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Neste livro reuni, em ordem cronológica,

os artigos publicados em jornais locais


e periódicos como o Le Monde, escritos
durante o período da pandemia de Covid-19.
São escritos breves que privilegiam a
forma sintética e didática de discutir temas
oportunos e que a experiência do isolamento
permitiu questionar. Assim, este conjunto
de textos busca mais identificar problemas
do que propor certezas; visa mais favorecer
visões compartilhadas do que impor a
própria visão do autor. Adalberto Retto Jr,
novembro de 2021.
CONSELHO DE PARECERISTAS

Profª Drª Alba Regina Azevedo Arana – UNOESTE


Prof. Dr. Alexandre Carneiro da Silva
Prof. Dr. Alexandre França Tetto – UFPR
Prof. Dr. Alexandre Sylvio Vieira da Costa – UFVJM
Prof. Dr. Alfredo Zenen Dominguez González – UNEMAT
Profª Drª Alina Gonçalves Santiago – UFSC
Profª Drª Aline Werneck Barbosa de Carvalho – UFV
Profª Drª Ana Klaudia de Almeida Viana Perdigão – UFPA
Profª Drª Ana Lúcia Reis Melo Fernandes da Costa – IFAC
Profª Drª Ana Paula Santos de Melo Fiori – IFAL
Prof. Dr. André de Souza Silva – UNISINOS
Profª Drª Andrea Holz Pfutzenreuter – UFSC
Projeto Gráfico Jeferson Rocha Chiarini e Hanna Abou Prof. Dr. Antonio Fábio Sabbá Guimarães Vieira – UFAM
Prof. Dr. Antonio Marcos dos Santos – UPE
Ficha Catalográfica
Profª Drª Arlete Maria Francisco – FCT/UNP
Profª Drª Beatriz Ribeiro Soares – UFU
Prof. Dr. Carlos Andrés Hernández Arriagada
R439c Retto Júnior, Adalberto da Silva, 2021 Profª Drª Carmem Silvia Maluf – Uniube
Coletânea de textos sobre Urbanismo e a Cidade Contemporânea: 05/04/2020 à Profª Drª Célia Regina Moretti Meirelles – UPM
29/08/2021 / Adalberto da Silva Retto Júnior– Tupã: ANAP, 2021.
Prof. Dr. Cesar Fabiano Fioriti – FCT/UNESP
109 p; 14.8x21cm
Prof. Dr. Cledimar Rogério Lourenzi – UFSC
Requisitos do Sistema: Adobe Acrobat Reader Profª Drª Cristiane Miranda Martins – IFTO
ISBN 978-65-86753-42-4 Profª Drª Daniela de Souza Onça – FAED/UESC
Profª Drª Denise Antonucci – UPM
1. Urbanismo. 2. Cidade. 3. Contemporânea. Profª Drª Diana da Cruz Fagundes Bueno – UNITAU
I. Título. Prof. Dr. Edson Leite Ribeiro – Unieuro – Brasília / Ministério das Cidades
Profª Drª Eliana Corrêa Aguirre de Mattos – UNICAMP
CDD: 710 Profª Drª Eloisa Carvalho de Araujo – UFF
CDU: 710/49 Profª Drª Eneida de Almeida – USJT
Índice para catálogo sistemático Prof. Dr. Erich Kellner – UFSCar
Brasil: Planejamento urbano e paisagismo
Profª Drª Fátima Aparecida da SIlva Iocca – UNEMAT
Prof. Dr. Felippe Pessoa de Melo – Centro Universitário AGES
Profª Drª Fernanda Silva Graciani – UFGD
Profª Drª Flávia Akemi Ikuta – UMS

III
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Prof. Dr. Francisco Marques Cardozo Júnior – UESPI Profª Drª Maria Betânia Moreira Amador – UPE – Campus Garanhuns
Prof. Dr. Frederico Braida Rodrigues de Paula – UFJF Profª Drª Maria Helena Pereira Mirante – UNOESTE
Prof. Dr. Frederico Canuto – UFMG Profª Drª Maria José Neto – UFMS
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Prof. Dr. Generoso De Angelis Neto – UEM Profª Drª Martha Priscila Bezerra Pereira – UFCG
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Prof. Dr. João Cândido André da Silva Neto – UEA Profª Drª Olivia de Campos Maia Pereira – EESC – USP
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Prof. Dr. José Aparecido dos Santos – FAI Prof. Dr. Renan Antônio da Silva – UNESP – IBRC
Prof. Dr. José Manuel Mateo Rodriguez – Universidade de Havana – Cuba Prof. Dr. Ricardo de Sampaio Dagnino – UNICAMP
Prof. Dr. Josep Muntañola Thornberg – UPC – Barcelona, Espanha Prof. Dr. Ricardo Toshio Fujihara – UFSCar
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Profª Drª Maria Ângela Pereira de Castro e Silva Bortolucci – IAU Prof. Dr. Xisto Serafim de Santana de Souza Júnior – UFCG

IV V
Agradecimentos Dedico
À minha irmã Adarlene

Aos meus primeiros interlocutores: Ana Luiza Martins, Maria Setlla


Bresciani, Ana Maria Lombardi Daibem, Silvana Alves, Renata Cacciola,
Jandira Biscalquini, Anita Di Marco, Cristian Schröeder, Kelly Magalhães,
Donatella Calabi.

VI VII
Sumário
Introdução do autor 11
Anotações acerca do legado do arquiteto
italiano Vittorio Gregotti: história, contexto 15 MAIO 2020
e projeto
O urbanismo contemporâneo e a cidade 33 05 ABRIL 2020
doente
Vale do Anhangabaú: um palimpsesto sem 37 13 AGOSTO 2020
valor?
Projeto urbano como política pública:
comentário sobre concurso do Calçadão 47 23 SETEMBRO 2020
O direito à cidade como última defesa e 51 07 DEZEMBRO 2020
esperança
“Faz mormaço na floresta” A obra de
Severiano Mário Porto e o Amazonas como 57 22 DEZEMBRO 2020
preexistência cultural
Por um urbanismo de canteiro: projeto, 63 14 JANEIRO 2021
pesquisa e políticas públicas
O legado de Paulo Freire e o processo de 69 02 FEVEREIRO 2021
construção da cidade
A falta de visão futura da ação pública e
a incerteza do presente na construção da 81 15 ABRIL 2021
cidade
Como viveremos juntos? How will we live 89 27 MAIO 2021
together? Comme vivremo insieme?
Tefé - AM, 166 anos: um futuro de 95 15 JUNHO 2021
possibilidades
A praça-rotatória como polo de
urbanidade: premissas para projetar a 101 29 AGOSTO 2021
cidade contemporânea
Sobre o autor 106

VIII 9
Urbanismo e a cidade contemporânea

Introdução do autor

Neste livro reuni, em ordem cronológica, os artigos publicados em


jornais locais e periódicos como o Le Monde, escritos durante o período
da pandemia de Covid-19. São escritos breves que privilegiam a forma
sintética e didática de discutir temas oportunos e que a experiência do
isolamento permitiu questionar. Assim, este conjunto de textos busca
mais identificar problemas do que propor certezas; visa mais favorecer
visões compartilhadas do que impor a própria visão do autor. Nas
palavras de Schröeder: “É como se conseguisse ler melhor no escuro, ou
seja, a crítica perpassa o que pode ser observado e mergulha no campo
das contradições que o pensar e planejar a cidade produz”.
Com o passar do tempo, fui me convencendo de que desenhar/
projetar é um ato político, pois envolve uma série de decisões que
geram transformação e mudança. Convenci-me ainda que o papel do
urbanista, em contínua transformação, deveria ser o ponto central de
minha reflexão. Tal profissão está consolidada, já há tempos, não como
figura comparável a Hipódamo de Mileto, aos agrimensores latinos ou
aos arquitetos que projetaram as cidades ideais do Renascimento, mas
àquela que nasceu da crise da cidade – crise, conflitos, teses e antíteses,
valores positivos e negativos que se contradizem e se entrechocam.
Há quem, como Leonardo Benevolo(1923 – 2017), vincule a profissão
de urbanista à crise do sistema econômico-social baseado na produção
industrial, à consequente necessidade de sanar as falhas produzidas no
meio da vida humana, ao surgimento do desejo (por elites visionárias ou
grupos organizados de indivíduos) de uma condição urbana caracterizada
por salubridade, sociabilidade e bem-estar compartilhado.
Há quem, como Hans Bernoulli(1876 – 1959), dedique a profissão de
urbanista à tentativa de recuperar a grande ruptura histórica ocorrida
com o triunfo da burguesia, que dissolveu os laços feudais multicoloridos
que uniam a sociedade e colocou o interesse individual como motor do
desenvolvimento, além de quebrar o sistema de regras comuns baseadas

10 11
Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

na propriedade indivisa do solo urbano, capaz de tornar a cidade bonita A era atual de disseminação de conhecimentos e habilidades não pode
e funcional. trair a aspiração intrínseca de cada um de se realizar mais do que nas
E há ainda quem, como Le Corbusier(1887 – 1965), assumindo o plano eras anteriores. Desse ponto de vista, cada um de nós tem seu próprio
nova-iorquino de 1811 como metáfora do nascimento do urbanismo na arquivo para imaginar ou para negociar a expectativa de futuro.
escala dos novos tempos, identifique a profissão do urbanista como a Por seu lado, a política tem o dever de criar condições para que a
primeira tentativa de superar a incapacidade do mercado. Incapacidade mudança seja sempre possível, envolvente e participativa. Cabe à política
de resolver os problemas decorrentes da contradição entre questões desenvolver formas de pensar, sentir e agir que ampliem os horizontes da
intrinsecamente sociais, comuns e coletivas, e a lógica invencivelmente esperança, ampliem o campo da imaginação, gerem maior equidade na
individualista que domina o mercado. capacidade de sonhar. Se a política não pode vender ilusões, tampouco
Talvez, o papel mais relevante a ser assumido é o de fazer algo pode reprimir aspirações.
que a política já não sabe fazer: imaginar o futuro. Mas não o futuro Ao longo da história da humanidade, as cidades sempre foram o
provável e, sim, o que é possível. Para tal, é importante falar da ética da lugar ideal para a realização das aspirações humanas. É preciso que o
possibilidade. Desde sempre, a política é convocada – e, agora mais, do indivíduo se volte para a cidade, para a cultura urbana como cultura
que nunca – a respeitar “a ética da possibilidade”, porque esse é o pacto de proximidade, de partilha, de pacto pela cidadania, de abertura ao
que todo cidadão ainda pode sustentar. Diante da angústia inescapável outro. É preciso que cada um seja protagonista de uma mudança a ser
dos tempos atuais, o futuro é uma questão grave, porque ninguém pode traduzida em múltiplas e diversificadas iniciativas, porque uma cidade é
privar-nos do encontro com a esperança e com nossas aspirações. Essa sempre um organismo coletivo que palpita.
é a força da vida.
O futuro é o maior fato cultural do nosso tempo, principalmente
para o arquiteto e urbanista, pois é ele que circunscreve a noção de
projeto. Um tempo sem futuro é atemporal. Crescemos ouvindo Adalberto da Silva Retto Júnior - novembro 2021
dizer que a cultura está sempre combinada com o passado: tradições,
hábitos, patrimônio, costumes. Assim, pode ser vista como barreira,
limite, exclusão, obstáculo. Ocorre que o futuro é a dimensão mais
negligenciada da cultura e sem olhar para longe não é cultura. A cultura
não existe para ficar apenas olhando para trás. Só é cultura se souber
construir horizontes, imaginar e produzir respirações amplas.
O fato é que sempre que a cultura se combina com o futuro ela ganha
outro nome – desenvolvimento e, a partir daí, dá lugar à economia que
parece ter sido transformada na única ciência do futuro, expropriando
nossas vidas, tirando nossas aspirações e nossos projetos. Foi assim
que nos roubaram o futuro, a capacidade de ter aspirações, de sermos
indivíduos construtores do futuro, de um futuro como fato cultural.

12 13
Anotações acerca do legado do arquiteto italiano Vittorio
Gregotti: história, contexto e projeto¹

Introdução
Após noticiada a morte de Vittorio Gregotti (1927–2020), um dos
maiores arquitetos do século XX, vitimado pelo vírus covid-19, a força
da imaginação foi capaz de reconstruir o cenário ambíguo da cidade
lagunar de Thomas Mann, depois de mais de um século do lançamento
de seu livro Morte em Veneza, em 1912. Seguir a trajetória de seus escritos
e obras, as pegadas dos caminhos por ele percorridos, constitui uma
aula magna do fazer do arquiteto.
Massimo Cacciari assim define Gregotti:

Vittorio: de re aedificatoria. Alberti, Palladio em seus passos. A


arquitetura é válida se for techne, primeira entre as técnicas, mas
técnica. E técnica é função. E para funcionar é necessário conhecer

MAIO 2020
Retto Júnior, A. da S. (2020). Anotações acerca do legado do arquiteto
italiano Vittorio Gregotti: história, contexto e projeto. Pós. Revista
Do Programa De Pós-Graduação Em Arquitetura E Urbanismo Da
FAUUSP, 27(50), e168065. https://doi.org/10.11606/issn.2317-2762.
posfau.2020.168065
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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

o mundo em que se atua, para ser um participante. Tomar parte, ou entre o indivíduo e seu ambiente construído, bem como na necessidade
seja, assumir sua própria parte e permanecer fiel, coerente, sempre, de identidade com o último.
apesar de tudo. Vittorio: o moderno. Não modernismo, nem estilo, É importante frisar que em 1966, além do referido livro, foram
nem moda, não estar no tempo. Talvez antecipá-lo. Sim, moderno publicados L’architettura della citta‘ de Aldo Rossi (1966) e Complexity
também é um desejo de ser vanguarda. Mas não o vanguardismo. and Contradiction in Architecture de Robert Venturi (1966). Os três
Não ideologias. Ideias. E isso é projeto. Projeto de arquitetura? É volumes abordam o problema do status da arquitetura em relação a: 1) o
claro, mas dominado por uma intenção fundamental: saber como conflito entre o papel estrutural do arquiteto-intelectual e os resultados,
mudar o ambiente, saber responder às suas perguntas através de muitas vezes contraditórios, de seu trabalho, sempre em conexão com a
sua linguagem específica² . (CACCIARI, 2020, p. 17, tradução do experiência artística, ciência e tecnologia; 2) as modalidades da relação
autor). entre objeto arquitetônico e seu entorno (em particular com a cidade),
com aberturas disciplinares para a semiologia, o estruturalismo e a
Na distância de quase 40 anos, o discurso de Gregotti ainda parece
geografia histórica que levam a questão da forma ao cerne da reflexão (
muito atual, apesar de ter sido em parte superado pelas tecnologias
morfologia e tipologia), sobre o significado e imagem na arquitetura; 3)
e ferramentas de levantamentos, pelo discurso sobre ecologia, pelos
a questão da linguagem e o papel da história, ou da cultura disciplinar
regulamentos e técnicas de urbanismo e de planejamento urbano
anterior em relação à operação projetual.
que se desenvolveram nesse meio tempo. Seu texto “O Território da
Arquitetura” (1966)3 é precursor de vários estudos e antecipou muitos No entanto, somente a partir do texto de Il territorio dell’architettura
temas, ainda parcialmente em andamento. Em especial, a mudança da (GREGOTTI, 1966) é que uma série de reflexões começou a assumir
escala do objeto para a escala geográfica do território, o que representa densidade em relação à complexidade ambiental, à escala de intervenção
uma evolução coerente das questões colocadas sobre valores ambientais, e sua relação com a paisagem, bem como a relação entre tipologia dos
além de uma série de projetos de Milão à China, que consubstanciaram edifícios e a morfologia urbana. Gregotti, portanto, expandiu o campo
uma alternativa possível em teoria e prática do utopismo megaestrutural de atuação da arquitetura, abordando o tema da relação desta com a
e planejamento territorial. paisagem, como geografia e história. Para ele, os pontos de interesse
são o território e a cidade, sua morfologia e as razões de sua formação
O título deste ensaio/homenagem contém, em sua formulação, três
na história.
conceitos importantes que nos remetem à gênese de sua contribuição
como arquiteto e como professor. Nos anos de 1980, Gregotti situou o princípio do projeto como uma
Modificação Crítica no centro da reflexão da Revista Casabella, então
A relação entre história, contexto e projeto tornou-se um tópico
sob sua direção, com claro objetivo de tornar o aspecto físico territorial
de reflexão a partir do momento em que as teorias do Movimento
e urbano como o material mais relevante do projeto.
Moderno e a concepção do projeto funcionalista, baseadas em critérios
dedutivos, foram questionadas no pós-guerra pelo grupo conhecido Ao aceitar o ambiente construído como vínculo fundamental do ato
como Team X. Os debates realizados por ocasião dos últimos Congressos projetual do novo objeto, ele reconhece-o como primeiro postulado
Internacionais de Arquitetura Moderna (Ciam) desde Il cuore della città, da temática sobre contexto. Um vínculo que é reconhecido em vários
do qual Gregotti participou (TAFURI, 1982, p. 7), Aix-en-Provence (1953) níveis, do histórico, ao físico e ao existencial, mas, sobretudo um vínculo
e Dubrovnik (1956), concentraram-se na complexa relação estabelecida que não apenas conecta o projeto a uma determinada situação, mas

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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

que concebe a criatividade do arquiteto no âmbito das sugestões que trata de uma visão determinística, na qual o preexistente prevê o novo e
nascem do próprio lugar. deixa completamente ausente a capacidade inventiva do arquiteto. Pelo
Todavia, mesmo que o diálogo projetual com os sistemas contextuais contrário, a nova arquitetura que intervém no contexto preexistente
comece com o reconhecimento da existência do outro, contido no tecido têm a possibilidade de alterar seu significado. Essa é a ideia central
urbano na sua complexidade, nem por isso ele deve ser automaticamente do projeto como distância crítica do contexto e representa, portanto,
legitimado pela ação projetual. De fato, segundo Gregotti, o diálogo elemento-chave da sua teoria da modificação.
projetual não tem nada a ver com assimilação e conciliação nem,
obviamente, a construção do projeto pode ser deduzida das condições
diretas do contexto. Pelo contrário, desse ponto de vista, o projeto se Sobre o papel da história
apresenta como uma leitura para a constituição da distância crítica que Na terceira parte da obra Il territorio dell’architettura (1966), Vittorio
nos separa do contexto: o modo arquitetônico de ser dessa distância Gregotti trata a história da arquitetura e de seus materiais, não
demonstra a qualidade do projeto arquitetônico em reconhecer o valor como consequência da sedimentação contínua daquilo que deriva da
do existente, como história e tradição de identidades diferenciadas. relação com o passado, mas daquilo que é considerado pela tradição
Como explicitado por Sebastiano Brandolini e Pierre-Alain Croset como elemento fundamental. Afinal, segundo ele, a arquitetura é um
(1984), este é o pressuposto para várias abordagens, que ressaltam o documento para outras disciplinas, capaz de atuar como testemunha
fato de que existem várias técnicas de intervenção contextuais, de eventos históricos ao longo do tempo.

