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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Elaborado por Sônia Magalhães


Bibliotecária CRB9/1191

S725 Sousa, Joeline Rodrigues de


2014 Gramsci: educação, escola e formação – caminhos para a emancipação
humana / Joeline Rodrigues de Sousa. – 1. ed. – Curiti ba: Appris, 2014.
208 p. ; 21 cm

Inclui bibliogra as
ISBN 978-85-8192-469-4

1. Gramsci, Antonio, 1891-1937. 2. Educação integral. 3. Educação - Filoso a.


4. Educação e Estado. I. Título.

CDD 20. ed. – 370.1

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A minha mãe, Ismael e Sávio, companheiros éis e incansáveis.


PREFÁCIO

O livro Gramsci: Educação, Escola e Formação – caminhos para a


Emancipação humana de Joeline Rodrigues de Sousa que ora se
começa a ler é de grande utilidade para quem começa a se
embrenhar na difícil missão de descortinar os caminhos da luta
pela emancipação humana. Essa causa que hoje pode nos parecer
quase perdida se considerarmos as cabriolas e os sobressaltos do
[…] só grau a grau, estrato a estrato, a humanidade adquiriu capital em crise em suas tentativas de sobreviver a qualquer custo.
consciência do seu próprio valor e conquistou o direito de viver A devastação social e a regressão cultural dos dias que correm
independentemente dos esquemas e dos direitos de minorias efetivamente coloca em alto risco esse projeto histórico delineado
a rmadas num tempo precedente. E esta consciência formou-se não
por Karl Marx no século XIX.
sob o ferrão brutal das necessidades siológicas, mas pela re exão
Desde muito cedo Marx se deu conta de que a reprodução da
inteligente, primeiro por alguns e depois por toda a classe, sobre a
razão de certos fatos e sobre os meios considerados melhores para os vida social ocorre por meio de escolhas que são postas e repostas
converter de ocasião de vassalagem em insígnia de rebelião e de socialmente por meio de representações ideológicas cuja
reconstrução social. plausibilidade decorre de determinadas formas de organizar a
(Antonio Gramsci, 1916) produção material. A ordem do capital leva a extremos o
estranhamento presente entre o produtor de bens de uso e o
próprio produto, ao mesmo tempo em que desenvolve as forças
produtivas do trabalho e torna possível a emancipação do trabalho
humano do estranhamento.
O cerne da questão encontra-se então na condução das massas
na direção da emancipação e na abolição da escravatura imposta
pelo capital ao trabalho. A questão que se põe então é a da um padrão cultural pelo menos razoável.
formação humana, da autoeducação pelo trabalho, pela Das virtudes da experiência russa, realçadas pela comparação
con guração do trabalho associado, o qual exige a apropriação dos com a forma claramente classista da escola na Itália foi que Gramsci
meios de produção e do conhecimento pela massa de homens re etiu sobre a questão dos intelectuais, grupo social
trabalhadores. particularmente envolvido com a questão da reprodução social, e
No capitalismo a reprodução social ocorre na família, na igreja, sobre a questão da escola. Gramsci estava muito ciente de que o
no trabalho, na escola, que continuam vigendo mesmo com o sucesso da transição socialista dependia, em grande medida, de um
grande desenvolvimento das tecnologias de informação e contínuo progresso intelectual de massas e de estreita vinculação
comunicação. A emancipação humana demanda a abolição da igreja entre trabalho e cultura. A autoatividade das massas, a sua
e a transformação radical da família e da escola. No entanto, é a autoeducação por meio da práxis, era o caminho para emancipação
transformação do processo de trabalho que gera o fundamento de humana.
uma nova sociabilidade. Esses problemas cruciais da teoria e da prática socialistas são
Essa perspectiva tornou-se patrimônio da teoria socialista desde tratados nesse livro de Joeline Rodrigues de Sousa de maneira
cedo e alimentou esperanças e experiências das mais importantes sóbria e sem que assuste o leitor. Um elemento do texto para o qual
nessa luta histórica de proporções épicas. O primeiro decênio da deve ser chamada a atenção é que a autora se inspira na
revolução russa e do movimento comunista foi riquíssimo na formulação de Lukács para interpretar Gramsci, de fato dois dos
apresentação de formas de luta, de expressões culturais, de novas grandes autores da tradição fundada por Marx e que zeram a
formas de viver. A Rússia soviética muito se destacou nas mudanças escolha pela luta pela emancipação humana.
relativas à situação do trabalho e da escola, da situação feminina
Marcos Del Roio
em particular.
Unesp/Marília
Por conta de uma miséria acumulada nos séculos, mas agravada
pela guerra civil e pela agressão imperialista, a Rús sia foi obrigada
a ser muito inventiva na urgência imposta pelas circunstancias. O
vínculo estreito entre trabalho e cultura surgiu pela exigência de se
elevar o baixíssimo nível cultural das massas e o baixo nível de
quali cação para o trabalho. Em um de seus últimos escritos Lenin
sugeria que o socialismo possível naquelas condições históricas
apontava para a existência conjunta do trabalho cooperativo e de
conhecimento super cial e descartável. O livro Gramsci: Educação,
Escola e Formação – caminhos para a Emancipação humana, fruto
APRESENTAÇÃO da pesquisa de mestrado de Joeline Rodrigues de Sousa, resgata a
força e a originalidade do pensamento de Gramsci e expõe, de
maneira clara e contundente, sua proposta de formação humana,
cujo acento recai sobre o desenvolvimento integral do indivíduo,
tomando por base a relação concreta com seu gênero.
A crise que tem potencializado o inerente conteúdo destrutivo Nas palavras da própria autora, o que ca exposto é a “oposição
do capital nos últimos anos atinge o complexo educacional de radical entre a proposta gramsciana de formação humana e as
diferentes maneiras, condensadas na reedição de velhas pedagogias liberais”.
estratégias, a exemplo do reformismo teórico e metodológico, que No percurso por ela realizado, o ponto de partida é o
assumiu contornos frenéticos desde a década de 1990, sob a fundamento onto-histórico sobre o qual se ergue o edifício
regência de organismos multilaterais a serviço do ideário categorial do pensador italiano: o trabalho como fundamento do
reprodutivo burguês. ser social. Por certo, não se trata do resgate deste elemento na obra
Neste escopo, promover a associação pací ca e acrítica entre de Gramsci; o pretendido aqui é a a rmação, ainda que em percurso
perspectivas teórico-pedagógicas, essencialmente distintas, em de desvelamento, de sua vinculação às formulações marxianas
especial no que se refere à função da escola e sua relação com a ontológicas. Apenas este movimento seria su ciente para certi car
formação do indivíduo/gênero humano, passa a ser um dos grandes a importância do presente livro, porém, ao situar Gramsci no
trunfos da estratégia vácua do capital no campo educacional. patamar de um pensador revolucionário, assentado na ruptura da
Objetivar apreender e socializar os fundamentos de tais ordem burguesa e na proposição de uma sociedade sustentada na
perspectivas, apontar suas especi cidades, aportar nas suas “igualdade substantiva”, como diria Mészáros, e, ao percorrer as
distinções e, num esforço maior ainda, a rmar o legítimo legado de premissas da chamada Escola Unitária de Gramsci, dissecando sua
seus principais representantes, tem sido, diante do movimento de impossibilidade conciliatória aos modismos pedagógicos que
negação do saber engendrado pela falsi cadora “sociedade do caracterizam a proposta formativa liberal-burguesa desde o século
conhecimento”, uma monumental tarefa àqueles que pretendem passado até hoje, o livro traz uma contribuição ímpar ao campo
fazer frente à ordem social vigente. educacional, tanto no que tange ao resgate radical do arcabouço
Este, entre tantos outros, talvez seja o principal mérito desta pedagógico gramsciano, quanto à luta daqueles que, nos limites da
obra: postar-se na contra mão da proposta de produção de um atividade educativa, se postam diante do desa o de contribuir com
a “fundação de uma nova sociedade”, conceituada pelo italiano
com “sociedade regulada”.
O objeto de estudo apresentado neste livro, impossível de ser Sumário
esgotado numa pesquisa de mestrado, rendeu à autora frutos
investigativos sobre os quais a mesma vem se debruçando em sua
formação doutoral, realizada no Programa de Pós-Graduação em
Educação Brasileira, da Universidade Federal do Ceará, na Linha de
Pesquisa Marxismo, Educação e Luta de Classes – ELuta. Introdução
Por certo, esta empreitada realizada pela autora, materializada
Capítulo 1 - Fundamentos da educação e formação humana
neste livro, se posta à frente de um relevante projeto de debate e
resgate do pensamento de um dos autores mais fecundos e Trabalho, educação e reprodução social
originais que o século XX presenciou e que, até os dias de hoje,
apesar de todas as deturpações operadas sobre sua obra, continua Trabalho, educação e reprodução do capital
a ser uma gura de referência quando o propósito é a vivência de
Capítulo 2 - O processo de formação do pensamento político-
uma práxis verdadeiramente revolucionária.
revolucionário de gramsci
Fortaleza, julho de 2014.
Vida, obra e militância
Valdemarin Coelho Gomes
Coordenador da Linha Eluta/PPGEB/UFC Infância e juventude

