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Biomedicina Forense

Autor: Prof. Rafael Eduardo Pereira


Colaboradores: Prof. Flavio Buratti Gonçalves
Profa. Laura Cristina da Cruz Dominciano
Professor conteudista: Rafael Eduardo Pereira

Graduado em Ciências Biológicas – Modalidade Médica (Biomedicina) – 2003 e Especialista em Análises


Ambientais – 2001, ambos pelo Centro Universitário Barão de Mauá. Mestre em Toxicologia pela Faculdade de
Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto – USP (2008). Professor responsável pelos módulos de Patologia, Biologia,
Química e Toxicologia Forenses do curso de pós-graduação em Ciências Forenses – Investigação Criminal e do
módulo de Ciências Forenses do curso de pós-graduação em Criminal Profiling, pertencentes ao Instituto Paulista
de Estudos Bioéticos e Jurídicos (IPEBJ) de Ribeirão Preto – SP (2008 a 2015). Docente da Universidade Paulista (UNIP),
campus São José do Rio Pardo (SP), em diversas disciplinas da saúde vinculadas aos cursos de Biomedicina e
Farmácia desde 2015. Coordenador auxiliar do curso de Biomedicina da Universidade Paulista (UNIP), campus Ribeirão
Preto, desde 2016. Funcionário da Superintendência da Polícia Técnico-Científica/Instituto Médico Legal/Núcleo de Perícias
Médico-Legais de Ribeirão Preto (SP) desde 2003. Possui conhecimento nas áreas microbiológica e físico-química
com ênfase em análises ambientais; também nas áreas de coleta, hematologia, microbiologia, bioquímica, sorologia,
parasitologia e uroanálise/fluidos corporais com ênfase em análises clínicas; e nas áreas forenses de citologia/histologia
(anatomia-patológica), toxicologia, biologia, química, antropologia e sexologia, além de medicina legal.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

P436b Pereira, Rafael Eduardo.

Biomedicina Forense / Rafael Eduardo Pereira. – São Paulo:


Editora Sol, 2020.

248 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230.

1. Biologia forense. 2. Toxicologia. 3. Medicina legal. I. Título.

CDU 61

U509.10 – 20

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
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Unip Interativa – EaD

Profa. Elisabete Brihy


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Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Deise Alcantara Carreiro – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Jaci Albuquerque de Paula
Talita Lo Ré
Vitor Andrade
Sumário
Biomedicina Forense

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................7

Unidade I
1 CIÊNCIAS FORENSES, CRIMINALÍSTICA E PERÍCIA CRIMINAL...........................................................9
1.1 Isolamento e preservação de locais de crime............................................................................ 12
1.2 Vestígio, evidência e indício.............................................................................................................. 15
1.3 Cadeia de custódia dos vestígios de crime (coleta, armazenamento,
transporte e recebimento)........................................................................................................................ 15
2 TOXICOLOGIA..................................................................................................................................................... 19
2.1 Toxicologia forense............................................................................................................................... 22
2.1.1 Drogas depressoras do SNC................................................................................................................. 24
2.1.2 Drogas estimulantes do SNC............................................................................................................... 29
2.1.3 Drogas modificadoras............................................................................................................................ 33
2.1.4 Drogas sintéticas...................................................................................................................................... 38
2.1.5 Praguicidas................................................................................................................................................. 40
2.1.6 Gases tóxicos............................................................................................................................................. 45
2.1.7 Toxicantes metálicos.............................................................................................................................. 49
2.1.8 Fundamentos analíticos........................................................................................................................ 52
3 BIOLOGIA FORENSE......................................................................................................................................... 59
3.1 Hematologia forense........................................................................................................................... 60
3.1.1 Hematologia forense reconstrutora................................................................................................. 61
3.1.2 Hematologia forense identificadora................................................................................................ 65
3.2 Citologia forense................................................................................................................................... 71
3.2.1 Teste microscópico para pesquisa de espermatozoides........................................................... 72
3.2.2 Testes químicos para identificação de sêmen.............................................................................. 73
3.3 Tricologia e piloscopia forense......................................................................................................... 76
3.3.1 Análise microscópica.............................................................................................................................. 77
3.3.2 Tipagem de DNA nuclear ou mitocondrial de pelos.................................................................. 85
3.4 Entomologia forense............................................................................................................................ 86
3.5 Botânica forense.................................................................................................................................... 89
4 GENÉTICA FORENSE........................................................................................................................................ 91
4.1 Aplicações da genética forense....................................................................................................... 91
4.2 Exame de DNA........................................................................................................................................ 96
Unidade II
5 OUTRAS ÁREAS FORENSES.........................................................................................................................106
5.1 Balística forense...................................................................................................................................106
5.1.1 Classificação das armas de fogo......................................................................................................106
5.2 Papiloscopia, datiloscopia e revelação e impressões digitais............................................118
5.2.1 Identificação criminal e civil.............................................................................................................119
5.2.2 Revelação de impressões digitais em diferentes superfícies.............................................. 124
5.3 Medicina veterinária forense..........................................................................................................127
5.4 Perícia audiovisual forense..............................................................................................................131
5.4.1 Divisão das análises audiovisuais....................................................................................................131
5.5 Psicologia e psiquiatria forense.....................................................................................................135
5.6 Engenharia forense.............................................................................................................................136
5.7 Informática forense............................................................................................................................139
5.7.1 Exames periciais em informática forense....................................................................................141
5.8 Documentoscopia...............................................................................................................................144
5.8.1 Divisão dos exames documentoscópicos.................................................................................... 147
5.9 Contabilidade........................................................................................................................................154
5.9.1 Classificação das perícias contábeis.............................................................................................. 154
5.10 Física forense......................................................................................................................................157
5.11 Perícia ambiental...............................................................................................................................161
5.11.1 Classificação dos crimes ambientais........................................................................................... 162
6 QUÍMICA FORENSE........................................................................................................................................166
6.1 Análise de drogas de abuso.............................................................................................................166
6.2 Análise de adulteração de chassi de veículos e da numeração de
identificação de arma de fogo..............................................................................................................170
6.3 Residuográfico (análise de resíduos de disparos de arma de fogo)...............................171
6.4 Análise de combustível adulterado..............................................................................................173
6.5 Análise de medicamentos adulterados.......................................................................................173
6.6 Análise de bebidas e alimentos adulterados............................................................................175
7 ODONTOLOGIA LEGAL..................................................................................................................................176
7.1 Identificação humana.......................................................................................................................176
7.2 Lesão corporal.......................................................................................................................................180
7.3 Exames de marcas de mordida......................................................................................................180
7.4 Exames palatoscópico e queiloscópico......................................................................................182
8 MEDICINA LEGAL............................................................................................................................................183
8.1 Classificação das áreas de atuação da medicina legal.........................................................183
8.1.1 Sexologia forense.................................................................................................................................. 183
8.1.2 Psiquiatria forense................................................................................................................................ 184
8.1.3 Traumatologia forense........................................................................................................................ 184
8.1.4 Tanatologia forense............................................................................................................................. 189
8.1.5 Antropologia forense.......................................................................................................................... 194
APRESENTAÇÃO

As atividades pertinentes à área das ciências forenses vêm assumindo um importante papel no
âmbito científico e jurídico devido ao crescimento da criminalidade e do número de casos de violência
que normalmente evoluem para a esfera judicial. Para agir segundo os preceitos jurídicos, autoridades
policiais e judiciais exigem cada vez mais rigor e segurança na prova científica produzida, ou seja, na
evidência dos achados e nas provas de certeza relativa, pois essas fornecem à justiça a comprovação da
materialidade do crime, podendo promover a imputação da pena ao culpado.

Devido à complexidade das provas, desde sua obtenção em um local de crime até a análise propriamente
dita, se faz necessária uma abordagem multidisciplinar, na qual diversos saberes se entrecruzam e
complementam uns aos outros.

Por tais motivos, o principal intuito da disciplina em questão é apresentar ao estudante as diferentes
áreas envolvidas nesse campo, em seus diversos âmbitos, tornando-o capaz de compreender o importante
papel exercido pelo profissional que atua na perícia criminal, desde a coleta de amostras e informações
relacionadas ao crime e sua análise até a produção dos laudos técnicos, auxiliando de forma decisiva as
polícias técnico-científicas e o judiciário na elucidação de questões ligadas à prova pericial.

INTRODUÇÃO

Através de conhecimentos técnicos e científicos nas diferentes áreas das ciências naturais, nosso
campo busca analisar vestígios que contribuam para elucidar questionamentos de interesse da Justiça.
Portanto, não se baseiam em uma única ciência, tampouco na utilização de apenas uma estrutura ou
método específico, uma vez que diversos saberes se relacionam e cada área de conhecimento apresenta
seus próprios métodos, tendo como única finalidade atender os propósitos judiciais.

Os conteúdos selecionados e apresentados neste livro-texto buscam fornecer de forma objetiva,


clara e concisa os conceitos mais relevantes para que o estudante adquira os conhecimentos necessários
para correlacioná-los com a criminalística, tornando-se apto a compreender as diversas facetas de um
crime, de forma a atender os preceitos jurídicos na elucidação de diversos casos.

Assim sendo, serão apresentadas ao aluno a importância e a aplicação das ciências forenses e seus
diversos saberes no isolamento físico do local do crime, evitando que ocorra perda ou contaminação
de vestígios que levem à apuração dos fatos ou na coleta de objetos, marcas ou sinais presentes nesses
locais (que, a princípio, possam ter relação com o delito) e na análise e interpretação dos dados obtidos,
comprovando sua relação ou não com o fato ocorrido. A seguir, algumas áreas que estão estritamente
relacionadas às ciências forenses são abordadas, como: a toxicologia forense, responsável por determinar
drogas de abuso, praguicidas, gases, metais e outras substâncias em diferentes matrizes biológicas que
possam ter alguma relação com o fato criminoso; a biologia forense, área responsável por analisar toda
e qualquer amostra biológica com o objetivo de localizar, identificar e caracterizar sua origem, além
de verificar a dinâmica, os meios e os modos pelos quais o evento ocorreu, e a genética forense, área

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específica das ciências forenses que utiliza a biologia molecular para elucidação de crimes através da
identificação genética dos indivíduos.

Por fim, serão descritas outras importantes áreas forenses, como: balística, papiloscopia, medicina
veterinária, perícia audiovisual, psicologia e psiquiatria, engenharia, informática, documentoscopia,
contabilidade, física, perícia ambiental, química, odontologia e medicina legal.

A balística é responsável pela identificação das armas de fogo, bem como seu funcionamento e
efeitos provocados na vítima e no próprio atirador. A papiloscopia estuda as impressões digitais, a
perícia ambiental tipifica os crimes contra o meio ambiente e a química forense qualifica e quantifica
os vestígios para elucidação dos casos criminais. Em tais áreas, o profissional poderá atuar de forma
direta, além de exercer atividades que contribuem indiretamente com a documentoscopia, que analisa
a autenticidade e a integridade de documentos, com a medicina veterinária, odontologia e medicina
legal, pela realização de exames complementares em amostras biológicas com o intuito de auxiliar na
conclusão e elucidação de um acidente ou crime.

Bons estudos!

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BIOMEDICINA FORENSE

Unidade I
1 CIÊNCIAS FORENSES, CRIMINALÍSTICA E PERÍCIA CRIMINAL

Na época do Império Romano já havia relatos da atuação da medicina no esclarecimento das


circunstâncias de morte de algumas pessoas importantes, sendo essa a primeira e, durante muito tempo,
a única ciência a contribuir com a Justiça. Ao longo do tempo foi preciso que a medicina desenvolvesse
conhecimentos técnicos específicos para atender as demandas do judiciário, surgindo, assim, a chamada
“medicina legal”, que tinha como intuito a interpretação de vestígios em local de crime e a identificação
humana através de análises químicas, físicas e biológicas.

Devido ao aumento da criminalidade e do número de casos de violência que normalmente evoluem


para a esfera judicial, as autoridades policiais e judiciais passaram a ser cada vez mais exigentes e
rigorosas quanto à segurança da prova científica produzida, ou seja, na preservação e veracidade
dos achados e das provas de certeza relativa, para que, assim, a materialidade do crime pudesse ser
comprovada e, consequentemente, a imputação da pena aplicada ao culpado.

A partir desse momento, a “medicina legal” por si só não mais comportava a complexidade
das provas e de sua obtenção em um local de crime, fazendo-se necessária uma abordagem
multidisciplinar, na qual diversos saberes se entrecruzariam e se complementariam. Surgiu assim
o conceito de criminalística, termo utilizado pela primeira vez na Alemanha pelo juiz Hans Gross e
que, de acordo com o professor Eraldo Rabello, quem se dedicou ao exercício da perícia criminal e ao
ensino da criminalística, constitui-se em:

[...] uma disciplina técnico-científica por natureza e jurídico-penal por


destinação, a qual concorre para a elucidação e a prova das infrações penais
e da identidade dos autores respectivos, por meio da pesquisa, do adequado
exame e da interpretação correta dos vestígios materiais dessas infrações
(RABELLO, p. 12, 1996).

Assim, os conhecimentos técnico-científicos dos diferentes ramos das ciências naturais (matemática,
química, física e biológica), quando empregados na análise de vestígios com o objetivo de responder
as demandas e questionamentos jurídico-policiais, denominam-se ciências forenses, as quais têm
demandando, em escala espantosamente crescente, a invenção e reinvenção de novas técnicas e
metodologias para atender a criminalística.

A pesquisa e os exames de caráter técnico-específico, empregados na elucidação de questões ligadas


à prova pericial, são denominados perícia. Para a realização da perícia, faz-se necessária a participação
do perito, profissional com formação acadêmica superior, que detenha conhecimentos teórico e prático
a respeito do assunto e experiência para obtenção do melhor resultado, considerando os achados
9
Unidade I

materiais e as tecnologias disponíveis para tal. Ainda, o perito deve conhecer os diferentes campos do
saber que lhe possibilitem identificar e determinar vários exames, mesmo quando distintos de sua área
de especialização, mas que, com o auxílio de outros profissionais especialistas e habilitados, resultem
na geração do conhecimento interdisciplinar, fundamental para a investigação científica. Além disso, é
claro, espera-se de um perito o conhecimento da legislação no que tange às regras impostas.

A perícia pode ser categorizada como sendo cível ou criminal. A cível trata de conflitos judiciais na
área patrimonial e/ou pecuniária (financeira), em que um profissional de nível superior e inscrito em
seu conselho de classe é escolhido pelo juiz, de acordo com a formação específica, para a execução
da análise dos laudos periciais e de qualquer outra peça inserida nos autos, com o intuito de sanar as
dúvidas do magistrado titular do processo. Já a perícia criminal trata das infrações penais, em que o
Estado assume a defesa do cidadão perante a sociedade, e, para tal, o profissional, além de ter nível
superior, precisa ser perito oficial concursado.

O perito oficial concursado pode atuar como perito médico-legista ou perito criminal. O perito
médico-legista deve, obrigatoriamente, ser graduado em Medicina e é responsável por realizar exames
no ser humano, tais como lesões corporais, necropsia, sexológico e antropológico, entre outros. Já o perfil
do perito criminal compreende profissionais de várias áreas de formação acadêmica e conhecimento, os
quais são responsáveis por diversos tipos de perícias, como balística forense, exame em locais de crimes,
documentoscopia, fonética forense, psicologia e psiquiatria forense, contabilidade forense, genética
forense, engenharia forense, informática forense, datiloscopia, biologia forense, química forense,
medicina veterinária forense, perícia ambiental e física forense, entre outros.

Ainda, em locais onde não existem peritos oficiais concursados para realizar uma perícia criminal,
a autoridade competente nomeia um profissional com formação superior e especialista para aquela
determinada área, conhecido como perito ad hoc.

Tanto os peritos oficiais quanto os peritos ad hoc devem ser imparciais em suas perícias e são impedidos
de exercer suas funções pelos juízes quando em suspeição, de acordo com os artigos 254 e 255 do
Código de Processo Penal e dos artigos 138, inciso III e 145 do Código de Processo Civil.

O profissional que atua como perito oficial, ad hoc ou particular deve estar ciente da importância de
seu trabalho pericial, uma vez que tal trabalho poderá modificar a vida ou o patrimônio de pessoas, muitas
vezes de forma irreversível. Portanto, uma perícia de baixa qualidade, devido aos limites impostos pela
própria ciência ou a não disponibilização de conhecimentos e tecnologias para a realização de perícias
específicas; uma perícia falsa, devido a afirmação falsa ou uma negativa ou omissão da verdade; ou,
ainda, uma falha ou equívoco nos resultados de uma perícia podem acarretar gravíssimas consequências
para o indivíduo e a sociedade.

Atualmente, existe a figura do assistente técnico, profissional também com formação superior e
especializado em uma das áreas do conhecimento científico, que é contratado pelas partes para realizar
trabalhos periciais que venham a esclarecer dúvidas e que concedam elementos técnicos à argumentação
do advogado na tentativa de alcançar o convencimento sobre a tese defendida (esfera cível) ou revisar
uma perícia feita e concluída pelo perito oficial e, caso necessário, contestá-la (esfera criminal).
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BIOMEDICINA FORENSE

O assistente técnico da área cível pode ser contratado para atuar em um processo, já formado
ou em andamento, quando alguém pretende ajuizar uma ação e considera necessário acrescentar
prova pericial na petição inicial (produção antecipada de provas) através de parecer. Já o assistente
técnico da área criminal atua apenas na fase processual, analisando laudos periciais oficiais conclusos
e juntados no processo.

Ambos os assistentes técnicos não devem desviar a busca da verdade na realização ou revisão
de perícias em favor da parte contratante, pois poderão responder criminalmente pela afirmação ou
omissão falsa com dolo.

Observação

Dolo é o termo utilizado para se referir ao ato criminoso da pessoa que


age de má-fé (fraude).

O laudo pericial é um documento que deve pautar a constatação do fato e expor todo o roteiro das
análises realizadas e suas interpretações, levando a resultados técnico-científicos que possam salvaguardar
a conclusão do trabalho pericial na elucidação fidedigna de um caso em estudo. O laudo pericial não deve
se restringir apenas ao preenchimento dos quesitos estipulados, mas, sim, caso necessário, descrever outros
fatos que possam surgir no transcorrer de um exame e que tenham relação direta com o caso.

Sempre que possível, na construção de um laudo pericial devem constar ilustrações, fotografias,
croquis e esquemas que facilitem e permitam a clareza e a compreensão do que o perito pretende
transmitir no desfecho final do trabalho de perícia em relação aos fatos.

O perito, muitas vezes, não consegue reunir elementos necessários para a conclusão do laudo pericial
devido à exiguidade ou até mesmo à destruição de vestígios em razão da preservação inadequada
do local de crime. Nesse caso, a conclusão pode ser caracterizada como excludente, ou seja, não há
possibilidade de fazer qualquer afirmação conclusiva devido a existência de mais de uma possibilidade
técnico-científica para aquele evento. Entretanto, tais laudos podem fornecer informações que permitam
excluir hipóteses relacionadas ao fato, facilitando a continuidade das análises (objetivas e subjetivas)
para o esclarecimento investigativo do caso. A análise da morte de um indivíduo, por exemplo, pode
ocorrer de forma acidental, natural, por homicídio ou suicídio. Se o perito conseguir eliminar totalmente
dois desses tipos de mortes após investigação, haverá exclusão de metade das possibilidades.

Há casos em que os vestígios encontrados não são capazes de eliminar qualquer possibilidade
levantada durante a investigação, contribuindo apenas para indicação de maior probabilidade de ocorrência
de uma delas ou, ainda, mais raramente, em alguns casos o perito relata a impossibilidade de concluir
o laudo por falta de elementos a serem examinados.

Já o parecer técnico se diferencia de um laudo pericial por ser menos abrangente e por ter como
objetivo analisar, de forma técnico-científica e dentro dos rigores da ética, elementos pontuais
de um laudo que venham corroborar, respaldar e enfatizar materialmente a convicção de uma tese
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Unidade I

(argumentação do cliente ou esclarecimento ao magistrado). Normalmente, o parecer técnico exerce


uma função contestatória ou explicativa.

Lembrete

Nas Ciências Forenses diversos saberes se entrecruzam na elucidação de


questões ligadas à prova pericial.

1.1 Isolamento e preservação de locais de crime

Segundo a criminalística, toda área física ou virtual que configure uma infração penal e que
possua vestígios de ação criminosa é denominada local de crime. Normalmente, no local de crime há
materialização do princípio de Locard, o qual preconiza que sempre existe troca de vestígios entre os
agentes delituosos e o ambiente, ou seja, o criminoso deixa algo seu no local ou leva algo do local consigo.

Portanto, na grande maioria das vezes as infrações penais deixam vestígios que devem ser analisados
por um perito oficial, de acordo com os preceitos do artigo 158 do Código de Processo Penal, que
diz que, quando houver vestígios de uma infração, o exame de corpo de delito se fará insidpensável,
não sendo suprimido mesmo pela confissão do acusado. A ausência de exame de corpo de delito dos
vestígios pode resultar em anulação de uma ação penal.

Quando se toma conhecimento de um possível crime, a autoridade policial deve isolar e preservar a
área em questão para que os peritos oficiais possam trabalhar com segurança e idoneidade em busca de
vestígios que reconstruam a dinâmica e a autoria do crime.

O isolamento ou delimitação física do local é uma tarefa extremamente complexa pelo fato de não
se saber ao certo o tamanho da cena do crime. Portanto, deve-se isolar a maior área possível dentro do
contexto e da situação existente para que não se corra o risco de perda ou contaminação dos vestígios
que levem a apuração dos fatos.

Muitas vezes intempéries climáticas, como chuvas, podem danificar alguns vestígios, como uma
pegada na areia. Nesses casos, compete à autoridade policial o bom senso de adotar medidas cabíveis
para preservar os vestígios até a chegada do perito (lembrando sempre que se faz necessária a mínima
ou nenhuma intervenção no local). O perito não pode, em hipótese alguma, negar a realização da perícia,
mesmo nas situações em que verificar que o local do crime não foi devidamente preservado. Nesses casos,
ele deverá relatar no laudo as alterações observadas e suas consequências para a elucidação do caso.

Os locais de crimes são classificados de acordo com:

• região de ocorrência, que pode ser:

— imediato: área que apresenta a maior concentração de vestígios do fato;

— mediato: locais adjacentes ao lugar em que ocorreu o fato, ou seja, a área intermediária entre
o ambiente do fato e o exterior que o limita.

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BIOMEDICINA FORENSE

• quanto à preservação:

— idôneo: quando os vestígios são mantidos inalterados desde o fato propriamente dito até seu
registro e coleta;

— inidôneo: quando os vestígios são contaminados ou alterados, com a alteração podendo se dar
por adição, subtração ou substituição.

• a caracterização da área, como:

— interno: locais cobertos e/ou confinados por paredes que, consequentemente, protegem os
vestígios contra a ação de agentes externos como chuva, vento, sol, caso de uma residência;

— externo: locais sujeitos à intercorrência do ambiente atmosférico, podendo ocorrer alterações


ou até mesmo destruição dos vestígios, como em vias públicas;

— virtual: são os locais de crime de internet, ou seja, servidores de dados que independem do
espaço físico em que se encontram.

• quanto à natureza do fato: baseia-se no tipo de ocorrência geradora, podendo ser local de morte
violenta, de furto, de acidente etc.

O laudo pericial do local de crime é amplo e multiforme, devendo conter uma descrição narrativa
sobre tudo que o perito encontrar no local sem especificação; um levantamento fotográfico, que
corresponde a uma importante forma de registrar a cena do crime desde a chegada dos peritos até a
liberação do local; e o croqui, que consiste no desenho manual ou por scanner 3-D da localização dos
vestígios na cena do crime, contextualizando-o para futuras análises. Cada um desses instrumentos
pode ser visualizado por meio das imagens a seguir.

Residência A

Corpo da vítima

Figura 1 – Visão geral do local

13
Unidade I

Figura 2 – Início do rastro de sangue no local

Residência A
Garagem

Calçada
Portão WE 68
3m

5m

Rastro de
2,4

sangue
m

Rastro de
5,1 m

sangue
22,8
5m

Calçada

Residência B

Figura 3 – Croqui do local de crime examinado

Quando se verifica a existência de conflito de versões entre testemunhas, vítimas e suspeitos sobre
a dinâmica do fato, o perito criminal pode recorrer à reprodução simulada do crime para apurar a
existência de falsas confissões.

14
BIOMEDICINA FORENSE

Saiba mais

Leia o artigo indicado a seguir para conhecer mais sobre perícias e


exame de corpo delito.

SIQUEIRA, D. C. S. Provas periciais: exame de corpo de delito e perícias


em geral. Jus, jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75661/
provas-periciais-exame-de-corpo-de-delito-e-pericias-em-geral.
Acesso em: 26 ago. 2020.

1.2 Vestígio, evidência e indício

Em uma cena de crime, os peritos criminais devem procurar por objetos, marcas ou sinais que a
princípio tenham relação com o delito. Todo material bruto constatado e/ou recolhido no local do
crime passa a ser considerado um vestígio, que depois de estudado e interpretado pelos peritos, de
forma isolada ou associada a outros, e comprovada sua relação com o fato, se transforma em evidência.
Na fase processual, ambas as denominações (vestígio e evidência) recebem o nome de indícios, podendo
ser representadas por elementos materiais, bem como subjetivos de um crime.

Para que o vestígio exista, é necessária a interação entre o agente que o produz ou contribui para tal
e o local, de forma a deixar um achado material. Portanto, vestígio nada mais é que o produto da ação
materializada do agente causador do delito. Alguns vestígios são visíveis macroscopicamente e outros
dependem de equipamentos específicos ou de outros métodos que os revelem para o perito.

O perito criminal não consegue, no local dos fatos, realizar as análises individualmente de todos os
vestígios encontrados para saber sua importância e relação com o crime. Tais análises são conduzidas no
instituto, utilizando-se exames complementares que possibilitem estabelecer a existência desse vínculo,
para que, então, os peritos possam utilizá-lo como subsídio de suas conclusões.

Lembrete

Vestígio corresponde a todo material bruto constatado e/ou recolhido


no local do crime, já a evidência está relacionada à comprovação da relação
entre o vestígio e o fato, após estudos e interpretações feitas pelos peritos.

1.3 Cadeia de custódia dos vestígios de crime (coleta, armazenamento,


transporte e recebimento)

Para ser considerada consistente perante a Justiça, a prova pericial deve seguir uma sequência
cronológica documentada desde sua identificação no local do crime, incluindo coleta, análise nos
institutos e devolução à autoridade policial (para compor o inquérito) até seu destino final (integração

15
Unidade I

ao processo judicial). Essa sequência cronológica é denominada cadeia de custódia e tem como
intuito assegurar e garantir a identidade e a integridade do vestígio, seja ele um material, equipamento,
máquina, documento ou substância, entre outros, uma vez que vários profissionais irão manuseá-lo ao
longo do espaçotemporal entre o crime e o julgamento.

Muitas vezes, a prova pericial é anexada ao corpo do processo ou, ainda, armazenada nos institutos
e cartórios para garantir sua segurança e idoneidade. Dessa forma, a adoção de todos esses cuidados
associada à modernidade das tecnologias criminalísticas evita que o vestígio ou prova pericial apresente
pontos de questionamentos (técnicos e/ou jurídicos) e se torne ineficiente na aplicação da justiça.

Lembrete

A cadeia de custódia é imprescindível para garantir a identidade, a


integridade e a idoneidade da evidência perante a Justiça.

Exemplo de aplicação

A perícia criminal inicia-se com a análise do local de crime e a recolha dos possíveis vestígios pelo
perito externo, que pode ser um biomédico. Esse perito avalia e descreve toda a dinâmica do crime
através de laudo, fotos e croquis. Ainda, o biomédico pode atuar como perito interno, realizando as
análises dos vestígios encontrados no local.

Através de aplicações práticas, vamos entender o papel do profissional biomédico na perícia criminal?
Para tanto, alguns casos de grande repercussão no país podem ser lembrados.

No caso Isabella Nardoni (2008), vestígios foram encontrados no carro do pai, Alexandre Nardoni,
manchas de sangue no banco traseiro ao lado de uma cadeirinha de criança, no encosto de cabeça
do banco do motorista e no chão da parte de trás do veículo. Já no apartamento, foram encontradas
diversas manchas de sangue no chão (da entrada, do corredor, ao lado da cama existente no quarto
do qual a vítima, Isabella, foi jogada, além do parapeito do mesmo cômodo) e na maçaneta da porta de
entrada, bem como dos rastros de sangue deixados pela mão da vítima na fachada do edifício. No lençol da
cama do referido quarto foram observadas manchas de sangue e o decalque de uma palma de criança
suja de sangue, além de marcas do solado da sandália que Alexandre utilizava no dia do crime, uma
sequência de passos.