Que operam por conexões e por articulações em torno do existente, A historicidade da arquitetura não apenas como consciência de seu
densificando essencialmente o que de qualquer forma está disperso passado, isto é, da relação entre projeto e tradição da arquitetura,
e desarticulado; técnicas que trabalham para consolidar o espaço mas antes de tudo, considerar a arquitetura em si como uma
urbano, internalizando-o e tornando visíveis suas hierarquias; questão histórica. […]. A arquitetura é matéria da história como
técnicas que trabalham pela continuidade tipológica e que um documento para outras disciplinas e também como produção
reproduzem as densidades do existente; técnicas que se refazem a assumiu a tarefa de testemunhar o evento histórico5 . (GREGOTTI,
partir de uma leitura epistemológica do contexto, apoiando-se nas 2014/1966, p. 114, tradução do autor).
suas formas e nas suas estratificações e nos fragmentos de cidades.
[…] No caso de operar por conexões e articulações, a interpretação Para projetar é necessário, portanto, um conhecimento dos sinais
do lugar se apoia em sua fisicalidade, na sua organização, e a nos quais o próprio projeto se baseia: geográfico, espacial e cultural;
uma condição do presente; no caso de operar através da leitura o encontro entre esses signos determina a escolha, e o projeto, então,
do contexto, a interpretação do lugar se apoia em sua história e constitui parte dessa sedimentação histórica. Segundo Gregotti
cultura, e em seus significados mais profundamente enraizados4 . (2014/1966), o horizonte histórico pode ser entendido em três esquemas
(BRANDOLINI; CROSSET, 1984, p. 42-43, tradução do autor). de julgamento diferentes: o poético, que consiste na relação entre os
elementos linguísticos e os significantes; o das intenções dos projetistas,
Nesse sentido, o ambiente construído (a cidade, o contexto em geral) “que tendem a explicar e a definir o processo e a atividade antes e fora
apresenta-se aos arquitetos como estratificação e acumulação de das próprias obras”6 (GREGOTTI, 2014/1966, p. 120, tradução do autor)
materiais que exigem uma leitura prévia às escolhas de projeto. Não se em termos de racionalidade; e o estético, que recoloca os princípios
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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

gerais identificados na base da prática da arquitetura dentro de uma na responsabilidade que advém dessa escolha” 10
(GREGOTTI, 2011, p. 14,
interpretação mais ampla do mundo. tradução do autor).
Gregotti movimenta-se essencialmente no segundo nível, tentando Alguns anos mais tarde, consideração similar foi feita pelo arquiteto
seguir a “evolução histórica dos dois conceitos, os nexos com o pensamento na obra Il possibile necessario (2014). No terceiro capítulo, Gregotti
que os gerou e desenvolveu, as relações dialéticas com outros sistemas considera inevitável o conhecimento “do terreno da história sobre o qual
organizacionais da leitura artística e […] com outras disciplinas”7 se vai construir (conhecimento que, porém) nos deixa livres com relação à
(GREGOTTI, 2014/1966, p. 121, tradução do autor). Assim, a história se direção a tomar” 11 (GREGOTTI, 2014, p. 93, tradução do autor).
apresenta como “uma tomada de consciência, um terreno que devemos Finalmente, segundo Vittorio Gregotti (2017, informação verbal,
atravessar para alcançar a estrutura das coisas, para chegar a tocá-las, tradução do autor), a “análise histórica é interessante para observar a
mas que é preciso deixar para trás no momento de transformação das mudança. Devemos ler a mudança e, a partir dessa leitura, deduzir um
próprias coisas” 8 (GREGOTTI, 2014/1966, p. 132, tradução do autor). julgamento positivo ou negativo sobre os diferentes elementos; quais são
Segundo Gregotti (2014/1966, p. 133, tradução do autor), portanto, a os riscos e quais são as possibilidades”12 .
história se apresenta como um curioso instrumento cujo conhecimento
parece indispensável mas, uma vez absorvido, não é diretamente
utilizável: “uma espécie de corredor pelo qual temos de passar para chegar Sobre projeto e planificação
a algum lugar, mas que não nos ensina nada sobre a arte de caminhar”.
Todavia, Nos livros e textos (como Il territorio dell’architettura, 1966; La
citta‘ visibile: frammenti di disegno della citta‘ ordinati e catalogati
se nós nos propomos a projetar uma cadeira, uma escola, uma cidade secondo i principi dell’architettura della modificazione contestuale, 1991;
ou um conjunto territorial, seja o que for, nós nos confrontamos – L’architettura del realismo critico, 2004; Architettura e postmetropoli,
inevitavelmente – com a história […], vamos situar o novo objeto em 2011; e Il possibile necessario, 2014), a atenção ao contexto, como base
um contexto que abriga todas as camadas de história da forma em para que a ação projetual encontre sentido e razão assume uma nuance
que esse contexto nos aparece no momento da ação9 . (GREGOTTI, histórico-geográfica e morfológico-física. O projeto se apresenta como
2014/1966, p. 115). “lettura e costituzione della distanza critica che ci si separa dal contesto:
il modo di essere architettonico di tale distanza e‘ la qualita‘ del progetto
Cinquenta anos depois, na introdução da nova edição de 2014, Gregotti di architettura. […] Tale qualita‘ e‘ quindi la forma del nuovo contesto,
(2014/ 1966, p. II), afirma que suas ideias propostas sobre a relação entre cioe‘ il modo di essere di un nuovo dialogo” 13 (GREGOTTI, 2014, p. 102,
história e projeto ainda o permitem de pensar a ideia do projeto como tradução do autor).
experiência.
A investigação territorial deve ser entendida, portanto, como
Por isso, na introdução da obra Architettura e postmetropoli (2011), uma descrição das maneiras pelas quais uma sucessão de eventos e
Gregotti considera a história como um “terreno do projeto”, terreno processos históricos deixou formas e sinais sobrepostos e sedimentados
sobre o qual se pode construir a arquitetura das nossas cidades, em todos os lugares. Cada local é definido não apenas pelas suas
terreno que “nos sustenta e nos deixa livres na direção que quisermos e características específicas que são detectadas, mas também pela rede

20 21
Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

de relações espaciais às quais ele pertence, rede que pode influenciar para o futuro plano15 . (GREGOTTI, 1994, p. 98-99, tradução do
sua transformação ao longo do tempo. autor).
A “forma do território” depende das redes de relações entre
No Il territorio dell’architettura de 1966, surge um conceito:
lugares múltiplos e interdependentes, com identidades específicas
e diferenciadas. Pode evoluir ao longo do tempo de acordo com as é possível descrever dois modelos fundamentais para colocar o
escolhas e ações dos atores mais relevantes do contexto (não só projetos planner como especialista no âmbito do contexto do planejamento
arquitetônicos ou planos urbanísticos). territorial, uma vez que determinados objetivos ou questões gerais
foram definidos no nível político: um primeiro modelo apresenta o
Segundo Gregotti, o projeto deve interpretar a forma do território’
planner como aquele que toma as decisões das várias disciplinas
e o ‘sentido do lugar’ para identificar criticamente as possibilidades
envolvidas no planejamento e transforma esses resultados em um
de modificação, avaliar contextualmente seu significado e valor,
plano de localização física; um segundo modelo envolve a colaboração
escolher e implementar algumas hipóteses de mudança, estabelecendo
do planner-designer no mesmo nível das demais contribuições de
novas e mais significativas relações entre preexistências e figuras.
especialistas, atribuindo suas próprias conclusões para oferecer à
(PALERMO, 2004, p. 247, tradução do autor).
estrutura interdisciplinar que emerge por sucessivas aproximações
Sua extensa experiência em planejamento nas décadas de 1980, e verificações subsequentes por cada especialista de todo conjunto
1990 e 2000 demonstram coerência e persistência de seus princípios do material 16 . (GREGOTTI, 2014, p. 80 tradução do autor).
explicitados na sua obra teórica14 , segundo se pode acompanhar.
Quinze anos mais tarde, no Architettura e postmetropoli, Gregotti
O planejamento territorial é (2011, p. 13) considera o planejamento essencialmente um “processo
politico di decisioni” a partir do conhecimento da questão urbana, da
Uma estrutura intrinsecamente contraditória do pensamento: sua capacidade de modificação e das reformas possíveis de interesse
por um lado, apresenta-se como controle do futuro, reordenação coletivo.
e reorganização em função de um desenvolvimento; um esforço
para planejar a previsão; por outro, como hipótese, predição, Em 2014, foi publicada a segunda edição de Il territorio dell’architettura
distanciamento do presente, escolha e interpretação particular do com uma nova introdução de Vittorio Gregotti, na qual o autor reafirma
interesse coletivo. Frequentemente, nesses tempos de mudanças que “Il pensiero pianificatorio dal 1966 a oggi non è mutato” (GREGOTTI,
ativas e desordenadas, teoricamente abertas a qualquer iniciativa, 2014/ 1966, p. 57). O arquiteto de Novara reconhece ainda validade
modelada no comportamento do mercado e da comunicação, nas suas teorias propostas no desenho “a grande scala” (GREGOTTI,
o conceito de programação se opõe ao conceito de oportunidade 2014/1966, p. 98, tradução do autor).
flexível; a fraca autoridade das regras coletivas e de sua moral, bem
como dos grandes horizontes ideais, tornaria precário o aspecto
preditivo do plano. Por outro lado, as qualidades duradouras Considerações finais
( física e morfologicamente) dos efeitos físicos de um plano parecem Entre as muitas sugestões que o livro Morte em Veneza oferece, o que
escorregar nas próprias razões de sua constituição para construir aproxima os dois personagens é o conflito entre arte e vida, entre contexto
identidades e referências capazes de assumir novos significados

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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

e modificação, entre história e reinvenção da realidade. Sempre sensível Berlim Lest (1980), para o grande complexo residencial em Módena, para
ao problema do papel do arquiteto na sociedade, Vittorio Gregotti levou a a área Garibaldi-Cadorna em Milão e para o anel olímpico de Barcelona
representação dessas condições particulares a consequências extremas, (1983).
e às vezes paroxísticas, como Gustav Aschenbach, protagonista do filme Gregotti demonstra que os temas relativos às áreas de permanência
de mesmo nome, dirigido por Luchino Visconti e lançado em 1971. no tecido urbano, a ‘costura’, o diálogo com o contexto, podem encontrar
Ao citar Il Territorio dell’architettura em seu livro Vittorio Gregotti. soluções hipotéticas na organização da forma que remonta “à grande
Progetti e architettura, Manfredo Tafuri escreve: “o tema do diálogo composição urbana”, sem deixar de lado espaços de forma arbitrária
entre geografia e signo arquitetônico desaparece” e imprime “um salto (TAFURI, 1986, p. 210-211, tradução do autor) 22 .
de escala, que envolve toda uma metodologia de projetação e as poéticas Todavia, não faltam críticas severas a Gregotti na obra Storia
subjacentes” 17 (TAFURI, 1982, p. 14-15). dell’architettura italiana. 1944-1985, de Manfredo Tafuri. (1986). Nas
palavras de Tafuri (1986, p. 211), “muitos projetos, talvez, saem do Studio
Gregotti derrama na escala geográfica sua difícil relação com a
Gregotti & Associati; é de se perguntar se não seria melhor empenhar
história. A modernidade […] advém de ‘uma revisão radical do tempo
uma inteligência arquiteônica concentrada em apenas uma grande
histórico’, na qual os ‘fenômenos se achatam em uma concretude
responsabilidade, com garantias de realização concreta no médio prazo”23.
formal no qual é preciso trabalhar por escavação, aninhando-se
para perfurar a espessa camada de coisas e eventos em direção Dessa forma, o contexto espacial do romance de Thomas Mann, assim
a uma nova condição de conhecimento’. […] Isso significa ler o como o do arquiteto ao projetar na cidade onde foi professor desde 1978
território […] ‘como uma estrutura arqueológica, que não exige, (Universitá Iuav di Venezia), é complementamente reinventado, através
portanto, nem restauração nem complemento’18 . (TAFURI, 1986, p. de elementos (soluções, formas, materiais), sem necessariamente se
210, tradução do autor). apoiar no conceito de “contextualismo”, mas explorando condições de
“integração” e de “modificação” operados por um arquiteto que tinha
Para Tafuri (1986, p. 210), Vittorio Gregotti e‘ “entre os poucos plena consciência de que ao projetar um edifício construía cidade.
habilitados para responder aos problemas colocados por novas questões No caso do cenário de Thomas Mann, as águas estagnadas e apodrecidas
emergentes da cidades e territórios em transformações”19 ; a amplitude da lagoa, o sufocante siroco (vento quente que vem do Norte da África em
de Gregotti ao enfrentar a dimensão territorial lhe permite “reinventar direção ao Mediterrâneo), o ar fétido e doentio das ruas cada vez mais
o papel disciplinar em grau de competir com a complexidade das novas abandonadas, pareciam materializar uma situação espiritual indefinível,
demandas”20 . lânguida e negligente ao mesmo tempo, onde doença e morte não são
Tafuri continua afirmando que a “necessidade de controlar a grande apenas o capítulo conclusivo de um itinerário espiritual singular, mas
escala com organismos unitários com alto grau de legitimidade, que também formam uma união inevitável com a beleza.
caracterizaram os projetos para a Universidade de Cosenza e para o No conjunto arquitetônico do Sestiere di Cannareggio, a sabedoria
distrito Zen”21 (TAFURI, 1986, p. 210, tradução do autor) qualifica algumas compositiva de Gregotti é mesclada a nuances de variações temáticas
propostas de grande sabedoria compositiva elaboradas nos anos mais em uma riqueza de contrapontos que exploram texturas densas e
recentes como os projetos para San Marino (1981), o núcleo habitacional evocativas de referências simbólicas do tecido lagunar, que se estendem
Sestiere di Cannaregio em Veneza, para as habitações no Tiergarten em

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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

de um extremo ao outro e que permitem superar a polaridade rígida e Le scarpe di Van Gogh: modificazioni nell’architettura. Torino: Einaudi, 1994.
abstrata entre ciência urbana e utopia. Recinto di fabbrica. Torino: Bollati Boringhieri, 1996.
Vittorio Gregotti: racconti di architettura. Milano: Skira, 1998.
L’identità dell’architettura europea e la sua crisi. Torino: Einaudi, 1999.
Obras sobre a atividade profissional de vittorio Diciassette lettere sull’architettura. Bari-Roma: Laterza, 2000.
Sulle orme di Palladio: ragioni e pratica dell’architettura. Bari-Roma: Laterza, 2000.
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CROTTI, Sergio. (ed.). Vittorio Gregotti. Bologna: Zanichelli, 1986. Tre forme di architettura mancata. Torino: Einaudi, 2010.
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PALERMO, Pier Carlo. Trasformazioni e governo del territorio: Introduzione critica. Architettura e postmetropoli. Torino: Einaudi, 2011.
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Lezioni veneziane. Milano: Skira, 2016.
Produção teórica de vittorio gregotti por ordem de
publicação:
Il territorio dell’architettura. Milano: Feltrinelli, 1966.
L’art nouveau. Milano: Fabbri, 1967.
L’architettura tedesca dal 1900 al 1930. Milano: Fabbri, 1967.
Orientamenti nuovi nell’architettura italiana. Milano: Electa, 1969.
Il disegno del prodotto industriale: Italia 1860-1980. Milano: Electa, 1982.
Questioni di architettura: editoriali di “Casabella”. Torino: Einaudi, 1986.
Cinque dialoghi necessari. Milano: Electa, 1990.
Dentro l’architettura. Torino: Bollati Boringhieri, 1991.
La città visibile: frammenti di disegno della città ordinati e catalogati secondo i principi
dell’architettura della modificazione contestuale. Torino: Einaudi, 1993.

