pensamento de Erich Fromm, onde ele afirma
que ‘mudanças nas estruturas sociais são necessárias para que o amor
se torne um fenômeno universal e não altamente individualista e
marginal” (hooks, 2020, p.123), ela defende a ética amorosa como o único
caminho que neutraliza os efeitos negativos do que define como um
“patriarcado imperialista capitalista de supremacia branca”. Ela
identifica tal patriarcado como incorporado na sociedade
estadunidense, mas que pode ser ampliado a todas as sociedades
patriarcais, estruturadas no racismo, machismo, sexismo e elitismo
classista.
A ética amorosa vem do reconhecimento da interdependência e da
necessidade de as pessoas assumirem compromissos umas com as
Halina Leal • 85

outras e com tudo que as cerca, e hooks salienta o quanto isso é difícil
em sociedades estruturadas em relações de poder e opressão. Segundo
ela, a “cultura de dominação” em que vivemos se reforça ao colonizar
nosso entendimento de nós mesmas/os. Isso ocorre, na medida em que
a principal dinâmica de sociedades marcadas por relações de opressão
é a desvalorização e desumanização das pessoas. No modo como os
sistemas opressivos funcionam, as pessoas respondem à desumanização
pela qual são submetidas, atacando individualmente umas às outras ou
grupos entre si, mais do que se voltando contra o sistema que mantém
essa lógica de desvalorização, de desumanização e de cisão entre as
pessoas. Na sua análise, hooks salienta o quanto o “patriarcado
capitalista supremacista branco” se beneficia com essa cisão e com a
falta de conexão das pessoas umas com as outras.
Para hooks, compreender como esse processo funciona é essencial
para caminharmos em direção ao amor. Diz ela:

Abraçar uma ética amorosa significa utilizar todas as dimensões do amor –


“cuidado, compromisso, confiança, responsabilidade, respeito e
conhecimento” – em nosso cotidiano. Só podemos fazer isso de modo bem-
sucedido ao cultivar a consciência. Estar consciente permite que
examinemos nossas ações criticamente para ver o que é necessário para que
possamos dar carinho, ser responsáveis, demonstrar respeito e manifestar
disposição de aprender. Entender o conhecimento como um elemento
essencial do amor é vital. (hooks, 2020, p. 130)

É nesse sentido que encontramos, com relação ao amor, a


recorrente ênfase na teoria conectada às experiências, presente em seus
86 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

escritos. Cornel West, em Breaking Bread: Insurgent Black Intellectual


Life 3, escrito juntamente com hooks, afirma:

A teoria é inescapável porque é uma arma indispensável na luta, e é uma


arma indispensável na luta porque fornece certos tipos de compreensão,
certos tipos de iluminação, certos tipos de insights necessários para
efetivamente agirmos. (hooks,, WEST, 1991, p. 34-35 – tradução da autora)

De acordo com esta visão, a teoria ajuda a explicar como as coisas


funcionam. Ela atua como um decodificador com o qual damos sentido
ao que vivenciamos. Em outras palavras, a teoria nos ajuda a
compreendermos como os sistemas de poder efetivamente funcionam e
qual o nosso lugar neste funcionamento. A teoria nos permite
compreender as relações de interdependência existentes entre nós e
todas as outras pessoas que estão em localizações sociais distintas das
nossas. Portanto, o conhecimento e o reconhecimento da
interdependência se constituem em elementos importantes na
compreensão da ética do amor que hooks propõe.

INTERDEPENDÊNCIA

A interdependência, em sociedades machistas, racistas e


capitalistas, deve ser analisada a partir das hierarquias aí presentes, a
partir de camadas sobrepostas em uma pirâmide, às quais conferem
lugares de maior ou menor poder e privilégios aos indivíduos que nelas
se relacionam. Nesta hierarquia ou pirâmide social, no topo ou em
lugares de maior poder e privilégio, estão, em geral, sujeitos do sexo
masculino, brancos, ricos, heterossexuais e saudáveis e, na base, ou em
lugares de menor poder, com menores privilégios, pessoas racializadas,

3
hooks, B. WEST, C. Breaking Bread: Insurgent Black Intellectual Life. Boston: South End. Press, 1991.
Halina Leal • 87

mulheres pobres, imigrantes e pessoas com deficiência. A relação que se


estabelece entre tais grupos é tal que aqueles que estão em posições de
poder são mais facilmente vistos e ouvidos e aqueles que não estão são
ignorados e invisibilizados. Neste modelo, quem está no topo dita as
regras, é a norma, e afeta diretamente a vida de quem está na base, ao
passo que os da base não têm o poder de afetar substancialmente os do
topo. Há uma relação de interdependência, mas, em função das
desigualdades, há pesos distintos para cada grupo. Aqui é importante
compreender que estes pesos distintos das ações de cada grupo são
fundamentais para manter ou trazer mobilidade social, diminuir ou
aumentar os processos opressivos. Em última análise, o modo como os
grupos se movem, ou não, afeta todos aqueles que se interrelacionam
nesta pirâmide.
O que hooks sugere é que, a partir da leitura e compreensão de
como se estruturam tais relações, as pessoas possam se envolver umas
com as outras, no sentido de se engajarem, de reconhecerem suas
localizações ou posições sociais e desenvolverem, no mínimo, a empatia
e, no máximo, a solidariedade crítica umas com as outras.
hooks reconhece que nas condições estabelecidas em sociedades
fundamentadas em relações de opressão e exclusão, desenvolver tal
nível de solidariedade é difícil, mas não impossível se seguirmos a ética
do amor, se nos implicarmos e escolhermos agir, nos responsabilizando
uns com os outros/umas com as outras, reconhecendo os mecanismos
de dominação e opressão, com a firme intenção de eliminá-los. Isso,
segundo ela, exige atenção e vigilância de cada um/a sobre si mesmo,
mas, principalmente reconhecimento dos efeitos negativos de
processos opressivos e de dominação para a sociedade em geral e para
88 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

as relações e interações, em particular. Não há lugar seguro em


sociedades estruturadas em relações de opressão e desigualdades:

Para manter esse compromisso com a solidariedade [solidariedade crítica],


devemos estar sempre vigilantes, viver em uma sociedade onde o racismo e
o sexismo estão internalizados, torna-se norma tratarmos uns aos outros
com desrespeito. (NIENHUIS, 2009, p. 205)

Em O Amor como Prática da Liberdade, ela nos diz:

Sem uma ética do amor moldando a direção de nossa visão política e nossas
aspirações radicais, muitas vezes somos seduzidas/os, de uma maneira ou
de outra, para dentro de sistemas de dominação — imperialismo, sexismo,
racismo, classismo. (...) Até todos nós sermos capazes de aceitar a natureza
interconectada e interdependente dos sistemas de dominação e
reconhecermos as formas específicas de manutenção de cada sistema,
continuaremos a agir de forma a minar nossa busca individual por
liberdade e nossa luta por libertação coletiva.
A capacidade de reconhecer pontos cegos só pode surgir à medida em que
expandimos nossa preocupação sobre a política de dominação e nossa
capacidade de nos preocuparmos com a opressão e exploração de outrem.
Uma ética do amor torna possível essa expansão. (hooks, 2006, p. 289-290 –
tradução da autora)

Assim, podemos dizer que, para hooks, a única maneira de garantir


que nossas ações promovam a solidariedade crítica é inserir a questão
do amor nos movimentos de libertação de opressões. Ela afirma que não
há um discurso efetivo sobre o amor nem dos radicais progressistas
nem dos de esquerda:

A ausência de um foco continuado sobre o amor em círculos progressistas


surge de uma falha coletiva em reconhecer as necessidades do espírito e de
uma ênfase sobredeterminada nas preocupações materiais. Sem amor,
nossos esforços para libertar a nós mesmas/os e nossa comunidade mundial
Halina Leal • 89

da opressão e exploração estão condenados. Enquanto nos recusarmos a


abordar plenamente o lugar do amor nas lutas por libertação, não seremos
capazes de criar uma cultura de conversão na qual haja um coletivo
afastando-se de uma ética de dominação. (hooks 2006, p. 289 – tradução da
autora)

Quando ela traz esse ponto, ela foca suas análises nos movimentos
de libertação de opressões, sobretudo de raça e de gênero. Ela nos diz
que sem a ética do amor a moldar nossa visão política e nossas
“aspirações libertárias”, somos atraídas e atraídos para a lógica da
dominação. hooks sempre expressou espanto pelo fato de mulheres e
homens comprometidas e comprometidos com seus trabalhos de
resistência, resistirem a outros movimentos que não os “seus”. (hooks,
2006) Ela afirma:

Sempre me intrigou que mulheres e homens que passam a vida trabalhando


para resistir e se opor a uma forma de dominação possam apoiar
sistematicamente outras. Fiquei intrigada com líderes negros visionários
que podem falar e agir apaixonadamente em resistência à dominação racial
e aceitar e abraçar a dominação sexista das mulheres; como feministas
brancas que trabalham diariamente para erradicar o sexismo, mas que têm
grandes pontos cegos quando se trata de reconhecer e resistir ao racismo e
à dominação por parte da supremacia branca do planeta. Examinando
criticamente esses pontos cegos, concluo que muitas/os de nós estão
motivadas/os a mover-se contra a dominação unicamente quando sentimos
nossos interesses próprios diretamente ameaçados. Muitas vezes, então, o
anseio não é para uma transformação coletiva da sociedade, para um fim da
política de dominações; mas simplesmente para o fim do que sentimos que
nos machuca. (hooks, 2006, p. 289 -290 – tradução da autora)

Para hooks, amar é lutar pela libertação de opressões, é lutar


contra todas as formas de opressão que estruturam o “patriarcado
imperialista capitalista de supremacia branca”.
90 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

AS PESSOAS NEGRAS E O AMOR

Em Salvation: Black People and Love, enquanto ela discorre sobre


vários pontos de dificuldade de florescimento do amor no que se refere
às pessoas negras (no sentido de amarem e serem amadas), ela reforça
a ideia de que os problemas que aí surgem não são única e
exclusivamente subjetivo ou individuais, mas de estruturação social e
de tudo que é internalizado pelas pessoas negras e não negras. Nesse
sentido, ela diz que sem mudar as estruturas de dominação,
continuaremos a viver numa cultura de desamor, reafirmando o quanto
o amor é político:

O amor é profundamente político. Nossa mais profunda revolução virá


quando compreendermos esta verdade. Só o amor pode nos dar a força para
seguirmos em frente em meio ao desgosto e à miséria. Somente o amor pode
nos dar o poder de reconciliar, de redimir, o poder de renovar espíritos
cansados e salvar almas perdidas. O poder transformador do amor é a base
de toda mudança social significativa. Sem amor nossas vidas não têm
sentido. O amor é a retaguarda da questão. Quando tudo se foi, o amor
sustenta. (hooks, 2001, p.16-17 – tradução da autora)

AS MULHERES E O AMOR

Em Communion: The Female Search for Love, focando nas questões


das mulheres, já no Prefácio, hooks nos instiga a olharmos como se
estruturam as sociedades patriarcais e como o amor “chega” às
mulheres desde a infância. Ela nos convoca a olharmos para como
somos ensinadas a lidarmos com o amor, compreendendo que isso é a
chave de entendimento dos níveis de violências às quais as mulheres são
submetidas em sociedades estruturadas a partir de relações opressivas.
hooks aponta para o fato de que as narrativas acerca das mulheres vão
Halina Leal • 91

nos colocando em determinados lugares e todas e todos vão


internalizando isto desde a infância:

Desde a infância, aprendemos que as conversas sobre o amor são


“generificadas”, um assunto feminino. Nossas obsessões pelo amor não
começam com a primeira paquera ou a primeira paixão. Elas começam com
aquele primeiro reconhecimento de que as mulheres são menos
importantes do que os homens e que não importa o quão boas sejamos, aos
olhos do universo patriarcal, nunca somos suficientemente boas. (hooks,
2003, p. xi – tradução da autora)

Mais uma vez, identificar e conhecer as origens dessas e de outras


narrativas, nos permite encarar problemas que advêm de situações
opressivas, a partir de um outro lugar, nos impulsionando em direção a
um caminho de superação das opressões. Para hooks, a saída está pela
porta da ética amorosa. A proposta de hooks é reforçada
constantemente com o intuito de nos alertar para o fato de que o amor,
enquanto ação, molda os sentimentos. E não é qualquer tipo de ação, é
uma ação fundamentada numa consciência do lugar que cada uma/um
ocupa na estrutura social.

BREVES CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreender o amor na abordagem de bell hooks é apreender o


amor não como uma ação em direção a um objeto ou sujeito específico,
fruto de nossos interesses individualistas, mas uma ação ampliada em
direção às pessoas. E isto envolve reconhecer os sistemas opressivos e
os obstáculos do amor-ação em contextos estruturados no “patriarcado
imperialista capitalista supremacista branco”. Neste sentido, para
hooks, amar verdadeiramente é possuir consciência de gênero, raça e
classe! A partir deste lugar de consciência, quaisquer interações ou
92 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

arranjos, incluindo o casamento (seja a definição que for dada para


casamento), se estruturam a partir de um outro lugar.
Em O amor como prática da liberdade, hooks nos diz:

Uma ética do amor requer trabalho em nome dos outros. Isso facilita uma
“renovação do espírito” e nos conduz a “viver em comunidade”, no sentido
de que os outros estão conosco na luta pela mudança. Esta ética do amor é
uma forma de garantir que nossas intenções sejam puras: Sem amor, nossos
esforços para libertarmos a nossa comunidade mundial da opressão e
exploração estão condenados. (hooks, 2006, p. 206 – tradução da autora)

REFERÊNCIAS

hooks, b. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Tradução Stephanie Borges. São Paulo:
Elefante, 2020.

_________. Salvation: Black People and Love. New York: Harper Perennial, 2001.

_________. Communion: The Female Search for Love. New York: Harper Perennial,
2003.

_________. Outlaw Culture. Resisting Representations. New York: Routledge, 2006.

NIENHUIS, N E. “Revolutionary Interdependence”: bell hooks’s Ethic of Love as Basis


for a Feminist Liberation Theology of the Neighbor. In: DAVIDSON, Maria del
Guadalupe and YANCY, George (eds.) Critical Perspectives on bell hooks. New York and
London: Routledge, 2009, p. 202-217.

WEST, C and hooks, b. Breaking Bread: Insurgent Black Intellectual Life. Boston: South
Press, 1991.
4
“CIMENTO DA SOCIEDADE”:
MÉTODO E METAFÍSICA NA TEORIA DO
CASAMENTO DE MARY WOLLSTONECRAFT
Katarina Ribeiro Peixoto

Em memória do meu amigo Tchico

INTRODUÇÃO

A função e o sentido do casamento são apresentados por Mary


Wollstonecraft (1759-1797), em “Reivindicação dos direitos da mulher”
(1792). Escrito em formato de reuniões de panfletos e publicado antes de
partir para a França revolucionária, com o propósito de acompanhar o
levante republicano contra o Antigo Regime, “Reivindicação dos direitos
da mulher” contém uma denúncia generalizada da desigualdade de
gênero e de seus efeitos deletérios, e a defesa de um projeto de reforma
das instituições e da sociedade. É nesse texto que a filósofa teoriza de
maneira consistente e fecunda sobre o casamento como instituição
central a ser transformada, e é também ao tratar do casamento que a
filósofa de fato opera com os conceitos de direitos e obrigações.
“Reivindicação dos direitos da mulher” tem “direitos” no título, mas é de
fato um livro sobre educação e sua argumentação se ergue sobre um
pressuposto metafísico, a partir e contra a teoria da liberdade de Jean-
Jacques Rousseau.
Para Wollstonecraft, a igualdade entre homens e mulheres é uma
igualdade de razão que compreende, e não exclui, a diversidade
biológica entre gêneros. Esse pressuposto é, no seu pensamento,
94 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

metafísico, e é também o que leva a filósofa a considerar essa


diversidade como meio, e não obstáculo, à fundação da liberdade civil.
Para ela, a igualdade de gênero é um ponto de partida natural
consistente em seu próprio estatuto racional de “grande esboço ideal da
natureza humana”, em contraste com a “natureza comum”: aquela da
vida social imersa na sensibilidade, nos afazeres cotidianos e na
autoridade estabelecida sem questionamento (Wollstonecraft 2016, p.
45). A natureza humana seria racional e igualmente distribuída entre
gêneros, e apartada da sensibilidade. É esta concepção elementar de
igualdade de razão que chamo de pressuposto metafísico: uma doutrina
do ser enquanto ser, que nada tem além de si mesma na ordem de
fundamentação: a natureza humana. As críticas à bíblia e o recurso
reiterado a um deus não desempenham papel relevante na
argumentação do livro, senão na recusa do expediente rousseauniano
de tratar a liberdade natural como apartada da vida social para sempre.
Mary Wollstonecraft, diferentemente de Rousseau, tem uma metafísica
– mesmo que minimalista; a sua concepção de casamento, entretanto,
não é fundacional nessa metafísica, mas derivada: a filósofa não é uma
defensora do casamento, mas uma teórica que reconhece, nessa
instituição, uma função categorial de sua defesa de transformação geral
da sociedade por meio da transformação da educação das crianças e das
mulheres. Assim é que, ao tomar o casamento como “cimento da
sociedade”, Wollstonecraft atribui à instituição um papel educacional e
normativo, desempenhado de maneira ampla e diversa, em
“Reivindicações dos direitos da mulher”: escola privada de educação
moral, núcleo de articulação conceitual entre o privado e o público,
núcleo de transformação das relações de gênero, substituto conceitual
Katarina Ribeiro Peixoto • 95

da soberania do direito natural, instituição formadora da vontade, mola


da revolução, que é por ele condicionada.
O estudo filosófico de “Reivindicação (1792)” é desafiador. Além de
ser um dos mais clássicos exemplos de injustiça epistêmica (Fricker
2007) na scholarship e na fixação do cânone filosófico moderno, trata-se
de um trabalho panfletário e irregular, por vezes errático. A articulação
do casamento à reforma da educação e à defesa da transformação da
sociedade faz sentido, assim, metodologicamente. Neste caminho, a
instituição do matrimônio não é tomada nem como um destino, nem
como horizonte normativo e ainda menos como algo recomendável. De
fato, a filósofa chega afirmar que, caso as mulheres venham a ser
educadas de maneira mais ordenada e consistente, poderiam não casar
para ter um sustento (Wollstonecraft 2016, p. 191), liberando-se, assim,
da “prostituição legalizada”. Essas mulheres, obtendo “posições
respeitáveis” na sociedade, poderiam tornar a virtude privada um
benefício público ao terem uma existência civil, casadas ou solteiras
(Wollstonecraft 2016, p. 192). Por que, então, podemos tomar
Wollstonecraft como uma filósofa do casamento? Este texto busca
oferecer uma resposta a essa questão, com o esclarecimento do diálogo
metodológico que a filósofa trava com e contra Rousseau. Este diálogo
teórico e político estrutura a argumentação do texto de “Reivindicação
dos Direitos da Mulher” onde a filósofa desenvolve uma teoria da
liberdade civil como independência, na qual a igualdade de gênero é
metafisicamente fundada e politicamente legitimada, por meio de uma
transformação da educação das crianças e mulheres. A introdução do
casamento como categoria filosófica, para Wollstonecraft, só faz
sentido se inserida nesse contexto de revoluções que limitaram, de
maneira paradigmática, o poder absoluto do soberano.
96 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

No nível conceitual, cabe esclarecer como essa noção de liberdade


civil como autonomia e independência é articulada e desenvolvida pela
filósofa. No nível da reflexão historiográfica, é preciso identificar o
sentido e o escopo da concepção de casamento em um projeto iluminista
como aquele defendido pela filósofa, sem buscar arregimentar a sua
teoria e incorrer em anacronismos. O trabalho acadêmico em
Wollstonecraft está em expansão, mas é ainda escasso, de maneira que,
por meio do esclarecimento de um tratamento categorial pela filósofa
se pretende dar um passo em direção à justiça epistêmica devida a essa
filósofa inglesa do iluminismo. Sob qualquer ponto de vista, Mary
Wollstonecraft levou uma vida não-alinhada ao paradigma da
dependência das mulheres em relação aos homens e ao patriarcado;
pagou um preço alto por isso, em uma vida atribulada e instável, e teve
a memória injustiçada por meio das mesmas debilidades da moralidade
claudicante do patriarcado; esses efeitos dos custos em vida para o seu
trabalho aparecem, às vezes, com um sentido de urgência vertiginoso
da escrita e de seu encadeamento argumentativo. Não é, portanto,
apenas o formato de reunião de panfletos que torna “Reivindicação dos
direitos da mulher” um texto a um só tempo direto, claro e difícil ao olhar
filosófico. A reunião de panfletos está intimamente conectada ao
pensamento de Jean-Jacques Rousseau (1717-1778) e ao tratado que o
filósofo genebrino dedica à educação Emílio: ou, da Educação (1762). Há,
entre os dois textos, como pretendo deixar claro abaixo, um irredutível
alinhamento de método, no modo como ambos os filósofos atribuem à
educação um papel fundacional para as suas teorias da liberdade civil. A
esse alinhamento, entretanto, ela opõe uma radical ruptura, que
aparece, mas não se exaure, no modo como ambos tratam as diferenças
de gênero na educação e no casamento. Ao tratar desses temas, o
Katarina Ribeiro Peixoto • 97

pensamento dela se apresenta de maneira privilegiada. Ambos,


Rousseau e Wollstonecraft, pensaram a liberdade como independência;
a diferença que Wollstonecraft interpõe, vale dizer, não decorre apenas
de uma discordância quantitativa sobre a totalidade ou não, da
humanidade (caso um gênero fosse o único a deter o privilégio da
independência) mas, sobretudo, no modo como a filósofa argumenta em
defesa da consistência do universalismo de sua teoria da liberdade como
independência: ela recusa o estatuto da vontade no pensamento
rousseauniano. O desafio filosófico do resgate do pensamento de
Wollstonecraft decorre também do contraste entre os documentos a
serem analisados: de um lado, o formato precário, fulgurante e
irregular, do texto da filósofa, e, de outro, a pletora sistemática de Jean-
Jacques Rousseau e da scholarship rousseauniana e iluminista que
apagou e silenciou Wollstonecraft por mais de um século e meio.
Mary Wollstonecraft é considerada a primeira feminista a escrever
na língua inglesa. Por feminista aqui quero dizer isto: defensora da
igualdade de direitos entre os gêneros, a partir, e não
independentemente, das diferenças biologicamente atreladas a cada
individualidade. Esta posição da filósofa não a torna, como veremos,
uma feminista facilmente identificável para o olhar contemporâneo, no
qual temos uma teoria feminista consolidada. Minha preocupação
teórica neste estudo é de natureza historiográfica e conceitual. Aqui, o
que importa é capturar, por meio da análise do legado documental da
filósofa no texto mencionado, o seu pensamento sobre o casamento
como categoria filosófica. Dada a assimetria que condenou
injustamente o legado das interpretações e estudos sobre
Wollstonecraft, há alguns expedientes que merecem ser observados na
recuperação de seu trabalho filosófico. Sandrine Bergès sugere, para
98 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

tanto, o que chama de “abordagem bifocal”, na qual duas cláusulas devem


ser observadas: 1) precisamos considerar que “a autora fala para nós”; 2)
e “é relevante, também, na medida em que falou para outros” (Bergès 2013,
p. 7). Se por um lado está claro que a autora fala para nós, visto que se
trata de uma filósofa e a filosofia só existe no presente, a tarefa
interpretativa consiste em capturar o sentido e a relevância do que a
autora “fala para nós”. A cláusula 2 é, assim, o requisito para capturar,
precisamente, o domínio conceitual do que ela “fala para nós”. Esta
abordagem bifocal permite-nos capturar ordens historiográficas
distintas, a que vou aqui chamar de “história externa”, “história
interna” e “história conceitual”; embora esse tipo de divisão tenha uma
inspiração hegeliana, não pretendo aderir, no seu uso, à crença
imodesta em uma teleologia na história. Considera-se nessa paisagem
de narrativas, a história externa a série de eventos que configuram o
contexto em que o documento foi produzido e sua autoria: fatos,
elementos geográficos, políticos, históricos, sociais, em um universo de
acontecimentos mais ou menos contingentes. História interna, por outro
lado, conteria um ou variados repertórios de argumentos,
interpretações, diálogos conceituais e formação de autorias e escolas
filosóficas. E história conceitual seria uma série mais “paquidérmica”:
trata-se do locus do tratamento do conceito enquanto tal. Nesta série é
que a fecundidade e o caráter filosófico do pensamento de
Wollstonecraft se revela em toda a sua extensão e singularidade.
Começarei o estudo situando “Reivindicação dos direitos da mulher”
em sua história externa, isto é, no contexto em que foi escrito. Em
seguida, apresentarei a história interna do diálogo que Wollstonecraft
trava, sobretudo, na sua leitura crítica de “Emílio”. Aí, espero deixar
claro que a crítica a Rousseau é precedida pelo alinhamento de método
Katarina Ribeiro Peixoto • 99

na tomada da educação como substituta metodológica do direito natural


no jusnaturalismo clássico. Na terceira parte, tratarei da ruptura com a
antropologia de Rousseau que a filósofa inglesa leva a cabo, em defesa
de uma reforma educacional, da transformação nos direitos e deveres
na sociedade, a partir da transformação do casamento. Concluo
apresentando as razões por que e como o casamento desempenha um
papel condicionante da revolução, no cerne do projeto iluminista.

1 – A “HISTÓRIA EXTERNA” DE “REIVINDICAÇÃO DOS DIREITOS DA


MULHER”

A história de “Reivindicação dos Direitos da Mulher” está conectada


à redação de “Reivindicação dos Direitos do Homem”, que Wollstonecraft
publicou dois anos antes, em 1790. De fato, as circunstâncias da redação
desse texto envolvem os efeitos da Revolução Gloriosa, de 1688 na
Inglaterra, da independência dos Estados Unidos da América e da
Revolução Francesa que estava em marcha; são cem anos de conflitos
religiosos, teológicos e políticos que ecoaram na formação intelectual
da filósofa. Do final do Século XVII ao final do XVIII, o poder absoluto do
monarca foi posto em xeque tanto no Continente como, em 1688, na
deposição de Jaime II, na Inglaterra. A conexão desses eventos à vida e
formação da filósofa decorre sobretudo do encontro dela com Richard
Price (1723-1791), reverendo galês da Igreja dissidente da Inglaterra e
dirigente republicano, abolicionista, a que a escritora e filósofa foi
apresentada em 1784, por uma amiga. Mary Wollstonecraft, até então,
tinha uma experiência pedagógica como tutora e dirigente de escola
(naquele momento, recentemente fechada, o que a levou a precisar de
recursos). Ela então publica em 1786 um texto sobre educação moral
“Thoughts on the Education of Daughters”, pela editora de Joseph Johnson
100 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

(a quem Price a apresentou), editor e figura proeminente dentre os


dissidentes, que a contrata para ser resenhista, tradutora e repórter na
prestigiosa Analytic Review, de Londres. Em 1788, a filósofa publica o
romance “Mary: A Fiction”. Em ambos os textos, ela já mostra sua
preocupação com a desigualdade e a injustiça que marcariam o processo
de educação das meninas. No romance, considerado autobiográfico,
Wollstonecraft refere-se explicitamente em “Emílio”, sobretudo no
Livro V, de Rousseau, e compara a sua personagem principal, “Mary”, a
“Emílio”, e não a Sofia. Nesses textos o papel da educação no estado das
instituições é enfatizado; entretanto, é o “affair” Burke x Price que leva
a filósofa a uma elaboração ulterior de suas concepções de liberdade
como independência.
Em novembro de 1789, em resposta ao estado das coisas na França
revolucionária, Price publica um texto que suscita um debate histórico.
E ele o faz por meio de uma saudação aos 101 anos da Revolução Gloriosa,
em “A Discourse on the Love of our Country”. Como anota Ostrensky,

“o sermão endossa a tese de que o rei não passa do primeiro funcionário do


reino e condensa alguns dos slogans que os dissidentes protestantes haviam
defendido desde o século XVII: o repúdio ao papismo e à idolatria; a
distinção entre a pessoa e o cargo do governante; a afirmação da origem
popular do poder civil; a defesa do direito de resistência. Reconhecendo nas
obras de John Milton, Algernon Sidney e John Locke, entre outros, as
origens intelectuais da Revolução Gloriosa, Price sugere que os conflitos na
Inglaterra ao longo do século XVII resultaram em vitórias importantes
contra a tirania, o papismo e o despotismo” (Ostrensky 2022, p. 137).

Price exorta o levante revolucionário em curso na França a fim de


cobrar a completude prática, na distribuição de direitos, do processo de
limitação do poder absoluto. E o faz em celebração ao legado da
Katarina Ribeiro Peixoto • 101

Revolução Gloriosa; o reverendo defende, sobretudo no final do texto,


que a revolução em curso na França tenha efeitos em toda parte. Para
Ostrensky, essa exortação teria sido o que provocou Edmund Burke
(1729-1797) a uma resposta virulenta, salientando e reivindicando as
diferenças entre ambos os levantes (o de 1688 na Inglaterra e a
Revolução Francesa que estava em curso) e alertando para os perigos do
que estava ocorrendo na França, naquele momento. Apesar de ter
expressado anteriormente simpatia pela independência americana,
Burke publica “Reflections on the Revolution in France”, denunciando
“instrumentos desprezíveis” (Burke 1999, p. 10) usados pelos
revolucionários franceses, os quais estariam relacionados ao confisco
de propriedade rural eclesiástica e, também, de maneira mais ampla, ao
flanco aberto para criticar os privilégios da distribuição do direito
hereditário sobre a propriedade fundiária (o birthright, tematizado no
artigo de Ostrensky). Para Wollstonecraft, a desigualdade desse
instituto legal estaria na base da opressão sobre as mulheres.
Há dois aspectos que tornam problemáticos o texto de Burke: o
primeiro é o tom de alerta contra as brutalidades (inclusive na pequena
moralidade, isto é, nos hábitos e modos da civilização ou no universo da
sensibilidade social e afetiva) que estariam em curso na França, com a
derrubada da aristocracia; o segundo é a virulência com que ataca Price.
O primeiro aspecto pode ser lido, como sugere Ostrensky, como uma
disputa de interpretações sobre o sentido e o escopo da Revolução
Gloriosa: para Burke, a preservação do sistema de propriedade fundiária
na Inglaterra teria assegurado unidade nacional e estabilidade
econômica, ao passo que, para Price, haveria ainda um longo caminho
pela frente, no que concerne à distribuição de direitos. Esse conflito de
interpretações políticas teria embalado uma das primeiras respostas a
102 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

Burke, que foi a de Wollstonecraft, com a redação de “Reivindicação dos


direitos do homem”, em 1790.
A filósofa não foi a única a responder a Burke, mas foi uma das
primeiras. Para Ostrensky,

“Wollstonecraft procura mostrar que Price não é o incendiário


irresponsável que Burke descreve, embora ela reconheça que no sermão o
reverendo se exceda em zelo religioso e utopismo. Mas Wollstonecraft não
está preocupada em defender todas as posições de Price. Ela parece
concordar com Burke que a Revolução Gloriosa não é a antecessora da
Revolução Francesa, não havendo entre os dois eventos uma linha de
continuidade, como supôs Price. E, apesar de reconhecer os avanços que a
Revolução Francesa promoveu para livrar o mundo do obscurantismo,
Wollstonecraft tem dúvidas a respeito da sinceridade dos revolucionários,
notando um certo descompasso entre seus ideais professos e suas práticas
(Ibid., p. 64), desconfiança que se transformará em certeza em A Vindication
of the Rights of Woman”(Ostrensky 2022, p. 142).

Entre a resposta a Burke e a publicação de “Reivindicação” de 1792,


Wollstonecraft já era uma profissional contratada e uma frequentadora
do círculo em torno de Joseph Johnson. Como observa Bergès,

“Wollstonecraft já estava bastante consciente, tanto como mulher e como


escritora, da extensão do padrão assimétrico que regulava as relações entre
os sexos. Como alguém que não tinha medo de falar o que pensava, ela pôde
bem ter discutido suas ideias a respeito com seus colegas da Analytical
Review. Em particular, quando Letters on Education, de Catharine Macaulay,
foi publicado, em 1790, Wollstonecraft ficou muito impressionada pela
abordagem sensível e radical da questão da mulher, da historiadora. Neste
momento, alguém, provavelmente Johnson, pode bem ter lhe sugerido que
ela escrevesse a segunda ‘Reivindicação’” (Bergès 2013, p.9).

Este desenrolar dos fatos é um tanto especulativo, pelo menos até


agora. O que se sabe é que ela publicou, ao longo de 1791, uma série de
Katarina Ribeiro Peixoto • 103

panfletos que vieram a ser reunidos como capítulos de “Reivindicação


dos direitos da mulher”. Como também registra Bergès, após a publicação
da primeira edição da segunda “Reivindicação”, Wollstonecraft escreveu
a uma amiga dizendo-se insatisfeita com o resultado, o que sugeriria
que, em vez de falsa modéstia, a filósofa apenas expressara o quanto
escrevia e trabalhava em condições relativamente vulneráveis, às
pressas, sem conforto material e tempo disponível (Bergès 2013, pp.10-
11). A influência de Macaulay é indiscutível: no Capítulo 5 de
“Reivindicação dos direitos da mulher”, onde Wollstonecraft menciona
que, quando pensou pela primeira vez em escrever o texto, havia
contado com a aprovação de Catharine Macaulay (1731-1791)
(Wollstonecraft 2016, p. 138). E, no Capítulo 8, quando se refere à
dependência das mulheres a reputações sociais de modos carentes de
estatura moral, Wollstonecraft recorre a Macaulay, para defender que a
mente e a educação tornam as mulheres, apesar de todas as
desvantagens, menos suscetíveis à corrupção (Wollstonecraft 2016, p.
178).
“Reivindicação” veio a lume em panfletos, ao longo do ano de 1791,
antes de ser publicado como livro. O texto tem uma estrutura de
aparência fragmentada e fulgurante, na forma de discursos, como se
fossem sermões, nem sempre de consistência facilmente detectável.
Antes de embarcar para a França a fim de acompanhar e escrever a
respeito dos eventos que tomavam cada vez mais vulto, no continente,
Wollstonecraft o submeteu à publicação. Assim, a história externa de
“Reivindicação dos direitos da mulher” evidencia o contexto em que esse
texto é produzido e o conjunto de problemas sociais e políticos, bem
como o momento histórico, que o texto de alguma maneira reflete e
endereça, neste caso, especificamente a propósito da assimetria do
104 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

desenvolvimento da educação das mulheres. Para retomar a


mencionada “abordagem bifocal” sugerida por Bergès, essa história
visaria a esclarecer para qual universo político e social Wollstonecraft
se dirigiu na redação da segunda “Reivindicação”: as mulheres de classe
média, a quem dirige explicitamente “particular atenção”
(Wollstonecraft 2016, p. 27), porque seria o estrato social mais “natural”.
Enquanto as mulheres da elite estariam ou condenadas à indolência do
patriarcalismo hereditário, visto que seriam criadas para se tornarem
vaidosas e desamparadas, com uma mente sem desenvolvimento,
voltada ao divertimento e à futilidade. O que Wollstonecraft deseja é

“persuadir as mulheres a se esforçarem para adquirir força tanto da mente


quanto do corpo e convencê-las de que as frases suaves, a suscetibilidade do
coração, a delicadeza dos sentimentos e o gosto refinado são quase
sinônimos de epítetos de fraqueza, e de que os seres que são apenas objeto
de piedade e daquela espécie de amor (…) logo se tornarão alvo de desprezo
( Wollstonecraft 2016, p. 27).