Da Revolução Russa ao Cárcere

Do Pamphletaire ao Fur ewig

Elementos do pensamento de Gramsci na arena da luta de classes

Capítulo 3 - Escola unitária e formação no caminho da


emancipação humana

Escola e sociedade: um breve histórico


Formação unilateral versus formação omnilateral

As propostas pedagógicas do início do século XX


INTRODUÇÃO
Os fundamentos da escola unitária e da nova concepção de
formação

Conclusão

Referências
Este livro surge da análise, a partir do momento de implantação1
do sistema de tempo integral nas escolas públicas de Ensino
Fundamental cearense, segundo as diretrizes nacionais, sob o
discurso da busca pela formação integral e emancipadora através
de atividades socioeducativas no contraturno escolar. Essa
proposta visa se espraiar por todo o Brasil como diretriz
determinante na organização didático-pedagógica das nossas
empobrecidas escolas públicas.
Acompanhando a implementação desse sistema, percebemos,
com a devida nitidez, a necessidade que o capital possui de
estruturar a educação conforme seus próprios interesses. Nesse
sentido, veri camos a aguda negação do conhecimento, bem como
o desmantelamento das próprias condições físicas da escola que
impossibilitam o desenvolvimento do processo de ensino-
aprendizagem, inclusive nos moldes como estão postos no referido
projeto.
Re etindo sobre essa realidade, emerge a inquietação sobre
qual o tipo de formação se quer ofertar com o projeto de educação
em tempo integral para as escolas públicas brasileiras e qual a
função social desse projeto. Este surge, segundo pressupomos, de
acordo com a lógica que o preside, sob o discurso de oferecer estava intrinsecamente relacionada ao fortalecimento dos ideais
acesso democrático a conhecimentos e atividades antes nunca liberais e democrático-burgueses, embalados pelo neoidealismo2,
usufruídas pela classe menos favorecida. que, naquele período, começaram a se consolidar.
A discussão em torno de uma proposta de educação integral Gramsci, no início do século XX, ciente da discussão da escola
destinada aos lhos da classe trabalhadora não se constitui em uma como dever do Estado, acompanhava o debate, imprimindo em seus
novidade histórica. Temos, como exemplo maior, no campo do escritos e prática militante, na contramão desse ideário liberal, a
marxismo, o registro dos termos revolucionários presentes no defesa de uma “escola comum, única e desinteressada”, destinada à
Manifesto do Partido Comunista, largamente conhecido, e que, classe trabalhadora e a nada com os princípios da revolução
apesar de escrito para um m e um público especí co, isto é, a socialista, circunscrita em sua proposta de escola unitária.
revolução considerada iminente e os trabalhadores, trata-se de um Nessa direção, Gramsci desvelava e fazia a crítica ao paradoxo
texto que se caracteriza como uma síntese teórico-política de seus entre a formação clássica (cientí ca e humanista) e a formação
autores. Nessa obra, Marx e Engels defendiam uma educação pro ssional (técnica), ao a rmar que “[...] a escola pro ssional
pública e gratuita para todas as crianças e os jovens, fundada nos destinava-se às classes instrumentais enquanto a clássica
seguintes princípios: eliminação do trabalho das crianças nas destinava-se às classes dominantes e aos intelectuais” (GRAMSCI,
fábricas; associação entre educação e produção material – ideia 2010, p. 33).
corroborada por Gramsci; educação politécnica, que proporciona a Nesse sentido, inicialmente, nos propomos a investigar “a
formação omnilateral; inseparabilidade entre educação e política; pretensa formação omnilateral na proposta de educação integral
articulação entre o tempo livre e o tempo de trabalho, ou seja, uma nas escolas públicas brasileiras”. Para tanto, buscaríamos em
educação pautada na articulação entre o teórico e o prático como Gramsci, em sua proposição de escola unitária, o referencial teórico
princípio educativo. Como bem a rma Jimenez (2001), nessa necessário para fazermos as críticas a esse objeto. Contudo, dado o
proposta de educação, seus autores defendiam a formação da vasto legado teórico gramsciano que exige uma profunda
cabeça e da mão humana, que previa a formação plena, omnilateral, apropriação de seu pensamento, optamos em mergulharmos no
do ser humano. arcabouço teórico do autor sardo e buscarmos, à luz da ontologia
No nal do século XIX, no campo do pensamento liberal- marxiano-lukasciana, examinar a gênese, o desenvolvimento e a
burguês; constata-se a intensi cação das discussões na Europa a função social de sua proposição de Formação Omnilateral e Escola
respeito da obrigação do Estado supostamente democrático em Unitária.
prover uma educação pública e a generalização do ensino básico. A Dessa feita, no primeiro capítulo, nosso esforço se propõe a
consolidação da ideia de dever do Estado para com a educação contextualizar as contribuições de Marx e Engels sobre a relação
trabalho-educação e formação humana, mormente em suas obras práxis, buscamos, a partir desses estudos, no terceiro capítulo, após
que fazem referência à proposta de formação omnilateral. Em situarmos losó ca e historicamente a escola e as pedagogias
seguida, aproximamo-nos das formulações de Lukács acerca da modernas – mormente a escola nova – que in uenciaram as
ontologia do ser social, re etindo sobre a educação como complexo políticas educacionais do início do século XX – com destaque para a
social e sua função ontológica. Nessa perspectiva, buscaremos Reforma Gentile e a Escola Soviética, desvelar a sua proposição de
compor um quadro sintético das elaborações de Marx e Engels formação omnilateral e da Escola unitária inscrita no conjunto de
sobre a relação entre educação e formação omnilateral. Nessa sua obra.
esteira, expomos um estudo-síntese sobre a relação entre o No embate teórico produzido, buscamos recuperar, em grandes
Trabalho, a Educação e a Reprodução Social e o Trabalho, a linhas, os elementos centrais de aproximação entre o projeto
Educação e a Reprodução do Capital, na tentativa de gramsciano para a educação da classe trabalhadora e as
compreendermos o trabalho e os complexos por ele fundados, formulações de Marx e Engels acerca do desenvolvimento das
dentre os quais destacaremos a educação. potencialidades humanas, tendo em vista o processo de superação
No segundo capítulo, assumimos como pressuposto a do capital e a instauração da sociedade socialista, sendo então
demarcação da base marxista nas produções de Gramsci, imperativa a rigorosa investigação sobre a formação omnilateral
perscrutando o marco teórico gramsciano para rastrearmos e nas obras de Gramsci, referenciando-nos essencialmente em Marx e
conceituarmos os elementos fundamentais de seu pensamento Engels e, ainda, em autores como Manacorda (2008), Coutinho
revolucionário, substanciado em sua teoria da escola unitária, (1999), Del Roio (2005), Nosella3 (2010a), entre outros, para
comum, única e desinteressada, na busca de formar os intelectuais demonstrar a formulação do pensamento político-revolucionário de
orgânicos capazes de alicerçar as bases da revolução. Sabemos que, Gramsci que desembocou na proposta de Escola Unitária. Esses
para esse objetivo, é imprescindível termos uma visão panorâmica autores marxistas nos auxiliaram no desvelamento desse objeto,
do legado gramsciano, a partir da compreensão das categorias por que, em nosso entendimento, até aqui constituído, é proposto por
ele formuladas. Dessa forma, nesse percurso buscamos conceituar, Gramsci para um novo tipo de sociabilidade humana, a saber, a
no terreno da luta de classes, os elementos fundamentais do sociedade comunista.
pensamento gramsciano, dentre os quais destacamos duas Partindo dessas considerações, buscamos desvelar, à luz da
categorias que consideramos fundamentais para nosso ontologia marxiano-lukasciana, o projeto marxiano/gramsciano de
entendimento: Hegemonia e Filoso a da Práxis. Assim, formação omnilateral, mais especi camente, a proposição de
apreendemos, dentro das possibilidades teóricas e do tempo Escola Unitária idealizada por Antonio Gramsci, buscando, ademais,
histórico, a totalidade de seu pensamento embasado na loso a da apresentar os pressupostos e os elementos que indicam sua função
social no terreno da luta de classes. Em outras palavras, buscamos problemas teóricos e práticos, ao revogar o trabalho como categoria
dar especial atenção para o projeto de formação/educação fundante do ser social, por ser a mediação teleologicamente
omnilateral proposta por Gramsci no contexto histórico permeado orientada junto à natureza para produzir os meios de subsistência
de militância revolucionária, rastreando, em sua produção, a liação e, a partir desse complexo primário, fundarem os outros complexos
às categorias marxianas-engelsianas que tocam diretamente no sociais, entre eles, a educação.
conceito de formação omnilateral. Assim, este livro assume como referencial teórico-metodológico
Portanto, inicialmente, é necessário desquali car leituras de a perspectiva do marxismo, em sua dimensão ontológica, por
sabor aleatório, despolitizadas e fragmentadas das obras entendermos que sua orientação nos permite uma melhor
gramscianas, constantemente presentes nos estudos educacionais apreensão do objeto a ser investigado, uma vez que, conforme
atuais, que con guram uma inserção ideológica no intuito de explica Lessa (2007), somente no terreno da ontologia marxista
adequar os princípios teóricos revolucionários de Gramsci ao podemos demonstrar que não existe uma essência humana dada e
trabalho explorado, tal qual nos moldes capitalistas. Em suma, imutável e que o horizonte de possibilidades é determinado
essas deturpações objetivam extrair do legado gramsciano os somente pela reprodução social.
fundamentos revolucionários que permeiam a sua direção. Dessa forma, o presente livro visa contribuir para o
Nesse sentido, com razão assevera Lukács (1978, p. 19): “Penso, desvelamento ideológico desses limites, norteando o trabalho de
entretanto, que não se deve buscar nele um elenco de respostas construção de novos rumos, através da exposição sintética do
prontas para os problemas do presente. Para ser corretamente projeto de emancipação do homem delineados nos fundamentos
avaliado, Gramsci precisa ser situado historicamente, precisa ser da proposição de formação humana esboçada por Marx e
compreendido no seu meio, na sua situação”. pro cuamente tratada por Gramsci.
Na esteira de Lukács, apropriando-nos dos seus ensinamentos
acerca da ontologia do ser social e contrapondo-os ao debate
educacional atual, aferimos alguns entraves desconcertantes que
1
A partir do segundo semestre de 2009.
podem gerar as elucidações de Gramsci em defesa do trabalho
2
Termo encontrado em diversos textos, tal como no próprio Gramsci, utilizado como
como princípio educativo em clara contraposição à formação sinônimo de neohegelianismo. Ver Losurdo (2006), Dore (2006), Gramsci (2010; 2004). É
dentro dos interesses do capital, elucidações essas que, se tomadas representado na Itália por Croce e Gentile.
3
equivocadamente, podem redundar na transferência para o Apoiamo-nos especi camente em sua obra A escola de Gramsci que traz uma síntese
didática da biogra a de Gramsci. Contudo, vale destacar o abandono, por parte deste
complexo educacional o papel de transformação da realidade, autor, da perspectiva ontológica e do caráter genuinamente revolucionário de Gramsci.
restringindo-se à atividade do educador, causando, assim, sérios
socioeconômicas, na perspectiva de superação das relações
estranhadas.
Assim, para compreendermos o lugar do complexo educacional
CAPÍTULO 1 na perspectiva de Marx, que traz a possibilidade de superação do
capitalismo, faz-se necessário analisarmos sua compreensão acerca
da sociedade e suas relações e os pressupostos que in uenciaram
na formação do seu pensamento. Para tanto, destacaremos alguns
pontos do arcabouço teórico hegeliano que consideramos
FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO importante por ter servido de base para as elaborações de Marx, do
qual se serviu no movimento de conservação e superação, além de,
HUMANA
posteriormente, ter favorecido os passos de Gramsci rumo ao
marxismo.
O método dialético-especulativo elaborado por Hegel, no qual
Sabemos que Marx não se ocupou diretamente de formulações
considera o real como resultado das ideias, do pensamento, e
sobre a educação, pois foram as relações socioeconômicas e
estabelece uma relação entre Estado, família e sociedade, na qual o
políticas e seu processo histórico de desenvolvimento que
Estado é o sujeito determinante por representar a ideia perfeita e
ocuparam o lugar central de sua obra, por isso não se debruçou na
absoluta, serviu de base para as elaborações de Marx, que inverteu
elaboração de uma teoria da educação e muito menos no
essa lógica ao considerar não ser possível através dela o homem
desenvolvimento de uma metodologia para o processo de
fazer uma elaboração crítica dos fenômenos sociais, por tal lógica
transmissão do conhecimento. Contudo, não deixou de contemplá-
não considerar a realidade concreta, o homem, a natureza, a própria
la ao compreender sua importância na reprodução do homem
história e toda a produção, como a história real na qual o homem é
enquanto ser social, o que signi ca que suas referências não são
o sujeito. Tal ideia hegeliana seria, pois, o princípio de tudo, a
opiniões circunstanciais e, por essa razão, são extremamente
universalização da vontade geral pela subordinação da sociedade e
relevantes do ponto de vista teórico. Apesar de muitas vezes tratar-
sua vontade particular ao Estado, instância que representaria a
se de apontamentos no calor dos acontecimentos, não é à toa que,
vontade universal de modo ético, não apenas como uma forma de
no geral, as a rmações de Marx e Engels não perdem o foco da
governo, mas principalmente como manifestação do espírito
generalidade, tanto de seu pensamento quanto da circunstância
coletivo, e a família e a sociedade seriam a extensão deste das
histórica. Dessa forma, a educação encontra-se engendrada em sua
quais ui a vontade que se objetiva no Estado como totalidade da
obra, concebida como ponto de articulação das relações
vida social, a qual deve seguir o ideal comunitário grego em que o que Hegel estava convencido de poder dar uma resposta absoluta
público se sobressai ao particular. às demandas oriundas das relações sociais, ao abstrair de suas
Hegel, em sua obra A Fenomenologia do Espírito, desenvolve a elaborações qualquer determinação humano-social, ou seja, a
dialética do servo e do senhor, a rmando que a consciência se realidade.
forma pelo trabalho e que, para se efetivar a consciência da Retomando a crítica de Marx (2007, p. 44), ao a rmar que “a
liberdade, faz-se mister o reconhecimento do outro que não pode loso a hegeliana da história é, em última consequência, levada à
ocorrer em um processo de dominação. Conforme Hegel, “A sua ‘mais pura expressão’, de toda historiogra a alemã, para a qual
consciência-de-si é em si e para si quando e porque é em si e para não se trata de interesses reais, nem mesmo políticos, mas apenas
si para uma outra; quer dizer, só é como algo reconhecido” (1992, p. de pensamentos puros [...]”, compreendia que Hegel queria criar o
126). mundo real partindo de categorias abstratas, de um conceito
Contudo, Hegel acredita que a ética resolveria o problema do universal, como verdadeira essência das coisas, como processo
reconhecimento. Por isso, desconsidera a luta de dominação e lógico, que se confunde com o processo real. Assim, Hegel reduz a
liberdade travada entre senhor e servo, na qual o senhor nega o alienação apenas à autoconsciência, limitando sua superação à
servo, e crê que o senhor cederá ao servo para que possa também esfera do próprio pensamento. Por isso sua loso a é idealista.
para usufruir dos benefícios do trabalho. Porém, como o senhor não Para Marx, são as ideias que pertencem a uma época, ou seja,
participa da atividade do trabalho, não aprende a servir, não cresce são as formações ideológicas, que se apresentam como
através da experiência do trabalho, reconhece apenas a si mesmo; manifestações, expressões de dado momento histórico a partir das
já o servo percebe no trabalho seu aspecto negativo, pois se condições materiais existentes, da práxis material, e que assim
percebe como servo e consegue reconhecer-se em si e para si. determinam as consciências. Portanto, rejeita o atomismo social, no
Hegel, com suas formulações de reconhecimento, limita-se ao qual o indivíduo singular é considerado à parte da sociedade e da
idealismo e não considera os con itos da sociedade, na qual o comunidade, pois considera o indivíduo como um produto da
proprietário não se reconhece no não-proprietário e vice-versa, e o história, articulado a um todo orgânico, dinâmico, e não como um
não-proprietário não tem condições mínimas para ser ou tornar-se dado da natureza, visto que o processo de humanização só pode
plenamente humano. ocorrer em sociedade.
Não é aqui o lugar para aprofundarmos as categorias hegelianas, Marx a rma que o processo histórico não é resultado da vontade
sobretudo sua ética. Bastam, por isso, essas poucas alusões que divina ou de poucos homens, mas impulsionado pelas condições
ilustram, grosso modo, o cerne da posição hegeliana. Destacamos materiais de existência (as forças produtivas, as relações de
apenas, e isso também demonstra o caráter ideológico dessa ética, produção, o modo de produção, etc.). Dessa forma, é necessário que
primeiramente analisemos a base das relações sociais, pois a parte de existência.
material se sobrepõe à parte imaterial (as ideias). Em suas palavras, Entre os homens, o que ocorre é a objetivação da prévia-
“o ideal não é nada mais que o material, transposto para a cabeça ideação, ou seja, o homem pensa nas possibilidades de executar
do ser humano” (MARX, 1989, p. 18), por isso a consciência é o determinada atividade e escolhe a que melhor convém. A partir da
re exo do mundo objetivo, no qual estão inseridas as relações de escolha, inicia-se o processo de execução, ou seja, a objetivação,
produção, o trabalho, que explicita a dinâmica da sociedade. como, por exemplo, no caso da produção de um machado4. Para
Marx desenvolve uma nova ontologia a partir da materialidade e isso, utiliza materiais retirados da natureza como a pedra e a
dialética da realidade, com sua visão historicista, demarcando o madeira e dá-lhe forma, tornando-o um objeto útil e necessário.
método histórico-dialético que se dá através da investigação como Dessa forma, o homem adquire novos conhecimentos e habilidades
tentativa de apoderar-se do objeto de forma concreta, como uma de como fazer e utilizar esta objetivação e esse conhecimento se
nova loso a, pois como Marx a rma na obra A Ideologia Alemã, a torna social, de todos, podendo ser desenvolvido e generalizado,
ciência é a história da natureza e do mundo dos homens, buscando tornando-se patrimônio da humanidade.
analisar as formas de desenvolvimento e as contradições através de Sendo assim, o homem, ao transformar a natureza, também se
um prisma ontológico, de compreensão do ser inserido na transforma, pois permite novas situações históricas, novas prévias-
totalidade social, e posteriormente uma exposição ao reconstruir o ideações, em um processo de acumulação contínuo, constante, pois
objeto criticamente partindo das categorias mais simples às mais “a satisfação dessa primeira necessidade [de produção dos meios
complexas e superiores. de sobrevivência], a ação de satisfazê-la e os instrumentos de
Dessa forma, para Marx, o trabalho é a categoria fundante do ser satisfação já adquiridos conduzem a novas necessidades – e essa
social, pois é através do trabalho, ou seja, da interação do homem produção de novas necessidades constitui o primeiro ato histórico”
com a natureza que este se diferencia dos outros animais, pois “por (MARX, 2007, p. 33) que o faz desenvolver-se distintamente da
meio da transformação da natureza, produz a base material da natureza.
sociedade” (LESSA; TONET, 2008, p. 27), e através dessa atividade o Inicialmente, o trabalho satisfazia às necessidades básicas vitais
homem pôde se tornar o senhor do seu destino e se distanciar das e espirituais do ser humano, mas a partir da divisão em grupos ou
amarras impostas pelas leis naturais. Os outros animais se classes sociais e sua organização social embasada na lógica da
organizam de acordo com sua determinação genética, seus exploração do homem pelo homem o trabalho passa de meio de
instintos que regem suas atividades, sendo assim, limitadas, pois subsistência para o aprisionamento do homem pela apropriação
sempre agirão da mesma forma para executar suas atividades, e os privada dos meios de produção. Com o escravismo, feudalismo e,
homens, em oposição aos animais, produzem seus próprios meios sobretudo, no modo de produção capitalista, o grupo subalterno,
2007, p. 87 – grifo nosso).
vendo-se apenas com sua força de trabalho. Assim, as diferentes
formas do conjunto social passaram a apresentar-se ao indivíduo Através da atividade produtiva, diante das necessidades postas,
como um simples meio de realizar os seus objetivos particulares, o homem buscou seus meios de subsistência na natureza e,
como uma necessidade exterior, e o indivíduo, a isolar-se, pois o diferentemente dos outros animais, acionou os elementos nela
que o ser humano é coincide com o que e como ele produz. Como contidos para cumprir determinados ns. Transformando a
a rmam Marx e Engels (2007, p. 87), “o que os indivíduos são, natureza, em permanente intercâmbio, ele transformou a si próprio,
portanto, depende das condições materiais de sua produção”. e dessa forma, pôde ampliar-se genericamente, estabelecendo
Destarte, o indivíduo não pode ser o que é ou reconhecer o outro novas relações sociais e históricas, e, ainda, pôde criar novas
desconsiderando seu lugar e o lugar do outro na sociedade de habilidades e necessidades, cujo trabalho não poderia satisfazer,
classes, ao contrário do que preconizava Hegel. daí a criação de outras práxis sociais (como a linguagem, a
Nessa perspectiva, para compreendermos o processo educativo, educação, a arte etc.). Apenas reiterando, dizer que o trabalho é a
é necessário compreendermos o processo pelo qual os homens forma originária do agir do homem não signi ca que “todos os atos
produzem sua própria existência, ou seja, o processo de produção, o humanos sejam redutíveis ao trabalho” (LESSA, 1996, p. 23-24).
trabalho e a amplitude de suas relações, como a divisão do Conforme Lukács (2010), o trabalho tem um papel
trabalho, os seus interesses, bem como o desenvolvimento das extremamente importante e originário na formação do mundo dos
forças produtivas. O modo de produção é, portanto, a categoria que homens, e todos os outros complexos sociais são desdobramentos
expressa a própria materialidade ontológica da história dos dessa atividade humana. Muito embora não seja possível reduzir
homens. todos os atos humanos a atos de trabalho, para Lukács5, no trabalho
Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião estão todas as determinações que constituem a essência de tudo
ou pelo que se queira. Mas eles mesmos começam a se distinguir dos
que é novo no ser social. Desse modo, o trabalho pode ser
animais tão logo começam a produzir (trabalho) seus meios de vida,
passo que é condicionado por sua organização corporal. Ao produzir considerado o fenômeno originário, o modelo do ser social. Assim,
seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria
vida material. O modo pelo qual os homens produzem seus meios de o trabalho possui papel determinante na análise do complexo da
vida depende, antes de tudo, da própria constituição dos meios de vida educação.
já encontrados e que ele têm de reproduzir. Esse modo de produção não
deve ser considerado meramente sob o aspecto de ser a reprodução da A produção do novo, ou seja, o trabalho, de acordo com Lukács
existência física dos indivíduos. Ele é, muito mais, uma forma (2010), foi o momento predominante do salto ontológico que
determinada de sua atividade, uma forma determinada de exteriorizar
sua vida, um determinado modo de vida desses indivíduos. Tal como os originou o ser social, isto é, a terceira esfera orgânica emergiu da
indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles. O que eles são
coincide, pois com sua produção, tanto com o que produzem como
segunda esfera, a orgânica6, e esta , por sua vez, mantém uma
também com o modo como produzem. O que os indivíduos são, conexão com a esfera inorgânica, sem a qual não existiria. A esfera
portanto, depende das condições materiais de sua produção. (MARX,
orgânica resulta de outro salto ontológico, do tornar-se outro sensível imediato, real, prático e natural.
mineral, oriundo da primeira esfera ontológica, a inorgânica. Desse Tonet e Lessa (2008) a rmam que esse momento que antecede a
modo, a origem do processo de reprodução do mesmo, salto ação humana é chamado por Lukács de prévia-ideação e o objeto,
ontológico entre a esfera inorgânica para a orgânica, foi primordial que é a ideia materializada, é denominado objetivação, porém o
para o surgimento do ser social. Nas palavras de Lessa (1996, p. 17), objeto é distinto da ideia. Para Lessa (1996), o produto do trabalho
“apesar de distintas, as três esferas ontológicas estão humano pode sofrer alterações dos processos naturais e sociais,
indissoluvelmente articuladas: sem a esfera inorgânica não há vida, por estar inserido em uma totalidade, e a ação humana produz
e sem a vida não há ser social.” resultados e consequências não previstos pelo sujeito da ação.
Ao contrário dos homens, os outros animais (esfera orgânica), Assim, o produto não pode ser controlado pelo seu criador devido a
que só podem reproduzir a si mesmos e repor o mesmo, exercem causas próprias na totalidade social em que o sujeito e o objeto
sua atividade para atender à exigência imediata para se reproduzir estão inseridos (causalidade). Assim, a essência do trabalho está na
enquanto seres biológicos, sendo essa atividade determinada relação dialética entre a subjetividade, pela capacidade de projetar
somente pelo instinto e pela experiência limitada que podem ter. de forma ideal e prévia a nalidade da ação (teleologia), e a
Assim, Engels (1876, p. 6) reitera que “só o que podem fazer os objetividade, os nexos causais do mundo objetivo (causalidade).
animais é utilizar a natureza e modi cá-la pelo mero fato de sua Segundo Lukács (1978), essa capacidade humana de aplicar
presença nela. O homem, ao contrário, modi ca a natureza e a nalidades a uma ação antes de efetivá-la não se restringe a
obriga a servir-lhe, domina-a. E aí está, em última análise, a elaborações de uma fração da natureza, isto é, a posições
diferença essencial entre o homem e os demais animais, diferença teleológicas primárias, pois a partir delas foi possível criar novas
que, mais uma vez, resulta do trabalho”. posições teleológicas, denominadas de secundárias porque têm
O homem é diferente, porque antes de realizar seu trabalho ele como objeto o próprio sujeito, o homem. Eé nesse campo aberto ao
tem a capacidade de projetá-lo na consciência e analisar os pôr consciente do homem sobre si mesmo e sobre os outros, são
caminhos possíveis para alcançar o seu objetivo. Embora, de início, nas posições teleológicas secundárias que se enraíza a origem
como a rmam Marx e Engels (2007, p. 35), sua consciência seja ontológica dos outros complexos sociais como a educação, que é
meramente gregária pelo fato de o homem ser ainda tão animal um complexo universal. Portanto, a educação constitui-se no
que “se diferencia do carneiro, aqui, somente pelo fato de que, no complexo, por excelência, em que se efetiva o pertencimento do
homem sua consciência toma o lugar do instinto ou de que seu indivíduo ao gênero humano e, por isso, traz intrinsecamente o
instinto é um instinto consciente”, isto é, sua consciência não é sentido lato ou genérico, e o sentido stricto ou especí co,
ainda consciência “pura”, abstrata, mas consciência do meio atendendo aos interesses dominantes vigentes na sociedade em
cada momento histórico. com o trabalho uma dependência ontológica e uma autonomia
Dessa forma, a função criadora do sujeito se manifesta, e por relativa. Ademais, há uma determinação recíproca entre o trabalho
intermédio do trabalho, aguça seus sentidos, em um movimento e seus complexos que estão debaixo da totalidade, o fundante
dialético entre o sujeito e o objeto produzido, desenvolvendo a determina o fundado que, em certa medida determina o fundante, e
sensibilidade da subjetividade humana, não somente dos cinco implicam diretamente na formação omnilateral, dada a
sentidos, como também dos sentidos espirituais, humanos. Acerca complexidade do ser social.
dessa questão Marx (2010a, p.15) se manifesta da seguinte forma: Portanto, o complexo educacional deve ter compromisso social
A educação dos cinco sentidos é trabalho de toda a história universal até com o seu tempo, expressando seu caráter universal de
nossos dias. O sentido subordinado a exigências práticas animais é um compreensão da realidade, contribuindo para a generalização do
sentimento limitado. Para o homem faminto, não existe a forma humana
do alimento e sim apenas a sua existência abstrata como alimento: o conhecimento, visto que a autêntica atividade educativa não visa
alimento pode se apresentar indiferentemente em qualquer forma, uma nalidade prática imediata, mas atingir o plano da
ainda que seja a mais grosseira, e não se conseguirá dizer em que ponto
a sua atividade nutritiva se diferenciará do animal. O homem angustiado universalidade, sua função original gura um momento de
por uma necessidade não tem senso algum, mesmo para o espetáculo
mais belo: o mercador de pedras preciosas só vê o valor comercial delas,
consciência de si em determinado momento histórico. Em outras
não vê a beleza e a natureza peculiar de cada pedra; ele não possui palavras, eleva o homem para além de sua cotidianidade e
qualquer senso estético para o mineral em si. Portanto, a objetivação da
essência humana, quer do ponto de vista teórico, quer do ponto de vista imediatismo para um plano superior universal e à chegada à
prático, é necessária tanto para tornar humanos os sentidos do homem consciência, visando à transformação de si mesmo e da sociedade.
como para criar um sentido humano adequado à inteira riqueza da
essência humana e natural. Contudo, na vigência da sociedade capitalista, que representa o
grau econômico mais elevado no quadro do processo histórico das
Dessa forma, o trabalho vai além de si próprio, pois, com o
sociedades de classes, não ocorre a socialização plena do
incremento das necessidades, da produtividade e da população,
patrimônio cultural produzido pela humanidade. O que ocorre de
surgem novos complexos sociais que vão desenvolver e aperfeiçoar
fato é a fragmentação dos sujeitos e a utilização dos complexos
a consciência humana, a qual “sofre, desde o início, a maldição de
fundados no trabalho a serviço da classe dominante, entre eles, a
estar contaminada pela matéria, que, aqui, se manifesta sob a forma
educação, através da fetichização inevitável, pela inversão das
de linguagem [que] é a consciência real, prática [e] nasce, tal como
categorias fundamentais do ser humano.
a consciência, do carecimento, da necessidade de intercâmbio com
Para Marx, o trabalho é a condição necessária para que o homem
outros homens” (MARX; ENGELS, 2007, p. 3435). Além da
seja cada vez mais livre, ele precisa através do trabalho útil-
linguagem, os outros complexos, como a educação, que, embora
concreto satisfazer as suas necessidades, e esse trabalho concreto
não sejam trabalho, são necessários para a reprodução social,
que produz a intermediação eterna entre o homem e a natureza,
transmissão do conhecimento, conservação e superação, mantendo
cria valores de uso para o seu produto, atende às necessidades de histórico-social predominante e movimenta seu signi cado
sua existência. Para possibilitar o trabalho para a liberdade plena e conforme o próprio movimento histórico-cultural, como ocorreu
a realização do homem enquanto ser genérico, é preciso, pois, que com o termo práxis, utilizado na Grécia para de nir o que
o trabalho esteja fundado para além da consciência de uma prévia- denominavam de prática, daí o princípio de tais termos, práxis e
ideação, o que Lukács chamaria de momento teleológico, em uma prática, serem comumente empregados como sinônimos.
consciência direcionada pela intenção do próprio homem, como Para nos auxiliar nesse processo, apoiamo-nos em Vázquez,
manifestação de sua subjetividade para a objetivação do que se sobretudo em sua obra Filoso a da Práxis, na qual busca fazer o
dispõe a produzir. percurso histórico- losó co dessa categoria. Destarte, devemos
Todavia, para compreendermos os apontamentos de Marx sobre observar o campo semântico no qual o termo práxis era empregado
a educação enquanto instrumento de reprodução social e formação no grego antigo, uma sociedade que se organizava de acordo com a
humana, é necessário resgatamos as categorias que fundamentam divisão do trabalho e considerava indigno o trabalho manual, ou
sua gênese em seu contexto histórico, político e cultural. melhor, o próprio trabalho, e exaltava a contemplação, a atividade
intelectual e a formação teórica do cidadão para atuar
politicamente na pólis, pois se assentava no regime escravista.
Trabalho, educação e reprodução social Desse modo, a separação entre teoria e prática fundamentava
todas as relações sociais gregas, já que não se considera a relação
Buscando demarcar a análise da educação como reprodução
entre homem e natureza, o trabalho, como fundante do ser social,
social, resgatamos, de forma breve, as categorias ontologia e
por não se conceber o vínculo entre a atividade produtiva e a
loso a da práxis, em sua gênese e em seus aspectos histórico-
transformação ou formação humana, mas a atividade política como
culturais, as quais se engendram organicamente do ponto de vista
“ação que tem seu m em si mesma” (VÁSQUEZ, 2007, p.28). Pois,
da omnilateralidade. Compreendemos que essas categorias nos
para os gregos toda a atividade manual produtiva, apartando
auxiliaram no processo de desvelamento da categoria formação, de
de nitivamente a teoria da prática, concentrando
modo geral, e, especi camente, da formação omnilateral em
“democraticamente” a atividade teórico-política entre os homens
Gramsci, por aferirmos que, para compreender a omnilateralidade,
ditos livres e o trabalho manual e servil para os escravos.
é necessário compreendermos antes a relação teoria e prática ao
Segundo Vásquez (2007), essa concepção encontra em Platão e
longo da história humana, o signi cado de práxis e sua importância
Aristóteles grandes defensores. O primeiro lósofo, com a sua visão
na concepção de formação humana.
metafísica de contemplação das ideias perfeitas e eternas que só
É imperioso como cada palavra traz em si o peso do seu
encontram nas coisas mundanas através dos sentidos as barreiras
signi cado que está dialeticamente vinculado ao momento
que di cultam sua apreensão; o segundo, que, embora tenha Assim, a omnilateralidade na realidade grega estava forjada pela
avançado em relação ao seu mestre, ao utilizar-se da biologia, crença ideológica e losó ca de que teoria é práxis, e somente ela
considera os sentidos como a porta de entrada para o eleva e completa o ser, o homem livre e, por isso, este deve evitar
conhecimento das coisas e suas causas, porém atribui a uma “causa as atividades manuais de qualquer gênero e dedicar-se às tarefas
primeira”, ao absoluto, a causa de todas as coisas. Desse modo, contemplativas e políticas, quando, na verdade, a fragmentação da
esses lósofos consolidaram a superioridade da atividade teórica totalidade social, na qual a divisão do trabalho signi cava a divisão
sobre a prática, como se a primeira não necessitasse da segunda do homem em cabeça, corpo e mãos, não possibilitava a formação
para efetivar-se enquanto tal, como se se bastasse a si mesma. completa pela integralização das atividades intelectuais e manuais,
Ainda que em certa medida defendessem sua unidade, tal unidade na qual o fazer não se separa do saber.
se manifestava pela imposição da teoria sobre a prática, que se Além disso, a ontologia e a metafísica estavam interligadas
expressava através da política. desde a Grécia Antiga, quando os homens queriam conhecer o
Nesse sentido, esses lósofos reconheciam a teoria como práxis, mundo e o seu lugar nesse contexto. Assim, pela análise dos
a “práxis política”, como aplicação prática da teoria em uma fenômenos naturais, a metafísica se ateve às discussões mais gerais
unidade unilateral, na qual a prática está delida à teoria. Por isso, para a compreensão da realidade, passando, na Idade Média, a deter
para ambos e para a classe dominante de seu tempo, o homem essa compreensão pela relação do homem com Deus e sua
somente desenvolve suas virtudes e se realiza na vida política mediação.
através da teoria, devendo, assim, dedicar-se a ela. Posteriormente, durante o período denominado Renascimento,
Daí o desprezo por todas as atividades manuais e práticas, ainda iniciou-se o processo de desvelamento da razão através da busca
que elevassem o ser, inclusive as artes manuais como a escultura, a da loso a da razão, o qual trazia como pano de fundo a transição
pintura e as ciências experimentais, como veri camos em Vázquez do feudalismo para o capitalismo e produziu, segundo Schlesener
(2007), o que exacerba a valorização do produto em detrimento do (2009, p. 24), “a fragmentação do homem e a redução do mundo ao
seu produtor, tendo o produto apenas a função de satisfazer às controle meticuloso da razão”.
necessidades, ou seja, considerava-se apenas seu valor de uso, o Nessa perspectiva, a metafísica está ligada à especulação, ou
que impediu Aristóteles, de descobrir a verdadeira essência de seja, à análise dos fenômenos apenas pelo ato da re exão. Dessa
valorização das mercadorias quando buscou equipará-las para forma, somente no século XIX, o termo ontologia toma o sentido de
facilitar a troca no mercado, embora tenha ido além de Platão em secularizar o estudo do ser, que até então estava ligado ao
suas aferições, expressando as bases para o desenvolvimento do transcendente. Sendo assim, do ponto de vista especulativo, quem
7
pensamento cientí co . desenvolve a ontologia é Hegel, mais especi camente em sua obra
A Fenomenologia do Espírito. 14), atividade que possibilitou ao homem primitivo produzir o
Nessa esteira, embora nunca tenha escrito um capítulo machado de pedra e desenvolver a destreza e a habilidade das
especi camente sobre o tema da ontologia, os desdobramentos de mãos, que, segundo Engels (1876, p. 16), “não é apenas o órgão do
Marx sobre ela estão intrinsecamente presentes em toda a sua obra trabalho, é também produto dele”. Assim, o homem constrói
e, por isso, desenvolve uma nova ontologia a partir da materialmente a sociedade e, conforme Lessa e Tonet (2008), lança
materialidade e da dialética da realidade e sua visão historicista. as bases para que se construam como indivíduos.
Ao colocar o homem como único demiurgo da história, Marx Pelo ato de trabalho, para satisfazer suas necessidades, o
inaugura uma nova loso a que não precisa de complemento de homem produz sempre o novo: uma nova situação de onde
outros lósofos, pois contempla, em sua dimensão ontológica, decorrem novas necessidades, novas possibilidades, novos
todos os complexos da realidade, e sua loso a não se restringe a conhecimentos e novas habilidades. O trabalho é a ação
uma simples análise da sociabilidade capitalista, mas ao que funda teleologicamente orientada e objetivada, ou seja, é a ação
o mundo dos homens, o que funda o ser social. Nesse sentido, Marx constituída, primeiro, pelo momento de planejamento, pela
inaugura uma nova concepção de mundo, a Filoso a da práxis. capacidade de projetar antecipadamente na consciência, e, em
Ainda que se difunda que a racionalidade é o que difere o seguida, o momento que converte aquilo que foi planejado em
homem dos outros animais, esse fato só ocorre porque o trabalho, objeto, causalidade posta. Dessa feita, há dois tipos de causalidade:
como elemento fundante, é o que coloca em movimento a a causalidade dada, que é aquilo que encontramos na natureza tal
racionalidade humana como ato-gênese do ser social, é a base como é; a causalidade posta, que é tudo que foi feito e produzido
dinâmico-estruturante do novo modelo de ser, a qual é resultado de pelo homem na sua intermediação com a natureza. Não obstante,
um processo milenar de saltos entre as três esferas do mundo, da devido à totalidade social permeada de determinações, na qual o
inorgânica para a orgânica, e esta, por sua vez, teve primazia no sujeito ativo e seu produto estão inseridos, o produto foge ao
surgimento da esfera do ser social. Por isso, Marx, ao discutir os controle do criador por movimentar séries causais e estar sujeito a
princípios gerais que organiza o mundo dos homens, traz a gênese determinações sociais e naturais, resultando em consequências
da consciência humana e da racionalidade, quando desenvolve e imprevisíveis.
explicita em sua obra não somente o que o mundo é, mas Assim, o homem, ao trabalhar de forma intencional e consciente
mormente o que pode vir a ser, o devir. sobre a natureza, com a nalidade de transformá-la, imprime-lhe
O trabalho, a atividade pela qual o homem, constante e forma útil à vida humana, diferencia-se dos outros animais ao
necessariamente transforma a natureza e a si mesmo, “foi o passo acionar os elementos contidos na natureza para cumprir
decisivo para a transição do macaco ao homem” (ENGELS, 1876, p. determinados ns, produz histórica e coletivamente a sua
existência material e, ao mesmo tempo, produz cultura, ideias, essencial na difusão do conhecimento acumulado e da cultura
crenças, valores, isto é, outras práxis sociais. É nesse sentido que o humanística construída historicamente pela humanidade.
homem se apresenta no contexto da sua produção enquanto ser Desse modo, a educação, como mediação entre o indivíduo e a
humano, ser social, tanto nos aspectos objetivos quanto subjetivos, sociedade, visa preparar o homem para reagir adequadamente
sendo a história do mundo dos homens como um contínuo processo diante das situações já previstas e também das situações
de construção, um contínuo devir. imprevisíveis através da inovação e criação fomentadas pelo
Contudo, partindo do pressuposto de que o mundo objetivo foi conhecimento acumulado, em um movimento de conservação e
construído pelo trabalho, compreendemos que “a reprodução superação. Como há uma determinação recíproca entre o trabalho e
social comporta e, ao mesmo tempo, requer outros tipos de ação seus complexos que estão debaixo da totalidade, o trabalho
que não especi camente de trabalho” (LESSA, 1997, p. 23-24), os determina a educação, que, em certa medida, de forma sempre
quais são chamados de complexos que, em conjunto, compõem a relativa e não absoluta, também determina o trabalho, em uma
práxis social, e mantém com o trabalho uma relação de relação dialética entre fundante e fundado.
dependência ontológica e de uma determinação recíproca, além de Diferentemente do que ocorre com a atividade de trabalho
terem uma autonomia relativa. sobre um elemento natural, no qual a teleologia primária incide
Nesse sentido, a educação, que nasce da relação do homem com sobre um elemento mudo e inerte, o qual, por isso, é passivamente
o homem, fundada pela eterna mediação homem-natureza, surge transformado de natureza em objeto, tal qual a pedra (elemento da
como o complexo universal de transmissão e generalização do natureza) transformou-se em machado. A educação, como um
conhecimento produzido e acumulado para a geração do ser complexo que se debruça sobre outras consciências, que são ativas,
genérico, lançando mão da linguagem para tornar-se patrimônio da que também escolhem entre alternativas por não encontrarem-se
humanidade, para cumprir a função orientada do trabalho na presas a um determinismo natural, manifesta-se nesse caso como
consciência humana, isto é, garantir sua função ontológica que, teleologia secundária, pois através dela o homem pode agir sobre a
segundo Saviani, é “[...] produzir, direta e intencionalmente, a consciência de outrem e não sobre um elemento da natureza, mas
humanidade que foi produzida histórica e coletivamente pelo um objeto que também é sujeito. Dessa forma, espera-se, assim,
conjunto dos homens” (2003, p. 13). O homem, a cada nascimento, atingir sua consciência, in uenciando o indivíduo a agir de modo
precisa tornar-se homem, apropriando-se do patrimônio genérico socialmente desejado, ou seja, que realize determinadas posições
do ser social transmitido através da educação. Assim, o trabalho teleológicas.
possui papel determinante na análise do complexo da educação, No processo de realização da humanização do indivíduo,
pois como a rma Tonet (2007), a educação possui uma função conforme Jimenez (2011), a educação se desdobra em formas
diferentes de acordo com a situação concreta na qual se realiza e, Trabalho, educação e reprodução do capital
como vimos, expressa-se em dois sentidos, no sentido lato e stricto.
No sentido lato ou amplo enquanto articulação do singular ao Devido às determinações do mundo atual, que está mergulhado
genérico, isto é, apropriação das características humanas próprias na lógica do capital, é impossível a realização de uma atividade
do gênero, produzidas pelos próprios homens para a constituição explicitadora das potencialidades humanas, mas sim um trabalho
do indivíduo como parte do gênero humano. No sentido stricto ou pautado na exploração do homem pelo homem e na reprodução
restrito, re ete a complexi cação do trabalho em cada etapa alienante (TONET, 2007), tal como ocorria na sociedade grega
histórica e surge para atender interesses dominantes e não também fundada na divisão de classes. O trabalho assumiu
universais, oriundos da divisão social, e é utilizada no processo de características desumanas, os trabalhadores não se realizam nas
reprodução da ordem vigente. atividades que executam. Para Marx, o trabalho deixa de ser uma
Nesse sentido, o ser social é uma unidade sintética e histórica da atividade livre, com a qual o homem se identi ca, e se transforma
relação entre subjetividade e objetividade, ou seja, “uma unidade em uma atividade sob o controle de um outro, em uma potência
integrada por dois momentos: o da individualidade e o da negativa, estranha e hostil. No capitalismo, o trabalho deixa de ser
generidade”, “[…] que estará sob a regência da totalidade social” trabalho útil concreto, que produz valor de uso, e se transforma em
(TONET, 2005, p. 215) e sua reprodução, que, por sua vez, tem como trabalho abstrato, quantitativo, criando valor de troca, que acaba
pólo norteador o trabalho e suas múltiplas determinações. tendo primazia sobre o valor de uso. Marx destaca:
Embora haja a determinação da totalidade social, a educação O trabalho é externo ao trabalhador [...] em seu trabalho, ele não se
nesse contexto se torna também uma unidade dialética da a rma, mas nega-se, não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve
nenhuma atividade física e intelectual livre, mas morti ca sua physis e
correlação de forças antagônicas vigentes, que resulta das funções arruína o seu espírito. O trabalhador só se sente por conseguinte e em
dos seus aspectos lato e stricto, re etindo, outrossim, a luta de primeiro lugar junto a si [quando] fora do trabalho e fora de si [quando]
no trabalho. Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não
classes da sociedade vigente. Portanto, a educação, tal como os está em casa [...] como se o [trabalho] não lhe pertencesse, como se ele
no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a um outro. (MARX, 2010d,
outros complexos sociais que são utilizados predominantemente
p. 83).
como instrumentos de manutenção da ordem vigente, não é uma
esfera fechada, mas, contraditoriamente, como complexo Em suma, com a propriedade privada, o trabalhador torna-se
construído pelo homem, traz em si a função de criar novas ontologicamente estranhado em relação ao produto do trabalho, à
possibilidades, inclusive a de abrir a vereda para a subversão da atividade produtiva, à vida genérica e aos outros homens. Esse
ordem vigente. estranhamento inicia-se no mundo do trabalho e ecoa em todos os
complexos sociais, entre eles, o complexo educacional, que, como
já a rmamos anteriormente, é o campo no qual se põe em curso o
pertencimento do indivíduo ao gênero humano, visto que o sentido Ademais, tais categorias, embora contraditórias, são elementos
lato da educação atualmente encontra-se subjugado ao sentido que formam um todo sintético, cumprindo cada uma o seu papel
stricto, que atende aos interesses dominantes vigentes na nesse sistema que visa à acumulação privada do capital. Assim, a
sociedade capitalista. produção surge como uma manifestação de uma determinada
Nesse contexto, o trabalhador, que antes controlava todo o sociedade que necessita de relações jurídicas e de uma forma
processo de produção, agora se vê estranhado em sua própria própria de governo para legitimar tais relações, manifestando-se
atividade, porque esta não lhe pertence, sente-se incompleto, através da oferta de produtos que serão consumidos mediante a
perde-se a noção entre criatura e criador, torna-se apenas apêndice distribuição e a troca, determinando não só o objeto de consumo,
do processo de produção, perdendo sua noção de ser genérico, de como também o modo de consumo, criando novas necessidades, já
pertencer ao grupo dos homens e, dentro da lógica da sociedade que a produção só se realiza no consumo. Dessa forma, a produção
atual, capitalista, torna-se apenas uma mercadoria, imerso em um cria o consumidor, pois a produção não fornece apenas a forma
processo de desumanização. objetiva, material do objeto, mas também a forma subjetiva como
Na análise da sociedade do século XVIII – burguesa moderna e uma (nova) necessidade ao objeto material.
capitalista, que Marx empreende seu trabalho e evidencia o caráter Com o desenvolvimento das forças produtivas no sistema de
ideológico do pensamento dos economistas modernos de produção capitalista, embora a produção seja fruto do trabalho de
pretenderem estabelecer a harmonia das relações sociais um grupo de trabalhadores, considera-se a produção como
existentes na sociedade capitalista, a partir da crença de que são propriedade privada, já que os meios de produção são privados.
regidas por leis eternas e, por isso, intransponíveis, além de Nesse contexto, situa-se a distribuição, a qual não pode ocorrer
desconsiderarem a unidade do trabalho acumulado no processo de como uma repartição igualitária, pois se considera a função de cada
produção e todas as categorias do processo econômico como a um na produção, e nessa relação entre produtor e produto, o
produção, a distribuição, a troca e o consumo, consideradas por eles produtor não se torna automaticamente proprietário e, no
como partes isoladas e desconectadas entre si. Como a rma Marx momento da troca ou circulação de mercadorias, participará da
(2007, p. 37), “[...] não se parte daquilo que os homens dizem, repartição através do seu salário. Com o estabelecimento da
imaginam ou representam, [...] parte-se dos homens realmente propriedade privada, além da divisão do trabalho entre manual e
ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o intelectual, surgem outras dicotomias e contradições que re etem
desenvolvimento dos re exos ideológicos e dos ecos desse o con ito de interesses, como o individual versus o coletivo,
processo de vida”. produção versus consumo, abundância versus escassez, ócio versus
trabalho, que vão con uir diretamente no processo educativo, pois,
como a rmam Marx e Engels, Dessa forma, o trabalhador não se a rma em seu trabalho, mas
[…] a força de produção, o estado social e a consciência, podem e devem nega-se, sente-se infeliz, morti ca-se física e espiritualmente, pois
entrar em contradição entre si, porque com a divisão do trabalho, está a diferença entre o que produz e o que ele é incrementa-se
dada a possibilidade, e até a realidade, de que a atividade espiritual e
material – de que a fruição e o trabalho, a produção e o consumo – assustadoramente e in a a propriedade privada, que segundo Marx
caibam a indivíduos diferentes; e a possibilidade de que esses (2010d, p. 82), é resultado e ao mesmo tempo consequência do
momentos entrem em contradição reside somente em que a divisão do
trabalho seja novamente suprassumida […]. (2007, p. 36). trabalho estranhado, e, portanto, o alicerce de todo o processo de
alienação, que serve de impedimento ao homem de desenvolver-se
Destarte, o indivíduo que não possui capital nem propriedade é
em toda a sua potencialidade, ou mesmo de superar tais
reduzido ao trabalho assalariado e ca condicionado à sua posição
impedimentos. Para utilizarmos as palavras de Marx (2010d, p.
dentro do quadro da produção e distribuição capitalista, marcado
109), “a suprassunção da propriedade privada é, por conseguinte, a
pelo antagonismo de classes, que visa anular do trabalho seu
emancipação completa de todas as qualidades e sentidos
caráter ontológico humanizador e socializador. Sua força de
humanos”.
trabalho sob a égide capitalista torna-se apenas mais um meio de
Assim, na vigência da sociabilidade capitalista, embora tenha em
produção e de garantia de sua sobrevivência, imerso na ilusão de
sua gênese a função de transmitir os conhecimentos
uma relação igualitária entre proprietário dos meios de produção e
historicamente produzidos pela humanidade, a educação encontra-
proprietário da força de trabalho, os quais se relacionam no
se submetida predominantemente à reprodução das relações
mercado capitalista como iguais.Tal igualdade se reduz ao campo
sociais alienadas postas pela classe dominante, ao difundir seus
da mera formalidade, pois a vida dos trabalhadores nesse sistema
ideais, diversi cando sua função de acordo com seus interesses em
torna-se um simples meio de vida, pois segundo Marx (2010d, p.
cada momento histórico. Na ordem do capital, sua função está
83), “[...] o que é a vida senão atividade – como uma atividade
predominantemente atrelada à lógica do desenvolvimento
voltada contra ele mesmo, independente dele, não pertencente a
econômico, como elemento de manutenção do status quo, da
ele [trabalhador]”. Em consequência, há o estranhamento não
hierarquia social, da divisão de tarefas pela divisão de
somente de si, mas também o estranhamento da coisa, do produto
conhecimentos de acordo com a classe, reproduzindo o
do seu trabalho, pois o objeto que produz não lhe pertence, e
conhecimento mínimo necessário para o adequado ideal
quanto mais “se desgasta trabalhando, tanto mais poderoso se
democrático burguês que exige determinados comportamentos,
torna o mundo objetivo e alheio, mais pobre se torna ele mesmo,
valores e habilidades dos “cidadãos”, de forma que impeça a
seu mundo interior, tanto menos pertence a si próprio” (MARX,
ruptura da ordem social, sobressaindo-se, dessa forma, seu caráter
2010d, p. 81).
estritamente conservador e, na mesma direção, subtraindo-se o seu
papel transformador. pela sua própria natureza, como totalidade reguladora sistêmica, é
Desse modo, a educação, tal como o trabalho nessa forma de totalmente incorrigível” (MESZÁROS, 2005, p. 27), a não ser por
sociabilidade, manifesta seu caráter alienante, e na roda uma mudança radical na estrutura social e a emancipação plena dos
dascontradições e dicotomias do capital, traz em germe, sentidos humanos. A contradição fundante do capital reside, pois,
dialeticamente, seu caráter desalienante, pois, conforme Tonet no fato de sua reprodução depender diretamente da exploração do
(2005), a contradição do capital também permeia a atividade trabalho que leva ao desenvolvimento das desigualdades sociais,
educativa com seu caráter, ao mesmo tempo alienante e superador as quais são ofuscadas pelo estabelecimento da igualdade formal.
da alienação. Não obstante, para manter-se e reproduzir-se, o capital busca
Assim, a natureza do capital de extrair mais valia para o novas alternativas para se reorganizar, reestruturando o mundo
incremento de sua acumulação não condiz com a satisfação e produtivo e consequentemente a atividade educativa, sobretudo o
realização plenas de todo o gênero humano, muito menos com uma seu sistema ideológico e político de dominação, como ocorreu a
formação integral do indivíduo, amplamente divulgada e partir da década de 1970 com a queda da taxa de lucro,
proclamada pela bandeira burguesa de igualdade democrática, “o “caracterizado pela desregulamentação e expansão dos capitais, do
que signi ca que, em princípio, todos eles deveriam poder ter comércio, da tecnologia, das condições de trabalho e emprego”
acesso ao conjunto do patrimônio humano” (TONET, 2007, p. 76). (ANTUNES, 2005, p. 32). Dessa forma, a lógica destrutiva do capital
Esse ideal não condiz, contudo, com a sua própria reprodução pela amplia-se, e nesta recompõe a divisão internacional do trabalho,
simples preparação que (de)forma o ser humano na mercadoria intensi ca sua ação destrutiva contra a força humana de trabalho,
força de trabalho para atender seus interesses econômicos. A lógica eleva profundamente o nível do desemprego estrutural, da
do capital está para além da negação do acesso, está na negação da precarização do trabalho, da pobreza e da destruição do meio
qualidade do conhecimento ofertado à classe trabalhadora, tendo ambiente em escala global, ativa o poder bélico como modus
no esvaziamento teórico uma grande arma de luta ideológica, a operandi da produção e reprodução capitalista, sob a batuta do
qual sob o estigma de ideais democráticos, que em princípio nanciamento do Estado, via complexo industrial-militar.
deveriam contemplar a todos sem distinção, desloca para o Desse modo, os países subordinados ao capital nanceiro dos
indivíduo a responsabilidade de seu fracasso pela sua falta de países imperialistas, os quais sofrem todas as consequências dessa
aptidão e quali cação. intensi cação, são submetidos à sua regulação mediante a
Esse esvaziamento como força ideológica se agudiza no atual controlada agenda e ditames dos organismos internacionais como a
contexto de crise estrutural do capital, o qual não oferece Unesco e, mormente, o Banco Mundial que, segundo Leher (1999),
alternativas de solução, visto que “o capital é irreformável porque tornou-se o “Ministério Internacional da Educação” dos países
periféricos. Esses organismos, a partir da década de 1990, sob o aprendizagens que o indivíduo realiza por si mesmo, nas quais está
ideário neoliberal, através de conferências internacionais, ausente a transmissão”.
determinam metas para minimizar as dores da barbárie provocada Nessa tela, a educação, que, aparentemente é despretensiosa,
pelo processo de acumulação desenfreada capitalista, visando, ao acessível, livre e universal, torna-se ampla e pretensiosamente
aliviar a pobreza, garantir a segurança, isto é, evitar possíveis negada, pois, ao negar o processo de transmissão do conhecimento,
insurgências contra a insatisfação com a exploração, impedindo nega-se, sobretudo, o conhecimento socialmente produzido, em
qualquer identi cação com ideias comunistas. Essas metas estão substituição ao conhecimento descartável que acompanha a
intrinsecamente atreladas à educação que passa a ser vista como “o constante modernização tecnológica, pois, nesse contexto, “a nova
maior instrumento para o desenvolvimento econômico e social”8 educação deve pautar-se no fato de que vivemos em uma
(LEHER, 1999, p. 25) dos países pobres, pois a pobreza pode criar sociedade dinâmica, na qual as transformações em ritmo acelerado
9 tornam os conhecimentos cada vez mais provisórios” (DUARTE,
um clima desfavorável para os negócios .
O marco dessa reestruturação educativa ocorreu na década de 2003, p. 10).
1990, com o conhecido Relatório Jacques Delors, fruto da Tudo isso em consonância com o “falso socialmente necessário”
Conferência de Jontiem, na Tailândia, no qual são estabelecidos os de estarmos vivendo na sociedade do conhecimento, uma ilusão
quatro pilares da educação, quais sejam, o aprender a aprender, o produzida pelo sistema vigente que cumpre a grande função
aprender a ser, aprender a conviver, aprender a fazer e o último ideológica de manutenção do capitalismo contemporâneo para
acrescentado em conferência posterior, o aprender a empreender “assegurar que cada indivíduo adote como suas próprias as metas
em nível de América Latina e Caribe. Todos esses pilares integram a de reprodução objetivamente possíveis do sistema” (MESZÀROS,
chamada pedagogia das competências baseada nos métodos ativos 2005, p. 44). Dessa forma, à classe trabalhadora são dadas apenas
10 pequenas doses dessa educação desmantelada, mínima e
originados no movimento escolanovista , focados na lógica do
treinamento, os quais integram os planos, parâmetros e projetos aligeirada, é dado somente o su ciente que convém à reprodução
político-pedagógicos dos países da periferia do capital visando à do capital, que sob o lema do “aprender a aprender” joga o
pretensa universalização do ensino, ensino esse sob o prisma de trabalhador na arena da competição pelos postos de trabalho de
uma educação que deve ser construída pelo próprio indivíduo, o acordo com a sua capacidade e criatividade de adaptar-se à
chamado construtivismo, que, em nome da autonomia absoluta, sociedade do capital.
nega o papel e a importância da transmissão do conhecimento, Porém, a educação, por manter com o trabalho uma relação de
como assenta Duarte (2003), quando analisa os posicionamentos autonomia relativa, pelo fato de o homem ser um ser ativo e
valorativos do lema “aprender a aprender”: “são mais desejáveis as encontrar nas alternativas a liberdade como possibilidade, pode
Segunda: educação física;
produzir resultados distintos ou ainda contrários aos postos como
Terceira: treinamento tecnológico que transmita os fundamentos
objetivos a serem atingidos e, por conseguinte, constituir-se ao cientí cos gerais de todos os processos de produção e que,
contemporaneamente, introduza a criança e o adolescente na
mesmo tempo como fator de desconstrução da ordem e capacidade de manusear os instrumentos elementares de todos os
instrumento de transformação. ofícios. (MARX, 1866, p. 6).