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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

Notas 7 No original: evoluzione storica di due concetti, i nessi con il pensiero che li ha
generati e sviluppati, le relazioni dialettiche con altri sistemi organizzativi della
lettura artistica e [...] con altre discipline”.
1 O texto baseia-se em anotações feitas em aulas sobre o arquiteto Vittorio Gregotti,
palestras ministradas por ele e visitas a muitas de suas obras, durante o doutorado 8 No original: “una presa di coscienza, un terreno che dobbiamo attraversare per
sanduíche na Universitá Iuav di Venezia, como doutorando da Faculdade de giungere alla struttura delle cose, per arrivare a toccarle, ma che è necessario
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), sob orientação lasciare al momento di trasformare le cose stesse”.
da Profa. Dra. Maria Cristina da Silva Leme, e com bolsa financiada elo Conselho 9 No original: “sia che noi ci proponiamo di progettare una sedia, una scuola, una
Nacional bolsista do CNPq. Agradeço a Renato Anelli, Abilio Guerra, Maria Stella città o un insieme territoriale noi ci confrontiamo [inevitabilmente] con la storia
Bresciani, Heliana Angotti-Salgueiro, Ana Luiza Martins e Anita Di Marco, pela leitura [...], disponiamo la nuova cosa in un contesto in cui tutti gli strati di storia sono tutti
e sugestões. presenti nella forma in cui esso contesto ci appare al momento dell’azione”.
2 No original: “Vittorio: de re aedificatorie. Alberti, Palladio sulle loro orme. 10 No original: “ci sostiene e che ci lascia liberi nella direzione che possiamo scegliere
L’architettura vale se è techne, prima tra le techiche, ma Tecnica. E tecnica è e nelle responsabilità che tale scelta implica”
funzione. E per funzionare ocorre sapere il mondo in cui si opera, esserne in tutto 11 No original: “del terreno della storia su cui si deve costruire, [conoscenza che
participi. Predervi parte, e cioè assumere in esse la propria parte, e restarvi fedele, però ] ci lascia liberi sulla direzione da prendere”.
coerente, sempre, nonstante tutto. Vittorio: il moderno. Non modernismo, non stile, 12 No original: “l’analisi storica interessa per osservare il cambiamento. Bisogna
non moda, non stare ai tempi. Magari anteciparli. Sì, moderno è anche volontà di leggere il cambiamento e poi dedurre da questa lettura del cambiamento un giudizio
essere avanguardia. Ma non vanguardismo. Non ideologie. Idee. E cioè progetti. positivo o negativo sui diversi elementi; quali sono i rischi e quali le possibilità ”.
Progetti di architettura? Certo, ma dominati da una intenzione fondamentale: saper
13 No original: “leitura e constituição da distância crítica que nos separa do contexto:
modificare il proprio ambiente, saper rispondere alle sue domande attraverso il
a maneira arquitetônica de ser dessa distância é a qualidade do projeto arquitetônico.
proprio specifico linguaggio”.
[...] Essa qualidade é, portanto, a forma do novo contexto, ou seja, o modo de ser de
3 O livro foi traduzido para português em 1975 com o título Território da arquitetura um novo diálogo”.
pela editora Perspectiva.
14 Os principais planos elaborados pelo studio Gregotti Associati de 1963 a 2007 são:
4 No original: “che operano per connessioni e per articolazioni attorno all’esistente, Piano Regolatore Generale Novara (1963); Quartiere residenziale per 20.000 abitanti
essenzialmente densificando quello che è altrimenti sparso e disgiunto; tecniche che - ZEN Palermo (1969-1973); Piano per il nuovo centro urbano Gibellina (Trapani)
operano per consolidare lo spazio urbano, interiorizzandolo e rendendone visibili (1971); Piano Regolatore Generale Scan- dicci (Firenze) (1982-1986); Piano Regola-
le gerarchie; tecniche che lavorano per continuità tipologica e che riproducono tore Generale Arezzo (1984-1987); Piano Regolatore Generale Darfo Boario Terme
le densità dell’esistente; tecniche che si rifanno ad una lettura epistemologica del (Brescia) (1987-1992); Piano Regolatore Generale Sesto San Giovanni (Milano) (1987-
contesto, appoggiandosi alle sue forme e alle sue stratificazioni e ai frammenti delle 1994); Piano Regolatore Generale Torino (1987-1995); Piano per una nuova citta‘ di
città . [...] Nel caso di operare per connessioni e articolazioni, l’interpretazione del 150.000 abitanti Ucraina (1992- 1993); Piano Regolatore Generale Cameri (Novara)
luogo si appoggia alla sua fisicità , alla sua organizzazione, e ad una condizione del (1992-1995); Piano Regolatore Generale Livorno (1992-1999); Piano Regolatore
presente; nel caso dell’operare attraverso una lettura del contesto, l’interpretazione Generale Asiago (Vicenza) (1993-1995); Piano Regolatore Generale Pavia (1995- 2001);
del luogo si appoggia alla sua storia e alla sua cultura, ed ai suoi significati più Piano Regolatore Portuale di Savona-Vado (1998-2001); Piano per la sistemazione
radicati”. dell’area Cartiere-centro storico Tivoli (Roma) (1995-2007); Piano Regolatore
5 No original: “La Storicità dell’architettura non solo come consapevolezza del Generale Gorizia (1996-2001); Piano Regolatore Generale Ghemme (Novara) (1997-
proprio passato, ossia del rapporto tra progetto e tradizione dell’architettura, ma 2000); Piano per una nuova citta‘ di 100.000 abitanti Jiangwang (Shanghai) (2001-
innanzitutto considerando l’architettura stessa come una materia storica. [...]. 2002) (fig. 9); Piano Regolatore Generale Avellino (2001-2003); Piano per una nuova
L’architettura è materia di storia come documento per altre discipline ed inoltre ha citta‘ di 100.000 abitanti Pujiang (Shanghai) (2001-2007).
assunto nel suo prodursi il compito di testimoniare l’avvenimento storico”. 15 No original: “una struttura di pensiero intrinsecamente contradditoria: da un lato
6 No original: “che tendono a spiegare e a definire processo ed attività prima e fuori si presenta come controllo del futuro, riordino e riorganizzazione in funzione di uno
dalle opere stesse. sviluppo, sforzo di programmare la previsione, dall’altro come ipotesi, predizione,
distacco dal presente, scelta e interpretazione particolare dell’interesse collettivo.
Spesso in questi tempi di cambiamenti attivi e disordinati, teoricamente aperti ad

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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

ogni iniziativa, modellati sui comportamenti del mercato e della comunicazione, al


concetto di pro- grammazione si oppone quello di flessibile opportunità ; la scarsa
Referências
autorità delle regole collettive e della loro morale, cosi` come di grandi orizzonti
BRANDOLINI, Sebastiano; CROSET, Pierre-Alain. Strategie della modificazione 2.
ideali, renderebbe quindi precario l’aspetto predittivo del piano. Per il verso opposto
Casabella, Roma, n. 498-499, p. 43-44, 1984.
le qualità durevoli (fisicamente e morfologicamente) degli effetti fisici di un piano
sembrano scivolare poi sulle ragioni stesse della propria costituzione per costruire CACCIARI, Massimo. Il maestro che si fece avanguardia senza ideologia. Jornal La
identità e riferimenti capaci di assumere nuovi significati per il futuro piano”. Repubblica, Roma, 15 mar. 2020, Primo piano, p. 17.
16 No original: “è possibile descrivere due modelli fondamentali di collocazione GREGOTTI, Vittorio. Il territorio dell’architettura. Milano: Feltrinelli, 1966.
del planner come specialista della localizzazione nel contesto della pianificazione GREGOTTI, Vittorio. Território da arquitetura. São Paulo, Perspectiva, 1975.
territoriale, una volta fissati a livello politico alcuni obiettivi o interrogativi generali: GREGOTTI ,Vittorio. Modificazione. Casabella, Milano, n. 498-499, p. 2-7, 1984.
un primo modello presenta il planner come colui che assume le decisioni delle varie GREGOTTI, Vittorio. Le scarpe di Van Gogh: modificazione nell’architettura. Torino:
discipline che intervengono nella pianificazione e trasforma questi risul- tati in un Einaudi Contemporanea, 1994.
piano di localizzazioni fisiche; un secondo modello comporta la collaborazione del
GREGOTTI, Vittorio. Architettura e postmetropoli. Torino: Einaudi, 2011.
planner-designer sullo stesso piano degli altri contributi specialistici attribuendogli
pro- prie conclusioni da offrire alla strutturazione interdisciplinare che avviene cosi` GREGOTTI, Vittorio. Il possibile necessario. Milano: Bompiani, 2014.
per successive approssimazioni e verifiche di ciascuno specialista di tutto l’insieme GREGOTTI, Vittorio. Il territorio dell’architettura. Milano: Feltrinelli, 2014. (Edição
del materiale”. original: 1966).
17 No original: “il tema del colloquio fra geografia e segno architettonico fa la sua PALERMO, Pier Carlo. Trasformazioni e governo del territorio: introduzione critica.
comparsa […] un salto di scala, che coinvolge un’intera metodologia di progettazione Milano: Franco Angeli, 2004.
e le poetiche a questa sottese”. ROSSI, Aldo. L’architettura della citta‘. Padova: Marsilio, 1966.
18 No original: “Gregotti riversa sulla scala geografica “il suo combattuto rapporto TAFURI, Manfredo. Vittorio Gregotti: Progetti e architetture. Milano: Electa, 1982.
con la storia. La modernità [...] procede a una ‘radicale revisione del tempo storico’, VENTURI, Robert. Complexity and Contradiction in Architecture. Hempstead:
in cui i ‘fenomeni si appiattiscono in un concreto formale dentro cui si deve operare Doubleday, 1966.
per scavo, annidandosi sino a forare lo spesso strato delle cose e degli eventi verso
una nuova condizione di conoscenza’. [...] Ciò significa leggere il territorio [...] come
struttura archeologica, che non chiede tuttavia né restauri né completamenti”.
19 No original: “fra i pochi attrezzati a rispondere ai problemi posti dalle nuove
tematiche emergenti da città e territori in trasformazione”.
20 No original: “riinventare ruoli disciplinari in grado di competere con la complessità
dei nuovi demandas”.
21 No original: “L’esigenza di controllare la grande scala con organismi unitari e ad
alto grado di competere con la complessità dei nuovi compiti”.
22 No original: “esigenza di controllare la grande scala con organismi unitari e ad alto
grado di legittimità , che aveva caratterizzato i progetti per l’Università di Cosenza
e per il quartiere Zen”.
23 No original: “troppi progetti, forse, escono dallo studio Gregotti Associati; viene
da chiedersi quanto sarebbe meglio impegnata l’intelligenza architettonica qui
concentrata se posta di fronte a una sola grande responsabilità , con garanzie di
realizzazione concreta nel medio periodo”.

30 31
O urbanismo contemporâneo e a cidade doente

Periódicas ondas epidêmicas e seus efeitos originaram transformações


importantes na forma urbana: dos leprosários para confinar as vítimas
da peste, às grandes obras de infraestrutura, como sistemas de esgoto
e aquedutos para o controle da cólera, às normas de higiene que
desenharam bairros projetados disseminados pelas nossas cidades,
como o de Higienópolis, ao combate à tuberculose a partir de leis de
cubagem de ar aplicadas à construção de moradias.
Se, por um lado, é verdade que, devido à maior densidade populacional,
as epidemias encontraram nas cidades uma área de maior propagação
do que no campo, não se deve esquecer que o mundo rural é a área em
que muitas dessas doenças foram desencadeadas, a partir de práticas
agronômicas e zootécnicas inadequadas.

05 ABRIL 2020
Texto originalmente publicado no Portal Unesp https://www2.unesp.
br/portal#!/noticia/35631/a-cidade-contemporanea-e-a-cidade-
doente. Este texto é dedicado à professora italiana Donatella Calabi,
historiadora do urbanismo, que se encontra em quarentena, e que
escreveu o livro clássico: Il male città: diagnosi e terapia. Didattica e
istituzioni nell’urbanistica inglese del primo ‘900, Ed. Oficina, 1979.
32 33
Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

A análise cuidadosa das características físicas dos assentamentos sociedade organiza o próprio espaço. E hoje, a maneira como a cidade
humanos e das condições da população, crucial na formação de uma afeta seus habitantes está representada pelas más condições ambientais,
ideia de higiene pública, foi a matriz do Urbanismo Moderno. A nova não mais (ou não apenas) por contágio. A consciência do risco à saúde,
ciência urbana nasce, portanto, de parâmetros que migraram da saúde que foi introjetada na condição urbana no momento em que as cidades
pública e que foram interiorizados na forma de legislação como códigos possuíam limites precisos, já não é mais a mesma no momento em que se
de obras e planos urbanísticos, com o objetivo de regular o crescimento estimula uma alargada dispersão no território, que está levando à uma
e as transformações urbanas. Todavia, das preocupações de ordem mutação morfológica e funcional do ambiente como um todo, alterando
sanitária nasce também a consciência de que a forma urbis é importante a própria noção de cidade.
para a saúde dos habitantes da cidade. A partir do final do século XVIII,
e principalmente no início do século XX, se pensarmos na maioria
das cidades do Centro-Oeste Paulista como Bauru, tais parâmetros já Cidade moderna
estavam explicitados em um aparato legal que previa a localização de
cemitérios, prisões, hospitais e matadouros. As transformações atuais do espaço urbano na cidade contemporânea
criam uma série de necessidades ao modo de fazer urbanismo, derivadas
do reconhecimento do fenômeno em ação e que exigem o repensar
Ciência de figuras e imagens recorrentes em nosso vocabulário. Entretanto,
a realidade de nossas cidades mostra que os princípios básicos, como
Mas a cidade não é apenas um terreno fértil para doenças contagiosas: aqueles de saneamento, ainda são urgentes para que o processo de
como matriz da civilização, é o lugar onde nasceu o conhecimento e o produção da cidade moderna seja efetivamente completado. E assim,
pensamento científico, que permitiram aos seres humanos manter sob a vocação inicial do Urbanismo, como disciplina capaz de promover o
controle o efeito devastador dos patógenos. bem-estar social, uma disciplina que visava mitigar, ou melhor, reverter
A longa relação entre cidade e doença eventualmente permitiu a o modelo de vida em comum devastado por um desenvolvimento
criação de áreas disciplinares especializadas na investigação, diagnóstico industrial impetuoso e feroz, ainda possui validade.Os métodos e
e identificação das terapias. A partir do conjunto de conhecimentos as ferramentas a serem adotadas ainda são aquelas do planejamento
e técnicas destinadas a “cuidar” da cidade, surgiu a disciplina que urbanístico como saber constituído, no qual o Plano Diretor se coloca
denominamos Urbanismo. A base instrumental teórico-técnica desse como principal dispositivo para assegurar o direito coletivo à cidade. E,
campo disciplinar, que foi inicialmente definido como engenharia “Mesmo sobrevindo encontros e desencontros é a participação popular
sanitária, foi capaz de se formar dentro de um campo de experimentação que permite aos indivíduos serem sujeitos ativos na construção de uma
interdisciplinar em que médicos e engenheiros deveriam curar o grande sociedade nova, lugar do direito, da justiça e da fraternidade” (RETTO
corpo doente que era a cidade – il male città (CALABI, 1979) . JR, DAIBEM, A.M.L, 2020).
Mas hoje, o urbanismo não é apenas técnica, mas uma disciplina
que tem por base três aspectos da palavra cidade: urbs, a cidade como
ambiente físico da atividade do homem; civitas, a sociedade que vive
naquele ambiente; polis, a atividade de governo mediante a qual a

34 35
Vale do Anhangabaú: um palimpsesto sem valor?

Na reforma do Vale do Anhangabaú, a noção de projeto urbano surge


com base em um tipo de cooperação, que persegue um consenso
substantivo e prático entre administração pública e investidores
privados.

Anhangabaú
Parques do Anhangabaú nos fogaréus da aurora…
Oh larguezas dos meus itinerários!…
Estátuas de bronze nu correndo eternamente,
num parado desdém pelas velocidades…

O carvalho votivo escondido nos orgulhos


do bicho de mármore parido no Salon…

13 AGOSTO 2020
Texto originalmente publicado no Jornal Le Monde Diplomatique:
https://diplomatique.org.br/vale-do-anhangabau-um-palimpsesto-
sem-valor/
36 37
Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

Prurido de estesias perfumando em rosais imagens paisagísticas de grande relevância na iconografia histórica da
o esqueleto trêmulo do morcego… cidade. A segunda, ao contrário, deriva de pressupostos da geografia
Nada de poesia, nada de alegrias!… física e das ciências naturais, tendo em vista as particularidades do
sítio, segundo uma acepção “geoecológica” ou “ecogeográfica”, quando
E o contraste se coloca no centro do debate o projeto da metrópole contemporânea e
boçal do lavrador
os efeitos danosos da impermeabilização exacerbada do solo em função
de projetos urbanísticos que, reiteradas vezes, utilizaram os fundos de
que sem amor afia a foice…
vale como eixos de articulação regional.

Estes meus parques do Anhangabaú ou de Paris, Ao recorrer ao conceito grego de simetria, na defesa do primeiro
projeto executado para o Vale do Anhangabaú pelo paisagista francês
onde as tuas águas, onde as mágoas dos teus sapos?
Joseph Antoine Bouvard, o engenheiro português Victor da Silva Freire,
“Meu pai foi rei!
em 1911, então à frente da Secretaria de Obras da cidade de São Paulo,
– Foi.- Não foi. -Não Foi,” “consubstanciou a passagem de uma imagem natural de chácara de
Onde as tuas bananeiras? chá àquela de ‘representação’” (RETTO JR, 2003), o que reforçaria, em
uma operação de estratificação das camadas de tempo, a hipótese de
Onde o teu rio frio escarnecido pelo nevoeiros, conceber essa paisagem como matriz cultural da cidade de São Paulo.
contando histórias aos sacis? … Por um lado, esta demonstra o que, para muitos historiadores, marcaria
o início do urbanismo na cidade de São Paulo (SIMÕES JR, 2004) e,
Meu querido palimpsesto sem valor! por outro, uma evocação como “fundamento identitário”. No primeiro
Crônica em mau latim momento, o Parque do Anhangabaú, o Teatro Municipal e o Edifício
cobrindo uma écloga que não seja de Virgílio!… Martinelli formariam a nova relação entre a escala da paisagem e a silhueta
das construções, relação que configurou o cenário representativo da
Mário de Andrade – Paulicéia Desvairada, 1922 Metrópole do Café.
Uma terceira dimensão deriva da renovação do modo de fazer
Pensar o Vale do Anhangabaú, ou Parque do Anhangabaú, na cidade de urbanismo e do desenvolvimento econômico a partir da década de 1980.
São Paulo significa pensar o caráter ambíguo e polissêmico do conceito No momento do lançamento do Concurso para o Parque do Anhangabaú,
de paisagem histórica, desenvolvido ao longo do século XX a partir de o urbanismo – naquilo que tem de específico – incorporou de fato no
duas acepções fundamentais. A primeira refere-se à concepção estético- seu corpo disciplinar a questão das áreas internas à malha urbana como
perceptiva, vinculada ao juízo estético e às teorias do belo, do pitoresco paisagem: reconfiguração de partes das cidades como paisagem a partir
e do sublime. Os registros de viajantes (como o austríaco Thomas Ender de projetos de reestruturação de áreas ferroviárias, tramas urbanas
-1817, os ingleses Burchell -1827 e Landser -1826, e o francês Lebret e centros históricos, ações que começaram a delinear um percurso
-1827), a descrição de Saint Hilaire e a sequência de litografias de Jules gradual, colocando o projeto de espaços abertos como conectores das
Martin (1877) materializaram a “consagração estética” da colina histórica, estruturas urbanas e territoriais.
ladeada pelo Vale do Anhangabaú e pela Várzea do Carmo, e produziram

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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