Esse ataque à doutrina da sensibilidade, dos modos “inaturais” dos


preconceitos que a filósofa busca combater em toda parte, já está
presente na resposta a Burke. O conceito de “sensibilidade” pertence
bastante ao século XVIII (Bergès 2013, p. 9): trata-se de regras de
comportamento e bons modos na vida privada e no trato social, voltados
sobretudo a meninas e mulheres das classes médias, camadas sociais
que começavam a emergir, formando núcleos urbanos de trabalhadores
sem propriedade fundiária e sem direito de nascença a grandes
heranças. Wollstonecraft é uma crítica feroz dessa doutrina e dos
efeitos dela que reconhece na educação das meninas. Ao longo de todo
o texto, o ataque à coqueteria, aos modos vazios de moralidade e de
entendimento e à dependência incentivada por essa doutrina são
Katarina Ribeiro Peixoto • 105

atacados sem tréguas, pela filósofa. Aí estaria a fonte de vícios que


minariam o desenvolvimento mental e, por isso, da virtude, nas
mulheres, na maternidade e nas famílias, na medida que esta seria uma
doutrina de escravidão moral e de dependência das mulheres, as quais
seriam, ao seguir os passos dessa mentalidade, incapazes de ficarem sós.
A crítica de Wollstonecraft se baseia no caráter antinatural e opressor
desse tipo de doutrina, que levariam as mulheres a serem
“enfraquecidas” (Wollstonecraft 2016, p. 87) ao ponto de restarem com
mentes em estado não sadio (Wollstonecraft 2016, p. 25).
O papel da desigualdade na distribuição da propriedade fundiária,
no domínio dos direitos, lastrearia a expectativa ideológica da doutrina
da “sensibilidade” como moral. Embora um estudo detido comparando
as duas “Reivindicações” não esteja ainda, salvo melhor juízo,
estabelecido, espero deixar claro que, ao menos em “Reivindicação dos
direitos da mulher”, esta teoria da propriedade privada e de seus efeitos
não fornece a explicação exaustiva para fundamentar a defesa da
igualdade entre gêneros, nem para denunciar os fundamentos e os
efeitos dessa desigualdade. De fato, mesmo quando critica a
dependência moral dos herdeiros e os efeitos deletérios do direito de
herança, a filósofa o faz, na segunda “Reivindicação”, quando trata da
educação e da igualdade a partir de um pressuposto metafísico, com o
qual contrasta a sua teoria da liberdade à de Rousseau. Então, mesmo
que o sistema de direitos da propriedade fundiária lastreie os
argumentos em defesa da igualdade na primeira “Reivindicação”, a
função desse diagnóstico não parece idêntica na segunda.
106 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

2 – UMA “HISTÓRIA INTERNA” DE “REIVINDICAÇÃO DOS DIREITOS DA


MULHER”

Que a segunda “Reivindicação” pode ser lida como uma


continuidade ou, ainda, como uma extensão da primeira
“Reivindicação”, parece intuitivo e consistente. O caráter do texto e a
estrutura do segundo livro, entretanto, contêm reflexões ulteriores e
uma teoria da liberdade que encontra na defesa da igualdade de gênero
um fundamento próprio e mais desenvolvido do que na primeira
“Reivindicação”. A própria Wollstonecraft parece afirmar isso, na nota
que precede a introdução, na qual ela comenta que pretendia ter escrito
a obra em três partes, e que um dos volumes seria dedicado
inteiramente aos “deveres peculiares” (Wollstonecraft 2016, p. 23) das
mulheres. O projeto não se concretizou e o que veio a lume foi o que
seria a primeira parte. Ainda assim pode-se notar que o núcleo
conceitual do texto se fundamenta em uma metafísica e não em uma
discussão sobre propriedade e ideologia da propriedade. É o padrão
eterno da virtude que baseia as considerações sobre a igualdade de razão
entre os sexos, pois o caráter sexual não deve destruir o humano
(Wollstonecraft 2016, p.48 e p.78). No segundo “Reivindicação”,
Wollstonecraft dialoga majoritariamente com Rousseau e seu tratado
sobre a educação, “Émilio”, com e contra o qual desenvolve o seu
argumento e o contrasta a sua concepção de liberdade como
independência com aquela do filósofo genebrino.
A crítica de Wollstonecraft a Rousseau é mais nuançada do que o
traço fulgurante e panfletário dos ataques que no texto podem dar a ver.
Ela preserva, do pensamento do filósofo, o reconhecimento do papel
fundacional da educação para a liberdade civil como legado da ruptura
do genebrino com a tradição jusnaturalista clássica. A essa preservação
Katarina Ribeiro Peixoto • 107

se segue, entretanto, uma ruptura radical com a antropologia de


Rousseau e com os efeitos dela na educação, e em uma teoria da
liberdade como independência de todos os gêneros. Desse alinhamento
de método e dessa ruptura de fundamento se ergue a teoria do
casamento de Mary Wollstonecraft. Para entender como ela procede, é
preciso, primeiro, então, compreender a natureza sistemática do
projeto de educação de Rousseau; assim, a extensão do papel concedido
à educação é esclarecida tanto para ele como para Wollstonecraft.
A argumentação da filósofa segue metodologicamente a de
Rousseau, quanto ao papel da educação na fundação da liberdade civil.
Uma leitura historicamente informada de “Reivindicação dos direitos da
mulher” pode perceber como a operação levada a cabo pelo filósofo em
relação à tradição jusnaturalista clássica, substituindo uma teoria do
direito natural por um projeto educacional, está presente no texto da
feminista. Isso também ajuda a entender por que, ao constatar a
parcialidade do “conhecimento da história” já na introdução
(Wollstonecraft 2016, p. 25) do segundo “Reivindicação”, a autora
recorra, não a uma hipótese analítica, mas a “livros escritos sobre a
educação”, à observação dos pais e à administração das escolas. Esse é
um movimento tipicamente rousseauniano.
Para Rousseau, a educação moral desempenha o papel
metodológico que, na tradição jusnaturalista clássica, configurou a
hipótese analítica do direito natural em um estado de natureza. O
filósofo rompe com essa tradição ao introduzir, na função de uma
metafísica de um direito natural, a educação moral no processo de
formação das crianças dentro das famílias. “Emílio” cumpre, no
pensamento de Rousseau, a função sistemática de fornecer as condições
para a fundamentação normativa da liberdade civil, com a elaboração
108 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

de uma teoria da infância em um processo de aprendizado da obediência


e internalização de regras morais, no seio familiar. Esse aprendizado,
por sua vez, teria como pressuposto uma antropologia moral; é com o
filósofo genebrino que se origina uma teoria política moderna da
representação fundamentada na vontade humana, sem nenhum
pressuposto metafísico ou teológico. E Mary Wollstonecraft parece
muito consciente do alcance do pensamento de Rousseau que, não por
acaso, é o seu interlocutor prioritário. É preciso, por isso, entender o
papel metodológico de “Emílio” e o sentido sistematizante do
pensamento de Rousseau para entender o alcance da crítica de
Wollstonecraft, a qual não é, como veremos, uma dentre outras críticas
a uma desigualdade de gênero, mas uma ruptura com uma antropologia
moralista, derivada do diagnóstico de um problema de método.
Como observa Goldschmidt, o próprio do estado de natureza,
segundo Rousseau, é precisamente ser um estado natural, “de
permanência prolongada indefinidamente”. Não há na natureza nada que
enseje ou cause a sua “superação” em um estado civil, ou que acarrete
um imperativo de “sair dele”, a título algum. Para Rousseau, o estado de
natureza não é nem pode ser causa de um estado civil, de maneira que
buscar nesse estado um paradigma para a vida civil é incorrer em uma
petição de princípio: não há um estatuto relativo na natureza que
autorize a uma recursividade na fundamentação da vida civil. Em vez da
pressuposição de uma conclusão, Rousseau opta por partir das coisas
humanas, das suas atividades racionais, da vida institucional e social e
das ciências. É por isso que, como anota Goldschmidt, “são as ciências e
a informação novas, das quais já vimos os traços em Barbeyrac e
Montesquieu, que tomarão o lugar da análise jurídica” (Goldschmidt 1974,
p. 215). O estado de natureza na tradição jusnaturalista clássica não
Katarina Ribeiro Peixoto • 109

passa, para Rousseau, de um pressuposto para uma conclusão


antecipada, portanto, de um artifício unicamente retórico, sem base
lógica e racional. Em vez disso, ele propõe que a natureza humana seja
estudada como uma antropologia; e à filosofia caberia o papel da análise
dos dados da ciência, da antropologia e da economia. Não há, para o
filósofo genebrino, assim, nada além ou aquém das relações humanas
na natureza e na história e não cabe à filosofia buscar fora dos próprios
dados da razão e da vontade a fundamentação da liberdade.
Em vez de construir uma hipótese para fundamentar a liberdade
civil por meio de um contrato, então, Rousseau redigiu um tratado sobre
a educação. Com “Emílio” ele pretende ofertar, em vez de uma descrição
de um estado hipotético, um processo de transformação entre
indivíduos, dentro de uma instituição, a família; em vez de postular um
contrato, Rousseau defende a preparação para a liberdade civil, aquela
requerida para pactuar segundo uma vontade geral. É então que
constrói um projeto de formar a criança para exercer a cidadania em
uma sociedade contratada por sua própria vontade, suposta como
realidade atual (que “Emílio” tenha sido redigido enquanto Rousseau
trabalhava no “Contrato Social” parece consistente). Neste texto, como
afirma David Gauthier, Rousseau constrói o argumento de “Emílio” em
torno de um “padrão de transferência” (Gauthier 2006, p. 50-51) do
vínculo de dependência entre a criança e o tutor, por meio do qual a
primeira passa a aprender a internalizar normas de convívio e a educar-
se para a vida civil, na qual deverá ser capaz de pactuar um sistema de
governo. Para Gauthier, esse padrão conduz antes as “correntes” que ao
fundamento normativo da legitimação do contrato social – um
diagnóstico que se torna claro quando lemos Wollstonecraft, sobretudo,
com a sua crítica ao pressuposto antropológico moralizante do filósofo.
110 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

O fato de que essas “correntes” são amarradas e estabelecidas, se assim


se pode dizer, em um ambiente familiar e privado, no qual a assimetria
entre os gêneros é determinante, ajuda a entender a ameaça da extensão
do projeto de “Emílio” detectado pela filósofa.
O alcance da crítica de Wollstonecraft a Rousseau segue um
percurso oblíquo tributado ao papel metodológico que a educação
desempenha no pensamento dele. Nesse caminho, um conceito serve
para esclarecer o fundamento da ruptura que a filósofa leva a cabo,
contra Rousseau. No capítulo I de “Reivindicação dos direitos das
mulheres”, a filósofa afirma que, “no estado atual da sociedade, parece
necessário remontar aos princípios básicos em busca das verdades mais
simples e disputar cada palmo de espaço com o preconceito existente”
(Wollstonecraft 2016, p. 25); e, um pouco adiante, respondendo a
questões retóricas que introduzem o primeiro panfleto, a filósofa
afirma:

“a perfeição de nossa natureza e a capacidade de felicidade devem ser


estimadas pelo grau de razão, virtude e conhecimento que distingue o
indivíduo e direciona as leis que regem a sociedade. É também inegável, se
observarmos a humanidade em seu conjunto, que o conhecimento e a
virtude decorrem naturalmente do exercício da razão” (Wollstonecraft
2016, p. 25).

O conceito-chave com o qual a filósofa estava familiarizada é o de


“perfectibilidade”, ao qual ela concede um uso diferente daquele de
Rousseau. É isso o que nos conduz à antropologia moral, o alvo da
ruptura que Wollstonecraft promove com o pensamento do filósofo
genebrino. Para Rousseau, não há tal coisa como uma “perfeição
natural” disponível na vida social; de fato, o contrário ocorre, como ele
afirma, a propósito desse ponto de partida:
Katarina Ribeiro Peixoto • 111

“O homem nasce livre e, em toda parte, ele está acorrentado. Tanto se crê
mestre dos outros, que não deixa de ser ainda mais escravo que eles. Como
se dá essa mudança? Eu o ignoro. O que a pode tornar legítima? Acredito
que posso resolver essa questão” (Rousseau 1819, p. 666).

O processo de mudança que leva os homens da liberdade natural


para o “acorrentamento” é, para o filósofo, aquele da sociabilidade. No
processo de associação por interesses biológicos e naturais, que
levariam a um sistema de trocas, a uma economia agrária e rudimentar,
a moralidade restaria precária e ameaçada de colapso. Essa seria a
civilização que teria arruinado a natureza humana e sua liberdade
natural, pensa Rousseau, recorrendo estruturalmente a uma espécie de
“narrativa da queda” com a qual diagnostica que o custo da sociabilidade
é a perda da liberdade natural e por isso, a liberdade precisaria ser
reconquistada (este é também o cerne da interpretação de Gauthier
sobre a teoria política de Rousseau) em termos morais e políticos,
apenas. E aí o conceito de perfectibilidade, tal como usado por Rousseau,
é definidor do seu programa filosófico (Goldschmidt 1983, p. 287): trata-
se de capacidade de aperfeiçoamento. Agora, aperfeiçoamento de quê?
Enquanto Wollstonecraft afirma que há uma perfeição na natureza
humana, Rousseau ergue uma teoria social, política e moral a partir de
um diagnóstico de que os homens e as mulheres seriam naturalmente
imperfeitos, porque a harmonia com a natureza foi perdida no processo
civilizacional. A natureza humana, para o filósofo, não é perfeita, mas
“boa”; assim, a marca antropológica não é a da perfeição, mas a da
“bondade”.
Em vez de um conceito metafísico, que designa uma certa ideia de
completude, Rousseau parte de um conceito moral: os homens seriam
naturalmente bons e a vida social corrompera essa bondade. Sobre esse
112 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

constructo se estrutura o reconhecimento de que o fundamento da vida


civil é a vontade humana enquanto tal, como uma realidade moral
irredutível que serviria de ponto de partida, portanto, que preserva e
depende de si mesma e de nada além ou aquém de seu próprio estatuto
racional. Uma consequência lógica desse fundamento normativo é a sua
irredutível atualidade: a vontade derivada dessa bondade natural
sempre será a vontade atual. Vale dizer que, mesmo quando
Wollstonecraft (2016, p. 34) diz que Rousseau se esforçara para dizer que
tudo “estava certo”, ela se refere à teorização de uma vontade apartada,
não ao que ela pensa e interpreta. O preço a pagar pelo abandono da
recursividade em um direito natural é o da construção de um conceito
peculiar de vontade. Ora, esse resultado contém o núcleo do ataque de
Wollstonecraft. A postulação de uma vontade atual naturalmente boa é
inconsistente com o projeto educacional apresentado em “Emílio”.
Diz a filósofa a propósito do filósofo genebrino:

“Iludido por seu respeito à bondade de deus, que certamente deu vida
apenas para transmitir a felicidade - pois qual homem de bom senso e
sentimento duvidaria disso? - considera o mal positivo e obra do homem,
sem levar em conta que exalta um atributo em detrimento de outro,
igualmente necessário à perfeição divina”. (Wollstonecraft 2016, p. 33)

E prossegue, conectando o pensamento de Rousseau a uma


“hipótese falsa” em favor de argumentos “infundados”.

“Porque afirmar que um estado de natureza é preferível à civilização em


toda a sua possível perfeição é, em outras palavras, pôr em dúvida a
sabedoria suprema; e a exclamação paradoxal de que Deus fez todas as
coisas certas e de que o erro foi introduzido pela criatura que ele criou,
sabendo o que fazia, é tão pouco filosófica quanto ímpia” (Wollstonecraft,
ibid).
Katarina Ribeiro Peixoto • 113

Os usos do conceito de perfectibilidade de Rousseau e de


Wollstonecraft são fundamentais para compreender o alcance da
argumentação da filósofa. Para o filósofo, o aperfeiçoamento está a
serviço da busca da liberdade humana que precisa ser reconquistada, já
que a liberdade natural foi perdida no processo civilizacional; essa
liberdade, por sua vez, depende da atualidade da vontade que é
naturalmente boa. Para a filósofa, diferentemente, o aperfeiçoamento
tem um outro ponto de partida, por isso, não contém marca moral
prioritária: trata-se de um desenvolvimento do entendimento humano,
isto é, da razão, definida como “o poder de discernir a
verdade”(Wollstonecraft 2016, p. 78), a fim de participarmos de uma
porção mais divina da felicidade na perfeição de deus (Wollstonecraft,
2016, p. 34). Para ela, a distribuição da razão é natural em toda
humanidade, e o caráter artificial da formulação de Rousseau aparece
no modo como essa antropologia da bondade é combinada com uma
assimetria brutal entre meninos e meninas e entre homens e mulheres,
lá onde, no sistema do genebrino, a educação moral se instala: o Livro V
de “Emílio”. Ao artificializar a vontade, apartando-a do tempo e da
realidade suscetível de transformação pela educação moral, Rousseau
teria confinado as mulheres a um paradigma de educação moral
inatural. A crítica da filósofa inglesa, portanto, dirige-se a um ponto de
partida normativo incapaz de transformar a sociedade na medida em
que toma a vontade atual como suficiente.
Ora, é precisamente a estrutura volitiva que “Reivindicação dos
direitos da mulher” visa a transformar. E é por meio de um argumento
metafísico, porém não jusnaturalista, que Wollstonecraft critica
Rousseau. A sua argumentação é oblíqua, porque, ao tempo que
corrobora a substituição do estado de natureza por uma educação
114 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

moral, como ponto de partida para o estado civil, recusa a tese com a
qual Rousseau rompe com a tradição, ao não aceitar o paradigma
antropológico da bondade natural que acarretaria uma irredutibilidade
normativa da vontade atual. A crítica de Wollstonecraft se torna clara,
filosoficamente, não pela estrutura panfletária de seus sermões morais,
mas pela defesa consistente, preservada em todos os capítulos do texto,
de que a vontade atual (tal como apresentada em seus efeitos, dentre os
quais a doutrina da sensibilidade e sua educação moral deletéria para as
meninas, crianças e famílias) não pode ser o paradigma para o papel
fundacional da educação. Por que? Porque a vontade atual, tal como
Rousseau a trata, desumaniza e desnaturaliza a mulher. É este o efeito
da teoria da vontade de Rousseau que ocupa o ponto central da crítica
de Wollstonecraft, em todo o texto. Já ao fim do primeiro capítulo de
“Reivindicação dos direitos da mulher”, podemos ler:

“Caso Rousseau tivesse dado um passo a mais na investigação, ou se seu


olhar tivesse penetrado a atmosfera nebulosa que ele quase desdenhou
respirar, sua mente ativa teria se lançado a contemplar a perfeição do
homem no estabelecimento da verdadeira civilização, em vez de pegar seu
feroz voo de volta para a noite da ignorância sensual”. (Wollstonecraft
2016, p. 45 - minhas ênfases)

Aqui, as implicações de Rousseau encontram o núcleo da objeção


de Wollstonecraft. A “ignorância sensual” e o “voo de volta” são
referências claras e diretas ao projeto educacional de “Emílio”. A
“ignorância sensual” é o destino das mulheres educadas desde a infância
a dependerem dos sentidos e das opiniões dos outros, dos constructos
artificiais da “sensibilidade” nos modos, que as enfraquece e torna
incapazes de juízo. Wollstonecraft enfrenta a doutrina da sensibilidade
em todo o texto, de variadas maneiras, atribuindo o sensualismo à
Katarina Ribeiro Peixoto • 115

ignorância, ao estado de miséria moral das mulheres e, por extensão,


também da sociedade. Trata-se de um “erro”, o “erro sensual”, o qual
teria erigido

“o falso sistema dos modos femininos, que desposa todo o sexo de sua
dignidade e classifica a sua beleza e opacidade como as flores sorridentes
que apenas adornam a terra. (…). Assim, o entendimento, estritamente
falando, tem sido negado à mulher, sublimado em perspicácia e astúcia para
as coisas da vida” (Wollstonecraft 2016. pp. 45-6)

A doutrina da sensibilidade acarreta a degradação moral e material


das mulheres, porque se baseia na defesa da permanência delas em um
estado de ignorância e infantilidade. Esse estado não tem efeitos apenas
para um gênero, mas comprometeria o progresso de toda a sociedade,
na medida em que compromete a educação das crianças, porque as mães
ignorantes e tolas não podem educar crianças, nem meninas, nem
meninos, para a independência – isto é, para a liberdade civil. A
ignorância a que a doutrina da sensibilidade teria condenado as
mulheres estabelece uma assimetria no processo de educação moral
desde a infância, quando meninos e meninas seriam educados de
maneira radicalmente distinta. Essa assimetria condenaria as meninas
a se tornarem adultas na infância (quando são preparadas
exclusivamente para casar) e infantis na vida adulta (quando, uma vez
casadas, e como seres dependentes dos maridos, seguem agindo como
se não tivessem podido se desenvolver e por isso seriam infantis,
capazes apenas de “procriar tolos”, não podendo ser boas mães nem
boas esposas – mencionarei essa passagem a seguir).
Diz a filósofa:
116 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

“Rousseau declara que uma mulher não deveria, nem por um momento,
sentir-se independente, que ela deveria ser governada pelo temor de
exercitar sua astúcia natural e feita uma escrava coquete, a fim de tornar-
se um objeto de desejo mais sedutor, uma companhia mais doce para o
homem, quando este quiser relaxar. Ele leva ainda mais longe o argumento,
que alega extrair dos indícios da natureza e insinua que verdade e força
moral, pedras angulares de toda virtude humana, deveriam ser cultivadas
com certas restrições, porque, no que diz respeito ao caráter feminino, a
obediência é a grande lição a ser inculcada com extremo rigor”
(Wollstonecraft 2016, p. 47).

A crítica à ignorância sensual é subsidiária da crítica à doutrina da


sensibilidade e aparece, sem exceção, em todos os capítulos de
“Reivindicação”. Trata-se de uma crítica política em acepção própria: as
mulheres seriam inevitavelmente degradadas, se não forem educadas,
desde a infância, de maneira distinta da atual. O “erro sensual” levaria
filhas, esposas e mães a não passarem disso, quando deveriam, antes,
ser consideradas e tomadas como humanas, mulheres, capazes de
desenvolver e aperfeiçoar sua razão e desenvolver a autonomia moral
dos próprios juízos.
Agora, em que consiste o “voo de volta” de Rousseau? Esse ataque
de Wollstonecraft contém, tal como entendo, uma leitura metafísica do
sistema de Rousseau e das implicações morais da tomada de partido da
vontade atual como estrutura volitiva suficiente para lastrear o projeto
de reforma da educação. A acusação de um passo regressivo de Rousseau
se dirige ao fato de que, para o filósofo, a transformação da criança em
adulto capaz de responder e decidir por suas ações e governo ocorre no
seio da família e depende, necessariamente – lembremos que a vontade
atual é um ponto de partida moral irredutível – do aprendizado da
introjeção de regras na mente da criança. Se as regras a serem
Katarina Ribeiro Peixoto • 117

introjetadas são regras dessa vontade atual e se essa vontade atual


desnaturaliza as mulheres, então, o que Rousseau leva a cabo no seu
projeto de educação moral é um projeto de opressão, regressivo em
relação a sua própria teoria da liberdade. A questão que se põe para
Wollstonecraft não é que a educação moral está e deve estar na base da
fundamentação da ordem civil e política; sobre isso ambos, Rousseau e
Wollstonecraft, estão de acordo. O que a antropologia moral de
Rousseau acarreta, entretanto, é antes um uso opressivo e inconsistente
do processo educativo, na medida em que interdita, pela
irredutibilidade moral do ponto de partida, qualquer papel
transformador da educação, dado o estatuto artificial de uma “bondade
natural” irredutível e primitiva na ordem de fundamentação de regras
morais e educacionais. Que metade da população não seja educada é,
assim, tão grave como tomar essa parcialidade como consistente com
um projeto de liberdade civil. A criança que introjeta regras não é, para
Wollstonecraft, educada, em acepção própria, mas domada pelo
patriarcalismo hereditário.
Wollstonecraft critica, desde o início da segunda “Reivindicação”, a
escolha da família e do universo privado como o locus da educação
moral, no pensamento do filósofo genebrino. Em primeiro lugar, porque
ela se dirige a mulheres das classes médias, as quais teriam, no
casamento, uma saída emancipatória na medida em que estar nessa
instituição seria uma maneira de desenvolver, caso ela venha a exercitar
a sua razão, a independência moral. Em segundo lugar, porque, dados
os pressupostos metodológicos de Rousseau, no que concerne a uma
antropologia moralizante, essa concepção de vontade não apenas não
deve ser internalizada por criança alguma, como é deletéria para toda a
sociedade, na medida em que se trata de um processo educacional, com
118 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

efeitos em todos os níveis de sociabilidade. A filósofa defenderá, assim,


não apenas uma transformação nas famílias e por meio das famílias,
mas a existência de escolas públicas e mistas, alinhadas a uma
transformação que só pode ocorrer tanto na esfera privada, como na
pública. Daí que o enfrentamento ao projeto de educação moral de
Rousseau na “escola” do aprendizado moral que o filósofo reconhece: o
casamento e a vida doméstica. A educação moral, para a filósofa, precisa
ser universal desde a infância e as meninas devem ter acesso à mesma
educação, do treinamento físico ao mental, dos meninos. A defesa da
igualdade de razão (a qual, vale dizer, não tem sexo) entre os gêneros se
torna, nesse caminho, não um critério moral, mas um ponto de partida
a um só tempo neutro e racional, para uma transformação de todas as
instituições.
A crítica ao casamento, tal como Rousseau o apresenta, é aí,
paradigmática. É somente ao tratar do casamento que Wollstonecraft
menciona direitos, deveres e obrigações, de maneira que, se há alguma
dúvida quanto ao escopo da objeção dela à concepção rousseauniana de
vontade, o diagnóstico metodológico de que o casamento deve ser
tomado como um “estado de natureza” da vontade merece ser
considerado em sua consistência com a letra do texto. Não há menção
nem atribuição de direitos, deveres e obrigações, antes que o universo
privado das famílias e do casamento seja considerado como uma
instituição articulada ao projeto de transformação da sociedade. É por
isso que “Reivindicação dos direitos da mulher” pode e deve ser lido,
também, com este subtítulo em mente: que casam. Como ficará claro a
seguir, a articulação entre direitos, igualdade de gênero, obrigações e
reforma na educação depende, para a filósofa, da transformação das
relações entre os gêneros nas famílias e nos casamentos. A conexão
Katarina Ribeiro Peixoto • 119

entre o “erro sensual” e o caráter regressivo do “voo de volta” aparece,


não por acaso, na observação mordaz que a filósofa faz do recurso à
narrativa adâmica pelo filósofo genebrino:

“Rousseau foi mais consistente quando desejou deter o progresso da razão


em ambos os sexos, porque, se os homens provarem os frutos da árvore do
conhecimento, as mulheres poderão vir a prová-los; mas, do cultivo
imperfeito que recebe agora seu intelecto, elas obtêm apenas o
conhecimento do mal” (Wollstonecraft 2016, p. 40).

Esse “mal” é a educação para a dependência (Wollstonecraft 2016,


p. 71), que a filósofa denuncia do início ao fim de “Reivindicação” de 1792.
Trata-se da coqueteria, da inconstância, da plasticidade
comportamental, da frivolidade, da infantilização, que convertem a
mulher, quando adulta, na melhor das hipóteses, em uma “escrava
doméstica” (Wollstonecraft 2016, p.127), preocupada em reproduzir
modos sem moral e incapazes de exercerem a modéstia como virtude,
aprendendo a, no máximo, manter escrúpulos vãos, da própria
ignorância (Wollstonecraft 2016, p. 173). Os efeitos desse conhecimento
ou dessa restrição a uma educação racional são sociais e generalizantes,
visto que o caráter sexual não deveria destruir a natureza da razão, a
qual não tem sexo. Por isso, o projeto de Rousseau acarreta um fracasso
moral inevitável e uma potencial degradação generalizada, na medida
em que não endereça a sua reforma da educação à humanidade, mas a
um só gênero, comprometendo por isso o seu projeto político de
conquista da liberdade civil, como um todo, dada a sua parcialidade.
O “voo de volta” de Rousseau, entretanto, deve ser lido como a
identificação de uma inconsistência com um projeto de liberdade. O
modo como o filósofo compreende a imperfeição, ao substituí-la por
120 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

uma “bondade natural”, é o núcleo conceitual da crítica de


Wollstonecraft, e o diagnóstico de que o pensamento de Rousseau
desnaturaliza as mulheres, tornando-as reféns de uma “fragilidade”
artificial e servil”, que as compromete desde a infância – ao educar
meninos e meninas de maneira assimétrica - inviabiliza a efetividade
da liberdade civil. Tudo se passa como se, no projeto de liberdade como
independência, de Rousseau, uma inconsistência comprometesse todo
o sistema, na medida em que se trata de uma teoria para a liberdade de
um gênero ser formado moralmente por meio do alijamento, da
opressão, do abuso e da desnaturalização da própria racionalidade,
indiretamente atacada, ao se degradar metade da humanidade. Quando
Wollstonecraft critica a assimetria entre os gêneros, em “Emílio”, ela
não está fazendo uma denúncia política entre outras, portanto, mas
procedendo a um diagnóstico de uma inconsistência lógica e
fundacional, no projeto rousseauniano. E para tanto ela recorre à
igualdade de razão, na natureza, um pressuposto iluminista elementar.
Agora, cabe perguntar à leitora atenta se essa inconsistência seria
irrelevante e não acarretaria uma posição pouco caridosa com o projeto
rousseauniano e também com “Emílio”. Por isso é preciso prestar
atenção ao texto do filósofo. A tarefa pedagógica levada a cabo em
“Emílio” e, em especial, no seu Livro V, consiste em tornar possível
reconquistar a liberdade através da obediência independente a regras;
trata-se de aprender a obedecer a fim de poder, ao responder por si,
autonomamente, exercer a liberdade. Para tanto, Rousseau retoma
alguns dos elementos centrais de sua antropologia, para considerar a
educação das crianças desde a tenra idade. Nesse caminho, a relação
entre a criança e a mãe, entre a criança e o adolescente Emílio e a figura
do Tutor configuram o cerne do projeto moral de formar um indivíduo
Katarina Ribeiro Peixoto • 121

capaz de independência em relação aos outros homens. “Emílio é o


menino criado para ser ele mesmo e a tarefa é confiada ao Tutor. Desde os
primeiros anos de Emílio, o Tutor está em sua companhia constante”
(Gauthier 2006, p. 31). Essa companhia constante visa a dar continuidade
ao processo de acolhimento e atenção às primeiras expressões
demandantes da criança, sobretudo, através do choro. A educação
começa no nascimento e o modo como o choro e o grito das crianças é
tratado desempenha um grande papel na confiabilidade em algo
externo a si. Não há mal original na natureza, e isso se aplica às crianças.
Por isso, a educação para a moralidade não pode contribuir para o
universo desnaturado, no qual ela ou Emílio nascem, e do qual, para os
fins do programa educacional em questão, deve tornar-se
independente. Por isso, a repressão e o controle precisam ser feitos
através de mecanismos sutis e não violentos, em que as regras sejam
internalizadas em um processo que deve ser natural. Diz Rousseau:

“Preparai de longe o reino de sua [da criança] liberdade e o uso de suas


forças, deixando ao seu corpo o hábito natural, ao deixar-lhe sempre mestre
de si mesma, e de fazer em todas as coisas conforme a sua vontade, quando
quer que ela tenha uma”. (Rousseau 1819, p. 32)

Essa estabilidade começa a se transformar no “segundo nascimento”


de Emílio, que é diretamente tratado no Livro IV (dos 15 aos 20 anos). É
nesta faixa etária que o projeto de educação moral se apresenta em toda
a sua envergadura.

“Nós nascemos, por assim dizer, duas vezes: uma para existir e outra, para
viver; uma para a espécie e outra, para o sexo (…). É este o segundo
nascimento (…). É aqui que o homem nasce verdadeiramente para a vida, e
que nada de humano lhe é estranho. (…) Esta época em que termina a
122 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

educação comum é aquela propriamente a partir da qual a nossa deve


começar.” (Rousseau 1819, IV, p. 6)

É nesta fase que o amor de si se converte em amor próprio, como


responsabilidade moral e vínculo afetivo e onde o controle da natureza
e a sua “reforma” se impõem a Emílio. A criança deve ser amada e
respeitada, para que o controle da natureza na adolescência seja bem
sucedido e, assim, o aprendizado da obediência à liberdade civil seja um
fundamento normativo. A natureza não deve ser tomada como oposta à
educação, mas não é a natureza que educa, e sim o Tutor (Gauthier 2006,
p. 34). O processo educativo obedece ele mesmo à exigência de se tornar
o fundamento normativo do contratualismo. E tanto os livros IV como
V, de “Emílio”, consistem em desenvolver o senso de responsabilidade
através da internalização da obediência, de maneira irrefletida, por
meio do hábito. Esse processo visa a tornar a vontade de Emílio “cativa”
da tutela como um requisito sem o qual a internalização de sua vontade,
no pupilo, não ocorre. O projeto consiste na identificação, por Emílio,
da vontade do Tutor com a sua própria. O truque educativo depende de
Emílio se acreditar mestre de suas próprias ações e iniciativas, ao passo
que internaliza os comandos do que seria o aperfeiçoamento da “sua
própria” vontade. Para Gauthier, “o trabalho do Tutor é um exercício de
controle total. (…) O Tutor afirma que fez de Emílio um homem natural, livre,
independente de qualquer vontade alheia”, mas não porque, como
diagnostica o comentador, Rousseau rejeite a “se dizente liberdade”, na
medida em que a independência de Emílio (formado para ser
independente dos outros e dependente apenas de coisas materiais) é
alcançada através da dependência do Tutor (Gauthier 2006, p. 41). E, na
medida em que Emílio se envolve afetivamente e decide os rumos de seu
Katarina Ribeiro Peixoto • 123

envolvimento, sela o fim de sua relação com o Tutor, a sua formação


moral, que corresponde ao fundamento normativo da legitimidade da
contratação de uma liberdade civil. Ele não precisa mais de um Tutor,
porque pode ser um cidadão livre. Como anota Gauthier,

“Rousseau oferece-nos um experimento e não um exercício real de


engenharia educacional, mas esse experimento fornece uma ilustração
muito clara da ideia de que os seres humanos podem se liberarem através
do controle. Ele conclui Emílio com o aparente sucesso do experimento”
(Gauthier 2006, p. 49).

Por que razão o experimento ou o projeto educacional proposto em


‘Emílio” não teria sido bem sucedido? Porque, no Livro V, o projeto se
explicita em uma inconsistência irremediável.

3 – UMA “HISTÓRIA CONCEITUAL” DE “REIVINDICAÇÃO DOS DIREITOS DA


MULHER”: A FILOSOFIA DO CASAMENTO DE MARY WOLLSTONECRAFT

O caráter sistemático de “Reivindicação dos direitos da mulher” não


vai de si, apesar de sua clareza. Por um lado, o formato panfletário
apresenta um texto claro e direto e, por outro, a reflexão conceitual não
segue o mesmo ritmo, de maneira que a tarefa de capturar o núcleo
argumentativo pode levar a muitos destinos analíticos promissores. Um
desses destinos é o tratamento do casamento como categoria
pedagógica e política de um projeto de transformação de uma sociedade
aristocrática para uma sociedade republicana. O papel do texto de
Rousseau é fundamental, aí, não apenas porque, metodologicamente,
Wollstonecraft se alinha ao filósofo genebrino na mudança do
paradigma jusnaturalista para o educacional. A crítica filosófica a
“Emílio” é o que leva Wollstonecraft a formular a sua teoria da liberdade
como independência, por meio de um argumento metafísico; e, tendo
124 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

lido a sucinta e impecável descrição de Gauthier das concepções de


educação, “natureza” e “nascimento” de Emílio, não é preciso um esforço
de interpretação maior para identificar o quão inconsistente esse
projeto é com uma doutrina da sensibilidade.
No Livro V, de “Emílio”, podemos ler o filósofo defender que o
“domínio das mulheres não lhes pertence porque os homens o tenham
desejado, mas porque assim o quer a natureza; pertencia-lhes antes que
elas parecessem tê-lo” (Rousseau 2004, p. 520). Em seguida, o filósofo
defende a desigualdade entre os gêneros por meio da introdução de uma
cláusula de exceção à própria noção de liberdade civil que o filósofo
defendera, como método. Em primeiro lugar, o recurso aos ditames da
natureza está em contradição com o reconhecimento de que a liberdade
natural está perdida para sempre, donde, em segundo lugar, o caráter
“inatural” daquilo que toma por natural. É isso o que se pode ler na
defesa da coqueteria e da limitação da educação das meninas, pelo
filósofo, como dádivas da natureza, ao tempo em que daí deriva a
assimetria na relação de dependência entre homens e mulheres. Diz
Rousseau, imaginando o que a “natureza” teria esperado das mulheres:
a natureza

“dá às mulheres um espírito tão agradável e fino; (…) quer que elas pensem,
que julguem, que amem, que conheçam, que cultivem o espírito tanto
quanto sua aparência; estas são as armas que ela lhes dá para suprir a força
que lhes falta e para que governem a nossa. Elas devem aprender muitas
coisas, mas apenas aquelas que lhes convém saber (Rousseau 2004, p. 526,
minhas ênfases)”.