Nesse sentido é que Marx, através do materialismo-histórico- Percebe-se que, para Marx, a formação dos indivíduos demanda
dialético, aponta para uma proposta emancipatória que visa a articulação entre teoria e prática, entre manual e intelectual, em
transpor os horizontes da revolução e estabelecer uma nova forma uma união indissolúvel, contrapondo-se à formação tal como se
de sociabilidade humana na qual seja superada a dor da barbárie, efetiva na sociedade capitalista, na qual há explicitamente uma
das injustiças e desigualdades provocadas pelo processo de ruptura demarcando um ensino instrumental-pro ssionalizante aos
acumulação capitalista e da sociedade de classes. Nas palavras de trabalhadores, fundado em ensino técnico voltado ao
Marx, preenchimento do quadro de funções inferiores, ao passo que aos
o homem se apropria de sua essência omnilateral de uma maneira proprietários são reservados os conhecimentos mais elevados do
omnilateral. Cada uma das suas relações humanas com o mundo, ver,
ouvir, cheirar, degustar, sentir, pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, ensino clássico, em um processo que fortalece a divisão de classes.
amar, en m todos os órgãos da sua individualidade, assim como os Assim, tanto a atividade intelectual à margem do trabalho manual
órgãos que são imediatamente em sua forma como órgãos comunitários.
(2010d, p. 108 – grifos nossos). ou físico conduz ao equívoco de um idealismo super cial e uma
abstração inútil, como o trabalho manual sem a devida energia
Portanto, a única e possível forma de o homem tornar-se total,
espiritual arruína a natureza humana. Destarte, Marx evoca a
completo, é através do acesso à formação omnilateral em que
emergência da formação omnilateral tomar o lugar da formação
integre o saber e o fazer, em que sua individualidade se efetive na
unilateral, especializada, estranhada e alienante. Por isso,
comunidade. Essa formação deve dar-se desde a infância,
compreendemos que, não por acaso, assenta em primeiro lugar o
viabilizando a emancipação ao tornar livre a propriedade e os
ensino intelectual, na pretensão de negar todo o conhecimento
sentidos humanos tanto objetiva quanto subjetivamente.
imediatamente interessado, útil, operativo e instrumental,
Assim, no conjunto de suas obras, mormente nas Instruções aos
sobrepondo a este todo o conhecimento que abra as portas para o
Delegados do Conselho Geral Provisório do I Congresso da
mundo do pensamento racional e losó co que auxilie o homem na
Associação Internacional dos Trabalhadores, podemos encontrar
compreensão de si mesmo em sua relação com os outros homens e
referências diretas sobre o que Marx entende por educação, em um
com a sociedade.
espectro omnilateral:
A educação, assim, é dada como instrumento, em todo seu
Por instrução nós entendemos três coisas: Primeira: instrução
potencial e caráter revolucionário, de acesso e transmissão do
intelectual;
novas.
conhecimento, formação individual e coletiva, transformação da
sociedade, capaz de transmitir aos lhos da classe trabalhadora o
acesso a todo o conhecimento que lhes fora negado para a
conquista de sua consciência de classe. Nesse contexto, a escola, os
educadores11 têm um papel decisivo na construção dessa
consciência, devendo assumir-se estrategicamente como parte de
um projeto político-pedagógico que visa à emancipação de toda a
sociedade, tendo clareza de que a educação é um dos elementos
fundamentais que corrobora com essa construção, que é dialética,
posto que não é meramente teórica, mas prática, real.