No apartamento também foi encontrada, em um balde, uma fralda com sangue já em processo de
lavagem, possivelmente utilizada para estancar o sangue do ferimento da cabeça da criança do carro
até o apartamento. Ainda, os peritos externos observaram que a tela de proteção da janela do quarto,
de onde a vítima foi jogada, estava cortada por diferentes instrumentos.

Nas roupas de Alexandre (pai), encontradas no banheiro de um apartamento inabitado do sexto


andar, no mesmo andar em que morava, como proprietária, sua irmã, foram evidenciadas manchas de
sangue na parte anterior da calça, em ambas as pernas, e na camiseta, marcas da tela de proteção.
16
BIOMEDICINA FORENSE

Após análise dos vestígios e da cena do local do crime, mesmo essa tendo sido manipulada (alterada
com a limpeza de algumas manchas de sangue), foi possível descrever a dinâmica dos fatos ocorridos:
toda a família Nardoni chegou de carro no edifício onde morava, o veículo foi estacionado na garagem
e desligado em um determinado momento, registrado pelo GPS. Ainda dentro do veículo, Isabella foi
agredida na parte anterior da cabeça (testa) por um instrumento perfuro-contundente, o que explica
as manchas de sangue encontradas dentro do carro. A lesão na cabeça foi melhor descrita após
exame necroscópico.

Dando sequência, Alexandre subiu para o apartamento com Isabella no colo. Na cabeça da criança o
casal colocou uma fralda para estancar o sangue durante o trajeto, fralda que, como dito, foi encontrada
dentro do apartamento em processo de lavagem (no balde). Já dentro do apartamento, Alexandre
caminhou em várias direções com Isabella no colo, o que ficou evidenciado pelas várias manchas de
sangue encontradas no chão dos diferentes cômodos. Na sala, Alexandre jogou a filha no chão e a
esganou (causou asfixia pela constrição do pescoço com as mãos), procedimento comprovado pelo
exame de necropsia.

Em seguida, já em posse de uma faca, Alexandre ajoelhou-se na cama e tentou cortar a rede de
proteção da janela do quarto. Sem êxito, ele pegou então uma tesoura e fez a abertura na tela de proteção
do quarto. Alexandre voltou até a sala, pegou a Isabella no colo e se direcionou para o quarto novamente,
onde foram encontradas mais manchas de sangue no trajeto e próximas à cama. Já no interior do quarto,
o pai subiu e caminhou com dificuldade em cima da cama até a janela, fato evidenciado pela sequência
de passos deixada pelas marcas do solado da sandália e de sangue. Próximo da janela, Alexandre se
debruçou no parapeito, o que ficou comprovado pela marca da tela de proteção tatuada na camiseta
que usava no dia do crime, passou a filha pela abertura feita na tela de proteção de forma cuidadosa
e quando ela estava rente ao parapeito pelo lado de fora da janela, o pai soltou a filha, o que também
foi comprovado pelo rastro de sangue deixado pela mão da vítima na fachada do edifício.

No caso de Elisa Samudio, ocorrido em 2009, foram encontradas, no interior do veículo de


propriedade do goleiro Bruno, cinco manchas de sangue, sendo uma delas por projeção, sugerindo
agressão. Foram encontrados também um par de óculos e sandálias pretas, objetos pertencentes à
vítima, segundo testemunhas.

No sítio para onde a vítima foi levada, foram encontradas roupas femininas e de bebê, fraldas e um
colchão, no qual existiam manchas de sangue e cabelos.

O crime de homicídio e ocultação de cadáver da vítima Elisa Samudio iniciou-se em maio de


2010, quando o indiciado Bruno atraiu a vítima de São Paulo para o Rio de Janeiro, usando o falso
pretexto de que se submeteria à realização de exame de DNA para reconhecimento de paternidade do
recém-nascido e posterior acordo judicial com Elisa. A vítima foi enganada pelo comparsa de Bruno e
sequestrada nas proximidades do hotel onde estava hospedada, cuja diária foi custeada pelo denunciado.
Levando o bebê, Elisa entrou no veículo de propriedade de Bruno, a princípio acreditando que iria ao
encontro do indiciado.

17
Unidade I

Dentro do veículo encontravam-se o comparsa de apelido Macarrão, Elisa, o bebê e mais um


comparsa (o adolescente e primo do denunciado, Jorge) que estava escondido no porta-malas do
veículo munido de uma pistola calibre 380. Em determinado momento, Jorge saiu do compartimento
das bagagens e apontou a arma para vítima, que, entendendo ser uma emboscada, se desesperou e
entrou em luta com o adolescente, que acabou deferindo um golpe com o cabo da arma (“coronhada”)
em sua cabeça, sendo tal agressão comprovada pela mancha de projeção de sangue encontrada
dentro do veículo.

Dominada, a vítima e seu bebê foram levados para a casa do denunciado Bruno, situada no
condomínio “Nova Barra”, no Rio de Janeiro. No dia seguinte, a vítima e o bebê, juntamente aos
denunciados, viajaram para Minas Gerais, mais precisamente para o sítio de Bruno, situado no condomínio
Turmalina, na divisa entre as cidades de Contagem e Esmeraldas.

A vítima e seu bebê foram mantidos por seis dias em cárcere privado no referido sítio, fato
comprovado pelas roupas femininas e da criança, além das fraldas encontradas pela perícia. Após esse
período, Elisa foi conduzida para uma casa em Vespasiano (MG), onde ocorreu sua morte e ocultação
de seu corpo. Já o bebê foi encontrado em uma residência na cidade de Ribeirão das Neves (MG), sob os
cuidados de uma mulher.

No caso Mércia Nakashima, datado de 2010, a vítima, Mércia, desapareceu após um jantar em
família, na casa da avó. O principal suspeito era o ex-namorado Mizael, que não aceitava o rompimento
do relacionamento.

Na represa de Nazaré Paulista foi retirado o carro da vítima, um Honda Fit que estava submerso.
Dentro dele foram encontrados dois projéteis de arma de fogo, após perícia.

Na casa de Mizael foram recolhidos dois pares de sapatos com o propósito de verificar algum tipo
de vestígio que o ligasse ao crime. Após a análise dos sapatos, foram verificados vestígios de sangue,
fragmentos de ossos e chumbo, porém em quantidades insuficientes e com baixa qualidade para a
realização de outros exames de comprovação e certificação, como o de pesquisa de sangue humano, de
DNA e comparação do chumbo.

Em depoimento à polícia, Mizael alegou que no dia do crime estava com uma garota de programa.
Porém, o rastreador de seu veículo confirmou que, por um determinado período no dia do crime, ele
esteve estacionado próximo à casa da avó da vítima. Ainda, com a quebra do sigilo telefônico do suspeito,
ficaram evidenciadas algumas ligações, no dia do crime, para seu comparsa Evandro, vigia de um posto
de gasolina em Guarulhos.

Após uma denúncia, o veículo Honda Fit da vítima foi localizado com todos seus pertences, submerso
a 6 metros de profundidade e a 25 metros de distância da margem da represa de Nazaré Paulista,
indicando não ser um possível latrocínio (roubo seguido de morte). O corpo foi encontrado no dia
seguinte boiando na represa.

18
BIOMEDICINA FORENSE

Dentro do veículo, a perícia encontrou dois projéteis de arma de fogo contendo materiais orgânicos
e fibra da blusa que Mércia usava no dia do crime. E, ainda, pela posição em que foram encontrados os
projéteis, concluiu-se que sua trajetória foi de baixo para cima (postura de defesa), sendo comprovado
pelas lesões no antebraço e maxilar da vítima verificadas após exame necroscópico.

No caso do zelador Jezi, ocorrido em 2014, a perícia encontrou na parede do apartamento do suspeito
manchas de sangue e também serrotes e outros objetos utilizados para esquartejar o corpo da vítima.
E, em uma casa na Praia Grande (SP), foram encontrados 17 segmentos de um corpo humano, parte em
putrefação e parte queimada dentro de uma churrasqueira.

Após denúncia, foi verificado que o suspeito Eduardo já tinha desavenças com Jezi, o zelador
do edifício onde morava, e que o desaparecimento da vítima ocorreu após um desentendimento
entre as partes.

A análise dos vestígios encontrados dentro do apartamento de Eduardo (manchas de sangue na


parede e serrotes, entre outros objetos), somada às imagens de segurança do edifício (em que o suspeito
aparece carregando uma mala) e, por fim, o fato de o suspeito ter sido surpreendido pela polícia tentando
queimar o corpo do zelador na churrasqueira da casa de praia, evidenciaram a autoria do crime.

Em relação à dinâmica do crime, concluiu-se que, após um desentendimento entre Eduardo e Jezi,
Eduardo matou o zelador, o esquartejou e posteriormente transportou as partes do corpo em uma mala
até a casa de praia, onde foram queimadas em uma churrasqueira.

2 TOXICOLOGIA

Drogas e fármacos são conhecidos desde os primórdios da história da humanidade e possuem


ampla aplicação, a qual tem por objetivo a obtenção de efeitos benéficos (cura de doenças)
e/ou desejáveis.

No século XIV, o alquimista e médico Paracelsus postulou que a definição de uma determinada
substância como medicamento ou veneno é dependente da dose administrada. Desde então, várias
ocorrências relacionadas ao uso de medicamentos e seus efeitos adversos, uso de drogas e outras
substâncias químicas e venenos foram registradas e passaram a ser conhecidas pela humanidade. Dessa
forma, surgiu a necessidade da criação de uma área específica que estudasse em maior detalhe os
efeitos provocados por diferentes substâncias químicas: a toxicologia.

Observação

Dose é o termo utilizado para se referir à quantidade administrada de


determinada substância.

19
Unidade I

Saiba mais

Leia o artigo indicado a seguir para conhecer um pouco mais sobre


Paracelsus, o fundador da toxicologia.

SOUZA, L. A. Paracelso: cientista da saúde. Brasil Escola, [s.d.]. Disponível em:


https://brasilescola.uol.com.br/quimica/paracelso-cientista-saude.htm.
Acesso em: 26 ago. 2020.

Portanto, toxicologia é uma ciência que tem por objetivo investigar os efeitos nocivos resultantes da
interação de diferentes substâncias químicas, como drogas e fármacos, com os organismos vivos através
da quantificação do espectro de alterações biológicas produzidas pela exposição a tais substâncias.

O uso seguro dessas substâncias químicas representa o grande desafio da toxicologia, uma vez que
fatores como a quantidade e a duração da exposição podem desencadear respostas variáveis entre os
indivíduos de uma determinada população.

A toxicologia baseia-se em três elementos fundamentais:

• Agente tóxico ou toxicante: substância química capaz de produzir uma resposta deletéria ao
interagir com organismos vivos.

• Toxicidade: refere-se à capacidade que uma substância química (toxicante) possui de provocar
efeitos nocivos, quando em contato com um organismo vivo, os quais são dependentes da
concentração e do tempo de exposição ao toxicante.

• Intoxicação: manifestação de sinais e sintomas que revelam os efeitos nocivos decorrentes da


interação entre o toxicante e o sistema biológico de um organismo.

Observação

Resposta deletéria é aquela que destrói, corrompe, prejudica, por


exemplo, o funcionamento do organismo.

A toxicologia constitui-se em ciência multidisciplinar, na qual há interação de especialistas com


diferentes formações profissionais e técnicas para permitir o aperfeiçoamento dos conhecimentos e o
desenvolvimento das áreas de atuação.

De acordo com a área de atuação e a diversidade de aplicações, a toxicologia pode ser dividida em
diferentes especialidades, descritas a seguir.

20
BIOMEDICINA FORENSE

• Toxicologia ambiental: estuda os efeitos nocivos produzidos pela interação dos contaminantes
químicos ambientais com os organismos vivos. Exemplos: substâncias químicas derramadas ou
extravasadas acidentalmente no ambiente.

• Toxicologia ocupacional: compreende o estudo dos efeitos nocivos produzidos por contaminantes
do ambiente de trabalho sobre o indivíduo exposto e o impacto sobre sua saúde na vida laboral.
Exemplo: substâncias voláteis de postos de combustíveis.

• Toxicologia de alimentos: estuda os efeitos adversos produzidos por contaminantes ou


substâncias químicas presentes nos alimentos em relação à saúde daquele que os ingere. Exemplos:
conservantes, edulcorantes, flavorizantes.

• Toxicologia social: estuda os efeitos nocivos de fármacos e substâncias químicas utilizados pelo
indivíduo sem prescrições médicas e/ou sem fins terapêuticos de forma individual, social ou legal
e que possam interferir na vida em sociedade. Exemplos: drogas de abuso.

• Toxicologia forense: tem como interesse principal o aspecto judicial, a fim de elucidar um
crime através do fornecimento de evidências no que tange às circunstâncias do fato, ou seja,
visa identificar qualquer toxicante que possa ter resultado em morte ou ter causado qualquer
dano ao indivíduo.

Dentro de cada uma dessas áreas de atuação, diferentes tipos de questões podem ser abordadas,
como as relacionadas a aspectos regulatórios, médico-legais, analíticos e clínicos, entre outras.
Consequentemente, de acordo com o campo de estudo, a toxicologia se divide em:

• toxicologia analítica ou química: identifica e/ou quantifica os toxicantes e/ou seus metabólitos
(produtos da biotransformação) em materiais biológicos;

• toxicologia clínica ou médica: estuda os sintomas e sinais clínicos de uma possível intoxicação;

• toxicologia experimental: trata da identificação e entendimento dos mecanismos de ação tóxica


sobre o sistema biológico, bem como a avaliação dos efeitos resultantes dessa ação.

Observação

Biotransformação ou transformação metabólica (metabolização)


corresponde ao conjunto de alterações químicas que ocorrem no
organismo, geralmente mediadas por enzimas, em que substâncias como
fármacos, drogas e toxicantes são convertidos em compostos diferentes
dos originalmente administrados, facilitando sua excreção.

Assim, o estabelecimento das diversas áreas de atuação toxicológica e de suas finalidades propicia ao
toxicologista escolher a melhor matriz biológica (fragmentos de órgãos, conteúdo estomacal, sangue,
21
Unidade I

urina etc.) a ser utilizada e a técnica analítica a ser aplicada para detecção de toxicantes de interesse na
pesquisa. Entre tais vertentes de análises toxicológicas, a de maior interesse no momento é a toxicologia
forense, descrita a seguir.

2.1 Toxicologia forense

Desde tempos remotos, há relatos do uso de venenos e drogas pelo homem (substâncias naturais ou
sintéticas) e sua interferência no funcionamento do organismo, levando-se em consideração os efeitos
locais (órgão específico) e/ou sistêmicos (todo o corpo). Atualmente, o uso de drogas pelo homem se
tornou um grande e um dos mais graves problemas da sociedade.

Observação

Diz-se substância natural aquela que é extraída de uma determinada


planta ou componente existente na natureza, por diferentes processos,
buscando obter o principal composto que provoque os efeitos desejados.
Já a substância sintética é aquela produzida em laboratório através de
processos químicos.

Até o século XX, a toxicologia forense limitava-se a estabelecer a relação tóxica com um
determinado crime. O toxicologista trabalhava diretamente com o cadáver visando pesquisar e
identificar a substância em questão. Atualmente, o campo de ação dessa ciência tornou-se mais vasto,
estendendo-se desde as perícias nos cadáveres até indivíduos vivos, sempre com o intuito de evidenciar
as circunstâncias de um crime.

Entre os objetivos pertinentes às análises toxicológicas forenses, estão os indicados a seguir.

• Identificar e quantificar uma substância química (como medicamentos, drogas ilícitas,


praguicidas, metais, gases tóxicos, entre outros) que tenha levado à intoxicação e morte de
uma pessoa. Essas análises são realizadas em matrizes biológicas com o objetivo de auxiliar
os exames necroscópicos de mortes violentas por causas externas e suspeitas, como suicídios,
acidentes e homicídios.

• Identificar e quantificar uma substância química que causa dependência psíquica e/ou física
(como drogas ilícitas, álcool etílico, medicamentos, entre outros) em fluidos e materiais biológicos
como sangue e urina (convencionais) ou saliva, suor, cabelo, unha e mecônio (não convencionais)
de indivíduos vivos para auxiliar e complementar uma perícia. Cabe a essas análises verificar o
uso de um toxicante que leve à mudança de desempenho e/ou de comportamento (alteração do
estado de consciência), sendo realizadas no controle de doping, nos exames admissionais e de
demissão para o trabalho, além de esclarecer supostas tentativas de suicídios, acidentes, tráfico e
casos de homicídios.

22
BIOMEDICINA FORENSE

Saiba mais

Vamos aprender um pouco mais sobre suicídio, homicídio e doping?


Leia os artigos indicados a seguir.

BRASIL. Ministério da Saúde. Prevenção do suicídio: sinais para


saber e agir. Disponível em: https://saude.gov.br/saude-de-a-z/suicidio.
Acesso em: 26 ago. 2020.

DIREITO LEGAL. Homicídio simples. Disponível em: https://direito.


legal/direito-publico/direito-penal/resumo-de-homicidio-simples/.
Acesso em: 26 ago. 2020.

HOSPITAL ALBERT EINSTEIN. O que é o doping? Disponível em: https://www.


einstein.br/noticias/noticia/o-que-e-o-doping. Acesso em: 26 ago. 2020.

A seguir estão listadas as autoridades que podem solicitar análises toxicológicas, com
finalidade forense:

• autoridade policial responsável pelo inquérito;

• autoridade militar conhecedora de fatos criminosos relacionados com o tráfico (comércio) e uso
de substâncias químicas;

• autoridade judiciária encarregada do julgamento;

• médico legista, a fim de auxiliar na perícia do vivo e na necropsia (melhor descrita mais à frente).

Na solicitação desse tipo de análise toxicológica, alguns elementos primordiais devem ser informados
para otimização do entendimento e auxílio laboratorial do caso, os quais estão relacionados a seguir:

• Qualificação detalhada do indivíduo ou do cadáver do qual foram coletados fluidos e materiais


biológicos para o exame.

• Histórico policial e exame pericial inicial do médico legista completos para direcionamento das
análises que visam esclarecer uma suspeita.

• Identificação e descrição precisas dos fluidos e/ou materiais biológicos encaminhados para a
realização da análise e qual(is) a(s) substância(s) química(s) a ser(em) pesquisada(s).

• Informações concisas sobre data e hora do fato e da coleta do material.

• Identificação do requisitante da análise.

23
Unidade I

Todas as análises toxicológicas com propósito forense devem seguir e respeitar a cadeia de custódia,
extremamente importante para a preservação das fontes de provas. Ela consiste em um conjunto de
documentos (anotações, croquis, fotografias, solicitações, laudos, entre outros) referentes à amostra
biológica, considerada peça criminal, com o intuito de rastrear todas as operações realizadas e quem as
manipulou, desde sua coleta até sua estocagem ou descarte. Assim, a cadeia de custódia constitui um
aspecto relevante não apenas na política de qualidade do laboratório, mas também certifica a amostra
biológica (peça criminal) quando de sua apresentação e apreciação no julgamento, como vestígio físico,
caso necessário.

O médico legista é responsável por toda e qualquer coleta dos fluidos e materiais biológicos para as
análises toxicológicas forenses, tanto de indivíduos vivos quanto mortos. Dessa forma, ele deve seguir
protocolos preestabelecidos de coleta, armazenamento e transporte da matriz biológica. Já o perito
toxicologista é responsável por selecionar as técnicas analíticas mais apropriadas para isolar, identificar
e quantificar um toxicante específico e/ou seus produtos de biotransformação (metabólitos) em matrizes
biológicas convencionais e não convencionais.

Entre os toxicantes de interesse médico-legal, analisados nos diferentes fluidos e materiais biológicos,
encontramos substâncias lícitas (de uso permitido) e ilícitas (de uso não permitido), porém todas elas
são denominadas e conhecidas na área forense como drogas de abuso. A maioria dessas drogas exerce
ação psicoativa ou psicotrópica, ou seja, atua no sistema nervoso central (SNC) do indivíduo, levando a
alterações no comportamento, no humor, na consciência, nos pensamentos, nos sentimentos, além de
poder levá-lo a óbito.

2.1.1 Drogas depressoras do SNC

São substâncias que diminuem as atividades do SNC, resultando em sono, hipnose e analgesia.
A maioria das substâncias de interesse médico-legal dessa classe é considerada lícita, porém, quando
usada em excesso, pode causar intoxicação e até morte.

As principais substâncias de interesse médico-legal dessa classe são listadas a seguir.

Álcool etílico (etanol)

Trata-se de uma substância que inicialmente irá proporcionar ao indivíduo um efeito euforizante
(desinibição comportamental, aumento das expressões afetivas e diminuição da autocrítica), seguido de
um efeito depressor (tristeza, angústia, choro etc.).

A toxicocinética do etanol inicia-se com a sua ingestão. Em seguida, ocorre a absorção, que pode ser
rápida ou lenta dependendo da tolerância do indivíduo, da velocidade de ingestão, do tipo de bebida
alcoólica e, ainda, de o estômago estar vazio ou não. Quando o estômago está vazio, há uma rápida
absorção do álcool, atingindo níveis de alcoolemia (álcool no sangue) até duas vezes maiores do que
quando o estômago está com alimentos, em um mesmo intervalo de tempo. Por outro lado, a presença
de alimentos no estômago favorece o prolongamento do tempo de permanência do etanol no conteúdo

24
BIOMEDICINA FORENSE

estomacal, resultando em absorção mais lenta e, consequentemente, maior taxa de biotransformação


pela enzima álcool desidrogenase, presente na mucosa do estômago.

Aproximadamente cinco minutos após a ingestão de bebidas alcoólicas, 20% do etanol é absorvido
no estômago e 80% no intestino, chegando rapidamente na corrente sanguínea e, consequentemente,
atingindo picos de concentração entre 30 e 90 minutos. Uma vez na corrente sanguínea, o etanol é
distribuído para todos os fluidos e tecidos do organismo (principalmente sangue, cérebro, rins, além
de transpor a barreira hematoencefálica e a placenta). A biotransformação inicial do etanol ocorre no
estômago e, a seguir, predominantemente no fígado.

Quase todo o etanol ingerido sofre metabolização (de 95% a 98%), metabolização essa cuja
velocidade fica em torno de 0,2 g de etanol/L de sangue por hora. Já sua excreção é mais rápida em
comparação às demais drogas de abuso, devido a sua alta polaridade: ela acontece cerca de seis a nove
horas após cessar sua utilização pelo organismo.

Quanto à toxicodinâmica do etanol, inicialmente há um efeito estimulatório no indivíduo devido


à inibição dos mecanismos inibitórios neuronais, levando a uma sensação de euforia (inibição da
autocensura). Em seguida acontece a depressão do SNC, associada à alteração do comportamento,
dos reflexos, dos mecanismos de regulação térmica e da concentração de glicose sanguínea (levando à
hipoglicemia), o que pode resultar em coma e morte devido à concentração plasmática de etanol em
ascensão (quantidade de etanol ingerido versus tempo).

Há uma diferença considerável de resposta do organismo feminino e masculino em relação à


metabolização do álcool ingerido. Por possuírem menor proporção de água, maior de gordura corporal
e menor atividade da enzima álcool desidrogenase na mucosa do estômago, as mulheres são mais
sensíveis do que os homens. Adicionalmente, a ação dos neurotransmissores esteroides propicia, nas
mulheres, uma rápida dependência física perante o etanol, e o seu uso abusivo, em associação aos
hormônios femininos, potencializa problemas como interrupção da menstruação, aumento da tensão
pré-menstrual, menopausa precoce, problemas de fertilidade, danos ao fígado (cirrose), problemas
cardiovasculares, hipertensão e úlceras gastrointestinais.

Para detecção de etanol in vivo (no vivo) ou post mortem (após a morte), a toxicologia forense
utiliza como matriz biológica de escolha o sangue, tendo como segunda opção em mortos o humor
vítreo. A técnica analítica usada para determinar a presença e quantidade de tal substância é a
cromatografia gasosa (CG), com detector de ionização de chamas (DIC) acoplada a headspace (HS)
(figura a seguir).

25
Unidade I

A B

300

isobutanol 4,489
250

etanol 3,130
200

150

pA
100

50

0
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9
minutos

Figura 4 – (A) Típico cromatógrafo em fase gasosa (CG) com detector de ionização por chama (DIC) e
amostrador para headspace (HS). (B) Típico cromatograma obtido pela técnica em fase gasosa
indicando a presença de etanol na amostra frente a um padrão de referência (isobutanol)

Barbitúricos e benzodiazepínicos

São medicamentos utilizados como ansiolíticos, sedativos, hipnóticos, anticonvulsivantes, indutores


anestésicos, miorrelaxantes, sendo os principais: fenobarbital, pentobarbital, primidona, clonazepam
(Rivotril), diazepam (Valium), flunitrazepam (Rophynol), bromazepam (Lexotan), midazolam (Dormonid),
alprazolam (Frontal), entre outros.

Tanto os barbitúricos quanto os benzodiazepínicos são absorvidos no trato gastrointestinal, sendo


a velocidade de absorção dependente de fatores como: formulação farmacêutica (ambos os fármacos),
lipossolubilidade e ingestão concomitante com alimentos (benzodiazepínicos). Cerca de 60% a 90% dos
benzodiazepínicos se ligam a proteínas plasmáticas, o que favorece sua maior permanência no organismo.

A metabolização das duas classes de medicamentos ocorre no fígado e sua excreção se dá por meio
da urina, sob a forma de conjugados glicurônicos.

Os barbitúricos agem no processo central de transmissão sináptica do Sistema Ativador


Reticular Ascendente (SARA), desencadeando efeitos sedativos e hipnóticos por deprimir a ação de
neurotransmissores excitatórios e aumentar a ação inibitória do ácido γ-aminobutírico (GABA). O efeito
anticonvulsivante dessa classe de fármaco ocorre pela inibição da geração de potencial excitatório
pós‑sináptico e aumento do limiar de estimulação neuronal. Tais medicamentos são considerados
depressores não seletivos do SNC e promovem, em doses terapêuticas, o relaxamento muscular, a
indução do sono e a diminuição da tensão arterial e da frequência cardíaca.

A intoxicação por barbitúricos acontece quando a dose administrada é de aproximadamente quinze


a trinta vezes maior do que a dose terapêutica, causando fala enrolada, ataxia, cefaleia, nistagmo

26
BIOMEDICINA FORENSE

(movimento involuntário dos olhos) e confusão mental semelhante a um estado de embriaguez alcoólica.
Entretanto, quando em altas concentrações no organismo, os barbitúricos induzem graus variados de
coma com perda total dos reflexos, hipotermia, depressão respiratória e da contração miocárdica (parada
cardiorrespiratória).

Já os benzodiazepínicos atuam de forma sinérgica ao GABA, aumentando a abertura dos canais


de ânions cloreto localizados na medula espinhal, hipotálamo, hipocampo, substância negra, córtex
cerebelar e cerebral, favorecendo a ação inibitória na transmissão neural (sinapse). Os principais
efeitos desses compostos são sedação, letargia, comprometimento do discernimento e diminuição da
capacidade motora. Em altas doses, podem provocar ataxia, fala enrolada, sonolência, coma e depressão
cardiorrespiratória.

Exemplo de aplicação

Uma realidade atual é a utilização de benzodiazepínicos, especificamente o Ropyinol, por criminosos


como drogas facilitadoras de abuso sexual e de roubo. Tal ato é conhecido no meio policial como
“boa noite cinderela” e resulta em grande e crescente impacto social e emocional nas vítimas. Vamos
pesquisar mais sobre o assunto?

Para análise e detecção desses fármacos, utilizam-se testes de triagem qualitativos, como os ensaios
colorimétricos vanilina sulfúrica e reagente de Liebermann, além da cromatografia em camada delgada
(CCD). A cromatografia gasosa acoplada à espectrometria de massa (CG/EM) ou cromatografia líquida
de alta eficiência com detector UV (CLAE/UV) ou acoplada à espectrometria de massa (CLAE/EM) são
utilizadas como exames confirmatórios, por serem quantitativas. Vale destacar que, para a realização dos
exames cromatográficos, se fazem necessários os procedimentos de extração e preparação da amostra.

Opiáceos e opioides

Os opiáceos são substâncias de origem natural, encontradas no suco leitoso do fruto da papoula do
oriente (Papaver somnniferum) e extraídas a partir do ópio. Como opiáceos naturais, tem-se morfina,
codeína e papaverina. Já os opioides são substâncias sintéticas, ou seja, produzidas em laboratório e
que apresentam estruturas químicas semelhantes aos opiáceos. Entre as substâncias semissintéticas
destaca-se a heroína, que é obtida a partir de uma pequena modificação química da morfina. Além da
heroína, há a meperidina, a metadona, o propoxifeno, entre outros.

Lembrete

Ópio é a mistura de alcaloides extraídos da papoula (Papaver somnniferum).