A natureza é estranhamente convocada para lastrear a


inconsistência de um projeto educacional para a liberdade a ser
reconquistada na vida civil. Essas assimetrias defendidas de maneira
Katarina Ribeiro Peixoto • 125

desabrida no Livro V de “Emílio” acarretam a defesa da dependência das


mulheres em relação aos homens se estende e deve ser estendida às
opiniões, aos juízos da sociedade, aos costumes e às responsabilidades
na educação das crianças. O núcleo volitivo da bondade natural se
explicita como um constructo retórico da opressão social, que carece de
consistência com o próprio projeto rousseauniano. De que natureza
Rousseau trata, quando usa o léxico, em “Emilio”?
A inconsistência identificada pela filósofa se estende ao modo
como Rousseau usa as distinções biológicas no projeto de educação
moral. Para Rousseau, as mulheres seriam frágeis e dependentes, e a
tutoria caberia exclusivamente ao pai. Para Wollstonecraft, as mulheres
podem ter menos força, em sua compleição física, e a gravidez e a
amamentação acarretam tarefas e obrigações distintas, mas,
exatamente porque há uma igualdade de razão na natureza, a essas
diferenças biológicas correspondem direitos vinculados a toda a
sociedade. Esses direitos são, a propósito, tão estruturantes na
internalização de regras morais como o seriam para Emílio visto que se
trata da relação biologicamente ancorada entre uma mãe e uma criança
desde a fase de amamentação. Daí a função estruturante da liberdade
civil ser defendida e não uma desculpa para desnaturalizar as mulheres.
Estamos, bem entendido, longe de uma formulação de segunda ordem,
como a clássica tese de De Beauvoir, segundo a qual as mulheres não
nascem, mas se tornam mulheres, etc. Para Wollstonecraft, as mulheres
precisam antes de tudo serem reconhecidas como humanas,
independentemente de suas eventuais funções relacionadas aos
homens e ao poder dos homens.
O casamento, assim, tem um sentido articulado com a sua função
pedagógica, não apenas para a criança e para os seus pais, mas, por isso,
126 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

para toda a sociedade. Afirma a filósofa: “Não nos é dito em que consiste
a existência das mulheres quando não há casamento nem promessa de
casamento” (Wollstonecraft 2016, p. 55). Em que consiste a existência das
mulheres, quando se toma o casamento como uma categoria da vida
social e da educação para a liberdade? Esta é a questão conceitual que a
situa como uma teórica do casamento. Para apresentar essa teoria,
então, vamos seguir os passos de alguns dos usos do conceito ao longo
do texto. Ao final, a formulação de que o casamento é o “cimento da
sociedade” poderá ser compreendida em sua extensão, no feminismo de
Wollstonecraft.
“Reivindicação dos direitos da mulher” é dedicado a Talleyrand-
Périgord, antigo bispo de Autun, e um dos responsáveis pela reforma
educacional no processo revolucionário iluminista, na França. Em 1791,
Talleyrand publicou o Rapport sur l’instruction publique, um documento
base para fixar a estrutura do sistema educacional da França
republicana. Para Wollstonecraft, o intelectual não teria enfatizado
suficientemente a necessidade de articular o acesso universal a uma
educação republicana ao acesso das meninas ao sistema, na medida em
que reservou a educação das meninas ao seio familiar. Neste breve
texto, a filósofa defende os direitos da mulher como produto da
educação das meninas: “se a mulher não for preparada pela educação para
se tornar a companheira do homem, ela interromperá o progresso do
conhecimento e da virtude; pois a verdade deve ser comum a todos”
(Wollstonecraft 2016, p. 18). A educação, portanto, precisa ser, também
e necessariamente, pública.
Ora, a educação no seio da família é, para Rousseau, um requisito
metodológico para a formação moral da criança. Ao tomar o casamento
como uma categoria filosófica, Wollstonecraft, defende uma articulação
Katarina Ribeiro Peixoto • 127

entre o universo privado e o público que permita uma transição


consistente de um projeto de educação a uma concepção de sociedade.
Essa transição, dada a antropologia moralizante de Rousseau e sua
concepção de vontade daí derivada, não pode ser feita nos passos
sugeridos em “Emílio”. Por isso que a defesa dos direitos da mulher, para
a filósofa, não é comum; a sua defesa da igualdade de gênero e dos
direitos, deveres e obrigações não são, falando estritamente, de
natureza jurídica, embora faça as vezes, em termos historiográficos e
metodológico, do que fora tomado como “direito natural”. Para Mary
Wollstonecraft, a extensão dos direitos reivindicados da mulher
depende da transformação da vida privada, assim como, para Rousseau,
a liberdade civil depende da educação familiar. Para a filósofa, assim, a
defesa dos direitos da mulher não se caracteriza como uma defesa de
um reconhecimento legal, em um dispositivo normativo, digamos, uma
Constituinte, ou um código civil. Para ambos os filósofos, direitos e
liberdade civil são pensados em função do paradigma da independência
moral e nessa medida são derivados de uma transformação na educação
das crianças. É nesse ponto e por isso que o casamento desempenha um
papel crucial no argumento da filósofa em defesa da igualdade de
gênero. É no seio da família que se desempenha e assegura o
universalismo, por meio da vinculação da educação das crianças à
educação das mulheres e dos homens, que devem, também, reformar o
modo como lidam com as mulheres, inclusive para serem bons pais.
Aqui, a concepção de liberdade como independência pode ser entendida
como artefato normativo que opera no casamento uma espécie de mola
da transformação social por meio da universalização do sistema
educacional, não apenas quanto à educação igualitária das meninas e
meninos, nas escolas, mas na economia afetiva e familiar, também. É
128 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

por isso que se pode dizer que uma das primeiras feministas modernas
foi, em acepção própria, uma filósofa do casamento.
Em um dos capítulos finais do texto de 1792, Wollstonecraft
apresenta o que ela quer dizer com a afirmação de que o casamento é o
“cimento da sociedade”:

“Se o matrimônio é o cimento da sociedade, toda a humanidade deveria ser


educada segundo o mesmo modelo, caso contrário, a relação entre os sexos
nunca merecerá o nome de companheirismo nem as mulheres cumprirão
as obrigações próprias de seu sexo, até que se tornem cidadãs ilustradas,
até que sejam livres, capazes de ganhar a sua própria subsistência,
independentemente dos homens; do mesmo modo, quero dizer, quero dizer,
para evitar interpretações errôneas, que um homem é independente um do
outro. Mais ainda, o matrimônio nunca se conservará como algo sagrado
até que as mulheres, sendo criadas junto com os homens, sejam preparadas
para ser suas companheiras em vez de suas amantes, já que a face
mesquinha da astúcia sempre as tornará desprezíveis, enquanto a opressão
as fará tímidas. Tão convencida estou dessa verdade que me aventurarei a
predizer que a virtude nunca prevalecerá na sociedade, até que as virtudes
de ambos os sexos sejam fundamentadas na razão e os fatos comum a ambos
possam obter sua devida força mediante o cumprimento dos deveres
mútuos”. (p. 214).

O texto contém um apanhado dos argumentos e das teses


desenvolvidas e apresentadas ao longo do livro, e contém, por isso, um
aspecto de síntese. O caráter claro e direto de quem se preocupa com
coisas, e não com palavras (Wollstonecraft 2016, p. 28), contrasta com a
densidade dos argumentos metafísicos que são paulatinamente
desenvolvidos, na formulação de um único argumento, a saber: a
igualdade de razão é natural e se realiza unicamente por meio do
aperfeiçoamento de nossas mentalidades para servir àquilo que a razão
Katarina Ribeiro Peixoto • 129

ela mesma impõe, na medida em que é imortal – como o são as almas 1.


Disso se segue que defender a igualdade de gênero não acarreta tomar
as diferenças biológicas como exceções a um projeto filosófico, mas
como razões metafísicas. O projeto de “Emílio” fracassa porque o seu
fundamento é inconsistente e, em consequência, suas implicações são
moralmente insustentáveis e, por isso, politicamente ineficazes. O
esforço neste estudo reside em demonstrar que esse diagnóstico de
Mary Wollstonecraft não é fruto de uma leitura superficial ou externa,
isto é, não filosófica, ao projeto de Rousseau. Pode-se imaginar, muito
razoavelmente, que a sua vida e circunstâncias a levariam a criticar as
considerações caricaturais em personagens como “Sofia”, considerada
pela filósofa como “totalmente inatural” (Wollstonecraft 2016, p. 45).
Proceder assim pode ofuscar, entretanto, a profundidade e robustez
argumentativa do projeto de Wollstonecraft, tanto na concepção de
educação como de liberdade como independência. Ao considerarmos,
em contraste, uma metafísica da liberdade como natureza, poderemos
capturar não apenas a profundidade da crítica a Rousseau como a
singularidade do pensamento filosófico dela, como teórica da liberdade
como independência, republicana e abolicionista. A igualdade de gênero
é, assim, uma das condições para uma teoria política naturalista –
protomaterialista – da liberdade civil. Nesse caminho, a escolha por
tornar o casamento uma categoria filosófica introduz, de maneira
privilegiada, o elemento revolucionário do pensamento dela.

1
A acepção de metafísica como o que estaria além da física, aqui, não parece ter cabimento. O recurso
de Wollstonecraft a uma criação divina não tem um papel teológico senão como um um recurso deísta.
A metafísica pressuposa é uma metafísica da natureza humana, como razão a ser aperfeiçoada em seres
naturalmente racionais, independentemente do seu sexo e gênero. Para ler uma leitura distinta, ver o
texto de Sandrine Bergês, mencionado ao longo deste estudo.
130 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

O casamento é tratado diretamente no capítulo 9 de “Reivindicação


dos direitos da mulher”, quando a filósofa aborda o problema das
“distinções inaturais” na sociedade. Ao longo de todo o texto,
entretanto, a instituição desempenha uma função categorial na
argumentação da filósofa. Na Introdução, ao denunciar o “sistema de
educação falso, extraído de livros sobre o assunto escritos por homens
que, ao considerar as mulheres mais como fêmeas do que como
criaturas humanas, estão mais ansiosos em torná-las damas sedutoras
do que esposas afetuosas e mães racionais” (Wollstonecraft 2016, p. 25),
Wollstonecraft anuncia o reconhecimento de uma função racional ao
casamento. Em seguida, ao denunciar os efeitos degradantes da
doutrina da sensibilidade na educação das meninas, para conversações
graciosas e frívolas, a filósofa denuncia que

“elas passam grande parte dos primeiros anos de vida adquirindo


habilidades superficiais; enquanto isso, a força do corpo e da mente é
sacrificada em nome de noções libertinas de beleza e do desejo de se
estabelecer mediante o matrimônio, o único modo de as mulheres
ascenderem no mundo. Como esse desejo faz delas meros animais, quando
se casam comportam-se do mesmo modo que se espera das crianças”
(Wollstonecraft 2016, p. 28).

Esse estatuto infantil não seria privilégio das mulheres, no


“raciocínio de Rousseau”, porque os maridos dessas crianças não
passariam, eles também, de “crianças crescidas” (Wollstonecraft 2016, p.
43), nesse projeto filosófico. Não é, portanto, o casamento em si mesmo,
como resultado ou derivado dessa doutrina da suficiência da vontade
atual como ponto de partida, que pode “erradicar hábitos de vida” (p. 49),
mas a educação, o cultivo do entendimento, desde a tenra infância, por
meninos e meninas, educados de maneira igualitária. Afinal, mulheres
Katarina Ribeiro Peixoto • 131

passivas e indolentes, não são boas esposas (p. 56), porque o tempo do
direito divino dos maridos, tal qual o direito divino dos reis, nesta época
iluminista, é de se esperar que seja questionado sem perigo (p. 64). Para
que mulheres e homens sejam independentes, eles precisam aprender a
sê-lo desde a tenra infância, sendo ensinados a “pensarem e a agirem por
conta própria” (p. 70) Somente assim podem existir e eventualmente
sobreviver a um marido, por mais sensato que esse seja, caso venha a
morrer e a deixá-la com uma grande família (p. 72).
A mulher, portanto, deve ser formada, deve desenvolver o seu
entendimento, mesmo que se case por afeto. E se o marido não for
virtuoso, tanto mais a mulher necessitará de princípios independentes
(p. 74), cuja obtenção deve ser a tarefa da vida de uma mulher, porque,
do contrário, serão muito pouco talhadas para dirigir uma família (p.
94). Ceder à prostituição legal, isto é, ao projeto do casamento como
único destino de sustento possível, torna a mulher refém da astúcia e
da melancolia solitária do despreparo para lidar com as dificuldades da
vida e da criação de filhos (pp. 86 e 93). A mulher que não tiver a mente
expandida pelo cultivo pode vir a tiranizar o lar, tornando-se uma
gestora da casa ou, ainda, uma escrava doméstica (p. 94). Essas mulheres
dependentes, afirma a filósofa, serão sempre as “senhoras dos maridos”
(no sentido de propriedade deles), carentes de independência e de
reflexão (p. 95). Em vez de as jovens se casarem apenas para melhorar
sua condição, elas deveriam tornar-se virtuosas, por meio do exercício
de suas habilidades e de seu entendimento, de onde surge a verdadeira
graça (p.124).
Essas teses, que ocupam “Reivindicação dos direitos da mulher” e
eram distribuídas em panfletos depois reunidos em capítulos, não
conformam um conjunto de aparência consistente. Por um lado,
132 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

Wollstonecraft enfatiza em mais de um momento que as mulheres das


classes médias são aquelas para quem se dirige, prioritariamente. (As
mulheres aristocráticas estariam perdidas no patriarcalismo
hereditário e as mulheres de classe mais baixa, que seriam mais
virtuosas, deveriam ser empregadas por aquelas mulheres das classes
médias que não têm a intenção de copiarem a ociosidade indolente das
mulheres aristocratas. - Wollstonecraft 2016, p. 124). Tudo se passa
como se essas mulheres de classe média, que têm no casamento um
horizonte de pertencimento e ascensão de sua condição social, fossem
aquelas capazes de adquirir uma verdadeira independência. As classes
médias são aquelas em que, na juventude, os homens são preparados
para uma profissão (p. 86); os núcleos familiares dessas classes não são,
portanto, aqueles dos herdeiros indolentes, nem os dos famintos. A
filósofa parece reconhecer, aí, um meio para que as mulheres que
venham a se casar, nesta classe, tenham condições de adquirir
suficiência (p. 115) para poder ganhar seu sustento, isto é, terem uma
profissão, elas mesmas. Estamos aqui em um momento anterior à mera
independência financeira. A independência que deve preceder a esta é a
mental, uma independência de juízo, a única capaz de moralidade
formada pelo cultivo da própria mente.
Wollstonecraft parece partir, nas suas considerações sobre o
casamento, do fato de que as mulheres de classe média terão no
casamento uma via de pertencimento social. Dadas as condições
culturais e materiais dos homens dessas classes, essas mulheres podem
vir a ter, com eles, uma parceria afetiva e intelectual e os filhos desses
casais serão estudantes e educados para sociedades menos dominadas
pelo poder aristocrático, na marcha dos ventos revolucionários que se
espalhavam pela Europa. Esses pressupostos de fato e os teóricos,
Katarina Ribeiro Peixoto • 133

obtidos no diálogo com Rousseau e na própria formação, permitem-nos


desfazer as aparentes incongruências em recomendações sobre como
ser boas esposas, como se vestir, como manter a casa limpa, e outras
coisas estranhas ao feminismo tal como o conhecemos hoje. Uma vez
mais, a transição de uma descrição de fato a uma fundamentação
normativa é propiciada por uma concepção de educação moral para a
transformação de uma ordem social e histórica.
É nesta ordem e para erguê-la sobre uma base racional consistente,
que homens e mulheres, quando se casam, nunca formam um só ser
moral (p. 119). O casamento, tal como teorizado no Capítulo 9 de
“Reivindicação dos direitos da mulher”, é um meio para a obtenção e o
desenvolvimento da independência, por meio de uma educação para o
respeito, no qual as diferenças biológicas são incorporadas à economia
doméstica da divisão de tarefas e de respeito mútuo, orientada
fundamentalmente pela defesa da educação das crianças, de maneira
igualitária, tanto dentro das famílias como nas escolas. O papel de
“cimento da sociedade”, desempenhado pela categoria do casamento, é
apresentado na defesa de uma instituição na qual indivíduos são
independentes moralmente um do outro, em que cada um cumpre os
respectivos deveres de sua condição, porque a virtude privada torna-se
o “cimento” da felicidade pública (Wollstonecraft 2016, p. 185). Um dos
elementos cruciais para essa virtude é o respeito e a observância às
distinções biológicas entre os gêneros, de maneira que à amamentação,
por exemplo, ela atribui um papel fundamental na educação moral:

“Para ser uma boa mãe, a mulher deve ter bom senso e aquela
independência da mente que poucas possuem, já que são ensinadas a
depender inteiramente do marido. Esposas submissas são, em geral, mães
tolas, desejando que seus filhos as amem acima de tudo e se posicionem, em
134 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

segredo, contra o pai, que é apontado como um espantalho. (…). Seu afeto de
mãe, de fato, raras vezes merece esse nome quando não a leva a amamentar
os filhos. (…) Que afinidade exercita uma mãe que manda seu bebê para uma
ama de leite e ou pega para enviá-lo à escola? (Wollstonecraft 2016, p. 197)”

As posições de Wollstonecraft sobre amamentação e


disciplinamento das crianças são muito diferentes das de Rousseau.
Embora ambos defendam o papel da amamentação – e também por
Locke -, contra o hábito, então com séculos, de enviar crianças em fase
de amamentação para amas de leite e recebê-las de volta em fase
escolar, Wollstonecraft enxerga nessa prática um elemento educativo,
de formação da mulher; isso não se passa assim para Rousseau. O
filósofo menciona o benefício afetivo, para a criança, exclusivamente.
Wollstonecraft se refere à importância da prática também para a
mulher, para a sua formação moral como mãe. Os capítulos 10, 11 e 12 de
“Reivindicação dos direitos da mulher” tratam da educação das crianças,
dos deveres dos pais e da defesa da educação pública. Aí também a
filósofa defende a formação educacional das mulheres, o acesso a
profissões e à representação política. E, em todos os capítulos, a defesa
da igualdade racional das mulheres atravessa o texto, para as mulheres
não serem mais educadas para dependerem do juízo do marido. “A
conclusão que desejo traçar é óbvia”, diz a filósofa. “Façamos das
mulheres criaturas racionais e cidadãs livres, e elas rapidamente se
tornarão boas esposas e mães – isto é, se os homens não negligenciarem
os deveres de maridos e pais” (p. 229).

3 – A REVOLUÇÃO DO CASAMENTO SEGUNDO MARY WOLLSTONECRAFT

Ao contrário de Rousseau, que confina a educação moral ao


domínio privado da família, Wollstonecraft articula a educação moral à
Katarina Ribeiro Peixoto • 135

vida cívica e política. E ela procede assim incorporando as diferenças


biológicas entre os gêneros, seja na defesa do desenvolvimento da força
física pela mulher, seja no reconhecimento do papel formador da
amamentação, seja no disciplinamento da educação das crianças
pequenas, a não serem reprimidas indevidamente a poderem brincar
sem um tutor cuidando delas o tempo todo. No “voo” regressivo de
Rousseau, tal como ela acusa, Emílio se torna adulto, casa e se torna um
cidadão que poderá pactuar um governo civil. Na teoria do casamento
de Wollstonecraft, o “microcosmo” (2016, p. 226) familiar pode ser
chamado de um Estado, que deve ser governado por direitos
igualitários. Assim é que a educação cabe à família, a uma reunião de
indivíduos morais independentes, às escolas e a uma sociedade inteira.
É dessa maneira que as mulheres poderão desenvolver a sua mente,
aperfeiçoando o que há a ser aperfeiçoado: o entendimento, única fonte
da virtude. Pois os deveres privados são cumpridos de modo muito
imperfeito quando não se conectam com o geral (Wollstonecraft 2016,
p. 236). A transição de uma esfera à outra não é um ponto de partida
normativo, mas um pressuposto metafísico elementar e intuitivo: a
igualdade de razão que reconhece a natureza como coextensa, ao
próprio aperfeiçoamento, e não como heterogênea a si. Assim, a
revolução nos “modos femininos” (Wollstonecraft 2016, p. 247) não é
tarefa de metade da humanidade, nem objeto de um ou vários sermões,
apenas; mas uma transformação educacional para a igualdade entre os
gêneros, desde a infância, no coração do iluminismo de Rousseau, lá
onde a inconsistência do sistema se desfaz: a função pedagógica do
casamento na transformação de toda a sociedade. Para Wollstonecraft,
a revolução não chegou ao casamento: é por ele condicionada.
136 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

AGRADECIMENTOS:

Este estudo foi levado a cabo com o suporte da Fundação de


Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, onde sou bolsista de pós-
doc, sobre Ação e Liberdade em duas filósofas do Início do Período
Moderno, domiciliada no Departamento de Filosofia da Universidade de
São Paulo (Ação e Liberdade: estudos em história da filosofia de
Elisabeth da Boêmia e Émilie Du Châtelet, sob a supervisão de Luiz
Henrique Lopes dos Santos – 2022/06900-2). Eu agradeço o convite do
Professor Eduardo Vicentini de Medeiros, tanto por ter lançado uma
linha de pesquisa, no Brasil, sobre as “Críticas Filosóficas ao
Casamento”, como por ter me convidado a participar de um dos
Encontros, tão profícuos, de seus seminários, como desta publicação.
Também agradeço à Professora Eunice Ostrensky, pelo seu trabalho
excelente e pela generosidade de tê-lo feito chegar em minhas mãos.
Quaisquer erros ou mal uso de seu texto são de minha exclusiva
responsabilidade.

REFERÊNCIAS

OBRAS DE WOLLSTONECRAFT:

WOLLSTONECRAFT, M. Reivindicação dos direitos da mulher. Edição comentada por


Maria Lygia Quartim de Moraes, traduzida por Ivania Pocinho Motta, São Paulo,
Boitempo Editorial, 2016.

WOLLSTONECRAFT, M. A Vindication of the Rights of Men; A Vindication of the Rights of


Woman. Edited by Sylvanna Tomaselli. Cambridge University Press, 2017

OBRAS DE ROUSSEAU:

Émile ou de l’Éducation, edição encontrada integralmente nesta página, de domínio


público: http://classiques.uqac.ca/classiques/Rousseau_jj/emile/emile.html , 1762
Katarina Ribeiro Peixoto • 137

Du Contrat Social ou: principe du droit politique. In: Ouvres Complètes de J. J. Rousseau, avec
des notes historiques, Tome I. Paris, Chez Alexandre Roussiaux, Librarie, 1819:
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k206990x

Emílio ou: Da Educação. Tradução: Roberto Leal Ferreira, São Paulo, Martins Fontes,
2004.

LITERATURA SECUNDÁRIA:

BERGÈS, S. The Routledge Guidebook to Wollstonecraft’s A Vindication of the Rights of


Woman. New York, Routledge, 2013.

BURKE, E. Reflections on the Revolution in France. In: Select Works of Edmund Burke.
Foreword and Biographical Note by Francis Canavan. Indianapolis: Liberty Fund.
Vol. 2, 1999.

FRICKER, M. Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. Oxford Scholarship,
2007.

GAUTHIER, D. Rousseau: the sentiment of existence. New York. Cambridge University


Press, 2006.

GOLDSCHMIDT, V. Anthropologie et Politique: Les Principes du Système de Rousseau. Paris,


Vrin, 1974

OSTRENSKY, E. « Mary Wollstonecraft's Egalitarianism in A Vindication of the Rights of


Men », Éthique, politique, religions, n° 20, 2022 – 1, Émergence du libéralisme,
transformations du républicanisme : XVII -XVIII siècles, p. 133-157 DOI :
10.48611/isbn.978-2-406-13308-7.p.0133, 2022.

PRICE, Richard. A Discourse on the Love of our Country, delivered on Nov. 4, 1789, at the
Meeting-House in the Old Jewry, to the Society for Commemorating the Revolution in
Britain. With an Appendix. Second edition. London: T. Cadell, 1789.
AMOR E CASAMENTO:
5
UMA ANTINOMIA PARA EMMA GOLDMAN
Larissa Guedes Tokunaga 1

INTRODUÇÃO

Emma Goldman (1869-1940) traça uma genealogia em torno da


instituição do matrimônio, garimpando as raízes judaico-cristãs que
sacralizaram tal conceito. Nesse diapasão, tem-se como escopo mostrar
como essa anarquista dessacraliza a ideia do contrato matrimonial
enquanto uma essência supostamente atemporal, mobilizando pesquisas
científicas e peças literárias de sua época que ratificam o caráter de
construção cultural do casamento. Será possível descortinar como o
material lido por Goldman traz à tona a energia sexual, e não mais o
contrato conjugal, como a única mediação possível entre as pessoas.
Embora seja inviável sintetizar a prodigiosa vida de Emma
Goldman, torna-se necessário ressaltar que ela foi uma anarquista
nascida na Lituânia, em 1869, tendo evadido do futuro casamento
arranjado pelo pai e imigrado para os Estados Unidos aos 15 anos de
idade. Na terra das vãs promessas de liberdade, costurou uma trajetória
enquanto operária, oradora, enfermeira-obstetra, publicadora e
militante. Ela foi alcunhada pela imprensa como a mais perigosa da
América.

1
Bacharela e licenciada em História, pela FFLCH/USP, Mestra e Doutora em Ciências pelo Programa de
Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e outras Legitimidades – DIVERSITAS/FFLCH/USP. O presente
trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -
Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Contato: lariguetokunaga@gmail.com
Larissa Guedes Tokunaga • 139

Tendo sido perseguida diversas vezes, encarcerada


recorrentemente e exilada na Rússia em 1919, Emma Goldman divulgou
o uso de métodos contraceptivos e propugnou o controle da natalidade,
foi contra o patriotismo e o alistamento militar obrigatório, a favor da
liberdade de expressão e de uma emancipação do corpo-alma da mulher.
Ela acompanhou o exercício do Parlamentarismo, da Democracia, do
Comunismo e do Fascismo e denunciou como todos esses regimes
redundaram em tiranias. Embora tenha se casado algumas vezes com o
propósito de alcançar a cidadania, Goldman reiteraria que esses acordos
não implicavam um divórcio de sua personalidade em relação a seus
próprios ideais.

CASAMENTO, SEXO E AMOR: UMA RADIOGRAFIA

O diagnóstico goldmaniano localiza de forma precisa as narrativas


que endossam a naturalização da instituição conjugal. Conforme ela
afirma, “tanto a religião judaica quanto a cristã impuseram a noção de
que o sexo só é admissível caso o objetivo seja o da procriação”.
(GOLDMAN, 1935, p. 255) Psicólogos e biólogos já teriam desmentido
essa falácia e mostrado como a satisfação sexual era um elemento ritual
de expressão em sociedades pré-cristãs. Emma Goldman arrola uma
série de trabalhos 2 que sublinham a construção cultural de um
represamento das paixões. Elencando “a práxis da Igreja como inimiga
da vida” (GOLDMAN, 1935, p. 257), a anarquista mostra que a necessidade

2
Cf. CALVERTON, Victor Francis. Sex expression in literature. New York: Boni &Liveright, 1926.
FISCHER, Jacques. Love and Morality: an attempt at a physiological interpretation of human thought. New
York: Alfred A. Knopf, 1927.
BLOCH, Iwan.The Sexual Life of Our Time in Its Relations to Modern Civilization (1908). Arkose Press, 2015.
140 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

de sancionar o desejo através de um rito civil e religioso representa um


tolhimento de uma expressão fisiológica.
Sob a lente goldmaniana, na esteira das pulsões de cada
individualidade estariam as bases para a frutificação do amor livre. Ao
desmontar a moralidade subjacente à sinonímia estabelecida entre
amor e calvário, Emma Goldman mobiliza sexólogos que expõem a
experimentação de novas relações por meio de pessoas solteiras e
homossexuais. Estas últimas, ao rechaçarem a abstinência sexual e
acederem à convivência sem mediações contratuais, mostrariam que
uma sociedade outra seria viável. Afinal, no horizonte das práticas
anarquistas sempre está a construção efetiva, no presente, de laços
coletivos horizontalizados, antiburocráticos e mobilizados pelo devir
em vez do dever.
No bojo do ensaio “O Elemento do Sexo na Vida” (1935), a anarquista
respalda sua argumentação em dados científicos que mostram como os
exames pré-nupciais começaram a ser realizados de forma cada vez
mais frequente. Segundo ela, isso sugeriria a ocorrência de relações
livres sem a subsunção das pessoas à exigência moral da continência
sexual antes do casamento. O amor livre seria, então, uma redundância,
na medida em que somente a fruição desimpedida das singularidades é
que configuraria uma relação amorosa. Emma Goldman é peremptória:
ao articular um diálogo com sexólogos como Havellock Ellis e Edward
Carpenter 3 ela argumenta que uma vida em que os impulsos sexuais são
sufocados ou envernizados pelas ditas “virtudes” ou pelo famigerado
“puritanismo” é uma vida fadada à nulidade.

3
Profundamente afinada com a emergente bibliografia na área da sexologia, Emma Goldman realizou
um embasamento teórico a partir de obras como A Psicologia do Sexo (1933), de Havelock Ellis. Em 1916,
a anarquista ofereceu uma palestra sobre a obra The Intermediate Sex, de Carpenter, defendendo o
reconhecimento da homossexualidade como uma realidade emocional e sexual.
Larissa Guedes Tokunaga • 141

Ademais, mencionando estudos como A expressão do sexo na


literatura (1926), de V.F. Calverton, a militante desmonta as narrativas
matrimoniais, expondo como o puritanismo é insidioso na construção
de modelos de comportamento pautados na virtude e no recato. Em sua
leitura, Goldman sublinha como as narrativas pré-cristãs não teriam
sufocado as práticas sexuais, inclusive privilegiando-as nas práticas dos
rituais dionisíacos. A partir de sua genealogia, a anarquista busca
reabilitar a ideia de que o corpo é, em si, uma razão e uma força criativa,
esboroando a “sagrada” antinomia: racionalidade/visceralidade.
Para Emma Goldman, a literatura ficcional hegemônica educou
jovens, principalmente as mulheres, a velar sua sexualidade e o
conhecimento sobre o próprio corpo. Enquanto romances de
moralidade preconizam o puritanismo e a procriação como redenção, os
sexólogos provariam que as mulheres não nutrem menor desejo sexual
do que os homens e que o sexo está na raiz imanente de todos os
aspectos da vida. Como a anarquista diagnostica:

É verdade que somos mais esclarecidos do que éramos, mas ainda não
atingimos o estágio em que a simples menção ao sexo não provoque
respostas de reprovação ou insultos. Não são poucas as pessoas que
defendem que o “conhecimento sexual” é algo questionável, ou, na melhor
das hipóteses, algo que deve ser mantido em sigilo no interior dos “livros de
medicina”; ou, ainda, há quem considere a posse desse conhecimento uma
banalidade característica aos irremediavelmente desavergonhados. Como
resultado, a literatura pseudocientífica acerca do “sexo” é derramada sobre
as nossas emoções, deixando os fatos intocados, quando não os apresenta
sob disfarces. Muito do que é produzido não possui fundamentação
biológica ou qualquer relação com as leis da vida que governam o ser
humano, não menos do que a qualquer outro ser vivo. É o medo (às vezes
chamado de “reverência”) que nos faz “deixar o sexo em paz”. São o recato
dissimulado e a vergonha estúpida, disfarçados sob o nome de “decência”,
142 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

que obrigam os museus a vestir faunos de mármore e a cobrir júpiteres e


cupidos de bronze com folhas de gesso, não raro tortas ou mal cortadas dos
lados. Há considerável infantilidade a envolver a questão do sexo.
(GOLDMAN, 2021, p. 250)

Por outro lado, a anarquista vislumbrou no Drama Social Moderno


janelas narrativas para a discussão de temas tidos como relegados a um
espaço doméstico inviolável. As peças de teatro expõem personagens
que desafiam as convenções sociais e tornam nítidas as entranhas
dilaceradas do desejo subjetivo. Ao adentrar a expressão dos afetos,
peças como O Pai (1887), de Strindberg, foram lidas como reveladoras da
infiltração de pudores nas relações intersubjetivas. Ao interpretar a
representação de Laura, uma personagem que não consegue expressar
seu desejo sexual pelo marido sem antes vê-lo como um pai, Emma
Goldman mostra como os casamentos, frequentemente, tendem a ser
uniões formalizadas entre estranhos. Assim, ela afirma:

O que é comumente chamado de incompatibilidade de temperamentos é


quase sempre o resultado direto da ausência de harmonia sexual – a
insatisfação e os atritos que surgem quando a natureza química do sexo
entre marido e mulher falha em os unir harmoniosamente. (GOLDMAN,
1935, p. 254.)

Emma Goldman busca as fabulações em sua imanência: ao


diagnosticar na arte o espelho da vida, a anarquista recupera o que a
modernidade quis sublimar. Assim, as peças por ela divulgadas trazem
figuras femininas que não abnegam suas pulsões sexuais. Aliando o
estudo de Sigmund Freud à leitura de dramaturgos europeus, a
anarquista vai tecer a ideia de que se sacrificar por amor não é
compatível com tal afeto, mas uma servidão ao conceito-fantasma que
nomeia normativas sociais. Ou seja, não é amor senão às convenções e à
Larissa Guedes Tokunaga • 143

opinião pública. Se as peças teatrais desvelam papéis sociais a partir do


desmascaramento de subjetividades dilaceradas entre suas vontades e
os papéis socialmente convencionados, Goldman observa nas narrativas
o despertar de mulheres que recusam a delegação de suas
potencialidades.
Talvez a peça que melhor sintetize o ideário de Emma Goldman
acerca da instituição matrimonial seja A Casa de Bonecas (1879), do
dramaturgo norueguês Henrik Ibsen. Neste enredo, Nora, a
protagonista, é uma esposa devotada à família. Contudo, uma iniciativa
individual a leva a confrontar o marido e esse episódio é o detonador de
uma crise interna de consciência que a leva à evasão do núcleo
patriarcal. Segundo sua leitura da peça “A Casa de Bonecas”, Emma
assinala:

Nora abandona seu marido não – como um crítico estúpido afirmou –


porque estava cansada de suas responsabilidades ou sentiu a necessidade
de seus direitos como mulher, mas porque chegou à conclusão de que
durante oito anos viveu com um estranho que ainda por cima lhe deu um
filho. Pode existir algo mais humilhante, mais degradante que toda uma
vida passada junto a um estranho? (GOLDMAN, 1910, p. 94)

Se a regulação do matrimônio é um sustentáculo do poder da Igreja


e do Estado, Goldman vai perscrutar como ele se naturaliza de forma
inconteste ao ser introjetado pelas individualidades humanas. O afeto
do ciúme, para ela, seria a linha que urde as narrativas monogâmicas
em seus códigos de possessão. A anarquista denuncia o ciúme não
apenas como instrumento que se tornou legítimo na defesa do direito
de propriedade no âmbito das relações, mas também como um eficaz
expropriador do corpo-alma das próprias mulheres. A narrativa
naturalizada ao longo da história elidiu o fato de que elas seriam seres
144 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

singulares em suas próprias cosmovisões, neutralizando o desejo como


potencial articulador de uma coletividade emancipada.
O diagnóstico de que o casamento seria uma espécie de
prostituição legalizada torna patente a denúncia de Goldman do
extravio dos corpos-almas das mulheres no percurso institucional:
quanto mais alheias a seus próprios desejos, mais servis e criadoras de
crianças voltadas para a devoção ao Estado, à Igreja e ao Capitalismo.
Ademais, a anarquista denuncia a assunção por parte das próprias
mulheres do papel parasitário de esposa. Segundo seu prisma, a
emancipação em relação à servidão matrimonial não seria automática:
muitas mulheres prefeririam comodamente aceder ao contrato
conjugal. Conforme ela argumenta, a pressão da moralidade enraizada
na sociedade incitaria à desistência de uma vida independente. E
acrescenta:

Frequentemente tem sido demonstrado de maneira conclusiva que a antiga


relação matrimonial restringe as mulheres a um papel de serva do homem
e incubadora de seus filhos. E, não obstante, ainda encontraremos muitas
mulheres emancipadas que preferem o matrimônio, com todas as suas
deficiências, às limitações de uma vida solteira: restrita e insuportável
devido às algemas da moral e os preconceitos sociais que põem travas e
reprimem sua natureza. A explicação de tais contradições por parte de
muitas mulheres repousa no fato de que elas nunca entenderam realmente
o significado da emancipação. (GOLDMAN, 1906, p.89.)

Assim, Emma Goldman desmonta a ideia de que “amar é obedecer”


através de um recorte que, anacronicamente, poderá ser lido como
interseccional, haja vista as diferentes camadas que ela destrincha. Ao
atentar para o fato de que as mulheres pobres buscariam uma vida
melhor ao alicerçar sua vida sobre a estrutura do casamento, ela
Larissa Guedes Tokunaga • 145

denuncia as iniquidades subsumidas em contratos de dupla servidão: a


de mulher que teve sua individualidade obliterada e a de mãe que serviu
de incubadora para fomentar o patrimônio convencionado. Para a Igreja
e o Estado esse contrato econômico significaria, respectivamente,
incremento do número de pessoas devotas e aumento das fileiras
militares.
O prisma holístico de crítica social que Emma Goldman desenvolve
parte da opressão verificada já na fase da infância. Conforme ela
observa, o tolhimento precoce dos impulsos sexuais redundaria em
neurastenias e no endosso de que a individualidade estaria fadada a se
autossacrificar corporalmente em prol de uma redenção da alma em um
plano transcendente.
Faceando o amor justamente como essa não-disjunção entre corpo
e alma e também como uma expressão orgânica das individualidades em
consonância com uma natureza mais ampla, Emma Goldman define tal
afeto como uma força antinômica à uniformidade e aos artifícios
historicamente forjados ao longo da história da humanidade. Ao
entender o casamento como uma transação sujeita aos atravessamentos
da moralidade, a anarquista situa o amor como algo que é do âmbito de
uma privacidade que não deveria ser capturada por mediações externas.
As relações amorosas e a maternidade, entendidas eminentemente
como voluntárias, seriam desenvolvidas de acordo com um desejo
visceral que não atende a desígnios externos à própria individualidade.
O medo de tecer relações amorosas também seria vislumbrado como um
“tirano interno”. Como Goldman assevera:

Até que a mulher aprenda a desafiar todos eles [os tiranos internos], a
permanecer firme em seu próprio terreno, a insistir na sua liberdade
irrestrita, a ouvir a voz da sua natureza, seja esta voz um chamado para o
146 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

maior tesouro da vida, o amor por um homem, ou o seu mais glorioso


privilégio, o direito de dar à luz a uma criança, ela não poderá chamar-se de
emancipada. Quantas mulheres emancipadas foram corajosas o suficiente
para admitir que a voz do amor a está convocando, que está batendo
selvagemente contra o seu peito, demandando ser ouvida, ser satisfeita?
(GOLDMAN, 1906, p.134)

Max Stirner, filósofo do século XIX cuja obra O Único e sua


Propriedade (1844) foi lida avidamente por Emma Goldman, mostra que,
se o afeto pode ser conceituado, já não é amor. Ao embrenhar por uma
demolição dos fantasmas subjacentes à própria abstração da linguagem,
o manifesto stirneriano empregado por Goldman demole a moralidade
entranhada nas relações intersubjetivas e no próprio eu que acaba se
apartando de sua imanência ao longo da história e se tornando um ser
religioso.
Stirner é lapidar: “os crimes surgem de ideias fixas. A sacralidade
do casamento é uma ideia fixa. Da sacralidade segue que a infidelidade
é um crime”. (STIRNER, 1845, p. 122) De acordo com essa ficção social, se
a moralidade é a religião da sociedade moderna, a vontade subjetiva é
um desvio, uma imanência que desobedece a lei transcendente. O gesto
dinamitador do filósofo se situa na existência sensualista que
transforma em nada conceitos genéricos como moralidade,
humanidade, patriotismo. O egoísta não se determina através do outro,
mas através do resgate de si próprio. Uma das passagens que mais
incitaram a anarquista a criticar o puritanismo introjetado desde cedo
pelas jovens é a construção narrativa do filósofo sobre a autorrenúncia
dos desejos:

Para onde quer que se olhe, encontraremos vítimas da autoabnegação. Ali,


na minha frente, está uma garota que talvez já há dez anos vem fazendo
Larissa Guedes Tokunaga • 147

sacrifícios cruéis à sua alma. Sobre o seu corpo cheio de vigor pende uma
cabeça cansada de morte, e as maçãs pálidas do seu rosto denunciam a
sangria lenta da sua juventude. Pobre criança, quantas vezes as paixões
bateram na porta do seu coração e os intensos poderes da juventude
reclamaram os seus direitos? Quando a sua cabeça revirava no travesseiro
macio, como a natureza desperta tremia pelos seus membros, como o
sangue inchava as suas veias e fantasias ardentes derramavam o brilho da
volúpia nos seus olhos! Mas aí aparecia o fantasma da alma e da sua bem-
aventurança eterna. Você ficava aterrorizada, suas mãos se recolhiam, seus
olhos atormentados se voltavam para o alto, você rezava. As tempestades
da natureza foram silenciadas, a calmaria deslizou sobre o oceano dos seus
desejos. [...]Adormecias, e despertavas pelas manhãs para novas batalhas e
novas orações. Agora, o hábito da renúncia gela o calor do seu desejo e as
rosas da sua juventude estão se tornando pálidas na anemia da sua
beatitude. A alma está salva, o corpo pode perecer. (GOLDMAN, 1935, p.251)

Quando Emma Goldman mobiliza o extenso excerto supracitado,


ela aborda o amor e o desejo enquanto forças indômitas, não obstante
exista a insidiosa captura operada pela moralidade religiosa. Para a
anarquista, não se trataria somente de rechaçar o casamento, mas de
desessencializar uma servidão à própria obrigatoriedade moral
embutida na psicologia que sustenta o contrato. Rechaçando a ideia de
que o casamento seria a salvaguarda do amor, Emma Goldman mostra
que este último não necessita de preservação, mas de uma
descolonização. Segundo ela argumenta, as mulheres:

Pensavam que tudo o que necessitavam era a independência dos tiranos


externos; os tiranos internos, muito mais perigosos para sua vivência e
desenvolvimento –as convenções éticas e sociais– elas os relegaram a
segundo plano; e agora estão muito insidiosos. Habitam perfeitamente nas
cabeças e nos corações das mais ativas defensoras da emancipação
feminina, assim como estavam nas cabeças e corações de suas avós.
(GOLDMAN, 1910, p. 134)
148 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao profanar a narrativa de que, no casamento monogâmico e


heterossexual homem e mulher são um só em corpo e espírito, Emma
Goldman propugna que as individualidades humanas são
singularidades com temperamentos e afetos imanentes. Considerando
tais singularidades, somente em uma construção social anarquista é
possível estilhaçar o ideal de uma união que, historicamente, reprime o
amor livre e a maternidade voluntária. O casamento, segundo seu
prisma, seria um artifício social que desmobiliza as mulheres, anulando
suas potencialidades de luta e de prazer.
Contudo, é necessário ressaltar que o pensamento goldmaniano
não rechaça as uniões voluntárias: pelo contrário. Ao diagnosticar que
muitas mulheres de sua época abdicavam do amor para encontrar uma
pretensa emancipação através da dedicação integral ao mercado de
trabalho, a militante apelava a um vitalismo pautado em um
alinhamento dos desejos à natureza pulsional, fisiológica. Assim, Emma
Goldman não deixava de resvalar em um essencialismo. Efetivamente,
essa anarquista foi uma mulher imersa em um cenário de fervilhar da
psicologia sexual, dos manifestos individualistas e de uma imprensa
libertária que alardeava a experimentação.
É relevante sublinhar ainda que o anarquismo praticado por Emma
Goldman foi tributário de uma negação da tradição de culpa judaico-
cristã e da afirmação de uma necessária harmonização entre “instintos
individuais” e “instintos sociais”. (GOLDMAN, 1908, p.1). O casamento,
ao se tornar um contrato que pretensamente apazigua as contradições
dos afetos e pulsões, representaria um monopólio dos artifícios que
cinge a espontaneidade humana.
Larissa Guedes Tokunaga • 149

Nos filósofos individualistas como Max Stirner, a anarquista


encontrou um gesto radical que tornou patente a incongruência entre
casamento e amor: a dessacralização. Assim, ao não relegar a discussão
sobre o casamento como algo restrito à inviolabilidade do lar doméstico
e à sacralidade da narrativa edênica, Emma Goldman esboroa os limites
entre privado/público e situa a coextensão de poderes que se infiltra na
submissão de mulheres à figura patriarcal. Para ela, a problemática do
casamento sempre foi uma janela para repensar a própria configuração
de liames antiautoritários entre as pessoas. Afinal, o amor é um fio
autônomo que não se rende à costura social.