4
Para melhor compreensão, ver Introdução à Filoso a de Marx, de Sérgio Lessa e Ivo Tonet
(2008).
5
Filósofo húngaro marxista do século XX que recuperou o caráter revolucionário da obra
de Marx. Ver Ontologia do Ser Social, Boitempo Editorial.
6
Essa esfera se caracteriza pela reprodução do mesmo e é resultado dos processos
ocorridos há cerca de 4 bilhões de anos.
7
Aristóteles não conseguiu enxergar o valor de troca, dada à inferioridade do trabalho
manual que estava assentado em uma sociedade escravocrata (MARX, Karl. O Capital. Vol. I
Livro I. Editora Bertrand: Rio de Janeiro, 1989, p. 68.).
8
Declaração do Banco Mundial no texto que expõe suas prioridades para a educação em
1990.
9
Ver Mendes Segundo e Jimenez, 2007. “Agora, então, é dito que à educação, movida pelo
novel princípio da equidade, cabe a tarefa de promover a cidadania e a inclusão social e,
mais do que tudo, o ajuste dos indivíduos e dos países às exigências do novo milênio,
vindo à luz no seio de uma ordem mundial globalizada, transmutada pela mágica da
revolução tecnológica, numa sociedade da informação e do conhecimento”.
10
Trataremos desse movimento no terceiro capítulo.
11
Entenda-se educadores no sentido gramsciano que inclui familiares e professores, bem
como intelectuais no sentido tradicional e orgânico defendido por Gramsci, além do
ambiente cultural, os quais juntos integram as velhas gerações que devem educar as
formação omnilateral, percorrendo seus escritos e experiências,
através da análise de seus textos, em especial os cadernos 10, 11,
12 e 19, os quais fundamentaram a compreensão de algumas
CAPÍTULO 2 categorias fundamentais de seu pensamento como Filoso a da
Práxis e Hegemonia. Ademais, contamos com o auxílio de alguns de
seus intérpretes como Fiori (1979), Manacorda (2008), Del Roio
(2005), Nosella (2010a), Coutinho (1999), entre outros, que nos
apoiaram na aproximação de sua proposta de escola e formação
O PROCESSO DE FORMAÇÃO DO PENSAMENTO humana.