Tanto os opiáceos quanto os opioides deprimem o SNC por diminuir as atividades cerebrais, resultando
em analgesia (diminuição da dor) e hipnose (aumento do sono); dessa forma, são denominadas

27
Unidade I

substâncias narcóticas. Eles atuam também no centro respiratório, podendo causar severas depressões
respiratórias, cardíacas, coma e morte.

São substâncias associadas à dependência severa, além do estabelecimento de tolerância, ou seja,


doses cada vez maiores são necessárias para obtenção dos mesmos efeitos desejados pelo usuário.
Ainda, a ausência dessas substâncias no organismo dos usuários leva a uma severa síndrome de
abstinência, caracterizada por náuseas, vômitos, diarreia, cólicas intestinais, intensas dores musculares
e cãibras, também conhecida como “rebote”.

Outra problemática associada, agora em relação ao uso da morfina e heroína na forma injetável,
é o aumento do número de usuários que adquirem doenças infectocontagiosas (principalmente
hepatite e AIDS) devido ao compartilhamento de seringas contendo sangue contaminado
(ritual dos usuários).

Para a detecção dos opiáceos e opioides em amostras biológicas podem-se utilizar como métodos
de triagem os testes colorimétricos (reagente de Marquis) e CCD, e, para análise confirmatória, a CG/EM,
descritos previamente.

Solventes e/ou inalantes

São compostos químicos capazes de dissolver outras substâncias semelhantes e voláteis por
apresentarem um baixo ponto de ebulição e alta pressão de vapor, facilitando, assim, sua inalação
por aspiração pela boca e nariz. Os solventes e inalantes são substâncias que pertencem ao grupo dos
hidrocarbonetos derivados do petróleo (tolueno, xilol, n-hexano, acetato de etila, tricloroetileno etc.).

Vários produtos comerciais como esmalte, cola, tinta, tíner, gasolina, verniz, removedor, entre outros,
contêm esses solventes e são inalados de forma involuntária por pessoas que trabalham diretamente
com eles, como trabalhadores da indústria de calçados, frentistas de posto de combustível e manicures.
A inalação de forma voluntária geralmente é feita pelas crianças moradoras de rua, que usam cola de
sapateiro, e por jovens em festas de carnaval, nesse caso, lança-perfume e “cheirinho de loló”.

Observação

Lança-perfume é um inalante que vem acondicionado em tubos


diretamente da fábrica e cuja produção é à base de cloreto de etila; já
o “cheirinho de loló” é um inalante de fabricação caseira à base de
clorofórmio e éter.

Os solventes e/ou inalantes atuam no cérebro (SNC) provocando estimulação inicial, seguida de
depressão, e podem desencadear processos alucinatórios. Segundos após a aspiração iniciam-se os efeitos,
os quais duram somente de 15 a 40 minutos, levando os usuários a repetirem o processo de aspiração
várias vezes para que as sensações desejadas perdurem por mais tempo.

28
BIOMEDICINA FORENSE

Os efeitos dos solventes e/ou inalantes se dividem em quatro fases:

• Primeira fase: corresponde à fase excitatória/euforizante (desejada pelos usuários), na qual


ocorrem perturbações auditivas e visuais, além de náuseas e salivação excessiva.

• Segunda fase: começa a predominar a depressão do SNC, provocando confusão, desorientação,


voz meio pastosa, visão embaçada, perda do autocontrole, dor de cabeça, palidez.

• Terceira fase: compreende a depressão profunda, levando a descoordenação motora (marcha


vacilante) e ocular (a pessoa não consegue fixar os olhos nos objetos), fala enrolada e reflexos
deprimidos, dando-se também o início dos processos alucinatórios.

• Quarta fase: há uma depressão tardia, que leva à inconsciência, queda da pressão, sonhos
estranhos e surtos convulsivos. Normalmente acontece em usuários crônicos que utilizam saco
plástico contendo o solvente e/ou inalante para repetidas e constantes aspirações.

Sabe-se que o uso crônico de solventes e/ou inalantes destrói os neurônios, causando lesões
irreversíveis e, consequentemente, prejuízo de memória, diminuição da destreza manual, alteração do
tempo de estímulos, confusão mental, descoordenação motora e sensitiva, além de dor de cabeça,
cansaço e fraqueza muscular. Outro efeito preocupante provocado pela aspiração dessas substâncias é
a sensibilização do coração em relação à adrenalina, levando a uma taquicardia.

A análise em matrizes biológicas para a detecção de solventes e/ou inalantes é feita pela utilização
de CG/DIC/HS ou CG/EM. Porém, é muito difícil detectar esses compostos devido ao seu curto tempo de
permanência no organismo humano.

2.1.2 Drogas estimulantes do SNC

Para as ciências forenses, essa classe de drogas representa a mais significante devido à estrita
relação de seus usuários com a violência e a criminalidade. Tais drogas estimulam o SNC e os efeitos
por elas exercidos são dependentes do usuário (maior ou menor susceptibilidade), do ambiente (como
dormitório, festas, entre outros), da dose (concentração) e da via de administração (ingerida, aspirada,
injetada, entre outras). As principais drogas dessa classe são:

Cocaína

Trata-se de um alcaloide natural encontrado nas folhas do vegetal Erytroxylum coca, podendo ser
apresentado em diferentes formas: cloridrato de cocaína (produto refinado), crack (base livre), variante
do crack (oxi) e merla (subproduto da cocaína).

O cloridrato de cocaína possui aspecto de pó branco e cristalino, não volatiliza nem se decompõe
em altas temperaturas. Portanto, nessa forma a droga não pode ser fumada. As principais vias de
administração são a intravenosa e a intranasal (cheirada), além da via oral, quando inserida em bebidas
alcoólicas destiladas. A cocaína nessa forma é a que sofre mais adulterações pelos traficantes, pois eles
29
Unidade I

adicionam açúcares (glicose, lactose, maltose), sais de baixo custo (bicarbonato de sódio, carbonato, ácido
bórico), anestésicos locais (lidocaína, benzocaína, procaína, entre outros), além de outras substâncias
estimulantes (como a cafeína) para obtenção de maior rendimento do produto final.

Já o crack, o oxi e a merla apresentam baixo ponto de fusão e se volatilizam quando aquecidos,
permitindo que seus vapores sejam inalados no ato de fumar. Essas formas da droga apresentam uma
grande quantidade de impurezas, resultantes da primeira fase da obtenção da pasta base (refino), como
querosene, gasolina, metais pesados, ácido sulfúrico etc.

Exemplo de aplicação

Foi demonstrado que a cocaína pode ser encontrada em diferentes formas, desde as mais refinadas,
como o cloridrato de cocaína, até produtos contendo grande quantidade de impurezas, como oxi e
merla. Vamos pesquisar mais sobre como são feitos os processos de produção e refinamento da cocaína?

Quando a cocaína é administrada pela via intranasal, apresenta lenta velocidade de absorção pelas
membranas das mucosas devido à baixa taxa de difusão nessa região, às propriedades vasoconstritoras
da substância e à possibilidade de parte da dose ser deglutida. Assim, apenas de 20% a 30% da cocaína
são absorvidos, tendo o pico plasmático entre 30 e 60 minutos após o uso e meia-vida biológica
cerca de 60 minutos.

O crack, o oxi e a merla, que representam as formas fumadas da cocaína, possuem velocidade de
absorção rápida e muito alta devido à extensa área de exposição da superfície pulmonar e de sua
vascularização. O efeito máximo é obtido em 5 minutos, perdurando por aproximadamente 30 minutos.
A meia-vida da cocaína nessa forma é de 10 a 30 minutos.

As características da administração da cocaína por via intravenosa são semelhantes às descritas


pelas formas fumadas.

Após absorção da cocaína pelo organismo, ela se liga às proteínas plasmáticas (α-1-glicoproteína
ácida com alta afinidade e albumina com menor afinidade) e se distribui amplamente pelo corpo.
Por ser lipossolúvel, a cocaína atravessa a barreira hematoencefálica e também a barreira placentária,
levando os recém-nascidos a desenvolverem uma narcodependência, além de provocar outros efeitos
perinatais como retardamento do desenvolvimento fetal, cardiomiopatias, distúrbios de comportamento,
microcefalia e até a morte intrauterina.

A eliminação dos metabólitos na urina é controlada pela biotransformação da droga, sendo os


principais produtos: éster metilecgonina (35%-48%), resultante da hidrólise do grupo benzoato
da cocaína pelas enzimas colinesterases do plasma e do fígado; benzoilecgonina (30%-45%),
quando da hidrólise espontânea da cocaína ou devido à reação catalisada por carboxilesterases;
e norcocaína (2%‑6%), obtida da N-desmetilação pelas enzimas do sistema citocromo P450,
sendo esse o único produto farmacologicamente ativo.

30
BIOMEDICINA FORENSE

Outros dois produtos que podem ser encontrados na urina são o cocaetileno, resultante da
transesterificação hepática da cocaína quando combinada com álcool, e o éster metilanidroecgonina ou
metilecgonidina, formado pela pirólise da cocaína fumada (crack). Ainda na urina, pode-se verificar a
presença da cocaína inalterada em uma concentração de 2% a 14%.

Observação

Pirólise é a transformação de uma mistura ou de um composto orgânico


em outra substância através do aquecimento.

A cocaína é uma droga psicoestimulante que atua, aparentemente, nos sítios dos neurotransmissores
dopamina, norepinefrina e serotonina, levando o indivíduo a uma intensa euforia (êxtase), sensação de
bem-estar, ilusão de onipotência, autoconfiança e autoestima, sensações essas conhecidas como rush
ou flash. Mesmo com doses relativamente baixas de cocaína, o usuário pode apresentar progressivas
mudanças nos sistemas cardiovascular e respiratório e alterações das respostas do SNC.

Em caso de intoxicação por cocaína, o indivíduo sofre diversas modificações em seu estado mental e
fisiológico, como sensação de confusão, paranoia, pânico, ansiedade, alucinações, taquicardia, fibrilação
ventricular, arritmias, infarto do miocárdio, vasoconstrição, hipertensão, broncodilatação, hipertermia,
midríase e até mesmo comportamentos violentos, suicidas e homicidas.

Normalmente, o usuário crônico de cocaína na forma inspirada (intranasal) apresenta lesões e


perfuração do septo nasal, configurando o chamado “nariz de pato”. Já o usuário de crack apresenta
queimaduras nos lábios, na língua e no rosto devido à proximidade com a chama do cachimbo, e o
usuário da droga na forma intravenosa apresenta marcas de picadas por todo o corpo.

A dependência causada pela cocaína é decorrente dos diferentes efeitos por ela exercidos e pelo
tempo de uso; já a leve tolerância se deve ao fato de os usuários manterem quase que a dosagem inicial
por longos períodos, obtendo efeitos euforizantes de mesma intensidade. Em relação à abstinência de
cocaína, os principais sintomas associados são: depressão, fadiga, irritabilidade, perda do desejo sexual,
distúrbios da fome e do sono.

A urina é a matriz biológica de escolha para a detecção da cocaína inalterada, bem como de seus
metabólitos. A análise é feita inicialmente por CCD ou imunoensaio (triagem) e, posteriormente, por
CG/EM, CLAE/UV ou CLAE/MS, que são técnicas mais sensíveis, específicas e confirmatórias. Lembrando
que, antes da realização das análises instrumentais (cromatográficas), é necessário preparar e
condicionar a amostra.

Anfetaminas

São classificadas como drogas sintéticas (produzidas em laboratórios) e, a princípio, utilizadas


para fins terapêuticos no tratamento da obesidade (anorexígenos como femproporex, mazindol e
clorfentermina), narcolepsia, hipotensão, distúrbios de hiperatividade infantil (metilfenidato) e como
31
Unidade I

descongestionante nasal (nafazolina, efedrina e fenilefrina). Ainda, as anfetaminas podem ter sua
estrutura química modificada e se apresentarem como alucinógenos, caso da metanfetamina (rebite,
bolinha, ice, speed ou cristal); metilenodioximetanfetamina (MDMA ou ecstasy); parametoxianfetamina
(PMA); parametoximetilanfetamina (PMMA); 2,5-dimetoxi-4-bromoanfetamina (DOB, cápsula do
vento); 2-CB – 4-bromo-2,5-dimetoxianfetamina (nexus); 4-MTA – 4-metiltioanfetamina (flatiner);
DOM – 2,5-dimetoxi-4-metilanfetamina (STP). Esse último, sintetizado em forma de comprimidos de
10 mg, apresenta poder alucinógeno 100 e 30 vezes mais potente do que a mescalina e o LSD
(dietilamidado ácido lisérgico), respectivamente.

Observação

Mescalina é o alcaloide extraído de um cacto (Lophophora williamsii) e


que induz alucinações visuais.

As anfetaminas alucinógenas podem ser apresentadas em forma de pó de diversas cores devido a


impurezas, adulterantes e resíduos de solventes, na forma de cápsulas gelatinosas ou tabletes e papel
impregnado com a substância. A administração pode ser feita por vias oral e intravenosa ou por inalação.
Entre elas, a MDMA (ecstasy) merece destaque devido a sua ampla utilização.

Na década de 1970, a MDMA era utilizada para fins psicoterapêuticos e, a partir de 1980, passou a
ser usada de forma recreacional em festas de músicas eletrônicas (raves). O ecstasy é encontrado em
comprimidos de 50-150 mg, de diferentes cores e, normalmente, em uma de suas faces há impressos
ícones populares, figuras de desenhos animados, borboletas, entre outros; ainda, pode ser apresentado
em forma de cápsulas ou em pó.

Ao longo dos anos, as anfetaminas passaram a ser utilizadas por atletas, objetivando melhora no
desempenho físico, e por estudantes, motoristas, trabalhadores noturnos, profissionais da saúde, entre
outros, a fim de se manterem acordados e alertas por maiores períodos de tempo ou para aumentar a
capacidade de concentração e raciocínio.

Quando as anfetaminas são consumidas na forma de comprimidos ocorre rápida absorção oral,
a manifestação de seus efeitos é iniciada em 30 minutos e perdura por algumas horas (4-6 horas).
Possuem ampla distribuição pelo organismo, embora em maiores concentrações no cérebro devido aos
transportes especiais de penetração na barreira hematoencefálica.

A biotransformação das anfetaminas acontece no fígado, sendo 70% excretadas na urina em sua
forma inativa (metabólitos) e 30% inalterada. Por ser dependente do pH urinário, sua eliminação ocorre
melhor e mais rapidamente em urina ácida.

As anfetaminas agem como aminas simpatomiméticas em nível de receptores α e β adrenérgicos


e também como inibidoras da enzima monoaminoxidase (MAO), responsável pela oxidação dos
neurotransmissores noradrenalina, dopamina e serotonina, levando a uma intensa estimulação central
e da atividade motora. Os efeitos associados à utilização das anfetaminas em baixas concentrações são:
32
BIOMEDICINA FORENSE

sensação de bem-estar, melhora no humor, aumento da atividade, redução da fadiga, inquietude e insônia.
Já em altas concentrações, pode-se verificar hipertermia, hiperreflexia, disritmias cardíacas, hipertensão,
sudorese, midríase, convulsões, rabdomiólise, distúrbios respiratórios, ilusões paranoicas, delírio de
perseguição, alucinações visuais, auditivas, sensoriais e olfativas, podendo ocasionar morte súbita.

Saiba mais

Para obter mais informações sobre rabdomiólise, leia o artigo indicado


a seguir.

PORTAL PEBMED. Saiba como realizar avaliação e manejo de rabdomiólise.


Disponível em: https://pebmed.com.br/saiba-como-realizar-avaliacao-
e-manejo-da-rabdomiolise/. Acesso em: 26 ago. 2020.

Quando as anfetaminas são retiradas de usuários crônicos, estabelece-se a síndrome de


abstinência, caracterizada por apatia, depressão com tendência suicida, letargia, ansiedade, mialgias,
dores abdominais etc.

Nas análises toxicológicas para detecção das anfetaminas, inicialmente são realizadas técnicas de
triagem, como imunoensaios, CCD ou testes colorimétricos (reativo de Marquis e reativo de Simon) e, a
seguir, os exames confirmatórios (CG/EM – antes, é necessário preparar a amostra).

2.1.3 Drogas modificadoras

São drogas que atuam no SNC exercendo efeitos relacionados à distorção das atividades cerebrais,
podendo causar alucinações e perturbações em relação ao tempo e espaço. Não podem ser classificadas
nem como depressoras nem com estimulantes. Os principais exemplos serão descritos a seguir.

Maconha (cânhamo)

É uma droga de origem natural, extraída da planta Cannabis sativa, utilizada para fins terapêutico,
espiritual, recreacional e até na confecção têxtil (calçados, tecidos, fios, cordas etc.). É considerada
perturbadora do SNC e, dependendo das condições de uso, resulta em efeitos diversos.

Estudos demonstram que a planta Cannabis sativa é constituída por pelo menos 489 compostos
naturais, entre os quais 70 são canabinoides, predominantemente canabinol, canabidiol e
∆9-tetrahidrocanabinol (THC), esse último de interesse forense.

A concentração de THC e dos demais canabinoides na planta é variável e dependente das condições
ambientais de cultivo (fertilidade do solo, clima, temperatura, época da colheita, luminosidade,
nutrientes, água etc.), do seu período de desenvolvimento, das formas de preparo da maconha, do
modo de armazenamento da droga e processo de separação e secagem. As maiores concentrações

33
Unidade I

de THC são encontradas nas inflorescências e nas folhas superiores, em comparação às existentes nos
frutos, raiz e caule.

Existem diferentes preparações da planta para uso, as quais são descritas a seguir.

• Maconha, fininho, baseado, marijuana: corresponde ao preparado contendo várias partes da


planta seca (raiz, caule, folhas, fruto e inflorescência) e picada para ser fumado como cigarro
artesanal (de palha ou de papel), ao qual pode ser misturado tabaco ou crack. Nesse preparo há
uma concentração em torno de 0,5% a 5% de THC.

• Haxixe ou charas: compreende a resina extraída das inflorescências da planta; apresenta uma
coloração marrom-escura, consistência de pasta semissólida e um teor de THC de 10%-20%. Essa
forma de preparado é fumada em cachimbos.

• Óleo de haxixe: é um óleo negro e viscoso, extraído da planta ou de sua resina. Apresenta cerca
de 10% a 30% de THC em sua composição.

• Skunk, maconha de laboratório ou supermaconha: é um preparado da planta Cannabis sativa


cultivada em água (hidropônica), que propicia uma maior concentração do THC.

• Sinsemilla: preparação da droga constituída apenas de plantas femininas não fertilizadas.

O uso da maconha para fins terapêuticos, mais precisamente dos canabinoides (princípio ativo
da planta), ainda é condenado por muitos estudiosos por haver medicamentos que suprem tal
funcionalidade. Porém, em alguns países, o uso dos princípios ativos da planta na medicina vem abrindo
novas perspectivas para o tratamento de epilepsia e esclerose múltipla devido a suas propriedades
analgésica, broncodilatadora, anticonvulsivante e ao fato de atuar como relaxante muscular (canabidiol);
diminuir a pressão intraocular no glaucoma; se apresentar como antiemético em pacientes com câncer
submetidos a quimioterapia e estimular o apetite em pacientes anoréxicos com Aids.

Saiba mais

Vamos aprofundar os estudos sobre uso terapêutico do canabidiol na


epilepsia? Leia o artigo indicado a seguir.

CARVALHO, C. R. et al. Canabinoides e epilepsia: potencial terapêutico


do canabidiol. Vittalle: Revista de Ciências da Saúde, v. 29, n.1, p. 54-63, 2017.
Disponível em: https://periodicos.furg.br/vittalle/article/view/6292/4740.
Acesso em: 26 ago. 2020.

Já o uso recreacional da maconha se dá por via oral ou inalatória (fumada). Na via oral, o efeito
inicial é lento (30-60 minutos), estendendo-se por cerca de 2 a 5 horas, porém com uma menor

34
BIOMEDICINA FORENSE

intensidade. Quando a droga é fumada (via inalatória de administração), o início dos efeitos ocorre mais
rapidamente (somente alguns minutos após o uso), permanecendo por 2-3 horas, sendo, por isso, a via
mais utilizada pelos usuários.

Observação

O início rápido dos efeitos da maconha, quando fumada, é explicado


pelo fato de a pirólise (queima da droga) ativar o composto carboxilado na
posição 2 ou 4 (inativo) através da descarboxilação dessa região.

Apesar da maior utilização da maconha na forma fumada, a biodisponibilidade do princípio ativo


(THC) no organismo é baixa e dependente da dinâmica de fumar do usuário, pois em torno de 50% a 82%
do THC é perdido durante o processo de queima da droga e na fumaça não inalada.

Quando o THC é absorvido pelo organismo, 94% a 99% dele se ligam às proteínas plasmáticas, sendo
distribuído amplamente para todo o corpo, em especial para o cérebro. Ainda, devido a sua característica
lipofílica, o THC atravessa a barreira hematoencefálica e placentária, além de ser redistribuído para o
tecido adiposo, levando, assim, a uma diminuição dos níveis séricos.

A biotransformação do THC ocorre no fígado pelas enzimas citocromo P450. Inicialmente há


formação do metabólito ativo 11-hidroxi-∆9-tetrahidrocanabinol devido à hidroxilação do carbono
da posição 11, o qual, em etapa posterior, sofre oxidação da hidroxila, originando o ácido carboxílico
(9-carboxi-∆9-tetrahidrocanabinol), metabólito inativo, que se conjuga ao ácido glicurônico para ser
excretado na urina.

A eliminação do THC acontece pelas vias fecal (65%) e urinária (35%), podendo ser encontrado
nessas matrizes biológicas até 72 horas após o uso da droga.

Os efeitos da maconha são desencadeados pela interação do THC com os dois receptores
canabinoides endógenos: CB1 e CB2. O CB1 está localizado em diferentes regiões do SNC (córtex,
hipocampo, cerebelo e gânglios basais) e é responsável pelos efeitos cognitivos, pela aprendizagem e
memória e pelo equilíbrio e coordenação dos movimentos. Já o CB2 está presente em células do sistema
imunológico (monócitos e linfócitos T e B). A manifestação dos efeitos é dependente de personalidade,
expectativa e experiência do usuário em relação à droga, sua suscetibilidade, dose administrada, via de
administração e uso concomitante com outras drogas.

Entre os efeitos tem-se inicialmente euforia, agitação e hilaridade, seguido de um período de


reflexão, relaxamento e tranquilidade; além de taquicardia, boca e garganta seca, comprometimento
do equilíbrio, da coordenação, da atenção e da memória recente. Há alteração da percepção de tempo
e espaço, acentuação dos sentidos sensoriais e hiperemia das conjuntivas (olhos avermelhados).

O consumo de doses elevadas da droga pode desencadear no usuário alterações psíquicas (ansiedade,
confusão, irritabilidade, paranoia, alucinações, delírio, pânico, despersonalização, comportamento agressivo,
35
Unidade I

psicose tóxica, depressão etc.), insônia e náuseas. Já o uso contínuo e crônico da maconha está associado a
problemas cardiovasculares (insuficiência cardíaca congestiva, acidente vascular cerebral, hipertensão e
aterosclerose coronariana) e pulmonares (bronquite crônica obstrutiva, enfisema pulmonar, câncer de pulmão
etc.), bem como problemas sociais (diminuição do desempenho escolar e da produtividade no trabalho, acidentes
de trabalho, piora na relação familiar, entre outros) e a possiblidade do contato com outras drogas mais potentes.

Diferentes matrizes biológicas podem ser utilizadas nas análises toxicológicas forenses para
detecção do THC, como sangue, urina e cabelo. Tais amostras devem ser preparadas e acondicionadas
adequadamente. Para tanto, são usadas técnicas de extração líquido-líquido (ELL), extração em fase
sólida (SPE) e microextração em fase sólida (SPME), digestão, entre outras.

Como triagem para detecção de THC usam-se ensaios colorimétricos (reagente de fast blue salt B
e reagente de Mustapha-Levine), imunoensaios e CCD com intuito de excluir as amostras negativas.
A seguir, realizam-se técnicas de CG e CLAE com diferentes detectores (como UV, por exemplo)
acoplados à espectrometria de massa (EM), métodos esses empregados como confirmatórios, devido à
alta sensibilidade e especificidade.
A B

C D

Figura 5 – (A) Cromatograma após análise de amostra de maconha por Clae-UV, evidenciando a presença de THC e CBN.
(B) Espectro de massa do ∆9tetrahidrocanabidiol, evidenciando os principais fragmentos de íons (m/z 314, 299, 231, 41).
(C) Espectro de massa do canabinol, evidenciando os principais fragmentos de íons (m/z 295, 296, 310 e 238). (D) Espectro
de massa do canabidiol, evidenciando os principais fragmentos de íons (m/z 231, 232, 193 e 246)

Figura 6 – Cromatografia em camada delgada (CCD) com amostras de maconha

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BIOMEDICINA FORENSE

Dimetilamida do ácido lisérgio (LSD)

É uma droga semissintética, tendo como percursor o ácido lisérgico, alcaloide produzido pelo
metabolismo do fungo Claviceps purpurea. Ainda, o LSD pode ser produzido a partir da ergometrina ou
ergotamina, metabólitos alcaloides secundários do fungo.

O LSD pode ser encontrado na forma de selos impregnados pela substância (25-150 µg)
conhecidos como blotter paper, normalmente apresentando figuras impressas; na forma de
pequenos comprimidos (micropontos) e na forma líquida, podendo ser dissolvido em confeitos
açucarados, como balas e pirulito.

A B

Figura 7 – (A e B) Fotografias ilustrando selos contendo LSD apreendidos em Minas Gerais

Devido às formas de apresentação do LSD, a absorção da droga ocorre por via oral, mais
precisamente sublingual, tendo o início dos efeitos em 30-90 minutos após o uso e duração de 6 a 12
horas. Após absorção, a droga é biotransformada no fígado em metabólitos inativos (N-desmetil-LSD,
13-hidroxi‑LSD, 14-hidroxi-LSD, etilamida do ácido lisérgico - LAE, 2-oxo-LSD e o 2-oxo-3-hidroxi-
LSD) que são excretados na urina até 48 horas após o uso, juntamente a uma pequena parte da droga
inalterada (cerca de 1%).

Uma vez no organismo, o LSD irá interagir com receptores serotoninérgicos do tipo 5HT1 e 5HT2
e subtipo (5HT2A), provocando euforia, distorções sensoriais (ópticas, visuais, táteis), alucinações,
despersonalização, perda do tempo e espaço, quando em doses baixas. Por outro lado, quando o
LSD é usado em altas doses, o indivíduo apresenta agressividade, atos homicidas e suicidas e
comportamentos paranoicos.

Por não atuar no sistema de recompensa cerebral, o LSD não propicia síndrome de abstinência nem
dependência física. Porém, desenvolve tolerância na concentração de uso da substância e tolerância
cruzada com outros alucinógenos. Ainda, após uma única experiência de uso, o LSD propicia ao
indivíduo o evento de flashback, que consiste no surgimento repentino e indesejável dos sintomas
psíquicos vivenciados no primeiro contato com a substância. Essa variante dos efeitos da droga pode
ser observada em semanas ou até meses após a experiência com o LSD.

37
Unidade I

A detecção do LSD em amostras biológicas, como urina, é feita através da CCD (triagem) e das análises
instrumentais CLAE/UV e CG/EM (confirmatórias), realizadas após a preparação e condicionamento da
matriz biológica.

Observação

Tolerância cruzada é a capacidade exercida por uma droga de suprimir


as manifestações de dependência física produzidas por outra droga.

2.1.4 Drogas sintéticas

São substâncias químicas sintetizadas em laboratórios a partir de material manufaturado de


drogas, muitas vezes domésticas e clandestinas, que não apresentam substâncias naturais em sua
composição e atuam no SNC como modificadoras ou perturbadoras. Tais substâncias são denominadas
drogas de desenho (designer drugs) por apresentarem estrutura química e efeitos farmacológicos
semelhantes às drogas de origem natural. São frequentemente usadas em festas raves e night clubs
(club drugs ou date rape drugs) com o objetivo de diversão ou, ainda, para prática de crimes, como
furto e abuso sexual. A seguir, seguem alguns exemplos.

Fenciclidina (PCP)

Substância sintetizada para uso como anestésico veterinário, porém também utilizada como
droga de abuso. Normalmente é administrada por via oral, intravenosa ou intranasal (fumada com
outra droga), sendo que nas últimas duas vias a absorção é rápida até chegar ao cérebro, onde se
liga aos receptores do glutamato (NMDA ou N-metil-D-aspartato) e altera o sistema dopaminérgico,
levando a sensações de fuga da realidade e suicidas, distorções da noção de tempo, de espaço e de
imagens, alucinações, pânico, agressividade, taquipneia, taquicardia e hipertermia. Em altas doses
pode levar a um quadro de rabdomiólise, convulsões e morte.