REFERÊNCIAS

CALVERTON, Victor Francis. Sex expression in literature. New York: Boni &Liveright,
1926.

CARPENTER, Edward. The Intermediate Sex. Newberg: Barclay Press, 2011.

ELLIS, Havelock. Psicologia do Sexo. Tradução de Pedro Pôrto Carneiro Ramires.


Editorial Bruguera, 1971.

FISCHER, Jacques. Love and Morality: an attempt at a physiological interpretation of human


thought. New York: Alfred A. Knopf, 1927.

GOLDMAN, E. “A tragédia da emancipação feminina” (1906). Disponível em:


<https://diplomatique.org.br/a-tragedia-da-emancipacao-feminina/>. Acesso em:
10 de Janeiro de 2022.

_________________. “Casamento e Amor” (1910). Sobre Anarquismo, Sexo e


Casamento. São Paulo: Hedra, 2021.

________________. “Ciúmes: causa e uma possível cura” (1912). Disponível em:


<https://amoryanarquia.wordpress.com/2012/01/19/ciumes-causas-e-uma-
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________________. “O Elemento sexual da vida” (1935). Sobre Anarquismo, Sexo e


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150 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

_______________. O indivíduo, a sociedade e o Estado, e outros ensaios. 2 ed.


Tradução e organização: Plínio Augusto Coêlho. São Paulo: Hedra, 2007.

_______________. Questão Feminina. São Paulo: Biblioteca Terra Livre, 2019.

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_____________.”The Social Significance of the Modern Drama” (1914). Disponível


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_______________. Vivendo Minha Vida. Tradução: Nils Goran Skare. Curitiba: L-


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STIRNER, M. “Algumas observações provisórias a respeito do estado fundado no amor”.


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em 18 de abril de 2023.

TOKUNAGA, L. G. “Emma Goldman e as chamas gêmeas da revolta: vida e arte na construção


da individualidade humana em leitura anarquista de Max Stirner e Henrik Ibsen”. Tese
de Doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2023.
SOBRE A SUBORDINAÇÃO DA MULHER NO LAR:
6
A ONTOLOGIA HEIDEGGERIANA E SUA INFLUÊNCIA
NO FEMINISMO DE SIMONE DE BEAUVOIR
SOB A ÓTICA DE YOUNG E IRIGARAY
Luana Goulart de Castro Alves 1

No primeiro parágrafo de seu texto House and Home: Feminist


Variations on a Theme Iris Marion Young definiu a ideia geral de que casa
e lar são valores profundamente ambivalentes 2. Para quem não conhece
as discussões feministas sobre questões éticas e políticas a respeito da
ideia de “casa”, a frase pode soar como uma afirmação trivial. Na
verdade, a ideia é bem controversa, e por estar ciente da imediata
dissonância sintonizada aos ouvidos de quem está familiarizado com a
discussão, ela fará um grande esforço tentando sustentar e defender
que o lar pode ser visto, pelas feministas, como tendo - também - um
bom valor. 3 Para isso, ela revisita e critica algumas feministas tão

1
Doutoranda em Filosofia no Husserl Archiv da Albert Ludwigs-Universität Freiburg e em Sociologia na
Universidade Estadual do Ceará. Email: s.luanagoulart@gmail.com
2
YOUNG. I. M., House and Home: Feminist Variations on a Theme. In. Feminist interpretations of Martin
Heidegger. edited by Nancy J. Holland and Patricia Huntington. The Pennsylvania State University, 2001,
p.252.
3
Muitas feministas como, por exemplo, Teresa Lauretis e Bonnie Honig entendem o lar como um
elemento patriarcal e absolutamente negativo e, por essa razão, defendem o abandono do mesmo.
Young não nega essa perspectiva, nem se coloca completamente contrária aos argumentos que a
sustentam. Todavia, ela buscará outra perspectiva com a qual também seja possível pensar o lar sob
uma ótica feminista. Nas palavras dela: “The question for postmodern living is whether an end to such
exploitation requires rejecting entirely the project of supporting identity and subjectivity embodied in
the patriarchal ideology of home. The feminist writers with whom I engage in Section VI answer this
question affirmatively. While I accept many of their reasons for leaving home, I wish to explore another
possibility. Is it possible to retain an idea of home as supporting the individual subjectivity of the person,
where the subject is understood as fluid, partial, shifting, and in relations of reciprocal support with
others? This is the direction in which I find Irigaray pointing to an alternative to the desire for fixed
identity that historically imprisons women.” (YOUNG, 2011,p.260)
152 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

importantes como Simone de Beauvoir e Luce Irigaray, além de alguns


aspectos relevantes da fenomenologia hermenêutica de Heidegger, bem
como fará coro com bell hooks na colocação de alguns aspectos
importantes - positivos - do lar.
Portanto, começarei, como fez Young, observando como a
descrição do modo de ser humano em Heidegger 4, que é parte
constitutiva da filosofia de de Beauvoir, é tendenciosa, e acaba nos
deixando perceber exatamente o sentido oposto ao que parece à
primeira vista.
Ainda no início do texto, Young nos diz que, segundo seu
entendimento, Heidegger divide o modo de ser humano em dois
momentos: o de construção (building) e o de preservação (preservation). 5
Se por um lado, somos levados a entender, a partir do que nos propõe o
próprio Heidegger, que a construção e preservação são igualmente
importantes, por outro, Young afirma que este não é o caso, pois um
olhar atento ao pensamento do filósofo nos revela, contra a sua inicial
afirmação, que a construção é a forma privilegiada do modo de ser
humano. Esta percepção, longe de ser algo simples, revelaria então, a
maneira tendenciosamente masculina de se pensar o modo de ser

4
A principal obra de Heidegger na qual estão baseados os apontamentos desse texto é: Martin
Heidegger, Poetry, Language, Thought, trad. Albert Hofstadter. New York: Harper and Row, 1971.
5
É preciso notar que o termo em inglês utilizado por Young, “dwell”, é frequentemente traduzido para
o português como “morar” ou “habitar”. Entretanto, a forma como ele é empregado aqui faz referência
ao pensamento e vocabulário de Martin Heidegger e, portanto, sua tradução para o português, a partir
dessa matriz conceitual, passa por algumas dificuldades. Em primeiro lugar, precisamos notar que a obra
seminal de Heidegger “Ser e Tempo” teve sua primeira tradução, no final da década de oitenta, realizada
por Marcia Sá Cavalcante Schuback, feita diretamente do alemão para o português. Nela o termo alemão
“Dasein” é frequentemente traduzido por “presença”. Em outras traduções de Heidegger para o
português, o termo “ser-aí” também se configura como uma tradução possível para “Dasein”, como no
livro Compreender Heidegger de Marco Antonio Casanova (2014). Por conta dessa dificuldade de
tradução, optei por tratar “dwell” e suas variações por aquilo que a própria Young parece sugerir na
passagem: “I begin by noting Martin Heidegger’s equation of dwelling with the way of being that is
human” (p.253), isto é, modo de ser humano.
Luana Goulart de Castro Alves • 153

humano, pois, tal como Young aponta para nós ao longo do texto, a
construção é associada a atividades eminentemente realizadas por
homens.
Para que seja possível uma melhor compreensão das ideias
destacadas acima, analisaremos mais detalhadamente como a autora
percebe e descreve o modo de ser tal como ele aparece no arcabouço
conceitual heideggeriano. Em primeiro lugar, é preciso estar ciente de
que a ontologia de Heidegger é descrita em um registro universalista.
Heidegger é, pelo menos nesse sentido, um filósofo bem tradicional.
Quando ele nos oferece descrições ontológicas, ele se insere na tradição
filosófica, buscando elucidar, inclusive, a compreensão, ou má
compreensão, do Ser (Sein), segundo sua utilização e desdobramentos
filosóficos desde a filosofia metafísica da Grécia Antiga até o
pensamento filosófico contemporâneo. Isso significa que quando
Heidegger aborda a ontologia, ele não está se dirigindo aos aspectos
materiais e sociais de nossa vida, que dão-lhe particularidade e
especificidade, pois isso se encontra, segundo ele, na perspectiva ôntica.
Logo, quando Heidegger desenvolve sua ontologia, ele não descreve o
Ser segundo distinções de gênero, raça, idade, ou qualquer aspecto que
se determina na esfera ôntica. Esse destaque é importante, pois ele pode
evitar muitos desvios e erros de compreensão quando buscamos
compreender e associar a participação dos gêneros na ontologia de
Heidegger. Todavia, a ontologia de Heidegger é formulada com o intento
de descrever e, assim, fundamentar o que ocorre na esfera ôntica. Isso
significa que o que ocorre na esfera ôntica deve estar em consonância
com a ontologia, e vice-versa, isto é, que o que é descrito na ontologia
tem como base os acontecimentos ônticos. Entrelaçando e tensionando
a relação entre ontologia e onticidade, é possível trazer alguns
154 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

questionamentos interessantes: se, no reino ontológico, o que é


verdadeiro deve ser verdadeiro tanto para homens quanto para
mulheres, isto é, deve ser o caso para seres humanos em geral, quais são
as consequências da ênfase ou privilégio da construção sobre a
preservação no modo de ser humano?
A ideia que se destaca aqui, proposta por Luce Irigaray, vem de um
confronto entre a realidade material, contingente e generificada em que
vivemos e a descrição geral e teórica oferecida por uma filosofia
universalista. Portanto: o que acontece quando confrontamos a teoria
com o nosso cotidiano? Será que ela ainda assim se mantém como uma
boa fundamentação do mesmo? Aplicando esse “experimento” no caso
específico abordado por Irigaray e reportado no texto de Young,
percebemos que, quando pensamos em atividades de construção ou
trabalhos de construção, nota-se que um dos exemplos mais triviais que
logo identificamos é a construção de edifícios ou prédios. A partir desse
ponto, podemos trazer a questão de gênero para o experimento
tentando responder: qual é o gênero ligado à maioria das pessoas que
realizam essas obras de construção de edifícios ou prédios que
conhecemos ou que identificamos quando olhamos ao redor em nosso
cotidiano? Na construção civil, por exemplo, Young diz que a maioria
dos engenheiros e operários que constroem prédios, casas, etc., são:
homens. 6 Mas não é preciso reduzir as atividades de construção a
prédios e edifícios para que a relação entre gênero e a construção fique
evidente; é possível pensar de forma mais artística, por exemplo.

6
Como diz Young: “Even today, when women have moved into so many typically male activities,
building houses and other structures remains largely a male activity in most parts of the world.”(YOUNG,
2011,p. 255)
Luana Goulart de Castro Alves • 155

Um rápido passeio pelo Louvre ou por uma galeria de arte clássica,


ou mesmo quando analisamos uma ópera clássica, descobrimos
rapidamente que a maioria das obras “famosas” e de fácil acesso são
criadas por homens. Esse pensamento pode nos levar à ideia de que
quando privilegiamos o aspecto da construção 7 no modo de ser humano,
estamos, de fato, privilegiando o modo de ser do homem, o que chama
atenção de forma singular exatamente por não ser uma ideia nem um
pouco neutra ou universal. Assim, como já foi dito e ricamente
argumentado por Luce Irigaray, a ontologia de Heidegger, ou o Ser e o
modo de ser heideggerianos, são marcados por uma abordagem sexista. 8
A pretensão universalista que toma corpo em generalismos feitos
sob perspectivas de gênero, no caso, perspectivas masculinas de gênero,

7
O que daqui para frente se refere ao aspecto da construção no modo de ser humano tem origem no
termo em inglês utilizado por Young em seu texto de 2011 como “building”. Neste presente ensaio não
entraremos nos meandros de significado do termo, passando ao largo da caracterização dos dois
aspectos de “building”: “cultivating” e “construction”. De forma simplificada, optamos por traduzir
“building” como “construção”.
8
Acho importante notar que essa prevalência da construção no pensamento de Heidegger, segundo
gostaria de sugerir, pode ser entendida como reminiscência e herança da tradição hermenêutica que
tanto influenciou o pensamento do filósofo. Assim como Georgia Warnke aponta ao longo de seu livro
de 1987,”Gadamer: Hermeneutics, Tradition and Reason”, um dos conceitos mais centrais na tradição
hermenêutica, destacada especialmente em um de seus mais emblemáticos pensadores, isto é,
Friedrich Schleiermacher, é precisamente o momento da criação/construção. Na hermenêutica de
Schleiermacher a compreensão adequada, tal como ele aponta em seus escritos sobre a metodologia
hermenêutica, depende, primordialmente, da possibilidade e capacidade de acessar as intenções do
autor no momento em que ele construiu ou criou a obra interpretada. Esse privilégio da posição do
criador na atividade de interpretação e compreensão não fica restrito ao pensamento de
Schleiermacher, pois é herdado por diferentes pensadores na tradição hermenêutica, destacando-se
entre eles o próprio Wilhelm Dilthey que tanto influenciou o pensamento de Heidegger. É preciso notar,
portanto, que, em primeiro lugar, os pensadores da hermenêutica estavam em um diálogo entre si, isto
é, um diálogo entre homens, e que a maior parte dos exemplos dados por eles em seus textos e
propostas filosóficas se referem aos trabalhos e feitos de outros homens. Além disso, é ter em mente
que, em um primeiro momento, esses pensadores estavam discutindo problemas oriundos da
interpretação de obras literárias e artísticas, ou seja, pensando a compreensão dentro de um contexto
bem restrito. Todavia, também é preciso notar que, gradualmente, o contexto vai se ampliando e passa
a se referir às possibilidades e metodologias para a compreensão em geral. Essa nota busca, dessa forma,
registrar, de forma sucinta, que a relação entre universalismo, criação/construção e gênero é anterior ao
pensamento Heideggeriano, evidenciando seu desenvolvimento na hermenêutica, tradição esta que
aparece com um dos pilares fundamentais para o desenvolvimento do pensamento heideggeriano.
156 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

e rotuladas como neutras é algo para o qual a atenção de algumas


filósofas se volta já há algum tempo. 9 Como consequência, o nosso olhar
também se encontra atento para os meandros das formulações
universalistas desenvolvidas na História da Filosofia e, neste caso, nos
leva a perguntar: se as atividades de construção são realizadas
majoritariamente por homens ou geralmente associadas a atividades
desempenhadas por homens e esse é o modo privilegiado de ser
humano, como se dá e qual é o lugar que ocupa o modo de ser das
mulheres?
A resposta para essa questão fica evidente quando Young reporta,
em suas palavras, como Luce Irigaray entende esse lugar:

Man can build and dwell in the world in patriarchal culture, she suggests,
only on the basis of the materiality and nurturance of women. In the idea
of ‘‘home,’’ man projects onto woman the nostalgic longing for the lost
wholeness of the original mother. To fix and keep hold of his identity man
makes a house, puts things in it, and confines there his woman who reflects
his identity to him. The price she pays for supporting his subjectivity,
however, is dereliction, having no self of her own.(YOUNG, 2011,p.253).

Ou seja, o modo de ser das mulheres é entendido como um


desdobramento do modo de ser dos homens, subordinando o primeiro
ao segundo. Ao longo do texto, o modo de ser das mulheres será
identificado com a característica secundária do modo de ser humano: a
preservação. O modo de ser das mulheres é descrito como a manutenção
das condições que permitem a existência do homem, ou melhor, como a
manutenção do modo de ser do homem. Como o modo de ser das
mulheres (preservação) encontra-se subordinado ao modo de ser do

9
Paradigmaticamente temos o trabalho de Donna Haraway. Cf. HARAWAY. D., Simians, Cyborgs and
Women. New York: Routledge, 1991.
Luana Goulart de Castro Alves • 157

homem (construção) as mulheres não possuem um modo de ser


efetivamente próprio. Dessa forma, as mulheres encontram uma
carência fundamental na constituição de sua subjetividade, isto é, de seu
próprio self. Sua existência é reduzida a manter a existência do Outro
(homem). Sua subjetividade não está fundada em si mesma, ela tem
como causa e sustento o homem. Como consequência, a autonomia e
liberdade das mulheres estariam ontologicamente limitadas,
diferentemente das possibilidades à disposição em uma existência
masculina.

If building establishes a world, if building is the means by which a person


emerges as a subject who dwells in that world, then not to build is a
deprivation. Those excluded from building, who do not think of themselves
as builders, perhaps have a more limited relation to the world, which they
do not think of themselves as founding. Those who build dwell in the world
in a different way from those who occupy the structures already built, and
from those who preserve what is constructed. If building establishes a
world, then it is still very much a man’s world.(YOUNG, 2011,p.256). 10

A aparente interdependência e complementaridade dos dois


aspectos do modo de ser humano, isto é, a construção/criação e a
preservação/manutenção, acaba por não se mostrar equilibrada; pelo
contrário, é deveras assimétrica sob um escrutínio mais rigoroso. Em
primeiro lugar, há uma anterioridade lógica entre construção/criação e

10
É importante ressaltar que a própria Young compreende as considerações feitas por Irigaray sobre
esses aspectos dos lares como eminentemente gerais e universalistas, frutos de uma concepção de lar
extremamente burguesa e que podemos encontrar outras concepções de lar para além desta abordada
por ela em diferentes configurações sociais existentes. Além disso, ela reforça que a ideia de possuir e
consumir objetos para suplantar carências existenciais, seria uma noção fundamentalmente capitalista.
A respeito dessas duas observações bem como exemplos de outras organizações de lares e de como a
autora relaciona identidade com propriedade em uma aberta crítica ao capitalismo, ver a seção do texto
de Young denominada Commodified Home (YOUNG, 2011,pp.260-263) e Contemporary Feminist Rejection
of Home (YOUNG, 2011,pp.277-282).
158 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

a preservação/manutenção: só é possível preservar quando há algo


construído/criado para ser preservado. Ainda que se possa argumentar
que para continuar existindo o que é construído/criado também precisa
ser preservado, e por isso um depende do outro, em termos causais, a
construção/criação é independente da preservação, mas a preservação
é dependente da construção, pois ela não causa a si mesma, sendo um
desenvolvimento da primeira. Esse privilégio da construção/criação
tem um impacto ainda mais significativo quando nos damos conta, a
partir do que foi explicado nos últimos parágrafos, de que o aspecto
construtivo/criador no modo de ser humano é realizado por humanos
com um gênero específico: o masculino; e que o modo de ser do gênero
feminino é o da preservação/manutenção. Como consequência, temos
uma relação assimétrica de dependência e subordinação de um modo de
ser ao outro: o do modo de ser das mulheres ao dos homens. Como
consequência, temos na existência das mulheres uma prisão
ontologicamente constituída: a nossa existência é reduzida à
preservação/manutenção da existência dos homens. A nossa existência,
ou melhor, a nossa subjetividade, portanto, não se configura como
efetivamente autônoma, pois nós precisamos da construção/criação
para que nossa existência se dê como preservação/manutenção.
Demonstramos assim que a limitação na constituição da autonomia
subjetiva das mulheres passa a ter fundamento ontológico. A suposta
universalidade do modo de ser humano, quando olhada sob a
perspectiva aqui apresentada, se mostra deveras parcial.
Agora buscaremos demonstrar como essa relação de suposta
interdependência entre os aspectos do modo de ser humano, e que, na
verdade, se configuram pela dependência das mulheres aos homens,
Luana Goulart de Castro Alves • 159

pode ser percebida como uma inversão heideggeriana da dependência


que os homens têm das mulheres a partir de um novo elemento.
Em seu livro The forgetting of the air Luce Irigaray elucida de forma
muito contundente como o “não dito” ou os “silenciamentos” sobre
certos elementos são fundamentais para o pensamento de Martin
Heidegger. A grande ironia presente ao longo do texto e que aparece já
em seu título vem do reconhecimento de que a proposta filosófica de
Heidegger ficou famosa por clamar a “lembrança do Ser”, também
descrita como uma luta contra o “esquecimento do Ser”. Todavia, o que
Irigaray nos aponta é que a “lembrança do Ser” em Heidegger vem às
custas do esquecimento de vários elementos importantes e urgentes
sobre o Ser, e a filosofia heideggeriana se sustenta, dentre outras coisas,
nesse “esquecimento”. Ainda que Heidegger dedique grande parte de
sua obra ao tédio/angústia (Angst) e a Morte, ele “se esquece” de falar
sobre o Nascimento, bem como sobre a relação de dependência inicial
que se desenvolve na maternidade. Alguns poderiam dizer que
Heidegger não se dedica à relação de maternidade por ela ser uma
relação social e que Heidegger estava mais preocupado em fundamentar
o Ser ontologicamente. Todavia, o filósofo fala sobre a finitude (Morte)
e como ela transforma nosso modo de ser, mas quando falamos sobre o
início da vida, temos como marco o ser-jogado, e toda a materialidade e
corporeidade do nascimento são “esquecidos” em sua filosofia.
Entretanto, esse é um ponto de extremo interesse para nossa finalidade.
Ainda que o desenvolvimento tecnológico permita que hoje o
nascimento não se limite ao parto da mulher, a forma mais comum de
seu acontecimento continua sendo essa. Portanto, a criança 11 nasce do

11
A palavra “criança” em português, diferentemente de “Kind” em alemão, ou “kid”/”child” em inglês
conserva em seu radical a “criação”. Chamamos de “criação” também, não apenas a geração do corpo
160 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

corpo da mãe. Mais do que isso, ela é gerada (criada) e nutrida (mantida)
no corpo da mãe até seu nascimento. Além disso, ao nascer, a
preservação da vida da criança, isto é, sua “criação” também se
encontram sob a responsabilidade da mãe. 12 Logo, a criança, seja ela do
sexo que for ou do gênero que for, se encontra, desde o momento de sua
geração no útero da mulher, em uma relação de dependência. Todavia,
essa dependência não é simétrica. A mãe pode preservar sua própria
vida, mas nessas situações, a criança depende da mulher para
sobreviver. Assim sendo, percebemos que uma das primeiras relações
assimétricas em que nos encontramos é com nossas mães. Esse é um
importante sentido em que Heidegger “esquece” o nascimento: segundo
sua ontologia, somos seres jogados, e com isso, ele “esquece” a
dependência da mulher que nos constitui primariamente. Muito pelo
contrário, o que demonstramos nos parágrafos acima é como sua
filosofia implica uma inversão dessa assimetria: o gênero feminino
passa a depender existencialmente do masculino. É como se ele
reconhecesse que as mulheres, talvez pensadas a partir do paradigma
da mãe, tal como Irigaray propõe que Heidegger o faz, sejam percebidas
por um dos aspectos associados à maternidade: a
preservação/manutenção da vida da criança. Contudo, ainda que ele
reconheça a dependência que isso gera, há uma inversão causal oriunda
de uma tal redução, pois a existência da mulher não se reduz à

da criança, mas a educação e os mais diversos cuidados infantis destinados à manutenção da vida e
bem estar da criança. Dessa forma, a ideia de “criação” apresenta em si as duas facetas do modo de ser
humano: construção/criação e preservação/manutenção. Em alemão traduzimos “criação” por Erziehung
e para inglês rase ou bring up, e, em ambos os casos essa aglutinação das duas perspectivas sob um
mesmo signo, bem como o caráter de ambiguidade do termo também se perdem.
Não reclamo uma pretensão normativa com essa caracterização, faço apenas uma descrição com base
12

em percepções sociais sobre o acontecimento. Também não defendo que esta é uma descrição
naturalista, pois como disse, tomo como base a percepção do que acontece na esfera social.
Luana Goulart de Castro Alves • 161

maternidade. Para ser mãe ela precisa da existência da criança, mas


para ser mulher não. Além disso, podemos pensar que se seu modo de
ser é preservação, ela poderia apenas preservar a si mesma. Então
porque é que ela preserva o Outro (homem)? É possível compreender
que, se socialmente o homem depende da mulher para se preservar – e
Irigaray fala abertamente sobre isso quando discute a ideia de lar 13 –,
então seria de se esperar que essa dependência acabasse inscrita na
própria ontologia do homem, e que a mesma refletisse e fundamentasse
suas relações sociais. 14
Agora precisamos compreender como essas reflexões acerca da
ontologia Heideggeriana são herdadas e desenvolvidas no pensamento
feminista de Simone de Beauvoir 15.
Ao longo de O segundo sexo, Simone de Beauvoir descreve como a
identidade e a subjetividade do ser humano se desenvolvem em sua
existência. A filósofa coloca que, para que seja possível uma
subjetividade autônoma e livre, é preciso que dois aspectos da existência
ocorram: a transcendência e a imanência. Segundo Young, no arcabouço

13
Segundo a descrição feita por Young sobre o pensamento de Irigaray, a existência do homem se
caracteriza pela nostalgia. Essa nostalgia se deve a falta que o homem sente de seu primeiro lar: o útero
da mãe. Sua existência, portanto, segue uma busca constante de re-construir esse lar perdido, e para
realizar essa empreitada, ele se utiliza da matéria-prima mulher. Em oposição a nostalgia temos o
relembrar, que caracteriza a existência da mulher e se distingue da nostalgia, na medida em que, o
primeiro é uma busca por algo que se encontra em outro lugar/tempo, e o segundo é a afirmação do
que nos trouxe até o presente. Young diferencia os dois da seguinte maneira: “Where nostalgia can be
constructed as a longing flight from the ambiguities and disappointments of everyday life,
remembrance faces the open negativity of the future by knitting a steady confidence in who one is from
the pains and joys of the past retained in the things among which one dwells.”(YOUNG, 2011, p. 275).
Para um aprofundamento na distinção entre nostalgia e o relembrar, Young recomenda: On the
distinction between nostalgia and memory, see Gayle Greene, ‘‘Feminist Fiction and the Uses of
Memory,’’ Signs 16, 2. Winter, 1991, pp.290–321.
14
A ontologização da referida dependência que o homem apresenta é, inclusive, um fator que
dificultaria a possibilidade de responsabilização moral do próprio homem por esta dependência.
15
As considerações desta seção do ensaio tomam como base, especialmente, aquelas formuladas por
Young na parte do seu texto sob o título de “Historicity, Preservation, and Identity - Beauvoir on
Housework'' (pp. 267-277).
162 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

conceitual de de Beauvoir, transcendência significa a expressão da


“subjetividade individual” 16. É por meio dela que as atividades
praticadas pelos seres humanos articulam e transformam o significado
de passado, presente e futuro 17, e também é com ela que transformamos
e contribuímos com a humanidade. Quando praticamos atividades de
transcendência, nossas ações deixam de ter significado só para nós e
nossa existência deixa de estar presa apenas ao curso do tempo presente
e se tornam parte da História: é praticando-as que nossa
individualidade acontece, e nossas existências transcendem tanto o
tempo quanto a nossa própria existência. Elas são associadas a
“progressão”. Do outro lado, encontramos seu par complementar: a
imanência. As atividades de imanência são aquelas que se encontram no
eterno presente, são as atividades cotidianas que todos nós praticamos,
e que, por isso, não nos individualizam. Quando as praticamos, não
entramos na História, não articulamos com elas passado, presente e
futuro e nem transformamos o significado da História. De Beauvoir as
associa a “manutenção” 18. Seria por meio de uma dinâmica de
alternância entre ambas que a nossa individualidade subjetiva se
realiza, isto é, é por meio dessa dinâmica que nossa existência se realiza
de forma livre e autônoma.
O que é interessante nessa dinâmica de atividades de
transcendência e de imanência é que parece que nem todos os humanos
têm a possibilidade efetiva de realizá-las. O gênero joga um papel

16
“In the existentialist framework Beauvoir uses, transcendence is the expression of individual
subjectivity.” (YOUNG, 2011,p.268).
17
Essa articulação entre passado, presente e futuro recebe o nome de “projeto”, e este conceito também
é herdado da filosofia heideggeriana.
18
A associação entre progressão e manutenção com transcendência e imanência pode ser verificada em
Simone de Beauvoir, The Second Sex, trans. H. M. Parshley. New York: Random House, 1952, p. 430.
Luana Goulart de Castro Alves • 163

central na possibilidade de realização de ambos os tipos de ações, tal


como nas considerações sobre o modo de ser em Heidegger, segundo
nos sugere Irigaray. Segundo de Beauvoir, os homens teriam a
possibilidade de realizar ambas, especialmente com o casamento.
Enquanto o homem pratica a transcendência em suas atividades na vida
pública, na vida privada sua esposa garante sua possibilidade de
usufruir do tempo presente e da manutenção de sua existência. 19
É interessante notar como de Beauvoir associa as atividades de
imanência com as atividades do trabalho doméstico (housework). Sobre
isso, Young nos diz:

The temporality of immanence is cyclical, repetitive. As the movement of


life it moves in species time unpunctuated by events of individual meaning.
The cycles go around, from spring to summer to fall to winter, from birth
to death and birth to death. Beauvoir describes the activity of housework as
living out this cyclical time, a time with no future and no goals. (YOUNG,
2011, p.268-269)

Portanto, enquanto as mulheres se encontram impedidas de viver


a vida pública livremente, elas se encontram presas no lar realizando
apenas trabalho doméstico, e assim, existindo apenas na imanência. A
assimetria oriunda dessa dinâmica existencial, supostamente universal
e humana, se realiza, na realidade, via uma desigualdade evidente de
poder segundo determinações de gênero. De forma ainda mais acintosa,
a própria existência das mulheres se desenvolve de forma apenas
parcial, pois a impossibilidade de elas realizarem atividades necessárias

19
“In his occupation and in his political life he encounters change and progress, he senses his extension
through time and the universe; and when he is tired of such roaming, he gets himself a home, where
his wife takes care of his furnishings and children and guards the things of the past that she keeps in
store.” (DE BEAUVOIR, 1952, p.430).
164 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

para que possam desenvolver sua individualidade e subjetividade, as


priva de uma existência efetivamente autônoma. 20 A assimetria de
poder e subordinação da existência das mulheres à existência dos
homens, que está presente no pensamento de Heidegger tal como
Irigaray nos aponta, parece encontrar eco também na filosofia de
Simone de Beauvoir. 21
Dessa maneira, de Beauvoir associa apenas valores negativos às
atividades realizadas como trabalhos domésticos. Young, por sua vez,
concorda que parte do trabalho doméstico é tedioso e que a vida
confinada exclusivamente à ele é uma vida escravizada. Todavia,
segundo ela, é importante reconhecer que milhares de mulheres
dedicam sua vida à ele, e que ao fazê-lo, elas não o identificam apenas
como algo nocivo e pernicioso. Cuidar 22 da casa e das crianças são, para
muitas delas, um “projeto humano significativo” 23.
Com o objetivo de respeitar a voz dessas mulheres e o valoroso
significado que elas encontram em sua existência, Young nos propõe
seguir os passos de Irigaray para que possamos perceber e valorizar os
significados silenciados realizados nas atividades tradicionais
desenvolvidas pelas mulheres. Para ela, a redução da existência ao
dualismo dicotômico entre transcendência e imanência faz com que não

20
“The activities of sustaining life, however, according to Beauvoir, cannot be expressions of
individuality. They are anonymous and general, as the species is general. Thus if a person’s existence
consists entirely or largely of activities of sustaining life, then she or he cannot be an individual subject.
Women’s work is largely confined to life maintenance for the sake of supporting the transcending
individual projects of men and children.” (YOUNG, 2011, p. 268).
“As in Irigaray’s account, for Beauvoir man’s subjectivity draws on the material support of women’s
21

work, and this work deprives her of a subjectivity of her own.” (YOUNG, 2011, p.268).
22
Young utiliza o termo “to care for”, e, por isso, ele foi traduzido como “cuidar”. (YOUNG, 2011, p.269).
23
“But such a completely negative valuation flies in the face of the experience of many women, who
devote themselves to care for house and children as a meaningful human project.” (YOUNG, 2011,
p.269).
Luana Goulart de Castro Alves • 165

percebamos o caráter histórico e individual na realização do trabalho


doméstico. Na execução dessa empreitada, Young nos convida a olhar
com profundidade e analisar de forma cuidadosa as diferentes
atividades do trabalho doméstico. Seguindo seu convite, percebemos
que parte dessa generalização responde por uma redução do que ela
denomina homemaking 24 ao trabalho doméstico de forma geral. Para ela,
de Beauvoir errou ao reduzir todo (ou a maior parte) do trabalho
doméstico às atividades imanentes. Young nos insta a perceber que nem
todo trabalho doméstico é homemaking. Seu argumento se desdobra da
percepção de que homemaking acontece por meio do desenvolvimento
da identidade subjetiva. Baseando-se nas percepções e apontamentos de
D. J. Van Lennep 25, ela chama atenção para os dois níveis no processo de
materialização da identidade no lar: “(1) my belongings are arranged in
space as an extension of my bodily habits and as support for my
routines, and (2) many of the things in the home, as well as the space
itself, carry sedimented personal meaning as retainers of personal
narrative.” (YOUNG, 2011, p. 270).
Van Lennep mostra que a própria existência constitui o espaço em
que o sujeito se encontra no lar, e Young entende que os dois níveis por
meio dos quais a materialização no lar ocorrem levam àqueles que
habitam o lar a identificarem a si mesmos por meio de e com os espaços
habitados. É importante notar que nesse processo, “as coisas materiais

24
Visto nossa discussão aqui desenvolvida por Young a respeito das dicotomias criação/construção x
manutenção/preservação e transcendência x imanência, encontramos uma certa dificuldade para
traduzir o termo para o português e ainda assim manter a ideia que Young nos transmite com o mesmo,
bem como a fluidez deste ensaio. Homemaking é a forma como Young nos mostra que a construção de
um lar e sua manutenção são tarefas realizadas, muitas vezes, por meio das mesmas atividades,
demonstrando a dificuldade em separar as duas ideias, nas práticas do trabalho doméstico. Dessa forma,
optamos pela utilização do termo em inglês, tal como ele aparece empregado por Young.
D. J. Van Lennep, The Hotel Room,’’ in Joseph J. Kockelmans, ed., Phenomenological Psychology: The
25

Dutch School. Dordrecht: Martinus Nijhoff, 1987, p. 209–15.