(…) “Nessa cidade, ‘como lugar revestido de sentido’ e de valor privados torna-se a estratégia central de regulação e controle público
simbólico, político, social e econômico, cada tentativa de projeto do de uma visão unitária na sua articulação flexível no tempo.
fragmento internalizado na paisagem estabelecia um diálogo franco com Mário de Andrade já registrara essa política predatória e as inúmeras
as camadas de tempo, mesmo que estas fossem fluídas e mutantes e em transformações da área em questão, em seu Pauliceia Desvairada (1922),
condições de viver, regenerar-se e absorver novos significados (RETTO quando ele se refere ao Vale do Anhangabaú como um “palimpsesto sem
JR, 2015), mas também assumia um valor estratégico para mobilizar valor”. Benedito Lima de Toledo também, ao situar o Vale como “um
recursos para o marketing urbano. laboratório privilegiado de estudos sinalizando as transformações da
Na época de sua implantação integral, o vencedor do concurso, o cidade no decorrer deste século. (São Paulo: Três cidades em um século.
projeto de Jorge Wilheim e Rosa Grena Kliass, agora destruído para ceder São Paulo: Duas Cidades, 1983)
espaço ao projeto de Biselli Katchborian Arquitetos Associados, assinalou Nesse sentido, refletir sobre a nova proposta para o Vale do
um diferencial em resposta ao cenário político nacional de então: o viés Anhangabaú, é também expor as vísceras de uma política mesquinha
político do espaço público privilegiado que se transformara em símbolo que, em pleno século XXI, insiste em utilizar dinheiro público em obras
da retomada democrática. A formulação final do projeto Wilheim-Kliass de grande visibilidade com orçamentos exorbitantes, em vez de explorar
levou a uma radical redefinição do fragmento urbano e a uma clara possibilidades para garantir políticas públicas afirmativas e duráveis que
rediscussão sobre o espaço público moderno, o reposicionamento de qualifiquem a cidade e o território a partir de continuidades.
problemas relevantes, o rearranjo de instrumentos e sobre o próprio
campo disciplinar, a partir da associação entre urbanismo e paisagismo Portanto, qualquer proposta em torno do Vale do Anhangabaú
na figura daqueles dois protagonistas. demandaria uma reflexão que explorasse não só a polissemia intrínseca
da paisagem histórica, mas a relação entre esta e o planejamento urbano.
Na atual proposta em curso, a noção de projeto urbano surge com Os parâmetros históricos identificados, os quais deveriam reforçar seu
base em um tipo de cooperação, que – no respeito formal da pluralidade significado e ressaltar a necessária relação entre política territorial e
de interesses e papéis envolvidos – persegue um consenso substantivo paisagem, parecem não estar produzindo efeito.
e prático entre administração pública e investidores privados. Esta foi,
desde o início, a opção para implementar o novo projeto. Além de ser O modo como a paisagem vem sendo tratada dentro dos instrumentos
o resultado de uma colaboração público-privada, o projeto – apesar de de planejamento e o papel a ela designado suscitam perplexidades,
sensível à importância da paisagem simbólica – mira a continuidade da quando não insatisfação, mesmo em um país como o Brasil, com
valorização urbana a partir de um solução que otimiza o uso do solo, em grande tradição de planejamento urbano e de paisagismo. Todavia, falar
função de um quadro de proprietários e de necessidades, com vistas a genericamente de insatisfação a propósito da paisagem não parece
realizações em fases articuladas em médio e longo prazos. suficiente, sobretudo quando daí derivam posições muito diversas com
dois significados diferentes: insatisfação pela implantação do novo
Segundo essa abordagem, o projeto urbano não só espelha a resposta projeto, suas fases, formas de consultas e configuração formal, etc.; e
formal da intenção ou desígnio da concessão, mas assume um modelo insatisfação pelo modo de gerir as paisagens e pelo não entendimento
unitário que entende as colaborações como forma de fazer melhorias de como o tema se enquadra no processo do planejamento territorial e
urbanas (infraestrutura e espaço público), mas também seguir um urbano, apesar dos inúmeros estudos já realizados.
rigoroso cronograma de intervenções. O contrato com os agentes

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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

Boa parte dos problemas de planejamento ligados à paisagem parece Deveríamos, portanto, questionar: o que se pretende gerir e o que
derivar da incapacidade de considerar o significado (cultural, simbólico exatamente se administra, incluindo a paisagem nos diversos tipos de
e material) de um lugar de relevância histórica. Em geral, muito se fala instrumentos urbanísticos? E ainda como pode a paisagem ser objeto
de paisagem, mas o planejamento, até o momento, ocupa-se muito da planificação? Na tentativa de responder a essa pergunta crucial,
mais de sistemas e redes de bens, projetando sobretudo espaços cabe aqui uma indagação complementar. Se a paisagem é uma chave
verdes. Enquanto isso, a superação das formas de tutela relativas à interpretativa para o território ou o paradigma de novas demandas
“singularidade” parece impensável, considerando o nosso sistema sociais e repleto de nostalgias e esperanças, que sentido há na sua
jurídico e o nosso aparato normativo. Se cada forma de planificação e planificação? Segundo essa noção, “não existe paisagem sem projeto”,
cada projeto urbano respondem a uma demanda específica, vale indagar ou seja, a paisagem (como também o ambiente e o território) não é um
como o Plano Diretor, entendido na forma de instrumento técnico “dado” neutro e indiferente às escolhas da sociedade contemporânea.
“tradicional”, poderia ser o instrumento mais adequado para acolher Essa questão traz embutidas duas perguntas-chave: ela deve mesmo
uma dimensão tão complexa como a paisagística? ser planificada e governada? Por que?
O importante não é apenas ver como óbvia a necessidade de incluir a Paradoxalmente, a dificuldade parece surgir justamente enquanto
paisagem entre os objetos do planejamento urbano, mas entender que amadurece a consciência do imprescindível significado sociocultural
os instrumentos para geri-la devem ser mais incisivos e condicionar expresso por qualquer paisagem, mesmo a aparentemente “mais natural”,
majoritariamente as políticas públicas do território. Há os que entendem como resultado de complexos processos de “edificações” antrópicas que
que os mesmos instrumentos sejam não só escassamente úteis, mas não se limitam a modelar o solo em função das exigências produtivas,
até mesmo negativos para o planejamento, além de ineficazes para a mas projetam, sobre o território, novas imagens, novas esperanças e
paisagem. Dentre os que sustentam esse ponto de vista não faltam os novos olhares. Estes, de um modo ou de outro, “deixam signos”. Desse
que se perguntam se a paisagem pode ser verdadeiramente planificada. ponto de vista, o mesmo conceito de “paisagem cultural” (sobre o qual
Dessa forma, dois parecem ser os caminhos a serem percorridos. Se os últimos decênios registraram uma ênfase crescente), refletido nas
a paisagem deve fazer parte da planificação no sentido tradicional e, novas listas do patrimônio mundial da Unesco, pode ter perdido, pouco
assim, traduzir-se em um plano codificado, isso não poderia acontecer a pouco, a própria capacidade originária distintiva para encontrar
através de uma pré-codificação do objeto ou de uma definição clara e sempre uma aplicação mais ampla.
unívoca de paisagem, de qualquer modo que se queira entender. Ou No fundo, como já observado, paisagens antrópicas também podem
o contrário, se o que se quer administrar são as transformações de ser consideradas paisagens culturais, se considerarmos que sua fruição
um sistema altamente complexo, o instrumento de gestão não pode (em termos de estrada de acesso, pontos de observação, instruções para
ser um plano tradicional de tipo ordenador-prescritivo. Exigem-se, o uso, etc.) responde a um preciso desenho ordenador, que seu entorno
assim, modos de planificação que podem acolher em si e trabalhar com reflete uma determinada interpretação do território interessado e uma
a complexidade e a riqueza da dimensão paisagística, e os modos nos concessão mais ou menos explícita à natureza. Se a criação da paisagem
quais o processo de redução e seleção, necessário para a tradução em implica a inscrição de um princípio de ordem na materialidade dos
normativa, seja compartilhado com a sociedade e se distancie o quanto lugares, cada paisagem é uma paisagem cultural. Isto é mais verdadeiro
possível das simplificações e do risco de tipificações. quando se constata que a crise da paisagem reflete a crise do habitar
contemporâneo e do modo como a nossa sociedade habita a terra.

42 43
Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

Mas as mesmas razões que motivam a planificação e que conferem


centralidade ao binômio paisagem-planificação também obrigam a
colocar em discussão as missões, os estatutos disciplinares, os métodos
e as filosofias da própria planificação. Se aceitamos a ideia de que não
se defende a qualidade da paisagem apenas com medidas específicas
de vínculos ou limitações, e menos ainda com políticas plurissetoriais
e convergentes de gestão territorial, deve-se redefinir o papel da
planificação.
Diante do exposto, propõe-se outro movimento que implica um
redimensionamento do objeto: da mesma forma que o planejamento
estratégico (que não atua como substituto para outras formas de
planejamento, mas, em geral, como quadro de referência de longo prazo),
deve-se considerar a paisagem não como subproduto, mas como um
constructo estratégico, o referencial de políticas e ações. Dessa forma,
desde o início do processo de planejamento, escolhas específicas sobre
aspectos específicos poderiam trazer resultados mais satisfatórios.
No entanto, parece-me que dentro de tal processo em que diferentes
“imagens da paisagem” são explicitadas e comparadas, mesmo a possível
identificação de componentes estruturais como áreas de proteção e de
projeto adquire um novo significado e valor. Dentro desse cenário, a
paisagem da colina central deveria ser redefinida como um imaginário
social e ser preservada com ações reais visando ao seu tombamento
(volumétrico).

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Projeto urbano como política pública: comentário sobre
concurso do Calçadão

No conhecido ensaio publicado em 1989 sobre as origens do projeto


urbano moderno, “Outra tradição moderna”, o arquiteto e urbanista
espanhol M. Solà Morales denuncia a dramática fratura entre projeto
urbano e plano diretor que, nas décadas seguintes, produziria uma lacuna
entre essas duas “dimensões” da transformação urbana qualitativa. Sem
diminuir o interesse e a fecundidade das abordagens que veem o projeto
urbano separado das políticas públicas inclusivas, acredito que o projeto
urbano deve ser resolutamente colocado entre aquelas (poucas) formas
que podem dar sentido e eficácia ao planejamento urbano na “cidade
contemporânea”.
Um projeto urbano não é um “projeto arquitetônico” ou ainda um
“projeto de decoração”. O projeto urbano trabalha com a duração
no tempo. Portanto, o tempo no qual se forma e se concretiza não é
um “contêiner”, mas um protagonista. Logo, o projeto urbano deve
conter: - uma definição inicial clara e explícita de objetivos e de um

23 SETEMBRO 2020
Texto originalmente publicado no Jornal da Cidade - Bauru
https://www.jcnet.com.br/opiniao/articulistas/2020/09/736298-
projeto-urbano-como-politica-publica--comentario-sobre-
concurso-do-calcadao.html
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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

programa eficaz, viável e visível; - uma articulação por fases de tempo, a de ressaltarem a complexidade da disciplina em questão, transformam-
primeira das quais deve poder ser colocada rapidamente em prática; - a se em peças atuantes dentro do calendário eleitoral. A averiguação dos
identificação de elementos estruturais (infraestrutura primária, sistema três “arremedos” de projeto que estão em votação para o Calçadão da
de espaços abertos, algumas regras formais, espaciais, ambientais e cidade de Bauru não deixa dúvidas sobre seu propósito.
algumas quantidades fundamentais) que permanecem bastante estáveis
ao longo do tempo, através de grande flexibilidade metódica de soluções
arquitetônicas, espaciais e funcionais específicas; - um desenho em
diferentes escalas - todas as necessárias à consecução dos objetivos e
à implementação das intervenções - que não se detém na fase inicial,
mas acompanha toda a implementação, recorrendo amplamente a
cenários e simulações de projeto; - utilização de novas técnicas de
representação e comunicação adequadas aos objetivos, às demandas
das comunidades locais, às intervenções que vão sendo implementadas;
- formas e temas de atribuição para a implementação e gestão das
intervenções que variam de acordo com as características das próprias
intervenções. Finalmente, nenhum projeto urbano tem legitimidade
se não for endossado, via participação, pela comunidade, pois tal ação
substancialmente processual possibilita um tipo de partilha que supera a
tradição autoritária de projetos prontos para serem votados e possibilita
o compartilhamento efetivo de escolhas e decisões. É importante que
o ponto de vista empresarial esteja presente - de forma transparente
e explícita - desde as fases iniciais do projeto urbano, tanto como
elemento de verificação operacional das avaliações de viabilidade, como
para contribuir com ideias e “know-how”. O princípio da integração deve
estar presente não apenas na definição do programa e na concepção
do projeto urbano, mas também na tomada de decisões e no processo
burocrático-administrativo que o acompanha. É evidente que sem essa
integração nenhum projeto urbano é realizado. A implementação de
projetos urbanos é, simultaneamente, um estímulo e um resultado para a
afirmação de uma cultura orientada para a qualidade do urbano, baseada
na integração multidisciplinar, não na fragmentação de competências
burocráticas.
No entanto, apesar da pluralidade de significados conferidos ao
projeto urbano, alguns seguem tendências efêmeras da mídia e, ao invés

48 49
O direito à cidade como última defesa e esperança

O livro de Henry Lefebvre “O direito à cidade”, escrito há 50 anos,


indicava os componentes essenciais de uma vida urbana diferente e
alternativa: o direito de todos se apropriarem da cidade, de usá-la sem
exclusões ou execuções hipotecárias, de ter encontros, oportunidades,
aventuras e o direito à autogestão e participação nas decisões sobre
transformações e governança da cidade. O slogan de Lefebvre teve
considerável e imediato sucesso nos anos seguintes (até 1968, ano mais
ou menos “longo” em vários países), que foi diminuindo gradativamente
nos anos 1970 e depois, nos anos 1980. Após longo eclipse, o pensamento
de Lefebvre foi reinterpretado por David Harvey que, em seu livro “Rebel
cities: from the right to the city to the urban revolution” (2012), escreve:

“O direito à cidade… é muito mais do que um direito de acesso


individual ou coletivo aos recursos: é o direito de mudar e reinventar
a cidade de acordo com as nossas necessidades. Além disso, é um
direito coletivo e não individual, pois a reconstrução da cidade

07 DEZEMBRO 2020
Texto originalmente publicado no Jornal Le Monde Diplomatique
https://diplomatique.org.br/o-direito-a-cidade-como-ultima-
defesa-e-esperanca/
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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

depende inevitavelmente do exercício de um poder comum sobre os da praça na história: um lugar onde as pessoas se encontram, destinado
processos de urbanização”. ao desempenho de funções comuns. Então, nas fábricas das cidades do
capitalismo, os serviços de bem-estar público foram implementados,
A leitura dos dois textos estimula-nos a analisar o que acontece nos inclusive a habitação, concebida como serviço social (a “casa popular”).
movimentos sociais urbanos, não só para nos fazer entender melhor
Vale ressaltar que, nos anos de 1970, foram alcançados resultados
tanto os sintomas e motivos da retomada do slogan “direito à cidade”,
importantes do ponto de vista da cidade como espaço público, mas
quanto a fragmentação e volatilidade dos movimentos democráticos e
os anos de 1980, por outro lado, foram os da virada neoliberal e o
antiliberais de protesto, em meio ao mundo globalizado. Coloca ainda
consequente início do declínio da cidade pública. Desde então, o caráter
aos urbanistas a urgência em trabalhar na construção e consolidação
público da cidade foi negado em todos os seus elementos. As políticas
da cidade pública, tomando por base uma questão decisiva: a cidade é a
de planejamento urbano de todos esses anos repudiaram a ideia da
última defesa e nossa última esperança.
cidade como lugar e patrimônio coletivo e pressionaram para aumentar
A reflexão sobre os textos de Lefebvre e Harvey nos leva a tentar o aluguel da terra e estimular a bolha imobiliária.
restaurar o perdido “direito à cidade”. Para isso, só podemos partir
do que foi negado em todos esses anos, ou seja, o planejamento das
cidades: o planejamento “social”, como disse Lefebvre, e acrescentamos Planejamento
“planejamento estratégico” e “planejamento urbano”. Um planejamento
que remete aos muitos exemplos que Harvey traz para as “Cidades Para recuperar o espaço público, a dimensão social do planejamento
Rebeldes” em ações reformistas ou revolucionárias (às vezes, como deve ser recuperada para estar ao lado daqueles cidadãos que, mais
ele próprio admite, não facilmente distinguíveis entre si) pelo direito do que no passado, se organizam para defender ou obter um parque,
à cidade: do orçamento participativo de Porto Alegre ao planejamento um serviço, um espaço de uso coletivo, a fim de preservar, ao longo do
estratégico na Londres de Ken Livingstone, dos programas ecológicos tempo, os espaços públicos considerados bens comuns e que protegem
de Curitiba à rebelião de El Alto na Bolívia. E é significativo que Harvey a qualidade de vida das gerações futuras. O desafio do planejamento
tenha colocado lado a lado desses exemplos, e por várias vezes, as é verdadeiramente importante. É necessário um forte reequilíbrio em
experiências políticas e sociais da “Bolonha vermelha” dos anos 1960 e favor do governo público. Novos conteúdos devem ser incluídos nos
1970. planos estratégicos e de planejamento urbano: controle da expansão
metropolitana, espaços públicos, meio ambiente, mobilidade, economia
Por planejamento “estratégico” e “urbano” entendemos: o olhar de
de energia, habitação social e interrupção do consumo excessivo do
duas ações distintas, complementares e não alternativas. A primeira, de
solo, como objetivos mutuamente compatíveis (graças à recuperação de
caráter discursivo e procedimental; a segunda, de caráter normativo.
edifícios).
Esta última deve ser considerada uma ferramenta que pode ser utilizada
dentro da primeira, que constitui seu quadro maior. Esses são os novos temas para novos planos estratégicos e urbanos
que definem a meta do direito à cidade. Mas para dar vida a esses temas
O olhar dessas duas formas de planejamento deve apreender o
e planos, é preciso pesquisar, resgatar e valorizar tanto a cultura urbana
elemento mais característico da polis no mundo grego e depois, desde
quanto a dos territórios que sofreram duros golpes no Brasil. É preciso
a Idade Média, da cidade europeia: o espaço público. É a expressão mais
fazê-lo em nome do “novo municipalismo”. Depende da política, mas
original, a espinha dorsal, a essência da cidade como polis. Pense no papel

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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

também da sociedade civil, que deve lutar para reconquistar as opções


coletivas. Como sempre, a mudança coletiva depende da mudança
individual.
David Harvey, em “Rebel cities”, escreve:

“A questão sobre o tipo de cidade que queremos não pode … ser


separada de outras questões, sobre o tipo de pessoa que queremos
ser, sobre os laços sociais que tentamos estabelecer, sobre as
relações com o ambiente natural que cultivamos, o estilo de vida
que queremos e os valores estéticos que buscamos “.

Há, portanto, necessidade de cidadãos comprometidos e políticos


que saibam interpretá-los e representá-los. Nós somos o ponto de
partida. A possibilidade de oposição e de mudança está hoje ligada a um
fio muito tênue: o dos movimentos sociais descritos por Harvey, por
mais frágeis e descontínuos que sejam. Uma miríade de episódios que
surgem espontaneamente na sociedade e procuram transformar-se
em lugares de auto-organização, protestos e propostas associativas. A
política partidária não se reforma por si mesma. A política dos partidos
só se reformará se, dentro deles, surgirem forças impulsionadas por
algo que se move na sociedade civil, que é o lugar de autoprodução
da política. Mudanças profundas são necessárias, mas não podem ser
feitas sem o comprometimento dos próprios cidadãos.
Os livros de Lefebvre e Harvey nos dizem que precisamos de um tema
bastante amplo de mudanças. Nós sabemos. Mas não sabemos como
chegar lá. Sabemos, porém, que a reivindicação dos movimentos sociais,
lugares de auto-organização e associações, pelo direito à cidade não é
“uma”, mas “a” estação da longa caminhada que deve nos conduzir a
esse objetivo. É a última defesa e a última esperança.