O uso crônico da PCP resulta em tolerância, dependência e síndrome de abstinência, quando a


droga é retirada. Apresenta meia-vida de 17 horas e sua biotransformação dá origem a três metabólitos
(4-fenil-4-piperidinociclohexanol – PPC, 1-(1-fenilciclo-hexil)-4-hidroxipiperidina – PCHP e ácido
5-(N-(1-fenilciclo-hexil)-amino) pentanóico – PCA), que são excretados com maior eficiência em urina
ácida. A janela de detecção dos metabólitos da PCP na urina é de 7 a 8 dias após o uso da droga e de 2 a
4 semanas para aqueles que a utilizam de forma crônica. Para detecção, utiliza-se o teste colorimétrico
(reagente p-dimetilaminobenzaldeído) como triagem e CCD como confirmatório.

Ketamina

Substância normalmente usada como anestésico veterinário e humano. Entretanto, pode ser
utilizada como adulterante dos comprimidos de ecstasy e também como droga do estupro (rape drugs).
Nesse último caso, a substância é adicionada à bebida da vítima, por não possuir cheiro nem gosto,
provocando amnésia (esse ato criminal é conhecido como “boa noite, cinderela”).
38
BIOMEDICINA FORENSE

A ketamina está disponível na forma injetável, em pó e em comprimido e apresenta a mesma


toxicocinética da PCP, porém com efeitos menos pronunciados. Quando aspirada ou ingerida durante
uso recreacional, seus efeitos iniciam-se em 10 minutos e duram por volta de 30 a 45 minutos.

A droga interage com neurotransmissores (muscarínicos, nicotínicos, colinérgicos e glutamatérgicos)


através dos canais de NMDA e inibe a recaptação de dopamina, serotonina e noradrenalina, provocando
no indivíduo alteração de humor, sedação, distorções visuais, auditivas e sensações eróticas.

A ketamina causa dependência farmacológica e seu uso frequente pode determinar tolerância.
Sua meia-vida no organismo é de 2 a 3 horas, sendo biotransformada em norketamina e essa convertida
em dihidronorketamina para ser excretada pela urina; 90% da dose são eliminadas em até 72 horas.

Sua detecção é feita pelo método analítico CCD, utilizando-se como matrizes biológicas sangue,
urina, entre outras.

Ácido gama-hidroxibutírico (GHB)

É uma droga sintetizada como análoga ao neurotransmissor GABA com o objetivo de ultrapassar a
barreira hematoencefálica para fins anestésicos.

O GHB é encontrado em forma de pó que, quando dissolvido em bebidas, não interfere na cor, mas
resulta em um gosto levemente salgado. O maior risco relacionado ao uso do GHB é sua associação às
bebidas alcoólicas, pois potencializa o efeito depressor central.

A sua absorção é rápida e os efeitos duram entre 15 e 30 minutos. Quando o GHB é administrado
na concentração de 0,5 a 1,5 g provoca desinibição, sociabilidade e suave sensação de embriaguez;
em doses maiores, os efeitos se tornam mais pronunciados, levando a estimulação, euforia e uma
sensação de embriaguez acentuada; já acima de 4 g pode resultar em perda total da consciência, coma
profundo e morte.

Uma vez no organismo, o GHB é rapidamente biotransformado e, após 12 horas de sua administração,
não é mais encontrado na urina.

A detecção do GHB na matriz biológica de escolha deve ser feita por métodos quantitativos, como
CG/EM ou CLAE/EM, para que não ocorram erros de interpretação dos resultados obtidos, uma vez que
é produzido endogenamente e pode ser encontrado em níveis fisiológicos.

Derivados de piperazina

São drogas que possuem como estrutura básica a piperazina, livremente vendidas na internet
e utilizadas em substituição aos anfetamínicos em festas raves e night clubs. Podem ser utilizadas
na forma de pó, cápsulas e comprimidos, associadas a outras drogas psicoativas, como ecstasy
ou cocaína. As mais conhecidas são BZP (N-benzilpiperazina), MDBP (1-(3,4-metilenodioxibenzi)
piperazina), TFMPP (1-[3-(trifluoro-metil)fenil]piperazina), mCPP (meta-clorofenilpiperazina) e
39
Unidade I

MeOPP (1-(4-metoxifenil)piperazina). Quando a BZP e a TFMPP são misturadas, mimetizam o


mecanismo molecular do esctasy. Ainda, a mistura de quatro piperazinas em uma mesma droga,
conhecida como X4, é encontrada no mercado criminoso.

Entre tais drogas, a mais estudada é a mCPP. Sabe-se que seus efeitos estão relacionados à inibição da
receptação de serotonina, moderada liberação de dopamina e interações com neurônios serotoninérgicos
e com receptores adrenérgicos e dopaminérgicos. Seus efeitos se assemelham à euforia das anfetaminas
e alucinações do LSD.

Para detecção dessas drogas, é utilizado um teste de triagem colorimétrico (reagente de Simon), por
indicar a presença de aminas secundárias ou aminas heterocíclicas. Em seguida, deve-se realizar análises
instrumentais (CG ou CLAE).

Além das drogas de abuso descritas acima, a toxicologia forense é usada para detectar praguicidas,
gases tóxicos e toxicantes metálicos nas matrizes biológicas, por se tratar de substâncias responsáveis
por diversas intoxicações voluntárias e involuntárias e até mesmo pelas várias mortes suspeitas com que
os profissionais da área forense se deparam na rotina de trabalho.

2.1.5 Praguicidas

São produtos químicos utilizados com o intuito de prevenir, destruir ou controlar vetores de
doenças que afligem o ser humano e de pragas que prejudicam as lavouras. Foram desenvolvidos para
atuar contra grupos específicos de seres vivos (toxicidade seletiva) e compreendem uma variedade de
substâncias com diferentes grupos funcionais, finalidade e modos de ação (local ou sistêmico). Embora
esses produtos químicos apresentem toxicidade seletiva (por exemplo, raticidas para eliminar ratos), eles
possuem grau tóxico variável para o ser humano e riscos para o equilíbrio do meio ambiente.

Os praguicidas são classificados em biológicos, inorgânicos e orgânicos, sendo esses últimos


predominantes e subdivididos em grandes grupos, indicados a seguir.

Organoclorados

Compreende o grupo de compostos constituídos por inúmeros isômeros do hexaclorociclohexano e dos


ciclodienos. Apresentam-se na forma sólida (cristais), solúvel perante a maioria dos solventes orgânicos,
porém, insolúvel em água. Os principais representantes desse grupo são: diclorodifeniltricloroetano
(DDT), pentaclorofenol (PCF), ciclohexanos (BHC, lindane) e os ciclodienos (Aldrin, Endrin, Endosulfan).

Os organoclorados possuem grande estabilidade química (resistente às degradações químicas e


biológicas), motivo pelo qual se tornam compostos de alto poder residual (ou seja, que permanecem por
tempo prolongado no meio ambiente). Adicionalmente, apresentam propriedades físico-químicas como
alta solubilidade em lipídios, baixa solubilidade em água e alta capacidade de absorção em material
orgânico, propriedades que, juntas, permitem que os organoclorados se acumulem ao longo da cadeia
alimentar, mais precisamente nos tecidos ricos em gorduras dos seres vivos, provocando sérios problemas
no âmbito ambiental e de saúde pública.
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BIOMEDICINA FORENSE

A introdução desse grupo de praguicidas no organismo ocorre pelas vias cutânea (ocupacional),
digestiva (alimentos contaminados, suicídios e homicídios) e respiratória (intoxicação de trabalhadores) e
sua absorção acontece no trato gastrointestinal, devido a sua lipossolubilidade. Uma vez absorvidos pelo
organismo, a distribuição dos organoclorados ocorre por todo o corpo, porém as maiores concentrações
são verificadas nos tecidos gordurosos do abdômen, cérebro e fígado. Os organoclorados são excretados
na urina, após se conjugar com o ácido mercaptúrico.

As intoxicações por organoclorados podem ocorrer de forma aguda ou crônica. Na forma aguda,
o organismo absorve uma elevada quantidade do composto em uma única dose, sendo imediato o
aparecimento dos sinais e sintomas. Na forma crônica, acontece o acúmulo do praguicida de forma
gradual no organismo, levando a perda de peso, debilidade muscular, descoordenação motora,
ataxia, tremores, cefaleia, dor torácica, erupções cutâneas, anemia aplásica e lesões hepáticas, renais,
musculares e cardíacas.

De um modo geral, os mecanismos de toxicidade dos organoclorados estão relacionados com a


modificação do fluxo de íons sódio e potássio na membrana dos axônios, levando a alterações na
transmissão do impulso nervoso. Os ciclodienos, em especial, resultam em diminuição do GABA no SNC.

A intensidade dos sintomas depende da natureza do organoclorado, da via de administração, do


grau de exposição e do diluente utilizado. Inicialmente, surgem os sintomas gástricos, como náuseas,
vômitos, desconforto abdominal e diarreia e, em seguida, ocorrem as manifestações neurológicas,
como intensa cefaleia, tremores, parestesias, agitação psicomotora, vertigens, distúrbios de memória,
convulsões e até morte. Os sintomas são iniciados 30 minutos após a administração e podem perdurar
por até 6 horas após a intoxicação.

Os métodos analíticos empregados para a detecção dos organoclorados são CCD, CG/EM e CLAE/EM,
após preparação e condicionamento da amostra.

Organofosforados

São praguicidas que contêm um átomo de fósforo pentavalente central, ao qual se liga um átomo
de oxigênio ou de enxofre mediante dupla ligação. Esses compostos podem ser derivados do ácido
fosfórico ou pirofosfórico (Paraoxon Etílico e TEPP – tetraetilpirofosfato), tiofosforados (Parathion
Etílico, Malation etc.) e clorofosforados (DDVP – dimetil-2,2-diclorovnilfosfato etc). São encontrados
na forma líquida, apresentam coloração amarelada e cheiro desagradável, sendo insolúveis em água e
solúveis na maioria dos solventes orgânicos.

Os organofosforados, bem como os organoclorados, apresentam características semelhantes


de bioacumulação e de persistência no meio ambiente. Ainda, os organofosforados podem se
ligar ao flúor ou cianeto (gases), formando o gás sarin (0,isopropil-metilfluorfosfato) e o tabun
(0,etil‑N,N,dimetil‑cianetofosfato), que são extremamente neurotóxicos.

41
Unidade I

As vias de administração e absorção dos organofosforados se assemelham às dos compostos


organoclorados. Uma característica particular dos organofosforados é não se acumular no organismo
humano, sendo rapidamente degradados e excretados pela via urinária e, em parte, pelas fezes.

A biotransformação dos organofosforados ocorre por oxidação bioquímica (dessulfuração), clivagem


hidrolítica (enzimas microssômicas do fígado) e redução dos grupos nitros (via cromossomos hepáticos).

Os praguicidas organofosforados possuem elevada toxicidade sistêmica ao inibir o centro esterásico


da enzima acetilcolinesterase, impedindo o desdobramento da acetilcolina em colina e ácido acético.

Como efeitos dos organofosforados no organismo, temos: ansiedade e tensão, aumento do ritmo
respiratório e tosse, perda de apetite e náuseas, visão fraca, transpiração excessiva, micção frequente e
involuntária e pulso diminuído seguido de bradicardia, como manifestações precoces, e dificuldades de
concentração e de memória, rinorreia, secreção pulmonar excessiva e opressão torácica, vômitos, dores
abdominais e diarreia severas, miose e pupilas punctiformes sem reação, bloqueio auriculoventricular e
parada cardíaca, como manifestações tardias.

A detecção dos organofosforados se dá pelos mesmos métodos analíticos utilizados para a análise
dos organoclorados.

Carbamatos

Apresentam a propriedade de inibir a enzima colinesterase por competição (fixação reversível), uma
vez que possuem similaridade na estrutura molecular e na distribuição da polaridade com a acetilcolina.
São sólidos de coloração branca, pouco solúveis em água e solúveis na maioria dos solventes orgânicos,
instáveis em meio neutro e alcalino, tendo como principais representantes: aldicarb (Temik), carbofuran
(Furadam), propoxur (Baygon) e carbaril (Sevin).

Os carbamatos são derivados do ácido carbâmico, compostos esses com alta atividade inseticida,
baixa ação residual e baixa toxicidade a longo prazo.

A toxicocinética dos carbamatos se assemelha à dos organofosforados, embora a biotransformação


seja diferente, pois, no caso dos carbamatos, há hidroxilação do grupo metil ligado ao nitrogênio
(hidrólise), tornando-o menos tóxico.

Além da ação anticolinérgica, os carbamatos exibem outros efeitos bioquímicos, como diminuição
da atividade metabólica do fígado, da glândula tireoide e da síntese de fosfolipídios, e farmacológicos,
como alteração dos níveis de serotonina no organismo.

A sintomatologia resultante da intoxicação pelos carbamatos é semelhante à demonstrada pelos


compostos organofosforados, porém ocorre em menor intensidade e duração, além de ser dependente
da via de exposição (oral – efeitos em 15/30 minutos; inalado – rapidamente; dérmica – demorada),
do produto e da dose. As manifestações clínicas iniciais são as muscarínicas (náuseas, vômitos, dores
abdominais, diarreia, broncoespasmo, dificuldade de respirar, salivação, sudorese, incontinência urinária,
42
BIOMEDICINA FORENSE

bradicardia, hipotensão, entre outras), seguidas de acometimento do SNC (inquietação, cefaleia, tremores,
convulsões, coma etc.) e, por fim, as nicotínicas (cãibras, paralisia muscular, hipertensão, taquicardia,
hiperglicemia etc.). Normalmente, o óbito ocorre por insuficiência respiratória devido à broncoconstrição,
hipersecreção pulmonar, paralisia da musculatura respiratória e ação no centro respiratório.

Para identificar os praguicidas carbamatos utiliza-se, na rotina laboratorial, a CCD, CG/EM e CLAE/UV/ES,
após preparação e condicionamento das amostras.

Tempo de retenção: Aldicarb 3,6 min.


Carbofuran 5,6 min.
Carbaryl 6,7 min.
Propoxur 5,2 min.

Figura 8 – Ilustrativa do cromatograma por CLAE para carbamatos obtidos no IC/MG

Piretroides

São compostos sintetizados a partir do ácido crisantêmico e das ciclopentalonas, utilizados


para controle de agentes patogênicos na agricultura e de uso domiciliar no combate aos insetos.
Apresentam-se na forma de espirais, sprays ou vaporizadores, sendo os principais: aletrina, deltametrina,
permetrina e cipermetrina.

A toxicocinética e toxicodinâmica dos piretroides são parecidas com as dos praguicidas já descritos
anteriormente e sua detecção é feita por CCD, CG/EM e CLAE/UV/ES, também após preparação e
condicionamento das amostras.

Rodenticidas (raticidas)

Usados no combate de roedores. São encontrados como formulação líquida à base de arsênico ou
fluoracetato de sódio, em pó ou granulados à base de estricnina ou aldicarb (“chumbinho”), entre outros,
todos de comercialização proibida no Brasil devido a toxicidade e inespecificidade. Somente os raticidas
contendo compostos derivados da cumarina podem ser vendidos no país.

43
Unidade I

Os raticidas cumarínicos apresentam ação anticoagulante e são comercializados na forma de iscas


(granulado, pó, pellets ou blocos parafinados). São raticidas de ação crônica, por promover a morte do
roedor após alguns dias da ingestão; derivados da indandiona (pindona, difacinona etc.) ou da cumarina
(cumafeno – warfarin, cumacloro, difenacuma, bromadiolone).

Os raticidas cumarínicos são amplamente utilizados por apresentarem elevada margem de segurança;
a concentração da substância ativa é baixa e, em casos de intoxicação, é possível utilizar a vitamina K1
como antídoto. Uma vez ingeridos, a absorção é rápida e exercem ação inibitória da síntese hepática da
protrombina e da produção dos fatores de coagulação (II, VII, IX e X) dependentes da vitamina K, cujos
efeitos ocorrem entre 24 e 48 horas após a ingestão. Normalmente, os raticidas cumarínicos causam
manifestações gastrointestinais (vômitos e cólicas abdominais).

A CLAE/UV/MS é o método analítico de escolha para identificação desses compostos, cujos princípios
ativos se encontram em baixíssimas concentrações (0,005% p/p).

O raticida estricnina é derivado de um alcaloide extremamente tóxico, extraído das sementes da


árvore Nux vômica. É encontrado na forma de pó brando cristalino, insolúvel em água e pouco solúvel
em solventes orgânicos.

Após ingerida, a estricnina é rapidamente absorvida no trato gastrointestinal e distribuída nos


tecidos, sendo encontrada em maior concentração no fígado e rins. A metabolização ocorre no fígado e
sua excreção é feita pela urina, na qual pode-se encontrar cerca de 2% a 20% da estricnina inalterada,
ou seja, não metabolizada.

Quanto à toxicodinâmica, a estricnina atua como bloqueadora dos receptores glicina (antagonismo
competitivo), presentes na medula espinhal, inibindo-os e, consequentemente, levando ao aumento
da transmissão de sinais nervosos, resultando em convulsões generalizadas e excitação dos músculos
esqueléticos até provocar a morte do indivíduo intoxicado por parada respiratória.

Para evidenciação da estricnina em amostras biológicas, podem ser empregados teste colorimétrico
(reagente de Marquis) e CCD como triagem e CG/EM para confirmação.

O fluoracetato de sódio pode ser sintetizado e se apresenta na formulação de pó incolor, inodoro e


insípido, solúvel em água e insolúvel na maioria dos solventes orgânicos.

Quando ingerido, atua bloqueando o ciclo de Krebs, pois interage com a acetil-coenzima na presença
de ATP, que, por sua vez, reage com oxalacetato e água, levando a depleção de energia, acúmulo de
citrato (no miocárdio e SNC), lactato e queda do pH sanguíneo, resultando em parada da respiração
celular oxidativa e acúmulo de amônia na circulação. Assim, como resultado da ação do fluoracetato
de sódio no organismo, há acidose metabólica, seguida de problemas cardiovasculares e neurológicos,
podendo ocasionar morte por parada respiratória.

Para identificação do fluoracetato de sódio, utiliza-se a CG/EM, após preparação e condicionamento


das amostras.
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2.1.6 Gases tóxicos

Os gases são classificados de acordo com seus efeitos perante o organismo, conforme exposto a seguir.

Gases irritantes

São gases que, quando em contato direto com tecidos vivos, afetam trato respiratório, pele e olhos,
sendo capazes de estimular o processo inflamatório. São divididos em:

• Irritantes primários (ação local): podem ser altamente solúveis em água e capazes de atingir
as vias respiratórias, como: ácido sulfúrico, ácido clorídrico, amônia, formaldeído e soda cáustica;
podem apresentar moderada (exemplo: anidrido sulfuroso e cloro) ou baixa solubilidade em
água (exemplo: ozônio, óxidos nitrosos e fosgênio) e acometerem os pulmões; ou, ainda, podem
ser gases de baixa solubilidade que atuam como irritantes atípicos das vias respiratórias (como
acroleína e gases lacrimogêneos).

• Irritantes secundários (ação sistêmica): inicialmente provocam uma irritação primária nas
mucosas das vias respiratórias e conjuntivas e, após absorção, são distribuídos para outros sítios
do corpo, como sistema nervoso e respiratório (exemplo: gás sulfídrico).

Gases asfixiantes

Representados por substâncias químicas que propiciam a deficiência ou privação de oxigênio do


organismo, sem a interferência direta no mecanismo da respiração. Esses gases se dividem em:

• Gases asfixiantes simples (gases inertes): deslocam o oxigênio do ar e provocam asfixia pela
diminuição da concentração de O2 no ar inspirado, como: etano, metano, propano, butano, GLP,
acetileno, nitrogênio, hidrogênio, hélio e dióxido de carbono.

• Gases asfixiantes químicos: interferem no transporte do oxigênio pelos tecidos, levando a uma
anoxemia tissular, como: monóxido de carbono, ácido cianídrico (cianeto) e anilina.

Gases anestésicos

Provocam depressão do SNC, levando à perda de consciência, parada respiratório e morte.


São classificados em:

• Gases anestésicos primários: produzem apenas o efeito anestésico. Exemplos: aldeídos, cetonas,
ésteres e os hidrocarbonetos alifáticos (butano, propano, eteno).

• Gases anestésicos de efeitos sobre as vísceras: provocam danos no fígado e rins. Exemplos:
tricloroetileno, tetracloreto de carbono e percloroetileno.

45
Unidade I

• Gases anestésicos de ação sobre o sistema nervoso: por serem solúveis em água, apresentam
eliminação lenta do organismo e atuam no sistema nervoso. Exemplos: álcool etílico e metílico,
dissulfeto de carbono, acetatos de etila e metila.

• Gases anestésicos de ação sobe o sistema formador do sangue: gases que se acumulam na
medula óssea e sistema nervoso. Exemplos: benzeno, tolueno e xileno.

• Gases anestésicos de ação sobre o sangue e o sistema circulatório: são gases pertencentes
ao grupo dos nitrocompostos de carbono que alteram a hemoglobina. Exemplos: nitrotolueno,
nitrito de etila, toluidina e nitrobenzeno.

Gases lacrimogêneos

Provocam irritação transitória nos olhos e/ou aparelho respiratório (efeitos periféricos) e, devido a
tal característica, são utilizados para dispersão e controle de distúrbios públicos (multidões). Quando
em altas concentrações, provocam irritação e queimaduras nas vias superiores e, dependendo do
tempo de exposição, podem levar à morte. Como exemplos, temos: 1-cloroacetofenona (agente CN),
ortoclorobenzilmalonitrila (agente CS) e 8-metil-N-vanilil-6-nonenamida (agente OC), utilizado como
“spray de pimenta”.

Os métodos analíticos empregados para a detecção desses gases em amostras biológicas são CG/MS,
CG/DIC, CG com detector de condutividade elétrica e CLAE/UV.

Entre o vasto universo de gases, a toxicologia forense se restringe à análise daqueles de maior
interesse da criminalística, descritos a seguir, por provocarem intoxicações acidentais ou propositais
(suicídio e homicídio), podendo levar à morte.

Monóxido de carbono (CO)

É um gás incolor, inodoro, insípido, com baixa solubilidade em água, alto poder de difusão e resultante
da combustão incompleta de compostos que possuem carbono em sua estrutura, normalmente causando
intoxicações em ambientes fechados ou mal ventilados (incêndios). Ainda, o CO pode ser formado na
queima da gasolina em veículos automotores, na queima do gás GLP, nos cigarros e charutos etc.

O CO é tido como um gás antimetabólito por combinar-se de forma reversível com a hemoglobina,
formando a carboxihemoglobina, a qual impede o transporte de oxigênio aos tecidos, resultando
em anóxia tecidual. A exposição ao CO e a formação da carboxihemoglobina também determinam a
saturação da mioglobina devido à redução de oxigênio no nível do miocárdio.

As intoxicações por CO se classificam em:

• Subaguda: quando ocorre a inalação de grande quantidade do gás, levando à morte imediata por
síncope respiratória ou circulatória (inibição do centro bulbar).

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BIOMEDICINA FORENSE

• Aguda: quando se têm transtornos no sistema nervoso (vertigens, dor de cabeça) e impotência
muscular (paralisação dos membros inferiores se propagando para todo o corpo) após inalação
de uma concentração moderada de CO, seguidos de coma e morte caso o indivíduo continue
a inspirar o gás.

• Crônica: quando ocorre anóxia repetida, resultando em anemia devido à exposição progressiva
e prolongada das hemácias ao gás, além de dores de cabeça intensas e distúrbios psíquicos
(irritabilidade e emotividade exagerada).

Vítimas fatais de intoxicação por CO apresentam lábios e mucosas rosadas, órgãos e tecidos internos
avermelhados e sangue bastante fluido, de coloração vermelho brilhante.

Figura 9 – Fragmento de fígado em caso de intoxicação fatal por monóxido de carbono


(dosagem de HbCO foi superior a 60%). Note a coloração mais rosada que a habitual

Para detecção do CO no sangue, pode-se verificar a concentração de carboxihemoglobina por testes


colorimétricos ou espectroscopia de absorção na região do infravermelho (NDIR), porém as melhores
técnicas a serem empregadas são CG/DIC e CG/DCT.

Dióxido de nitrogênio (NO2)

Originado em explosões, veículos automotores, indústrias, incêndios ou da decomposição de produtos


orgânicos, apresenta-se como um gás mais denso que o ar, incolor (quando em baixa concentração) ou
de coloração marrom-amarelada (quando em alta concentração). Quando em contato com o ar, o NO2
forma ácidos corrosivos aos tecidos humanos.

Quando inalado, afeta os pulmões provocando dispneia, tosse, taquicardia, cianose, coma e até a morte.

Os melhores métodos analíticos utilizados para determinação do NO2 são a espectrometria de


quimiluminescência (reagente de Griess-Saltzman) e espectroscopia de absorção óptica diferencial (DOAS).

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Unidade I

Metano (CH4)

Gás incolor, inodoro e mais leve que o ar. É produzido durante processos de fermentação e putrefação
e, quando combinado ao O2 a uma temperatura de 67 °C, forma uma mistura explosiva.

O CH4 apresenta baixa toxicidade, porém a inalação de vapores desse gás pode causar vômitos, dores
de cabeça, tonturas, hipersalivação e arritmias cardíacas. Ainda, o contato com o CH4 liquefeito leva a
ulcerações, formigamento, falta de sensibilidade e queimaduras locais.

O referido gás pode ser analisado por NDIR e por CG/DIC.

Sulfeto de hidrogênio (H2S)

Apresenta maior densidade do que o ar, é altamente tóxico, inflamável (em pressão e temperatura
ambiente) e incolor; origina-se nos processos vulcânicos e de putrefação e como subproduto de
processos químicos.

Quando inalado, o H2S pode causar irritação em todo o trato respiratório, inflamações oculares,
fotofobia, edema palpebral, além de perda súbita de consciência, convulsão e morte, dependendo
da concentração.

Para detecção do H2S, utilizam-se espectrofotometria (análise colorimétrica), CG/DIC, CG/MS, CG


com detector fotométrico de chama (FPD) ou detector de fotométrico de chama pulsada (PFPD) ou
detector de emissão atômica (AED) e, ainda, espectroscopia de fluorescência molecular.

Dióxido de enxofre (SO2)

É um gás incolor, tóxico, de odor asfixiante (concentração de 3-5 ppm), não inflamável (em pressão e
temperatura ambiente) e proveniente da queima de combustíveis fósseis e atividades industriais (refino
do petróleo, metalurgia e produção de cimento) e da atividade vulcânica.

Seus efeitos, quando em altas concentrações no organismo, são queimadura das vias respiratórias,
inflamação dos tecidos, bronquite aguda e crônica, hemorragia e necrose.

O SO2 pode ser detectado pelos métodos do tetraclomercurato (TCM) e da pararosanilina, do


acidimétrico e do condutivimétrico. Porém, CG/DIC e CG/FPD são metodologias mais sensíveis,
específicas e seguras.

Ácido cianídrico (HCN)

Gás incolor, extremamente volátil e com forte cheiro de amêndoas amargas. Quando em sais, é
chamado de cianeto; pode ser encontrado nas sementes de algumas frutas (maçã, pêssego, ameixa) e
em raízes (mandioca). Atualmente, é utilizado como praguicida, em processos de purificação do ouro,
na revelação de fotografias e em processos químicos.
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BIOMEDICINA FORENSE

Os cianetos podem ser absorvidos pelas vias inalatória, oral e dérmica, sendo distribuídos para todo
o corpo rapidamente por se ligarem às proteínas plasmáticas. No organismo, apresentam meia-vida
de 20 a 60 minutos, onde os íons cianetos se combinam com o ferro da hemoglobina, bloqueando a
recepção do oxigênio pelo sangue e, consequentemente, inibindo a oxigenação celular, principalmente
do coração e cérebro. Assim, os efeitos da intoxicação por HCN são hipóxia, seguida de hipoventilação
e diminuição do debito cardíaco, até o estágio de depressão respiratória ou parada cardiorrespiratória.

A detecção se dá por métodos colorimétricos (reações com solução de nitrato de prata, com
solução de sulfato de ferro II e com solução de nitrato de mercúrio I). Ainda, pode ser empregado o
sistema de análise por injeção em fluxo (FIA) com detecção espectrofotométrica e amperométrica ou
potenciométrica.

2.1.7 Toxicantes metálicos

A maioria dos metais pesados (que apresentam elevada massa e número atômicos) possui elevada
afinidade com o oxigênio, originando os óxidos metálicos, e com o enxofre, formando os sulfetos.
A toxicidade no organismo é dependente de fatores como: interação com outros metais, formação de
complexos com proteínas, estilo de vida, idade do indivíduo, forma química do metal, entre outros.