166 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

e os espaços eles mesmos passam a ter camadas de significado e valor


pessoal como marcadores materiais de eventos e relacionamentos que
constituem a narrativa de uma pessoa ou grupo”. 26 Portanto, são as
próprias existências daqueles que habitam o lar que dão e recebem
sentido e significado tanto para o lar quanto para as identidades
daqueles que nele habitam.
A identidade pessoal, portanto, não se mostra como estática ou
fixa, mas como um processo, pois existimos no próprio fluxo da
História, e por essa razão, a materialização dessa identidade no lar
também não fixa nossa identidade.
Uma vez tendo abordado o aspecto “construtivo” do lar realizado
pelas mulheres, analisaremos de forma mais atenta seu aspecto de
“preservação”. As atividades de homemaking envolvem também a
preservação dos significados do que encontramos e vivemos no lar. É
socialmente comum associarmos as mulheres como as principais
preservadoras da família e de suas tradições. Seja guardando porcelanas
ou fotos, por exemplo, elas guardam também as histórias desses objetos
e momentos, e ao preservá-los e mantê-los “vivos” na existência
presente daqueles que habitam o lar, elas mantêm vivos os significados
dos mesmos. Dessa maneira, Young nos urge a compreender o lar como
tempo e história.
A filósofa identifica também no pensamento de Sartre a tendência
que se manifesta no pensamento de de Beauvoir de associar
historicidade ao futuro. Todavia, esse foco desproporcional no futuro a
levaria a ignorar o valor das atividades relacionadas ao passado. Para de

26
No original: “Material things and spaces themselves become layered with meaning and personal value
as the material markers of events and relationship that make the narrative of a person or group.”
(YOUNG, 2011, p.271).
Luana Goulart de Castro Alves • 167

Beauvoir, nossa falta de liberdade e nossa limitação em existirmos


efetivamente como sujeitos autônomos se reduzem à nossa
impossibilidade (social) de realizarmos atividades de
criação/construção. Dessa forma, ao não reconhecer a existência de
atividades de preservação de significado do passado que ocorrem com o
trabalho doméstico, de Beauvoir deixa de perceber o significado de
construção-de-mundo que há nele. De Beauvoir não atenta para o fato
de que o significado presente na historicidade depende de forma igual
tanto do passado quanto do futuro. 27 É por meio das atividades de
preservação que as crianças aprendem os significados das coisas e,
assim, conferem sentido e significado contextualizando sua existência
e individualizando suas histórias ao mesmo tempo em que formulam
seus próprios projetos. Young também enfatiza a diferença de
temporalidade na preservação e na construção. Segundo ela, a
construção é uma ruptura na continuidade da história, já a
temporalidade da preservação é a recorrência. 28
Ainda que a “preservação”, tal como Young a descreve, soe deveras
conservadora, é preciso reconhecer que essa preservação não significa
necessariamente a fixação de significados, pois os mesmos são
interpretados e reinterpretados 29 ao longo das vivências no tempo, e por
isso mesmo, eles estão sempre abertos para mudanças e

27
Young identifica o mesmo tipo de redução às categorias de transcendência e imanência nas distinções
entre labor e work realizadas por Hannah Arendt em seu livro de 1958, “A condição humana”.
28
“As a founding construction, making, is a rupture in the continuity of history. But recurrence is the
temporality of preservation.” (YOUNG, 2011,p. 274).
29
É importante notar aqui a identificação das atividades realizadas pelas mulheres na interpretação e
reinterpretação de significados como eminentemente hermenêuticas. Young tenciona, portanto, o
sexismo presente na tradição hermenêutica e parcialmente descrito na nota 29, ao acentuar o aspecto
hermenêutico das atividades realizadas pelas mulheres nos lares.
168 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

transformações. 30 Quando as histórias e tradições familiares são


recontadas, entrelaçam-se passado e presente e, com isso,
transformam-se os significados de ambos. Nas palavras dela:

Homemaking consists in preserving the things and their meaning as


anchor to shifting personal and group identity. But the narratives of the
history of what brought us here are not fixed, and part of the creative and
moral task of preservation is to reconstruct the connection of the past to
the present in light of new events, relationships, and political
understandings. ( YOUNG, 2011,p.275)

É preciso reconhecer que Young está ciente do aspecto político


conservador 31 que pode estar implicado nas práticas de preservação, e
sobre isso ela nos diz que essas práticas são, de fato, ambíguas, e ela
mesma é direta e explícita quanto a essa ambiguidade. 32 É precisamente
na ambiguidade e nas diferentes perspectivas pelas quais podemos
compreender a nossa existência que reside, em grande parte, a força do
argumento de Young. A filósofa reconhece que o trabalho doméstico é,
sob certa perspectiva, algo que limita as possibilidades de ser das

30
Young faz referência às ressignificações especialmente em duas passagens: “(...)They must be cleaned,
dusted, repaired, restored; the stories of their founding and continued meaningful use must be told and
retold, interpreted and reinterpreted.” (YOUNG, 2011, p.273) e “The work of preservation entails not only
keeping the physical objects of particular people intact, but renewing their meaning in their lives.”
(YOUNG, 2011,p.274).
31
É preciso iluminar também que a discussão sobre esse conservadorismo político é mais profunda do
que possamos imaginar inicialmente. Se por um lado, a manutenção dos significados dá espaço para
preconceitos que fundamentam o racismo e o sexismo, por exemplo, por outro, a manutenção dos
mesmos pode implicar em resistência política para minorias. Tomada como um exemplo pela própria
Young, bell hooks trata de forma mais direta a relação entre a manutenção de tradições e significados
realizada nas práticas das mulheres nos lares com a resistência política e a constiuição de identidade e
subjetividade para negras e negros nos EUA. Sobre a discussão, ver: YOUNG, 2011, pp. 281-282 e bell
hooks,1990, p.42.
32
“We should not romanticize this activity. Preservation is ambiguous; it can be either conservative or
reinterpretive.”(YOUNG, 2011, p.275) (...) “Like the other aspects of home that I have discussed,
preservation is ambiguous; it can be both conservative and reinterpretive, rigid and fluid.” (YOUNG,
2011, p.277)
Luana Goulart de Castro Alves • 169

mulheres e concorda com as pautas políticas do feminismo que defende


a libertação das mulheres do confinamento aos lares imposto a elas.
Young entende que reduzir as possibilidades de ser das mulheres a essa
exclusiva alternativa é algo a ser combatido. Ela concorda com de
Beauvoir que as mulheres devem poder exercer atividades dos mais
variados tipos e, com isso, exercer sua liberdade e identidade de sujeitos
autônomos. Ela discorda, entretanto, de que as mulheres que foram
confinadas por tantos anos ao lar não tenham uma identidade subjetiva
completamente formada ou que elas não sejam sujeitos efetivamente
autônomos. O que ela confere com isso é o empoderamento político
dessas mulheres, e a possibilidade de se perceber o poder e o valor
positivo em suas práticas, segundo as suas próprias vozes. Defender que
as mulheres possam e devam ter outras possibilidades existenciais não
depende, necessariamente, da negação total de uma perspectiva
positiva aliada às vivências não ideais das mulheres. O poder político
presente no exercício de interpretação das tradições ao significar e
ressignificar o passado, transforma o que compreendemos em nosso
presente e constitui as possibilidades de projetar o futuro. Com esse
poder, as mulheres “criam-mundos”, participando de forma decisiva no
desenvolvimento da identidade e subjetividade de si e de todos aqueles
que habitam o lar com ela. Perceber e reconhecer esse poder nos leva a
compreender que as mulheres não devem ser forçadas ao confinamento
do espaço doméstico, pois, assim como os homens, elas se encontram
igualmente capazes de realizar os mais diversos tipos de atividade que
requerem esse tipo de habilidade, como, por exemplo, a constituição de
leis e a gestão nacional. Essa percepção ajuda a construir e defender as
pautas de liberdade das mulheres e equidade de poder entre os gêneros
na esfera pública e na esfera privada.
170 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

REFERÊNCIAS

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HUNTINGTON, P. (eds) Feminist interpretations of Martin Heidegger. The
Pennsylvania State University, 2001, p. 252-288.
EMMA GOLDMAN E O CASAMENTO COMO
7
INSTITUIÇÃO IRREFORMÁVEL 1
Mariana Lins Costa 2

I. CASAMENTO E PROPRIEDADE: A MULHER COMO MERCADORIA SEXUAL

Não é por acaso, por gosto, inclinação ou por alguma espécie de


“birra” que, na abordagem anarquista de Emma Goldman sobre a
questão do seu “sexo”, conforme sua terminologia, o tema do casamento
ocupe lugar central. Pensar a mulher implica necessariamente pensar
sobre o casamento e, curiosamente, como se, por consequência, sobre a
maternidade. Embora o mesmo não se aplique ao homem. Conforme a
história do pensamento ocidental parece atestar, salvo talvez nas
últimas décadas, pensar sobre o homem prescinde da reflexão sobre o
casamento ou sobre a paternidade. Essa “necessidade” da relação entre
os temas do casamento e da condição feminina não decorre, porém, de
alguma suposta natureza intrínseca da mulher, de um suposto conjunto
de “virtudes maritais” naturais, como se oriundas do útero; como
tampouco se deve a alguma espécie de predestinação espiritual ao amor
incondicional que render-lhe-ia, quando bem-sucedida, o posto
máximo de “rainha do lar”. Para Goldman, o casamento nada tem de
natural, na mesma medida em que nada tem de espiritual e o que é ainda

1
O presente texto é composto, na sua maior parte, de excertos retirados da “Introdução” para o livro
GOLDMAN, EMMA. Sobre anarquismo, sexo e casamento. Tradução, organização e notas Mariana Lins. São
Paulo: Hedra, 2021. Uma primeira versão deste texto, para fins de divulgação da coletânea então recém-
lançada, foi publicada no site A terra é redonda, em dezembro de 2022.
2
Professora de Ética e Filosofia Política da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Endereço eletrônico:
marianalins_@hotmail.com
172 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

mais surpreendente: nada tem em comum com o amor. Se pensar a


questão do sexo feminino implica necessariamente pensar sobre o
casamento, isso se dá pelo fato de que o casamento foi, ao longo de eras,
o meio principal, quando não o único, de a mulher alcançar alguma
seguridade material, e, nos melhores casos, a ascensão econômica e
social.
A consequência de tal “empregabilidade” mercantil do amor e do
corpo é trágica, porque abrange a totalidade da mulher, não é particular
ou acidental, como à primeira vista se poderia supor. Ao contrário:
praticada, ao longo das eras, passou a dizer respeito ao seu “espírito”.
Com a degradação à condição de “mercadoria sexual” (cujo fim primeiro
e último seria o de proporcionar prazer sexual ao homem e/ou a
procriação), tudo aquilo que é considerado belo e elevado numa
personalidade, como a honra, a inteligência, a profundidade e mesmo a
utilidade, torna-se, quando na mulher, mero acidente de uma condição
essencialmente “sexual”; e, portanto, um conjunto de atributos
contingentes, logo dispensáveis; quando não indesejáveis. Vide nesse
sentido o diagnóstico contido no seu texto Casamento e amor (1910):

Não há necessidade de a mulher saber qualquer coisa sobre o marido, exceto


a sua renda. E o que o homem precisa saber sobre a mulher que não seja se
ela possui uma aparência atraente? Ainda não superamos o mito teológico
de que a mulher não tem alma, que ela é um mero apêndice do homem [...]
quanto menos alma uma mulher tiver, mais adequada estará à condição de
esposa, mais prontamente irá se deixar absorver em seu marido
(GOLDMAN, 2021, p. 143).

Com o intuito de esclarecer a condição de “mercadoria sexual” a


que a mulher foi degradada, Goldman destaca que ao longo das eras, as
duas qualidades mais notáveis da mulher, mais notáveis porque as mais
Mariana Lins Costa • 173

negociáveis, foram a juventude e os atrativos físicos – o que poderia ou


não vir acompanhado de acordos envolvendo dotes e contradotes. Uma
negociação milenar (em geral, levada a cabo por homens) que teve, por
consequência, a redução cultural da mulher a essas qualidades. E isso,
quando, de um lado, a juventude e a beleza física que lhe é característica
são atributos, por natureza, necessariamente passageiros; e de outro,
quando a jovialidade, saúde, e florescimento sexual da mulher são
justamente as qualidades que tendem a definhar precocemente no
interior de uma vida, em geral, miserável e infeliz.
Ora, mas por que o casamento deveria ser decifrado como fórmula
geral de uma vida miserável e infeliz? Não deveria ser antes o contrário?
Neste ponto, Goldman é implacável: ela nos faz atentar que com o
aumento ininterrupto do número de filhos (consequência natural da
proibição legal contra os métodos contraceptivos que vingava na
época), 3 o aumento do trabalho doméstico, das noites sem dormir, e, não
tão raramente assim, das brigas com o marido e, no caso da imensa
maioria das mulheres, do orçamento econômico cada vez mais
insuficiente para a prole numerosa; a vida em casamento tenderia, em
geral, ser mesmo miserável e infeliz. Além disso, é importante
considerar que, nos tempos de Goldman, à esposa (consumida pelo
cárcere doméstico que o casamento lhe impunha) estavam vedados
praticamente todos os meios para o alívio da infelicidade que são
oferecidos pela cultura moderna. Conforme a anarquista descreve no
seu texto Casamento (1897): o homem podia esquecer

3
Em 1873 a lei que conhecida pelo nome do seu autor, Comstock Act, foi aprovada pelo governo federal
– e, dentre outros absurdos, tornava crime sujeito à cárcere possuir, distribuir ou fornecer informações
sobre métodos contraceptivos ou o aborto. Somente em 1936 essa lei foi considerada inconstitucional;
não obstante apenas em 1972, os métodos de controle de natalidade foram liberados para as mulheres
solteiras em todo território estadunidense.
174 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

momentaneamente as “suas desgraças na companhia dos amigos”,


podia “se deixar absorver pela política, ou afogar suas mágoas num copo
de cerveja”; mas a mulher, inexoravelmente acorrentada à casa por
milhares de obrigações, não podia desfrutar de qualquer distração; a
diversão e o prazer individual eram-lhe recusados pela opinião pública
(GOLDMAN, 2021, p. 73). Em poucas palavras, somente a mulher que
permanecesse em servidão à família e ao marido era considerada
respeitável. Ainda que as estatísticas de divórcio estivessem crescendo
a galope na época, a condição de desquitada implicava num fardo
demasiado pesado para as mulheres e seus filhos – um fardo que
economicamente, só poderia ser suportado por poucas. Após oferecer-
nos um tal afresco da infelicidade conjugal universal, Goldman traça, o
último e mais longo ato do destino miserável de uma esposa: o de não
tardar a se encontrar física e psiquicamente arruinada.
Conforme busca fundamentar nos seus estudos sobre a “questão do
sexo”, a condição de mercadoria sexual (sob cujos parâmetros “a
mulher” foi “moldada”) foi garantida, ao longo das eras, através da
escamoteação e santificação dessa condição levadas a cabo pela
Moralidade. Em Vítimas da moralidade (1913), a anarquista é
extremamente direta ao expor a compreensão de que a moralidade e a
religião são instituições a serviço da opressão econômica e social; numa
palavra, instituições à serviço da instituição da Propriedade Privada.
Através da imposição de certa moralidade pelas instituições religiosas
como o único parâmetro verdadeiro de conduta, os mecanismos de
opressão foram envoltos em superstição, o que teve por efeito oferecer
àquilo que é violência, usurpação, sufocamento e perversidade a
aparência de sagrado, de amor, de verdade, de tabu. O casamento, a mãe
e o pai do que se entende por família, é, portanto, uma das principais
Mariana Lins Costa • 175

engenhocas capaz de transvestir a repressão e opressão em amor


pretensamente incondicional.
Na análise de Goldman, casamento e propriedade são
indissociáveis, como se duas faces de uma mesma moeda. É interessante
observar que se, de um lado, ela coloca a instituição casamento como
fundamento da propriedade; de outro lado, a própria estrutura interna
do casamento é explicada via a estrutura da instituição da propriedade
privada. Se, para a mulher, segundo sua análise, o casamento seria o
“emprego” par excellence; 4 para o homem, o casamento possibilitaria, no
seio da família, o exercício do domínio que o capitalismo, a outra
“instituição paternalista”, exerce sobre ele, quando no trabalho fora do
lar. Conforme sintetiza em Anarquia e a questão do sexo (1896): “O
sistema que força a mulher a vender a sua feminilidade e independência
ao melhor candidato, é um ramo do mesmo sistema malévolo que dá a
poucos o direito de usurpar a riqueza produzida por muitos”
(GOLDMAN, 2021, p. 65). Ou ainda conforme postula, de modo mais
dramático, em Vítimas da moralidade: “Mesmo que todos saibam que a
Propriedade é um roubo;” “que representa o esforço acumulado de
milhões de pessoas que são desprovidas de propriedades”, “a

4
Talvez não seja um erro supor que apesar de todos avanços e conquistas na pauta feminista da época
de Goldman para cá, o casamento como o emprego par excelence ou primeiro da mulher permanece
ainda, no mínimo, como uma verdade simbólica. Circunscrevendo-nos ao Brasil, basta, para nos
inclinarmos a tal conclusão, uma simples observação da quantidade de casamentos e relacionamentos
“estáveis” infelizes em que se encontram metidas mulheres (heterossexuais) financeira e
intelectualmente emancipadas. Os nossos índices de feminicídio que só cresceram durante a pandemia
podem ser também interpretados como uma prova substancial dessa suspeita. E nesse ponto, vale citar
um excerto do texto de Goldman A tragédia da mulher emancipada (1910) que sugere certo
entendimento do porquê dessa preferência por um relacionamento infeliz à vida de solteira: “Já foi
demonstrado repetida e conclusivamente que o casamento tradicional restringe a mulher à função de
mera serva e incubadora de filhos. E, no entanto, encontramos muitas mulheres emancipadas que
preferem o casamento, com todas as suas desvantagens, às limitações de uma vida de solteira:”; vida de
solteira “limitada e insuportável por conta das amarras do preconceito moral e social que enfaixam e
sufocam a natureza [da mulher]” (GOLDMAN, 2021, p. 136) .
176 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

Moralidade da Propriedade estabelece que essa instituição é sagrada. Ai


de quem se atrever a questionar a santidade da propriedade ou pecar
contra ela!” (GOLDMAN, 2021, p. 178) Numa sentença: pecar contra a
Moralidade sagrada do Casamento é, no frigir dos ovos, pecar contra a
Moralidade ainda mais sagrada da Propriedade Privada.
Independentemente das variações da instituição casamento nas
diferentes classes, o ponto nerval é que tal instituição transformou a
mulher, durante um tempo incalculável e supostamente no melhor dos
casos, numa mercadoria sexual que só deveria ser violada legalmente
após o casamento. Com isso, o seu ideal foi transformado na mesma
coisa que a sua desgraça. Quer no interior da legalidade e sacralidade do
casamento, quer não, a função central da mulher, a sua razão de ser foi
subordinada ao seu “sexo”. Daí que a anarquista repita à exaustão (como
em Casamento), que a única diferença entre a prostituta e a mulher
casada seja a de que uma vende a si mesma “como escrava privada
durante toda a vida, por uma casa ou um título”, e a outra vende a si
mesma “pelo período de tempo que deseja” (GOLDMAN, 2021, p. 74).
Afinal, conforme diagnostica no seu texto não publicado em vida Causas
e possível cura para o ciúme (aprox. 1912): “Quando o dinheiro, o status
social, e a posição são os critérios do amor, a prostituição se apresenta
como inevitável, ainda que esteja coberta com o manto da legitimidade
e da moralidade” (Idem, p. 166-7). Sob essa sua perspectiva, o casamento
é nada mais do que uma forma de prostituição sancionada pela Igreja e
pelo Estado. Ou, conforme suas palavras em Tráfico de mulheres (1910):
“para os moralistas, a prostituição não consiste tanto no fato de que a
mulher venda o seu corpo, mas, ao invés disso, que ela venda o seu corpo
fora do casamento” (GOLDMAN, 2021, p. 102). A lógica é aqui
extremamente simples: a substância da prostituição é a mesma que a do
Mariana Lins Costa • 177

casamento – a exploração social, cultural e econômica via a questão


sexual.
Por isso, para Goldman, o casamento é uma instituição
irreformável.

II. PROSTITUIÇÃO: UMA INSTITUIÇÃO NECESSÁRIA À INSTITUIÇÃO


CASAMENTO

Goldman levou em conta, nas suas análises, as diferenças das


condições em que o casamento se estabelece nas classes média e alta, de
um lado, e nas classes trabalhadoras, de outro. Segundo ela, às jovens
das classes trabalhadoras era possível uma expressão mais normal dos
seus instintos físicos e, com isso, do amor. O trabalho precoce fora de
casa, motivado pela necessidade econômica, garantia, em maior ou
menor medida, uma rotina ao lado de homens de diferentes idades, o
que tornava natural que, em algum momento, a jovem em questão
finalmente se entregasse aos calores da sua primeira experiência
sexual. Conforme coloca em Vítimas da moralidade, “Os rapazes e moças
do povo não são moldados de modo tão inflexível pelos fatores externos
e frequentemente se lançam ao chamado do amor e da paixão,
independentemente dos costumes e tradição” (GOLDMAN, 2021, p. 180).
O problema é que ao invés de happy end, a perda da virgindade “sem
a sanção da Igreja”, em conjunto com a precariedade econômica e social
e a criminalização dos métodos contraceptivos, não raro se convertiam,
para essas jovens, num “primeiro passo em direção à prostituição”.
Valendo-se sobretudo do trabalho William W. Sanger, Goldman
compreenderá, como expõe em Tráfico de mulheres, a prostituição como
a consequência direta de uma remuneração desproporcional ao trabalho
honesto (GOLDMAN, 2021, p. 98). Segundo os diversos estudos por ela
178 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

relatados em seus textos, a esmagadora maioria das prostitutas era


formada por mulheres e garotas da classe trabalhadora. Igualmente
fundamentada em estudos e estatísticas, ela também chamará a atenção
para a relação diretamente proporcional entre o aumento da
prostituição e o desenvolvimento do capitalismo com sua sociedade de
massa.
Já que no que diz respeito às mulheres oriundas das classes e
famílias mais abastadas e estruturadas, o próprio “privilégio” de ter a
sexualidade “protegida” na interioridade do lar paterno teria como
efeito atroz um maior sufocamento dos seus instintos físicos e sexuais.
Em condições “ideais”, o exercício da sexualidade da mulher dependia
de encontrar um rapaz que não apenas estivesse disposto a casar-se com
ela, como também que fosse dotado do montante de dinheiro
considerado suficiente para sustentar a vindoura prole. Até que
conseguisse tal montante, isso poderia custar ao jovem casal a espera
de muitos e cansativos anos para a sua primeira relação sexual; muito
embora, os custos fossem aí consideravelmente desiguais. Aos homens,
mesmo se comprometidos, era socialmente permitido e inclusive
estimulado o exercício da sexualidade com prostitutas, o que, portanto,
tornava a prostituição uma instituição necessária à instituição casamento
(GOLDMAN, 2021, p. 174). No que diz respeito à jovem noiva, a ela só
caberia subjugar a sua saúde, vida, paixão, desejo e juventude até que o
“bom” partido em questão estivesse financeiramente apto a tomá-la
como esposa – o que não raro se dava, segundo denunciado por
Goldman, com o noivo já contaminado com as doenças venéreas
adquiridas nos prostíbulos; doenças que ainda hoje são um tabu. É triste
que o que ela alertou há mais de um século – por exemplo, em A
hipocrisia do puritanismo de 1910 – caiba perfeitamente ao nosso tempo
Mariana Lins Costa • 179

supostamente tão liberado do ponto de vista sexual; o alerta de que a


“cegueira deliberada” para com o problema de saúde pública das
doenças venéreas, cegueira imposta pela moralidade, custa-nos abrir
mão do “verdadeiro método de prevenção”, que é simplesmente o de
deixar claro para todos que “‘doenças venéreas não são uma coisa
misteriosa ou terrível, não são um castigo pelos pecados da carne,
alguma espécie de mal do qual se deva ter vergonha [...]; mas, sim, que
são doenças comuns que podem ser tratadas e curadas’” (Idem, p. 91).
A raiz de todo esse desencontro entre os “sexos” é compreendida
por Goldman de modo bastante simples. Trata-se da existência na nossa
sociedade do que foi por ela nomeado de “padrão duplo de moralidade”
– sob o qual homens e mulheres eram educados de forma tão
completamente distintas, dotados de hábitos e costumes condizentes a
mundos tão profundamente separados, que teriam sido transformados
em seres, praticamente, alienígenas um ao outro (GOLDMAN, 2021, p.
103). Um “padrão duplo de moralidade” que daria origem a seres tão
estranhos um ao outro, tão moralmente divergentes um do outro no que
diz respeito à sexualidade e ao amor, que o desencontro sexual e afetivo
não poderia ser mais absoluto. E mais do que isso: sem o conhecimento
e o respeito mútuos, todo e qualquer tipo de união está fadado ao
fracasso (Idem, p. 143).

III. O EFEITO MAIS PERNICIOSO DA MORALIDADE SOBRE A MULHER: A


REPRESSÃO DO “ELEMENTO SEXUAL”

No sentido mais elementar e originário, porque primeiro, o efeito


mais pernicioso da Moralidade sobre as mulheres diz respeito à
repressão sexual. Para Goldman dentre todas as forças que atuam sobre
nós, seres humanos, o impulso sexual se não a única, é a mais
180 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

importante. Conforme escreve no seu rascunho inacabado O elemento


sexual da vida (aprox. 1934), o sexo é a “função biológica primária” de
toda forma de “vida superior”, de modo que a ele, “devemos mais do que
à poesia”: do canto dos pássaros à música, da plumagem das aves-do-
paraíso à juba do leão; das formas superiores de vida do mundo vegetal
e animal à própria cultura com seus costumes não raro tolos, insensatos
e injustos; tudo isso, escreve Goldman, devemos debitar na conta do
sexo (GOLDMAN, 2021, p. 249-50).
Amparada pelo discurso psicanalítico da época — segundo o qual a
pulsão de vida seria biologicamente determinada no sentido de buscar
sempre, e cada vez mais, agregar a substância viva dispersa em
partículas (o que tenderia a tornar a vida cada mais complexa, variada
e, no nosso caso, multicultural) –, Goldman compreenderá a sexualidade
para além do gozo propriamente dito, mas como a fonte mesma de toda
socialização e criatividade. O “instinto sexual é o instinto criativo”,
postula (GOLDMAN, 2021, p. 258); e é por expressar, em todo lugar e a
cada instante, “essa grande necessidade de união”, que essa “faculdade
é social” e “o começo do panorama da arte” (Idem, p. 251). Numa
sentença: “A natureza sabe sempre mais” – e é a ela que devemos nos
voltar, de modo a nos livrarmos da “doutrina profana e antinatural,
iniciada pelos primeiros monges cristãos, de que o impulso sexual é o
sinal de degradação do homem e a fonte da sua energia mais diabólica”
(Idem, p. 249).
A sua crítica às instituições da moralidade e da religião, no que
tange à mulher, extrapola, portanto, os limites da denúncia do papel que
exercem na escamoteação da opressão social e econômica; tais
instituições atacam a vida da mulher na própria “raiz”: o elemento
sexual. Nas trilhas abertas por Nietzsche, Goldman irá compreender a
Mariana Lins Costa • 181

moralidade e a religião como antinaturais, como caluniadoras e


sufocadoras da vida. Mas para além de Nietzsche, essa ativista política
deu bastante ênfase à compreensão de que a “atividade sexual” não é
“um ato isolado”, mas “uma experiência generalizada que motiva e afeta
toda a personalidade” (Idem, p. 260). Na medida em que a sexualidade se
confunde com a própria personalidade, eis a tragédia de a instituição
casamento ter sido imposta como a única válvula de escape socialmente
aceita para o despertar sexual da mulher. E que as duas outras, por
assim dizer, “opções”, tenham sido, de um lado, a abstinência sexual –
caso das, popularmente, conhecidas como “solteironas” – e, de outro, a
prostituição.
Goldman parece alocar a repressão sexual como causa ou
significado do casamento e da prostituição, antes mesmo do que a
opressão econômica. Como se a redução da mulher à condição de
mercadoria sexual exigisse antes, para essa redução mesma, a repressão
sexual. “Seria tanto parcial, quanto extremamente superficial
considerar o fator econômico como a única causa da prostituição” –
pondera em Tráfico de mulheres de 1910 (GOLDMAN, 2021, p. 102). Uma
repressão sexual generalizada que foi imposta e “santificada” pela
Moralidade (ao menos no que diz respeito ao universo judaico-cristão)
através de um duplo movimento: ao mesmo tempo em que fundamentou
o “sexo” como o atributo essencial da mulher, paradoxalmente, impôs-
lhe uma educação e formação cultural que a mantinha,
deliberadamente, na maior ignorância possível acerca das funções,
responsabilidades e benefícios da sua pressuposta substância.
Sob a exigência da moralidade, toda mulher “decente” deveria ser
privada de qualquer espécie de conhecimento (quiçá de “prática”) sobre
a primeira das atividades a que estava inexoravelmente destinada por
182 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

conta do seu “seu sexo”: o ato sexual. “Por mais estranho que pareça”,
escreve Goldman em Casamento e amor, é permitido à mulher saber
“muito menos sobre a sua função do que um artesão comum sobre o seu
ofício” (GOLDMAN, 2021, p. 144). Note-se aqui a charada através da qual
a mulher foi subjugada naquilo que é, sob a perspectiva da anarquista, o
mais fundamental: o elemento sexual. Pois, ao mesmo tempo em que era
incutido na mulher, desde a infância, que o casamento seria o seu
objetivo final, o sexo, paradoxalmente, era-lhe um tema-tabu, impuro e
imoral, a ponto de ser uma indecência a simples menção à temática. Sem
saber nada da “função mais importante que deveria ser exercida na sua
vida”, conclui do modo simples e direto que lhe é característico: era
inexorável que uma mulher, em geral, não soubesse “cuidar de si
mesma”, o que a tornava uma presa não só do casamento, como também
da prostituição; ou o que é ainda uma triste realidade: uma presa fácil
de parceiros homens abusivos – abusivos justamente na medida em que
reduzem um ser humano à posição de objeto sexual destinado à sua
gratificação (GOLDMAN, 2021, p. 102).
Pelas mesmas vias tornou-se um destino praticamente inexorável
à mulher que nem mesmo na interioridade legalizada do casamento e
do lar, finalmente lhe fosse permitido vibrar nos braços do seu prazer
sexual. Ora, apenas recentemente, e não em todos os círculos e lugares
– vale frisar –, o prazer sexual feminino passou a ser uma questão, por
assim dizer, legitimada publicamente. Daí a observação de Goldman de
que o medo de desagradar o parceiro com um comportamento julgado
inadequado a uma mulher decente fosse uma causa não desprezível da
repressão do prazer sexual de certas mulheres do seu tempo – o que,
mesmo hoje, na intimidade das quatro paredes, continua a ser uma
causa não desprezível da interdição do prazer sexual feminino; e isso a
Mariana Lins Costa • 183

despeito do fácil acesso à pornografia digital que caracteriza o nosso


tempo. É também seguindo essa linha da repressão sexual como, por
assim dizer, repressão primeira que Goldman desmascarará como um
“mito” pernicioso a concepção de que a mulher possui um interesse
sexual menor do que o do homem; e onde identificará a causa do
problema grave, ainda hoje alarmante, da completa frigidez sexual
entre mulheres sexualmente ativas – vide nesse sentido a pesquisa
divulgada pelo jornal Folha de São Paulo em 30 julho de 2019, segundo a
qual 55% das brasileiras nunca atingiram o orgasmo 5; embora haja
pesquisas internacionais que cheguem a apontar para 70%. 6
Frigidez generalizada entre as mulheres que, conforme denunciou
Goldman quase cem anos atrás, é o efeito necessário de eras de
repressão externa do prazer sexual feminino, repressão em nome da
qual, vale repetir, foi legalizado e tornado costume o emprego da
violência física e psicológica – quer romantizada pelo véu da moralidade
e do amor incondicional, quer demonizada por forças sobrenaturais das
quais a mulher desde Eva, a serpente e a maçã, seria o portal
preferencial. Assim, se de um lado, atualmente, é uma platitude dizer
que a cultura (fundamentada na propriedade privada) tornou uma
espécie de segunda natureza da mulher a internalização da repressão
sexual; de outro lado, é ainda uma necessidade rendermos alguma
homenagem ao clitóris, sobre o qual mesmo hoje pouco se fala quando
se fala de “mulher”; como se ainda fosse indecente ou, como diria Freud,

5
DIA do Orgasmo: Mais da metade das mulheres não atinge clímax e sente dor no sexo. Folha de São
Paulo, 30 julho 2019. Disponível em <https://f5.folha.uol.com.br/viva-bem/2019/07/dia-do-orgasmo-55-
das-brasileiras-nao-atingem-climax-no-sexo-e-59-sentem-dor.shtml>.
6
Para essa e outras referências ver: The Clitoris: Forbidden Pleasure (Clitóris: o prazer proibido). Direção
(documentário): Michèle Dominici, Stephen Firmin, Variety Moszynski. Cats & Dogs Films, Sylicone e
ARTE France. Icarus Films, 2003. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pABz6BBuCmE
&t=159s>
184 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

infantil, mencionar o único órgão do corpo humano projetado


exclusivamente para o prazer, com a estimativa de mais de 8000
terminações nervosas destinadas a esse fim. (A título de comparação,
esse botãozinho mágico, possui praticamente o dobro de terminações
nervosas do pênis cujas estimativas vão de 4000 a 6000 no total; além
disso os músculos que fazem parte do clitóris não relaxam
completamente após o orgasmo, o que torna anatomicamente natural à
mulher atingir os tais múltiplos orgasmos, a despeito da sua
condenação cultural à frigidez). 7
Se como disse Goldman, o sexo não é algo à parte, mas o elemento
que motiva e afeta a personalidade como um todo, parece ser crucial que
toda mulher privada do seu “direito ao orgasmo”, pelo menos se
questione – ainda mais num mundo de pestes, cataclismos ecológicos,
recessões econômicas e novas ameaças de guerras nucleares – sobre que
tipos de maravilhas 8000 mil terminações nervosas estimuladas ao
mesmo tempo seriam capazes de lhe proporcionar (e o que é melhor:
sem limite de idade, pois pelo que se conta, o clitóris tem ainda o mérito
de não envelhecer). Isso para não falar da igualmente pouco falada
vagina que – a tirar pelo nível de pompoarismo exibido no Ping Pong
Show por trabalhadoras do sexo (em geral, exploradas) em Bangkok,
Tailândia (para citar o caso mais conhecido) –, se devidamente treinada
é, ao que parece, capaz de virar uma espécie deveras surpreendente de
terceira mão. Ou ainda da misteriosa ejaculação feminina,
popularmente conhecida como squirt – que, salvo nos sites de
pornografia, não há consenso acerca da sua existência nem mesmo
entre os especialistas no assunto: segundo algumas pesquisas, trata-se

7
Todas as informações relativas ao clitóris presentes nesse parágrafo encontram-se no documentário
The Clitoris: Forbidden Pleasure.
Mariana Lins Costa • 185

de meros jatos de urina emitidos involuntariamente durante o sexo,


segundo outras, de um fluido com características semelhantes ao
plasma prostático, o qual seria, por sua vez, expelido, no momento do
orgasmo, pelas glândulas parauretrais (o correlato da próstata
masculina na mulher). 8
Donde brota inclusive a suspeita de que em vez de se concentrar na
denúncia (algo raivosa) contra a “falocracia”, uma estratégia feminista
mais proveitosa (a nós mulheres sobretudo) fosse a de informar e quiçá
filosofar um tantinho mais sobre esse estrangeiro de nós mesmas: o
clitóris – órgão que tem o mérito empiricamente filosófico de
contradizer a regra lógica de que a função biológica do sexo é a
reprodução; ou ainda sobre que tipos de potencialidades podem vir a
estar adormecidas nos músculos vaginais, supostamente inertes para
além do ato de dar a luz; e tudo isso sem jamais esquecer de poetizar,
idealmente no gênero do realismo fantástico – que, segundo
Dostoiévski é a essência mesma do realismo –, sobre as mil e um
maravilhas de uma ejaculação controversa e desconhecida, no momento
preciso em que a ciência já deu início ao desbravamento do longínquo
planeta Marte.
Em vez disso, porém, o Brasil com seus 55% de mulheres que não
gozam (segundo a pesquisa divulgada na Folha), é líder de cirurgia
íntima por motivos “estéticos”. 9 Oh! Quanto desperdício! Que
interpretação tacanha da estética do êxtase! Como Goldman estava
certa!

8
Para essas e outras informações sobre o assunto, ver: <https://sexosemduvida.com/squirt-tire-suas-
duvidas/>
9
Para um aprofundamento na temática, ver: Fabíola Rohden. A divulgação da cirurgia íntima no Brasil:
normas de gênero, dilemas e responsabilidades no campo da cirurgia plástica estética. Cad. Saúde
Pública 37 (12).
186 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

IV. CIÚME E AMOR LIVRE

Conforme desenvolve em Causas e cura possível para o ciúme, o


monopólio sexual sobre o qual se fundamenta o casamento – uma clara
derivação da “Moralidade da Propriedade” – terminou por envenenar a
nossa forma mesma de amar, uma vez que o ciúme passou a se
apresentar como se algo “natural” ao amor. O monopólio sexual,
“transmitido de geração a geração como um direito sagrado e a base da
perfeição da família e do lar” fez do “objeto” do amor uma espécie de
propriedade privada que, por sua vez, deveria estar encaixada numa teia
de propriedades privadas de outras naturezas. Nesse sentido, é que a
anarquista irá conceber o ciúme como uma espécie de “arma”
sentimental “para a proteção desse direito de propriedade” (GOLDMAN,
2021, p. 168). “Arma”, porque o ciúme entra em cena justamente quando,
com ou sem motivos, o indivíduo sente alguma ameaça ao seu
monopólio sexual encarnado no seu parceiro ou parceira; “arma”,
porque implica “revolver os órgãos vitais” daquele a quem
supostamente se ama (e de si mesmo) ante o menor indício de desejo por
uma outra pessoa (Idem, p. 172). Descrito por Goldman, como um misto
de inveja, fanatismo, posse, vontade obstinada de punição e sobretudo
vaidade ferida, o ciúme, em nada se relaciona com a “angústia” oriunda
de “um amor perdido” ou do “fim de um caso de amor”; como tampouco
é resultado do amor. Ao contrário, para ela, o ciúme é “o próprio reverso
do entendimento, da simpatia e dos sentimentos generosos” (Idem, p.
167). É verdadeiramente surpreendente a sua compreensão de que, na
maioria dos casos, a virulência do ciúme é tanto maior, quanto menor
for o amor e a paixão. “O aspecto grotesco desse assunto todo”, escreve,
“é que homens e mulheres normalmente se tornam violentamente
Mariana Lins Costa • 187

ciumentos com pessoas que, na realidade, não lhes importam muito”.