POLÍTICO-REVOLUCIONÁRIO DE GRAMSCI
Vida, obra e militância
Na esteira de Marx, entre os teóricos que seguiram seu legado, Gramsci já trazia consigo o per l do ator político revolucionário, do
Gramsci foi um dos autores que buscou formular um projeto de “homem comunista” tão almejado pela loso a da práxis.
educação voltado para a emancipação do homem, desenvolvendo (DEL ROIO, 2005, p. 15)
sua proposta de escola unitária e formação omnilateral, registrada
desde os trabalhos do L’Ordine Nuovo até os escritos do cárcere,
Infância e juventude
mormente, Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Sua
preocupação pedagógica sempre foi latente. Por isso, a formação Nascido em 1891, em uma família de classe média e numerosa,
do seu pensamento político-revolucionário confunde-se com sua na região pobre da Sardenha, ao sul da Itália, e com suas
curta trajetória de vida12, marcada pela busca da formação do peculiaridades como o dialeto, adquiriu problemas físicos causados
homem novo. por um tipo de tuberculose que atinge os ossos, deixando-o
Dessa forma, ao delinearmos sua história de vida, buscamos corcunda, o que lhe causou desconfortos físicos e emocionais.
destacar, através de suas elucidações – encontradas em suas Desde então, teve uma saúde muito frágil e, como a rma Fiori
experiências teórico-políticas que constituem a identidade do seu (1979), sofreu de diversas outras enfermidades, o que o isolou do
pensamento –, a origem e os pontos de desenvolvimento da convívio com outras crianças e o direcionou à dedicação aos
formação de seu pensamento político-revolucionário, que estudos.
desembocaram na proposta de uma escola unitária e visam à
Até os dez anos, conforme Fiori (1979), Gramsci viveu uma sardo superasse os instintos primitivos do seu vilarejo de origem
infância com alguns cuidados especiais devido à doença. Porém, para sua transformação em homem político”.
quando sua família perdeu tudo por causa de um desfalque no Suas experiências pessoais e suas recordações da escola
escritório onde o pai trabalhava, e este foi preso e condenado a 8 autoritária por onde passou suscitaram em Gramsci um espírito
anos de prisão, sobrou apenas a aparência de uma família classe- crítico que, posteriormente, direcionou-o ao marxismo e, como ele
média. Segundo Fiori (1979, p. 33), aos onze anos foi abruptamente mesmo a rmou em carta a Giulia (apud NOSELLA, 2010a, p. 36),
obrigado a trabalhar 10 horas por dia no Registro Civil para ajudar a livrou-o de ser “um trapo engomado”.. Assim, no Liceu, já mostra
família. interesse por questões sociais e políticas, onde escreveu em 1910,
Devido aos seus problemas de saúde, chegou tardiamente à aos 19 anos, um ensaio escolar intitulado Oprimidos e Opressores,
escola e não obteve boas experiências, amargando o dissabor de publicado no Correio Universitário, no qual denuncia sua
uma escola tradicional, autoritária e discriminadora. Além disso, indignação diante dos privilégios e diferenças sociais
inserido em uma realidade de contradições, segundo Gramsci (apud (MANACORDA, 2008).
NOSELLA, 2010a, p. 36), não se conformava com o fato dos ricos Em 1911, sai da Ilha13 e concorre a uma bolsa de estudos em
terem acesso aos estudos, enquanto os lhos dos pobres tinham Lettere14, na cidade de Turim – cidade industrial onde viveu
que trabalhar. momentos de fome e frio. Gramsci se classi ca em nono lugar e
Mesmo quando o pai saiu da prisão, as coisas não melhoraram, com duras privações conseguiu continuar seus estudos na
pois este não conseguia emprego e sua única tentativa de trabalho Universidade de Turim, onde começa a sua jornada através da sua
e sobrevivência não logrou êxito. Assim, após ter tido algumas aulas formação neoidealista, que tinha como maior expressão Croce e
particulares, Gramsci, conforme Fiori (1979), foi enviado para o Gentile. Nessa época, encontrou e tornou-se amigo de Ângelo Tasca
ginásio de Santu Lussurgiu, localizada no alto das montanhas a 18 e Palmiro Togliatti e, em 1913, por in uência de Gennaro, seu irmão
quilômetros de Ghilarza, sua terra natal, da qual não sentia mais velho, liou-se ao Partido Socialista Italiano (PSI), quando, ao
saudades, pois o viam como o lho de um presidiário. conhecer a luta do operariado, (NOSELLA, 2010a, p. 36), começa a
Durante o ginásio, cou alojado na casa de uma velha compreender os escritos de Marx.
camponesa e, pouco depois, ao ingressar no Liceu em Cagliari, Com a eclosão da Primeira Guerra, em 1914 (NOSELLA, 2010a),
dividiu um quarto de pensão com seu irmão mais velho, Gennaro, inicia sua militância político-cultural através dos jornais,
período de luta pela sobrevivência, no qual amargou sérias publicando no jornal do PSI, O grito do povo, seu primeiro artigo de
di culdades nanceiras. Todas essas di culdades o angustiavam, peso intitulado “A guerra e as opiniões dos socialistas”, no qual
mas, conforme Lepre (2001 p. 17), “permitiu que o intelectual aborda a posição dos socialistas italianos frente à guerra.
Com o apoio da intelectualidade europeia à Guerra, começa a se da faculdade, perdeu a bolsa e aceitou a oferta para trabalhar na
separação de Gramsci e Croce, já que Croce a apoiou, e Gramsci, redação turinense do jornal socialista Avanti!, no qual escrevia
assim como Lênin e Trotsky, percebe que a guerra é apenas a crônicas citadinas e sobre teatro.
eclosão da barbárie desmedida. Na Itália, a Guerra ocorre com o Nesse período, conforme Manacorda (2008), Gramsci, como toda
fomento do espírito nacionalista pela conquista de território uma geração de jovens intelectuais que se formava, trazia uma
italiano ocupado pela Áustria. inspiração losó ca marcada por Benedetto Croce, somada à
O PSI, que, conforme Nosella (2010a), não tinha uma linha inspiração de Giovanni Gentile. Identi cados como neoidealistas,
15
política homogênea , opta pela neutralidade na guerra e Mussolini enfatizavam o papel da subjetividade, da ação humana, da
que o congregava é expulso em novembro de 1914. O nacionalismo intervenção pessoal como uma forma de criticar o positivismo que
esfria a luta de classes, pois, inicialmente, imaginava-se que a havia se formado e procurava consolidar-se no começo do século
guerra durasse pouco, porém, esta perdura e aumenta o morticínio. XX, servindo-se do marxismo apenas para dar uma base racional às
Gramsci, que opta pela “neutralidade” ativa e operante, tem como suas atividades de críticos e historiadores. Gramsci foi adversário
preocupação a preparação dos quadros dirigentes que futuramente do positivismo, do mecanicismo, do determinismo e do
tomariam o poder: o proletariado. economicismo, voltando-se contra essa visão que se conformava
Nesse momento, emerge o conceito de cultura desinteressada, com a realidade posta.
ou seja, sem interesses imediatos ou de grupos privilegiados Vale destacar que Gentile foi um dos principais políticos e
burgueses, mas da classe trabalhadora. Gramsci tinha como intelectuais do regime fascista italiano que, segundo Miranda
nalidade precípua educar para o desinteresse, visando que a (2007), sob orientação neoidealista elaborou a principal reforma
honestidade, o trabalho e a iniciativa tornem-se m em si mesmos, educacional do governo de Mussolini. Porém, foi Croce, autor
sendo de ampla visão, profunda e universal que interessa a toda italiano defensor de ideias neoidealistas no cenário europeu dos
humanidade, opondo-se às ideias de cultura interesseira e primeiros anos do século XX, que in uenciou fortemente os
oportunista. Segundo Nosella (2010a, p. 43), Gramsci defende as primeiros escritos de Gramsci.
atividades formativo-culturais para as massas, rejeita a cultura Croce, por sua vez, trazia consigo fundamentação idealista
abstrata, engessada e enciclopédica burguesa que confunde os concatenada com o materialismo histórico. Admitia o
trabalhadores e exalta a consciência de classe e a formação cultural desenvolvimento histórico como uma evolução política e social e a
pela crítica à sociedade capitalista. relação indissociável entre história, loso a e economia. Porém,
Ministrando aulas particulares e com o auxílio da bolsa, não admitia a luta de classes e negava totalmente a possibilidade
manteve-se até 1915, quando, por problemas de saúde, ausentou- de uma revolução proletária.
Latifundiário, Benedetto Croce aproximou-se da loso a da natureza e espírito, denotando em suas a rmações um idealismo
práxis pela oportunidade que sua condição social lhe que não vai além das experiências.
proporcionava de acesso a leituras e conhecimentos “superiores” e Gramsci, nos passos de Croce, inicia sua formação de cunho
não por a nidade prático-teórica e, por isso, apesar de ter tido idealista19, apropriando-se de sua loso a, mormente no que
in uência do marxista italiano Antonio Labriola16, com quem a rma a pressuposição do conhecimento em relação a ação, o que
aprendeu a ler Hegel, defendia uma ética historicista e considerava in uencia energicamente durante algum tempo sua práxis e suas
o marxismo o darwinismo-social. Com base nessa tela, Croce lidera formulações de militante e líder do PSI, no que diz respeito às suas
na Itália o movimento revisionista contra o marxismo, pois, proposições para a formação do proletariado.
acreditava que a sua nova teoria historiográ ca fosse uma A apropriação teórica de Gramsci do neoidealismo para explicar
expressão dessa “superação” da “ loso a da práxis”. a problemática naquele contexto histórico italiano descartava
Croce adverte que a realização e a manifestação da vontade completamente as perspectivas positivistas e naturalistas dos
humana pressupõem um conhecimento prévio, argumentando que representantes do Partido Socialista. Esse posicionamento
“[…] as obras, que se expressam como manifestações do puro positivista do Partido Socialista não contribuía para a compreensão
espírito artístico e losó co, mostram-se produtos da vontade, por dos problemas italianos, principalmente da questão meridional,
que sem vontade não se faz nada [...]”17. tema muito caro ao jovem Gramsci desde a época do Liceu, quando
Nessa direção, Croce defende que a realidade, o conjunto das compartilhou o sofrimento do povo, do qual fazia parte.
ações, advém do pensamento ou “ato moral” que, por sua vez, é O neoidealismo representava toda a modernização, o
ação, por ser conhecimento histórico. Assim, nesse movimento risorgimento20 italiano e de uma revolução burguesa, como
dialético crociano, a história é ato de pensamento e vontade, a veri camos em Del Roio (2005), um movimento que criou um
materialização da “consciência moral”. Embora sua alusão di ra do estado moderno na Itália, por meio da criação de um Estado Laico e
espírito absoluto do momento de reconhecimento18 do espírito da da destruição do retrógrado Estado Clerical. Na relação com a
loso a hegeliana, quando advoga sua visão historicista e dialética, questão meridional21, o neoidealismo se nega a dar um caráter
defende a unidade sintética dos opostos. Essa unidade já está naturalista às questões sociais, não responsabiliza o
estabelecida no nexo entre a vida e o pensamento na história, ou desenvolvimento do sistema capitalista como a causa dessas
seja, a atividade e a ação. desigualdades regionais na Itália, mas não renega as condições
Sabendo que Marx trazia em sua fundamentação teórica históricas dos povos para a interpretação do mundo.
elementos do arcabouço hegeliano, Croce acusa-o de não superar a Embora, de início, segundo Del Roio (2005), a in uência do
dialética da lógica hegeliana do dualismo metafísico, entre liberalismo e do neoidealismo fosse inegável na formação
intelectual do jovem sardo, esta não parece entrar em contradição prolongamento da guerra, pois a escola do trabalho se expressava,
com seu interesse crescente sobre o legado teórico de Marx, sobre em verdade, nesse contexto, como a escola do emprego.
o qual já havia se debruçado e iniciado leituras, imbuído pelo
espírito de curiosidade intelectual em 1910. Gramsci considerava Da Revolução Russa ao Cárcere
Marx ao mesmo tempo “um homem de ação e um mestre de vida
espiritual e moral”22 (2004, p. 164). Outubro de 1917 saúda a Revolução que, segundo Gramsci
Nesse contexto, em 1916, o Estado italiano, em um clima (2004a), é um ato proletário que desembocará no regime socialista.
polêmico, propõe a renovação da escola do trabalho, utilizando-se Nessa época, seus estudos universitários foram interrompidos26 e
das argumentações socialistas, buscando fundir a escola com a Gramsci inicia sua colaboração a diversas revistas socialistas. Cheio
o cina para utilizar os alunos na produção das munições de guerra. de entusiasmo, acredita que a revolução também ocorrerá na Itália.
Para isso, como assevera Miranda (2007), convoca toda a sociedade, Participa ativamente do cenário político no qual organiza, à frente
pais e professores a colaborar – tal como, atualmente, veri camos da seção socialista de Turim, naquele mesmo ano, uma grande
nas propostas difundidas pelo Movimento de Educação para manifestação em solidariedade a Lenin e contra a continuação da
Todos23. Diante disso, Gramsci (1916)24 a rma que “é o guerra, que desemboca em uma greve geral. Ao notar que Turim,
proletariado que deve exigir, que deve impor a escola do trabalho”, assim como Milão, era uma amostra da sociedade de classes
para que sejam oferecidos os meios necessários à sua própria próprias do modo de produção capitalista, da qual escapa dos
elevação cultural e à valorização das boas qualidades de cada um. embates entre capitalistas e proletários, passa a assumir a direção
Gramsci rejeita qualquer rebaixamento cultural e escolar com vistas do jornal do PSI O grito do povo. Começa Gramsci, conforme Nosella
a proteger ou assistir aos subalternos25, visto que estes precisam (2010a), nessa ocasião de luta real, a abandonar a loso a idealista
da igualdade de condições para estudar. Nesse momento, surge a de Croce e a tornar-se efetivamente revolucionário, tendo agora
primeira consideração de Gramsci sobre a formação, que servirá de Lenin como guia e a Revolução Russa como referência para
base para a sua proposta de escola unitária, como destaca Nosella revolução na Itália.
(2010a, p. 48), o cuidado e a seriedade que se deve ter tanto com o Porém, ainda não se dá a ruptura completa com o neoidealismo.
trabalho como com o estudo, ainda que nesse primeiro momento A adesão à revolução não extinguiu completamente a in uência
não estivessem essencialmente articulados. crociana no íntimo do jovem militante. Essa ruptura só aconteceria
Dessa forma, compreende-se que ao governo italiano não com o agravamento da crise decorrente dos con itos históricos:
importava que tipo de escola fomentaria a formação dos lhos dos Primeira Guerra Mundial, aprofundamento do antagonismo
trabalhadores, mas que a escola servisse de pretexto para o Ocidente e Oriente, mas principalmente, sua experiência em
Moscou.
Gramsci percebe que a luta de classes é uma luta concreta, real e sua capacidade em prol do movimento. Tal proposta nunca se
27
que a luta de classes está para além de regionalismos . Dessa efetivou na realidade. Gramsci funda então o “Clube de Vida
forma, ainda com sua leitura “limitada” marxista daqueles anos, Moral”, que não subsiste mais que alguns meses.
reconhece a superação do Estado burguês pelo socialista, não como Ainda assim, segundo Nosella (2010a, p. 59), mesmo diante da
um processo esquemático evolucionista, baseado em cânones, mas fraca base político-cultural e subserviente do proletariado de
como a vontade coletiva que expressa a vivacidade do legado Turim, Gramsci insistia em um sério trabalho formativo-cultural
marxiano “que havia se contaminado de incrustações positivistas e através do jornal O Grito do Povo, tendo seus escritos, por diversas
naturalistas” (GRAMSCI, 2004a, p. 127)28. Desse modo, constrói vezes, sido censurados porque incitavam a deserção, além de serem
uma imagem ativa da classe operária, sobretudo com suas considerados propaganda subversiva à guerra.
interpretações das informações obtidas da Revolução em 1917. Crendo no amadurecimento político do proletariado que poderia
O fato de a revolução comunista acontecer em um país desprendê-lo do apego economicista individual, e mesmo com toda
economicamente atrasado como a Rússia ia de encontro à visão a diversidade e heterogeneidade deste, Gramsci (NOSELLA, 2010a)
reduzida do marxismo vulgar, e reforça, assim, a tese de Gramsci da não pormenorizou a capacidade de aglutinação de conhecimento
força da vontade, no caso russo, a vontade dos revolucionários, a do operariado e não simpli cou o discurso em um esquema
qual não está desvencilhada da totalidade social e suas enciclopédico abstrato, pois sua intenção era levá-lo ao progresso
determinações que podem levar a consequências alheias aos intelectual e consolidar em sua mente uma visão crítica superior da
objetivos iniciais. Nas palavras de Lenin, “A ditadura do história e do mundo onde vive e luta, passando a in uenciar outros
proletariado é uma luta […] pedagógica e administrativa contra as em uma educação recíproca, tendo como ponto de partida o senso
forças e as tradições da velha sociedade. A força do costume de comum do proletariado, o imediato com o objetivo de
milhões e dezenas de milhões de pessoas é a força mais terrível” ultrapassagem destes limites para o universal.
(LENIN apud DEL ROIO, 2005, p.27). Esse período que tinha a Revolução Russa como exemplo, cou
Dentro desse novo quadro político internacional e sua nova caracterizado como o apogeu das aspirações socialistas em todo o
responsabilidade no partido (PSI), Gramsci, conforme Nosella mundo. Na Itália, mesmo a mutilada e trágica vitória contra a
(2010a), lança sua proposta formativo-cultural ao movimento Áustria, serviu para acender, ainda que de forma controversa, o
operário de Turim, a Associação de Cultura, que teria como espírito de esperança socialista no italiano, pois, segundo Nosella
referência o quadro teórico-metodológico “desinteressado”, com (2010a), no campo de batalha, os soldados sentiram na pele a dor
objetivos de classe, reconhecendo a importância dos intelectuais da barbárie e ouviram sobre a Revolução Socialista Russa e, ao
orgânicos e dos tradicionais nessa tarefa, cuja função seria utilizar retornar às suas casas, foram tomados pela indignação, por não
encontrarem nenhum apoio por parte do Estado. Em consequência, estrutural, e o conselho de operários era que constituía um aparato
a Itália foi tomada por greves gerais e insurreições. Por alternativo de poder. Destarte, defendia o partido e os sindicatos
conseguinte, em julho de 1919, houve uma greve de solidariedade como organismos que tinham como função revolucionária educar
à Revolução Russa, da qual o PSI sai das eleições como majoritário, os trabalhadores para colaborar na instituição da cultura
mesmo não tendo uma clara visão das reais possibilidades da revolucionária (NOSELLA, 2010a). Porém, as comissões internas e as
revolução, por estarem encravados em ideais mecanicistas do instâncias organizativo-culturais de base como centro da vida
processo revolucionário. proletária, como aquelas que substituirão o capitalista em suas
Apesar disso, Gramsci (NOSELLA, 2010a) percebendo que isso funções administrativas, submeteram os sindicatos e os partidos
poderia frustrar o proletariado, juntamente com seus amigos hierarquicamente aos conselhos de fábrica, pelo fato de os
Tasca,Togliatti e Terracini, funda a revista semanal L’Ordine Nuovo e primeiros, os partidos e os sindicatos, terem sido gerados no
defende uma nova ordem para a superação da sociedade capitalista espaço de liberdade burguesa privada e arbitrária, e os conselhos,
que será criada pelos comunistas. segundo Gramsci, constituírem um paralelo com a realidade russa,
O L´Ordine Nuovo marca de nitivamente o foco de Gramsci nos os soviets.
trabalhadores, como proposta de preparação da cultura nacional Dessa maneira, o Partido, para Gramsci, é uma escola arraigada
revolucionária italiana necessária para estruturar um Estado na prática industrial. Nessa perspectiva, Gramsci investe no L’Ordine
proletário, destacando a questão da democracia na fábrica, com Nuovo (ON) como escola de cultura, pois, no Estado de Conselhos a
29
base nos Conselhos de Fábrica, com inspiração nos soviets russos . escola representará a atividade política mais importante e
Para tanto, era necessário integrar a produção e a ciência humanista essencial, suscitando a psicologia dos construtores, a profunda
em uma visão desinteressada, e o ponto de partida deveria ser o relação escola-trabalho, unindo-se pela inspiração do espírito de
unitário. Nessa visão, o Conselho de Fábrica era a molécula social laboriosidade, ética e solidariedade universal, pela lógica produtiva
da revolução, fundado em uma base contratualista rousseauniana, de muitos para um só m (NOSELLA, 2010a).
mas que não cabia no âmbito da ditadura do proletariado. Assim, em 1920 é inaugurada a escola de cultura e propaganda
Conforme Rosa Luxemburgo (apud DEL ROIO, 2005, p. 33), “O socialista Ordine Nuovo, de forma satisfatória e empolgante pelo
socialismo deve ser feito pelas massas, por cada proletário. É lá interesse incansável dos operários em aprenderem e serem donos
onde estão atados à cadeia do capital que deve ser rompida a do seu pensamento, o que leva Gramsci a concluir que “o trabalho
cadeia do capital”. moderno é o princípio educativo só enquanto materializa o
Para Gramsci, que, por um momento chegou a rmar uma momento histórico objetivo da própria liberdade concreta e
30 universal, sendo, dessa forma, a própria liberdade concreta e
candidatura , o parlamento constituía uma atividade puramente
universal o verdadeiro, o último sentido do princípio pedagógico” juntamente com o grupo do Ordine Nuovo, separar-se do PSI e
(NOSELLA, 2010a, p. 73). Para Gramsci, o sentido último do trabalho fundar o Partido Comunista Italiano (PCI), o que ocorreu em 1921.
na visão socialista é a libertação humana da dependência do Nessa perspectiva, o Partido Comunista Italiano representava o
trabalho explorado, alienado. Nessa escola, a preocupação principal surgimento de um novo tempo do movimento revolucionário
de Gramsci era formar os trabalhadores para a autogestão pela operário, o qual Gramsci comparava ao movimento cristão, porém,
compreensão de sua classe e o domínio dos conceitos necessários “os militantes comunistas que lutavam pela cidade do Homem
de economia política para a revolução, promovendo uma hierarquia eram superiores àqueles que acreditavam no prêmio celeste da
de cultura – que progressivamente seria suprassumida, ao imbuir os cidade de Deus” (LEPRE, 2001, p. 43).
mais capacitados do papel de vanguarda da massa proletária, pois, Ainda em 1920, conforme Fiori (1979), após uma fracassada
segundo Gramsci (2010), é o trabalho industrial moderno que ocupação das fábricas pelo operariado, Gramsci percebe que a
educa o novo homem, que pode proporcionar uma base cientí ca e realidade italiana era diversa da russa e não poderia tentar fazer um
losó ca, contanto que não se limite ao viés unilateral. paralelismo entre estas, mas era necessário buscar conhecer o
Porém, segundo Nosella (2010a), mesmo com todo o esforço, em movimento popular italiano, estabelecer um vínculo solidário com
1920 os Conselhos de Fábrica são destituídos, e o controle volta as comunidades pobres camponesas e, a partir daí, elaborar um
aos patrões após a derrota da greve geral31, em Turim, na qual não outro projeto de revolução.
tiveram o apoio do PSI. Em meio a greves, confrontos e ocupações, Nesse mesmo ano, 1920, em meio a uma crise em que se
Gramsci vê a ausência de espírito belicoso nos operários e percebe colocavam de um lado os grandes proprietários e, do outro, a classe
a distância entre a teoria e um possível avanço revolucionário. Com operária e a pequena e média burguesia posta fora do foco de
isso, a hipótese da transformação dos Conselhos de Fábrica em atenção, o movimento fascista se coloca no centro do cenário da
sovietes cai por terra, e Gramsci, esperando que esse pudesse ter crise, conseguindo o apoio do clero, da monarquia, dos intelectuais
sido o início do processo revolucionário na Itália, assume a cisão, na e dos industriais italianos, da Con ndústria, visando unicamente
qual os partidos comunistas seriam os organismos de vanguarda reprimir com truculência o movimento revolucionário italiano. Na
que guiariam o proletariado para conquistar o poder em todos os liderança desse movimento estava o então carismático Mussolini,
países, pois a revolução teria de ser mundial. Sendo assim, só um que, segundo Fiori (1979), apesar de ter tentado seduzir
organismo como a Internacional Comunista poderia dar a direção politicamente Gramsci, não conseguiu sua adesão ao fascismo.
do processo revolucionário. Gramsci via esvair-se em sangue, tortura e exílio toda a organização
Ao constatar que o PSI não se atrevia a realizar a revolução, dos trabalhadores que havia conquistado, à medida que era forçado
Gramsci não viu outra alternativa a não ser, segundo Lepre (2001), a silenciar-se e, junto a tudo isso, via dilacerar-se a esperança da
revolução. imposto pelos fascistas. Com o apoio de Lenin e, com a prisão de
Em 1921, no Congresso do PCI, de acordo com Fiori (1979), Bordiga34, assume como novo Secretário Geral do PCI.
Gramsci recolhe-se ao silêncio, na tentativa de distinguir quem Em meio à forte onda de repressão, o movimento se recolhe para
eram os verdadeiros revolucionários, bem como, de não gerar a clandestinidade, e Gramsci, com sua preocupação de formação de
expectativas de que a revolução na sociedade italiana estava às quadros, inicia os trabalhos com dois novos números da Revista
vésperas de ocorrer, pois percebe a fragmentação social no quadro Ordine Nuovo que tiveram grande aceitação. Gramsci busca uma
nacional. Por conseguinte, com o seu espírito construtivo, Gramsci, nova estratégia: unir o operário e o camponês como uma grande
sob a orientação de Lenin de construir a frente única32 e os órgãos organização de luta do proletariado, da qual desenvolve seu
de oposição ao fascismo, dá início aos trabalhos de conquista da conceito de hegemonia. Dessa forma, seguiu o que defendia Lenin
maioria da classe trabalhadora cheia de medo e descon ada, “[...] para alimentar a consciência revolucionária era necessário um
adiando mais uma vez o dia da revolução, mesmo não tendo o apoio contato com outras camadas sociais e com a contraditória dimensão
majoritário dos seus pares, o que cou evidente na perda da eleição da totalidade social e estatal” (DEL ROIO, 2005, p. 29).
a deputado pela falta de apoio do PCI. Diante da falta de liberdade do regime fascista, para atingir seu
Desse modo, em 1922, parte para Moscou onde cou durante objetivo de formação, Gramsci cria a Escola por correspondência, na
um ano. Cuidou de sua saúde em um sanatório, quando conheceu qual manteve contato com os melhores e mais con áveis
Giulia, com quem se casou e teve dois lhos, Délio e Giuliano, além camaradas do Partido, que se tornaram transmissores dos ideais
dos grandes personagens da Revolução Russa, como Lenin, Trotsky, revolucionários, com vistas a elevar o nível das massas para
e Krupskaya com quem discutiu a questão da Escola do Trabalho33. enfrentar as próximas lutas. Para atender a essa demanda nesse
Enquanto isso, na Itália, Mussolini chegava ao cargo de Primeiro determinado momento histórico, Gramsci defende uma educação
Ministro, estabelecendo o fascismo e expedindo uma ordem de politicamente “interessada”, fazendo as devidas ressalvas das
prisão para Gramsci. consequências que poderia vir a ter. A partir desse material, foi
Em sua estadia na União Soviética em 1922, Gramsci teve a criado o Manual do Militante, que Gramsci denominava de agenda
oportunidade de participar do IV Congresso da Internacional do trabalhador, “a qual o intelectual-trabalhador tinha a liberdade
Comunista, no qual foi convidado para substituir Bordiga e car à de atualizar, numa interação recíproca entre o Partido e as massas,
frente do partido, mas recusou. Gramsci, que acreditava na pois era necessário que cada membro fosse um dirigente político
revolução em longo prazo, para retornar à Itália protegido pela ativo” (NOSELLA, 2010a, p. 101).
imunidade parlamentar, em 1923, elege-se deputado pela região Para tanto, Gramsci se debruça sobre as obras de Marx para
de Viena em meio a uma espécie de retorno ao espírito nacionalista preparar edições italianas de seus estudos. Nesse ínterim,
compreende a in uência importante dos intelectuais sobre o idealismo [con gurou-se] como fornecedor das razões teóricas para
camponês e o papel que estes poderiam exercer na união solidária o seu instinto socialista e a práxis política o que o guiará às razões
entre proletários e camponeses, já que esse bloco intelectual genuínas do marxismo. Nesse desenrolar histórico, Gramsci se
impedia a solidariedade entre os proletários rurais e urbanos. aproxima e se a rma marxista, não por desconhecimento político-
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Redige textos sobre essa questão , que apresenta no Congresso do losó co, mas por veri car as concepções marxianas na práxis
PCI em janeiro de 1926, na França, e consegue o apoio do partido social, devido ao seu percurso teórico-prático que o levou ao
em defesa da Frente Única. cárcere e à perda de sua vida.
Nesse entremeio, segundo Fiori (1979), após a morte de Lenin,
em 1924, a crise no Partido Bolchevique se acirra, devido à Do Pamphletaire ao Fur ewig37
recomendação contida no “testamento” de Lenin, no qual a rmava
que Stalin não poderia continuar como secretário-geral do Partido Mesmo sob o crivo da censura fascista e privado de sua
devido ao defeito inadmissível para o cargo, o de ser muito rude. liberdade, Gramsci não deixou um só momento de escrever sobre
Com a intervenção de Zinoviev e Kamenev, que evitaram o envio do aquilo que considerava primazia para o movimento revolucionário,
“testamento” ao XIII Congresso do PC russo, Stalin continuou no a formação voltada para um horizonte revolucionário. No cárcere
cargo e inicia os expurgos e as exclusões. Diante dessa realidade, escreveu os famosos Cadernos e as inúmeras Cartas, as quais
Gramsci, em carta a Togliatti36, que se encontrava em Moscou, pede estavam permeadas de sua preocupação com a educação e a
que os camaradas russos entrem em consenso para evitar o colapso cultura. Mas sua preocupação não se reduzia apenas em teorizar
da revolução, já que o “o grupo central leninista […] foi sempre o receitas, mas principalmente pô-las em prática, como se veri ca
núcleo dirigente do Partido e da Internacional”, e uma cisão desse assim que chega ao cárcere na Ilha de Ùstica e, junto a Bordiga e
tipo teria sérios desdobramentos no PCI e em todos os Partidos outros camaradas, dá início a uma escola interna com os presos,
comunistas internacionais. Contudo, O PCI se alinha à direção partindo das experiências de cada um, ressaltando a cultura,
stalinista. Gramsci é preso em 8 de novembro de 1926, e Togliatti denominando a escola como círculo de cultura.
assume como novo Secretário Geral do PCI. Embora não tenha tido acesso a todo o legado teórico marxiano,
Dessa forma, Gramsci seguiu seu percurso teórico-prático até na remoção para outro cárcere em Milão, com tempo su ciente para
chegar ao autêntico marxismo moderno. Assim, Gramsci conseguia suas leituras38 e re exões, começa a sistematizar seus
distinguir Marx como um dos grandes gênios políticos da desdobramentos sobre a educação e a escola em seus escritos, que
contemporaneidade, visão que se consolidou após sua estadia na vão desde a aquisição da língua, que constitui o instrumento básico
União Soviética, pois, conforme Manacorda (2008, p.27), o do desenvolvimento intelectual, até a introdução do trabalho como
princípio educativo na infância. São esses desdobramentos que,
juntamente ao acúmulo praxista do autor, o possibilitou progredir Gramsci escreveu A Questão Meridional, em 1926, pouco antes
na estatura do conhecimento e balizar seu projeto de escola da prisão, e foi publicado somente em 1930, no Lo Stato Operaio.
unitária e formação omnilateral. Conforme Fiori (1979), representa dois momentos da postura de
No Cárcere, conforme Fiori (1979), Gramsci contou com dois Gramsci: antes do cárcere (pamphlétaire) e durante o cárcere (für
39
importantes correspondentes e interlocutores, Tatiana Schucht , ewig).
sua cunhada que o acompanhou em todo o período no cárcere, e Assim, esses termos são utilizados para denominar as duas fases
Piero Sra a, um amigo professor universitário, que abriu uma conta da vida do autor sardo. O primeiro, o momento de militância e de
para Gramsci em uma livraria e, através de Tatiana, fornecia-lhes os ensaios escritos no período de 1914 a 1926, para atender às
livros para seus estudos no cárcere. demandas da luta proletária cotidiana, o qual resultou na
Dessa forma, Gramsci, após receber autorização, tinha material publicação póstuma pela Editora Riuniti, em 1963, sob o título
para ler e escrever, ainda que alguns livros e escritos seus não Elemento de Política, e que atualmente, aqui no Brasil, foi publicado
fossem autorizados pela censura fascista. Assim, escreveu diversas pela Civilização Brasileira em dois volumes sob os títulos Escritos
cartas, das quais, conforme Fiori (1979), uma coletânea de 218 Políticos I, que traz seus artigos de 1910 a 1920, e os Escritos
cartas foi publicada pela primeira vez em 1947 pela Editora Einaudi Políticos II, que traz o período de 1921 a 1926. O segundo, para
e, posteriormente, em 1964, um novo volume é publicado, atender à ansiedade de Gramsci em preencher seu tempo no
contendo 64 cartas de 1912 a 1926, e 268 cartas da prisão. No cárcere com algo que pudesse ser relevante, pudesse car per
41
Brasil, sob a organização de Carlos Nelson Coutinho, foram sempre .
publicados em 2005 dois volumes das Cartas do Cárcere que Desse modo, de acordo com Fiori (1979), os Cadernos são uma
contêm o período de 1926 a 1930, no volume I, e de 1931 a 1937, ampliação da Questão Meridional, movendo-se em três direções:
no volume II. “historiciza os movimentos culturais do passado, submete a