Os principais metais de interesse forense são descritos a seguir.

Arsênio (As)

Os sais de arsênio têm como via de administração principal a oral, normalmente através da
ingestão de alimentos e água contaminados com pesticidas, herbicidas e raticidas, contendo arsênio
em sua composição. A ingestão pode ocorrer de forma acidental ou intencional (em casos de
suicídios e homicídios).

O As é facilmente absorvido por todas as mucosas e região parenteral devido a sua solubilidade
e, uma vez no interior do organismo humano, localiza-se inicialmente na corrente sanguínea (fração
eritrocitária) e, em seguida, se deposita nos tecidos, principalmente hepático, renal e pulmonar. Ainda,
pode se depositar nos cabelos e ossos, nos quais permanece por longos períodos (anos).

A biotransformação do As no organismo ocorre por processos oxidativos, resultando na forma


pentavalente, que é excretada pelo sistema urinário em proporções maiores que o composto inalterado.

Para a detecção do As utilizam-se diversos métodos analíticos, como de via úmida – testes
colorimétrico e de precipitação (reação com gás sulfídrico, reação com nitrato de prata, reação com
cloreto de estanho e ácido clorídrico, ensaio de Gutzeit, ensaio de Fleitmann, ensaio de Reinsch) e
técnicas instrumentais (espectrometria de absorção atômica com atomização eletrotérmica – ETAAS,
espectrometria de massa com fonte de plasma acoplado indutivamente – ICP/MS, espectrometria de
emissão óptica por fonte de plasma acoplado indutivamente – ICP/OES, entre outros).

49
Unidade I

Observação

Os testes analíticos qualitativos podem ser realizados por via úmida


(quando as amostras são solubilizadas) ou por via seca (quando as amostras
são utilizadas em estado sólido).

Chumbo (Pb)

É encontrado no ambiente como elemento natural. Quando no organismo, o Pb não desempenha


nenhuma função fisiológica e caracteriza intoxicação exógena. A ação cumulativa provoca intoxicação
crônica, denominada saturnismo.

As principais vias de administração do Pb são respiratória (exposição ocupacional) e oral


(contaminação de alimentos e água). Após a absorção pelo organismo, é distribuído pelo sangue para
os tecidos moles; na forma mineralizada, se deposita nos ossos. Sua excreção é feita pela urina e, em
menor concentração, pelas fezes.

A exposição aguda ao chumbo provoca sede intensa, sabor metálico na boca, inflamação
gastrointestinal, vômitos e diarreia. Já a exposição crônica propicia irritabilidade, dor de cabeça e
perda de memória, quando atua sobre o SNC, e deficiência dos músculos extensores, quando age no
sistema periférico.

A detecção do Pb, em diferentes amostras, se faz por testes de precipitação – via úmida
(reação com ácido clorídrico diluído, reação com gás sulfídrico em meio neutro ou ligeiramente
ácido, reação com solução de amônia, reação com hidróxido de sódio, reação com ácido sulfúrico
diluído, reação com iodeto de potássio e reação com carbonato de sódio) e instrumental (ICP/MS –
devido a sua alta sensibilidade e precisão).

Cádmio (Cd)

Trata-se de um dos metais mais tóxicos entre os que são usados como contaminantes de alimentos e de
ambiente. O Cd não é encontrado livre na natureza, apenas combinado com zinco, ferro, chumbo e cobre,
originários da indústria de mineração, fundição, produção e uso de fungicidas e fertilizantes fosfatados.

As vias de administração do Cd são a inalatória (exposição ocupacional) e a oral (alimentos e água


contaminados). A intoxicação aguda resulta em náuseas, vômitos, diarreia, salivação excessiva, contração
abdominal, edema pulmonar e irritação do trato respiratório; já a crônica pode levar a enfisema e fibrose
pulmonar e falência renal com depressão cardiopulmonar, acidose metabólica e morte, uma vez que o
cádmio é acumulativo no organismo.

Os métodos analíticos empregados para a determinação do Cd são testes de precipitação – via


úmida (reação com sulfeto de hidrogênio, reação com solução de amônia e reação com hidróxido de
sódio) e espectrometria de emissão atômica por plasma acoplado indutivamente – ICP/AES.
50
BIOMEDICINA FORENSE

Mercúrio (Hg)

É o único metal na forma líquida quando em condições de pressão e temperatura normais;


extremante volátil, forma vapor incolor e inodoro. Pode ser encontrado no meio ambiente como
compostos inorgânicos e sais (associação com outros elementos químicos), na produção de cloro e soda
cáustica (eletrólise), em equipamentos elétricos e eletrônicos (baterias, retificadores, interruptores etc.),
aparelhos de controle (termômetro, barômetro etc.), tintas (pigmentos), amálgama dentária, fungicidas,
lâmpadas de mercúrio, entre outros.

O Hg pode ser introduzido no organismo por via oral, através de água e alimentos contaminados, ou
por via inalatória, através da qual atravessa a membrana alveolar, chegando ao fígado e rins pelo sangue.

A intoxicação por Hg causa desde efeitos brandos, como febre, calafrios, dispneia, cefaleia, diarreia,
até efeitos severos, como edema pulmonar, enfisema, pneumomediastino e morte.

Para sua detecção, podem ser utilizados métodos de via úmida – precipitação (reação com ácido
clorídrico diluído, reação com gás sulfídrico em meio neutro ou ligeiramente ácido, reação com solução
de amônia, reação com hidróxido de sódio, reação com cromato de potássio, reação com iodeto de
potássio e reação com carbonato de sódio), colorimétrico (reagente de ditizona) e técnicas instrumentais
(ETAAS, ICP/MS, ICP/OES, HPLC/UV, entre outros).

Alumínio (Al)

Devido a sua alta reatividade, o Al não é encontrado na forma livre, apenas combinado com outros
elementos. Normalmente, está presente em concentrações ideais nos vários tecidos humanos, como
pulmões, ossos, pele, nódulos linfáticos, glândulas suprarrenais e paratireoides, SNC, entre outros.

A exposição ocorre pelo ar, água e alimentos contaminados, além de alguns medicamentos (antiácidos
e analgésicos). Após absorvido e presente na corrente sanguínea, parte do Al é eliminada na urina e
outra parte é excretada nas fezes.

Os métodos de detecção do Al em materiais biológicos são as técnicas de via úmida – precipitação


(reação com hidróxido de sódio, reação com sulfeto de amônia e reação com fosfato de sódio) e as
instrumentais (ETAAS, ICP/MS e ICP/AES).

Cromo (Cr)

Metal duro, brilhante, de coloração cinza-prata, muito utilizado em ligas, como o aço inoxidável.
Dessa forma, é encontrado nas indústrias de galvanoplastia, soldagens, produção de ligas ferro-cromo,
curtume etc. Está presente na natureza na forma trivalente e hexavalente. A forma trivalente do Cr é
encontrada naturalmente no organismo humano como traços e exerce importantes papéis biológicos,
como participação no metabolismo de açúcares, entretanto, a forma hexavalente, gerada em processos
industriais, é extremamente tóxica.

51
Unidade I

A absorção do Cr pode ocorrer por inalação, ingestão e via dérmica. Uma vez na circulação,
é distribuído para vários tecidos, predominantemente nos pulmões, onde fica retido e causa graves
lesões. Ainda, a exposição ao cromo pode provocar efeitos cutâneos, nasais, broncopulmonares, renais,
gastrointestinais e carcinogênicos. A excreção se dá pela urina, após as primeiras horas de exposição.

Para determinação do Cr são utilizadas técnicas de via úmida – precipitação (reação com hidróxido
de sódio, reação com solução de amônia, reação com carbonato de sódio, reação com sulfeto de amônia
e reação com fosfato de sódio) e as instrumentais (ETAAS, ICP/OES e a espectrometria de absorção
atômica com chama – FAAS).

Manganês (Mn)

Metal cinza, duro, quebradiço e insolúvel em água, está presente na natureza na forma combinada
(óxidos, carbonatos e silicatos de manganês) e possui diversas aplicações industriais, como fabricação de
fósforos, pilhas secas, esmaltes, fertilizantes, fungicidas, catalisadores, vidros, tintas, cerâmica, materiais
elétricos, entre outras.

Naturalmente, o Mn encontra-se no corpo humano em pequenas concentrações. Porém, em elevadas


concentrações, afeta o SNC provocando excitação psicomotora, irritabilidade, déficit de memória,
insônia, anorexia, salivação, entre outros sintomas neuropsíquicos.

A detecção do manganês pode ser realizada através de métodos de via úmida – precipitação (reação
com hidróxido de sódio, reação com solução de amônia, reação com sulfeto de amônia e reação com
fosfato de sódio) e FAAS, ETAAS e ICP/OES.

2.1.8 Fundamentos analíticos

Com relação aos fundamentos analíticos, um tema importante a ser abordado nesse momento é o
da seleção da matriz biológica para análise.

Seleção da matriz biológica para análise

A seleção da matriz biológica para as análises toxicológicas forenses é feita considerando-se a


estabilidade do analito a ser identificado e/ou quantificado (características físico‑químicas), a forma
e a concentração do analito nos diferentes fluidos e materiais biológicos e os possíveis e potenciais
contaminantes da amostra de escolha. Portanto, cada matriz biológica apresenta peculiaridades,
vantagens e desvantagens.

Ainda em relação à escolha da matriz biológica para as análises toxicológicas forenses, é necessário
conhecer o fenômeno que se pretende investigar: por exemplo, se se trata de suicídio, homicídio ou
morte acidental e o tipo de exposição (recente ou pregressa). A exposição recente pode ser decorrente da
utilização do toxicante uma única vez ou várias vezes em um período curto de tempo (inferior a 24 horas),
já a pregressa caracteriza uso do toxicante há semanas, meses ou anos anteriores à análise.

52
BIOMEDICINA FORENSE

Em casos de post mortem, apesar da grande disponibilidade de materiais e fluidos biológicos para
as análises, a escolha deve ser feita com base no histórico do caso. Entretanto, quando tal informação
não é fornecida, opta-se pela coleta de diversas matrizes biológicas, visando identificar o maior número
possível de toxicantes responsáveis por intoxicações. Nesses casos de post mortem sem o histórico do
analito a ser pesquisado, sugere-se seguir as diretrizes determinadas pela Sociedade de Toxicologia
Forense – SOFT (Society of Forensic Toxicologists) e pela Academia Americana de Ciências Forenses –
AAFS (American Academy of Forensic Sciences), para escolha do tipo e da quantidade das matrizes a
serem coletadas. Sempre que possível, o sangue, a urina e fragmentos de fígado devem ser coletados
para as análises toxicológicas forenses, porém outros fluidos e materiais biológicos também podem ser
utilizados, conforme demonstrado no quadro a seguir.

Quadro 1 – Fluidos e materiais biológicos em casos de post mortem

Objetivo da Matriz(es) biológica(s) Amostragem


análise
5 ml em tubo tipo Vacuntainer contendo EDTA ou oxalato e
Dosagem alcoólica (Convencional) Sangue fluoreto ou citrato de sódio
(alcoolemia) (Não convencional) Humor vítreo 2-3 ml em tubo tipo Vacuntainer com fluoreto de sódio ou a seco
(Convencionais) Sangue 40 ml em frasco plástico lacrado
Urina 40 ml ou quantidade disponível em frasco plástico lacrado
Conteúdo estomacal 30-50 ml ou volume disponível em frasco plástico lacrado
Drogas de abuso Fragmentos de fígado 100 g em frasco plástico lacrado
e/ou fármacos (Não convencionais) Humor vítreo 2-3 ml em tubo tipo Vacuntainer com fluoreto de sódio ou a seco
Cabelo 200 mg ou quantidade disponível em frasco plástico lacrado
Unha 100-200 mg ou quantidade disponível em frasco plástico lacrado
Larvas 200 mg ou quantidade disponível em frasco plástico lacrado
(Convencionais) Sangue 40 ml em frasco plástico lacrado
Praguicidas Conteúdo estomacal 30-50 ml ou volume disponível em frasco plástico lacrado
(Não convencional) Larvas 200 mg ou quantidade disponível em frasco plástico lacrado
(Convencionais) Sangue 40 ml em frasco plástico lacrado
Urina 40 ml ou quantidade disponível em frasco plástico lacrado
Substâncias Fragmentos de cérebro 100 g em frasco plástico lacrado
voláteis (solventes Fragmentos de pulmão 100 g em frasco plástico lacrado
orgânicos),
drogas de abuso e (Não convencionais) Humor vítreo 2-3 ml em tubo tipo Vacuntainer com fluoreto de sódio ou a seco
fármacos fumados Cabelo 200 mg ou quantidade disponível em frasco plástico lacrado
Unha 100-200 mg ou quantidade disponível em frasco plástico lacrado
Larvas 200 mg ou quantidade disponível em frasco plástico lacrado
(Convencionais) Conteúdo estomacal 30-50 ml ou volume disponível em frasco plástico lacrado
Agentes metálicos
(exemplo: arsênico, Fragmentos de rins 100 g em frasco plástico lacrado
chumbo, mercúrio, (Não convencionais) Cabelo 200 mg ou quantidade disponível em frasco plástico lacrado
cádmio etc.)
Unha 100-200 mg ou quantidade disponível em frasco plástico lacrado
Cianeto e CO (Convencional) Fragmentos de baço 100 g em frasco plástico lacrado

53
Unidade I

Como matriz biológica alternativa em cadáveres politraumatizados, carbonizados, exumados e em


putrefação, utiliza-se o humor vítreo por ser uma amostra menos propensa a contaminações e/ou
decomposição em relação a outros materiais e fluidos biológicos (exemplo: sangue). Ainda, em casos em
que o corpo se encontra em avançado estado de putrefação (ausência de fluidos e materiais biológicos
adequados), podem-se coletar e analisar as larvas que se alimentam do organismo morto, a fim de se
detectar toxicantes; tal área de estudo é denominada entomotoxicologia.

Figura 10 – Coleta de amostra de humor vítreo durante exame necroscópico

Nos indivíduos vivos, as matrizes biológicas de escolha para as análises toxicológicas forenses são
o sangue, que evidencia se o indivíduo estava sob efeito da substância pesquisada no momento do
fato, e a urina, que permite verificar após alguns dias se o indivíduo fez uso de tal substância, através
da detecção do próprio analito de interesse e/ou de seus metabólitos, possibilitando estabelecer uma
correlação entre ambos materiais biológicos para a elucidação do caso.

Portanto, as amostras de sangue e/ou seus derivados (soro e plasma) são de extrema importância
nas análises toxicológicas forenses, pois possibilitam correlacionar os efeitos das substâncias químicas
no organismo com os níveis encontrados. Assim, a detecção da substância química, juntamente
ao conhecimento de sua toxicocinética e toxicodinâmica, levam à interpretações como: momento
do uso, quantidade administrada aproximada e possíveis alterações fisiológicas e/ou psíquicas
causadas pelo toxicante.

Quanto à urina, também corresponde a um fluido biológico muito utilizado na toxicologia forense
por se tratar de uma matriz com menor número de interferentes endógenos em indivíduos sadios
(sem patologias), além de apresentar níveis mais altos da substância química e/ou seus produtos de
biotransformação (metabólitos) pesquisados. É o material biológico de escolha para triagem (screening)
toxicológica, utilizando-se imunoensaios e/ou análises cromatográficas. No entanto, existem alguns
inconvenientes associados à escolha da urina como amostra para as análises forenses, pois fatores como
variação na secreção de hormônio antidiurético, quantidade de líquido ingerido e/ou perdido por outras
vias podem alterar o volume urinário e, consequentemente, a real concentração do analito pesquisado.
Adicionalmente, corresponde a uma amostra facilmente adulterada, uma vez que a coleta assistida não
é comumente praticada, embora recomendada.
54
BIOMEDICINA FORENSE

Existem outras opções de fluidos e materiais biológicos, como o mecônio (fezes do recém-nascido,
expelidas nas primeiras 12 horas de vida). Através dessa matriz é possível determinar o uso de drogas
ilícitas e/ou de outras substâncias químicas pela mãe durante a gestação e, consequentemente, a
explicação para possíveis alterações físicas e psíquicas do bebê. Outros fluidos e materiais biológicos,
descritos no quadro a seguir, também são utilizados nas análises toxicológicas forenses para vivos.

Quadro 2 – Fluidos e materiais biológicos em casos de indivíduos vivos

Objetivo da Matriz(es) biológica(s) Amostragem


análise
5 ml em tubo tipo Vacuntainer contendo EDTA ou oxalato e fluoreto ou
Dosagem alcoólica (Convencional) Sangue citrato de sódio
(alcoolemia) (Não convencional) Urina 40 ml ou quantidade disponível em frasco plástico lacrado
(Convencionais) Sangue 5-10 ml em tubos tipo Vacuntainer contendo fluoreto de sódio e/ou a seco
Urina 40 ml ou quantidade disponível em frasco plástico lacrado
Drogas de abuso (Não convencionais) Cabelo 200 mg ou quantidade disponível em frasco plástico lacrado
e/ou fármacos Unha 100-200 mg ou quantidade disponível em frasco plástico lacrado
Suor sweat patch (adesivo)
Saliva quantidade disponível em frascos adequados
(Convencionais) Sangue 5-10 ml em tubos tipo Vacuntainer contendo fluoreto de sódio e/ou a seco
Praguicidas
Urina 40 ml ou quantidade disponível em frasco plástico lacrado
Substâncias (Convencionais) Sangue 5-10 ml em tubos tipo Vacuntainer contendo fluoreto de sódio e/ou a seco
voláteis (solventes Urina 40 ml ou total disponível em frasco plástico lacrado
orgânicos),
drogas de abuso e (Não convencionais) Cabelo 200 mg ou quantidade disponível em frasco plástico lacrado
fármacos fumados Unha 100-200 mg ou quantidade disponível em frasco plástico lacrado
(Convencionais) Sangue 5-10 ml em tubos tipo Vacuntainer contendo fluoreto de sódio e/ou a seco
Agentes metálicos
(exemplo: arsênico, Urina 40 ml ou quantidade disponível em frasco plástico lacrado
chumbo, mercúrio, (Não convencionais) Cabelo 200 mg ou quantidade disponível em frasco plástico lacrado
cádmio etc.)
Unha 100-200 mg ou quantidade disponível em frasco plástico lacrado
Cianeto e CO (Convencionais) Sangue 5-10 ml em tubos tipo Vacuntainer contendo fluoreto de sódio e/ou a seco

Coleta, armazenamento, transporte e conservação das matrizes biológicas

A confiabilidade e relevância do resultado das análises toxicológicas forenses dependem da integridade


da amostra submetida ao exame, desde as etapas de coleta, armazenamento (condicionamento) e
transporte, até sua conservação. Portanto, para obtenção de resultados analíticos confiáveis e com incertezas
minimizadas, faz-se necessário um rigoroso controle de qualidade nessas etapas, a fim de que sejam
realizadas da forma mais adequada e correta possível. Atualmente, as quantidades de amostras utilizadas
são cada vez menores devido à maior especificidade e sensibilidade dos métodos utilizados para análise.

Em algumas situações específicas em casos de post mortem, como em embalsamamento de corpos,


a coleta das matrizes biológicas para fins de análises toxicológicas forenses deve ser realizada antes de
tais procedimentos, pois envolvem substâncias como etanol e metanol, que podem ocasionar resultados
falso-positivos.

55
Unidade I

Para a coleta de matrizes biológicas, especificamente sangue e urina, algumas precauções devem ser
tomadas a fim de evitar valores subestimados e não fidedignos da ocorrência.

Em casos de post mortem:

• A escolha da região anatômica correta para a realização da coleta de sangue diminui as chances
de valores alterados pela redistribuição post mortem, ou seja, a coleta de sangue nesses casos deve
ser realizada puncionando a veia subclávia e/ou artéria femoral, pois restringe a probabilidade de
contaminação da amostra por difusão de outras regiões.

• A amostragem de sangue coletada deve ser homogênea, sem presença de pequenos coágulos,
os quais podem ser facilmente formados devido à maior viscosidade do sangue após a morte,
resultando em prejuízo nas análises.

• A urina pode ser coletada puncionando a bexiga com agulha e seringa ou, ainda, com o auxílio de
um cateter antes da necropsia.

• Deve-se certificar se o cadáver fez uso de cateter antes do falecimento, pois, nesse caso, a urina
pode estar contaminada por algum tipo de anestésico (exemplo: lidocaína), normalmente presente
no gel utilizado para a introdução do tubo.

Observação

Redistribuição ou difusão post mortem corresponde ao deslocamento de


substâncias pelo corpo após a morte, conforme o gradiente de concentração.

Em casos de indivíduos vivos:

• Na coleta de sangue para análise da presença de álcool etílico (alcoolemia), a assepsia da região
a ser puncionada não se deve ser realizada com produtos à base de álcoois, evitando-se, assim,
possível contaminação do fluido biológico de escolha.

• Deve-se evitar a hemólise sanguínea, tanto durante a coleta quanto após, ao manusear o frasco
contendo o sangue coletado.

• A coleta da urina deve ser assistida para evitar adulteração do fluido biológico e, consequentemente,
alterações nos resultados das análises toxicológicas.

Após a seleção e coleta das matrizes biológicas, utilizadas nas análises toxicológicas forenses,
recomenda-se que essas sejam acondicionadas em recipientes apropriados para cada tipo de exame, os
quais devem ser fechados hermeticamente, rotulados e lacrados (conforme visto nos quadros anteriores).

56
BIOMEDICINA FORENSE

Para o transporte dessas matrizes biológicas, aconselha-se mantê-las sob refrigeração, utilizando-se
caixas térmicas com gelo artificial reutilizável. A conservação dos fluidos e materiais biológicos com propósito
forense é feita por refrigeração (entre 0 e 4 ºC). Logo que chegarem ao laboratório, as amostras devem
ser refrigeradas e assim mantidas até o momento da análise, que deve ser realizada o mais breve possível.
Todos esses cuidados são essenciais para evitar possíveis alterações decorrentes de mudanças de temperatura,
decomposição do material, fraude, substituição e extravio.

Métodos e técnicas analíticas utilizados na pesquisa de substâncias químicas de interesse


médico-legal

Atualmente, existe uma grande variedade de métodos e técnicas empregados nas análises
toxicológicas forenses. Porém, para a obtenção de resultados confiáveis, cabe ao analista selecionar o
método mais apropriado de acordo com a matriz biológica coletada e a substância química investigada.
Tais métodos podem ser classificados como sendo de triagem ou confirmatórios e são descritos a seguir.

As técnicas de triagem (screening) são métodos utilizados quando não se conhece o toxicante a
ser pesquisado; verifica-se a presença ou ausência de uma determinada classe ou grupo de substâncias.
Entre as diversas técnicas de triagem aplicadas nas análises forenses, destacam-se os imunoensaios
(imunocromatografia e ELISA – ensaio de imunoabsorção enzimática) e a cromatografia em camada
delgada (CCD), sendo essa mais abrangente na pesquisa dos diferentes toxicantes existentes e na
possibilidade de utilização de várias matrizes biológicas.

Uma vez verificada a presença de um determinado toxicante na matriz biológica, através do método
de triagem, deve-se isolá-lo e quantifica-lo por métodos e técnicas de confirmação. O procedimento
realizado para isolamento do analito de interesse é compreendido de algumas etapas, descritas a seguir.

• Inicialmente é feita a remoção de possíveis interferentes endógenos presentes na amostra, bem


como dos analitos ligados às proteínas, através de precipitação.

• A seguir, os analitos devem se tornar livres na amostra e, para tal, utilizam-se técnicas de hidrólise
ácida ou alcalina, hidrólise enzimática, processos de mineralização e digestão da matriz biológica
em meio ácido ou alcalino (exemplo: liberação de toxicantes do cabelo).

• A extração dos analitos pode ser realizada por várias técnicas, como extração líquido-líquido (ELL),
extração em fase sólida (SPE), microextração em fase sólida (SPME) ou em fase líquida (LPME),
headspace (HS), headspace acoplada à microextração em fase sólida (HS-SPME), extração em
fluido supercrítico (SFE), colunas de acesso restrito (RAM) em análise multidimensional, extração
com polímeros de impressão molecular (MIP) e extração sortiva em barras de agitação (SBSE).

• Realiza-se também a derivatização, que consiste em uma reação química com finalidade de
transformar uma substância em outra estruturalmente semelhante (derivado), porém com
melhores propriedades cromatográficas, otimizando os processos de separação e quantificação
do analito de interesse, pelas técnicas de confirmação.

57
Unidade I

Entre as técnicas preconizadas para a confirmação de substâncias químicas de interesse médico-legal,


tem-se a cromatografia gasosa com vários tipos de detectores (captura de elétrons – DCE, ionização
de chamas – DIC, nitrogênio e fósforo – DNP) e a acoplada à espectrometria de massa (CG-EM); a
cromatografia líquida de alta eficiência com detector de arranjo de diodos (CLAE/DAD) e também
a acoplada à espectrometria de massa (CLAE-EM), sendo todas mais específicas e apresentando
menores limites de detecção para o analito do que as técnicas de triagem.

As técnicas de cromatografia gasosa acoplada à espectrometria de massa (CG-EM) e cromatografia


líquida de alta eficiência com detector de arranjo de diodos (CLAE/DAD) podem, ainda, ser usadas para
uma triagem mais extensa, pois permitem a detecção e a quantificação simultânea de um grande
número de toxicantes de interesse médico-legal em várias amostras biológicas. Tal procedimento é
adotado e conhecido como análise toxicológica sistemática (ATS).

É importante relembrar aqui que as diferentes matrizes biológicas, utilizadas para as análises
toxicológicas forenses, sempre apresentam vantagens e desvantagens quando da seleção, da coleta, do
armazenamento, do transporte, do condicionamento e da pesquisa analítica. Por isso, é crucial a criação
e o desenvolvimento de protocolos e a validação de métodos analíticos por parte dos toxicologistas,
para se ter resultados confiáveis e eficientes em busca da elucidação dos crimes.

Lembrete

A toxicologia forense analisa as diferentes matrizes biológicas, através


dos diversos métodos analíticos, a fim de determinar a presença de drogas
de abuso, praguicidas e metais que tenham envolvimento direto com
o crime.

Saiba mais

Quer aprender mais sobre seleção e preparo de amostras biológicas de


interesse forense, bem como sobre as diversas técnicas e métodos utilizados
para analisá-las? Leia os artigos indicados a seguir.

BORDIN, D. C. M. et al. Técnicas de preparo de amostras biológicas com


interesse forense. Scientia Chromatographica, v. 7, n. 2, p.125-143, 2015.

MOREAU, R. L. M.; SIQUEIRA, M. E. P. B. Toxicologia analítica: ciências


farmacêuticas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2016.

PASSAGLI, M. Toxicologia forense: teoria e prática. Campinas:


Millennium, 2011.

58
BIOMEDICINA FORENSE

Exemplo de aplicação

Dando continuidade à descrição de alguns casos de grande repercussão no país, como exemplos de
aplicações práticas, vamos entender como o biomédico que atua na área de toxicologia pode contribuir
para a elucidação de crimes.

A toxicologia forense é empregada quando há suspeita de que substâncias químicas possam ter
relação com um crime. Diferentes metodologias toxicológicas são empregadas para analisar os materiais
biológicos (como sangue e urina) da vítima e/ou do suspeito.

No caso Elisa Samudio (2009), quando a vítima ainda estava grávida, foi levada para o apartamento
de Bruno, onde teria sido obrigada por ele a ingerir alguns comprimidos e um líquido de natureza
desconhecida. A vítima alega que ficou dopada por quase 12 horas e que, em seguida, se direcionou a
uma delegacia, onde registrou ocorrência. Diante do exposto, foi coletada urina para análise toxicológica
e eventual comprovação de sua versão. Após a realização da análise, foi detectado um grupamento de
substâncias consideradas abortivas na urina da Elisa, o que comprovou sua denúncia.

Outras situações hipotéticas de crimes onde a toxicologia forense pode ser utilizada como auxílio e
elucidação são: casos de homicídio culposo (acidente de trânsito), para verificar a presença de álcool e/ou
outras substâncias psicotrópicas na amostra biológica do condutor infrator; casos de suicídio, para avaliar
o real motivo da causa mortis (exemplo: intoxicação exógena por medicamentos); casos de vítima de
atropelamento, a fim de evidenciar se a vítima encontrava-se sob efeito de alguma substância que pudesse
favorecer o ocorrido; entre outras situações.

3 BIOLOGIA FORENSE

A biologia forense é a área das ciências forenses responsável por analisar toda e qualquer amostra
biológica com o objetivo de localizar, identificar, caracterizar a sua origem e verificar a dinâmica, os
meios e os modos como ocorreu o evento. Essa área estuda e analisa desde fluidos corporais como
sangue, sêmen, saliva, urina, fezes, entre outros, até insetos, pelos, ossos etc., ou, ainda, qualquer
outro vestígio que seja de origem biológica e que esteja relacionado ao fato e possa contribuir para a
elucidação do caso.