Que “a maioria das pessoas” continue a viver perto uma da outra,
embora tenham, há muito, “cessado de viver uma com a outra” – esse, e
não o amor, é, para Goldman, o solo “fértil” para a atividade do ciúme
(Idem, p. 170).
Certamente, um dos seus ensinamentos mais comoventes é o
truísmo de que numa relação amorosa não pode haver algo como
conquistadores e conquistados, dominadores e dominados, pois o amor
é em si mesmo livre e “não pode viver em outra atmosfera”. “Amor
livre?” – pergunta em Casamento e amor – “Como se o amor pudesse não
ser livre!” Não há dinheiro que possa comprar o amor, não há força que
seja capaz de subjugá-lo, não há lei ou punição que possa arrancá-lo,
uma vez que tenha criado raízes (GOLDMAN, 2021, p. 149). É sempre
interessante observar que Goldman traz para a relação amorosa mais
íntima, um tipo de radicalidade que, em certo sentido, constituiu o
cerne do espírito revolucionário, que é a disposição para autoentrega
radical como forma do amor mesmo, que uma vez que diga respeito ao
todo, não pode estar limitado a algo tão tacanho quanto a manutenção
da propriedade privada seja na dimensão econômica, social ou íntima.
Vide, nesse sentido, a sua definição de “amor” no seu texto ainda hoje
absolutamente essencial às mulheres intelectuais, 10 não por acaso
intitulado A tragédia da mulher emancipada: “Uma concepção verdadeira
da relação entre os sexos [...] conhecerá apenas uma grande coisa: doar-
se sem limites, a fim de encontrar um eu mais rico, profundo, melhor”
(Idem, p. 139). Que isso só possa acontecer em relação a uma única

10
Para uma compreensão mais aprofundada desse texto em específico, ver “A tragédia da mulher
emancipada, segundo Emma Goldman”, disponível em: https://www.hedra.com.br/blog/hedra-
1/post/a-tragedia-da-mulher-emancipada-segundo-emma-goldman-81
188 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

pessoa, ao longo de toda uma vida, ou mesmo em relação a uma única


pessoa por vez não encontra na visão oferecida por Goldman, qualquer
fundamento. Pois o amor e a sexualidade compreendidos como a fonte
da criatividade e sociabilidade se expressam naturalmente de formas
variadas, múltiplas e mutáveis. Daí que postule que cada “caso de amor”
é “independente e diferente de qualquer outro”, pelo motivo de estar
profundamente relacionado com “as características físicas e psíquicas”
dos envolvidos. Donde conclui sob a forma de uma pergunta retórica: e
se uma pessoa encontrar as “mesmas características que lhe fascinam
em diferentes pessoas”, “o que poderia lhe impedir de amar essas
mesmas características em diferentes pessoas?” (Idem, p. 80). Que
tenhamos limitado a mais alta realização do amor ao ideal do monopólio
sexual encarnado na instituição casamento revela, para Goldman, o
“nosso estado atual de pigmeus” no campo emocional, logo sexual
(Idem, p. 151).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sob a luz dessa leitura econômica da “espiritualidade”


supostamente ideal a uma mulher da primeira metade do século XX – a
de ser jovem e dócil como um cordeiro pronta para ter abatida a sua
personalidade pela via do aviltamento da sua sexualidade –, é inevitável
pensar na atualidade com os seus infinitos recursos artificiais e
intervenções cirúrgicas que trazem a promessa de uma eterna
aparência de juventude assomada a um formato de corpo “sexualmente
desejável” – além de, conforme já mencionado, uma vulva geometrica-
pornograficamente apetecível; uma promessa que é, mesmo hoje, mais
urgente aos corpos femininos.
Mariana Lins Costa • 189

Assim, a pergunta que se impõe, a partir da perspectiva trazida


pelos textos de Goldman sobre a questão do seu “sexo” – uma pergunta
incômoda, mas da qual talvez não seja desejável escapar – , é a sobre até
que ponto, nós mulheres, superamos e até que ponto nos afogamos
ainda mais nessa condição de mercadoria sexual. Pois, embora seja um
tanto triste admitir, às vezes parece ser até o caso de suspeitar que Mary
Wollstonecraft estaria ainda hoje certa, ao enfatizar, segundo o seu belo
retrato poetizado por Goldman no texto sobre a filósofa (Mary
Wollstonecraft: vida trágica e luta apaixonada pela liberdade, aprox. 1911),
que “a própria mulher é um obstáculo ao progresso humano, porque
insiste em ser um objeto sexual ao invés de uma personalidade, uma
força criativa na vida” (GOLDMAN, 2021, p. 160).
Afinal, mesmo que seja o caso de considerarmos que, atualmente,
temos, por suposto, a opção de ser uma mercadoria sexual autogestora,
por assim dizer, já que financeiramente emancipada e sexualmente
“livre”; uma liberdade sexual que não venha acompanhada da alegria e
da leveza que decorrem dos múltiplos orgasmos a que estamos, em
alguma medida, destinadas fisiologicamente – é uma liberdade sexual
demasiado incompleta e insatisfatória. Se “deus” nos fez à sua imagem
e semelhança é preciso considerar os aspectos em que, enfim, foi
generoso. Note-se que a questão aqui não é tecer juízos morais acerca
do fato de que a aparência de mulher sexualmente emancipada do nosso
tempo (diferentemente do de Goldman) esteja em geral vinculada ao
gênero do soft porn (as popstars são o exemplo máximo disso); mas, sim,
tão somente questionar se esse soft porn cotidiano do qual a mulher
sexualmente emancipada é supostamente protagonista, contempla no
seu próprio âmago o seu prazer sexual mesmo, o êxtase que os corpos
femininos, à semelhança do arrebatamento espiritual dos santos, nos
190 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

oferece naturalmente, pedindo tão pouco em troca – certos toques,


alguns fluidos.
De outro lado, porém, Goldman também reconheceu que assumir a
própria personalidade, talento e sexualidade, no caso da mulher,
implicava, via de regra (como, em geral, implica ainda hoje), numa
menor possibilidade de encontrar um companheiro homem que visse
nela não apenas um sexo, mas também um ser humano, uma amiga,
uma companheira dotada de individualidade forte que não deveria
perder um único traço do seu caráter (GOLDMAN, 2021, p. 135). Ao se
valer do estudo de Laura Marholm sobre a vida de diversas mulheres
dotadas de sensibilidade e talentos extraordinários – como Eleonora
Duse; a matemática e escritora Sonia Kovalevskaia e a artista e poetisa
inata Marie Bashkirtseff –, Goldman identifica como marca indelével
“em todas as biografias dessas mulheres de mentalidade
extraordinária”, a inquietação e solidão resultantes da ausência de
relações amorosas capazes de satisfazer tanto o seu corpo, quanto o seu
espírito. Afinal, observa em A tragédia da mulher emancipada, se o
“homem com sua autossuficiência e seu ar superior ridículo de patrono
do sexo feminino é um parceiro impossível” para este tipo de mulher,
também é igualmente impossível para ela “o homem que apenas vê a sua
intelectualidade e o seu gênio, mas que falha em despertar a sua
natureza” (Ibidem).
À guisa de conclusão, seja digna de nota uma das heranças mais
óbvias dessa condição de mercadoria sexual da mulher, sendo esta: o
“estranhamento”, bastante presente na nossa atualidade pós-moderna,
de que mulheres “de certa idade” se relacionem com homens mais
jovens ou que mulheres pertencentes a esferas sociais e econômicas
mais altas relacionem-se com homens pertencentes a esferas sociais e
Mariana Lins Costa • 191

econômicas mais baixas, o que, especialmente no caso de um país como


o nosso, envolve necessariamente a questão da raça. Talvez não seja
exagero dizer que apesar das tantas e tão radicais mudanças ocorridas,
nas últimas décadas, no campo da moral sexual e da compreensão da
questão do “gênero”, é como se o amor ainda não se encaixasse muito
bem nas relações entre homens mais jovens, menos ricos e
escolarizados e mulheres mais velhas, mais ricas e escolarizadas; muito
embora, o mesmo não possa ser dito, no caso oposto; a relação erótica
entre professores universitários e suas alunas, por exemplo,
praticamente uma instituição (silenciosa) erigida nos bastidores das
instituições de ensino superior, parece ser prova disso (até porque,
diga-se de passagem, não é em nome da práxis educativa do orgasmo
das suas alunas que tais docentes homens desfrutam dos seus
“privilégios”). Numa palavra, por maiores e mais radicais que tenham
sido as desconstruções e novas construções de gênero, a mulher
continua a ser o “sexo” associado a alguma espécie de amor universal e
incondicional – o que é, tediosa e perversamente, tão somente um
desdobramento afetivo da sua condição de mercadoria sexual; e,
portanto, não o amor universal e incondicional mesmo. Afinal, apesar
desse amor do qual a mulher seria supostamente o reservatório, ela
continua a possuir, ao menos sob o ponto de vista da
heteronormatividade, um leque por demais restrito de sujeitos dignos
do seu amor presumidamente inato.

REFERÊNCIAS

GOLDMAN, E. Sobre anarquismo, sexo e casamento. Organização, tradução, introdução e


notas Mariana Lins. São Paulo: Hedra, 2021.
"MULHERES PODEM EXISTIR?"
8
KIERKEGAARD SOBRE AS MULHERES
Natalia Mendes Teixeira 1

INTRODUÇÃO

Neste trabalho investigo como a obra de Søren Kierkegaard (1813-


1855), filósofo dinamarquês do século XIX, pode ser pensada diante da
tarefa de construção de uma história feminista da filosofia. A partir
desse objetivo, algumas perguntas se apresentam: por que investigar o
que Søren Kierkegaard, um filósofo supostamente inexpressivo no
cânone e lembrado sempre por apodos extravagantes, pensava sobre as
mulheres? O que um leitor de Kierkegaard pode tomar como seu
pensamento sobre as mulheres e o que deveria descartar como ironia ou
hipérbole de seus pseudônimos, se é que o deve? Kierkegaard possui
ideias que podem ser consideradas protofeministas? Ou o que
Kierkegaard afirma é simplesmente uma expressão de atitudes
culturalmente condicionadas? Ou, ainda, seria uma indicação de uma
misoginia profundamente enraizada e até sistemática? Kierkegaard
estava reproduzindo o estado da cultura em relação às mulheres ou ele
realmente estaria sendo essencialista? Estas são algumas das questões
que pretendo perseguir.
Para cumprir este itinerário analiso qual é o lugar, as categorias
existenciais e os conceitos e características atribuídos à mulher no texto

1
Mestre e Doutora em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professora na
Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).
Natalia Mendes Teixeira • 193

kierkegaardiano a partir de quatro textos: (a) o primeiro ensaio


publicado por Kierkegaard intitulado Mais uma Defesa das Grandes
Habilidades das Mulheres, de 1834, que é, de forma bastante injustificada,
muito raramente mencionado nessa discussão; (b) O Diário do Sedutor,
certamente seu romance mais conhecido, que compõe o grande volume
Ou-Ou: Um fragmento de Vida de 1844, que nos dá um retrato do feminino
bastante representativo dos escritos estéticos; (c) A Doença para a Morte
de 1849; e (d) As Obras do Amor, desta vez de 1847, obra assinada pelo
próprio Kierkegaard que servirá como contraponto às obras
pseudônimas. Apresento no tópico a seguir a importância desse tipo de
investigação para a história da filosofia, isso é, sua justificação
metafilosófica e o status quæstionis da discussão.

1. HÁ LUGAR PARA KIERKEGAARD EM UMA HISTÓRIA FEMINISTA DA


FILOSOFIA?

Há um recente movimento metodológico que busca (re)construir


uma história feminista da filosofia tout court, isto é, uma história da
filosofia com recorte de gênero, que está paulatinamente realocando a
narrativa padrão (i.e., masculina) da história da filosofia,
assumidamente generificada, ao (i) pesquisar, analisar e integrar ao
cânone obras escritas por mulheres questionando a exclusão e
construindo um cânone positivo; e (ii) analisar criticamente obras
escritas sobre mulheres construindo um cânone negativo (Witt & Shapiro,
s/p, 2020). Trata-se, portanto, de uma análise do cânone tanto
criticamente, fazendo uma interpretação sinótica, como extensivamente,
resgatando filósofas invisibilizadas e estendendo o rol filosófico clássico
primário. O objetivo desta última empreitada não seria apenas
identificar as posições dos filósofos, simplesmente catalogando o
194 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

sexismo explícito no cânone, mas chegar a questões mais fundamentais,


tais como: a posição desse filósofo sobre as mulheres macula e
compromete suas teorias? Ou, por outro lado, esse filósofo apresenta
ideias que podem ser consideradas protofeministas? Ou ainda, é possível
(re)apropriar ou atualizar suas ideias para fins éticos ou epistêmicos das
teorias feministas contemporâneas?
Uma história da filosofia com recorte de gênero também precisa
considerar que os filósofos analisados no cânone negativo
frequentemente ocupam uma posição ambígua: de um lado, fizeram
declarações lamentáveis; de outro, suas teorias servem de base para
questões epistêmicas fundamentais às próprias teorias feministas.
Acredito que a obra de Søren Kierkegaard está sobre a mesma esteira
dessa ambiguidade paradigmática: ao tempo em que ele apresenta uma
filosofia da existência potencialmente masculina; também foi no seio da
filosofia da existência de Kierkegaard, por exemplo, que teorias
feministas se solidificaram no século XX, a partir, especialmente, da
obra seminal de Simone de Beauvoir (1908-1986), O Segundo Sexo –
Kierkegaard influenciou fortemente ainda outras filósofas como
Hannah Arendt (1906-1975). Foi sob a forte influência do existential turn
histórico-filosófico que a obra de Kierkegaard provoca no continente
pós-oitocentista (Friedman, 2000; Walsh, 2008) e através do movimento
anti-Hegel que ocorre após a morte, em 1831, do “professor absoluto de
Berlim que esqueceu o existir” (Gadamer, 2002, p.110 [112]), que suas
ideias alcançam confessadamente Simone de Beauvoir. Assim, embora
Kierkegaard frequentemente pareça estar propondo uma filosofia da
existência especificamente masculina e, ainda que dificilmente receba,
ao final de uma investigação como a nossa, alguma espécie de honraria
feminista definitiva; é inegável, por outro lado, o papel das principais
Natalia Mendes Teixeira • 195

premissas do projeto kierkegaardiano nos próprios fundamentos


teóricos e filosóficos dos feminismos do século XX 2.
Assim, o caso do corpus kierkegaardiano é especialmente
paradigmático de se analisar, diante da tarefa metafilosófica acima
descrita, pelas seguintes razões: Primeiro, ele é um filósofo
dinamarquês cuja recepção franco-alemã no século XX permitiu uma
entrada, um tanto embaraçosa, quase extraoficial, e até hoje
imcompleta no cânone filosófico padrão; isto é, assim como a maioria
das mulheres filósofas, mas certamente por outras razões, ele é um
destes filósofos cuja evidência documental de sua obra, em seus 55
volumes de Søren Kierkegaard Skrifter (SKS), nos faz também questionar
quais critérios levaram à construção do cânone clássico – especialmente
o pós-hegeliano e idealista tardio que per se mereceria atenção especial.
Segundo, a despeito de Kierkegaard, assim como muitos outros filósofos
do seu tempo, ter feito declarações claramente lamentáveis sobre a
condição existencial da mulher; muitas filósofas feministas leitoras de
Kierkegaard (Léon, 1997; Walsh, 1997; Sipe, 2008; Bertung, 1997; Watkin,
1997) apelam a um princípio meta-hermenêutico exterior e, acredito eu,
sem grandes precedentes na historiografia filosófica: de que seus
escritos devem ser separados da sua posição pessoal – tendo em vista
que ele escreve um conjunto de obras essencialmente pseudônimas, a
posição pessoal de Kierkegaard seria algo de muito diferente do que está
escrito em suas obras.
O próprio título deste trabalho faz referência a um dos textos da
obra Feminist Interpretations of Søren Kierkegaard, organizada por Céline

2
Conferir, por exemplo: "Simone de Beauvoir: A Founding Feminist’s Appreciation of Kierkegaard" de Ronald
M. Green e Mary Jean Green (2011); "Feminine Devotion and Self-Abandoment Simone de Beauvoir and
Soren Kierkegaard on the Woman in Love" de Sylvia Walsh (1998); "Kierkegaard and Beauvoir: Existential
Ethics as a Humanism" de Mélissa Fox-Muraton (2020).
196 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

Léon e Sylvia Walsh em 1997. Trata-se da primeira obra, registrada na


literatura anglófona, que pretendeu avaliar a posição de Kierkegaard
sobre as mulheres – mais de vinte anos depois encontramos dezenas de
outros artigos que debatem o tema. Entre os catorze trabalhos da obra,
pelo menos os de Julia Watkin, Robert Perkins, Wanda W. Berry e Birgit
Bertung pretenderam relativizar a posição claramente sexista dos
pseudônimos com a própria posição de Kierkegaard. Esta última
intérprete, especificamente, em seu Yes, A Woman Can Exist, argumenta
que: “qualquer discriminação contra as mulheres é uma projeção do
leitor. Kierkegaard em toda a sua filosofia tentou chamar a atenção para
este mal-entendido” (Bertung, 1997, p. 66). Deveríamos, por isso,
segundo ela, ler os escritos estéticos de Kierkegaard dialeticamente e de
forma não literal eximindo, por consequência, o filósofo de qualquer
crítica.
Muitas outras filósofas a acompanham nesta interpretação.
Segundo Dera Sipe (2008), Kierkegaard escreve com um pseudônimo o
que outro apaga, isto é, ele constantemente revoga a si próprio, por isso
não deveríamos confiar nas suas próprias palavras e o que “Kierkegaard
pensa” pode ser bastante diferente do que a sua “obra diz”. Ainda para
Bertung (1997), Kierkegaard oferece uma “provocação poética” às
mulheres a fim de “libertá-las” (Bertung, 1997). Para outras filósofas,
como Julia Watkin (1997) e Doyle (2020), mais recentemente, não há
evidência de que Kierkegaard concorda com seus pseudônimos; ainda
para Julia Watkin (1997), por exemplo, a misoginia de Kierkegaard é
mais uma “misogamia” 3. O tom satírico destinado às mulheres é, na

3
Segundo Watkin, em seu “The Logic of Søren Kierkegaard's Misogyny 1854-1855”, a misogamia de
Kierkegaard aparece, ao final da vida, como uma crítica ao casamento como a grande fonte do núcleo
cristão-burguês. Kierkegaard parecia buscar introduzir o celibatário como igualmente social e
Natalia Mendes Teixeira • 197

verdade, uma crítica à cultura e suas declarações estão apenas de acordo


com a idealidade cristã. Desse modo, a crítica não pode ser destinada à
Kierkegaard porque ele usa uma categoria socialmente e culturalmente
construída do feminino e não do que poderíamos chamar de "feminino"
segundo sua própria posição (Piety, 2020; Doyle, 2020). Fica evidente que
parte da tradição está bastante empenhada em amenizar, a partir de
diversos recursos hermenêuticos, para não dizer eufêmicos, a posição
das mulheres na filosofia de Kierkegaard.
A posição que sustento é bem diversa da tradição: devemos
considerar seriamente que Kierkegaard não está assim tão distante dos
seus pseudônimos. Ele foi o criador desses pseudônimos e está ligado
indiretamente a eles. Ele é o autor de todos os autores. O sujeito
histórico a quem devemos celebrar ou criticar. A possível misoginia
presente nos seus escritos não pode ser totalmente descartada como
não sendo a sua própria. Entendo que, como intérpretes e filósofas, nós
estamos preocupadas com a tensão hermenêutica entre não tolerar
declarações misóginas lamentáveis e estudar um filósofo respeitando o
núcleo duro da sua obra, contextualizando-o como homem de seu
tempo e evitando anacronismos. Contudo, acredito que não precisamos
tentar salvá-lo de nenhuma crítica para manter sua relevância
filosófica e justificar a leitura contínua e acurada do seu trabalho.

2. O QUE KIERKEGAARD DISSE SOBRE AS MULHERES?

Kierkegaard escreveu sobre as mulheres e para as mulheres – que


eram grandes leitoras de seus romances – em uma língua cujo gênero

religiosamente desejável – se for o caso, mesmo a misogamia de Kierkegaard estaria bastante limitada
a uma visão espiritual e religiosa.
198 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

gramatical é neutro 4, ou seja, ele possivelmente escrevia a homens e


mulheres sem distinção. Mas o feminino e o masculino o homem e a mulher
são evocados de forma bastante assimétrica no interior da sua obra. Há,
pelo menos três usos distintivos dessas figuras: (i) pela posição dos
gêneros nos romances através de performances de gênero; (ii) pelo uso
de metáforas – um gênero frequentemente representa fraqueza
(feminino) e, o outro, virilidade (masculino); (iii) pelo uso de tipologias;
categorias existenciais ou mesmo graus de variações de categorias –
nestas últimas, a mulher encarna um tipo fraco de uma mesma categoria
ou disposição existencial na qual o homem incorpora um tipo forte; ou,
ainda, uma categoria diferente e menos autêntica do ponto de vista
ético-existencial. Vejamos os quatro textos a serem investigados.
(1) O primeiro ensaio escrito por Kierkegaard, intitulado Another
Defense of Woman's Great Abilities, foi publicado pelo Kjøbenhavns
flyvende Post em 17 de dezembro de 1834 sob a assinatura de “A”, o
pseudônimo editor que assinaria, dez anos mais tarde, em 1844, os
escritos estéticos publicados por Victor Eremita em Ou-Ou: um
fragmento de vida. Neste primeiro ensaio de juventude, bastante curto,
profundamente satírico e raramente citado na tradição intérprete,
Kierkegaard constrói imagens exageradas de como será a sociedade com
a emancipação das mulheres recorrendo ao ridículo e ao jocoso para
criticar as mulheres que, segundo ele, são presunçosas ao tentarem
ultrapassar os limites “naturais” do seu sexo e buscarem emancipação

4
Álvaro Valls (2012), em seu Sobre a mulher na obra de Kierkegaard, diz: “[...] deve ter alguma influência
na filosofia o fato de a língua dinamarquesa conhecer apenas dois gêneros gramaticais: as palavras
neutras e as comuns. Sendo o gênero comum a ambos os sexos, um filósofo dinamarquês pode, se
quiser, dedicar metade de sua obra “àquele indivíduo que me lê”, e qualquer dinamarquesa lerá a
dedicatória como “àquela pessoa que me lê”. Não há diferença. [...] Ao contrário de Santo Tomás,
Descartes, Kant ou Hegel, Kierkegaard escreve bastante sobre as mulheres e para as mulheres” (VALLS,
2012, p.95).
Natalia Mendes Teixeira • 199

(Léon, 1997, p. 118). Nesse texto, como em todo o corpus, ele coloca a
mulher em uma posição de profunda conexão, supostamente inerente,
com a natureza: o homem está acima da natureza e a mulher é este ser
sub-humano que está imerso nela. O pseudônimo também satiriza a
falta de inclinação filosófica e a natureza doméstica da mulher
destacando a oratória, a persuasão, a capacidade dialética, a
superioridade intelectual, a capacidade de abstração teórica e a
eloquência doméstica das mulheres. Ele coloca, inversamente, e por
recurso retórico e irônico, os homens como mentes supostamente
covardes, servis, subalternas e inferiores que não fizeram história, nem
arte ou cultura – ao contrário das mulheres. O texto é construído de
modo a poder convencer um leitor destreinado de que se trata de fato
de uma ode elogiosa, um panegírico, um elogio solene à mulher:

Muito tem-se dito contra a procura das mulheres em educar-se tanto na


direção teórica quanto na prática [...]A história ao longo das épocas mostra
que as grandes habilidades das mulheres têm sido, ao menos em parte,
reconhecidas. Mal o homem foi criado e já encontramos Eva como plateia
nas palestras filosóficas da cobra, e vemos que ela as dominava com tanta
facilidade que imediatamente pôde usar os resultados na sua prática
doméstica. [...] Como oradora, a mulher tem um talento tão grande que fez
história com sua própria linha especial: os chamados sermões de tapeçaria,
palestras de cortina, Xantipa ainda é lembrada como padrão de eloquência
feminina e como fundadora de uma escola que dura até hoje, enquanto a
escola de Sócrates há muito desapareceu. [...] ninguém jamais conseguiu
vencer uma dama em uma discussão, a capacidade dialética da mulher
reduziu muitos oponentes ao silêncio, então certamente compreende-se
sua superioridade em questões intelectuais [...] nas revistas de moda elas
estudam o espírito da época (SKS XIII, 5-8 – tradução minha).

Este ensaio tem três aspectos históricos importantes: (i) ele é um


texto de resposta ao ensaio satírico publicado, treze dias antes, em 04
200 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

de dezembro de 1834, por seu colega Peter Engel Lynd sobre as


mulheres, intitulado Uma Defesa da Origem Superior da Mulher; (ii)
Kierkegaard e P. Lynd estão posicionando-se contra a emancipação e a
igualdade política entre homens e mulheres referindo-se às recentes
manifestações feministas das mulheres francesas no movimento
aristocrata sansimonista francês que, dentre outras coisas, buscava a
emancipação das mulheres; (iii) Kierkegaard está ironizando a atitude
do professor J. L. Heiberg que, na primavera de 1833, deu o passo
incomum de convidar também mulheres para participar das suas aulas
de Introdução à Filosofia. Contudo, apenas duas mulheres se
inscreveram e o curso nunca aconteceu. Uma matéria de jornal à época,
resume o ocorrido da seguinte forma em um tom que não difere tanto
assim do próprio Kierkegaard:

Em uma série de conferências ele poderá apresentar uma introdução à


filosofia inteligível para todas as pessoas instruídas. Sim, essa esperança é
realmente tão viva que não supõe que precisa restringir-se a uma palestra
para homens, mas se aventura a pensar que também mulheres educadas,
enfeitando o encontro com sua presença, poderão participar das
investigações sérias da palestra. Embora os homens geralmente tenham
uma razão mais aguçada e consistente, uma maior capacidade de dialética, as
mulheres costumam ter um sentimento mais seguro e infalível de apreender
imediatamente a verdade, de ver, imperturbável por quaisquer considerações
finitas, o infinito em que elas repousam, a unidade na qual elas têm seu ser, e
o autor considera uma habilidade tão eficaz para o conhecimento quanto a
outra” (Om Philosophiens Betydning for den nuværende Tid, Copenhagen: 1833;
ASKB 568, p. 53 – tradução minha).

Essa descrição sobre as mulheres – as quais "costumam ter um


sentimento mais seguro e infalível de apreender imediatamente a verdade"
Natalia Mendes Teixeira • 201

e de ver "o infinito em que elas repousam" – seria muito perfeitamente


atribuída a qualquer pseudônimo de Kierkegaard.
(2) Dez anos depois desse primeiro ensaio, em 1844, na ocasião da
publicação da sua obra mais famosa, O Diário do Sedutor, que faz parte
do primeiro volume de Ou-Ou: um fragmento de vida,
Kierkegaard/Johannes repete o mesmo recurso satírico do escrito de
juventude ao falar sobre a natureza das mulheres jogando com a
categorização da mulher como "ser para o outro" – categoria metafísica
e social que Simone de Beauvoir se ateria profundamente em o Segundo
Sexo. Diz-nos Johannes:

Vou tentar pensar na mulher de modo categórico. Em que categoria pode


ela ser concebida? enquanto ser para o outro. Entretanto, não tem de ser
tomado em mau sentido, como se aquela que fosse para mim fosse em
simultâneo para outro [...] A mulher é, portanto, ser para o outro. Por outro
lado, aqui, por seu turno, não é de se deixar perturbar pela experiência, a
qual nos ensina que raramente se encontra uma mulher que seja na verdade
ser para o outro, dado que é comum uma grande maioria nem sequer ser
nada, nem para si mesma, nem para o outro. Ora, a mulher partilha esta
determinação com a natureza inteira, com todo o feminino em geral. Toda a
natureza limita-se a ser para o outro, [...] para o espírito. Assim acontece de
novo com o singular. A vida da planta, por exemplo, com toda a ingenuidade,
desdobra a sua graciosidade escondida e é meramente para o outro. De um
modo semelhante, um enigma, uma charada, um segredo, uma vogal etc.,
são apenas ser para o outro. Esta história também ensina de uma outra
maneira que a mulher é ser para o outro. Diz designadamente que Jeová
retirou uma costela do homem. Se, por exemplo a tivesse retirado do
cérebro do homem, então, a mulher permaneceria como ser para o outro,
[...] por essa via caiu sob a determinação da natureza que é por essência ser
para o outro (Ou-Ou II, p. 461 / SKS III, p. 417-418 – grifo meu).
202 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

O jovem sedutor, que assina o romance epistolar, ao perguntar em


que categoria a mulher se enquadraria, conclui, de modo bastante
hegeliano, que ela é um ser-para-outro. Trata-se de uma categoria
lógico-metafísica que aparece na Ciência da Lógica como modo de
determinação do Ser e que, coincidentemente ou não, será fundamental
para o argumento central d’O Segundo Sexo. Johannes está aqui
pressupondo que mulheres não existem existencial, ontológica e
epistemicamente da mesma forma que homens e que elas são e existem
como o “outro do homem” (Beauvoir, 2020, p. 53). Nas próprias palavras
de Kierkegaard “a mulher é ser-para-o-outro” (Ou-Ou II, p. 461 / SKS III,
p. 417-418). A mulher aparece, assim, como um meso-indivíduo, um
sujeito subsistente, uma espécie de pré-sujeito, ou um sujeito sub-
humano, ela é qualquer coisa menos a mesma coisa que o homem e se
ela por acaso for “a mesma coisa que o homem” ela não interessa aos
homens, não serve aos homens (Ou-Ou, p. 374/ SKS III, p. 330) porque a
mulher é apenas na sua relação com o homem de tal modo que a vida
intelectual se apresentaria às mulheres como uma negação da
feminilidade – e se por acaso ela manifestar um perfil intelectual, ela
interessará apenas a homens pouco viris:

[...] uma mulher que seja assim interessante conseguirá certamente agradar;
mas tal como ela abdicou da sua feminilidade, os homens a quem ela agrada
também são em geral pouco viris. Uma mulher deste gênero torna-se
interessante própria e primeiramente através da relação com os homens. A
mulher é o sexo mais fraco [...]” (Ou-Ou, p. 374/ SKS III, p. 330 – grifo meu).

Se lermos as palavras de Johannes como as do próprio Kierkegaard


veremos que ele se insere numa longa tradição de Aristóteles e Hegel
que coloca a mulher como unidade passiva e o homem como o princípio
Natalia Mendes Teixeira • 203

ativo. A mulher como sujeita à natureza e o homem como estando além


dela; a mulher como imanência e o homem como transcendência. Ela
existe de modo determinado, existe para o outro; já o homem, como
sujeito existencial por excelência, existe para-si. Ela é e existe apenas a
partir do homem e na medida em que o homem a desenvolve
assimetricamente a partir de si mesmo. Kierkegaard/Johannes reforça
a sua categorização com uma metáfora que compara a existência da
mulher com a da planta ao sugerir que ela existe, intelectual e
existencialmente, em uma espécie de estado vegetativo: "A vida da
planta, por exemplo, com toda a ingenuidade, desdobra a sua
graciosidade escondida e é meramente para o outro" (Ou-Ou II, p. 461 /
SKS III, p. 417).
(3) Sob a voz de Anticlimacus, em A Doença para a Morte, de 1849,
Kierkegaard apresenta uma teoria perspicaz sobre a subjetividade, o self
e a consciência humana que parece incluir homens e mulheres.
Contudo, há uma ambiguidade sobre como as mulheres se encaixariam
no processo de constituição da subjetividade e da individualidade: a
mulher ocuparia naturalmente um degrau existencial, um ponto de
partida, ainda mais inferior que o do homem. Ainda que, supostamente,
a mulher possa chegar igualmente a obter um self autêntico, alcançando
subjetividade e individualidade, ela não parte do mesmo lugar
existencial que o homem. A mulher parte, existencialmente, de um tipo
de desespero ainda mais baixo e mais fraco. Haveria, por tal, duas
formas de desespero: o primeiro é um desespero feminino, desespero-
fraqueza ou desespero de tipo fraco o qual implica um sujeito com
características femininas tais como sujeição, devoção (Hengivenhed),
sensibilidade e irreflexão; o segundo, chamado desespero masculino,
desespero-desafio ou tipo forte já encarnaria um tipo de virilidade
204 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

existencial masculina, desafiante, hermética, auto assertiva que, ao


contrário da forma feminina, possuiria um alto grau de reflexão – e isso
implicaria em um empecilho. Kierkegaard, em nota correspondente,
procura relativizar essa evidente categorização generificada, mas acaba
por reforçá-la:

Longe de mim negar que nas mulheres possam ocorrer formas masculinas
de desespero e que, inversamente, nos homens possam ocorrer formas
femininas de desespero; mas tais casos são exceções. [...] A mulher não tem
nem a noção do self egoisticamente desenvolvida, nem intelectualidade em
sentido decisivo, por mais sensível e delicada que ela seja em comparação
com o homem. Ao contrário, a essência da mulher é dedicação, entrega; e se
não for assim, é não-feminina (SUD, p.49/ SKS XI, 164 – tradução minha, grifo
meu).

Essas diferenças categoriais podem nos levar a crer que a teoria do


self de Anticlimacus, central no projeto de Kierkegaard, é
majoritariamente uma teoria do self masculino, como Leslie Howe
colocou, o self apresentado por Kierkegaard é nitidamente um self
andrógeno e que sua filosofia da existência é claramente uma filosofia
da existência masculina. Contudo, embora a conclusão possa ser de fato
essa, a questão é um pouco mais complexa. Para o próprio Anticlimacus,
avaliar a postura existencial da mulher sob a perspectiva da devoção e a
do homem a partir da virilidade, do desafio hermético e da reflexão não
parece guardar a intenção deliberada, ao menos explícita, de
inferiorizar o feminino. Ele argumenta que há uma superioridade
existencial na mulher porque a sua condição é única e particular: “de
olhos vendados, ela instintivamente vê mais claramente do que a mais
límpida visão da reflexão” (SUD, p.50/SKS XI, 163). Os homens não teriam
acesso ao nível de entrega e devoção ética que as mulheres poderiam
Natalia Mendes Teixeira • 205

possuir e isso as coloca, de certa forma, um passo mais próximo do


autodesenvolvimento. Embora, na escala de gradação, o desespero-
desafio ou desespero-masculino é o que está de fato mais próximo do
autodesenvolvimento, a devoção seria uma capacidade importante,
considerada por ele inata, que os homens (ou quem incorpora o
desespero masculino) só integrariam com o esforço de uma apropriação.
Ou seja, as mulheres são naturalmente devotas e não intelectualmente
desenvolvidas (e isso tem uma certa vantagem existencial) e os homens
são naturalmente auto reflexivos.
Na tentativa de relativizar a posição de Kierkegaard como o
filósofo responsável por essas declarações, algumas filósofas
argumentam que: (i) no caso de O Diário de um Sedutor, Kierkegaard faz
uma espécie de maiêutica negativa destinada a despertar Regine Ølsen,
a noiva que ele nunca chega a casar e desposar, para o fato de que ele
não é o homem ideal para ela (SIPE, 2008; Léon, 1997), contudo, esse
recurso a um aspecto biográfico polêmico apenas limita o escopo da sua
obra e diminui seu potencial alcance intelectual; (ii) argumentam ainda,
como vimos, que no caso das demais obras qualquer interpretação
definitiva seria problemática porque Kierkegaard escrevia com as duas
mãos: “com a direita escrevia como ele próprio; e com a esquerda
adotava vários pseudônimos” (SIPE, 2008). Assim, segundo a tradição
feminista intérprete, como mencionei no primeiro tópico, o problema
de atribuir à Kierkegaard, a partir desses textos, uma posição sexista é
que ele não é propriamente o autor dessas obras. Contudo, como vimos
até aqui, no que se refere à condição hermenêutica de sua obra é nítido
que Kierkegaard mantém, entre diversos pseudônimos com objetivos
muito diferentes, uma posição bastante homogênea sobre a situação
social e existencial das mulheres.
206 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

(4) Vamos considerar As Obras do Amor, de 1847, assinada direta e


nomeadamente pelo próprio Kierkegaard, sem intermediação de
pseudônimos. Ele afirma o seguinte:

Que abominações o mundo não viu nas relações entre homem e mulher, que ela,
quase como um animal, fosse um ser desprezado em comparação com o
homem, um ser de outra espécie. Que batalhas houve para estabelecer de
forma mundana a mulher em igualdade de direitos com o homem – mas o
cristianismo faz apenas uma mudança infinita e, portanto, silenciosamente.
Externamente, o velho mais ou menos permanece. O homem deve ser o senhor
da mulher e ela subserviente a ele; mas interiormente tudo mudou, mudou
por meio desta pequena pergunta à mulher, se ela consultou sua
consciência sobre ter esse homem – como mestre, pois senão ela não o
recebe. [...] Em nome do Cristianismo, pessoas fátuas têm se ocupado
insensatamente em tornar óbvio de uma maneira mundana que a mulher
deve ser estabelecida em direitos iguais com o homem – o cristianismo nunca
exigiu ou desejou isso. Fez tudo pela mulher, contanto que ela se satisfaça
cristãmente com o que é cristão; se ela não quer, então ela ganha apenas
uma compensação medíocre no fragmento de exterioridade que ela pode
obter de maneira mundana por desafio (WL XVI, 138 – grifo nosso).”

Kierkegaard reconhece o tratamento social que a mulher recebe.