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“Faz mormaço na floresta” A obra de Severiano Mário
Porto e o Amazonas como preexistência cultural

Na inevitável parcialidade do itinerário reflexivo proposto por ser


amazonense e também arquiteto, ressalto que seu traço mais fecundo,
mas também o mais abstrato e, talvez precisamente por isso, o menos
parcial em comparação com a totalidade do problema investigado a
partir de sua obra, é a sua atividade criativa, em geral, e a do arquiteto,
em particular, na articulação de duas tensões: a primeira, do movimento
de conhecimento circular, transmitido durante sua formação como
arquiteto – formado em 1954 na Faculdade Nacional de Arquitetura –
FNA, da Universidade do Brasil – Rio de Janeiro, hoje Universidade Federal
do Rio de Janeiro; a segunda tensão, vertical, a partir de sua trajetória,
e enraizada nas contingências do meio ambiente, uma trajetória que
investiga a fundo o significado do conceito de contexto ou preexistência

22 DEZEMBRO 2020
Texto originalmente publicado no Jornal A Crítica https://www.
acritica.com/blogs/bem-viver-blog/posts/faz-mormaco-na-
floresta Posteriormente, no Le Monde Diplomatique
https://diplomatique.org.br/a-obra-de-severiano-mario-porto-e-o-
amazonas/
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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

cultural, já que é nascido em Minas Gerais e, nos anos de 1980, mantém uma vez que, agindo nos níveis individual, social e cultural, corroboram,
viagens intermitentes entre o Rio de Janeiro e o Amazonas. ao menos em parte, para a interpretação de uma possível identidade da
Severiano Mário Porto aterrissa no estado do poeta Thiago de Mello região.
(1926), cuja casa em Barreirinha fora projetada pelo arquiteto e urbanista Progressivamente, seu pensamento teórico assumiu o caráter original
Lúcio Costa (1902-1998). Estado onde algumas obras modernas da capital que o tornou uma referência fundamental da cultura arquitetônica e, nos
exibiam e exibem murais do artista plástico Moacir de Andrade (1927- anos de 1980, é internacionalmente reconhecido, quando o conjunto de
2016), assim descritos por João Guimarães Rosa: sua obra é premiado na Bienal Internacional de Arquitetura de Buenos
Aires e quando, em 1987, é prestigiado com o título de arquiteto do ano
“Moacir de Andrade submete, em disciplinados espaços de arte – pela revista francesa L’Architecture d’Aujourd’hui.
galos de tapeçaria, cintilação de mosaicos e magia de presépios – os
Falar em sentido local, em pertencimento e identidade significa, de
paroxismos de seu diluviano zoorama, feérico epos de fauna: peixes,
certo modo, falar em termos de ‘regionalismo’ ou “regionalismo crítico”,
leviatãs, dragões, harpias, perlados de fria espuma e ocelados de
termo cunhado em 1981 no ensaio The Grid and the Pathway, pelos
recordações oníricas, à luz de um amarelo a um tempo telúrico e
teóricos de arquitetura Alexander Tzonis e Liane Lefaivre, ou ainda por
transcendente, apanha assim em tensa ronda a vida do grande rio
Keneth Frampton, no livro Towards a Critical Regionalism: six points for
e grava nos olhos de xerimbabos abissais a desmesura e selva, a
an architecture of resistance, de 1983.
cósmica, calada essência da Amazônia” 1.
A ideia de regionalismo, porém, parece redutiva, folgada, obsoleta ou
A experiência do arquiteto nesse imenso estado, envolvido no profundo incongruente quando aludidos às obras do arquiteto na região em questão,
silêncio da Amazônia, não indica apenas que o significado da construção pois seu trabalho levantou uma série de problemas, colocando-os dentro
no ambiente preexistente consistia na formação de uma sensibilidade de um raciocínio crítico entre a arquitetura do Movimento Moderno e
para as sugestões do ambiente natural – característica já presente na a arquitetura contemporânea, raciocínio esse que, na verdade, explora
cultura do Movimento Moderno como é observado na obra de arquitetos o potencial de flexibilidade e continuidade de redefinição do lugar.
como Le Corbusier –, mas na necessidade de remeter o projeto ao meio Por um lado, o aperfeiçoamento das ferramentas técnicas destinadas
cultural. A ideia de um ambiente cultural está relacionada à necessidade a traduzir a linguagem figurativa do projeto em construção física e, por
catártica que caracterizou o mundo intelectual a partir do pós-segunda outro, o aprofundamento dessa linguagem a partir do aprendizado de
guerra, onde a consciência cultural significava, de fato, a abertura do técnicas locais. Sua obra versa sobre a viabilidade técnica e funcional
esquema moderno abstrato do homem ideal para a consideração de e a adaptação da forma ao meio físico, cultural e histórico em que está
cada individualidade distinta; uma abertura que, por si só, permitiria inserida. O objetivo final é a síntese dos dois problemas. Este último
alcançar o sentido de uma história humana. compromisso diz respeito mais especificamente às preexistências
Seus projetos e obras são a prova óbvia não da possibilidade de um ambientais, pois não pode ser realizado sem que a linguagem da obra
discurso sobre uma região, ou de implicações relacionadas ao aspecto inclua os valores culturais – com os quais as novas formas dialogam –
meramente geográfico daquele espaço singular, mas de uma imersão e absorva a priori os conteúdos particulares característicos, sugeridos
cultural. Os espaços e lugares por ele concebidos, na verdade, não pelo meio ambiente.
respondem apenas a questões impostas pelo meio ambiente, mas são O interesse pela arquitetura espontânea como matriz, dentro da qual
fatores de importância primordial para a construção do sentido de lugar, se busca a origem arquetípica da arquitetura, é uma ideia essencial e,
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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

do ponto de vista técnico, capaz de dar ao projeto a medida necessária mais conhecidos e ícone da literatura regional, com obras traduzidas em mais de
trinta idiomas. O título remete à necessidade de lutar sempre pela vida, apesar das
de adesão à realidade concreta dos fenômenos, para além de qualquer
circunstâncias.
abstração de princípios. A pesquisa sobre o ambiente e a relação
1 ROSA, João Guimarães. Apud KAWALL, Luiz Ernesto Machado. Artes reportagem.
entre arquitetura e natureza, construindo o conhecimento cíclico Prefácio de Luís Arrobas Martins. Apresentação de Francisco Luís de Almeida Salles.
da tradição, explora a sedimentação de noções a ser construída a São Paulo: Centro de Artes Novo Mundo, 1972.
partir da comparação de diferentes respostas, no espaço e no tempo,
com problemas semelhantes. A inclusão de elementos da cultura
local em atenção à tradição teria sido, de fato, não apenas o sinal do
amadurecimento de uma consciência política social, mas também da
disposição de ampliar as possibilidades do projeto arquitetônico.
Nesse sentido, sua obra não se limitou a escolhas linguísticas
folclóricas, um viés arriscado que levaria a um formalismo estilístico.
Sua arquitetura coloca-se no encontro das duas necessidades: a de
experimentar o conhecimento eterno da tradição arquitetônica e a de
especificá-la a partir das necessidades contingentes do local onde esse
conhecimento é aplicado.
Apesar de seu nome estar sempre associado à uma ideia datada
de prexistência ambiental, hoje, mais do que nunca, seu legado pode
ser reinterpretado à luz de questões relacionadas com a ecologia, a
paisagem e a relação entre construção e energia, em um momento em
que ecologia e arquitetura compartilham os resultados da chamada
“crise do ambiente”.

Notas
NA – O título do artigo faz referência ao livro “Faz escuro mas eu canto” (1965),
do poeta amazonense e tradutor Thiago de Mello (1926), um dos poetas brasileiros

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Por um urbanismo de canteiro: projeto, pesquisa e
políticas públicas

Nos últimos anos, verificou-se a retomada do debate sobre alguns


pontos básicos ligados à questão urbana: a necessidade de reconstruir
vínculos entre projeto, pesquisa e políticas públicas; o valor do diálogo
entre as diferentes disciplinas; a disponibilidade de ferramentas que
contribuam para a análise e a formação de uma nova polis. Nesse contexto,
o livro Direito à cidade1 do sociólogo francês Henri Lefebvre (1901-1991),
publicado no ano de 1968, transformou-se no ponto de partida para
discutirmos novas relações entre o direito à cidade e o planejamento
criativo, aplicado ao uso e à representação do espaço urbano e, ainda,
para pensarmos relações que situem a interlocução com o cidadão no
centro do processo, com base na constante conexão entre identidade
local e desenvolvimento global, entre memória e planejamento do futuro.
Nos últimos trinta anos, a consolidação de uma nova relação entre
projeto urbanístico/planejamento urbano, pesquisa e políticas urbanas,

14 JANEIRO 2021
Texto originalmente publicado no Jornal Le Monde Diplomatique:
https://diplomatique.org.br/por-um-urbanismo-de-canteiro-
projeto-pesquisa-e-politicas-publicas/

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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

embora com algumas oscilações na Europa e no continente americano Nos anos 1980 e seguintes, surgiu a questão ambiental que, embora
(Américas do Norte e do Sul), seguiu a mesma trajetória, tanto nas suas tenha amadurecido de forma independente em nosso país, encontrou
abordagens teóricas e doutrinárias como na prática, para conceber e mais espaço quando a discussão ocorreu em contextos internacionais
realizar programas mais ou menos complexos, nos quais a formação do como na conferência do Rio de Janeiro (Eco-92) que deu origem à
espaço público e a paisagem desempenham o papel principal. chamada Agenda para o século 21, propondo uma série de ferramentas
Certamente contribuiu para isso o surgimento de programas que contribuíram para a análise e, finalmente, para a formação de uma
de especialização, mestrado, doutorado e de intercâmbio entre nova polis.
pesquisadores da Europa, Estados Unidos e Brasil, pois os novos O aspecto singular desses documentos internacionais é que representam
programas pedagógicos delineados, os procedimentos práticos, as o resultado de união de dois tipos de organismos: a) representantes da
abordagens nas diferentes disciplinas, as reflexões sobre o universo autoridade ambiental que, recentemente, propuseram aos governos
profissional, a criação de eventos e surgimento de periódicos levaram à a adoção de desenvolvimento compatível com o meio ambiente e
renovação dos protagonistas que desempenharam papel essencial para formularam uma definição precisa: “sustentável”; b) representantes
“novamente fundamentar” tanto os conteúdos quanto as pedagogias das comunidades, as chamadas Autoridades Locais, que se propunham
internas dos cursos de arquitetura e urbanismo. a servir como lugar de prática democrática da comunidade e como
Em vários programas de pós-graduação lato e stricto sensu, algumas responsáveis naturais pela gestão e custódia dos recursos ambientais e
ações foram empreendidas para promover, por um lado, projeto urbano territoriais dos contextos de assentamento.
como prática específica do arquiteto e, por outro, o diálogo entre as Essas reuniões impulsionaram conteúdos programáticos voltados à
diferentes disciplinas. As transformações atuais dos espaços da cidade adoção de “estratégias” de desenvolvimento (a serem moderadas com
contemporânea, mesmo naquelas de reduzidas dimensões – não por a contribuição sustentável), dentro das quais as políticas convergem
nascerem de um dia para o outro, mas pela força com que se impõem nos contextos territoriais vastos e locais. Nestes, foram desenvolvidos
– criaram uma série de necessidades derivadas do reconhecimento modelos que continham um desafio de dimensões políticas substanciais
do fenômeno em si e que exigem o repensar de figuras e imagens como a Agenda 21, que previa confiar, aos processos participativos, a
recorrentes em um vocabulário mais amplo. definição dos objetivos e ações do plano para implementá-los.
Ações específicas relativas ao ensino do projeto urbano abrindo-se a Entretanto, uma questão ainda não suficientemente investigada,
outros protagonistas nasceram rapidamente visando trocar informações e sobre a qual este texto objetiva abrir linhas de debate, é a relação
sobre as problemáticas, gerando uma visão mais ampla de projeto urbano entre a definição dos cenários estratégicos da cidade (e do território)
como “culturas em interação”, a saber: interação entre teoria e prática, e a construção social de um conhecimento coletivo e compartilhado da
relação com a pesquisa; interdisciplinaridade na complementaridade; cidade contemporânea, capaz de sustentar a coesão social, de mesclar
integração das competências de profissões próximas (paisagistas, identidades e de conservar memória para produzir futuro.
engenheiros etc.); e, enfim, a contribuição de outros saberes como Mas como conjugar racionalidade ecológica, de um lado, e
sociologia, história urbana etc, constituindo um campo mais amplo de “procedimentos democráticos”, de outro? Como avançar no sentido de
saberes híbridos com interseção entre as teorias, doutrinas e práticas2. reavaliar o trabalho pioneiro de nossos mestres que se empenharam na
aprovação do Estatuto da Cidade (2001) e na criação e consolidação do

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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

Ministério das Cidades (2003), na tentativa de reeducar nossa esperança de especialização lato sensu “Planejamento urbano e políticas públicas:
com referência à participação popular na construção da cidade? urbanismo, paisagem, território”, foi professor-pesquisador visitante no
Master Erasmus Mundus da Universitè Panthéon Sorbonne Paris I (2011-
Pesquisadores do urbano respondem, em especial, que o
2013).
desenvolvimento sustentável é um conceito político entendido de
maneiras distintas, de acordo com a abordagem: ecológica, puramente Ana Maria Lombardi Daibem é coordenadora pedagógica do Curso
Internacional de Especialização Lato Sensu em Planejamento Urbano e
técnica, filosófica, social, cultural etc. Portanto, o desenvolvimento
Políticas Públicas na Unesp Campus de Bauru. Co-fundadora e presidente do
sustentável só pode ser tratado por várias disciplinas e em rede; além
Grupo Gestor do Núcleo de Estudos e Práticas Pedagógicas – NEPP / Pró-
disso, é frequentemente entendido como uma questão de participação reitoria de Graduação da Unesp de 05/02/2009 a 04/02/2013. Secretária
pública e de envolvimento dos cidadãos no estágio mais inicial possível Municipal da Educação de Bauru de 01/01/2005 a 31/12/2008. Profa
do processo decisório. Assistente Doutora do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências
Todavia, essa mudança de rumo traz implicações não somente da Unesp Campus de Bauru. Mestre em Educação pela Universidade Metodista
cognitivas, mas também éticas, políticas e conceituais. Portanto, a de Piracicaba e Doutora em Educação pela Unesp campus de Marilia.
atividade de pesquisa nessa área, ainda restrita às universidades,
precisa assumir sua aplicabilidade à luz de algumas convicções sobre o
caráter distinto do urbanismo em uma dimensão contextual, no sentido
de estruturá-la mais intimamente com as práticas e os cenários sociais Notas
e territoriais. Por isso, é útil estabelecer de forma clara os tempos da
pesquisa no cronograma do plano: o “tempo lógico” e o “tempo histórico”
de seu processo. 1 LEFEBVRE, Henri. Le droit à la ville. Paris, Éditions Anthropos, 1968
É útil verificar a aplicabilidade de certos parâmetros e suas adaptações, 2 JACQUES, Paola Berenstein; PEREIRA, Margareth da Silva (orgs.). Nebulosas do
pensamento urbanístico: tomo I – modos de pensar. Salvador, EDUFBA, 2018, p.46-
bem como perceber a sua dimensão projetual, entendendo que o
69.
urbanismo termina na ação e traz em si a tensão da mudança para a
prefiguração e o funcionamento espacial, mudança para uma aparência
física e morfológica dos espaços, e ainda para a organização e gestão
dos processos. É mister reconhecer o papel social da pesquisa para que
a população entenda que o urbanismo é pertinente à comunidade e,
por isso, deve ser desenvolvido com competência técnica, equilíbrio
e consciência da dimensão civil do trabalho, inclusive no que tange à
participação popular.

Adalberto da Silva Retto Júnior é professor na Universidade Estadual Paulista


– Unesp, é doutor (FAU USP e Departamento de História da Arquitetura
e Urbanismo do Istituto Universitario di Architettura di Venezia – IAUV,
2003) e pós-doutor (IAUV, 2007). Atual coordenador do curso internacional

66 67
O legado de Paulo Freire e o processo de construção da
cidade

Em 2010, durante um congresso na Itália, foi apresentado um quadro


que visava elencar profissionais que, de uma forma ou de outra,
abordaram questões relacionadas ao tema da participação1. Do quadro
constavam 14 nomes, cujas atividades não serão descritas por já serem
figuras sobejamente conhecidas na área de Urbanismo: Kevin Lynch,
Christopher Alexander2, Giancarlo de Carlo3, Colin Ward4, Adriano
Olivetti5, Patrick Geddes, Danilo Dolci6, Norman Krumholz7, John
Forester8, Aaron Wildavsky9, do filósofo alemão Jurgen Habermas, Patsy
Healey10 e Leonie Sandercock11. Além desses, aparece a figura de Paulo
Freire.