As principais áreas de estudo da biologia forense são:

• hematologia forense: estuda e analisa as manchas de sangue de forma a identificá-las (localizar e


caracterizar) e de forma reconstrutora (verificar a dinâmica, os meios e os modos do fato criminal);

• citologia forense: verifica a presença ou ausência de células em amostras forenses (vestígios)


através da microscopia;

• piloscopia e tricologia forense: analisa pelos e fibras encontrados na cena do crime (vestes,
corpos, veículos etc.) a fim de identificá-los e compará-los com amostras de padrão (referência);

59
Unidade I

• entomologia forense: estuda e analisa os insetos e seus estágios de desenvolvimento para


auxiliar, por exemplo, na estimativa do tempo de morte;

• botânica forense: estuda a estrutura (morfologia e histologia), a fisiologia e a taxonomia das


diversas espécies de plantas;

• genética forense: estuda o fator genético de vestígios através da biologia molecular. Tal área será
descrita em um capítulo à parte.

Para se obter resultados fidedignos do ato criminal, utilizando as diferentes análises das áreas da
biologia forense, faz-se necessário, por parte dos profissionais envolvidos na investigação, principalmente
pelo perito externo, muita cautela e conhecimento sobre coleta e preservação adequadas dos
vestígios que apresentarem qualquer tipo de material biológico. Além disso, também é imprescindível
o conhecimento sobre técnicas de triagem, equipamentos e reagentes utilizados para localizar e
caracterizar tais amostras biológicas encontradas na cena do crime. Após a identificação e coleta
desses vestígios contendo material biológico, tais materiais devem ser imediatamente encaminhados
aos laboratórios forenses.

Sabe-se que alguns fatores podem contribuir para a inconsistência dos resultados de exames da área
da biologia forense, como:

• falhas no isolamento do local do crime;

• tempo de envio dos vestígios aos laboratórios;

• incorreta identificação das amostras encaminhadas para análise;

• estado de conservação dos vestígios.

Já para os peritos dos laboratórios forenses, além do conhecimento técnico sobre as diferentes
metodologias empregadas nas análises voltadas à biologia forense, é de suma importância o recebimento
de um histórico detalhado, informando as circunstâncias em que os vestígios foram encontrados.

3.1 Hematologia forense

A hematologia forense se divide em dois ramos: a hematologia forense identificadora, que consiste
em saber se o vestígio encontrado no local do crime é sangue humano; e a hematologia forense
reconstrutora, que verifica a dinâmica, os meios e os modos pelos quais o crime ocorreu.

Nos casos criminosos que envolvem homicídios, violência sexual, agressões físicas etc., geralmente
encontram-se amostras de sangue na forma líquida, coagulada, seca e/ou em pequenas manchas, as
quais devem ser coletas e conservadas de acordo com procedimentos distintos.

60
BIOMEDICINA FORENSE

Quando em contato com o ar, o sangue coagula devido a sua constituição e as manchas sanguíneas
ressecam rapidamente. Com o ressecamento, ocorre lise das células e, consequentemente, exposição da
hemoglobina ao oxigênio do ar (reação de oxidação), modificando a coloração e a textura convencional
do sangue. Assim, muitas vezes, a mancha de sangue pode ser confundida com outras substâncias,
sendo necessária a realização de exames laboratoriais para confirmar sua presença.

Ainda, a perícia criminal pode se deparar com situações nas quais o sangue está na forma latente
ou oculta (não visível) no local do crime, devido, por exemplo, à lavagem do local pelo criminoso a
fim de mascarar os vestígios. Nesses casos, com a evolução das ciências forenses, é possível empregar
várias técnicas, equipamentos e reagentes, como luminol (reagente químico) ou lanterna com luz UV
(equipamento), que são utilizados na identificação de sangue latente ou oculto. Entretanto, mesmo os
traços de sangue sendo identificados nessas situações, muitas vezes a realização da análise de DNA não
é viável, pois a amostra coletada pode estar diluída devido à lavagem, prejudicada devido ao uso de
detergentes ou outras substâncias ou, ainda, devido a exposição solar, umidade e o tempo transcorrido
entre o fato e a coleta.

3.1.1 Hematologia forense reconstrutora

Estuda as manchas de sangue em local de crime, possibilitando definir a posição da vítima e do


agressor, a movimentação de ambos no local, as características e a intensidade do trauma, a violência
empregada, a arma utilizada e os movimentos dos golpes executados e, ainda, indicar ou excluir a
autoria do fato. Esse estudo só se torna possível devido ao perfil característico das manchas sanguíneas
de acordo com a quantidade de sangue em movimento e sua deposição em diferentes suportes.

As manchas sanguíneas estudadas em local de crime podem ser classificadas de formas distintas,
como indicado a seguir.

Manchas por projeção

São manchas que podem informar ao perito a direção e o sentido de deslocamento da vítima e
do agressor no local de crime, bem como o ângulo de impacto (trajetória do sangue no anteparo),
demonstrando o posicionamento do corpo golpeado.

• Gotas: são manchas sanguíneas geradas de forma passiva, ou seja, de forma natural pela ação
da gravidade sem intervenção externa. A deformação das gotas é interpretada através de seus
diâmetros formados devido à trajetória (formação de um ângulo de 90° com o anteparo) e
da altura de queda; de seu volume e de sua interação com a superfície do anteparo (rugoso,
permeável e elástico). Assim, quando a gota se apresenta em forma circular e borda regular indica
uma diferença de altura pequena entre corpo ou objeto e o chão (20 cm); forma estrelada e
bordas irregulares – aproximadamente 40 cm de altura; forma estrelada e bordas denteadas com
gota satélite – altura superior a 125 cm; gotículas – altura de 2 m ou mais.

61
Unidade I

A B

C D

Figura 11 – Manchas de gotas de sangues produzida após precipitação a diferentes alturas de uma superfície de papel
tipo sulfite. (A) Precipitação a 10 cm – Bordo regular e diâmetro aproximado de 1,2 cm. (B) Precipitação a 30 cm –
Bordo irregular com projeções incipientes e diâmetro aproximado de 1,6 cm. (C) Precipitação a 120 cm – Bordo
irregular com projeções estreladas, gotícula satélite e diâmetro aproximado de 2,3 cm. (D) Precipitação a
160 cm – Bordo irregular com projeções estreladas, gotícula satélite e diâmetro aproximado de 2,5 cm

Figura 12 – Manchas por gotejamento isolado e de projeção de sangue em um local de crime

62
BIOMEDICINA FORENSE

• Salpicos: são manchas de forma ativa devido à projeção impulsionada por uma segunda força
associada à ação da gravidade. Essas manchas apresentam uma forma alongada na parte final
indicando o sentido da direção horizontal do sangue a partir da formação original. Assim,
pode-se verificar o deslocamento do agressor e da vítima lesionada no local do crime e, ainda, o
movimento dos golpes desferidos contra a vítima pelo agressor. Algumas regras são empregadas
no estudo das manchas de projeção, como quanto mais alongada a mancha formada, menor o
ângulo de impacto; e quanto maior a energia empregada no mecanismo de projeção (disparo de
projétil de arma de fogo), menor a dimensão da gota de sangue projetada no anteparo (1 mm).

Figura 13 – Manchas de projeção de sangue observado em um local de crime.


Notar as projeções apontando a direção do movimento

Figura 14 – Padrão produzido por manchas de projeção em diferentes ângulos de impacto

Manchas por empoçamento e escorrimento

Apresentam-se em forma de poças e filetes devido à grande perda de sangue.

63
Unidade I

A B

(b)

(a)

Figura 15 – (A) Empoçamento em razão da grande perda de sangue em um local


de crime. (B) Empoçamento (a) e escorrimento (b) em um local de crime

Manchas por contato ou transferência

Quando uma parte do corpo ou de um objeto com sangue é fixado em outro local através do contato,
podendo deixar moldes de impressões digitais, palmares, plantares e de solado de sapato, ou quando a
mancha de sangue é produzida por arrastamento, que pode ocorrer devido a uma movimentação ativa
(descolamento da própria vítima ferida em uma superfície) ou passiva (cadáver ou vítima inconsciente
arrastada por outra pessoa com o intuito de ocultar o corpo).

A B

Figura 16 – (A) Manchas de sangue produzidas por contato (transferência) em um


local de crime. (B) Manchas de sangue produzidas por contato (transferência) de
um solado de sapato com poça de sangue no piso de um local de crime

Manchas por impregnação

Decorrente da absorção do sangue líquido por vestes, tecidos, papel etc., através da capilaridade.

64
BIOMEDICINA FORENSE

Manchas por limpeza

São aquelas manchas que, na tentativa de ocultar a prova do crime, foram limpas (por exemplo,
lavadas). Porém, tais manchas ainda podem deixar traços de sangue visíveis macroscopicamente ou
serem reveladas com o auxílio de reagentes e de equipamentos.

A B

Figura 17 – (A) Mancha por limpeza identificada em local de crime. (B) Papel impregnado
com sangue utilizado para limpar mancha do piso em um local de crime

Lembrete

As análises das manchas de sangue encontradas no local dos fatos,


em vestes e na própria vítima, determinarão a dinâmica do crime, bem
como sua autoria.

3.1.2 Hematologia forense identificadora

Com relação ao tópico da hematologia forense identificadora, alguns temas são essenciais.

Testes de orientação para sangue

Os testes de orientação não são absolutamente específicos para sangue, pois podem resultar em
reações falso-positivas com outras substâncias, porém, são utilizados como testes de triagem, uma
vez que a reação negativa caracteriza ausência ou quantidades não detectáveis do grupo heme ou
seus derivados. Lembrando que o grupo heme (ferroprotoporfirina) é um composto de quatro núcleos
pirrólicos (protoporfirina IX) ligados entre si por um átomo de ferro e que, juntamente à proteína globina,
forma a hemoglobina presente nas hemácias.

Tais testes para detecção de traços de sangue são baseados na ocorrência de reações de oxidação e
são classificados em testes de cor ou de luminescência.
65
Unidade I

• Testes de cor: para sua realização são utilizados o peróxido de hidrogênio e um reagente como
indicador de cor (fenolftaleína, benzidina, tetrametilbenzidina, verde malaquita, ortotoluidina).
Nesses testes, o peróxido de hidrogênio, quando em contato com o grupo heme da hemoglobina,
libera oxigênio que oxida o indicador de cor, formando um composto corado. Entre eles, o teste da
fenolftaleína é o mais específico e o da benzidina é o mais sensível. As substâncias que podem levar
a um resultado falso-positivo nesses testes de cor são: peroxidase de frutos e vegetais, pus, saliva,
fluido espinhal, oxidantes químicos (sais de cobre, níquel, chumbo, ferro, formalina, hipocloritos).

Figura 18 – (A) Teste de triagem para sangue (conhecido por Kastler Meyer, baseado na fenolfetaleína) realizado
em meio líquido. (B) Teste de triagem para sangue (conhecido por Adler-Ascarelli, baseado na benzidina)

• Testes de luminescência: esses testes são utilizados para localizar traços de sangue não
visíveis em locais de crime e/ou objetos que tenham sido lavados para encobertar um fato
criminal. Para que a luminescência seja observada a olho nu em um ambiente escuro, as
moléculas do sangue, mais precisamente o ferro do grupo heme, são excitadas quimicamente
com agentes luminescentes (fluorocromos), como o luminol ou fluoresceína, ocorrendo
uma reação de oxidação e, consequentemente, a produção de energia luminosa. Ambos os
agentes luminescentes apresentam a mesma sensibilidade (1:1.000.000) e não prejudicam
uma subsequente análise de DNA pelo método de PCR (polimerase chain reaction). Os possíveis
contaminantes para o teste de luminescência com luminol, que poderiam levar a um falso-positivo,
são os compostos metálicos de ferro (ferrugem) e cobre.

A B

Figura 19 – (A) Revelação de mancha de sangue latente com luminol em local de crime.
(B) Revelação de mancha de sangue latente com luminol em peça de crime

66
BIOMEDICINA FORENSE

Ainda, para auxiliar na identificação e na localização de vestígios ocultos (manchas latentes) de origem
biológica (sangue, sêmen, pelos, urina, saliva, impressões digitais etc.) e de origem diversa (marcas de pegada,
fibras, resíduos de disparos de arma de fogo etc.) em locais de crime e em objetos, pode-se fazer uma varredura
com equipamentos (aparelhos ou lanterna) de luz forense (luz adaptada). A técnica consiste em emitir uma
luz branca (que compreende os espectros visíveis, infravermelho e ultravioleta – diferentes comprimentos
de onda) e contínua pelo equipamento no suposto vestígio oculto, sendo que esta luz reage com o material
a ser analisado e, como consequência, ocorre a reflexão e emissão de luz (cor) com comprimento de onda
específico de tal material. O referido equipamento, além de apresentar uma fonte de luz, possui um conjunto
de filtros óticos de barreira (seletivo na visualização de determinados comprimentos de ondas) ou de emissão
(seleciona os comprimentos de ondas ou cores de luz que é emitido sobre o vestígio). Com isso, os filtros
possibilitam o destaque do vestígio oculto sobre o suporte em que está depositado.
A B C

Figura 20 – (A) Tecido observado sobre luz branca, no qual se observam manchas de sangue evidentes na porção direita. (B) Mesmo
tecido observado sob luz azul (comprimento de onda 455 nm) sem filtro, no qual se observam manchas de sangue opacas na porção
direita central. (C) Mesmo tecido observado sob luz azul (comprimento de onda 455 nm) e filtro laranja, no qual se observam, além
das manchas de sangue já citadas, manchas de material biológico na porção central

A B

Figura 21 – Revelação de manchas de material biológico no banco de um veículo periciado utilizando luz forense

Testes de certeza ou confirmatórios para sangue humano

São análises que confirmam a presença de traços de sangue revelados nos testes de orientação
(triagem) e, ainda, verificam se o referido material biológico é de origem animal ou humana.
Existem várias técnicas que podem ser empregadas para a caracterização de sangue humano, como
os métodos de cristais de Teichmann (1853) e de Takayama (1912) e o teste da precipitina (SEROLOGY
UNIT FBI LABORATORY, 1989). Porém, os ensaios mais usados na atualidade para tal finalidade são os
imunocromatográficos (HOCHMEISTER et al., 1999) e o teste de Coombs (BAECHTEL, 1983), pois utilizam
anticorpos específicos para sangue humano, tornando-os extremamente sensíveis e específicos.
67
Unidade I

A técnica de imunocromatografia consiste em uma membrana cromatográfica contendo anticorpos


imobilizados e móveis. Por capilaridade os anticorpos móveis e a amostra (sangue) se movem na
membrana, reagindo da seguinte forma:

• a hemoglobina humana (Hbh), presente na amostra de sangue, reage com um conjugado


(cromóforo + anticorpos monoclonais anti-Hbh), formando um imunocomplexo;

• esse imunocomplexo migra para a zona de reação e encontra os anticorpos policlonais anti-Hbh
fixados, resultando em um “sanduíche” (anticorpo - antígeno - anticorpo) e, por consequência, na
formação de uma linha colorida no teste, a qual indica positividade da análise;

• já o conjugado (cromóforo + anticorpos monoclonais anti-Hbh) que não reagiu com a Hbh migra
para a zona de controle, formando um complexo com os anticorpos anti-IgG imobilizados no
local; assim, aparece uma linha colorida, certificando a validade do teste.

Migram p/
zona de reação
amostra com sangue + Conjugado Complexo
Hb humana Anticorpo Antígeno-Anticorpo
(anti-Hdh monoclonal móvel/ (Hbh-conjugado)
partículas de corante)

Zona de reação:

Complexo + anti-Hbh policlonal imobilizado Sanduíche Linha colorida


Antígeno-Anticorpo-Antígeno (concentração de
partículas de corante)
Zona de controle:

Conjugado + Anticorpos IGG imobilizados Complexo Linha colorida


(que não reagiu Conjugado-Anticorpo IGG (concentração de
com a amostra) partículas de corante)

Figura 22 – Imunocromatografia para Hb humana

Figura 23 – Teste imunocromatográfico para sangue humano

68
BIOMEDICINA FORENSE

Essa técnica pode apresentar resultados falso-negativos em situações em que as manchas de


sangue tiverem sido submetidas a lavagens com detergentes e alvejantes, a altas temperaturas
(desnaturação de proteínas) e, ainda, terem sido expostas por tempo prolongado ao luminol.
Além disso, o excesso de hemoglobina (Hb) em relação ao imunocomplexo do teste pode causar o
efeito hook e levar a um resultado falso-negativo.

O efeito hook ocorre quando a Hb livre em excesso chega à zona de reação antes do imunocomplexo,
ligando-se aos anticorpos imobilizados e, com isso, impedindo a formação da linha colorida por não ter
o cromóforo ligado em si. Para evitar tal efeito, deve-se diluir a amostra testada.

Manchas antigas de sangue ou contaminadas com microrganismos não interferem no resultado do


teste de imunocromatografia.

Já o teste de Coombs é um imunoensaio baseado na aglutinação indireta usado para detecção de


anticorpos incompletos no soro humano. Tal técnica foi introduzida na ciência forense em 1949, por
Wiener, para a investigação de manchas de sangue (GROBBELAAR et al., 1970). O método consiste na
verificação de ausência de aglutinação das hemácias sensibilizadas por anticorpos incompletos, quando
há presença de globulinas humanas, as quais inibem a atividade do soro antiglobulina (soro Coombs,
anti-IgG humana) de aglutinar eritrócitos, revelando, assim, que a mancha é de sangue humano.

Amostra
C. posit. C. negat. Soro animal questionada

Figura 24 – Teste indireto de Coombs (reação de Vacher-Sutton), específico para sangue humano

Embora esse teste seja muito sensível, mesmo em amostras de sangue humano bastante diluídas,
também podem ocorrer resultados falso-negativos devido à lavagem das manchas de sangue com
detergentes e alvejantes (remoção das proteínas antigênicas solúveis em água) e exposição a altas
temperaturas (desnaturação das proteínas).

69
Unidade I

Lembrete

Mesmo após a identificação de traços de sangue latente ou oculto,


muitas vezes não é viável a realização da análise de DNA, pois a amostra
coletada pode estar danificada devido a inúmeras razões, como lavagem
do local e exposição solar, umidade e tempo transcorrido entre o fato e a
coleta. Por isso é de suma importância o encaminhamento, juntamente aos
vestígios, de um histórico detalhado, informando as circunstâncias em que
foram encontrados tais vestígios.

Exemplo de aplicação

Na grande maioria dos crimes, um dos principais vestígios encontrados no local são as manchas
de sangue. Para verificar sua presença e até mesmo certificar-se de que se trata de sangue
humano, a realização de algumas análises é primordial, análises as quais podem ser executadas por
profissionais biomédicos.

Como exemplo de aplicação prática, pode ser citada a importância da análise de sangue na elucidação
dos casos Isabella Nardoni e Elisa Samudio.

No caso da Isabella Nardoni, foram identificadas manchas de sangue por projeção (salpico)
no interior do veículo do pai, Alexandre, sugerindo que a criança tenha sido agredida, o que pode
ser confirmado pela lesão perfuro-contundente na parte frontal da cabeça (testa) da vítima no
ato da necropsia.

No apartamento foram encontradas manchas de sangue por projeção (gotas) em diversos lugares
no chão, as quais evidenciaram que a vítima estava no colo do pai, pela relação estabelecida entre
o formato das gotas e altura do chão. Ainda, as manchas de sangue (por contato) na maçaneta da
porta de entrada comprovam que a vítima sofrera uma lesão antes de chegar ao apartamento, sendo
explicada pelos achados na perícia do veículo.

Através da ação do luminol foram identificadas algumas outras manchas de sangue no chão e nas
paredes do apartamento, as quais tinham sido ocultadas por limpeza, bem como na fralda que fora
encontrada em um balde já em processo de lavagem.

No lençol da cama do quarto onde a vítima foi jogada, a perícia evidenciou manchas de sangue (por
impregnação) e o decalque da palma da mão da criança suja de sangue (mancha por transferência),
confirmando mais uma vez a existência do ferimento, além do fato de Isabella ter sido colocada na cama
pelo suspeito para que ele pudesse dar continuidade ao feito. Na calça jeans que Alexandre usava no
dia dos fatos foram evidenciadas manchas de sangue por impregnação na parte anterior de ambas as
pernas, indicando que ele manipulou a vítima.

70
BIOMEDICINA FORENSE

Na fachada do edifício também foram evidenciados rastros de sangue deixados pela mão da vítima,
o que demonstra cuidado e delicadeza ao ser jogada.

Já no caso de Elisa Samudio, as cinco manchas de sangue encontradas no interior do veículo


Land Rover, de propriedade do goleiro Bruno, foram evidenciadas por testes de luminescência, sendo
que uma dessas manchas, por ser de projeção (salpico), confirma a agressão (coronhada) sofrida
pela vítima.

No sítio, onde a vítima e seu bebê permaneceram por alguns dias sob cárcere privado, foi
encontrado um colchão manchado de sangue por impregnação. Após realização dos testes de certeza
(imunocromatográfico e Coombs), ficou comprovado tratar-se de sangue humano.

3.2 Citologia forense

A citologia forense verifica a presença ou ausência de diferentes tipos celulares em amostras


forenses, através da microscopia. Como exemplo tem-se a identificação de bactérias, protozoários ou
fungos em material com suspeita de contaminação; análise de algas como bioindicadores de poluição
ou da presença de substâncias potencialmente tóxicas no meio ambiente; ou, ainda, a caracterização de
células humanas, como os espermatozoides, em casos de crimes sexuais.

Nos casos de violência sexual, a identificação de sêmen em manchas ou no material


biológico (secreção) colhido da própria vítima é confirmada pela verificação microscópica da
presença de espermatozoides. Porém, em algumas situações, tal pesquisa microscópica se torna
ineficiente, como:

• casos em que o suspeito do crime sexual seja azoospérmico ou oligospérmico, ou seja, não
produza espermatozoides ou os produza em pequena quantidade, respectivamente, sendo ambas
as condições referentes a problemas fisiológicos do indivíduo;

• casos em que o suspeito seja vasectomizado (incisão cirúrgica dos canais deferentes do órgão
sexual masculino, realizada como método contraceptivo);

• casos em que o suspeito faz uso de preservativos;

• quando se tem coleta e/ou conservação inadequadas da amostra;

• quando o tempo transcorrido entre o fato e a coleta do material for longo (a persistência dos
espermatozoides na cavidade vaginal ocorre por até 48 horas após o fato, devido à perda física e
à degradação enzimática intravaginal);

• casos em que a vítima realiza procedimentos que possam interferir na qualidade da amostra
coletada (para evitar tal problema, a vítima deve permanecer com a roupa que estava quando
ocorreu o ato criminoso ou deve levá-la ensacada até a delegacia no momento do registro da

71
Unidade I

queixa; não deve fazer qualquer tipo de higienização após o ato, como tomar banho, lavar as
mãos e escovar os dentes, além de evitar urinar e defecar antes do exame de corpo de delito –
caso necessário, utilizar um recipiente limpo para coleta dos referidos materiais biológicos);

• casos em que a técnica de coloração empregada não seja a mais indicada, visto que existe diferença
de sensibilidade entre as técnicas utilizadas para pesquisa de espermatozoides em tecido, papel
higiênico, lâminas com secreção vaginal, anal e/ou bucal, entre outros.

Diante de tais problemas, outros métodos vêm sendo empregados em casos forenses para a
identificação de sêmen. Esses métodos detectam componentes específicos do sêmen ou que nele sejam
encontrados em níveis mais elevados do que em outros fluidos corporais, além de apresentar vantagens
e desvantagens em relação à especificidade, estabilidade e sensibilidade.

Os métodos mais utilizados para detecção de sêmen são testes químicos (reações colorimétricas),
através dos quais pesquisa-se colina ou fosfatase ácida, e testes imunológicos, empregados para
determinação do PSA (antígeno prostático específico). Adicionalmente, a lanterna ultravioleta (UV) pode
ser usada para identificação de manchas de sêmen em roupas (tecidos), pois alguns fluidos corporais
(urina, saliva e sêmen) se tornam luminescentes quando expostos à luz com comprimentos de ondas
adequados (entre 390 a 510 nanometros). Tal lanterna também pode localizar vestígios de fluidos
corporais em locais de crime.

O método da lanterna UV consiste na excitação dos átomos ou moléculas do fluido biológico pela luz
emitida na mancha, resultando em uma luminescência que é diretamente proporcional à concentração
do fluido pesquisado. Normalmente, para esse tipo de análise o ambiente deve estar o mais escuro
possível e o perito deve utilizar óculos ou anteparo para bloquear os comprimentos de ondas de luz
presentes na faixa de excitação (lanterna), permitindo somente a passagem do comprimento de onda
de emissão (fluido biológico).

3.2.1 Teste microscópico para pesquisa de espermatozoides

O teste microscópico para verificação da presença de espermatozoides é realizado em


esfregaços de secreções vaginais, anais e bucais, coletadas com swabs e distendidas em lâminas
ou em macerados de supostas manchas de sêmen presentes em tecido, papel higiênico, entre
outros vestígios.

Para cada tipo de vestígio analisado existem colorações específicas, por exemplo, para as secreções
podem ser realizadas as colorações de Christmas Tree, eosina B ou Shorr e para macerado de tecidos
têxteis e papel higiênico usam-se colorações de Giemsa, Corin-Stock etc.

72
BIOMEDICINA FORENSE

A B

C D

Figura 25 – Espermatozoides. (A e B) Lâminas com esfregaço de material vaginal corado pela técnica de
Shorr. (C e D) Lâminas com raspado de calcinha contendo mancha de sêmen corado pela técnica de
Corin-Stock. (E) Lâmina com esfregaço de material vaginal corado pela técnica de Eosina B

3.2.2 Testes químicos para identificação de sêmen

A seguir são descritos os principais métodos para identificação de sêmen.

Colina

É um dos compostos resultantes da hidrólise enzimática da fosforilcolina secretada pelas vesículas


seminais após a ejaculação e que está presente no plasma seminal.

FOSFORILCOLINA → COLINA LIVRE + FOSFATO INORGÂNICO

A detecção da colina pode ser feita através de reações microquímicas de cristalização ou por métodos
enzimáticos (SUZUKI et al., 1981; TAKATORI et al., 1984). Tais testes não são específicos para sêmen e podem
73
Unidade I

ocasionar resultados falso-positivos (insetos esmagados, extratos de órgãos e de tomate) ou falso-negativos


(distribuição não heterogênea no plasma seminal da fosforilcolina e fosfatase ácida e ação de microrganismos).

Fosfatase ácida

São enzimas que hidrolisam certos fosfatos orgânicos em meio ácido. O método empregado para a
detecção das fosfatases ácidas nos diferentes substratos é o colorimétrico, sendo o mais específico o do
timolftaleína monofosfato de sódio, que diferencia a fosfatase ácida prostática das demais fosfatases
ácidas; porém, não é utilizado como prova definitiva e, sim, como teste preliminar.

PSA (antígeno prostático específico)

É uma glicoproteína expressa no epitélio da próstata humana. Para sua determinação, os métodos
se baseiam em reações antígeno-anticorpo, sendo o ELISA e a imunocromatografia os mais específicos,
sensíveis e estáveis.

• ELISA (ensaio de imunoabsorção enzimática) (BAECHTEL, 1983): análise quantitativa indireta que
se baseia na utilização de um anticorpo conjugado com uma enzima para detecção do antígeno.
A técnica de ELISA para quantificação da PSA apresenta alta sensibilidade (1:1.000.000.000), cujo
princípio é descrito a seguir:

— existe um anticorpo monoclonal anti-PSA adsorvido em uma fase sólida (imobilizado no fundo
das placas de microtitulação);

— a amostra contendo o antígeno PSA é adicionada na placa de microtitulação, o qual se ligará


ao anticorpo fixo no fundo dos poços, formando o complexo (antígeno-anticorpo) após o
período de incubação;

— em seguida é adicionado um segundo anticorpo anti-PSA conjugado com a enzima fosfatase


alcalina, que se liga ao complexo + substrato que é hidrolisado pela enzima, formando um produto
fluorescente e, assim, permitindo a quantificação indireta da concentração de antígeno PSA.