Ao nal, foram escritos 32 Cadernos, 21 escritos ou iniciados na loso a da Benedetto Croce à crítica e combate as degenerações
prisão de Turim. Foram 2.848 páginas ou 4 mil laudas economicistas, fatalistas e mecanicistas do marxismo” (FIORI, 1979,
datilografadas ou aproximadamente, o que seria hoje, 21 cadernos p. 294). Ademais, traz uma categoria original ao marxismo com
de 12 matérias. Apesar da aparência fragmentada, após inúmeras relação aos pontos de força da classe dominante que é a obtenção
revisões com a chegada irregular de livros, Gramsci só conseguiu do consenso ou a Hegemonia.
agrupar organicamente alguns temas40, permanecendo a aparência Para tanto, partiu em busca da compreensão do bloco
fragmentada, mas, conforme Fiori (1979), remetendo-se a uma meridional existente na Itália, e, assim, inicia uma análise dos
ideia central: A Questão Meridional. intelectuais e da loso a, em especial a loso a de Benedetto
Croce, na qual a rma sua orientação marxiana genuína que chama Dessas considerações, basta apenas uma palavra-chave para
42
de Filoso a da Práxis , que, no aprofundamento dos estudos, resumirmos e olharmos para as formulações gramscianas com as
desemboca no processo de uni cação do Estado italiano, o lentes da compreensão, a saber: a organicidade. Visto que Gramsci
Risorgimento, o qual foi orientado pelos “moderados” e não teve a considera o real como um movimento redondo, mas não fechado, e,
participação popular ou espírito jacobino. por isso, vivo, contraditório, em um revezamento de forças que se
Nesse sentido, fundado na perspectiva marxiana revolucionária, conservam e se superam pela atividade humana. Tal movimento
mormente a partir de 1930, traça, em seus escritos, categorias que encontra-se presente em toda a sua literatura em um processo de
proporcionarão uma visão estratégica para a luta pela emancipação continuidade e descontinuidade.
humana, ou seja, a criação de um Estado proletário – a sociedade Ademais, é necessário destacarmos a atuação política de
regulada, que, segundo o autor sardo, tem duas fases, a conquista Gramsci, na qual buscava elevar o conhecimento da classe
do Estado e o estabelecimento da direção pela consolidação da subalterna em uma perspectiva revolucionária, para que estes
autorregulação social. tivessem a oportunidade de desenvolver as condições necessárias
ao comando da vida coletiva, bem como, a capacidade de construir
a sociedade regulada. Nesse processo, o intelectual orgânico tem
Elementos do pensamento de Gramsci na arena um papel preponderante, pois, para Gramsci, o compromisso do
da luta de classes intelectual deveria ser com a necessidade losó ca e política de
pensar e fazer a realidade, de modo a transformá-la, na qual o
Para compreendermos a dimensão do arcabouço teórico intelectual, mesmo não sendo oriundo da classe trabalhadora, ao
gramsciano, é necessário conhecermos a dimensão praxista de sua identi car-se organicamente com esta, deveria direcioná-la para a
história de vida e ademais, é necessário considerarmos ainda: a elevação do seu conhecimento sobre a realidade a m de
originalidade de sua apreensão do método dialético de análise das transformá-la.
relações sociais; a posição histórica absolutamente revolucionária A práxis, nesse sentido, se efetiva pela análise da realidade, em
orientada para a organização da classe trabalhadora; sua inclinação um movimento de apreensão, teorização e retorno para a realidade,
para a formação dos subalternos para serem dirigentes ou pela capacidade de re etir sobre as ações e poder intervir. Dessa
dirigidos; a estreita articulação entre a elaboração dos conceitos e feita, podemos veri car que o caráter revolucionário e
das categorias com a realidade, com a organização revolucionária transformador de Gramsci se origina em sua vida militante e no seu
de sua época, analisadas partindo do ponto de vista dialético. envolvimento nas lutas e tensões, pois, como ele próprio a rma
(2011a, p. 414), não existe sujeito revolucionário se não estiver
envolvido com a luta revolucionária, pois a capacidade considerarmos que nos dão os subsídios necessários para nos
revolucionária não é do sujeito individual, mas a associação com aprofundarmos na categoria Formação Omnilateral e sua
outros que queiram. Por isso, é necessário considerar a proposição da Escola Unitária. Passaremos, ainda que de forma
organicidade do pensamento de Gramsci, pois leva em conta o breve, ao estudo das categorias Vontade Coletiva, Intelectual
movimento dialético da realidade histórica, das relações sociais, Orgânico, Partido, Estado, Bloco Histórico, Guerra de Movimento e
sem desconsiderar simultaneamente a estabilidade de alguns Guerra de Posição.
elementos, pois enxergava a importância de saber “distinguir os Para compreendermos tais categorias, é preciso considerar que a
movimentos orgânicos (permanentes) dos assim chamados de organização do trabalho está diretamente vinculada ao modo de
conjuntura (ocasionais, fenomênicos)” (GRAMSCI, 2011b, p. 36) vida social, a qual sofre um processo de adaptação psicofísica, pois
para o desenvolvimento de princípios metodológicos de amplo o modo de vida social se adequa psicológica e sicamente à forma
alcance. de trabalho que se estabelece e, para isso, é necessário que essa
Sendo assim, Gramsci não limita sua preocupação com a combinação torne-se hegemônica, por isso, Gramsci a rma que “a
formação humana a uma educação meramente no âmbito escolar, hegemonia nasce da fábrica” (2007, p. 247). Para o
mas em todos os espaços da vida social. Podemos veri car isso em estabelecimento dessa hegemonia, a classe dirigente faz uso da
todas as propostas formativas que fez durante sua vida, além de força coerciva repressiva ou ideológica, pois, para exercer a
suas considerações sobre a educação de seus familiares nas cartas hegemonia, “necessita apenas de uma quantidade mínima de
que escreveu no cárcere. intermediários pro ssionais da política e da ideologia” (GRAMSCI,
Nesse sentido, para compreendermos melhor a proposição de 2007, p. 248). Tal força, repressiva ou ideológica, será determinada
formação no arcabouço teórico gramsciano, seria necessário termos pelo modo como a sociedade se organiza.
uma visão mais completa de sua obra e compreendermos, ainda A Hegemonia está diretamente articulada com o momento
que minimamente, as categorias por ele formuladas. Pudemos determinante e das características das sociedades para a emersão
elencar algumas categorias que consideramos de fundamental desta, por isso, Gramsci, ao fazer a leitura da sociedade italiana e
importância no bojo de seu pensamento e que servem de base para russa de seu tempo, consegue, em sua experiência teórico-prática,
todas as outras elaborações, se vistas estando atentos à relação aferir a diferença estrutural entre a realidade das sociedades e dos
dialético-orgânica entre estas e os temas e conceitos por ele estados do Ocidente e do Oriente, guradas pela Itália e pela
elaborados, já que a engendrada organicidade de seu pensamento Rússia. Para Gramsci, essa diferença não estava apenas na área
torna difícil tratar uma categoria desvencilhada das outras. Dentre geográ ca que essas sociedades ocupavam no mundo, mas no nível
essas categorias, elegemos Hegemonia e Filoso a da Práxis, por de organização e de interação entre a Sociedade Política e a
Sociedade Civil destas. Gramsci organiza suas aferições sobre o Estado e a Política no
Ademais, pouco antes de ir para a prisão, Gramsci se defrontou Caderno 1344, no qual explicita o que consegue identi car nas
com duas questões que cremos que o motivaram a buscar obras de Maquiavel45, mormente O Príncipe, algumas categorias
compreender o teor das relações entre Estado e Sociedade que que, contrastadas com a sua realidade, vão levar a uma nova leitura
di cultavam a possibilidade revolucionária, quais sejam, a tese da da estrutura social e do Estado, além do desenvolvimento de
43
Frente Única amplamente rechaçada pelo PC Russo e Italiano, nas diversas categorias que levarão a uma nova perspectiva
guras de Stalin e Togliatti, respectivamente, e a Questão revolucionária. Na esteira do renascentista orentino, Gramsci
Meridional, um estudo que parte das divergências entre norte e sul desenvolve o Caderno, utilizando-se da mesma estratégia: expõe
italiano, isto é, camponeses e operários, ambas con uem no suas contribuições a partir da análise de eventos históricos, cujas
tocante à unidade da classe subalterna para o combate lições foram expostas dentro de uma escrita dialética que, devido à
revolucionário. Por isso, Gramsci, ao se debruçar sobre tais censura do cárcere, parecem controversas, mas que têm como
questões, encontra diversos elementos que no processo de objetivo servir de guia para a classe revolucionária.
desvelamento conectam-se com a realidade e o conduzem a um O Príncipe, escrito em 1513, quando a Itália se encontrava em
tratamento mais apurado de cada categoria, ampliando a riqueza do um cenário de constantes con itos internos, no qual Maquiavel, ao
seu arcabouço teórico, sem perder de vista a unidade orgânica que expor como se conquista e se perde um principado, faz
buscava atingir no campo teórico e prático revolucionário. recomendações para que o condottiero46 ideal, que representa a
Nesse sentido, no cárcere, Gramsci, guiado pelo materialismo vontade coletiva, personi que-se historicamente e, como a rma
histórico-dialético, buscava desvelar as relações de força que Gramsci (2011b, p. 14), conduza “um povo à fundação de um novo
circundam o aparelho estatal, fundamentando-se, sobretudo, em Estado”47. Tais recomendações caracterizam a obra do autor
um autor que, além de tentar retratar sua época, trouxe à tona orentino como o fundamento da ciência política e do Estado
diversos elementos de compreensão da estrutura social e do moderno.
processo de fundação, expansão e extinção do Estado ou dos Com essa obra, Maquiavel foi bastante criticado pelo teor de
Estados na tela do Renascimento. Trata-se de Maquiavel que, como suas a rmações, mormente sobre a capacidade de adaptar-se e
diplomata orentino, teve a possibilidade de viver e assistir a uma saber tirar proveito das situações, ainda que adversas, para atingir
sucessão de eventos, conquistas e derrotas dos estados da um objetivo, cabendo diversas interpretações sobre as reais
península italiana, a qual, desde a dissolução do Império Romano, intenções de seus escritos, o que lhe valeu inclusive o título
tornou-se palco de disputas e de batalhas internas. pejorativo de “maquiavélico” para referir-se a uma postura
dissimulada e sem escrúpulos. Contudo, Gramsci (2011b)
compartilha da ideia de que esse orentino escrevera para o povo e época, a monarquia absoluta era “uma forma de regime popular
não para os governantes, pois estes últimos já dispunham de seus que se apoiava nos burgueses contra os nobres e também contra o
conselhos, por isso adverte que: clero”, ou seja, tinha em seu interior uma relação com as massas.
Maquiavel tenha em vista “quem não sabe”, que ele pretenda promover Buscando também trilhar o caminho para um Estado popular, que,
a educação política de “quem não sabe” [...] de quem deve reconhecer por sua vez, tratava-se da sociedade regulada49, Gramsci (2011b, p.
como necessários determinados meios, ainda que próprios dos tiranos,
porque deseja determinados ns. […] quem é que “não sabe”? A classe 58) a rma que “Esta posição da política de Maquiavel repete-se
revolucionária da época, o povo e a nação italiana […]. Pode-se supor
para a loso a da práxis [...] desenvolvendo uma teoria e uma
que Maquiavel pretenda convencer estas forças da necessidade de ter
um líder que saiba o que quer e como obter o que quer. (GRAMSCI, técnica da política que possam servir às duas partes em luta,
2011b, p. 58)
embora se creia que elas terminarão por servir, sobretudo, à parte
Ademais, Maquiavel termina seu opúsculo com uma exortação que ‘não sabia’”, ou seja, a massa, que tem como resultado imediato
para que o príncipe novo uni casse a Itália não somente geográ ca, “romper a unidade baseada na ideologia tradicional [...], sem a qual
mas, sobretudo, politicamente, isto é, pela uni cação da con ança e a força não poderia adquirir consciência de sua própria
de uma vontade coletiva e, assim, a libertasse das invasões personalidade”.
estrangeiras e estabelecesse a paz interna entre os estados, Gramsci busca compreender as diversas relações de força que
colocando-se, assim, na posição de povo que também sofria com as circundam o Estado moderno, com o intuito de também fornecer o
48 conhecimento necessário “àqueles que não sabem”, a classe
constantes oscilações de poder e de instabilidade social . O autor
orentino, na verdade, buscou socializar o que sabia, pois, de revolucionária, pois, “enquanto existir o Estado-classe não pode
acordo com Gramsci (2011b, p. 57), “a doutrina de Maquiavel não existir a sociedade regulada, a não ser por metáfora” (GRAMSCI,
era [...] puramente livresca [...], o seu estilo [...] é estilo de homem 2011b, p. 223). Essas relações que ocorrem entre a estrutura e a
de ação, de quem quer induzir à ação; é estilo de ‘manifesto’ de superestrutura determinam o tipo de Estado que Gramsci classi ca
partido [visto que as] normas de Maquiavel para a atividade política em dois, o Estado do Oriente e do Ocidente que são assim
aplicam-se, mas não se declaram”. denominados pela relação de preponderância entre o Domínio e a
Gramsci reconhece as limitações de Maquiavel devido ao Direção.
momento histórico em que viveu. Porém, consegue reconhecer em Ainda que nas sociedades pré-capitalistas as ditaduras feudais
sua obra alguns elementos que desenvolve à sua maneira ao necessitassem de algum consenso para legitimar-se, este consenso
contrapor ao seu contexto real, pois, tal como Maquiavel, o objetivo era imposto pelo Estado que era Clerical, ou seja, representado ou
do lósofo sardo era a conquista e a criação de um novo Estado, um fundido com a Igreja que, nesse dado momento histórico, tinha a
Estado do “povo”, pois, segundo Gramsci (2011b, p. 75), naquela função de Aparelho Ideológico do Estado, como a rma Althusser50,
ou seja, reproduzir a ideologia dominante, mas tinha sua ideologia 75) em um sujeito, um indivíduo que uni caria a Itália em um
assegurada preponderantemente pela coerção. Porém, na medida Estado soberano e absoluto, “um condottiero, que representa a
em que o capitalismo se desenvolveu nos países mais vontadecoletivaqueéformadaparaumdeterminado mpolítico”
industrializados e ocorria a laicização do Estado com o movimento (GRAMSCI, 2011b, p.13). Gramsci, que vive em um momento em
iluminista e a Revolução Francesa, “a fórmula pela qual ‘a religião é que a sociedade civil se organiza, com sua visão coletiva de
uma questão privada’ radicou-se como forma popular do conceito formação não somente da vontade coletiva, mas sobretudo, do
de separação entre Igreja e Estado” (GRAMSCI, 2011b, p. 103). sujeito coletivo, a rma que:
Dessa forma, a função hegemônica passa da condição de imposição O moderno príncipe, o mito-príncipe não pode ser uma pessoa real, um
pública para adesão privada voluntária. Desse modo, na medida em indivíduo concreto, só pode ser um organismo; um elemento complexo
de sociedade no qual já tenha tido início a concretização de uma
que ocorreu o desmembramento da Igreja e de outras instituições e vontade coletiva reconhecida e a rmada parcialmente na ação. Este
a laicização do Estado, que era absolutista, houve uma socialização organismo já está dado pelo desenvolvimento histórico e é o partido
político, a primeira célula na qual se sintetizam germes de vontade
política que se manifestou com a formação de sujeitos de massa, coletiva, que tendem a se tornar universais e totais. (GRAMSCI, 2011b, p.
16)
como a criação de partidos, sindicatos, além do sufrágio universal.
A técnica política moderna mudou completamente após 1848, após a Dessa feita, embora essas organizações não façam parte
expansão do parlamentarismo, do regime associativo sindical e diretamente da sociedade política, ou Estado, no sentido restrito,
partidário, da formação de vastas burocracias estatais e ‘privadas’
(político-privadas, partidárias e sindicais), bem como das este estabelece com as primeiras uma relação de poder por, nesse
transformações que se veri caram na organização da polícia em sentido
momento de estabelecimento de “ideais liberais” e de “direitos e
amplo, isto é, não só do serviço estatal destinado à repressão da
criminalidade, mas também do conjunto das forças organizadas pelo liberdades democráticas”, exigir que o Estado busque o consenso
Estado e pelos particulares para defender o domínio político e
econômico das classes dirigentes. Neste sentido, inteiros partidos dos governados e estabeleça um novo tipo de governo, buscando
‘políticos’ e outras organizações econômicas ou de outro gênero devem obter dos organismos sociais o consenso para a manutenção do
ser considerados organismos de polícia política, de caráter investigativo
e preventivo. (GRAMSCI, 2011b, p. 79) status quo. Pois, é de um “consenso organizado” que o “Estado tem,
pede e educa o consenso através das associações políticas e
Nessa trilha, a Sociedade civil emergiu e se estabeleceu,
sindicais” (GRAMSCI, 2011b, p. 119).
transformando os aparelhos ideológicos do Estado em aparelhos
Nesse sentido, a ideologia tem um papel determinante, e
privados de hegemonia, impondo a agudização da luta pela
Gramsci denomina a Sociedade Civil como espaço dos aparelhos
hegemonia. Nessa tela, Gramsci supera a visão de Maquiavel que,
privados de hegemonia, ou seja, o espaço no qual a ideologia se
por viver no momento em que os Estados prósperos eram os
consolida, como mediadora entre a estrutura, ou seja, o modo de
absolutistas, aguardava a personi cação histórica do tão esperado
produção e a superestrutura, na qual se situam os diversos
Príncipe, do “hipotético homem providencial” (GRAMSCI, 2001b, p.
complexos da práxis humana e destaca-se o Estado. Contudo, para Gramsci, assim como os autores clássicos do marxismo (Marx e
Gramsci, Sociedade Civil não se trata diretamente de um sinônimo Engels), certi ca que o Estado (burguês) existe como produto da
de sociedade burguesa, por isso, detém uma visão dialética da divisão social de classes e tem como função conservar e reproduzir
ideologia. Assim, não exatamente a ideologia preponderante é ou essa divisão. Desse modo, Gramsci empreende suas contribuições a
deve ser a ideologia burguesa, vislumbrando, assim, a possibilidade partir da Sociedade Civil, a qual considera como espaço de
de sobreposição da ideologia proletária nesse âmbito que poderá manifestação e reprodução da hegemonia, na qual os grupos
re etir diretamente na Sociedade Política, ou seja, através da buscam, através de uma correlação de forças, ganhar aliados para
Sociedade Civil e suas instituições onde se formam os sujeitos e os ocupar posições nas direções políticas, vislumbrando a aquisição
intelectuais que colaboram nas atividades da superestrutura do consenso geral.
política. Desse modo, para Gramsci, a transição se estabelece como Nesse sentido, Gramsci compreende o Estado como a articulação
processo revolucionário marcado pela eliminação progressiva dos orgânico-dialética entre a Sociedade Civil e Política quando assenta
instrumentos de coerção, por uma longa marcha dessas instituições que:
da Sociedade Civil e não somente pelo embate frontal defendido Esse estudo também leva a certas determinações do conceito de Estado,
pelos maximalistas51, no intuito de que a Sociedade Política seja que, habitualmente, é entendido como sociedade política (ou ditadura,
ou aparelho coercitivo, para moldar a massa popular segundo o tipo de
assimilada pela Sociedade Civil. Por isso, defende a subsunção da produção e a economia a um dado momento); e não como equilíbrio da
sociedade política com a sociedade civil (ou hegemonia de um grupo
Sociedade Política, pois “a racionalidade historicista do consenso
social sobre toda a sociedade nacional, exercidas através de
numérico (dos votos no regime parlamentarista) é organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas,
etc.). (GRAMSCI, 2005b, p. 84).
sistematicamente falsi cada pela in uência da riqueza” (GRAMSCI,
2011b, p. 83) e em outros regimes não formados segundo os Desse modo, a Sociedade Civil se apresenta como espaço das
padrões da democracia formal, é orientada para uma sociedade organizações de difusão ideológica, e a Sociedade Política como
genuinamente igualitária tal como os soviets. Segundo Gramsci mecanismos burocráticos de manutenção do monopólio legal da
(2011b, p. 83), repressão dominante que mantém uma relação de reciprocidade
[...] o consenso não tem no momento do voto uma fase nal, muito ao constante. Estas identi cam-se e distinguem-se, em uma interação
contrário. Supõe-se o consenso permanentemente ativo, a ponto de que cooperativa, na qual cada uma exerce uma força diferente: a
aqueles que consentem poderiam ser considerados como “funcionários”
do Estado52 e as eleições como um modo de recrutamento voluntário de primeira exerce preponderantemente a força hegemônica; a
funcionários estatais de certo tipo, que em certo sentido poderia segunda, a força coerciva, que assegura a disciplina daqueles que
vincular-se (em diversos planos) ao self-government.
não consentem a dominação hegemônica espontaneamente, pois
“quanto mais forte é o aparelho policial (repressor interno) tanto
mais fraco é o exército e que, quanto mais fraca (relativamente subjetivos, ou seja, pelas relações econômicas que independem da
inútil) é a polícia, tanto mais forte é o exército” (GRAMSCI, 2011b, p. vontade humana e mantêm seu fundamento na natureza e aqueles
34). que incidem diretamente na ação dos grupos sociais de acordo com
Nesse sentido, a esfera política apresenta, para Gramsci, uma o nível de consciência e coesão destes, pois, nesse momento, é
dependência da economia, pois não considera a política acima da determinante o “grau de homogeneidade, de autoconsciência e de
economia, nem esta isolada das relações sociais, mas a economia organização alcançado pelos vários grupos sociais” (GRAMSCI,
como a estrutura da política que se expressa preponderantemente 2011b, p. 40-41). Dentre esses grupos, destaca-se o Partido, que
na superestrutura social. Tal como Marx a rma que o homem não tem como “tarefa elaborar dirigentes quali cados; são a função de
produz apenas objetos materiais, mas a si mesmo, Gramsci afere massa que seleciona, desenvolve, multiplica os dirigentes
que a economia não produz apenas objetos, mas relações sociais, necessários para que um grupo social de nido se articule e se
quando a rma que “as estruturas e as superestruturas formam um transforme, de um caos confuso, em exército político
bloco histórico, isto é, o conjunto complexo e contraditório das organicamente preparado” (GRAMSCI, 2011b, p. 85).
superestruturas é o re exo do conjunto das relações sociais de Contudo, o Partido, que dará a direção moral e espiritual à classe
produção” (2011a, p. 250). Ademais, Gramsci, com essa a rmação, revolucionária, não poderá se identi car ou fazer parte do aparelho
deixa claro que não compreende a economia apenas como a estatal, como assevera Gramsci (2010, v.2, p. 230), pois, ao a rmar
objetivação de coisas, objetos, mas o fundamento das relações que o partido dominante não se confunde organicamente com o
sociais, situando-as dentro da totalidade dialético-orgânica e não governo, mas é instrumento para a passagem da sociedade civil-
como uma esfera isolada. Assim, assume a análise marxiana e política à sociedade regulada, preocupa-se para que não ocorra o
delineia o viés ontológico em seus escritos por situar a estrutura mesmo que ocorreu na Rússia, que, ao fundir ou confundir a
econômica, na qual está contido o trabalho, como “o ponto de ideologia do Partido com a do Estado, e esse último que deveria ser
referência para o novo mundo em gestação” (GRAMSCI, 2001b, p. apenas um instrumento de transição para “reorganizar a estrutura e
261), como aquela que determina a superestrutura, ou seja, a as relações reais entre os homens e o mundo econômico ou da
economia que determina a política que, em sua medida, determina produção” (GRAMSCI, 2011b, p. 286), perpetuou-se, tomando
a economia. rumos desastrosos não somente para o cenário revolucionário
Segundo Gramsci (2011b, p.40), “com base no grau de russo, mas para o movimento revolucionário como um todo. Desse
desenvolvimento das forças materiais de produção, têm-se os modo, Gramsci a rma que:
agrupamentos sociais eaposição que os sujeitos ocupam na [...] tal “estatolatria” não deve ser abandonada a si mesma, não deve,
produção”. Esses sujeitos são in uenciados por fatores objetivos e especialmente, tornar-se fanatismo teórico e ser concebida como
“perpétua”: deve ser criticada, exatamente para que se desenvolvam e
se produzam novas formas de vida estatal, em que a iniciativa dos
Desse modo, a sociedade política deverá ser eliminada e
indivíduos seja “estatal”. (2011b, p. 280).
simultaneamente superada com o estabelecimento da sociedade
Nesse sentido, a iniciativa dos indivíduos deve partir de uma regulada por:
concepção de liberdade, universalidade, de práxis que se direciona
[...] uma classe que se ponha a si mesma como passível de assimilar toda
conscientemente para a totalidade das relações subjetivas e a sociedade e, ao mesmo tempo, seja realmente capaz de exprimir este
processo, levar à perfeição esta concepção do Estado e do direito, a
objetivas, que, como assevera Gramsci (2011b, p. 41), é o momento
ponto de conceber o m do Estado e do direito, tornados inúteis por
“em que se adquire a consciência de que os próprios interesses terem esgotado sua missão e sido absorvidos pela sociedade civil.
(GRAMSCI, 2011b, p. 271)
corporativos, em seu desenvolvimento atual e futuro, superam o
círculo corporativo, de grupo meramente econômico, e podem Nesse sentido, na sociedade regulada não haverá mais divisão
tornar-se os interesses de outros grupos subordinados”. Desse de classes e o Estado moderno será absorvido pelos organismos
modo, “assinala a passagem nítida da estrutura para a esfera das associados, que extinguirão sua função estatal pela ação consciente
superestruturas complexas, a fase em que as ideologias geradas e consensual da nova sociedade através do compartilhamento
anteriormente se transformam em ‘partido’” (GRAMSCI, 2011b, p. decisório dos interesses coletivos, criando, portanto, uma:
41). [...] identi cação orgânica entre indivíduos e Estado [dos conselhos], de
Gramsci destaca a possibilidade do salto da passagem do modo que “todo indivíduo é funcionário”, não na medida em que é
empregado pago pelo Estado e submetido ao controle “hierárquico” da
momento egoístico-econômico ao ético-político de amplitude burocracia estatal, mas na medida que “agindo espontaneamente”, sua
coletiva que surge pela formação da consciência, possibilitando a ação se identi ca com os ns do Estado [de novo tipo]. (GRAMSCI,
2011b, p. 282)
saída da passividade para a liberdade, pela superação dos
interesses imediatos de pequenos grupos à dimensão universal, Nesse novo Estado, pois, haverá “uma unidade orgânica entre
dada a articulação entre subjetividade e objetividade, movimento teoria e prática, entre camadas intelectuais e massas populares,
que Gramsci denomina de “catarse”, o qual, após a elevação das entre governantes e governados” e não uma simples “justaposição
consciências do senso comum à consciência losó ca, cria os mecânica de ‘unidades’ singulares sem conexão entre si” (GRAMSCI,
sujeitos necessários para representar os interesses coletivos das 2011b, p. 92). Essa “unidade do trabalho manual e intelectual [fará]
classes subalternas para, en m, formar um novo bloco histórico, uma ligação mais estreita entre o poder legislativo e o poder
como bem explicita ao a rmar que tal movimento pode: executivo (fazendo com que os ‘funcionários’ eleitos se interessem
não só pelo controle, mas também pela execução dos negócios de
[...] indicar a passagem do momento meramente econômico (ou
egoístico-passional) ao momento ético-político, isto é, a elaboração Estado)”53 (GRAMSCI, 2011b, p. 89).
superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens. Isto
signi ca, também, a passagem do “objetivo ao subjetivo” e da Conforme Coutinho (1999), o antieconomicismo54 com que
“necessidade à liberdade”. (GRAMSCI, 2011a, p. 314) Gramsci combate os maximalistas e o positivismo da Segunda
Internacional o faz desenvolver a teoria política marxista necessária mudança de guerra manobrada ou de movimento (assalto
para a leitura da sociedade atual e apontar estratégias para a luta revolucionário) para guerra de posição (estabelecimento de uma
proletária. Pois o avanço do capitalismo e a consolidação da nova hegemonia) em busca da fórmula da frente única55, pela
Sociedade Civil, leva Gramsci a aferir a complexidade desta e conquista de espaços e posições junto aos organismos da
a rmar que “as superestruturas da sociedade civil são como o Sociedade Civil, para, posteriormente, consolidar a tomada do
sistema de trincheiras da guerra moderna” (2011b, p. 73). Nesse poder (guerra de movimento), em uma interação constante dos
espectro, no contexto de transição mundial para a “democracia intelectuais revolucionários com a classe trabalhadora, em um
burguesa”, percebe que se formam dois tipos de Estados, e os intenso processo de formação. Segundo Gramsci (2011a, p. 221), “o
denomina de Oriente e Ocidente, apontando, desse modo, duas elemento popular sente, mas nem sempre compreende ou sabe; o
estratégias distintas de conquista respectivamente: a guerra de elemento intelectual sabe, mas nem sempre compreende e, menos
movimento e a guerra de posição. Na primeira, a estratégia do ainda, sente”.
assalto revolucionário é aplicada com sucesso no Oriente tal como Para tanto, Gramsci amadurece sua ideia de que os Conselhos de
na Rússia, porque a relação entre Estado e Sociedade Civil era fraca, Fábrica são a molécula da revolução, ampliando o conceito de que
dado que essa última “é primitiva e gelatinosa” (2011b, p. 262), e a os trabalhadores não devem somente dominar a fábrica, a
força do Estado e a debilidade da Sociedade Civil impõe o ataque produção, mas se convence de que, para tornar-se dirigente, a
frontal. Essa estratégia já não seria possível nas sociedades ditas classe trabalhadora, além de dominar a produção econômica, deve
ocidentais, dado que a relação entre Estado e Sociedade Civil se buscar consolidar a direção político-cultural ou espiritual para o
apresenta mais homogênea e uniforme. Conforme Gramsci (2011b, estabelecimento da hegemonia proletária, buscando, sobretudo,
p. 262), “havia uma justa relação e, ao oscilar o Estado, podia-se conhecer as mediações da produção e da reprodução econômico-
imediatamente reconhecer uma robusta estrutura da sociedade política e a realidade que deseja transformar, que, conforme
civil”, dada a “democracia política (burguesa)”, na qual a Sociedade Gramsci (2011c, p. 44), “trata-se essencialmente de ‘capacidade
Civil tem sua participação através de suas instituições. Se, no dirigente’ da classe econômica, de seu espírito de iniciativa e de
Estado totalitário, há uma fratura exposta entre a sociedade política organização” e continua a rmando que “se estas qualidades faltam
e a sociedade civil, no qual a primeira exerce o domínio sobre a e o mecanicismo econômico se baseia essencialmente na
segunda, no Estado liberal, essa fragmentação ocorre sutilmente exploração selvagem das classes trabalhadoras e produtoras,
com o esvaziamento político em nome da liberdade e da nenhum acordo internacional pode corrigir a situação” (GRAMSCI,
neutralidade deste dada a sua autonomia de governo. Por isso, 2011c, p. 44). Essa assertiva de ne a posição totalmente
assevera que, nas sociedades ocidentais, seria necessária a revolucionária de Gramsci, que não se reservava a uma visão
passiva da realidade, desenvolvendo estratégias que aos Entretanto, Gramsci contrapõe-se aos Estados de transição, que
maximalistas podiam parecer reformistas, por meio das quais se terminam por tornarem-se absolutistas e perpetuam-se no domínio
tornou alvo de apropriações indevidas da classe dominante, que as e no poder, tornando-se inclusive fanatismo teórico, o que não
utilizam deturpadamente para manter sua hegemonia. permite cumprir, todavia, seu papel de agente de fomento da
Dessa forma, a categoria Hegemonia se de ne como o modo de revolução.
pensar homogêneo que consolida poder e imobiliza a organização Nesse sentido, Gramsci defende que o Partido, que serve como
política pela direção espiritual e moral, que, dentro de uma guia da revolução, não deva integrar ou identi car-se com o Estado
sociedade de tipo oriental, manifesta-se predominantemente como para não servir de instrumento de alienação, por confundir a
força coerciva repressiva e, no Ocidente, como força ideológica. ideologia do Partido com a do Estado e perder o único mecanismo
Conforme Gramsci (2011b, p. 95), de crítica a esse último, que poderia manter a direção rumo à
[...] o exercício “normal” da hegemonia […] caracteriza-se pela sociedade regulada. Assim, adverte que,
combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado,
[...] nas sociedades em que a unidade histórica de sociedade civil e
sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário,
sociedade política for entendida dialeticamente (na dialética real e não
tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria,
só conceitual), e o Estado for concebido como capaz de ser superado
expresso pelos chamados órgãos da opinião pública – jornais e
pela “sociedade regulada”: nesta sociedade, o partido dominante não se
associações.
confunde organicamente com o governo, mas é instrumento para a
passagem da sociedade civil-política à “sociedade regulada”, na medida
Desse modo, Hegemonia não é sinônimo de domínio, tendo em em que absorve ambas em si, para superá-las (e não para perpetuar sua
vista que hegemonia se caracteriza como direção (espiritual). contradição). (GRAMSCI, 2010, p. 230)