Mas ele não acredita numa mudança social desse quadro – e acha
irrelevante qualquer tentativa de mudança no contexto cultural e social.
Outra vez, Kierkegaard se declara totalmente contra a igualdade social e
política dos sexos, mesmo, nesse contexto, afirmando a igualdade
inerente de todas as pessoas diante de Deus. Ainda que afirme a igualdade
inerente a todas as pessoas diante de Deus, o cristianismo não deseja a
igualdade e emancipação da mulher no plano físico e terreno. O
cristianismo oferece essa mudança silenciosamente, infinitamente, na
eternidade – todos são iguais diante de Deus. Ao mesmo tempo,
Kierkegaard mantém o princípio paulino de assimetria sexual dentro do
Natalia Mendes Teixeira • 207

casamento – o que costuma ser bastante problematizado pelas feministas


cristãs. Desejar igualdade no mundo seria, segundo Kierkegaard, uma
atitude não-cristã. Se esta se trata da melhor posição de Kierkegaard
sobre as mulheres, ainda assim, creio que ela está longe de representar
alguma espécie de protofeminismo – a não ser na medida em que as
doutrinas tradicionais do cristianismo possam também representar.
Assim, vemos que tanto nas obras diretas, como As Obras do Amor, quanto
nas obras pseudônimas Kierkegaard parece manter uma posição apenas
subjugada e subalterna às mulheres – podemos perceber que o único
deslocamento argumentativo dessa obra em relação às demais é o papel
mistificado e espiritualizado que as mulheres, na figura de heroínas
bíblicas como Sara e Maria, passam a ocupar.
Como Leslie Howe (1997) argumentou: Kierkegaard mostra duas
atitudes contrárias sobre a mulher: misoginia e celebração. Kierkegaard
também passa rapidamente, por exemplo, de representações eróticas,
como quando ele afirma que há uma “perigosa idade em que não são
adultas nem crianças” (Ou-Ou, p.146/SKS III, p. 112) e recriminações “a
mulher é a ruína do homem” para imagens sacralizadas que representam
virgindade e pureza; segredo e silêncio; dor e o sacrifício; devoção e
entrega (Ou-Ou, p.120/SKS III, p. 156). No texto chamado O Matrimônio,
Kierkegaard é capaz de apresentar a mulher como “humilde e confiante”
(p.45) como “a consciência do homem” (p. 56) como alguém que está
“muito mais perto de Deus que o homem” (p. 44) alguém que possui “mais
perfeição que o homem” (p. 76) alguém que “é tão forte quanto o homem,
e talvez mais” (p.93); e, no mesmo texto, ele a representa como um sujeito
qua existente que possui “a maior debilidade” (p.76) como “feita para
ocupar-se das pequenas coisas” (p.56) afirmando que “faz parte da
natureza da mulher sentir a superioridade do sexo masculino, e
208 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

submeter-se a ela” (p.48). Essa ambiguidade expõe reações difusas, entre


a reprovação e a exaltação, a misoginia e a celebração, mas ainda assim
representa uma posição homogênea: as mulheres não existem como os
homens (existencialmente e intelectualmente), não possuem os mesmos
direitos (social e politicamente) e nem deveriam almejá-los. Como filósofo
do século XIX, Kierkegaard teve contato com ideais feministas (o próprio
movimento sansimonista que ele criticou) e não os sustentou, ao
contrário, se opôs radicalmente a qualquer possibilidade de emancipação
das mulheres “neste mundo”.

CONCLUSÃO

O projeto de Kierkegaard está numa posição radicalmente ambígua


diante de uma história da filosofia escrita para, sobre e por mulheres
filósofas. Kierkegaard, em seus escritos literários e filosóficos, em
diferentes vozes pseudônimas, relaciona a mulher à fraqueza, ao
instinto, à delicadeza, a um tipo de intelecto sujeito à sensibilidade, a
uma suposta aptidão inata para a devoção (Hengivenhed) desvinculada da
razão e da reflexão. Nos escritos estéticos, a mulher é por ele equiparada
à natureza – o domínio do estético, do sensual e do instintivo – onde
beleza, juventude, inocência e ingenuidade são louvadas. Ela é atrelada
à finitude, à domesticidade, a um vínculo irreparável com o belo e com
o sensível. Nos escritos éticos, o casamento ocupa um lugar central na
formação da personalidade e do caráter ético do homem e da mulher,
onde ela é elogiada pela devoção, pelo auto sacrifício, pela intuição, pelo
tipo de força intelectual que resulta em atitude ética dentro do
casamento. Nos escritos religiosos, homens e mulheres são iguais
(apenas) diante de Deus e a suprema figura da mulher aparece
mistificada: Sara e Maria são os grandes exemplos da feminilidade
Natalia Mendes Teixeira • 209

elogiada e imaculada – aquela que apesar de obstinada e resignada,


permanece subjugada a um fim externo a ela própria.
Conclui-se, assim, sem muita dificuldade, que independente de qual
princípio hermenêutico é o melhor, o fato é que nenhum deles
transforma Kierkegaard imediatamente em uma espécie de
protofeminista – tanto nas obras diretas como nas obras pseudônimas,
Kierkegaard mantém uma posição muito parecida sobre as mulheres. A
mulher é evocada em puerilidade, erotização e sacralidade; enquanto o
homem desde o estádio mais pueril apresenta uma superioridade
intelectual. Os gêneros ocupam, assim, papéis existenciais distintos, seja
nos escritos diretos, nos diários ou nos pseudônimos. A teoria do self de
Kierkegaard, por exemplo, parece ser uma teoria do self masculino; e sua
filosofia da existência, uma filosofia da existência masculina. Embora ele
não negue que as mulheres possam alcançar um self autêntico, elas
partem de um lugar existencialmente distinto, incorporam categorias
distintas, vivem tipos “fracos” de disposições existenciais. Kierkegaard
pressupõe, assim, que as mulheres “existem” de uma forma diferente dos
homens – mesmo que, supostamente, possam alcançar o mesmo estatuto
existencial; mesmo que discuta o conceito de existente (Eksistens) e
indivíduo (Enkelte) em gênero e forma neutras.
Ainda há muito o que fazer e dizer a respeito. Precisamos
investigar, por exemplo, a possibilidade de um aproveitamento das
próprias premissas kierkegaardianas para restaurar o lugar
potencialmente perdido ou sub ocupado pelas mulheres no seu projeto
teórico. Em outras palavras, seria possível usar Kierkegaard contra ele
próprio? Ou, como reaproveitar alguns de seus acertos filosóficos diante
dos seus equívocos políticos em questões de gênero? Poderíamos, assim,
não apenas ajudar a reconstruir uma parte da história feminista da
210 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

filosofia como também revisitar os principais pressupostos e a


possibilidade de uma filosofia feminista da existência já
inequivocamente inaugurada por Simone de Beauvoir. Se Kierkegaard
não foi um grande amigo das mulheres em vida, talvez o projeto dele
ainda possa ser útil a problemas atuais. Acredito, portanto, que
podemos criticar Kierkegaard, sem limitar o alcance do seu projeto.

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Natalia Mendes Teixeira • 211

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Último acesso em 15 de janeiro de 2022.
REFLEXÕES SOBRE O AMOR ROMÂNTICO NAS
9
OBRAS LITERÁRIAS EL ALBERGUE DE LAS MUJERES
TRISTES, DE MARCELA SERRANO, E PONCIÁ
VICÊNCIO, DE CONCEIÇÃO EVARISTO
Renata Araújo Matos 1

INTRODUÇÃO

Buscamos, neste trabalho, refletir como as construções sociais a


respeito do amor romântico criam formatos de amar condizentes com
a manutenção de relacionamentos abusivos nas obras literárias El
albergue de las mujeres tristes, da chilena Marcela Serrano , publicado
inicialmente em 1997, e Ponciá Vicêncio, da brasileira Conceição Evaristo
, publicado pela primeira vez em 2003.
O amor, dentro do casamento ou não, é um tema recorrente em
nossas relações sociais, sendo evocado nos variados campos da
expressão humana, como as artes, as religiões e as ciências. Destarte,
diversos significados e maneiras de vivenciar o amor foram construídos
por diferentes culturas ao longo da história. De maneira mais ampla, os
ideários amorosos se relacionam com os modelos dominantes de
organização social. Na sociedade ocidental, o amor romântico configura
o mais recente formato que rege o amar. Nele, entre outras coisas, há a
idealização do jogo amoroso e o embevecimento na escolha do par.

1
Doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília. E-mail para contato:
rearaujomatos@gmail.com.
Renata Araújo Matos • 213

Por seu turno, o abuso pode ser entendido como a violência


normalizada dentro dos relacionamentos afetivos-sexuais, sendo, ao
mesmo tempo, constituinte e constituído pelo ideário amoroso. Nessa
compreensão, a prática abusiva, embora não seja necessariamente
captada, é um dos elementos centrais da união. Isso posto, pontuamos
que o abuso se caracteriza pela prática da violência. Para tanto,
concordamos com a definição de Heleieth Saffioti (2004), segundo o qual
a violência é entendida como qualquer agenciamento capaz de violar os
direitos humanos. Essa noção é de suma importância, pois fornece
significação totalmente pautada no social, permitindo que a agressão
seja identificada não apenas por aqueles que se encontram envolvidos
no jogo do abuso.
No Brasil, uma a cada quatro mulheres, acima de 16 anos, sofreu
algum tipo de agressão em 2020, o que significa que cerca de 17 milhões
de mulheres já passaram por alguma experiência de violência física,
psicológica ou sexual. Além disso, no mesmo período, cinco em cada dez
brasileiros relatam ter visto uma mulher sofrer violência
(DataFolha/FBSP, 2021). No Chile, pesquisa realizada entre dezembro de
2019 e março de 2020, verificou que entre as mulheres entrevistadas,
com idades entre 15 e 75 anos, 41,4% foram agredidas 2. O contexto de
pandemia acentuou a prática de violência contra as mulheres. Isto em
função do casal conviver mais tempo no ambiente doméstico, da
diminuição da renda familiar, da escolarização remota dos filhos, do
aumento do estresse, entre outros fatores (DataFolha/FBSP, 2021).
Destacamos que as circunstâncias criadas especificamentes pelo
cenário de “Covid-19, se suman las condiciones estructurales de la violencia

2
Disponível em: https://www.doisniveis.com/2n-mulheres/os-direitos-humanos-das-mulheres-no-
chile/ (Acesso em jan. de 2023).
214 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

contra mujeres, principalmente relativas a violencia femicida, falta de


acceso a la justicia y la violencia ejercida directamente por agentes del
Estado, sobre todo en contextos de movilización social” (Red Chilena contra
la Violencia hacia las Mujeres, 2021, p. 5).
As ideias que temos a respeito do amor e o modo que experienciamos
o amar são resultados das sociedades em que vivemos. Somos socializadas
sob a égide de sistemas pautados pelas desigualdades de gênero, de raça,
classe, orientação sexual e de vários outros marcadores sociais.
Outrossim, somos incentivadas, desde muito novas, a construir
expectativas de realização do amor por meio do desempenho da nossa
capacidade de cuidar, seja dos filhos e/ou do companheiro/a, seja do
relacionamento amoroso. A falha no desenrolar dessa função social pode
gerar frustração e necessidade de autocorreção, justificando, em muitos
casos, a permanência em relações abusivas.
As obras literárias, brevemente analisadas neste trabalho,
debruçam-se sobre dois diferentes contextos sociais. O primeiro se
localiza no Chile, recém-saído do regime militar de Pinochet, e tem
como protagonista a historiadora Floreana Fabres; mulher branca,
pertencente à classe média. O segundo se passa no Brasil pós-abolição
da escravatura e acompanha a trajetória da artesã e trabalhadora
doméstica Ponciá Vicêncio; mulher negra e pobre. Friso que as
expectativas e as experiências amorosas dessas mulheres serão o pilar
para refletirmos as conexões entre a construção social do amor e a
vivência de relacionamentos abusivos.

AMOR E VIOLÊNCIA

O abuso é entendido enquanto conjunto de violências normalizadas


no interior de determinados relacionamentos amorosos, estando,
Renata Araújo Matos • 215

assim, intrinsecamente associado às perspectivas sociais acerca do


amor.
Em linhas gerais, partimos da ideia de que o abuso é mantido em
detrimento do dever de cuidar incumbido às mulheres. A referida
atribuição foi sofisticada com os códigos da modernidade, porém é
atuante em todo o sistema patriarcal. Segundo Gerda Lerner (2019), “o
patriarcado é uma criação histórica formada por homens e mulheres em
um processo que levou quase 2.500 anos até ser concluído”. Nesses
termos, a subordinação das mulheres é mais antiga do que a chamada
civilização moderna.
Conforme Saffioti (2004), a socialização de mulheres e de homens,
acontece sob a égide da ordem patriarcal, isso faz com que a ideologia
machista seja reproduzida por todos os envolvidos no jogo social. Sendo
nesse quadro que os modelos de amar são constituídos. Em referência a
Pierre Bourdieu, Maria Jardim (2020) pontua que “a dominação
masculina incrustada nas práticas, nas estruturas e nos discursos
sociais, legitima a existência de um amor desequilibrado entre homens
e mulheres” (JARDIM, 2020, p. 57). Isso nos leva à reflexão de que apesar
da atuação de homens e mulheres, seria errôneo dizer que ambos
participam de maneira igual.
A sexualidade das mulheres foi a instância inicial de controle do
patriarcado. Nesse cenário, o primeiro papel de gênero desempenhado
pelas mulheres foi o de instrumento de troca nas transações de
casamento, já o dos homens foi o de executor da troca e/ou definidor
das regras do câmbio. Lerner (2019) salienta que a família patriarcal se
destaca pela resiliência que a torna presente, de maneira variada, em
épocas e locais distintos. No entendimento da autora, é em seu seio que
se reproduz e se constitui o Estado. “A família não apenas espelha a
216 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

ordem do Estado e educa os filhos para que o sigam, mas também cria e
sempre reforça essa ordem” (LERNER, 2019, p. 266).
Entendemos que a noção de cuidado aperfeiçoada ao longo da
história constitui base da dominação masculina. Erika Apfelbaum (2009)
explica que em toda relação de dominação há a imposição de limites, de
sujeição e servidão àqueles que se submetem, sejam eles grupos, classes
ou indivíduos. A dissimetria se faz presente nas práticas sociais, no
campo da consciência e nas estratégias de identidade. Para
aprofundarmos essa discussão, devemos nos debruçar sobre as noções
de virilidade e mulheridade.
De acordo com Pascale Molinier e Daniel Welzer-Lang (2009), a
virilidade é apresentada como os atributos sociais ligados aos homens e
ao masculino e também enquanto forma erétil e penetrante da
sexualidade masculina. Em síntese, “A virilidade é a expressão coletiva
e individualizada da dominação masculina” (MOLINIER &
WELZERLANG, 2009, p. 102). A adesão dos homens à virilidade se molda
como uma capa contra as manifestações de sofrimentos, já que estes são
atribuídos às mulheres como prova de sua inferioridade natural.
Todavia, o homem refém da virilidade, é frágil, “Seu ego carece de
flexibilidade psíquica; não sabendo suportar, nem elaborar o
sofrimento, resiste mal aos remanejamentos de seu status social
(desemprego, aposentadoria, feminização da profissão), assim como aos
encontros amorosos” (MOLINIER & WELZER-LANG, 2009, p. 104). Ao
lado da noção de virilidade, temos a de mulheridade, ambas estabelecem
conformação às normas sexuais concernente à divisão social e sexual do
trabalho. A diferença é que enquanto aquela pode representar
valorização, esta reporta apenas à depreciação e negação de si.
“Mulheridade é o neologismo que designa a alienação da subjetividade
Renata Araújo Matos • 217

feminina no estatuto da submissão” (MOLINIER & WELZER-LANG,


2009, p. 104).
Lerner (2019) vê no conceito de paternalismo uma das vias para o
entendimento da subordinação das mulheres. Essa noção diz respeito
ao acordo não escrito em que as mulheres
trocam o desempenho dos papéis da mulheridade pela proteção dos
homens. Em sua escrita, a
autora salienta que os recursos econômicos são artefatos
permutados na relação paternalista. Contudo, conforme podemos ver
na atualidade, esta se constitui enquanto realidade já distante, tendo em
vista que as mulheres ocupam cada vez mais o mercado de trabalho e
que ser provedora de recursos econômicos sempre moldou a vivência de
parcela expressiva das mulheres não pertencentes aos grupos
privilegiados.
Chamamos atenção, entretanto, para a crença da proteção
masculina que encobre a fragilidade do homem, expressa na
necessidade de cuidado permanente. Isso quer dizer, que dentro do jogo
social operado, a mulher é apresentada como sujeita a ser protegida,
sendo isso algo por ela introjetada, e o homem como o responsável pela
salvaguarda. Sem embargo, como essa não é a cena imperante, as
relações amorosas se delineiam pela incessante busca de representação
real dos papéis socialmente atribuídos. Sendo assim, as mulheres se
tornam responsáveis em “cuidar” para que os homens finalmente
possam protegê-las, insistindo em
relações abusivas por acreditarem terem falhado no dever do
cuidado. A regra dominante é “homem como ser completo e poderoso, a
218 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

mulher como inacabada, mutilada e sem autonomia” (LERNER, 2019, p.


270). E todos, inconscientemente, envolvem-se em tentar segui-la 3.
Esclarecemos, de antemão, que neste trabalho, em decorrência da
delimitação analítica, as reflexões sobre as obras literárias El albergue
de las mujeres tristes e Ponciá Vicêncio estarão centradas exclusivamente
nas vivências amorosas das protagonistas Floreana Fabres e Ponciá
Vicêncio 4.

SOBRE EL ALBERGUE DE LAS MUJERES TRISTES

El Albergue de las mujeres triste foi escrito pela romancista Marcela


Serrano e publicado pela primeira vez em 1997. Serrano viveu os anos
da ditadura chilena, chegando inclusive a se exilar durante os anos de
1973 e 1977. Assim, o relato e a reflexão sobre os anos da ditadura de
Pinochet perpassam a escrita de suas novelas, estando presentes de
forma direta e/ou indireta nas trajetórias de seus personagens.
Floreana Fabres, protagonista da obra, é uma historiadora chilena.
Apesar de não ser rica, pois seu ofício não permite, vem de uma família
mais abastada. Ela possui três irmãs e três irmãos, já foi casada e tem
um filho de 16 anos com quem vive em Santiago. A narrativa do livro se
passa no Albergue de las mujeres tristes, localizado em Chiloé, no Sul do
Chile. A estadia foi fundada, após o fim da ditadura, pela psiquiatra
Elena e se constitui como um espaço de acolhimento para mulheres
tristes e adoecidas (quase sempre pelas decepções amorosas).

3
Devemos ainda lembrar que tanto mulheres como homens não são uma categoria homogênea. Nesse
sentido, Lerner salienta o acordo recíproco como um esquema restrito às mulheres da raça e classe
privilegiadas que “em troca de subordinação sexual, econômica, política e intelectual aos homens”,
compartilham “o poder dos homens de sua classe para explorar homens e mulheres de classes
inferiores” (LERNER, 2019, p. 268)”.
4
Para análise mais detalhada das obras, ver MATOS (2021).
Renata Araújo Matos • 219

Floreana está adoecida e em processo de distanciamento de si. Ela


vê o amor enquanto um sentimento tão comum, fantástico, paralisador,
superestimado e escasso. Reflete que por ele ser um passo em falso, o
melhor é a imobilidade. Seu desejo é de proteção, no entanto, algo a faz
não abandonar inteiramente o movimento que leva ao amar, sentindo-
se convocada ao perigo. A protagonista possui forte senso de
inferioridade. Ela parece não reconhecer suas conquistas. Por se sentir
facilmente vulnerável, elegeu a castidade como forma de mitigar o
sofrimento causado pelas relações amorosas.
O tema da sexualidade é de grande importância para Floreana, pois
apesar de acreditar que a continência é a única possibilidade de não
depender do outro, é, na realidade, completamente envolvida pelo
desejo sexual. Isso porque, apesar das suas falas serem direcionadas em
afirmar a abnegação das relações afetivas e sexuais como forma de
proteção, seus pensamentos e ações caminham em outro sentido.
Antes de sua ida para o albergue, Floreana viveu um frustrado
romance com um homem casado. Ela o conheceu em um evento na
Cidade do Cabo (África do Sul), no qual ele dirigia a delegação chilena.
Ela tem certeza de que ele não ama a esposa, acreditando que talvez
nunca a tenha amado. Assim, não pode deixar de julgá-lo, da mesma
forma que não consegue deixar de amá-lo. É importante ainda ressaltar
que ela, em seu íntimo, culpabiliza-se por não ser a mulher forte que o
fez segui-la. Somada a esta decepção amorosa, a irmã mais nova de
Floreana faleceu. Tais acontecimentos contribuíram para a
intensificação da sua tristeza.
Logo no início da estadia no Albergue, Floreana conheceu Flavián,
médico da aldeia, por quem se sentiu imediatamente atraída. Flavián é
220 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

médico internista, foi para o sul com a ajuda de Elena 5, motivado por
problemas com a ex-esposa e com a clínica onde trabalhava. Advém da
decadente oligarquia chilena, tem dois filhos. Por conta dos conflitos
enfrentados no seu findado casamento, tem visão negativa sobre a
relação conjugal e acerca de todas as mulheres.
Esse personagem também está adoecido e viveu, por anos, em uma
relação abusiva. Todavia, por ele ser a exceção dentro do universo de
mulheres que compõem a obra, sente-se no direito de reivindicar para
si, na condição de homem triste, o poder de fala sobre as mulheres e a
legitimidade de performar um comportamento misógino.
A questão é que Floreana desde o início se interessou pelo médico,
não demonstrando em nenhum momento o real intento de seguir com
a castidade e de se dedicar à vivência do albergue. Se o contato físico,
materializado por um beijo, demorou toda a narrativa para acontecer,
foi pela resistência de Flavián e não dela. É importante destacar que até
mesmo Elena, a proprietária do Albergue estimula Floreana a entender
que embora o comportamento do médico seja problemático, ele pode ser
um homem melhor. O fato dele ser um homem ferido é algo irresistível
às mulheres que desejam “servir a uma causa”. Por fim, Floreana desiste
de voltar à Santiago e fica com Flavián. É nesse encontro que ela
reencontra a si.

SOBRE PONCIÁ VICÊNCIO

Ponciá Vicêncio foi escrito por Conceição Evaristo e publicado pela


primeira vez em 2003. A autora nasceu em Belo Horizonte, em 1946, e
migrou para o Rio de Janeiro, em 1970. Sua vivência enquanto mulher

5
Além de serem amigos de faculdades, Flavián e Elena viveram no passado um romance extraconjugal.
Renata Araújo Matos • 221

negra, que teve a infância marcada pela pobreza material, é refletida nas
histórias das diversas mulheres negras que protagonizam suas
narrativas.
Ponciá Vicêncio, protagonista da obra, é uma mulher negra que
nasceu no interior do país. Os antepassados de Ponciá foram
escravizados, seus avós paternos vivenciaram diretamente a escravidão
oficial do Estado brasileiro. No entanto, mesmo após a abolição sua
família continuou servindo aos antigos escravizadores, em condições
análogas ao antigo regime. O pai de Ponciá sempre estava a trabalhar
nas terras dos brancos. Luandi, único irmão da protagonista, desde
muito cedo o acompanhou na labuta. Desse modo, ela cresceu
praticamente sozinha com a mãe, com quem trabalhava o barro. Vale
ainda dizer que ela foi a primeira, em toda sua família, a ser
alfabetizada. Isso porque um grupo de missionários ficou certo período
na região e montou uma escola para os moradores do povoado. Quando
eles partiram, Ponciá seguiu sozinha o estudo da cartilha.
Em sua infância, Ponciá Vicêncio acreditava que se passasse por
baixo do arco-íris viraria homem. É importante que saibamos que
naquela época, ela sorria e estimava ser mulher. Aos 19 anos, Ponciá
resolveu ir morar na cidade. Sua partida foi repentina, ela temia desistir
e por isso viajou no dia seguinte à decisão. O trem tardaria a voltar ao
povoado, então não poderia perder a oportunidade. O percurso durou
três dias. Levou consigo apenas uma trouxinha.
Na cidade, conseguiu emprego como trabalhadora doméstica.
Sonhava em ter uma vida melhor, comprar uma casa e trazer sua mãe e
seu irmão para a cidade. No entanto, foi confrontada com a
continuidade da dura realidade da pobreza e do racismo. Depois de
muitos anos de trabalho, conseguiu comprar o barraco e voltou em
222 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

busca da sua família. Porém, seu irmão igualmente havia migrado para
a cidade e sua mãe saído em andanças como forma de apaziguar a
saudade que sentia dos filhos.
Após o retorno à cidade, ela iniciou uma relação amorosa. Seu
homem 6 trabalhava na construção civil e admirava as características
ativas da protagonista, mesmo que desde o início percebesse que às
vezes o espírito dela fugisse.
A conjuntura social marcada pela pobreza, pelo racismo e pela
desigualdade de gênero foram determinantes para o alheamento que vai
tomando conta da personagem ao longo da narrativa. Afinal, ela
representa uma conjuntura social que não é apenas sua, mas de todos
aqueles que compartilharam/compartilham dessa história comum.
Somado a isso, seu casamento não correspondeu às suas expectativas.
O casamento dos pais de Ponciá foi, em muito, distinto do seu. Seu
pai ficava mais na terra dos brancos, sua mãe nunca reclamou da
ausência do marido. Vivia a cantar e a trabalhar o barro. E quando ele
estava de volta, era Maria Vicêncio que decidia o que seria feito naqueles
dias e quando ele partisse. Ponciá, assim sonhava com o dia que também
teria um marido, que faria tudo que quisesse, e com os filhos que teriam.
Tal passagem reflete os desejos amorosos de Ponciá, evidenciando que
mesmo em um contexto totalmente diferente da primeira obra
analisada, o sucesso conjugal compunha as condições para a sua
realização individual.
Os acontecimentos da vida de Ponciá caminharam no sentido
contrário aos seus sonhos de menina. Ela teve sete filhos, mas todos
morreram logo após o nascimento, alguns chegaram a viver um dia.

6
É assim que ele é chamado em toda obra.
Renata Araújo Matos • 223

Pariu os cinco primeiros em casa com a parteira Maria da Luz, que junto
a ela chorava a morte dos bebês. Os dois últimos nasceram no hospital,
onde lhe disseram que os óbitos eram decorrência de problemas no
sangue. Seu homem se distanciava e dava a beber, depois voltava
disposto a fazer outro filho.
Outro ponto é que o real alcance do prazer sexual ocorreu quando
Ponciá era menina e teve a primeira experiência com a masturbação.
Muitas vezes ela se colocava a lembrar desse dia com as mãos, já que
nem sempre o prazer do marido era com ela repartido. Conforme ela se
distanciava de si, o desejo de prazer desaparecia.
O relacionamento de Ponciá é marcado por inúmeras violências
que perpassam a forma física, psíquica e emocional. Ao indagar sobre
seus sonhos desmoronados, refletia que “Lá estava ela agora com seu
homem, sem filhos e sem ter encontrado um modo de ser feliz. Talvez o
erro nem fosse dele, fosse dela, somente dela. Ele era assim mesmo”
(EVARISTO, 2017, p. 47). Nos escapes dos constantes estados de
alheamento, Ponciá era sufocada pela tristeza do presente, ela sofria e
talvez ficar longe de si fosse o melhor. Em alguma medida, está ainda
manifesto, que ela tentava justificar o comportamento violento do
homem sob a alegação da imutabilidade do seu comportamento e de que
os erros eram somente dela.
Por fim, Ponciá consegue reencontrar os seus (mãe, irmão,
ancestrais) e reencontra também a si.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: BREVES COMPARAÇÕES

Mesmo em diferentes situações da vivência amorosa, encontramos


o fenômeno da subjugação das mulheres. Essa constatação confere ao
campo da prática amorosa um importantíssimo papel na continuidade da
224 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

dominação masculina operante no patriarcado. Conforme nos diz Saffioti


(2004), não estamos diante de “sobrevivências de um patriarcado remoto;
ao contrário, o patriarcado é muito jovem e pujante, tendo sucedido às
sociedades igualitárias” (SAFFIOTI, 2004, p. 60).
As histórias contadas em El albergue de las mujeres tristes e em
Ponciá Vicêncio apresentam mulheres socialmente diferenciadas pela
classe e pela raça. Havendo ainda que se destacar que enquanto Floreana
foi criada no meio urbano, Ponciá vem do espaço rural. As paisagens
sociais e as condições que perpassam e compõem suas trajetórias estão
diretamente relacionadas com o estado de adoecimento em que se
encontram e com os desfechos de suas vivências amorosas.
As duas protagonistas se destacam por suas habilidades
intelectuais, Floreana é uma grande historiadora, Ponciá domina a
leitura e é uma excelente artesã. Sem embargo, tais mestrias são
anuladas no campo de seus relacionamentos amorosos. Certamente,
isso tem a ver com a idealização romântica que atribui a vivência do
amor o sentido de realização pessoal. Nada obstante, os papéis
socialmente destinados às mulheres e aos homens são peças
fundamentais para a compreensão dessa problemática.
Ponciá Vicêncio carregava a dor da mãe que sete vezes pariu e viu
seus sete filhos morrerem. No final, ela gostaria que os bebês não
sobrevivessem. Ainda assim, ficava novamente grávida seguindo uma
imposição, mais ou menos velada, de seu homem. Ele que também ficava
triste e se afastava durante o luto, retornava resoluto de que
conseguiriam gerar. Ponciá, até mesmo nesse momento de tamanha
dor, estava solitária.
Floreana alcançou sucesso profissional, mas como consequência de
uma sociedade estruturada pela ordem patriarcal, que instrui a
Renata Araújo Matos • 225

culpabilização da mulher como instrumento de controle, insistiu em


negar suas habilidades e a se diminuir em exatamente tudo. Ademais,
julgava que seu maior fracasso estava em não ter um companheiro e,
inconscientemente, estava disposta a fazer o que pudesse para se
manter em uma união amorosa. Desse modo, não considerou que
caminhava para um relacionamento com diversos aspectos de violência
e que, em alguma medida, estava a assentir com o comportamento de
Flavián.
Assim como as protagonistas, os homens das obras são socialmente
diferenciados pela raça e pela classe. Encaram distintos caminhos para
seguirem suas trajetórias. Sendo claro que o homem de Ponciá, por
consequência do racismo e das desigualdades inerentes ao capitalismo,
lida com inúmeras dificuldades a mais. No entanto, dentro do quadro do
abuso, ambos solicitam compreensão (a si mesmos e a elas) pelas
violências cometidas, com base na afirmação de que não foram
devidamente cuidados. Ideia, essa, aceita por Floreana e Ponciá.

REFERÊNCIAS

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(Orgs.). São Paulo: Editora Unesp, 2009.

DataFolha/FBSP. Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil - 3a edição -


2021. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/06/
relatorio-visivel-e-invisivel-3ed-2021-v3.pdf (Acesso em nov. de 2022).

EVARISTO, C. Ponciá Vicêncio. 3a ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017. LERNER, Gerda. A
criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens. Tradução
de Luiza Sellera. São Paulo: Cultrix, 2019.

JARDIM, M. C. Socioanálise: introdução ao conceito. In: Socioanálise das emoções:


instituições socioculturais na produção das emoções. Organizadores: Maria Chaves
Jardim, Gabriela Porcionato e James Washington Alves dos Santos. São Paulo, SP:
Cultura Acadêmica, 2020.
226 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

MATOS, R. A. M. O amor e o amar: uma análise comparada dos relacionamentos abusivos


em “El albergue de las mujeres tristes”, de Marcela Serrano, e “Ponciá Vicêncio”, de
Conceição Evaristo. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) — Universidade de
Brasília, Brasília, 2021.

MOLINIER, P.; WELZER-LANG, D. Feminilidade, masculinidade e virilidade. In:


Dicionário crítico de feminismo. Helena Hirata et al. (Orgs.). São Paulo: Editora Unesp,
2009.

Red Chilena contra la Violencia hacia las Mujeres. Dossier Informativo: 2020-2021 -
Violencia contra mujeres en Chile. Chile, 2021. Disponível em: https://cl.boell.org/
sites/default/files/2021-08/Dossier-Informativo-Violencia-contra-Mujeres-2020-
2021-Red-Chilena.pdf (Acesso em jan. de 2023).

SAFFIOTI, H. I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu


Abramo, 2004.

SERRANO, M. El albergue de las mujeres tristes. Madrid: Suma de Letras, 2001.


10
CAPITALISMO, SUBJETIVIDADE E AMOR 1

Rhuann Fernandes 2

INTRODUÇÃO

Ultimamente, devido às minhas pesquisas nos temas de relações


amorosas e arranjos conjugais contemporâneos, venho notando um tipo
de narrativa que faz parte de um “senso comum” sobre o amor: a
afirmação de que o capitalismo altera o modo como as pessoas veem o
mundo e como colocam em prática o relacionamento amoroso, sendo
que, presentemente, com o avanço do neoliberalismo, os indivíduos
estariam mais insensíveis, relacionando-se sexualmente com várias
pessoas sem estabelecer vínculos profundos e duradouros, devido à
maior facilidade para encontros casuais proporcionadas por
“aplicativos de paquera”, tais como Tinder e Badoo. Assim, não se “ama
e se relaciona mais como antigamente”, as pessoas apenas “colecionam
corpos, colecionam umas às outras”.
Ou seja, os laços estão mais efêmeros, pois supostamente “arrumar
pessoas para transar estaria mais fácil” pelo leque de possibilidades de
escolha e, por esse motivo, os indivíduos não querem “relações sérias”.
Por exemplo, quando paro um instante no Instagram, o que vejo, são as
pessoas do meu universo compartilhando imagens do sociólogo

1
Este texto é resultado de minha conferência “Identidade negra e não monogamia política no Brasil”,
baseada em meu último livro (FERNANDES, 2022), que abriu a terceira edição do evento Till Reason Do
Us Part (Até que a Razão nos Separe), ocorrido em janeiro de 2023. Para mais informações, ver:
https://www.youtube.com/watch?v=riUo0ZMbp70&t=1190s, acesso em: 20 abr. 2023.
2
Doutorando em Ciências Sociais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. E-mail:
rhuannfernandes.uerj@gmail.com.
228 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

Zygmunt Bauman (1925-2017) com legendas atribuindo carga valorativa


às relações amorosas, deduzindo-se que “hoje amar está difícil”, “as
pessoas não querem mais compromisso”, “antes era melhor amar,
porque as relações eram mais duráveis”, entre outros posicionamentos.
Repare que essa premissa idílica entende que algo no modelo de
relação amorosa foi perdido e alterado diante das transformações
impulsionadas pelos avanços tecnológicos, mas que deve ser recuperado
e conservado, para as coisas voltarem a ser como antes. Tomando essa
narrativa como objeto de reflexão — pelo fato de crer que interrogar o
“senso comum” 3 é uma tarefa antropológica por excelência que nos
auxilia na apreensão crítica de nosso próprio universo simbólico —,
reconheço que, de fato, o capitalismo impacta a subjetividade e,
consequentemente, transforma a visão como as pessoas veem as
relações amorosas no mundo contemporâneo. Mas como isso ocorre?
É necessário explicar tal complexidade para não banalizarmos as
relações amorosas e somente dizermos por aí que hoje elas estão “mais
frágeis”, em uma perspectiva conservadora e negativa, a qual procuro
me distanciar. Nesse sentido, este ensaio teórico, dividido em dois
tópicos, tem o propósito de discutir sobre como a monogamia e o
sentimento amoroso são transformados, sobretudo no decorrer do
século XX, por meio das reivindicações de movimentos sociais e
intelectuais que se atrelam às mudanças institucionais que ocorrem no

3
Em diálogo com Clifford Geertz (1997), entendo “senso comum” como um sistema de símbolos e
significados partilhados por uma determinada comunidade humana, não apenas uma sabedoria prática
e corriqueira, mas algo que também se apresenta como um sistema cultural não unificado. Esse senso
comum altera-se radicalmente de um lugar para o outro ou de um período a outro. No senso comum
há um “[...] emaranhado de práticas herdadas, crenças aceitas e juízos habituais [...]” (GEERTZ, 1997, p.
112), onde são produzidas uma espécie de “síndrome dos objetos invisíveis”, quando as coisas aparecem
para nós de modo tão natural e claro que, por vezes, é difícil notá-las. Em outros termos, quando os
tipos de simbologia mais articulados esgotam seus papéis.
Rhuann Fernandes • 229

capitalismo, impactando o modo como as pessoas, em geral, praticam o


amor no Ocidente. Em alguma medida, creio que este texto contribui
também para mostrar como o sentimento amoroso e o casamento
monogâmico nunca se mantiveram intactos, mas em constante
transformação, adaptando-se às novas exigências societárias.