Anticorpo Antígeno Complexo


(anti-PSA) (PSA) Antígeno-Anticorpo
Adsorvido em fase sólida amostra com esperma

+ + Substrato

Complexo Conjugado Complexo + Conjugado


Antígeno-Anticorpo Anticorpo
(anti-PSA/fosfatase alcalina)
Fosfatase alcalina Produto Quantificação indireta da PSA
catalisa hidrólise do substrato fluorescente

Figura 26 – Ilustração esquemática de ELISA para PSA

74
BIOMEDICINA FORENSE

• Imunocromatografia (GARTSIDE; BREWER; STRONG, 2003): consiste na utilização de uma


membrana cromatográfica contendo anticorpos imobilizados e móveis. Através de capilaridade,
os anticorpos móveis e a amostra (sêmen) se movem na membrana, reagindo da seguinte forma:

— o antígeno PSA, presente na amostra, reage com um conjugado (cromóforo + anticorpos


monoclonais anti-PSA), formando um imunocomplexo;

— esse imunocomplexo migra para a zona de reação, onde se encontram os anticorpos policlonais
anti-PSA fixados, resultando em um “sanduíche” (anticorpo - antígeno - anticorpo) e, em
consequência, ocorre a formação de uma linha azul no teste, a qual indica positividade da
análise (quanto maior a concentração do analito pesquisado, mais intensa será a coloração
resultante, devido à maior formação dos complexos antígeno-anticorpo);

— já o conjugado (cromóforo + anticorpos monoclonais anti-PSA) que não reagiu com o antígeno PSA
migra para a zona de controle, formando um complexo com os anticorpos anti-IgG imobilizados
no local; assim, ocorre o aparecimento de uma linha azul, certificando a validade do teste.

Observação

Embora essa técnica apresente alta sensibilidade (1:1.000.000), pode ocasionar


resultados falso-negativos devido ao efeito hook, que ocorre quando o antígeno
PSA livre em excesso chega à zona de reação primeiro que o imunocomplexo,
ligando-se aos anticorpos imobilizados, não resultando na formação da linha
azul de positividade porque o PSA não é conjugado ao cromóforo.

Migram p/
zona de reação
Amostra com sêmen + Conjugado Complexo
+ PSA humana Anticorpo Antígeno-Anticorpo
(anti-PSA monoclonal móvel/ (PSA-conjugado)
partículas de corante)

Zona de reação:

Complexo + anti-PSA policlonal imobilizado Sanduíche Linha colorida


Antígeno-Anticorpo-Antígeno (concentração de
partículas de corante)
Zona de controle:

Conjugado + Anticorpos IgG imobilizados Complexo Linha colorida


(que não reagiu Conjugado-Anticorpo IgG (concentração de
com a amostra) partículas de corante)

Figura 27 – Ilustração esquemática de imunocromatografia para PSA

75
Unidade I

C+ C1 C2 C3 S1 S2

C1 C2 C3 S1 S2 C- C+1 C+2

Figura 28 – Método imunocromatográfico para detecção de PSA

Lembrete

A citologia forense tem uma maior aplicabilidade nos crimes sexuais,


muitas vezes evidenciado o autor através das análises do sêmen, mais
precisamente dos espermatozoides deixados nas vestes e no corpo da vítima.

Exemplo de aplicação

A maior aplicabilidade da citologia forense ocorre em casos de estupro. Quando a vítima passa
pelo exame de conjunção carnal, caso seja pertinente, o médico legista coleta materiais biológicos
como secreções da cavidade vaginal, da borda anal e da cavidade oral para a realização do exame
de pesquisa de espermatozoides. Ainda, tal pesquisa pode ser solicitada para avaliar se determinadas
manchas, encontradas nas roupas da vítima ou em vestígios presentes no local do crime,
correspondem a sêmen ou não.

Tanto a análise microscópica das lâminas contendo as secreções da vítima quanto o estudo das
manchas presentes nos vestígios podem ser realizados por peritos biomédicos.

3.3 Tricologia e piloscopia forense

A tricologia forense tem como finalidade estudar fibras que compõem os diferentes tecidos (como
vestes e toalhas, por exemplo) e a piloscopia forense estuda os pelos (humanos e de animais) e cabelos.
Todos esses elementos são frequentemente encontrados em locais de crimes, nas vestes de vítimas e
suspeitos e no próprio corpo das vítimas, principalmente em fatos criminosos que apresentam contato
físico, como homicídios, agressões e violência sexual. Muitas vezes esses elementos são os únicos
vestígios que podem levar a elucidação do crime, a partir de técnicas e procedimentos que permitam
diferenciar pelos humanos de animais e identificar cabelos humanos e fibras de tecidos.

76
BIOMEDICINA FORENSE

Até pouco tempo atrás, a microscopia era o único recurso disponível para verificação e identificação
de pelos e cabelos; porém, esse tipo de análise, quando realizada isoladamente de outras técnicas e
procedimentos, se torna subjetiva, ou seja, dificilmente pode-se incluir ou excluir um indivíduo de um
determinado crime devido às alterações fenotípicas que os pelos sofrem ao longo do tempo, as quais
podem prejudicar a análise microscópica comparativa.

Atualmente, empregam-se técnicas de biologia molecular juntamente à análise microscópica dos


pelos e cabelos, pois tais técnicas permitem determinar o perfil de DNA nuclear ou mitocondrial, o qual
não é alterado ao longo do tempo e, consequentemente, não interfere na análise comparativa.

Muitas informações importantes sobre os pelos a serem periciados só são verificadas através da
microscopia, como diferenciar as fases de crescimento (anágena, catágena e telógena) e as características
medular, cortical, cuticular e da raiz; diferenciar pelos humanos dos de animais, diferenciar pelos de
cabelos e fibras, identificar a qual parte do corpo pertence; evidenciar se os pelos foram submetidos
a tratamentos químicos, queimados, esmagados ou cortados, se houve remoção forçada, se contêm
sangue ou outros vestígios aderidos e, ainda, se apresentam algum tipo de doença. Portanto, a análise
microscópica dos pelos é extremamente relevante e deve ser realizada antes da análise de DNA, uma vez
que essa técnica utiliza uma grande quantidade de pelos, além de ser destrutiva.

Além das análises microscópica e de DNA, deve-se realizar a análise macroscópica, que consiste em
verificar a forma dos pelos (lisos, ondulados, encaracolados), comprimento (registrar em centímetros),
cor (preto, várias nuances de loiro, castanho e ruivo), textura (espessura da haste – grossa, média ou
fina), presença ou ausência de raiz e presença de matérias aderidas.

Saiba mais

Os pelos apresentam fases definidas de crescimento, morte e regeneração,


as quais se repetem por toda a vida. Tais fases são denominadas como
anágena, catágena e telógena e auxiliam na piloscopia forense. Leia o
artigo a seguir para conhecer mais detalhes sobre o assunto.

BOTTINI, M. S. C. Medicina forense: biologia do cabelo. Jus, nov. 2015.


Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44388/medicina-forense-biologia-do-
cabelo. Acesso em: 26 ago. 2020.

3.3.1 Análise microscópica

A microscopia é a técnica mais importante para caracterizar morfologicamente cabelos, pelos e fibras
como vestígios forenses. Porém, a comparação microscópica entre pelos não fornece uma identificação
confirmatória, uma vez que, mesmo pertencendo a uma mesma região do corpo de um indivíduo, eles
podem apresentar variações em suas características; além da variabilidade dos pelos das diferentes
regiões do corpo (cabeça, púbis, entre outras).

77
Unidade I

A análise microscópica dos pelos pode ser afetada por sua decomposição pelos microrganismos e pela
invasão de insetos ou por influências biológicas naturais. Por esses motivos, deve-se coletar os pelos padrões
conhecidos das vítimas e suspeitos na mesma época em que forem coletados os pelos questionados,
encontrados no local de crime.

Para a caracterização microscópica dos pelos deve-se submetê-los a limpeza e, se necessário, a


clareamento antes da montagem das lâminas. Em seguida, devem ser observados em microscópio
óptico, utilizando-se aumentos de 40X a 400X.

Diferenciação de fibra e pelos

Após o clareamento com xilol, as características estruturais de fibras são muito diferentes das de
pelos, nos quais se observa a região cortical, constituída de fusos corticais e grânulos; a região medular
(localizada mais internamente); a raiz, que pode estar presente ou não; e as células da cutícula (camada
externa do pelo), que formam um padrão de escamas quando são empregadas técnicas específicas.

Figura 29 – Haste capilar com algumas das estruturas básicas encontradas (cutícula, córtex e medula)

Diferenciação de pelo humano e animal

Apesar dos diferentes tipos de pelos presentes em um único animal (proteção – pelos grossos e longos,
presentes na camada externa do corpo; controle da temperatura corpórea – pelos finos, presentes na
camada interna; e sensoriais – presentes na cabeça do animal), o que os difere dos pelos humanos são
as características dos padrões de escama da cutícula, a medula e a raiz.

• Cutícula: a montagem da lâmina de pelos para a caracterização dos padrões celulares da superfície
da cutícula se faz com esmalte ou fita adesiva transparente e a visualização em microscópio
óptico. Os pelos humanos apesentam uma cutícula com células anelares irregulares, já os pelos
dos animais podem apresentar diferentes formatos celulares, como mosaico (regular ou irregular),
pétalas e onda e, em pelos finos, ainda pode-se verificar o formato de coroa.

78
BIOMEDICINA FORENSE

A B C

D E F

Figura 30 – Moldes de cutículas de pelo de: (A) Humano com esmalte – padrão de célula anelar irregular (x100);
(B) humano com esmalte – padrão de célula anelar irregular (x400); (C) cachorro lhasa apso com esmalte
– padrão de célula onda (x100); (D) cachorro york com esmalte – padrão de célula coroa (x100);
(E) cachorro pug com esmalte – padrão de célula mosaico (x100); (F) coelho com esmalte – padrão de
célula anelar (x100); (G) coelho com esmalte – padrão de célula coroa (x100)

• Medula: a lâmina deve ser montada com líquido próprio que permita uma observação detalhada
com índice de refração próximo ao da cutícula. Na visualização a região medular pode estar
presente ou não, ser contínua, descontínua ou fragmentada, translúcida ou opaca, ser amorfa e,
especificamente em pelos de animais, ter uma forma definida. Quando presente a região medular
no pelo humano, a razão entre o diâmetro da medula e do pelo (índice) será menor que 1/3,
o padrão celular será amorfo (não definido) e pode apresentar vacúolos. Em pelo de animal,
normalmente o índice é maior do que 1/3, o padrão celular pode ser amorfo e com vacúolos,
porém, na maioria das vezes, o padrão celular da medula de pelos de animais apresenta uma
estrutura geométrica definida e que se classifica em:

— treliça: aparência de uma trama feita de queratina com espaços de formato poliédrico contínuo;

— degraus de escada: uma aparência de degrau de escada, podendo ser unisserial (uma fita) ou
multisserial (várias fitas);

— globular: aparência de glóbulos de tamanhos variados e dispostos de forma compacta e


alternando em visualização opaca e translúcida.

79
Unidade I

A B C

D E F

Figura 31 – (A) Medular translúcida (x400). (B) Medular opaca (x400). (C) Medular contínua (x100).
(D) Medular descontínua (x100). (E) Medular tracejada (x100). (F) Medular ausente (x100)

A B C

D E F

Figura 32 – (A) Molde de cutícula e medular de pelo humano com adesivo (x400). (B) Molde de cutícula
e medular de pelo humano com adesivo (x400). (C) Medular de cachorro (x100). (D) Medular de cachorro-do-mato – padrão de
células globulares (x100). (E) Medular de coelho (x100). (F) Medular de coelho –
padrão de células multi-ladder (x100)

80
BIOMEDICINA FORENSE

A B

C D

Figura 33 – (A) Molde de cutícula e medular de pelo de gato com adesivo (x100). (B) Medular de cavalo – padrão de células amorfas (x100).
(C) Medular de puma – padrão de células globulares (x400). (D) Medular de veado pardo – padrão de células lattice (x400)

• Raiz: em pelos humanos apresenta um formato de fita ou clava e alongada; já em pelos de animais
visualiza-se um formato de pincel indefinido, alongado, com fibras desfiadas na base da raiz.

A B C

D E F

Figura 34 – (A) Cavalo – raiz alongada. (B) Mandril – raiz alongada. (C) Cachorro pug – raiz em forma de pincel (X100). (D) Urso pardo
– raiz em forma de pincel. (E) Dálmata – raiz com fibras desfiadas (x400). (F) Leopardo – raiz com fibras desfiadas (x400)

81
Unidade I

Tratamento químico

O pelo é homogêneo em cor e estrutura, mas quando submetido a tratamentos químicos (coloração,
descoloração, alisamento ou permanente) podem ser visualizadas mudanças de coloração e estrutura.

• Coloração: nesse caso, pode-se observar alteração nítida ou sutil de cores ao longo do
comprimento dos pelos.

Figura 35 – Cabelo humano tingido – com mudança brusca de cor

• Descoloração: visualização de mudanças bruscas de cor ao longo do pelo, podendo, ainda, ser
realizado o teste de infiltração do azul de metileno (corante) nos casos em que a demarcação
não esteja nítida.

• Permanente ou alisamento: esses tipos de tratamentos no pelo só serão visualizados com a


realização do teste de infiltração do azul de metileno.

Danos

Pode-se visualizar no pelo uma banda opaca de aproximadamente 0,5 mm acima do bulbo da raiz
em indivíduos post mortem e, ainda, danos na ponta ou na cutícula do pelo que os caracterizam como
queimados, esmagados, cortados (com diferentes instrumentos), esfiapados e com rupturas.

A B C

Figura 36 – (A e B) Bulbo arrancado. (C) Bulbo caído

82
BIOMEDICINA FORENSE

A B

C D

Figura 37 – (A) Pelo humano de cabeça com ponta esmagada. (B) Pelo humano de cabeça com ponta cortada.
(C) Pelo humano de cabeça com ponta esfiapada. (D) Pelo humano de cabeça com ruptura

Doenças

Raramente alguns pelos crescem de forma anormal devido a doenças, correspondendo a um


importante elemento na caracterização forense. Algumas dessas doenças são listadas a seguir.

• Pili Torti: o pelo apresenta uma região achatada e torcida em 180° ao longo do seu eixo;
formam‑se quatro ou cinco torções ao longo da haste do pelo de forma irregular.

• Pili Annulati: caracterizada pela alternância de áreas claras e escuras na haste do pelo.

• Trichorrhexis Nodosa: ao longo da haste há uma região aumentada, com perda de cutícula e
fibras corticais esfiapadas devido ao desgaste do pelo.

• Trichorrhexis Invaginata: uma determinada região da haste apresenta-se com um aspecto de nó


de bambu (determinada região da haste se alarga e a parte distal se invagina na parte proximal).

• Monilethrix: ao longo da haste formam-se nódulos elípticos (constrições), o pelo fica conhecido
como “contas de rosário”.

• Trichonodosis: apresenta nós na haste, sendo observados em pelos curtos, finos e encaracolados
de indivíduos com descendência africana ou europeia.

• Trichoschisis: observa-se fratura transversa (entre a cutícula e a região cortical) e ausência de cutícula.

• Trichoptilosis: pelos com pontas divididas (aparência de desfiada).

83
Unidade I

Diferenciação de pelos em relação a origem racial e da região do corpo

A diferenciação de pelos em relação a origem racial é extremamente difícil, se não impossível, devido
à grande miscigenação da população. Já para a determinação da região do corpo a qual o pelo pertence,
são realizadas análises macroscópicas e microscópicas, conforme demonstrado a seguir.

Quadro 3 – Algumas das características microscópicas que


podem ser observadas em pelos de várias regiões do corpo

Barba e
Cabeça Pubianos Membros Peito Axilares bigode
frequentemente
usualmente de cor mais
adelgaçada ou usualmente finas,
escura, mas pode
cortada, desgastada arredondada; a cor adelgaçada e alongadas,
Ponta aparecer descorada,
ou partida normal pode estar arredondada devido com aparência
empalidecida; longa
empalidecida ou ao uso de roupas descolorida
e fina, em formato
descorada de arco
diâmetro fino com diâmetro
variação de diâmetro variações de diâmetro moderado
pouca variação; moderado e
moderada; pode exibir diâmetro abruptas, e variável; diâmetro
Haste normalmente estes variável, com
tratamento químico e apresentando, frequentemente muito grosso
pelos têm formato menos torções
danos mecânicos comumente, torções exibem torções
de arco que o pubiano
ausente a contínua e
relativamente estreita relativamente larga e descontínua com similar aos larga e
Medular quando comparada à usualmente contínua pode ser granular
aparência granular membros contínua
estrutura de pelos de quando presente
outras áreas do corpo
raiz normalmente
Obs. com follicular tag

Adaptado de: Sawaya; Rolim (2009, p. 176).

Figura 38 – Seções transversais e formas: A) oval, de cabelo ondulado;


B) redonda ou circular, de cabelo liso; C) achatada ou elíptica, de cabelo crespo

84
BIOMEDICINA FORENSE

A B C

D E F

Figura 39 – (A) Axila. (B) Barba. (C) Bigode. (D) Braço. (E) Peito. (F) Pubiano

3.3.2 Tipagem de DNA nuclear ou mitocondrial de pelos

Quando o pelo é visualizado microscopicamente, é possível verificar a presença ou ausência de raiz e


sua classificação de acordo com as fases de crescimento, além da presença ou não de tecidos foliculares,
dessa forma, definindo a tipagem de DNA como nuclear ou mitocondrial.

DNA nuclear (nuDNA)

Encontrado no núcleo das células que compõem o corpo humano, sendo metade de herança
materna e a outra metade paterna. No caso de pelos, a maior quantidade de DNA nuclear está presente
nas células das raízes e das bainhas de tecidos foliculares translúcidos aderidos à porção distal da raiz,
principalmente na fase de crescimento anágena, sendo essas as células de escolha para a realização da
análise de nuDNA. Entretanto, pelos com raízes na fase catágena com ou sem bainha e na fase telógena,
que apresentem tecidos foliculares aderidos ao bulbo, também são utilizados com menor frequência na
análise de DNA nuclear.

A análise de nuDNA corresponde ao único método comparativo que permite uma identificação
100% confirmatória (positiva).

DNA Mitocondrial (mtDNA)

Encontra-se no interior das mitocôndrias, organelas responsáveis pela produção de energia, presentes
no citoplasma das células. O mtDNA carrega exclusivamente a herança materna e está presente de
forma numerosa nas mitocôndrias localizadas na haste do pelo, principalmente na fase telógena.

Para serem validados como métodos confirmatórios de identificação, a análise de mtDNA e o exame
microscópico de pelos não podem ser realizados de forma isolada na perícia, mas, sim, em conjunto.

85
Unidade I

Observação

Vale destacar que alguns fatores ambientais como exposição do pelo a


luz, altas temperaturas, umidade, poeira e terra, além da contaminação por
microrganismos, interferem na análise de DNA. Além disso, os tratamentos
químicos (clareamento e coloração) e processos de alisamento e de
permanente degradam o DNA presente na haste do pelo.

Lembrete

A tricologia forense estuda as fibras que compõem os diferentes tecidos e


a piloscopia forense estuda os pelos humanos e de animais e cabelos, vestígios
comumente encontrados em locais de crime. Atualmente, juntamente à
análise microscópica dos pelos e cabelos, emprega-se a biologia molecular
para determinação do perfil de DNA (nuclear ou mitocondrial), porém o
único método comparativo que permite identificação 100% confirmatória
(positiva) é a análise de DNA nuclear.

Exemplo de aplicação

Ainda sobre o caso Elisa Samudio, foram encontrados fios de cabelo em um colchão no interior da
casa, no sítio onde a vítima ficou em cárcere privado. Caso o corpo da vítima tivesse sido encontrado,
poderia ter sido feita a análise piloscópica (comparação entre os fios) para comprovação se realmente
eram (ou não) de Elisa.

3.4 Entomologia forense

A entomologia é uma área em crescente evolução na parte forense e contribui para a elucidação
de crimes através do estudo bioecológico dos insetos. Tal estudo pode ser empregado para estimar
o intervalo de tempo entre a morte e o encontro do cadáver, em casos de crimes violentos; inferir
a origem dos entorpecentes; caracterizar maus-tratos e falta de higiene em hospitais, creches,
asilos, entre outros estabelecimentos públicos e privados; bem como investigar a contaminação
de produtos estocados (arroz, milho etc.) ou industrializados (barras de cereais, biscoitos etc.) por
insetos, verificando se estão próprios para consumo sem conferir risco à saúde humana e, ainda, se
a infestação do produto ocorreu na indústria ou no comércio. Através do estudo dos insetos pode-se
verificar também a infestação de imóveis urbanos e revelar informações de interesse para as perícias
ambientais (bioindicadores).

86
BIOMEDICINA FORENSE

Figura 40 – Pacote de biscoito tipo água e sal infestados por insetos (coleópteros) da família Bostrichidae. Caracterizados
por infestar vários tipos de cereais, principalmente arroz, milho, cevada, centeio, trigo e produtos acabados, fazendo
perfurações nas superfícies, alimentando-se e reproduzindo-se em seu interior

É possível estimar o tempo de morte em um crime através do ciclo evolutivo dos insetos. Para tanto,
verifica-se seu estágio de desenvolvimento (ovo, larva, pupa e inseto adulto) no cadáver, sabendo que a
fase larval é constituída de subfases com períodos definidos.

Figura 41 – Larvas em cadáveres em putrefação

Figura 42 – Insetos imaturos (massa de ovos, larva e pupa, respectivamente) coletadas em local de crime contra a vida

Os dípteros (moscas) são os principais insetos para estudo do tempo de morte nas fases iniciais
e intermediárias da decomposição do corpo, pois são os primeiros a localizar o cadáver e realizar a
oviposição. As principais famílias de moscas observadas são: Calliphoridae, Sacophagidae, Muscidae e
Stratiomydae. Outra ordem de insetos também estudada para estimar o tempo de morte, principalmente

87
Unidade I

nas fases intermediárias e finais da decomposição cadavérica, é a coleóptera, representada pelos besouros,
tendo como principais grupos de estudo: Scarabeidae, Dermestidae, Carabidae, Cleridae e Silphidae.

Porém, outras famílias tanto de dípteros como de coleópteros podem ser estudadas nos cadáveres
em decomposição, dependendo das diferentes regiões do país e da localidade (área não ocupada, dentro
de casa etc.) em que o corpo foi encontrado. Ainda, outras ordens de insetos podem ser de interesse
forense, como Dermáptero, Lepdóptero, Himenóptero e Hemíptero.

A B C

D E

F G

Figura 43 – (A) Díptero da espécie Chrysomya albiceps, família Calliphoridae, inseto de grande importância na estimativa de
intervalo pós-morte. (B) Díptero da espécie Chrysomya megacephala, encontrado em cadáver periciado na cidade de
Macapá. (C) Díptero da espécie Cochliomya macellaria, família Calliphoridae, encontrado em cadáver periciado na
cidade de Macapá. (D e E) Dípteros da espécie Hermetia illucens associada ao cadáver de um infante encontrado
após mais de 40 dias de desaparecimento no estado do Amapá. (F e G) Insetos da ordem Coleoptera,
encontrados associados a cadáveres em estado de esqueletização no Amapá

A B

Figura 44 – Criação de dípteros coletados em cadáver e empregados em exame de entomologia forense

88
BIOMEDICINA FORENSE

Lembrete

Através do estudo das larvas e insetos encontrados no corpo em


putrefação é possível determinar, aproximadamente, o tempo de morte, o
real local da morte e da desova.

Observação

Na área policial, se fala em corpo desovado quando esse foi abandonado


em local ermo ou matagal.

Exemplo de aplicação

A entomotoxicologia é a área da entomologia que investiga a presença de substâncias como drogas,


fármacos e venenos em artrópodes que se alimentam de cadáveres humanos. Que tal pesquisarmos
mais sobre o assunto?

3.5 Botânica forense

A botânica forense compreende o estudo das algas e das diferentes classes de plantas, briófitas,
pteridófitas, gimnospermas e angiospermas. Essa área analisa não apenas o organismo como um todo,
mas também partes estruturais e órgãos de forma isolada.

O conhecimento das plantas, bem como sua anatomia (morfologia e histologia), fisiologia e
taxonomia (identificação das espécies através de características próprias), é essencial em muitos casos
criminais. Embora os vestígios botânicos degradem com facilidade, assim como tantos outros de interesse
forense, eles podem ser determinantes únicos para elucidação de um caso. Técnicas avançadas de
biologia molecular também contribuem para a identificação filogenética de espécies vegetais através
de sequenciamento.

A botânica forense pode ser empregada nos casos de tráfico de drogas, uma vez que a planta
é a matéria-prima utilizada na produção da maconha (Cannabis sativa) e da cocaína (refino da
Erythroxylum coca). Ainda, as plantas e suas estruturas (flores, pólen, sementes etc.) podem ficar
aderidas e serem transportadas nas vestes e no próprio corpo (cabelos, unhas etc.) do cadáver (ou vítima)
e do suspeito, sugerindo os locais onde estiveram e permaneceram durante a ação criminosa.

Em alguns casos de morte suspeita, podem ser encontrados resíduos de vegetais tóxicos no trato
digestivo da vítima, sugerindo envenenamento. Ainda, a presença de algas e plantas aquáticas aderidas
no trato digestório e respiratório, com água, confere hipótese de afogamento.

89
Unidade I

Outra situação de empregabilidade da botânica forense é na elucidação de crimes ambientais, como


na identificação das espécies vegetais protegidas (pau-brasil, mogno, jacarandá, imbuia etc.) que são
alvos de corte ilegal por fornecerem madeiras usadas para a fabricação de móveis e produção de carvão;
e na verificação de remoção de árvores em florestas consideradas de preservação permanente, em casos
de formação de pastagem e exploração pelos madeireiros.

A B

Figura 45 – (A) Fotografia de corte transversal de madeira de pau-brasil (Caesalpinia echinata).


(B) Espécie de Cannabis sativa plantada ilegalmente e encontrada em local de crime

Exemplo de aplicação

Exemplo de um caso criminal de repercussão em que se aplicou o conhecimento da botânica forense


para sua resolução foi a morte da advogada Mércia Nakashima. A elucidação do referido caso ocorreu
devido à constatação, por microscopia, da presença de alga na sola do sapato do suspeito Mizael, que,
quando comparada com as algas presentes na represa de Nazaré Paulista, onde encontraram o corpo da
vítima, demonstrou pertencer ao mesmo gênero, Chaetophora sp.

Ainda, com a análise da alga encontrada na sola do sapato, ficou evidenciado que o acusado
teria entrado na represa para empurrar o veículo, uma vez que tal alga é subaquática e não é
encontrada nas margens devido a sua sensibilidade à luz, o que colaborou para a descrição da
dinâmica do crime.

Embora esse tipo de alga possa ser encontrada em outras represas, é muito comum sua presença e
o favorecimento de sua proliferação na represa de Nazaré Paulista, devido ao processo de eutrofização
decorrente dos poluentes orgânicos lançados nas águas.

Outra característica importante observada foi que a amostra de alga encontrada na sola do sapato
era recente, coincidindo com a época do crime.

90
BIOMEDICINA FORENSE

4 GENÉTICA FORENSE

A primeira análise de DNA para fins criminais ocorreu em 1986, na Inglaterra, para elucidação
de dois assassinatos que aconteceram em épocas diferentes, porém, praticados por um mesmo
indivíduo. Devido ao sucesso da referida análise na elucidação dos crimes, vários laboratórios de
genética forense foram construídos em diversos países com a finalidade exclusiva de atender e ajudar
nas investigações criminais.

O Brasil teve seus primeiros laboratórios de genética forense na década de 1990 e, somente a partir
de 2004, com investimentos da Secretaria Nacional de Segurança Pública, houve um incremento no
número de laboratórios com a finalidade forense, bem como na capacitação de peritos criminais oficiais
e na padronização de procedimentos.

Atualmente, em razão de vários países possuírem laboratórios de genética forense, foram criados
bancos de dados de perfis genéticos que estão interligados e são alimentados com amostras coletadas
em local de crime e perfis genéticos de indivíduos condenados ou suspeitos de algum delito.

No Brasil, em 2010, foi criada a Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos, a qual interliga,
atualmente, 16 laboratórios. Essa rede está conectada ao Banco Nacional de Perfis Genéticos, do Instituto
Nacional de Criminalística, em Brasília, e para tal deve atender uma série de requisitos técnicos e seguir
procedimentos padrões estabelecidos pelo seu comitê gestor. O Banco Nacional de Perfis Genéticos
permite a identificação de criminosos que estejam agindo em diferentes estados da federação.

A criação, permissão e utilização desses bancos de perfis genéticos brasileiros estão respaldadas pela
Legislação após a alteração de várias leis, como quando foram estabelecidas as circunstâncias (crimes)
em que a identificação genética é compulsória e determinou-se que todo condenado por crime violento
contra a pessoa ou por crime hediondo deverá ser identificado geneticamente.

4.1 Aplicações da genética forense

A genética forense tornou-se uma área específica das ciências forenses que se baseia em assuntos
relacionados à genética e utiliza como ferramenta técnica a biologia molecular com o intuito de
elucidar diversos tipos de crimes pela identificação e comprovação da autoria. Porém, atualmente,
o exame de DNA também está sendo empregado para demonstrar a inocência de suspeitos e de
condenados equivocadamente.