02 FEVEREIRO 2021
Texto originalmente publicado no Portal Vitruvius com o título
Reeducar a esperança. Aproximações entre o legado de Paulo Freire
e o processo de construção da cidade contemporânea. RETTO JR.,
Adalberto; DAIBEM, Ana Maria Lombardi. Reeducar a esperança.
Aproximações entre o legado de Paulo Freire e o processo de
construção da cidade contemporânea. Arquitextos, São Paulo, ano
20, n. 236.00, Vitruvius, jan. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/
read/arquitextos/20.236/7625>.
Posteriormente, no Le Monde Diplomatique
68 69
Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

O primeiro do quadro é Kevin Lynch e seu nome nos remete ao territórios e as políticas de desenvolvimento, tiveram um ponto de
legado desse urbanista americano e sua contribuição decisiva “para inflexão significativo com a entrada do tema “sustentabilidade”.
a disseminação de pesquisas sobre o meio ambiente para orientar as A imagem mencionada nasceu de uma provocação do engenheiro/
pessoas” (Langdon, 1984)12. Assim, ele abriu a projetação do ambiente urbanista e professor italiano Bernardo Secchi (1934-2014), por ocasião
para práticas participativas e desenvolveu maneiras concretas para de uma de suas visitas ao Brasil, ao indagar de que forma as questões
afirmar um ponto de vista diferente daquele do técnico, do especialista. relativas ao legado de Paulo Freire estavam inseridas na prática do
Na sua teoria da imagem pública aplicada à cidade moderna, Lynch planejamento urbano no Brasil. Em certa medida, Secchi explicitou
introduz uma taxonomia de imagens e ações que permite apreciar sua curiosidade ao discorrer sobre as quatro fases de sua metodologia,
como os eventos, rituais e práticas de uso agem sobre a imaginação das a qual incorporava, em sua segunda etapa – “Leitura da realidade da
populações urbanas, influenciando o envolvimento dos cidadãos em cidade no seu território” – três níveis de leitura, sendo o primeiro o
diferentes partes da cidade. ESCUTAR. Escutar os cidadãos e os grupos sociais e políticos, colocando
Na parte superior, quase no centro do quadro, está o escocês Patrick o cidadão no centro do processo de formação como sujeito narrativo. Da
Geddes (1854-1932), um dos pais do planejamento urbano, responsável mesma forma, nas etapas subsequentes, – “A cidade que queremos” e “A
por cunhar, dentre outros, o termo conurbação. Geddes talvez tenha sido cidade possível” – o cenário (de projetos exploratórios) é utilizado como
um dos primeiros estudiosos, senão o primeiro, a apontar a importância ferramenta coletiva de construção do projeto de cidade e assume valor
do envolvimento do cidadão nos processos de tomada de decisão de instrumento relevante para o campo da pesquisa prospectiva, capaz
envolvendo as cidades, principalmente a partir de sua experiência na de expressar o itinerário da investigação e do projeto, como previsão da
Índia13. sequência imaginada de ações futuras15.
Na última linha do mesmo quadro, igualmente em posição quase Nesse sentido, a retomada de Paulo Freire assume grande relevância,
central, aparece a figura do educador brasileiro, Paulo Freire (1921- pois educar para a participação nas políticas públicas, segundo seus
1997) e o título do seu livro “Pedagogia do Oprimido” de 196814. É muito princípios, é educar numa cultura de diálogo, segundo a ética que valoriza
oportuno e significativo destacar a presença do educador brasileiro a liberdade e a igualdade dos cidadãos, e aos quais é preciso promover
respeitado no mundo todo, em meio àqueles profissionais dedicados adequada formação para a cultura do diálogo. “Educar para a esperança
à melhoria da qualidade de vida e do desenho urbano, sobretudo em requer sonho, utopia, projeto”16. A transformação do mundo necessita
um momento em que sua figura e seu legado são desqualificados e do sonho tanto quanto a indispensável autenticidade deste depende da
desconsiderados por parte do atual governo brasileiro. lealdade do sonhador às condições históricas, materiais e aos níveis de
Ao rever, no quadro apresentado, a evolução do planejamento desenvolvimento tecnológico e científico do contexto. Os sonhos são
participativo, por meio da retomada de clássicos, reaparecem momentos projetos pelos quais se luta. Sua realização não se verifica facilmente,
históricos que acarretaram profundas mudanças no desenvolvimento sem obstáculos. Pelo contrário, sonhar implica avanços, recuos e, às
urbano e social. Tais momentos identificam as fases que permitiram a vezes, demoradas marchas. Implica luta. Na verdade, a transformação
implementação de métodos participativos no processo do planejamento, do mundo, almejada pelo sonho, é um ato político e seria ingenuidade
concentrando a reflexão da pesquisa sobre os momentos decisivos para não reconhecer que os sonhos têm seus contrassonhos.” (FREIRE, 2000,
uma mudança profunda na teoria e na lógica dos planos. Tais teorias p. 53,54)17
e lógicas, cujas contribuições e práticas devem mudar a gestão de

70 71
Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

O tema esperança, que permeia a obra de Freire e está encravado na se transformam cada vez mais em seres criticamente comunicativos.
noção de cenário prospectivo, está claramente vinculado à possibilidade O diálogo é o momento em que os seres humanos se encontram para
de transformar a realidade por meio das nossas ações no mundo, em refletir sobre sua realidade tal como a fazem e re-fazem. Outra coisa:
combate a um discurso fatalista e opressor que aponta que “não há futuro na medida em que somos seres comunicativos, que nos comunicamos
possível’, ou ainda, “não é possível mudar nada”. Desenvolver processos uns com os outros enquanto nos tornamos mais capazes de saber
educativos que promovam a conscientização e a opção pessoal de atuar que sabemos, que é algo mais do que só saber.(…) Através do diálogo,
coletivamente, como agentes transformadores da própria realidade refletindo juntos sobre o que sabemos e não sabemos, podemos, a
social, significa dizer que todos podem ter a capacidade crítica de seguir, atuar criticamente para transformar a realidade. ( FREIRE, 1996,
interpretar o mundo e desenvolver, por meio da reflexão, do diálogo e p. 122-123).
da ação a construção de saberes e experiências para o bem comum e a A partir da escuta, desenvolve-se a construção do saber que requer
vida em sociedade. princípios pedagógicos apropriados. Para tanto, respeitar a leitura
Ao revisitar a obra literária do educador Paulo Freire, vale destacar de mundo do educando implica reconhecer a historicidade do saber,
suas contribuições de natureza pedagógica à formação para a cidadania, sem arrogância cientificista, mas assumindo a humildade crítica, uma
conceito indispensável à prática do planejamento urbano e territorial. O postura verdadeiramente científica. (FREIRE, 1996)
autor propõe a construção coletiva democrática, via processo dialógico Sob a ótica educacional é necessário transitar pelas ideias pedagógicas
(de mão dupla) e participativo, valorizando a escuta e a abertura à fala contrahegemônicas que, segundo SAVIANI (2007)18, podem ser agrupadas
do outro. Afirma o autor: em duas modalidades. Uma é inspirada na concepção libertadora
A verdadeira escuta não diminui em mim em nada, a capacidade de Paulo Freire, centrada no poder do povo e na autonomia de suas
de exercer o direito de discordar, de me opor, de me posicionar. Pelo organizações, ficando à margem da estrutura escolar ou buscando
contrário, é escutando bem que me preparo para melhor me colocar transformá-la em espaço de expressão das ideias populares. Outra é
ou melhor me situar do ponto de vista das ideias. Como sujeito que se centrada na educação escolar, promovendo o acesso das camadas
dá ao discurso do outro, sem preconceitos, o bom escutador fala e diz populares ao conhecimento sistematizado, com predominância de uma
de sua posição com desenvoltura. Precisamente porque escuta, sua fala orientação marxista. Desdobramentos dessas modalidades surgiram,
discordante, em sendo afirmativa, porque escuta, jamais é autoritária. porém, fogem ao foco do presente artigo.
(FREIRE,1996,p.119-120) Para o educador-educando dialógico, o conteúdo não constitui
O livro Pedagogia do Oprimido apresenta o diálogo como uma exigência uma ação de imposição ou doação, “(…) mas a devolução organizada,
existencial que pressupõe acreditar no ser humano, argumentando que sistematizada e acrescentada ao povo, daqueles elementos que este lhe
o diálogo não constitui tarefa exclusiva de homens seletos, mas de todos entregou de forma inestruturada”. ( FREIRE, 1975, p.98).
os que buscam saber mais em comunhão, engajando-se no processo de O educador dialógico atua com uma equipe interdisciplinar na análise
libertação daqueles que não têm voz. dos universos temáticos e os devolve aos educandos dos quais emergiram
O diálogo deve ser entendido como algo que faz parte da própria como problema a ser pensado. O processo da educação libertadora
natureza histórica dos seres humanos. É parte do nosso progresso requer que “(…) os homens se sintam sujeitos de seu pensar, discutindo
histórico do caminho para nos tornarmos seres humanos (…) é uma o seu pensar, sua própria visão do mundo, manifestada implícita ou
espécie de postura necessária, na medida em que os seres humanos
72 73
Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

explicitamente, nas suas sugestões e nas de seus companheiros”. A educação libertadora proposta por Paulo Freire articula-se
(FREIRE, 1975, p.141) perfeitamente à dinâmica do planejamento urbano e territorial:
Quanto à metodologia do pedagogo, esta não pode contradizer o Quando as políticas públicas valorizam processos participativos
caráter de diálogo da concepção libertadora e conscientizadora de democráticos, para que aquelas não se configurem como instrumentos
educação proposta para desenvolver conteúdos. A primeira fase da dos agentes de mercado, de grupos políticos ou mesmo de burocracias
investigação constitui a identificação de temas geradores, temáticas estatais. Dentre as formas mais comuns de participação estão as
significativas ou universos temáticos que podem ser localizados em audiências públicas, conselhos gestores ou de direitos, conferências,
círculos concêntricos, do geral ao particular, partindo da visão totalizada fóruns e reuniões, assim como organizações da sociedade civil e
do contexto e promovendo a análise crítica de dimensão significativo- movimentos sociais.
existencial. Compreende investigação temática cujo processo de Quando caracteriza um processo político que trata da construção do
conhecimento e de criação, no encadeamento dos temas significativos, futuro da comunidade, contando com o maior número de membros das
requer a interpenetração dos problemas. “(…) A constatação do ‘tema categorias que a constituem, não sendo considerada a incapacidade
gerador’ , como uma concretização, é algo a que chegamos não só por inicial dos envolvidos como um impeditivo intransponível. (PADILHA,
meio da própria experiência existencial, mas também de uma reflexão 2002)20
crítica sobre as relações homens-mundo e homens-homens, implícitas
nas primeiras.” ( FREIRE, 1975, p.103) O movimento do pensar ocorre na GANDIN (1994)21 contribui com essa temática ao distinguir três níveis
análise de uma situação existencial concreta, codificada com alguns de de participação: a “colaboração”, quando as pessoas contribuem com
seus elementos constitutivos em interação, e cuja decodificação se dá e apoiam propostas já decididas por autoridades; a “decisão”, que
na análise crítica da situação codificada. ocorre entre alternativas já traçadas referentes a aspectos secundários
desconectados das propostas mais amplas; e a “construção em conjunto”,
Por esse motivo parece útil explorar alguns pontos dessa problemática, quando o poder está com as pessoas, fase na qual todas
que ultrapassa o âmbito das formações específicas, para alcançar
a própria essência do que se entende por planejamento urbano na “(…) com seu saber próprio, com sua consciência, com sua adesão
contemporaneidade. O planejamento urbano não é mais considerado, específica, organizam seus problemas, suas ideias, seus ideais, seu
como no momento de seu nascimento, “ciência médica”, da qual conhecimento da realidade, suas propostas e suas ações. Todos crescem
herdamos a palavra diagnóstico. É o conjunto de políticas públicas juntos, transformam a realidade, criam o novo, em proveito de todos e
que regulam o desenvolvimento do território. Como diria o biólogo com o trabalho coordenado.” (GANDIN, 1994, p.56,57)
escocês Patrick Geddes, presente no quadro acima mencionado, “a Mesmo sobrevindo encontros e desencontros é a participação popular
evolução das cidades e a evolução dos cidadãos são dois processos que que permite aos indivíduos serem sujeitos ativos na construção de uma
devem acontecer juntos”19 e, portanto, só se pode esperar melhorias sociedade nova, lugar do direito, da justiça e da fraternidade.
no organismo urbano por meio do envolvimento ativo do cidadão nas
atividades da vida democrática de uma comunidade.
Adalberto da Silva Retto Júnior, professor na Universidade Estadual Paulista
– Unesp, é doutor (FAU USP e Departamento de História da Arquitetura
e Urbanismo do Istituto Universitario di Architettura di Venezia – IAUV,
À guisa de conclusão 2003) e pós-doutor (IAUV, 2007). Atual coordenador do curso internacional

74 75
Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

de especialização lato sensu “Planejamento urbano e políticas públicas: Notas


urbanismo, paisagem, território”, foi professor-pesquisador visitante no
Master Erasmus Mundus da Universitè Panthéon Sorbonne Paris I (2011-
2013). 1 Quadro criado por Giovanni Laino, que sintetiza as principais conexões e relações
dos expoentes do pensamento urbanístico sobre o tema da participação.
Ana Maria Lombardi Daibem, professora assistente doutora do
2 Christopher Alexander (1936): “Nesse sentido, Christopher Alexander, arquiteto,
Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da Unesp, é doutora
matemático e urbanista nascido em Viena, em 1936, dedicou-se principalmente
em Educação pela Unesp. Coordenadora Pedagógica do Curso Internacional à pesquisa sobre o modo de projetar e construir, usando recursos sistêmicos,
de Especialização Lato Sensu em: planejamento Urbano e Políticas Públicas matemáticos, empíricos e participativos, com a intenção de encontrar um método
Unesp. Co-fundadora e presidente do Grupo Gestor do Núcleo de Estudos unificado de projetar e construir e tornar esse ato uma tarefa mais científica”. Ver:
e Práticas Pedagógicas – Pró-Reitoria de Graduação da Unesp. Secretária PEIXE, Marco Aurélio; TAVARES, Sergio. A linguagem de padrões de Christopher
municipal da Educação de Bauru de 01/01/2005 a 31/12/2008. Alexander. Parâmetros projetuais para a humanização do espaço construído.
Arquitextos, São Paulo, ano18, n.212. 04, Vitruvius, jan.2018 <https://www.vitruvius.
com.br/revistas/read/arquitextos/18.212/6866>.
3 Giancarlo De Carlo (1919-2005): “De Carlo vê a participação como uma luta pela
construção de uma racionalidade dialógica na arquitetura. Uma racionalidade
construída não a partir dos anseios e conceitos dos arquitetos, mas sim, da
coletividade. Porém não concorda com o advocacy planning, pois considera que
essa postura tira do arquiteto o impulso criativo, reduzindo-o a um tradutor dos
anseios coletivos. Insiste que o arquiteto deve trazer a inovação, enriquecendo o
debate participativo, superando o repertório existente daquela coletividade. O
fortalecimento das pequenas comunidades, longe de nostálgico, é um passo rumo
a uma sociedade mais cosmopolita, onde a consciência de cada um – quanto ao
seu papel na coletividade – seja maior e, portanto, sejam os homens mais livres. É a
mensagem que fica na arquitetura de Giancarlo De Carlo: arquitetura é a arte de se
construir espaços para se viver…” Ver: PIZA, João. Vida e obra de Giancarlo de Carlo.
Resenhas Online, São Paulo, ano 02, n. 022.01, Vitruvius, out.2003 <https://www.
vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/02.022/3205>.
4 Colin Ward (1924-2010): “Em seus trabalhos, Ward expôs a possibilidade de
construção da autonomia, a alteridade, a individualidade e a força da mobilização
coletiva. Ele abordou a cidade contemporânea a partir do anarquismo enquanto
metodologia útil à retomada da cidadania, por um viés autônomo e comprometido
com o interesse público. Esse comprometimento, essa percepção da cidade, da
educação e da participação, são bases importantes de uma educação patrimonial
que buscamos, isto é, aquela que permita que as vinculações entre os indivíduos e
a cultura ocorram de maneira positiva e libertadora, sem minimizar ou ignorar os
conflitos. Ver: OLIVEIRA, Carlos Alberto. Colin Ward. A escola e a cidade. Resenhas
Online, São Paulo, ano15, n.177.02, Vitruvius, set.2016 <https://www.vitruvius.com.
br/revistas/read/resenhasonline/16.177/6189>.
5 Adriano Olivetti (1901-1960) Engenheiro e industrial italiano que acreditava que
a única forma para superar o binômio indústria vs agricultura e, principalmente

76 77
Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

produção vs cultura, era através da comunidade. Unindo as forças da comunidade 12 LANGDON, P. The Legacy of Kevin Lynch, in Planning, Chicago, American Planning
seria possível eliminar as diferenças econômicas, ideológicas e políticas. Association, 50:10, (Oct.),1984.
6 Danilo Dolci (1924-1997), ativista social italiano, sociólogo, educador popular e 13 Ver MELLER, Helen. Patrick Geddes: Social Evolutionist and City Planner.
poeta. É conhecido por lutar contra a pobreza, a exclusão social e a máfia na Sicília. (Geography, Environment and Planning Series.) New York: Routledge, Chapman &
Considerado um dos atores do movimento de não-violência na Itália, ficou conhecido Hall, 1990.
como o “Gandhi da Sicília”. 14 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 2 ed. ,Rio de Janeiro: Paz e Terra.1975.
7 Norman Krumholz (1927-2019), professor de Planejamento Urbano da Universidade 15 RETTO JR., A.S., SECCHI, B. Norma Truppel Constantino e Marta Enokibara.
Estadual de Cleveland, é ex-diretor da Comissão de Planejamento de Cleveland e ex- O Laboratório Agudos. https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/
presidente da Associação Americana de Planejamento. Ganhou o Prêmio Nacional de arquitextos/10.114/13
Planejamento de 1990 pela American Planning Association. 16 FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. – São
8 John Forester (1948), engenheiro e industrial americano, Professor de Planejamento Paulo: Paz e Terra.1996 (Coleção Leitura).
Urbano e Regional da Universidade de Cornell, é editor de quatro livros e autor de 17 ————– Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos – São
“Planejamento em face do poder”. Sua marca é o programa educacional Ciclismo Paulo: Editora UNESP, 2000.
Eficaz, que defende que a integração de motoristas e ciclistas educados, em pistas
compartilhadas, reduz mais os acidentes do que criar ciclovias separadas. 18 SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil.- Campinas, SP: Autores
Associados, 2007. – (Coleção memória da educação)
9 Wildavsky (1930-1993), estudioso de orçamento e teoria do orçamento. Uma
de suas obras, Política do Processo Orçamentário, foi indicado pela Sociedade 19 GEDDES, P. Cities in Evolution, (1915). Cidades em Evolução. Tradução de Maria
Americana de Administração Pública como o terceiro trabalho mais influente na José Ferreira de Castilho. Introdução Jaqueline Tyrwhitt. São Paulo, Campinas:
administração pública nos últimos 50 anos. Foi premiado pela Universidade de Papirus, 1994.
Louisville Grawemeyer de 1996 por suas ideias, junto com Max Singer, para melhorar 20 PADILHA,R.P. Planejamento dialógico: como construir o projeto político-
a ordem mundial. Recebeu vários diplomas honorários ao longo da vida. pedagógico da escola – 3.ed. – São Paulo: Cortez; Instituto Paulo Freire,2002 – (Guia
10 Patsy Healey (1940-), urbanista britânica e professora emérita na Global Urban da escola cidadã; v. 7)
Research Unit na Escola de Arquitetura, Planejamento e Paisagem da Universidade 21 GANDIN, D. A prática do planejamento participativo: na educação e em outras
de Newcastle. Especialista em teoria e prática de planejamento, com foco em instituições, grupos e movimentos dos campos cultural, social, político, religioso e
planejamento espacial estratégico para setores urbanos específicos e em políticas governamental.3ed. ,– Petrópolis, RJ : Vozes, 1994.
de regeneração urbana. Editora sênior da revista Planning Theory and Practice.
Realizou pesquisas sobre a preparação e implementação de estruturas de planos
de desenvolvimento, funcionamento na prática das estratégias de planejamento e
formas de parceria de governança nas escalas de bairro, cidade e região.
11 Leonie Sandercock (1949), professora e chefe de estudos urbanos na Universidade
Macquarie, em Sydney, de 1981 a 1986. Mudou-se para Los Angeles, onde perseguiu
duas carreiras, uma em roteiro e outra na Escola de Arquitetura e Planejamento Urbano
da UCLA. No Canadá, por conta de um documentário, seu interesse concentrou-
se nas relações indígenas/ não-indígenas no Canadá. Tem vários livros publicados
sobre planejamento urbano e multiculturalismo nas cidades contemporâneas, dos
quais o mais influente é Towards Cosmopolis: Planning for Multicultural Cities (1997),
e sua sequência Cosmopolis 2: Mongrel Cities of the 21st Century, que ganhou o Paul
Davidoff Award das American Collegiate Schools of Planning em 2005. Em 2005,
recebeu o Prêmio Dale de Excelência em Planejamento Urbano e Regional e, em
2007, o BMW Group Award for Intercultural Learning por escrever sobre Urbanismo
Cosmopolita e sua colaboração com a Collingwood Neighbourhood House em
Vancouver.