1. A MODERNIDADE REFLEXIVA E AS TRANSFORMAÇÕES NA INTIMIDADE 4

Após a Primeira Guerra Mundial, algumas discussões sobre amor


livre nos circuitos anarquistas na virada do XIX para o XX, são
recuperadas por movimentos feministas liberais, tal como a
interpelação à instituição tradicional do casamento, que era percebida
como um mecanismo opressivo controlado pelo Estado que prendia as
mulheres, em particular, a uma vida de servidão e dependência. 5 Como
argumenta Francisco Rüdiger (2012), nesse momento, o mundo
ocidental começa a sofrer certos abalos com as críticas radicais ao
patriarcalismo familiar burguês de vários segmentos.
A crítica ao casamento tradicional por camadas mais
intelectualizadas da população fez com que, pouco a pouco, fossem
percebidas, de modo mais amplo, as contradições e os problemas da

4
De modo sucinto, pode-se dizer que a modernidade tardia, também conhecida como modernidade
reflexiva, é um processo contínuo de mudanças que transformou os fundamentos da sociedade
ocidental. Nessa nova realidade, as pessoas passam a optar entre se agarrar a certezas do passado e se
adaptar a uma nova realidade em constante mutação (BECK; GIDDENS; LASH, 1997).
5
A ideia de amor livre não era apenas sobre a liberação sexual, mas um desafio ao sistema patriarcal, à
desigualdade de gênero e à interferência do Estado. Os anarquistas dessa época acreditavam que os
indivíduos deveriam ter a liberdade de se envolver em qualquer relação sexual consensual sem
interferência, julgamento ou sanção. Uma figura importante nessas discussões foi Emma Goldman
(1869-1940), uma anarquista influente nos Estados Unidos e na Europa, que escreveu amplamente sobre
o tema do amor livre, direitos das mulheres e liberdade sexual. Ela defendeu o direito de explorar
relacionamentos fora do casamento e argumentou contra as normas sociais que criticavam e julgavam
tais relacionamentos. Goldman acreditava que o amor verdadeiro não poderia existir nos casamentos
convencionais de sua época, que ela via como arranjos econômicos, onde as mulheres eram
efetivamente vendidas para uma vida de servidão (GOLDMAN, 2015).
230 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

instituição. Isso ocorreu porque, para os indivíduos euroamericanos, o


casamento monogâmico representava não apenas um cansaço, mas
também aborrecimentos contínuos no cotidiano, pois seus pressupostos
não correspondiam às novas demandas do individualismo. Inicia-se,
então, uma reestruturação do eu romântico.
Segundo Rüdiger (2012), com o avanço do capitalismo e a
disseminação dos produtos da indústria cultural, a família conjugal
burguesa, que antes se fechava em si, ao menos idealmente, perde seu
significado por conta do meio consumista desenvolvido pelo novo
capitalismo e pelo individualismo democrático de massas. Isso fez esse
modelo de família socializar em meio a instituições antes não vistas,
mas que nesse momento estavam sendo difundidas intensamente, a
exemplo do romantismo amoroso, que toma outras proporções,
passando a ser cultivado pelo fato de se adaptar às exigências das
críticas dos vanguardistas burgueses.
Nesse sentido, a característica projetiva que explica como
indivíduos se sentem atraídos entre si por uma força descomunal e, por
isso, procuram se unir, estranhamente, passa a ser recuperada no
universo euroamericano e reproduzida de modo avassalador (RÜDIGER,
2012). Isso porque, o amor romântico, por se mostrar algo mágico, não
se contrapõe necessariamente às ideias de individualismo, igualdade e
liberdade que estavam sendo reinseridas nesse momento. Ao contrário,
essa é a sua base, pois se compartilha a crença de uma qualidade
igualitária intrínseca à concepção de que o relacionamento em si deriva
mais do envolvimento dos enamorados do que de fatores sociais
externos. Por tal razão, desenvolve-se a ideia de um “romantismo
democrático”.
Rhuann Fernandes • 231

Esse romantismo é legitimado a partir das condições da indústria


cultural, que colocou em circulação o amor e o romance como centro do
ideal de felicidade, principalmente feminina, acomodando a utopia
individualista burguesa e a exploração de suas fantasias hedônicas
(MORIN, 1984). Em outras palavras, a recuperação do romantismo se dá
pelo capitalismo e pelo individualismo desenfreado, que estimulam, aos
poucos, a demanda por amor em escalas cada vez maiores via produtos
da indústria cultural, sobretudo aqueles que traziam a narrativa de final
feliz. Sendo assim, o caráter fantasioso do amor acarretou inúmeros
problemas para a estrutura familiar, por isso a maneira de vivenciá-la
ganha outro curso (RÜDIGER, 2012).
O amor romântico, recuperado de suas bases do século XVIII, acaba
sendo adotado, agora no século XX, em uma perspectiva menos
doméstica, pois os indivíduos começam a se ver mais autônomos em
relação aos valores morais presentes no âmbito da família conjugal.
Melhor dizendo, o romantismo democrático desafiou tanto o
patriarcado quanto a instituição familiar. Contudo, esse romantismo
ainda manteve uma ideia de totalidade com o outro, tendo essa
idealização, como pano de fundo, uma intensificação das diferenças
estabelecidas entre a masculinidade e a feminilidade, definidas em
termos hierarquizantes. Diante disso, feministas liberais, em meados do
século XX, desenvolveram críticas e denúncias ao machismo ainda
dominante nas narrativas românticas, que sustenta uma visão de
casamento permeado pelo culto à domesticidade da mulher, alienando-
a e proporcionando sua exploração política em termos de afetos.
Nesse momento pleiteia-se, em oposição a essa premissa, que o
centro das relações amorosas vise a uma atitude e a uma ordenação
igualitária em termos de intimidade, em que a mulher não seja vista ou
232 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

interpretada para procriação, para desenvolver certas atividades por


conta de suas aptidões biológicas. O romantismo, que começa a ser
interrogado, entra em confronto com a perspectiva de benefícios
recíprocos reivindicada por parte dos movimentos políticos de
mulheres. Essa reivindicação, por sua vez, faz as ideias, os sentidos e as
fórmulas românticas perderem cada vez mais espaços e vitalidade no
Ocidente, porque os pressupostos machistas que as estabilizam são
questionados.
Conforme Anthony Giddens (1993), as transformações ocorridas no
mundo ocidental, em virtude das exigências dos movimentos feministas
no decorrer do século XX, abriram espaço para uma crítica contundente
à concepção de amor romântico. A ordem emocional reivindicada e
trazida pelas mulheres proporcionou grandes mudanças, conduzindo as
relações amorosas a outros status. Assim, o ideal de amor romântico foi
importante porque as mulheres não quiseram ser interpretadas como
suas vítimas passivas. Ao contrário, o amor romântico foi
instrumentalizado como estratégia entre elas, quando realmente
acreditavam que, pela primeira vez na história, estavam livres de
amarras externas para escolher com quem se casar. Porém, com essa
vivência, contradições e privilégios dos homens foram percebidos e, em
seguida, interrogados.
Como consequência, emerge o que Giddens (1993) denomina de
sexualidade plástica, que possibilitou a emancipação das mulheres em
relação ao prazer sexual, retirando o foco do sexo por procriação,
condicionando uma reflexividade sobre a intimidade feminina e a
crítica ao papel dos homens nas relações afetivo-sexuais orientadas
pelo romantismo. Para o autor, a sexualidade torna-se descentralizada
e, apesar de sua iminência no contexto de insatisfações e críticas das
Rhuann Fernandes • 233

mulheres ainda no século XIX, em virtude da limitação rigorosa da


dimensão da família, essa sexualidade só se concretiza, de modo mais
amplo, como resultado da difusão da contracepção moderna e das novas
tecnologias reprodutivas no século XX. No entendimento de Giddens
(1993), essas condições contribuíram para a libertação da sexualidade da
regra do falo masculino.
Como salienta Rüdiger (2012), a sexualidade passa a ter mais
importância “conforme se verificou o declínio das preocupações
femininas com a reprodução (voluntária ou não), e os relacionamentos
amorosos foram se tornando mais livres, abertos e necessariamente
sujeitos à negociação.” (RÜDIGER, 2012, p. 151-152). Nesse universo, a
sexualidade está livre da acepção que a via como naturalmente
intrínseca à reprodução, reestruturando, de modo geral, a intimidade
no mundo contemporâneo. Assim, a sustentação do amor romântico
começa a se desmantelar sob o constrangimento da emancipação e da
autonomia sexual feminina.
O amor romântico é o precursor do que Giddens (1993) denomina
de relacionamento puro, que pode ser entendido como um
relacionamento fincado na igualdade emocional e sexual, em oposição
às relações e formas pré-existentes de poder do sexo. O relacionamento
puro, nota o autor, traz à tona uma negociação e uma ética que
reconhece a igualdade ao redor dos vínculos pessoais, sendo justamente
isso que altera a intimidade, reivindicada, de agora em diante, como
uma democratização no domínio interpessoal.

Um relacionamento puro não tem nada a ver com pureza sexual, sendo um
conceito mais restritivo do que apenas descritivo. Refere-se a uma situação
em que se entra em uma relação social apenas pela própria relação, pelo que
pode ser derivado por cada pessoa da manutenção de uma associação com a
234 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

outra, e que só continua enquanto ambas as partes considerarem que


extraem dela satisfações suficientes, para cada uma individualmente, para
nela permanecerem. Para a maior parte da população sexualmente
“normal”, o amor costumava ser vinculado à sexualidade pelo casamento,
mas agora os dois estão cada vez mais vinculados através do relacionamento
puro. (GIDDENS, 1993, p. 68-69).

Para Giddens (1993), a divergência entre a concepção de amor


romântico e relacionamento puro assume vários contornos, que tendem
a conflitar. A tendência é que essa tensão seja, cada vez mais, revelada à
visão geral da sociedade como decorrência da progressiva reflexividade
institucional. Desse ponto, o autor chama atenção para o amor
confluente — tratado como uma das formas de manifestação da relação
pura —, cuja verdadeira condição é a abertura ao outro na relação
afetivo-sexual, em que a continuidade do relacionamento depende,
exclusivamente, do desenvolvimento da intimidade, abalando a
identificação projetiva presente no amor romântico. 6
Isso não significa dizer que, no amor confluente, inexista esse tipo
de identificação. Na verdade, ela só não é o centro para constituição do
amor, sendo vista apenas como possível caminho para sua existência.
Então, o amor confluente — ao contrário dos sonhos recheados de amor
e das promessas de eternidade e fidelidade na perspectiva romântica,
que a princípio sujeitam as mulheres à domesticidade — presume, de
início, igualdade na doação e recebimento emocionais, não de modo
fantasiado, mas pragmático. Em outros termos, no amor confluente
evidencia-se uma paridade emocional, em que as pessoas envolvidas se
encarregam de garantir igualdade nas trocas afetivo-sexuais. “Neste

6
Essa identificação projetiva pode ser caracterizada como um processo por meio do qual os agentes se
tornam atraídos e enfeitiçados entre si, unindo-se espontaneamente. Assim, os traços do outro são
assimilados de modo quase intuitivo (GIDDENS, 1993).
Rhuann Fernandes • 235

momento, o amor só se desenvolve até o ponto em que se desenvolve a


intimidade, até o ponto em que cada parceiro está preparado para
manifestar preocupações e necessidades em relação ao outro e está
vulnerável a esse outro.” (GIDDENS, 1993, p. 73).
Os homens, por terem uma espécie de dependência emocional
disfarçada na busca incessante pelo segredo feminino, inibiram a
propensão de tornarem-se vulneráveis. Logo, boa parte deles vive do
romantismo desenfreado, baseados em jogos de sedução e sustentando
o ethos conquistador/galanteador. A não inclinação à vulnerabilidade,
em grande medida, é sustentada pelo ideal do amor romântico, que
contribui para a naturalização da figura do homem atraente,
caracterizado em uma masculinidade hegemônica como controlado,
frio, racional, inatingível e de uma personalidade forte. De fato, esse
seria, segundo Eva Illouz (2011), o papel do homem considerado
desejável no senso comum ocidental. Em oposição, o amor confluente
contribui para dissolver essa máscara e negativar tal postura sedutora,
fazendo o homem reconhecer também suas vulnerabilidades
emocionais.

O amor confluente pela primeira vez introduz a ars erotica no cerne do


relacionamento conjugal e transforma a realização do prazer sexual
recíproco em um elemento-chave na manutenção ou dissolução do
relacionamento. O cultivo de habilidades sexuais, a capacidade de
proporcionar e experimentar satisfação sexual, por parte de ambos os
sexos, tornam-se organizados reflexivamente via uma multiplicidade de
fontes de informação, de aconselhamento e de treinamento sexual.
(GIDDENS, 1993, p. 73, grifo do autor).

Sendo o amor confluente uma das formas de relação pura,


entende-se que todas as pessoas dispõem da chance de se conhecer e se
236 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

realizar sexualmente, indicando o desaparecimento de categorias


conservadoras, como “mulher respeitável” que, em alguma medida,
produz uma linha moral para marginalizar mulheres que não
compactuam com a ortodoxia do planejamento do sexo por amor. Além
disso, o amor confluente não se pauta pela monogamia, justamente por
atacar uma das principais ideologias de sua base: o exclusivismo sexual.
O que mantém o relacionamento puro — meio pelo qual se desenvolve o
amor confluente — é a aquiescência entre os parceiros envolvidos para
adquirir e extrair da relação vantagens suficientes para justificar a
continuidade de seu envolvimento. Assim, “a exclusividade sexual tem
um papel no relacionamento até o ponto em que os parceiros a
considerem desejável ou essencial.” (GIDDENS, 1993, p. 74).
Por fim, assim como não podem ser tratados com viés
monogâmico, o relacionamento puro, em geral, e o amor confluente, em
particular, não possuem ligação com a heterossexualidade. Na verdade,
a sexualidade do sujeito é um fator preponderante que precisa ser
celebrado como parte constitutiva do próprio relacionamento amoroso,
associando-se à identidade e à autonomia pessoal. Para Giddens (1993),
o relacionamento puro só se desenvolve em contextos de sexualidade
plástica, explicada anteriormente.

2. ENTRE O ROMANTISMO DEMOCRÁTICO E O INTIMISMO TERAPÊUTICO

Illouz (2011) e Rüdiger (2012) também argumentam que os


encadeamentos dos tempos modernos e a modificação de vários
fundamentos institucionais da sociedade capitalista, que acontecem
devido às novas exigências societárias no século XX, exerceram
impactos agudos na maneira de se analisar a intimidade, fazendo com
que os indivíduos repensassem as relações amorosas tradicionais.
Rhuann Fernandes • 237

Todavia, a ideia de individualidade feminina reivindicada pelos


movimentos feministas liberais, por meio da instrumentalização dos
pressupostos de uma cultura terapêutica, proporcionou, na verdade,
uma extrema individualização nas relações amorosas, além de
desvincular a sexualidade do reino da moralidade.
Em outras palavras, esses autores identificam a existência de um
entrelaçamento histórico entre as pautas do feminismo liberal —
considerado hegemônico — e a cultura terapêutica desenvolvida no
mundo empresarial e mercadológico por meio da literatura de
aconselhamento, atestando que isso condiciona um processo de
racionalização das relações íntimas no contexto ocidental e enrijece
uma espécie de capitalismo afetivo.
Com efeito, a partir da segunda metade do século XX, há intensa
disseminação de veículos através dos quais o eu se inspeciona e se
discute, como manuais terapêuticos, indicadores de caminhos para se
melhorar relacionamentos interpessoais no mundo do trabalho. Assim,
Illouz (2011) constata que, no contexto ocidental, as técnicas de
comunicação ensinadas nesses manuais de aconselhamento
proporcionam aos sujeitos uma conscientização de padrões de fala para
lidarem melhor também com mal-entendidos em seus relacionamentos
afetivo-sexuais. São verdadeiros “[...] exercícios que visam explicitar as
suposições e expectativas ocultas de pessoas casadas [...].” (ILLOUZ,
2011, p. 53), ensinando-lhes a arte e a ciência da escuta.
Logo, a comunicação exigida no âmbito profissional torna-se o
jargão usual dos relacionamentos amorosos contemporâneos, gerando
o fenômeno da intelectualização dos laços íntimos, fruto da linguagem
terapêutica desenvolvida e aplicada no universo econômico. Ou seja,
borram-se as fronteiras. A vida afetiva, antes destinada ao âmbito
238 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

privado do indivíduo, agora se funde à lógica empresarial e do mercado


de trabalho, e vice-versa. Em decorrência, consolida-se, ora no interior
das relações amorosas, ora no interior das relações de trabalho, um
modelo de comunicação psicológico baseado sobretudo no ideal de
gestão das emoções. Desse modo, “o modelo da comunicação terapêutica
intensifica um subjetivismo fazendo-nos ver nossos sentimentos como
dotados de validade própria” (ILLOUZ, 2011, p. 59).
Conforme Illouz (2011), a sentimentalização da esfera pública dá-
se por meio do discurso terapêutico, que envolve uma linguagem
acessível, permitindo, principalmente às camadas médias, a
intelectualização dos laços íntimos em virtude “[...] de um projeto moral
mais amplo: criar igualdade e trocas equitativas, mediante o
engajamento numa comunicação verbal implacável sobre as
necessidades, os sentimentos e as metas do indivíduo” (ILLOUZ, 2011, p.
52). Tal comunicação determina uma nova competência, pela qual o
manejo afetivo e linguístico do eu visa a instituir padrões de
reconhecimento social.
Isto é, a comunicação psicológica, a qual tem, em si, apropriação de
uma linguagem terapêutica, tornou-se, não só no meio doméstico, como
também na esfera profissional, um mecanismo de reconhecimento
produtivo: o indivíduo que concilia características como escuta e
empatia promove a si, é interpretado como competente e mais
completo, além de transmitir a ideia de pessoa centrada e habilidosa
emocionalmente nas duas esferas citadas, tornando-se valorizado por
isso.
Para Rüdiger (2012), os indivíduos ocidentais estariam, então,
destinados a racionalizar o amor a partir de lógicas empresariais,
regulando suas condutas afetivas consoante as leis do mercado,
Rhuann Fernandes • 239

instrumentalizando-se e flexibilizando-se o tempo inteiro, para um


autoaperfeiçoamento emocional, tornam-se sujeitos humanos
empreendedores de si, permanentemente moldáveis e reconfiguráveis
em seu íntimo.
De fato, Illouz (2011) demonstra que a moralidade oficial dos
relacionamentos afetivo-sexuais, permeada pela lógica do romantismo
democrático, começou a ganhar resistência ideológica, sobretudo por
parte dos movimentos de mulheres. Para ela, as relações amorosas
foram mediadas, até as primeiras décadas do século XX, por traços
característicos do amor romântico. Contudo, as exigências do romance,
inteiramente idealizadas, eram irrealizáveis na prática,
sobrecarregando principalmente para as mulheres em suas relações
afetivo-sexuais. Assim, o feminismo liberal mobilizou uma gramática
terapêutica — moldada pelas lógicas empresariais e de mercado — para
repensar as relações amorosas e os papéis de gênero no contexto
ocidental.
Nesse sentido, de acordo com Rüdiger (2012), os movimentos de
emancipação política da mulher confluíram tanto com a aparição de
novas formas de amar que subordinaram a mulher à ordem societária,
quanto para integrá-la como consumidora:

a emancipação econômica da mulher, embora ainda não tão ampla quanto


a que o homem já conseguira, abriu novas perspectivas de relacionamento
entre ambos, mas ao mesmo tempo acabou por torná-los dependentes dos
padrões competitivos e consumistas da economia de mercado avançada. O
romantismo foi liberado das cadeias que o inibiam e passou a ser
parcialmente legitimado pela sociedade, sobretudo, por sua capacidade de
estímulo à prática da indústria cultural. Depois da invenção da pílula, com
a possibilidade de desvincular a vida sexual das salvaguardas que o
casamento fornecia à mulher, o processo de emancipação social do
240 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

romantismo atingiu seu ápice. As relações entre os sexos na esfera íntima


passaram a se nivelar por força da inserção convergente dos sujeitos, tanto
no mundo do trabalho, quanto no da cultura de consumo. O efeito geral
disso é o crescente subjetivismo da conduta. (RÜDIGER, 2012, p. 164).

Nota-se uma influência recíproca entre o feminismo e a cultura


terapêutica, em que ambos combinam e sintetizam a intimidade,
estabelecendo uma relação com grandes credos culturais (ILLOUZ,
2011), responsáveis por moldar a identidade feminina no século XX. São
eles: igualdade, procedimentos neutros e imparcialidade; sexualidade,
comunicação afetiva, saúde afetiva, liberdade e emancipação política.
Tais credos proporcionariam às mulheres uma caça ao conhecimento de
si mesmas. Tanto que, como consequência disso, temos, por exemplo, o
desenvolvimento do campo da terapia sexual, uma vez que o passo mais
importante em direção à intimidade é, justamente, conscientizar-se dos
próprios pensamentos, desejos e sentimentos. “[...] O discurso
terapêutico, tal como o feminismo, incentivava constantemente as
mulheres a sintetizarem dois conjuntos de valores contraditórios, a
saber, cuidado e educação, por um lado, e autonomia e autoconfiança,
por outro.” (ILLOUZ, 2011, p. 43).
O feminismo liberal e a cultura terapêutica, alegam Illouz (2011) e
Rüdiger (2012), apossaram-se de várias ferramentas psicológicas, físicas
e afetivas de transformação do eu, condicionando uma recodificação da
psique que implicou na racionalização da conduta das mulheres na
esfera privada. Para os autores, essa conduta traz consigo as premissas
de desenvolvimento da liberdade de escolha entre os parceiros, a
retribuição da sexualidade e, por fim, a busca por sinceridade/verdade
nos relacionamentos afetivo-sexuais. Porém, isso só é possível na
manipulação de um certo número de técnicas que privilegiem a
Rhuann Fernandes • 241

comunicação, favorecendo a racionalização dos processos de decisão


individual. Segundo Rüdiger (2012), nesse contexto, havia uma crença
de que

[...] a solução para os crescentes problemas de relacionamento afetivo entre


homens e mulheres poderia ser lograda com a reorganização do casamento
em termos igualitários e a reinterpretação do amor como união sexual em
um ambiente de companheirismo, o que mais tarde seria definido como
intimismo. Os reformadores terapêuticos entreviram que o romantismo
propagandeado pela cultura de consumo e endossado por alguns publicistas
poderia se tornar fonte de novos problemas, sem solucionar os anteriores.
(RÜDIGER, 2012, p. 158-159).

Portanto, o feminismo e a cultura terapêutica deflagrada pela


literatura de aconselhamento do âmbito empresarial confluem entre si
e possibilitam a racionalização de valores e competências na conduta
dos relacionamentos íntimos, quebrando precisamente a dicotomia da
esfera público-privada no contexto ocidental, fundindo-as por meio de
ferramentas utilizadas para intelectualização dos laços afetivos. Nessa
lógica, as mulheres foram ensinadas pelo feminismo e pela terapia a
explanar suas preferências e valores, a edificar relações compatíveis
com tais valores e adequadas a eles, tudo visando afirmar um eu
autoconfiante e autônomo. Com isso, a satisfação afetivo-sexual
feminina foi subordinada

à conquista de relações imparciais e de igualdade, sugerindo que a


intimidade terapêutica mobilizava a linguagem dos direitos e equiparava a
relação sexual de boa qualidade à afirmação dos direitos de cada parceiro.
Em última instância, esse ideal de prazer sexual obscurecia as diferenças de
gênero. (ILLOUZ, 2011, p. 45).
242 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

Nessa lógica, Illouz (2011) pensa haver um “capitalismo afetivo”,


que desenvolve uma cultura de intensa valorização das emoções,
produzindo uma ontologia afetiva inerente a ele que, segundo a
estudiosa, é a percepção de que os sentimentos podem ser escolhidos
para análise para um esclarecimento sobre eles e posterior controle por
parte dos sujeitos. Com isso, desenvolve-se uma cultura afetiva
especializada, que desarticula a ideia convencional de divisão entre uma
esfera pública, desprovida de afetos, e uma esfera privada, saturada por
eles. Isso porque os afetos passam a se encontrar com os discursos
econômicos, moldando-se reciprocamente. Nesse momento, o eu
privado passa a ser publicamente confessado e posto em circulação
junto a narrativas e valores da esfera econômica, principalmente
àquelas vinculadas às práticas de consumo.
Daí, os relacionamentos tornam-se comensuráveis, pois são
tratados como objetos cognitivos que envolvem custo-benefício e
permuta-negociação. Para Rüdiger (2012), os relacionamentos afetivo-
sexuais passam a ser interpretados e definidos pelos indivíduos em
nome das ideias de negociação, troca e igualdade, algo que, conforme o
autor, contempla a agenda e as exigências dos movimentos feministas
do período.
Nesse sentido, Rüdiger (2012) observa a existência de duas
gramáticas no universo amoroso ocidental, incongruentes entre si: o
romantismo democrático e o intimismo terapêutico. Ambas orientam
as relações amorosas de modos distintos: de um lado, o romantismo, que
proporciona paixão, desejo, projeções no companheiro idealizado; de
outro, o intimismo, que pauta uma comunicação demasiada entre as
partes envolvidas na relação, nos diálogos intermináveis e na parceria:
Rhuann Fernandes • 243

as pessoas que sentem vontade de amar precisam se dar conta que isso
depende de vontade e esforço, algo que, aliás, não é estranho ao
romantismo. Porém, contrariamente a este, que enfatiza a paixão, a
química, a loucura etc., o intimismo defendido pelo pensamento terapêutico
prega que cuidemos, antes de tudo, do equilíbrio, do planejamento e da
reciprocidade nos relacionamentos. Para o romantismo, o principal é a
paixão. Para o intimismo, o companheirismo ou intimidade. (RÜDIGER,
2012, p. 162).

Rüdiger (2012) defende que o componente terapêutico — chamado


também de intimismo — que se torna marca das relações amorosas
contemporâneas, é fruto de uma excessiva individuação
correspondente ao racionalismo capitalista. Esse componente, à medida
que oferece aos sujeitos ferramentas para lidarem consigo próprios,
pressiona-os a procurarem, a todo instante, um autoaperfeiçoamento
para acompanhar as mudanças no próprio sistema capitalista, para
“viverem melhor”. Em outros termos, o intimismo terapêutico, segundo
o autor, procuraria oferecer mecanismos (reservas de racionalidade) de
proteção para subjetividade produzida no capitalismo. Portanto, os
indivíduos se apropriam da concepção terapêutica em seus
relacionamentos amorosos para se defenderem do subjetivismo
avassalador exigido pelo racionalismo capitalista do mundo
contemporâneo.
Illouz (2012) argumenta que o intimismo terapêutico, na realidade,
é mais uma das contradições institucionais da modernidade ocidental.
Quer dizer, ao justapor o ideal do amor romântico e a instituição do
casamento, as políticas modernas incorporam contradições sociais, as
quais, por sua vez, levam os sujeitos a uma intensa vida psicológica. A
organização institucional do casamento (baseada na monogamia, na
coabitação e na combinação de recursos econômicos para aumentar a
244 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

riqueza) exclui a possibilidade de manter o amor romântico como uma


paixão intensa e consumidora. Tal contradição força os agentes a
realizar uma quantidade significativa de trabalho de si para gerenciar e
reconciliar esses dois elementos concorrentes.
É justamente isso que ilustra, de acordo com Illouz (2012), o grande
indicador da individuação moderna: sujeitos que são permanentemente
induzidos a procurarem respostas biográficas para contradições
estruturais. No fim, a individuação pode ser compreendida pelo
encadeamento entre as transformações das instituições modernas e a
relação dos indivíduos consigo mesmos. Assim, pode-se dizer que o
amor contém, espelha e amplifica o aprisionamento do eu nas
instituições da modernidade, instituições certamente moldadas pelas
relações econômicas e de gênero.
De fato, os trabalhos de Daniel Cardoso (2010, 2017) evidenciam que
os aspectos econômicos e tecnológicos mais amplos, que ocasionam um
mundo agora “pós-tradicional”, são preponderantes para pensar as
relações íntimas, pois demonstram a importância crescente do
individual nas relações amorosas ocidentais. Nesse sentido, o autor
aponta para o século XXI, marcado, de acordo com ele, pela onipresença
do capitalismo financeiro e globalizado, pela privatização do mundo sob
a égide do neoliberalismo — entendido como uma etapa da humanidade
marcada pelas empresas e indústrias de tecnologias digitais do Vale do
Silício, em que o tempo curto é interpretado como algo a ser
transformado em força reprodutiva da forma-dinheiro, sendo qualquer
evento do mundo suscetível ao valor de mercado —, pelas tecnologias
da informação e comunicação (TICs) e pela complexificação gradativa
da economia financeira.
Rhuann Fernandes • 245

A intensa circulação de mercadorias e capitais, articuladas às


descobertas de novas tecnologias e à expansão dos mercados, assim
como as mudanças institucionais para superar as barreiras políticas ao
intercâmbio, promovem uma expansão do capitalismo em suas
diferentes formas, para além de sua fronteira europeia original. A
ubiquidade da globalização, das TICs e do próprio capitalismo,
consoante Cardoso (2010, 2017), produz duas características
elementares para transmutação e atualização do individualismo no
ocidente: a) aumento do abismo entre ricos e pobres legitimado pela
noção de liberdade pessoal, que expõe o privilégio econômico e social
dos primeiros como critério de distinção social; b) incomensurável
aumento de universos privatizados fomentados pelas tecnologias
digitais que posicionam o indivíduo como início, meio e fim dos
problemas e das soluções, apesar de não invalidar a existência de
aspirações coletivas ou instituições políticas:

[...] Desde o fomento da mobilidade geográfica por via da precarização [...]


dos vínculos laborais (que subverte a clássica visão da passagem ‘do campo
para a cidade’), até às possibilidades de conexão interpessoal à distância
facilitadas pelos novos media, e que dão origem a um modelo de
sociabilidade que não é nem o isolamento da alienação tecnológica, nem a
utopia da Aldeia Global, mas sim um ‘individualismo em rede’ [...]. Esse
individualismo em rede está dependente de uma panóplia de fluxos de
ligação, e ilustrável através da popularidade de aplicações focadas em
encontros íntimos (e. g. Tinder, Grindr) com uma componente de geolocação.
(CARDOSO, 2017, p. 16-17, grifos do autor).

Articulados, esses processos ocasionam uma mudança importante


no casamento, o qual passa a ser orientado como fonte de apoio
emocional. Isto é, as pessoas começam a buscar em seus parceiros a
246 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

satisfação de suas necessidades internas. “O centro desloca-se então para


‘a pessoa individual’ e a ‘felicidade pessoal’ é agora a marca de um
matrimônio bem-sucedido.” (CARDOSO, 2017, p. 16, grifos do autor). Desse
modo, as novas alianças começam a se basear em uma espécie de
reivindicação da vida própria. O casamento como meta de vida,
naturalizado na biografia feminina, vai cedendo espaço para a ideia de
projeto pessoal. Quando este se torna incompatível com o do parceiro e a
relação em geral, tende-se para o término ou para alteração da relação.
(CARDOSO, 2017). Em suma, para o autor, à medida que outras instituições
assumiram muitas das funções econômicas, políticas e educacionais
antes desempenhadas pelas famílias, as expectativas dos parceiros
conjugais mudaram de realização instrumental para realização
emocional. Daí, o casamento tornou-se opcional e mais rúptil.
Tal comportamento faz parte, indica Illouz (2012), de uma
perspectiva “faça você mesmo”, convertida em uma força para as
pessoas tornarem-se mais independentes em relação aos enamorados e,
assim, livrarem-se de modelos tradicionais de relação. A autora admite
que os indivíduos, em suas relações afetivo-sexuais, não se aprisionam
mais em esquemas que visam a impor-lhes alguma estabilidade. Quer
dizer, o relacionamento puro tornou a esfera privada mais volátil e a
consciência romântica infeliz. A relação pura tende a ser, atualmente, a
forma predominante de convívio íntimo, trazendo consigo uma inédita
fluidez e flexibilidade nos vínculos afetivo-sexuais, condenando-se a
ideia de qualquer dependência do parceiro. Gradativamente mais, o
compromisso incondicional, como aquele expresso nos votos
matrimoniais tradicionais (“na alegria e na tristeza”, “na riqueza ou na
pobreza”, “até que a morte nos separe”), é percebido como uma arapuca
a ser evitada.
Rhuann Fernandes • 247

Com efeito, os constrangimentos socioeconômicos e tecnológicos


foram fundamentais para estabelecer novas percepções de
relacionamentos afetivo-sexuais, em que cada vez mais os atores
objetivam o contentamento subjetivo e emocional. Nessa dinâmica, os
polos se invertem: o sujeito toma primazia sobre a relação, e não o
contrário. De acordo com Cardoso (2017), essas características operam
não só ao nível ideológico — no qual imperam os discursos sobre o que
são ou devem ser relações amorosas boas, atraentes e agradáveis
atualmente — como também no nível das interações e práticas sociais:

o crescimento do número de divórcios em vários países, a diminuição do


número de casamentos, as relações que nunca chegam a ter qualquer tipo
de registro formalizado e o crescente número de pessoas que preferem ter
relacionamentos ao mesmo tempo que vivem sozinhas, ou que não estão
interessadas em ter relacionamentos de tipo romântico, são vários dos
exemplos que podem ser convocados para reflectir sobre a emergência do
plano individual [...]. Isto não quer dizer, claro, que exista um processo
linear e sem consequências negativas para várias destas práticas [...] ou que
estes processos sejam fluídos e ininterruptos [...]. (CARDOSO, 2017, p. 16).

Porém, em vez de um posicionamento conservador frente às


transformações na intimidade, entendendo-as como parte de um
inalterável individualismo, sugiro pensá-las, em diálogo com Cardoso
(2017), mais em termos de um individualismo em rede, que possibilita
também o surgimento de novos arranjos afetivo-sexuais
questionadores da proeminência da monogamia e do amor romântico a
ela vinculado, bem como geradores de novos modelos de sociabilidade,
que não podem ser tratados em termos de isolamento, alienação ou
como um egoísmo originado da “fragilidade dos laços humanos”, como
se a comunidade humana estivesse se desintegrando. Ao contrário.
248 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

Acredito que estão entrando em constantes fluxos de ligação (CARDOSO,


2017).
Penso ser fundamental lembrar que, se a noção de pessoa ocidental
(indivíduo) é a base para a fusão entre a monogamia e o amor romântico
— princípios que, historicamente, organizaram as relações amorosas e
a família conjugal no ocidente —, como defendi recentemente
(FERNANDES, 2022), ela é também o suporte do feminismo e da cultura
terapêutica, os quais, aliados, proporcionaram críticas contemporâneas
a essa fusão e à própria noção de indivíduo, que não se manteve intacta
ao longo da história, sendo permanentemente interrogada por
inúmeras disputas societárias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As transformações na intimidade e o avanço da reflexividade no


contexto ocidental, ou melhor, da modernidade radicalizada (BECK,
2008), nos faz perceber a interrogação do sentimento amoroso. Acredito
que a emergência de novas gramáticas amorosas, como, por exemplo, o
“intimismo terapêutico”, podem ser entendidas como desdobramento e
iteração de um intenso processo de singularização dos atores sociais, tal
como aplicado às relações interpessoais íntimas, como um dado direto
do constrangimento social, econômico, político e tecnológico que vem
ocorrendo no mundo contemporâneo.
A presença do componente terapêutico nas relações amorosas é
consequência direta do processo de individuação como modo de
subjetivação em contextos neoliberais, como explicado ao longo deste
texto. Esse processo de singularização traz para o interior das relações
amorosas, monogâmicas ou não, a ideia de reconstrução do eu por meio
do domínio de uma linguagem terapêutica, que exige uma procura
Rhuann Fernandes • 249

intelectual, em termos de reflexividade, para mudanças


comportamentais e para rever atitudes no interior dos laços afetivos.
Isso ilustra a implementação de um “dispositivo de sensibilidade”
no Ocidente moderno que prioriza sensações e experiências pessoais na
formação e constituição dos sujeitos, com enfoque na corporalidade e
na capacidade de melhorar a própria vida. Trata-se daquilo que Luiz
Fernando Duarte (1999) denominou de “tecnologias de si”, as quais
permitem aos indivíduos influenciarem seus próprios pensamentos e
comportamentos para obterem uma mudança positiva. Fato é que os
discursos emocionais que suportam essas tecnologias estão se
tornando, cada vez mais, proeminentes nos modos de produção da
pessoa contemporânea.
Assim, os sujeitos estariam mais inclinados a procurar uma
autenticidade de si em suas relações amorosas pelo domínio de uma
gramática psicologizante. Como apontei, esse componente terapêutico
é traço fundamental, pois toma espaço para orientar a conduta afetiva
e promove a ideia de que as pessoas precisam estar em busca, antes de
tudo, de si próprias, identificando seus anseios e particularidades para,
posteriormente, exigir e determinar um relacionamento íntimo e
benévolo em suas vidas.
Diante disso, pode-se destacar três elementos basilares das
experiências amorosas nas sociedades ocidentais modernas: a
autenticidade de si, a escolha individual e a busca da satisfação pessoal,
como vimos ao longo do texto. Isso porque, as relações construídas pelos
indivíduos são “verdadeiras” quando permitem a expressão autêntica
de sua interioridade. Para que essas relações sejam prazerosas e
satisfatórias, é preciso um monitoramento e controle sistemático de
cada parte envolvida. A experiência de relações amorosas nestas
250 • Críticas Filosóficas do Casamento: Volume 2

condições exemplifica a combinação dos valores de confiança,


expressão de si, controle emocional e foco no prazer e satisfação.
Nessa direção, o vocabulário terapêutico, com o argumento de
relações sadias, é utilizado para libertação das relações íntimas da
assimetria, desenvolvendo certos jargões, como, por exemplo, a lógica
de trocas equitativas que devem atravessar o relacionamento amoroso,
exigindo dos sujeitos intensa reflexividade sobre seus laços afetivo-
sexuais, comportamentos e sentimentos.

REFERÊNCIAS

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ordem social moderna. São Paulo: Ed. UNESP, 1997.

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CARDOSO, D. Amando vári@s: individualização, redes, ética e poliamor. 2010. Tese


(Mestrado em Ciências da Comunicação) – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2010.

CARDOSO, D. Amores plurais situados: para uma metanarrativa sócio-histórica do


poliamor. Tempo da Ciência, Toledo, PR, v. 24. n. 48, jul./dez. 2017, p. 12-28.

DUARTE, L. F. D. O império dos sentidos: sensibilidade, sensualidade e sexualidade

na cultura ocidental moderna. In: HEILBORN, M. L. A. (org.). Sexualidade: o olhar das


ciências sociais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 21-30.

FERNANDES, R. Negritude e não monogamia: as micropolíticas do amor. Rio de Janeiro:


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GIDDENS, A. A transformação da intimidade: sexualidade, amor & erotismo nas sociedades


modernas. São Paulo: UNESP, 1993.

GOLDMAN, E. O indivíduo, a sociedade e o estado e outros ensaios. São Paulo: Hedra, 2015.
Rhuann Fernandes • 251

ILLOUZ, E. O amor nos tempos do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

ILLOUZ, E. Why love hurts: A sociological explanation. Polity Press, 2012.

LÁZARO, A. Amor: do mito ao mercado. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

LESSA, S. Abaixo a família monogâmica. São Paulo: Instituto Lukács, 2012.

LOBATO, J. P. Antropologia do amor: do Oriente ao Ocidente. Belo Horizonte: Autêntica,


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MORIN, E. Cultura de Massas no século XX. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1984.

RÜDIGER, F. O amor no século XX: romantismo democrático versus intimismo


terapêutico. Tempo social, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 149-168, 2012.

VAINFAS, R. Casamento, amor e desejo no ocidente cristão. São Paulo: Ática, 1992.
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