Normalmente, todo crime deixa vestígios que contêm DNA, ou seja, amostras de materiais biológicos
(suor, sangue, urina, pelos, saliva, restos de pele, sêmen, fezes, ossos, dentes, vômito, unha etc.) que
possuem em sua constituição células nucleadas passíveis de exame genético. Para tal, o perito deve
coletar os vestígios biológicos que podem estar aderidos no chão, nas paredes e em outros suportes
imóveis ou de difícil transporte, sendo, nesses casos, a coleta feita no próprio local do crime com
um swab. Em casos em que os vestígios estiverem aderidos em objetos como copos, latas, garrafas,
vestes, tocos de cigarro, máscaras, facas, entre outros, tais objetos devem ser coletados, lacrados e
transportados até o laboratório para realização do exame de DNA. Esse exame consiste em submeter
91
Unidade I

as amostras biológicas (vestígios) a um processo de extração e purificação de DNA e, em seguida, é


realizada a análise das características determinadas por marcadores genéticos para obtenção do perfil
genético da amostra questionada. Mesmo com a utilização dos marcadores genéticos, no exame de
DNA se faz necessária a comparação da amostra questionada (vestígios biológicos coletados no local
do crime) com amostras de referência (sangue, saliva, célula bucal etc.) coletadas da vítima, de seus
familiares e do próprio suspeito.

Apesar da diversidade genética da população humana, para diferenciar dois indivíduos através do
DNA é preciso analisar as regiões polimórficas, as quais se encontram em aproximadamente 1% do
nosso genoma. Essas regiões ou sequências de DNA são específicas, de diferentes tamanhos e se repetem
sequencialmente (tandem) em diferentes lugares (locus) do genoma, sendo chamadas de minissatélites
ou VNTRs (repetições em tandem de número variável).

Devido às VNTRs apresentarem tamanhos entre dez e cem pares de bases repetidas em tandem e em
múltiplas regiões do genoma, dificultando a interpretação dos resultados das análises de DNA, elas foram
substituídas por sequências curtas (dois a dez pares de bases), localizadas em regiões não codificadoras
do genoma, conhecidas como STRs (pequenas sequências repetidas em tandem) ou microssatélites, que
representam 30% das regiões repetitivas do genoma.

A maioria dos marcadores genéticos STRs apresenta repetições de dois nucleotídeos, como (AC)n;
porém, para a identificação humana utilizam-se marcadores STRs de quatro a cinco nucleotídeos (GGAAn)
de uma região específica do genoma e presente em um único locus.

O número de repetições dessas sequências e o surgimento de novos alelos ocorrem devido a erros
(mutações) durante a replicação celular na formação das células germinativas, levando a uma variação
genética. A mais conhecida é a SNPs (polimorfismos de uma única base) que ocorre devido a uma
transcrição em uma determinada posição da sequência de DNA. Geralmente, os SNPs são bialélicos, o
que os diferencia dos marcadores genéticos STRs, que apresentam muitos alelos em um mesmo locus,
tornando-os muito variáveis. Se comparado aos cromossomos homólogos de um único indivíduo, pode
ser observado um SNP a cada mil pares de bases.

Outra variação genética que ocorre no genoma humano é a inserção ou deleção (Indel) de uma
sequência de DNA em determinado locus; essa variação é insignificante na identificação humana, porém
poderá ser empregada em futuras metodologias para análises de DNA.

Entre os diferentes marcadores genéticos descritos anteriormente, o de maior relevância em casos


forenses são os STRs encontrados nos cromossomos autossômicos.

92
BIOMEDICINA FORENSE

Figura 46 – (A) Marcadores genéticos dos tipos STRs e SNPs. (B) Marcadores genéticos do tipo Indel

Figura 47 – Padrões de herança genética de STRs autossômicos, cromossomo Y e DNA mitocondrial

93
Unidade I

Para a realização do exame de DNA, existem protocolos e procedimentos de manipulação


preestabelecidos, que incluem desde coleta da amostra biológica (vestígio), documentação,
armazenamento, transporte e preservação até a execução da análise no laboratório, garantindo um
resultado fidedigno e confiável.

O exame de DNA tem aplicação em diversas situações criminais, destacando-se as elencadas a seguir.

• Amostras de local de crime: amostras biológicas (sangue, sêmen, cabelo, saliva, entre outras)
coletadas no local de crime (arrombamento, morte violenta, local de estupro etc.) podem ser,
posteriormente, submetidas ao exame de confronto de DNA, que, além de evidenciar a autoria do
crime, também poderá auxiliar no entendimento da dinâmica dos fatos e do número de pessoas
que se encontravam no local.

• Identificação de cadáver: o exame de DNA é feito em cadáveres desconhecidos quando esses


não forem identificados através das análises papiloscópica, antropológica, de arcada dentária,
entre outras, ou ainda quando o cadáver está na fase de esqueletização. No primeiro caso, o
sangue corresponde à amostra de escolha a ser coletada (cartão FTA) para o exame de DNA; já no
segundo caso, colhem-se dentes e ossos. Normalmente, em casos de cadáveres desconhecidos e
vítimas de homicídios, é feita a coleta de material biológico para arquivamento, evitando-se, ao
longo da investigação, a exumação do corpo para o confronto de DNA e elucidação do caso.

• Violência sexual: para identificar e confirmar a autoria desse tipo de crime é realizado o confronto
de DNA, ou seja, análise comparativa entre a amostra de referência (coletada da vítima e do
suspeito) e as amostras questionadas (coletadas do corpo da vítima – secreção vaginal, anal, oral,
manchas, cabelos etc.; de objetos – preservativos, vestes, lençóis, papel higiênico etc.; ou do corpo
do suspeito – manchas de sangue, saliva, secreções, pelos etc.).

• Paternidade criminal: realiza-se o exame de DNA para verificar o vínculo genético; é aplicado
principalmente em menores de idade para investigação de paternidade, em casos de gravidez e
nascimento de uma criança fruto de violência sexual (estupro) e quando há suspeita de troca de
bebês na maternidade. O exame de DNA se tornou conhecido quando passou a ser utilizado para
investigação e determinação de paternidade na esfera cível, entretanto, nos dias atuais, compete
aos laboratórios particulares e públicos (pertencentes a universidades, hospitais e institutos), e
não mais aos laboratórios forenses, a realização do exame de DNA para essa finalidade.

• Identificação de material animal: em casos de tráfico de animais silvestres, pesca ou caça ilegal,
roubo de gado, transporte ou utilização de partes, produtos ou subprodutos (couro, penas, peles,
ovos, entre outros) de animais silvestres, biopirataria, identificação de paternidade e pedigree de
animais domésticos, entre outros.

• Identificação de material vegetal: em casos de desmatamento (cortes, queimadas etc.),


transporte e utilização comercial de madeira ilegal, identificação de vegetais proscritos no
país (Cannabis sativa, Erythroxylum coca etc.), biopirataria, plantio ilegal de espécies vegetais
protegidas ou transgênicas, tráfico de entorpecentes, entre outros.
94
BIOMEDICINA FORENSE

• Identificação de microrganismos: identificação de microrganismos patogênicos em casos de


bioterrorismo, agentes biológicos de risco e de interesse sanitário e contaminantes ambientais,
de alimentos, de medicamentos e produtos industrializados.

Para o sucesso dos exames de confronto de DNA na criminalística é importantíssima a interação de


informações entre as polícias (militar e civil), o Instituto Médico Legal (IML), o instituto de criminalística (IC),
o instituto de identificação, laboratórios forenses (biologia, química etc.) e laboratórios de genética
forense, além, é claro, de possuir equipamentos (lanterna, espectrofotômetros, cromatógrafos,
sequenciadores etc.) e reagentes (luz forense, luminol etc.) apropriados para atender desde a coleta de
materiais biológicos até a referida análise.

A B C

D E

F G

Figura 48 – (A) Faca utilizada em homicídio e encontrada na casa do suspeito. Após exame de DNA foi confirmada a presença de
sangue da vítima na faca. (B e C) Esqueletos encontrados numa embarcação a deriva na costa do Amapá e encaminhados para
exame de DNA na Politeca-AP. (D) Preservativo encontrado em local de estupro e encaminhado para exame de DNA.
(E) Veste íntima infantil empregada em exame de DNA que incriminou um suspeito de cometer crimes sexuais contra
menores no município de Santana-AP. (F e G) Exame de paternidade criminal realizado para elucidar uma suposta
trocas de bebês em uma maternidade da cidade de Macapá-AP

95
Unidade I

4.2 Exame de DNA

Para a realização do exame de DNA, independentemente de sua finalidade, as amostras biológicas


a serem analisadas devem passar pelas seguintes etapas: extração e purificação, quantificação,
amplificação dos marcadores genéticos, separação e detecção dos marcadores genéticos, interpretação
dos perfis genéticos e confronto genético. Vejamos melhor o que se dá em cada uma delas.

Na etapa de extração e purificação, ocorre a separação (extração) do DNA total da célula (nuclear e
mitocondrial) dos demais componentes celulares (lipídios e proteínas, por exemplo) através da ruptura do
tecido e lise das células. Esse procedimento preserva o DNA contra degradação por enzimas endógenas
(DNAase) e contra possíveis contaminantes presentes na amostra, uma vez que essa pode ser obtida de
diferentes locais como solo, paredes, pisos, tocos de cigarro, copos, vestes, entre outros substratos que
podem apesentar interferentes (inibidores) para a análise de DNA.

Existe uma infinidade de protocolos para extração do DNA, os quais são adaptados de acordo com
as diferentes amostras biológicas a serem analisadas (sangue, ossos, dentes, pelos, secreção vaginal etc.),
bem como disponibilidade de reagentes e equipamentos do laboratório. De um modo geral, a extração
de DNA é feita de todas as células da amostra ao mesmo tempo, com exceção nos casos de violência
sexual, em que se faz a extração de DNA por lise diferencial, ou seja, extração do DNA das células
epiteliais da vítima separadamente da extração dos espermatozoides do agressor.

Na etapa de quantificação, determina-se a concentração de DNA presente na amostra, verificando


a presença de inibidores e contaminantes, evidenciando a degradação ou não do DNA e, dependendo da
técnica empregada, pode-se ainda determinar se o DNA presente na amostra é de um homem, mulher
ou de ambos. Normalmente, para essa etapa os laboratórios forenses utilizam como técnica o RT-PCR
(polymerase chain reaction em tempo real).

Na etapa de amplificação dos marcadores genéticos, a amplificação do DNA é feita através da


técnica de PCR e consiste em amplificar in vitro uma sequência específica ou alvo a partir de quantidades
ínfimas de DNA (semelhante ao processo de replicação de DNA que ocorre durante a divisão celular).

Para que ocorra a amplificação do DNA, são necessários três passos:

• desnaturação: abertura das fitas da dupla hélice do DNA através da quebra das pontes de
hidrogênio por altas temperatura (94 °C a 95 °C);

• anelamento: é a delimitação através do pareamento dos oligonucleotídeos iniciadores de cadeia


(primers) da região específica ou alvo a ser amplificada. Essa etapa acontece em temperaturas
entre 50 °C e 60 °C e depende da sequência e tamanho dos primers;

• extensão: é a síntese da nova fita a partir dos iniciadores de cadeia e da reação que utiliza a DNA
polimerase (temperatura ótima: 72 °C).

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Figura 49 – Reação em cadeia da polimerase de DNA (PCR)

Esse ciclo de etapas é repetido de 25 a 35 vezes, resultando na amplificação de aproximadamente


1 bilhão de sequências de DNA específico ou alvo. Assim, a técnica de PCR revolucionou a genética
forense, pois na maioria das vezes os vestígios (amostras biológicas) encontrados em local de crime são
muito poucos ou insuficientes para as diferentes análises forenses.

Geralmente, nos exames de DNA são amplificados de dez até mais que vinte marcadores em uma
mesma reação (multiplex).

Na etapa de separação e detecção dos marcadores genéticos é utilizado um sequenciador de


DNA que irá separar por tamanho e detectar por fluorescência os produtos de amplificação que foram
submetidos a iniciadores de cadeia (primers) marcados com fluoróforos para sua visualização.

Na etapa de interpretação dos perfis genéticos é feita a interpretação do eletroferograma através


de programas específicos, eletroferograma no qual cada pico evidenciado é um produto de amplificação
e representa um alelo. O perfil genético da amostra é determinado pelo número de repetições de STRs
de cada alelo amplificado, sendo que em indivíduos heterozigotos os STRs autossômicos possuem dois
alelos para cada marcador e no caso de STRs do cromossomo Y (masculino) observa-se um alelo para
cada marcador, exceto o marcador DYS385 (duplicado no cromossomo Y).

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Unidade I

Figura 50 – (A) Perfil genético de STRs autossômico e (B) perfil genético de STRs do cromossomo Y. Ambos obtidos a partir da amostra
de um indivíduo do sexo masculino utilizando o AmpFLSTR® Identifiler® PCR Amplification Kit (Life Technologies)

Por fim, na etapa de confronto genético há a comparação do perfil genético obtido a partir da
análise do material biológico coletado da própria vítima ou dos vestígios com a amostra biológica (sangue,
saliva, raspado de células bucais etc.) coletada do suspeito (criminoso ou pai em caso de verificação de
paternidade). Quando o perfil genético encontrado na vítima ou no vestígio não for idêntico ao do
suspeito ocorre uma exclusão, mas, se ambos os perfis coincidirem, é necessário analisar o peso da
evidência genética, e, dessa forma, calcula-se a probabilidade ou a frequência de ocorrência do genótipo
perante a população a qual pertence, ou pode-se ainda verificar a razão de verossimilhança (RV).

Para obtenção da probabilidade, utilizam-se as frequências dos alelos para cada um dos marcadores
analisados, verificando, dessa forma, se o genótipo do suspeito é o mesmo de outro indivíduo da população.
Quanto menor for a frequência do genótipo (1 em 1 bilhão ou trilhão), maior será o peso da evidência
genética, ou seja, a confirmação de que aquele material biológico analisado seja oriundo do suspeito.

Já a razão de verossimilhança é a razão de duas hipóteses (H1 e H2) de exclusão mútua, ou


seja, H1 (hipótese da acusação) supõe que o material biológico analisado seja do suspeito (valor da
probabilidade 1) e H2 (hipótese da defesa ou alternativa) supõe que o material biológico analisado
seja igual a de outro indivíduo da população (exemplo, valor da probabilidade 1/1.000.000.000).
O cálculo da RV é H1/H2, que neste exemplo nos mostra que o material biológico analisado na H1 é
1 bilhão de vezes mais provável do que na H2.

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Figura 51 – (A) Confronto entre o perfil genético obtido a partir de um vestígio e os perfis genéticos de possíveis suspeitos do crime.
(B) Exemplos de perfis genéticos de um vestígio encontrado em local de crime e dos perfis genéticos de dois suspeitos

Nos casos de verificação de paternidade e/ou maternidade, observa-se os alelos do(a) filho(a) para
evidenciar e certificar seus vínculos genéticos, lembrando que 50% deles são herdados da mãe e os
outros 50% do pai. Quando dois ou mais alelos analisados, paternos ou maternos, forem diferentes
dos encontrados no filho(a), exclui-se a possibilidade de paternidade ou maternidade (veja tabela
a seguir). Essa análise também obedece à razão de probabilidade ou à frequência de ocorrência do
genótipo perante a população a que pertencem o suposto pai e a suposta mãe.

Tabela 1 – Herança dos alelos num caso de paternidade. O suposto pai


possui todos os alelos paternos obrigatórios presentes no filho

Marcadores Suposto pai Filho Mãe


D8S1179 12, 13 12, 14 11, 14
D21S11 28, 30 29, 30 29, 32
D7S820 8, 10 7, 10 7, 11
CSF1PO 8 8 (8/8) 8, 10
D3S1358 12, 13 13 (13/13) 13

Fonte: Velho; Geiser; Espindula (2017, p. 257).

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Unidade I

Ainda, podem-se analisar marcadores uniparentais (STRs do cromossomo Y – pai ou STRs do DNA
mitocondrial – mãe), ou seja, nesse tipo de análise observam-se apenas os marcadores herdados de um
dos progenitores, e não da combinação deles. Esse tipo de análise pode ser aplicada nos casos de violência
sexual, quando somente é obtido o STRs do cromossomo Y a partir de vestígios e comparados com o perfil
genético do suspeito, tendo que incluir todos os indivíduos pertencentes a mesma linhagem paterna.
Para confirmação do perfil genético do suspeito no crime sexual, é realizado o cálculo da probabilidade
da ocorrência do haplótipo na população através da razão de verossimilhança. O mesmo tipo de análise e
cálculo são feitos quando utilizado o STRs do DNA mitocondrial.

Lembrete

Normalmente, todo crime deixa vestígios que contêm DNA, ou seja,


amostras de materiais biológicos que possuem em sua constituição células
nucleadas passíveis de exame genético. O exame de DNA é baseado na
comparação das amostras questionadas com amostras de referência
coletadas da vítima, de seus familiares e do próprio suspeito.

Observação

A genética forense é empregada na maioria dos casos criminais,


tanto para identificação da vítima, quanto para confirmação ou exclusão
do envolvimento do suspeito no crime, através da análise de materiais
biológicos presentes nos vestígios deixados no local, em instrumento
utilizados ou, ainda, no corpo ou vestes dos próprios envolvidos.

Em relação aos casos de repercussão que estão sendo trabalhados


como exemplos práticos, caberia a realização de exame de DNA nos
vestígios (manchas de sangue, cabelos e segmentos de corpo humano) e
no instrumento (serrote) utilizado em um dos crimes, para comprovação da
identidade das vítimas e, consequentemente, o envolvimento dos suspeitos.
Tais análises podem ser realizadas por profissionais biomédicos que atuam
na área de genética forense.

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Resumo

Ciências forenses é o nome dado à ciência que utiliza os conhecimentos


técnico-científicos dos diferentes ramos das ciências naturais (matemática,
química, física e biológica) para análise de vestígios, com o objetivo de
responder as demandas e questionamentos jurídico-policiais.

Nessa ciência, a pesquisa e os exames de caráter técnico e específico


empregados na elucidação de questões ligadas à prova pericial compreendem
o que se chama de perícia, que ainda pode se caracterizar como cível ou criminal.

O laudo pericial é um documento que deve pautar a constatação


do fato e expor todo o roteiro das análises periciais realizadas e suas
interpretações, levando a resultados técnico-científicos que possam
salvaguardar a conclusão do trabalho pericial na elucidação fidedigna de
um caso em estudo.

Para tanto, algumas ações são imprescindíveis para obtenção desses


resultados, a começar pelo isolamento físico do local do crime. Assim, é
necessário isolar a maior área possível dentro do contexto e da situação
existente para que não ocorra o risco de perda ou contaminação dos
vestígios que levem a apuração dos fatos.

Em uma cena de crime, os peritos criminais devem procurar por objetos,


marcas ou sinais sensíveis que em princípio tenham relação com o delito.
Todo material bruto constatado e/ou recolhido no local do crime passa a
ser considerado um vestígio, que depois de estudado e interpretado pelos
peritos e comprovada sua relação com o fato se transforma em evidência.

Várias áreas corroboram com a ciência forense, como a toxicologia


forense, responsável por determinar drogas de abuso, praguicidas, gases,
metais e outras substâncias em diferentes matrizes biológicas que possam
ter alguma relação com o fato criminoso. Para a detecção dessas substâncias,
utilizam-se testes qualitativos de triagem, como os colorimétricos,
de precipitação, técnica de imunocromatografia e cromatografia em
camada delgada (CCD) e os métodos quantitativos confirmatórios, como
cromatografia gasosa (CG) e cromatografia líquida de alta eficiência (CLAE)
com seus diferentes detectores.

A biologia forense é a área responsável por analisar toda e qualquer


amostra biológica com o objetivo de localizar, identificar, caracterizar a
sua origem e verificar a dinâmica, os meios e os modos de como ocorreu

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Unidade I

o evento. Dessa maneira, a biologia forense se subdivide em diferentes


áreas, como hematologia forense, citologia forense, piloscopia e tricologia
forenses, entomologia forense, botânica forense e genética forense. Todas
elas estão correlacionadas e trabalham em associação a outras áreas para
elucidação eficaz e precisa de um caso.

A genética forense é uma área específica das ciências forenses que


se baseia em assuntos relacionados à genética e utiliza como ferramenta
técnica a biologia molecular com o intuito de elucidar diversos tipos de
crimes pela identificação e comprovação da autoria.

Exercícios

Questão 1. (CESP 2016) Psiquiatria forense é o ramo da medicina legal que trata de questões
relacionadas ao funcionamento da mente e sua interface com a área jurídica. O estabelecimento do
estado psíquico no momento do cometimento do delito e a capacidade de entendimento desse ato são
dependentes das condições de sanidade psíquica e desenvolvimento mental, que também influenciam
na forma de percepção e no relato do evento, com importância direta para o operador do direito, na
tomada a termo e na análise dos depoimentos. A respeito de psiquiatria forense e dos múltiplos aspectos
ligados a essa área, assinale a opção correta.

A) A surdo-mudez é motivo de desqualificação do testemunho, da confissão e da acareação, pois,


sendo causa de desenvolvimento mental incompleto, impede a comunicação.

B) Nos atos cometidos, pode haver variação na capacidade de entendimento, por doente mental
ou por indivíduo sob efeito de substâncias psicotrópicas ou entorpecentes, do caráter ilícito do
ato por ele cometido; cabe ao perito buscar determinar, e assinalar no laudo pericial, o estado
mental no momento do delito.

C) A perturbação mental, por ser de grau leve quando comparada a doença mental, não reflete na
capacidade cível nem na imputabilidade penal.

D) Em indivíduos com intoxicação aguda pelo álcool, observam-se estados de automatismos e


estados crepusculares.

E) O desenvolvimento mental incompleto ou retardado, tecnicamente denominado oligofrenia, está


diretamente relacionado à ocorrência de epilepsia.

Resposta correta: alternativa B.

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Análise das alternativas

A) Alternativa incorreta.

Justificativa: a surdo-mudez não é causa de desenvolvimento mental incompleto e depende da


capacidade de escolarização, além do entendimento e comunicação do surdo-mudo. Art. 192 CPP.
O interrogatório do surdo-mudo será feito pela forma seguinte: III - ao surdo-mudo as perguntas serão
formuladas por escrito e do mesmo modo dará as respostas. Parágrafo único. Caso o interrogando não
saiba ler ou escrever, intervirá no ato, como intérprete e sob compromisso, pessoa habilitada a entendê-lo. 

B) Alternativa correta.

Justificativa: o estado mental que pode qualificar as situações de isenção de pena ou diminuição
de pena é aquele encontrado no momento da ação ou omissão criminosa. Observação: substâncias
entorpecentes também são psicotrópicas.

C) Alternativa incorreta.

Justificativa: a perturbação mental, por ser de grau leve, quando comparada a doença mental, reflete
na capacidade cível e pode ser causa de semi-imputabilidade (diminuição de pena).

D) Alternativa incorreta.

Justificativa: automatismos e estados crepusculares podem ocorrer em casos de crises epilépticas, e


não em embriaguez aguda.

E) Alternativa incorreta.

Justificativa: o desenvolvimento mental incompleto ou retardado (oligofrenia) não tem relação com
a ocorrência de epilepsia.

Questão 2. (Enade 2008) Há sete anos, em uma cidade da região rural do Sul do país, foi registrado o
desaparecimento de uma criança de dois anos de idade que brincava no quintal de sua casa. Durante as
investigações, foram encontrados vestígios biológicos no local do desaparecimento, que foram coletados
e submetidos a análises de biologia forense, que revelaram a presença de sangue humano contendo
vários tipos celulares, como hemácias, neutrófilos e linfócitos, além de contaminação com células
animais de outra espécie. Além desses exames, foram realizados estudos de vínculo genético entre
as amostras de sangue humano encontradas no local do desaparecimento e as dos pais biológicos da
criança desaparecida. Recentemente, foi encontrada uma criança de nove anos de idade que apresenta
um sinal na pele muito semelhante ao da criança desaparecida. Foram colhidas amostras de sangue
e realizadas análises comparativas com o material obtido sete anos atrás que confirmaram tratar-se
da mesma pessoa.

Considere que, para realizar as análises descritas no texto, estivessem disponíveis no laboratório de
biologia forense as técnicas de PCR (reação em cadeia da polimerase), eletroforese e sequenciamento
automático de DNA, indicadas para analisar marcadores genéticos dos tipos SNPs (polimorfismo de

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Unidade I

nucleotídeo único) do DNA mitocondrial, STR (repetições curtas em série) nucleares e SNPs nucleares.
Acerca desse assunto, assinale a opção correta.

A) Caso a amostra contenha apenas hemácias, a análise de marcadores genéticos SNPs do DNA
mitocondrial não poderá ser utilizada.

B) Para que se possa usar a técnica de PCR, é necessário acrescentar ao sistema microrganismos que
secretem a enzima DNA polimerase.

C) Para a obtenção de um perfil genético individual, é necessária a análise de regiões genômicas do


tipo STRs que apresentem repetições de sequências maiores que 1.024 bases.

D) Para se realizar a PCR, deve-se, antes, separar a amostra por eletroforese e(ou) sequenciamento
automático.

E) As técnicas mencionadas são independentes e, portanto, não podem ser combinadas entre si.

Resposta correta: alternativa A.

Análise das alternativas

A) Alternativa correta.

Justificativa: as hemácias (glóbulos vermelhos ou eritrócitos) são células sanguíneas que contêm, em
seu interior, grande quantidade de hemoglobina, o pigmento vermelho responsável pelo transporte de
oxigênio no sangue. Em termos de estrutura celular, as hemácias são extremamente simples: possuem
apenas membrana plasmática, citosol e hemoglobina. Essas células não têm núcleo e organelas, o que
impede a divisão celular e a ocorrência de atividades metabólicas extensivas. Não há DNA nuclear nem
mitocondrial nas hemácias, o que as torna inúteis para aplicação de técnicas forenses de identificação
de polimorfismos genéticos.

B) Alternativa incorreta.

Justificativa: na técnica da PCR, há produção extensiva artificial (amplificação) de cópias de trechos
específicos de DNA. A produção dessas cópias se dá pela ação da enzima DNA polimerase, que é
adicionada ao sistema artificial de amplificação. Essa enzima usada na PCR suporta as temperaturas
elevadas em que acontecem a desnaturação e a montagem de novas moléculas de DNA. Uma dessas
enzimas, a Taq polimerase, produzida naturalmente pela bactéria termorresistente Thermus aquaticus,
é purificada e comercializada para laboratórios de biologia molecular. Portanto, ao contrário do que
afirma a alternativa, a enzima polimerase é acrescida em estado purificado ao sistema da PCR, sem a
necessidade de adicionar o próprio microrganismo secretor da enzima no procedimento.

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C) Alternativa incorreta.

Justificativa: as regiões genômicas do tipo STRs são também chamadas de repetições curtas em série
justamente porque contêm repetições de segmentos pequenos de DNA (de 2 a 9 pares de bases), e não
de sequências grandes, como descreve a alternativa.

D) Alternativa incorreta.

Justificativa: conforme ilustrado na figura a seguir, a realização da PCR precede a eletroforese e


o sequenciamento automático do DNA, e não o contrário, como afirma a alternativa. A eletroforese e o
sequenciamento automático de DNA são procedimentos cujos resultados são insatisfatórios caso não se
disponha de uma quantidade mínima de DNA. A quantidade de DNA extraído diretamente das células não seria
suficiente para a realização dos dois procedimentos, daí a necessidade de amplificar, ou seja, produzir várias
cópias de determinados trechos de DNA importantes para a análise. Essa amplificação é realizada pela PCR.

Extração
do DNA das Evidência
células

Amplificação do DNA Crime


pela Reação em Cadeia
da Polimerase (PCR) e
marcação fluorescente

Separação dos fragmentos


flurescentes em um sequenciador Análise automática
automático de DNA no computador

Figura 52 – Etapas da aplicação da identificação da individualidade genética pelo DNA em uma investigação criminal.

PENA, S. D. J. Segurança Pública: determinação de identidade genética pelo DNA.


In: Seminários Temáticos para a 3a Conferência Nacional de C, T & I. Parcerias Estratégicas (20): 447-460, 2005.

E) Alternativa incorreta

Justificativa: como discutido na justificativa da alternativa D e apresentado na figura anterior, a


análise do DNA obedece a uma sequência de etapas e, em cada uma, é utilizada uma técnica diferente.
Assim, a técnica de extração precede a PCR, que, por sua vez, precede a eletroforese e o sequenciamento.
Logo, há uma dependência entre as técnicas, as quais devem ser utilizadas de modo combinado.
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