78 79
A falta de visão futura da ação pública e a incerteza do
presente na construção da cidade

A busca por visibilidade e imediatismo levou as políticas urbanas a se


afastarem cada vez mais da busca do bem coletivo, incentivando, em
vez disso, os interesses privados e do mercado

O planejamento urbano no Brasil, representado pelo Plano Diretor,


está a exigir uma revisão radical, ou seja, pela raiz. Todos os seus
pressupostos precisam ser questionados. Todos, sem exceção. A
partir desse questionamento, é fundamental que o conteúdo do Plano
Diretor e seus métodos sejam redefinidos de baixo para cima. […].
Os problemas e suas prioridades devem ser definidos pela maioria
e esta deve recusar qualquer constrangimento por “não entender
de planejamento urbano”. Especialista (ou expert) é aquele a quem
o problema diz respeito! Os técnicos têm que ser postos a serviço
dessa maioria e da solução dos problemas que elas pautarem.
As ilusões do Plano Diretor, Flávio Vilaça, 2005

15 ABRIL 2021
Texto originalmente publicado no Jornal Le Monde Diplomatique:
https://diplomatique.org.br/a-falta-de-visao-futura-da-acao-
publica-e-a-incerteza-do-presente-na-construcao-da-cidade/
80 81
Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

Um presente imóvel desceu sobre o mundo acometido pela Covid-19, o vazio e a incapacidade da política de pensar um futuro coletivo e,
aniquilando o horizonte histórico e, com ele, promovendo um verdadeiro sobretudo, de imaginá-lo fora de suas próprias expectativas privadas.
eclipse (oculto) do tempo1. A imagem do anjo da história de Paul Klee A cidade contemporânea brasileira, com seu caráter de modernidade
(que, nas palavras de Walter Benjamin, possuía os olhos voltados para inacabada, solicita uma experimentação que restabeleça a relação íntima
a memória do passado e as asas abertas como se arrastadas por um entre planejamento e exploração projetual, a partir de sistemas novos
vento tempestuoso em direção ao futuro) foi substituída pela falta de e mais articulados do que aqueles imaginados para a cidade moderna.
consciência crítica do passado. Hoje, impera a incapacidade de imaginar
um futuro a ser planejado de acordo com o interesse coletivo, como as Mesmo olhando para o futuro, é difícil ignorar que a qualidade de
políticas iniciais do Ministério da Cidade estimularam. vida em megacidades futuras será determinada pela forma como os
governos locais promoverão a experimentação em seus mandatos. Por
Na citação de Benjamin de 1940, ele se referiu às ruínas de uma Europa essas razões, os programas de pesquisa são cada vez mais importantes
ocupada pelo nazismo-fascismo e frente a uma Segunda Guerra Mundial. em todos os níveis, pois podem transformar partes de cidades em
Sua intenção foi fornecer um ponto de vista alternativo à visão dessas laboratórios, nos quais as instituições locais, sejam administrações
ideologias, que fizeram do “magnífico destino e progresso uma espécie públicas ou órgãos de pesquisa públicos ou privados, podem produzir
de mito tão deslumbrante e irresistível quanto desumano e destrutivo”. soluções para as questões mais urgentes de política urbana. A cidade
Em vez de elogiar o progresso a todo custo com palavras simples, será como um laboratório de práticas aplicadas.
vazias e surdas, Benjamin procura e propõe outra dimensão profunda
e revolucionária. Ao mesmo tempo, realça o presente e a memória, e A cidade contemporânea é um mosaico de povos em movimento,
deixa espaço para uma visão diferente e, acima de tudo, livre. de diferenças na vida e no trabalho, produção e consumo, origem e
cultura, bem como gênero, idade, métodos de agregação, estratégias
Estamos aprisionados em um presente imóvel e a magia do jogo entre de sobrevivência e afirmação individual e coletiva. Esses movimentos
passado e futuro (suspenso no momento presente) que, ao mesmo urbanos podem ser analisados como um conjunto de trajetórias e
tempo, nos apoiaria e nos empurraria adiante como o anjo de Klee, deslocamentos no espaço, dinamismo social e cultural, mas também como
parece ter anulado até mesmo a ambição de pensarmos um futuro da uma rede de processos de auto-organização e autoconstrução da vida,
cidade contemporânea. A busca por visibilidade e imediatismo levou as de novas redes de solidariedade, novos laços sociais, microcomunidades
políticas urbanas a se afastarem cada vez mais da busca do bem coletivo, em formação ou desenvolvimento.
incentivando, em vez disso, os interesses privados e do mercado. O
crescimento de novas desigualdades e a construção de um sistema de Uma das abordagens mais bem-sucedidas para o estudo da prática
novos valores, correspondentes a novos mapas de poder, determinaram científica nos últimos trinta anos tem sido os Estudos de Ciência e
um desprezo progressivo pelos grupos sociais mais fracos. Tecnologia (STS, na sigla em inglês), inúmeras vertentes de pesquisa que
evoluíram em uma relação de contaminação mútua. O representante
É por essa razão que se abrem lacunas de significado, na sociedade, mais relevante dessa tradição é Bruno Latour que, nos anos 1980 e 1990,
por meiodas quais as religiões ganham espaços cada vez mais amplos. deu novo impulso ao estudo da ciência, considerando o laboratório como
Elas interceptam as necessidades mais sentidas durante a elaboração local privilegiado de observação da chamada ciência em ação. Os estudos
ou revisão de planos diretores, principalmente nas cidades pequenas do de Latour e outros colegas permitiram reconhecer as características
interior de São Paulo. Nesse cenário, as religiões tendem a preencher políticas e sociais da produção do conhecimento científico: o laboratório
representa não só o lugar onde o método científico é aplicado, mas
82 83
Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

também – e, sobretudo – o centro de uma rede de relações com outras Cada experiência encomendada a uma equipe de pesquisa,
entidades e indivíduos que têm o poder de influenciar o projeto de cada artefato tecnológico, cada aplicativo capaz de estruturar o
pesquisa. funcionamento de uma área urbana é resultado de uma negociação
Dessa forma, a cidade como laboratório ou Um Urbanismo de Canteiro entre cientistas, engenheiros, instituições políticas e financiadores.
(RETTO JR, 2021) representa o lugar a partir do qual o cientista começa a É possível, portanto, que a escolha de um determinado projeto reflita
construir e, posteriormente, transmitir sua visão do mundo à sociedade. mais uma preocupação com os valores da terra, em vez de refletir
Nele, promove uma interpretação dos fatos empíricos de acordo com democraticamente as preferências dos cidadãos; ou é possível que uma
critérios que, ao mesmo tempo, são o produto das práticas de laboratório determinada experiência, de forma mais ou menos consciente, ignore
e de uma lógica de empreendedorismo político, destinada a afirmar sua os desejos de algumas partes interessadas, simplesmente porque são
própria visão. consideradas marginais para o processo de tomada de decisão.
Os laboratórios urbanos, entretanto, são parcialmente diferentes dos No texto Urban Laboratories: Experiments in Reworking Cities (2014)2
casos examinados pelo STS, na medida em que o objeto de reflexão já contido em número monográfico do periódico International Journal
é profundamente político em si mesmo, e que a prática científica visa of Urban and Regional Research, Bas van Heur trata da desconstrução
fornecer respostas a questões políticas. Compreensivelmente, torna-se do conceito de “laboratório urbano”. Seu trabalho combina a atenção à
mais concreto o risco de usar a ciência como um discurso para legitimar observação in vivo da prática da ciência com a capacidade de inscrever
as relações de poder pré-existentes. as práticas concretas de pesquisa, colocadas em prática em laboratórios
urbanos, na rede de poder que estrutura as políticas urbanas. Seguindo
Para compreender plenamente as articulações do laboratório como a linha de pesquisa proposta por Van Heur, é possível entender por
elemento de produção do espaço urbano, a vertente de pesquisa de que certas escolhas metodológicas são feitas, ou porque é importante
economia política urbana, cultivada por sociólogos, economistas investigar um determinado assunto. Tudo isso à luz das instituições e
heterodoxos e geógrafos, é bastante relevante e sua abordagem produz práticas políticas que definiram o campo de pesquisa.
uma crítica radical à postura adotada por Latour e colegas. A gestão do
poder é o principal problema identificado pelos que adotam as categorias O trabalho de Van Heur reescreve o conceito de “laboratório urbano”
da economia política para analisar as transformações urbanas. De acordo como um local onde não apenas experimentos científicos são produzidos,
com Scott Kirsch e Don Mitchell (2004), as abordagens latourianas, mas onde são cultivados os embriões das escolhas políticas futuras. Por
embora revelando a natureza política da produção científica, produzem essa razão, fazer pesquisas críticas em laboratórios urbanos não significa
uma representação dispersa do poder. As epistemologias adotadas apenas se perguntar se um determinado projeto experimental, por
pelos pesquisadores e os artefatos produzidos pela tecnologia tornam exemplo, de “reconversão verde” da economia local, é capaz de atingir
possíveis algumas abordagens de pesquisa e desencorajam outras. os objetivos estabelecidos. Significa também, e sobretudo, perguntar
como esses objetivos foram formulados e o que significam para todos
Segundo os estudiosos neomarxistas, essa modalidade ignora o papel aqueles que foram excluídos da definição dos objetivos.
da estratificação do poder. Embora possa ser difícil identificar um
comando central na lógica do desenvolvimento tecnológico, é igualmente Uma reflexão sobre a construção social da ciência é absolutamente
verdade que alguns de nós, para usar uma metáfora orwelliana, são mais urgente: não se trata apenas de preencher um “buraco” na literatura. Na
iguais que outros, porque representam as instituições, suas agendas medida em que o método científico contribui para moldar e legitimar
políticas e sua capacidade de monopolizar recursos escassos. as decisões políticas e, se quisermos, garantir também que a ciência,

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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

a tecnologia e as práticas laboratoriais produzam bem-estar para o Notas


maior número possível de pessoas, o uso das ciências sociais torna-se
indispensável, a fim de entender como e sob quais condições a prática
da ciência é forjada. Somente criando as ferramentas para “abrir” 1 “… como se o coração tivesse antes que optar entre o inseto e o inseticida” (Caetano
laboratórios urbanos é que será possível fazer um balanço completo Veloso, 1983)
das práticas de inovação, garantindo ao mesmo tempo um incentivo 2 Urban Laboratories: Experiments in Reworking Cities. Andrew Karvonen, Bas van
ao progresso tecnológico e uma governança plural e participativa dos Heur, vol. 38, issue 2, March 2014, pages 379-392.
processos de inovação.
Há séculos, o tempo tem sido o portador de esperança. Do futuro,
esperávamos paz, evolução, progresso, crescimento, até mesmo
revolução. Esse não é mais o caso. O futuro utópico praticamente
desapareceu e os territórios da cidade contemporânea, aqueles
dominados pela precariedade, provisoriedade e uma condição
generalizada de instabilidade e metamorfose contínua, são a expressão
mais forte e evidente da incerteza política e programática que rege a
sociedade brasileira atual. Logo, o conceito de laboratório urbano passa
a ser uma das inovações políticas mais proeminentes do último período.
Talvez seja a partir desse tipo de experiência que possamos começar
a responder como as cidades poderão ser transformadas na era pós-
pandemia. Perguntando-nos ainda que mecanismos colaborativos e
conflituosos animam os contextos urbanos e quais políticas e inovações
fazem das cidades laboratórios da democracia.

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Como viveremos juntos? How will we live together?
Comme vivremo insieme?

A indagação colocada pela curadoria da 17ª Bienal Internacional de


Arquitetura de Veneza, em 2021, com curadoria do arquiteto Hashim
Sarkis, remonta ao título da aula inaugural do filósofo, crítico literário
e semiólogo francês Roland Barthes que, a convite de Michel Foucault,
ministrou no curso de Semiologia Literária no Collège de France, em
meados da década de 19701 e 2.
A pergunta de Barthes nasce do questionamento de “Como encontrar
a distância certa entre mim e meu próximo para que uma convivência
social aceitável seja possível para todos nós?” e encontra uma resposta
direta na idiorritmia como forma de viver, ou seja, um sistema em que,
ainda que em comunidade, cada um deve ser capaz de encontrar e
preservar o seu próprio ritmo autônomo de vida.
A justificativa da premiação póstuma de Lina Bo com o Leão de Ouro
Especial pelo conjunto de sua obra, nas palavras de Hashim Sarkis, não
poderia ser mais oportuna, pois “Em suas mãos, a arquitetura se torna

27 MAIO 2021
Texto originalmente publicado no Jornal Le Monde Diplomatique:
https://diplomatique.org.br/como-viveremos-juntos-how-will-we-
live-together-comme-vivremo-insieme/
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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

verdadeiramente uma arte social”. Apesar de se basear em um traço de a reorganização e a afirmação dos próprios direitos, a liberdade de
união entre o tema e a homenageada, o prêmio maior de uma das mais questionar as orientações econômicas, sociais e culturais dominantes,
importantes bienais de arquitetura não é suficiente para explicar o tardio a necessidade de encontrar uma mediação entre lugares e identidades,
reconhecimento de uma das arquitetas italianas (fora da Itália) mais a consciência de promover a cultura como diálogo, a autenticidade das
importantes do século XX. Sem dúvida, o prêmio marca indelevelmente relações e do fazer junto e para todos como a resposta mais natural
o retorno de Lina à Itália, mas desenha uma “geografia emocional” possível a uma demanda de conexão e construção do sentido do humano.
suave, não romântica, pois expõe a alternância de registros nos dois A obra de Lina – reinventando o modo de trabalhar, agregando
países onde a arquiteta viveu: no Brasil, país onde sempre foi referência, pessoas e estabelecendo um profundo sentido de equipe – foi e é
sobretudo no campo da regeneração urbana, e onde construiu uma capaz de marcar a cadência desse retorno, pois desvela a existência de
trajetória tendo como pano de fundo as tensões políticas de décadas percursos inesperados mas conscientes, de mulheres que determinaram
de ditadura militar; e na Itália, onde nasceu, viveu o impacto da guerra, a mudança de lugares, territórios e abriram novas possibilidades de
teve sua experiência formativa e se casou com Pietro Maria Bardi, que recuperação de contextos. Em particular, três primeiras contribuições
possuía ligações explícitas com o fascismo de Mussolini. desempenham função introdutória na leitura de suas obras e enfatizam
Esses questionamentos representam diferentes nuances ou três aspectos peculiares: os caminhos possíveis dentro dos quais agir
caracterizações de identidade que, se observadas com ampliação do para desarmar os “curtos-circuitos do sistema operacional mutualístico”
campo visual, ajudam a recompor a condição existencial e identitária que do universo masculino e remediar as falhas da inovação social; a
a aproximou do Brasil e a distanciou de sua terra natal, para onde agora transformação contínua do museu como um local de futuro propulsor
retorna em outro patamar. Um retorno como o de muitos arquitetos para a regeneração urbana; as identidades em movimento e precário
que viveram a mesma questão às avessas – principalmente os judeus equilíbrio, entre partidas e retornos criativos e emocionais, orientados
– e que tiveram, como ela, a experiência da imigração geográfica e/ para a construção do sentido e do bem comum.
ou interior: fizeram uma viagem ao desconhecido de onde regressaram Nesse ritmo, que é pano de fundo de um novo e almejado paradigma
com um ato criativo de rebeldia e/ou oportunidade e onde construíram cultural, a mudança de perspectiva – que representa mais uma força –
obras capazes de regenerar sua identidade e raízes comunitárias em está também nos significados e destinatários da narrativa que atravessa
outro contexto. questões incômodas. E assim, um dos ícones da arquitetura moderna
Nesse percurso de retorno, somos levados a refletir sobre as em São Paulo, o museu de arte da cidade, conhecido como MASP, que
capacidades e limites dos contextos territoriais e dos sistemas sociais consubstancia um grande espaço público, é descrito pelo compositor
(entre público e privado, com e sem fins lucrativos) para responder John Cage como “(…) a arquitetura da Liberdade !”.
com adequada inteligência coletiva às visões movidas por buscadores- Mas o que significaria liberdade nas condições atuais, para responder
produtores de sentido, vínculos e sociabilidade; em outras palavras, à pergunta inicial da Bienal “Como viveremos Juntos?” Significa aceitar
para facilitar a cooperação entre diferentes pessoas em uma relação nossa sociedade contemporânea, com suas diferenças nacionais,
de igualdade, quase inspirada na metáfora, conhecida no campo da étnicas e culturais e a possibilidade de escolher trajetórias e estilos de
inovação social, das abelhas e das árvores. vida diversos. Somente dessa forma, as questões colocadas por Roland
Entre essas visões, o desejo de experimentar novas relações de Barthes e Henri Lefebvre, podem nos mostrar como a liberdade, tanto
colaboração ou a própria resiliência colocada a serviço do bem comum, individual quanto coletiva, é estritamente ligada ao ambiente em que

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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

vivemos, portanto ao ambiente construído, o ambiente urbano por (In memoriam Donna Lina Bo Bardi)
sonho o poema de arquitetura ideal
excelência. cuja própria nata de cimento encaixa palavra por
Nesse ponto, os questionamentos atuais transformam-se em palavra,
tornei-me perito em extrair faíscas das britas
importantes temas de projeto a serem desenvolvidos, seja por exercícios
e leite das pedras.
nas escolas de arquitetura, seja na vida profissional onde cada projeto acordo.
ou espaço urbano represente uma Fábrica de Poema, sonho de uma e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
de arquitetura ideal (Wally Salomão, 2001)3. Fala-se das escalas, das acordo.
o prédio, pedra e cal, esvoaça
formas, dos usos e das funções, dos programas e de sua montagem.
como um leve papel solto à mercê do vento
Fala-se também de atores e da lógica de atores que influem nas formas e evola-se, cinza de um corpo esvaído
urbana e arquitetônica. Fala-se também de temporalidades. Mas de qualquer sentido.
projetar como Lina, cujas histórias e contextos entram na sua pauta de acordo,
e o poema-miragem se desfaz
reflexão, significa explorar fronteiras. E uma fronteira, ao mesmo tempo
desconstruído como se nunca houvera sido.
que separa dois países também os une, já que uma fronteira jamais é acordo!
estanque e de mão única. os olhos chumbados
pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
Notas vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-se os dedos estarrecidos.
sinédoques, catacreses,
metonímias, aliterações, metáforas, oximoros
1 Roland Barthes, Comment vivre ensemble, cours et séminaire au collège de France sumidos no sorvedouro.
(1976-1977) 2000. Seuil, Paris. não deve adiantar grande coisa
2 Fábrica de Poemas permanecer à espreita no topo fantasma
da torre de vigia.
nem a simulação de se afundar no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará o recalcado?
(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma expressão
por demais definida, de sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão mágica
vou rasurá-la daqui do poema.)
pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará?
Waly Salomão, Poesia total, 2001.