Assim, um Estado pode ter o domínio, o governo nas mãos, mas não Porém, o grande desa o revolucionário são as sociedades ditas
ter a direção, como ocorre nos Estados ditatoriais, nos quais a ocidentais, que, cada vez mais se consolidam ao defenderem a
guerra de movimento funciona com sucesso como estratégia “socialização política”, pela aclamação à participação da sociedade
revolucionária, já que a Sociedade Civil não se encontra em civil. Dessa feita, há uma coesa relação entre Sociedade Civil e
consenso com o Estado. E, pela sua debilidade, exige um processo Sociedade Política, nas quais o grupo dominante se utiliza das
de transição, o qual, para atingir o estágio de autorregulação, passe- instituições, como a escola e os meios de comunicação, para manter
se por um período de fortalecimento do Estado-coerção (ditadura seu domínio ideológico sobre as massas, unindo harmonicamente a
do proletariado) somente na medida em que se produzam novas coerção ideológica à coerção repressiva, conforme Gramsci (2011b,
formas de vida e de autonomia político-cultural e estabeleça a p. 284), “a escola como função educativa positiva e os tribunais
democracia socialista através de uma “reforma moral e intelectual” como função educativa repressiva e negativa são as atividades
capaz de conduzir à extinção do próprio Estado, superando-o, estatais mais importantes neste sentido”, o que resulta no
conservando apenas os organismos sociais de autogoverno.
fortalecimento do Estado que consegue manter o domínio e a dimensões desconexas, mas que mantêm uma relação de
direção. Para a transformação dessa realidade, Gramsci, ao buscar reciprocidade, determinação recíproca e manutenção hegemônico-
compreender a realidade italiana, a qual comparou a um “tecido ideológica, formando no contexto hodierno, um sistema
gasto e lacerado”, propõe um trabalho de longo prazo, de formação sóciometabólico entre capital, trabalho e Estado, como a rma
político-cultural em busca da ampliação do campo hegemônico Mészáros (2005).
proletário para que chegue o momento em que o Estado perca o Nesse sentido, deve-se entender o Estado para “além do
domínio porque não tem mais a direção. Para conquistar o poder, é aparelho de governo, também [d]o aparelho ‘privado’ de
necessário conquistar a direção e, assim, a supremacia dos grupos hegemonia ou sociedade civil” (GRAMSCI, 2011b, p. 254-255), dada
subalternos possa se manifestar pelo domínio e direção intelectual a relação equilibrada entre Estado e Sociedade Civil. Dessa feita,
e moral, que, segundo Gramsci, con gura-se como “renovação Gramsci adverte para o momento adequado de possibilidade de
intelectual e moral”, pois somente se “vence uma guerra quando desagregação do bloco dominante, o qual, segundo o lósofo sardo,
[se] prepara [os quadros necessários] de modo minucioso e técnico não ocorrerá apenas pelas crises econômicas, mas pela articulação
em tempo de paz” (GRAMSCI, 2011b, p. 24). A luta pela hegemonia da crise estrutural do modo de produção, aliada à crise político-
é uma tarefa pedagógica, pois: ideológica ou crise de Hegemonia, a qual Gramsci denomina de
O elemento decisivo de cada situação é a força permanentemente crise orgânica.
organizada e há muito tempo preparada, que se pode fazer avançar Contudo, para a classe dos dominados subverter as relações
quando se julga que uma situação é favorável (e só é favorável na
medida em que esta força exista e seja dotada de ardor combativo). Por hegemônicas e tornar-se dirigente, é necessário oferecer a
isso, a tarefa essencial consiste em dedicar-se de modo sistemático e consciência necessária para formar os sujeitos políticos coletivos,
paciente a formar esta força, desenvolvê-la, torná-la cada vez mais
homogênea, compacta e consciente de si. (GRAMSCI, 2011b, p. 46 – visando prepará-los com “qualidades excepcionais de paciência e
grifos nossos).
espírito inventivo” (GRAMSCI, 2011b, p. 255) e muni-los da vontade
Nessa esteira, Gramsci (2011a, p. 250) conceitua Bloco Histórico e da capacidade política para que percebam os momentos de crise
como resultado dialético de reciprocidade entre Estrutura e como momentos de oportunidade de promoção do pensamento
Superestrutura, considerando Estrutura as relações de produção hegemônico subalterno e das transformações estruturais
material, o modo e formas de produzir, e a Superestrutura a necessárias para fazer ruir o sistema vigente, para que estes tomem
dimensão político-organizativa composta pela Sociedade Política, para si os problemas da “nação”, tornando-se classe operária
que emerge da Sociedade Civil e com ela mantém uma relação nacional, isto é, coesa, com a inteira participação dos indivíduos,
recíproca. Devemos observar a relação entre Estrutura utilizando-se do imediato para atingir o total. A transformação da
eSuperestrutura em uma dimensão dialético-orgânica e não como classe dominada em dirigente antes da efetiva tomada do poder é a
condição primeira da estratégia gramsciana de transição ao modo, vontade como “consciência operosa da necessidade
socialismo, pois “a guerra de posição uma vez vencida, é vencida histórica, como protagonista de um drama histórico real e efetivo”
de nitivamente” (GRAMSCI, 2011b, p. 255). (GRAMSCI, 2011b, p. 17), que é um processo que ocorre
Para tanto, surge a necessidade de um organismo social capaz individualmente, em cada consciência, mas move o sujeito em favor
de organizar a classe subalterna. Gramsci atribui esta tarefa ao da coletividade.
Partido, o qual, para além de uma legenda parlamentar com Dessa feita, a vontade coletiva não é concebida como uma ideia
nalidade “representativa”, deve ter a função de um organismo que ou sentimento comum que movimenta grupos em total desconexão
possa protagonizar a gura do novo príncipe, “aquele determinado com a realidade concreta, mas, segundo Coutinho (1999, p. 171), “é
partido que pretende fundar um novo tipo de Estado [Estado a necessidade elevada à consciência e convertida em práxis
Operário]” (GRAMSCI, 2011b, p. 59), que agrega e aglutina sujeitos transformadora”, pois é determinada concretamente no nível dos
com interesses imediatos comuns, o qual os sintetiza e os eleva a interesses materiais. Essa vontade coletiva converte-se
um interesse universal superior. Por conseguinte, tem como papel voluntariamente ao universal, ao conjunto dos interesses universais
ser uma escola revolucionária, a qual fomenta a vontade coletiva ou coletivos, pela elevação e formação dos sujeitos coletivos. É
transformadora, cumprindo a tarefa de contribuir para a formação nesse sentido que Gramsci aponta para a necessidade de dar aos
da consciência dos subalternos, oferecendo os elementos teóricos movimentos espontâneos uma direção consciente, visando:
organizativos capazes de vincular sua luta com a dos demais grupos considerar os sentimentos espontâneos da massa, porém,
subalternos como a rma Tonet (2005), superando as tendências educando-a em busca de superar os fragmentos corporativistas;
corporativistas ou egoístico-passionais, individualistas, uni car a espontaneidade e a direção consciente na disciplina do
incorporadas pelo sistema vigente, contribuindo para a formação objetivo universalizante, transformando-o em algo homogêneo,
da vontade coletiva nacional-popular que susterá as colunas da pois, “[...] este elemento de ‘espontaneidade’ não [pode ser]
sociedade regulada. O Partido não é, pois, um organismo negligenciado, menos ainda desprezado [mas] educado, orientado,
corporativo, mas universalizante, catártico, que tanto auxilia a puri cado de tudo o que de estranho podia afetá-lo, para torná-lo
classe revolucionária a elevar-se da necessidade à liberdade, homogêneo em relação à teoria moderna, mas de modo vivo,
quanto capacita os indivíduos membros para atuar livre e historicamente e ciente” (GRAMSCI, 2011b, p. 196).
conscientemente na sociedade, pela formação da vontade, não Esse elemento de espontaneidade, por meio da consolidação da
como um sentimento direcionado por um impulso ou desejo consciência teórica, deve ser capaz de impulsionar a ação
individual, voluntarista e permeado da subjetividade absoluta, mas consciente e consequentemente alavancar uma renovação política,
facultada por razões da aquisição da vontade coletiva e, desse cultural, econômica e social, isto é, “criadora de valores históricos e
institucionais, fundadora de Estados” (GRAMSCI, 2011b, p. 196). (2011a, p. 248), “trata-se, em suma, de ter uma Reforma e um
Nessa esteira, Gramsci assevera que: Renascimento ao mesmo tempo”, as classes subalternas não
O moderno príncipe deve e não pode deixar de ser o anunciador e o conseguirão elevar-se à classe dirigente.
organizador de uma reforma intelectual e moral, o que signi ca, de Nessa trilha, para a completa socialização dos bens produzidos e
resto, criar o terreno para um novo desenvolvimento da vontade coletiva
nacional-popular no sentido da realização de uma forma superior e total a eliminação completa da divisão social, ou seja, o m da divisão
de civilização moderna (GRAMSCI, 2011b, p. 18). entre governantes e governados, é indispensável eliminar, além da
Dessa forma, espontaneidade e consciência manifestam propriedade privada e o acúmulo das riquezas materiais, é preciso
concretamente a relação dialética entre objetividade e suplantar a apropriação elitista dos conhecimentos historicamente
subjetividade que, em uma síntese orgânica, formam a vontade produzidos pela humanidade e, consequentemente, da cultura.
coletiva capaz de subsidiar a reforma intelectual e moral necessária Para tanto, para a efetiva realização dessa reforma intelectual e
para a instituição de um Estado proletário, o qual “só o grupo social moral, o processo revolucionário necessita lançar mão dos agentes
que propõe o m do Estado e de si mesmo como objetivo a ser portadores da função dirigente e organizativa, educativa, isto é,
alcançado pode criar um Estado ético, tendente a eliminar as intelectual. Trata-se dos intelectuais, os quais historicamente
divisões internas de dominados, etc., e a criar um organismo social surgiram justamente como assalariados e auxiliadores do grupo
unitário técnico-moral” (GRAMSCI, 2011b, p. 285). dominante pelo fato de essa camada dominante ser minoritária e
Por conseguinte, Gramsci empreende suas elaborações em torno necessitar de uma estrutura administrativa e coercitiva para manter
da cultura e compreende o valor da fórmula da Frente Única , da 56 a exploração. Esses intelectuais executam essencialmente a
frente cultural, política e econômica como decisiva na luta dos atividade intelectual, mas, inversamente, na guerra de posição, têm
grupos subalternos, pois: um papel fundamentalmente análogo ao do Partido, que é dar
homogeneidade à consciência da classe a qual aderiram, rmando-
Parece-me que Ilitch57 havia compreendido a necessidade de uma
mudança da guerra manobrada, aplicada vitoriosamente no Oriente em se, conforme Coutinho (1999, p. 176), “como agentes de
1917, para a guerra de posição, que era a única possível no Ocidente, […] consolidação da vontade coletiva, de um novo bloco histórico”, que,
Parece-me este o signi cado da fórmula da frente única […]. Só que
Ilitch não teve tempo de aprofundar sua fórmula, mesmo considerando organicamente com o Partido, podem promover a direção
que ele só podia aprofundá-la teoricamente. (GRAMSCI, 2011b, p. 262)
intelectual hegemônica através de recursos formativos, como
Gramsci destaca, sobretudo, o caráter decisivo da batalha jornais, revistas ou uma proposta educativa de alcance das massas
cultural, pois sem uma nova cultura que possibilite a formação populares.
omnilateral, que una a profundidade intelectual do Renascimento Desse modo, para Gramsci, não existem não-intelectuais, pois
ao caráter popular de massa da Reforma, que, conforme Gramsci toda a atividade humana é teleologicamente orientada. Ainda que
nem todos os homens desempenhem na sociedade função subalternos, ainda que sua origem não seja das classes subalternas,
intelectual, todos têm a capacidade, em condições favoráveis, de como o próprio lósofo sardo, que se identi cou com a luta
desenvolvê-las, já que o Homo faber não se separa do Homo proletária e militou a vida inteira em favor desta, sem nunca em
sapiens, pois em “qualquer trabalho físico, mesmo no mais toda a sua vida ter operado uma máquina.
mecânico e degradado, existe um mínimo de quali cação técnica, Em suma, o intelectual orgânico é o político em ato, é aquele
isto é, um mínimo de atividade intelectual criadora” (GRAMSCI, que pretende realizar uma realidade ainda não realizada, o dever-
2010, p. 18). Gramsci de ne os intelectuais em dois grupos: os ser proletário, pois:
Intelectuais Tradicionais e os Intelectuais Orgânicos. O primeiro [...] pretende criar novas relações de força e, por isso, não pode deixar de
trata-se de uma categoria que pertence originalmente a momentos se ocupar com o “dever ser”. [Como] o político em ato é um criador [...],
não cria a partir do nada nem se move na vazia agitação de seus desejos
históricos já superados pelo desenvolvimento social, visto que e sonhos. Toma como base a realidade efetiva [...] que é uma relação de
esses intelectuais estão presos a uma formação econômica forças em contínuo movimento [...] movendo-se no terreno da realidade
efetiva, mas para dominá-la e superá-la, [porque] “dever ser” é algo
superada, sendo esses intelectuais seus representantes vivos. Por concreto [...], é interpretação realista e historicista da realidade. [Por
isso], não se pode esperar que um indivíduo ou um livro modi quem a
isso, voltam-se a manter o status quo, pois os ideais de tal momento realidade, mas só que a interpretem e indiquem a linha possível da ação.
ainda relacionam esses intelectuais com a realidade, chamam-nos (GRAMSCI, 2011b, p. 35)