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Tefé - AM, 166 anos: um futuro de possibilidades

Após anos sem voltar ao coração da Amazônia para visitar minha


cidade natal, ouvi em uma conferência da geógrafa e professora da
Unesp de Presidente Prudente, Dra. Maria Encarnação Sposito, Tefé
sendo apresentada ora como uma cidade pequena, de acordo com o
número de habitantes, ora como cidade média, de acordo com outros
tantos parâmetros.
Diante da colocação da professora, eu me apresentei como filho da
cidade e teci algumas considerações que justificam tal análise. Pela
primeira vez, Tefé deixava de ser apenas uma referência intangível da
minha infância e adolescência para reaparecer, agora como núcleo
urbano materializado, na idade adulta de um filho da terra especialista
em cidades.
“Que cidade é esta? Por que assume tal categoria apesar do número de
habitantes? É uma a cidade na qual todas as partes se unem, as escolhas
se equilibram, onde se preenche a lacuna entre o que se espera da vida

15 JUNHO 2021
Texto originalmente publicado no Jornal A Crítica
https://www.acritica.com/blogs/artigos/posts/tefe-am-166-anos-
um-futuro-de-possibildades
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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

e o que nos toca? ” Por instantes, retomei a sensação de viver na cidade A era atual de disseminação de conhecimentos e habilidades não pode
que, hoje, comemora os 166 anos de sua fundação. trair a aspiração intrínseca de cada um: de se realizar mais do que nas
Nascido e criado em Tefé, fui herdeiro de duas correntes: por um lado, eras que deixamos para trás. Desse ponto de vista, cada um de nós tem
de uma família profundamente vinculada à política e cultura local e, por seu próprio arquivo para imaginar ou para negociar a expectativa de
outro, de uma família ligada à medicina social, já que meu avô materno futuro.
foi médico do Serviço Especial de Saúde Pública - SESP. Talvez por isso, A política, por seu lado, tem o dever de criar condições para que a
eu não tenha caído no discurso de relatar a história da família e fazer mudança seja sempre possível, envolvente e participativa. Cabe à política
uma narrativa fácil e saudosista do passado. desenvolver formas de pensar, sentir e agir que ampliem os horizontes da
Quero, sim, assumir o papel de um especialista em urbanismo e esperança, ampliem o campo da imaginação, gerem maior equidade na
indagar sobre o futuro da cidade pós-Covid-19, pandemia que alterou capacidade de sonhar. Se a política não pode vender ilusões, tampouco
nossas vidas. Quero tentar fazer algo que a política já não sabe fazer: pode reprimir aspirações.
imaginar o futuro e não o futuro provável, mas o que é possível. Quero Ao longo de nossa história, as cidades sempre foram o lugar ideal para
falar da ética da possibilidade. A política é convocada desde sempre – a realização das aspirações humanas. É preciso que o indivíduo se volte
mas agora mais do que nunca – a respeitar “a ética da possibilidade”, para a cidade, para a cultura urbana como cultura de proximidade, de
porque este é o pacto que todo cidadão ainda pode sustentar. Diante partilha, de pacto pela cidadania, de abertura ao outro. É preciso que
da angústia inescapável do tempo atual, o futuro é uma questão grave, cada um seja protagonista de uma mudança que se traduz em múltiplas
porque ninguém pode nos privar do encontro com a esperança e com e diversificadas iniciativas, porque uma cidade é sempre um organismo
nossas aspirações. Esta é a força da vida. coletivo que palpita.
O futuro é o maior fato cultural do nosso tempo, escreveu o antropólogo A democracia é chamada a se traduzir na prática cotidiana da
indiano Arjun Appadurai (1949). Um tempo sem futuro é atemporal. esperança, dos horizontes a serem conquistados, no ato de sairmos de
Crescemos ouvindo dizer que a cultura está sempre combinada com nossas subjetivações para construirmos juntos a cultura do futuro em
o passado: tradições, hábitos, patrimônio, costumes. Assim, pode ser uma cidade policêntrica e polifônica. Que se costure, então, o tecido do
vista como barreira, limite, exclusão, obstáculo. Ocorre que o futuro futuro com o fio das ideias, da cultura e da imaginação coletivamente, e
é a dimensão mais negligenciada da cultura e se não olhar para longe, não individualmente.
não é cultura. A cultura não existe para ficar olhando apenas para trás. As novas gerações são “ interculturais” e não há como voltar atrás,
Cultura só é cultura se souber construir horizontes, se souber imaginar assim como não há como voltar atrás na pluralização dos estilos de vida,
e produzir respirações amplas. nas contaminações, porque estes já são os vislumbres mais promissores
O fato é que sempre que a cultura se combina com o futuro ela ganha de uma cultura do futuro. O ser humano vive, transforma e dá sentido
um outro nome: desenvolvimento e, a partir daí, dá lugar à economia ao mundo com a cultura, pois ela é a dimensão essencial da ação social,
que parece ter-se tornado a única ciência do futuro, expropriando da convivência, da teia de relações dentro da qual construímos nossa
nossas vidas, tirando nossas aspirações e nossos projetos. Foi assim que existência como indivíduos e como comunidade.
nos roubaram o futuro, a capacidade de ter aspirações, de ser indivíduo Aqueles que não são capazes de entender a cultura do futuro estão
construtores do futuro, de um futuro como fato cultural. desligados do todo, fechados em seu mundinho e apenas prometem

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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

escuridão. Nascemos para viver à luz das nossas cidades que devem
voltar a brilhar neste milênio que promete ser o milênio das cidades.

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A praça-rotatória como polo de urbanidade: premissas
para projetar a cidade contemporânea

Uma figura nodal aparece no debate da cidade de Bauru rompendo a


inércia do período pandêmico: a denominada “modernização da Praça
Portugal”. Uma praça-rotatória, nuance terminológica que esconde
uma ambiguidade entre movimento e forma, relações entre projeto de
mobilidade e projeto urbano e jogo de interesses entre poder público e
empreendimentos privados de grande porte. Para melhor compreender
os contornos desse estatuto ambíguo, vale reconstruir a genealogia
dessa figura, tanto na história da cidade europeia como na estruturação
da expansão da cidade do Oeste Paulista, em quadrícula regular.
Na cidade europeia, o surgimento e a experimentação das rotatórias
(rond-point em francês) nos remete aos parques de caça da burguesia e
aos jardins clássicos no século XVIII. Mais tarde, aos Grandes Trabalhos
do Barão Haussmann, na construção da Cidade Luz, Paris do século XIX.

29 AGOSTO 2021
Texto originalmente publicado no Jornal da Cidade – Bauru
h t t p s : // w w w . j c n e t . c o m . b r / o p i n i a o / t r i b u n a _ d o _
l e i t o r/ 2 02 1/0 8/ 7 7 23 1 7- a - p ra ca - ro t at o r i a - co m o - p o l o - d e -
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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

Aquele foi um momento decisivo quando os inventores da nova ciência espaços - da tridimensionalidade, da matéria da realidade urbana, dos
chamada “urbanismo” (Ildefonso Cerdá, Camillo Sitte e Joseph Stübben) canais materiais de ligação e da denominada “cidade física”. O aspecto
buscavam soluções para os conflitos entre veículos em encruzilhadas simbólico e político seria traduzido na construção de uma narrativa
urbanas. Mas é a Eugène Hénard, em 1906, que devemos a invenção para a cidade pensada de forma equânime e inclusiva.
da “rotatória”, elemento que os arquitetos e engenheiros de tráfego do Portanto, a denominada “modernização da praça” poderia ser pensada
século XX continuaram a usar na construção da cidade moderna. com ações projetuais que demonstrassem eficiências e acionassem
Quando analisamos as cidades em quadrícula, ou seja, a maioria novas relações entre infraestrutura e espaço público, dando corpo à
das cidades do centro oeste do Estado, formadas pelo binômio café- necessidade de reagir à demanda de acessibilidade mediante estruturas
ferrovia, temos a passagem de uma trama ortogonal a um dispositivo capazes de incidir de fato no desenho urbano.
centrípeto e centrífugo que, no caso de Bauru, forma um anel externo Dentro dessa perspectiva, em vez de propor meras faixas de pedestres,
sinalizando a expansão da cidade em várias direções. Algumas dessas marcadas em vermelho na proposição publicada, a ação projetual poderia
praças rotatórias aludem a países cujos imigrantes foram relevantes responder, de forma responsável, às linhas de orientação e opções
na formação e construção da cidade: Praça Portugal, Praça do Líbano, estratégicas apresentadas em instrumentos legais que alertam para a
Praça Itália, Praça Chujiro Otake (Japão), Praça Alemanha. necessidade de reflexão mais ampla e integrada de todos os sistemas
Se a eficácia das rotatórias está comprovada em termos de tráfego, sua identificados e baseados no Desenho Universal. Nesse contexto, se
sistematização, resultante de uma visão excessivamente instrumental, visto apenas como ideia da eliminação de barreiras arquitetônicas, o
entra pouco a pouco em colapso, no momento em que uma nova conceito de acessibilidade parece simplista e limitado, pois seu único
concepção de cidade e de espaço público está em voga. Nessa nova propósito é cumprir uma obrigação legal que só conseguirá beneficiar e
concepção, estruturas semelhantes são reinventadas até mesmo como satisfazer às exigências de duas “categorias” de usuário: do automóvel e
pontos de drenagem urbana e, por que não dizer, como mecanismos de do habitante do grande equipamento beneficiado.
articulação e construção de urbanidade da matriz viária contemporânea. A investigação no âmbito do projeto urbano, portanto, poderia valorizar
Seguindo esta linha de raciocínio, uma cuidadosa abordagem de os fenômenos de descontinuidade de superfícies, recuperando não só
planejamento poderia construir uma narrativa importante articulando a visão da praça para a escala humana, mas também a necessidade de
mobilidade, planejamento urbano e história da cidade e, a partir de redesenho de calçadas e, assim, ligar questões relativas à qualidade
um “paradigma sistêmico”, repensar a estrutura excêntrica ao centro morfológica e espacial da estrutura urbana. Estaríamos, assim,
histórico como nós de urbanidade, mobilidade e acessibilidade, respondendo a um dos maiores desafios da cidade contemporânea
funcionando como peças do vocabulário atual do projeto da cidade que, para arquitetos e urbanistas, consiste em colocar a acessibilidade
contemporânea. Pensar uma praça-rotatória com tais características, como instrumento de projeto para elevar a qualidade dos espaços, e
dentro de um plano de mobilidade mais amplo, não só daria visibilidade conceituando o projeto urbano como motor fundamental e imprescindível
a uma articulação constitutiva funcional e física, mas também faria de cada cidade e atividade.
repensar a noção de pertencimento e equilíbrio da cidade, que iria Pensar o projeto da cidade contemporânea significa relacionar-se com
além do privilégio de obras apenas no vetor sul de Bauru. Do ponto elementos urbanos e promover sistemas qualitativos de conexões, como
de vista funcional, abrangeria as funções urbanas e suas inter-relações, elementos estruturantes da própria forma da cidade, pois a qualidade
enquanto do ponto de vista físico seria a congregação de todos os do urbano não reside somente na dotação de serviços e equipamentos
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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

de grande impacto, mas na qualidade da experiência do cidadão, que se


apropria da cidade quando e se esta lhe for acessível.
As intervenções a favor da mobilidade urbana, portanto, não
contemplam somente a exigência de atingir o lugar de destinação,
mas devem propor uma releitura do espaço valorizando a fruição e
a percepção, a fim de recompor as diversas partes urbanas em uma
sequência narrativa unitária para garantir, a cada uma e ao todo,
efetivo reconhecimento. Ocorre integrar as perspectivas na grande e
na pequena escala, nesse momento em que a acessibilidade deriva da
interação entre os dois elementos principais, componentes da estrutura
urbana: espaço-funcional (as atividades urbanas) e espaço-temporal (as
redes de transporte), através dos quais pode haver integração osmótica,
como forma de regeneração da excessiva fragmentação da cidade
contemporânea.
E assim, cada elemento, cada material, cada superfície, cada volume,
cada feixe de luz é funcional para a proposta e compõe o discurso de uma
visão, uma especificidade, uma linguagem e uma vontade comunicativa.
Essas escolhas são fundamentais para delinear o experimento perceptivo
que dá vida tanto às narrativas experienciais pessoais quanto às
percepções coletivas, e à capacidade dos homens de ver e compreender
a realidade que os cerca.

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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

Representante da Unesp no Condephaat Conselho de Defesa do


Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de
SP (2015 e 2016). Membro suplente do CAU SP (gestão 2018-2020)
Coordenador do grupo de pesquisa SITU - Sistemas Integrados
Territoriais e Urbanos, cadastrado no Diretório dos Grupos de
Pesquisa no Brasil desde setembro de 2003 e composto por docentes e
alunos pesquisadores (Iniciação Científica e estagiários de prefeituras)
de Arquitetura e Urbanismo e outros cursos da Unesp, de outras
universidades nacionais e internacionais, e consultores externos.
Em seu primeiro ano de funcionamento, visando delinear e consolidar
um itinerário de pesquisa no Centro Oeste Paulista, o grupo de pesquisa
SITU realizou dois eventos internacionais e sedimentou duas linhas
prioritárias de pesquisa, a saber: 1 - História da Cidade e do Território
e 2 - Conhecimento Histórico-Ambiental Integrado na Planificação
Territorial e Urbana.
Sobre o Autor Dentro da linha História da Cidade e do Território, e com parceria
com o IUAV di Venezia na figura da Prof. Donatella Calabi e colaboração
da Profa. Dra. Heleni Porfyriou (CNR), foi realizado o I Congresso
Professor na Universidade Estadual Paulista – Unesp, desde 1994, e Internacional de História Urbana, como parte de uma rede internacional
atual coordenador do Curso de Arquitetura e Urbanismo e do Curso de três congressos ( Viena em nov. 2003, Veneza em jan. 2004 e Agudos
Internacional de Especialização Lato Sensu em Planejamento Urbano e em nov. 2004), que objetivou refletir sobre o urbanismo internacional
Políticas Públicas: Urbanismo, Paisagem, Território. de 1880 a 1930, reposicionando profissionais latino-americanos no mapa
da circulação dos saberes e explorando as “declinações nacionais”.
Pós-doutorado no Istituto Universitario di Architettura di Venezia - IT
(2007) como bolsista FAPESP. Coordenação do grupo de pesquisa da Unesp (Bauru) “O processo de
urbanização do Centro-Oeste Paulista e as Frentes Pioneiras baseadas
Mestre e Doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da no Binômio Café-Ferrovia - 1850–1950”, com pesquisas in loco em 100
Universidade de São Paulo (Bolsa Fapesp) e pelo Departamento de cidades do estado de São Paulo, como parte do projeto temático Fapesp
História da Arquitetura e Urbanismo do 2003) com bolsa sanduíche (2006-2011) coordenado pela Profa. Dra. Maria Stella M. Bresciani -
CNPq no Istituto Universitario di Architettura di Venezia – IT. Unicamp: “Saberes Eruditos e Técnicos na Configuração e Reconfiguração
Foi professor-pesquisador visitante no Master Erasmus Mundus TPTI do Espaço Urbano: Séculos XIX e XX”.
(Techniques, Patrimoine, Territoire de lIndustrie: Histoire, Valorisation, A segunda linha de pesquisa, em Conhecimento Histórico-Ambiental
Didactique) da Universidade Panthéon Sorbonne Paris I(2011-2013). Integrado na Planificação Territorial e Urbana, promoveu um workshop
itinerante com dois objetivos: 1 - analisar as transformações da paisagem

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Adalberto Retto Jr. Urbanismo e a cidade contemporânea

do estado de São Paulo (do litoral ao interior) e 2 - elaborar um plano


diretor participativo para a cidade de Agudos com financiamento do
Ministério das Cidades (Laboratório Agudos). Para o primeiro objetivo,
o grupo contou com a participação especial de equipe interdisciplinar
composta pelos professores Dr. Aziz Ab’Saber – FFLCH USP, Dr.
José Cláudio Gomes (Unesp – Bauru/ FAU USP), Dr. Jurgen Richard
Langenbuch (Unesp- Rio Claro), Dr. Sylvio Barros Sawaya (FAU USP),
Dr. Witold Zmitrowicz (FAU USP) e do italiano Dr. Bernardo Secchi.
Com isso, buscou-se construir um arquivo de intervenções e planos
urbanísticos realizados nas cidades para evidenciar o longo percurso
no campo da construção do território.
Na linha de pesquisa em Conhecimento Histórico-Ambiental Integrado
na Planificação Territorial e Urbana: Coordenador da elaboração do
Plano Diretor Participativo do Município de Agudos SP (2004-2006),
da revisão do Plano Diretor do Município de Jaú (2010-2011), do Plano
Estrutural de Pirajuí (2013), do Plano Diretor, de Mobilidade e de Turismo
do Município de São Manuel SP (2014-2015), do Plano Diretor de Bariri,
do Plano de Mobilidade da Estância Turística de Holambra, da revisão
do Plano Diretor de Itápolis, de Pederneiras e do Plano de Zoneamento
de Agudos. Foi coordenador científico da Revisão do Plano Diretor de
Jaú - 2019.
Como representante da Unesp no Condephaat Conselho de Defesa do
Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de SP
(2015 e 2016), fez parte da equipe de Revisão do Plano de Tombamento
do Centro da Cidade de Amparo, que teve metodologia baseada no
conceito de Morfotipo Urbano referendada pelo Condephaat.

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