ainda de eclesiásticos, pois deles parte uma concepção de moral, Nesse contexto, a luta pela conquista do novo Estado tem papel
de ciência e de justiça. Os Intelectuais Orgânicos, por sua vez, são determinante. O Estado é compreendido por Gramsci (2011b, p.
denominados como uma ou mais camadas de intelectuais, camada 330-331) como complexo de atividades práticas e teóricas sob o
essa criada organicamente por cada grupo ou classe social que dá domínio da classe dirigente, porém, nesse processo, quem mantém
homogeneidade e consciência à sua própria função. Caso a hegemonia não necessariamente são os governantes, pois estes
representem um grupo dominante, sua função é perpetuar a podem servir apenas para legitimar o processo. A classe dos
dominação; caso representem os grupos subalternos, sua função é dirigentes, em Gramsci, não necessariamente está correlacionada
auxiliar na formação da vontade coletiva para ns revolucionários. aos governantes, podendo esta ser da própria sociedade civil, das
Contudo, podemos perceber que todos os intelectuais são ou foram camadas médias como os especialistas em assuntos que
orgânicos, já que o termo se refere a quadros representativos: uns disseminam suas ideias nas diversas áreas do conhecimento, pois
são porque atualmente representam um grupo; outros foram “é este estrato intermediário que mantém ligação entre o grupo
porque representaram um grupo no passado. Porém, dirigente superior e as massas do partido e da população
compreendemos com Gramsci que o verdadeiro intelectual in uenciadas pelo partido” (GRAMSCI, 2004b, p. 369).
orgânico é aquele que representa os interesses dos grupos
Gramsci propõe a superação do Estado classe (2011b, p. 223- individualidade e coletividade, tendo como pressuposto a
224) e não apenas reformismos, corroborando com o que Marx transformação social. Como assevera,
(2010b) assevera em Glosas críticas marginais ao artigo ‘O rei da [...] o homem deve ser concebido como um bloco histórico de elementos
Prússia e a reforma social’, pois tem nitidez de que a ética do Estado puramente subjetivos e individuais e de elementos de massa e objetivos
ou materiais, com os quais o indivíduo está em relação ativa.
se limita a oferecer a educação para atender aos interesses Transformar o mundo exterior, as relações gerais, signi ca fortalecer a si
dominantes correspondentes às forças produtivas como forma de mesmo, desenvolver a si mesmo. (GRAMSCI, 2011a, p. 406)

controle. Defende, por essa via, um Estado de transição rumo a uma Nesse sentido, há também uma relação de reciprocidade
nova forma de sociabilidade humana, na qual será formado o entreaestruturaea superestrutura, sendo a natureza aestrutura, e o
homem coletivo que deve ser concebido pelo Intelectual Coletivo, espírito, a superestrutura humana, visto que, conforme Gramsci
uma escola de formação revolucionária, isto é, o Partido, e não um (2011a, p. 413), “o homem não entra em relações com a natureza
simples conformismo social estabelecido pelo Estado, pois sabe simplesmente pelo fato de ser ele mesmo natureza, mas
que: ativamente, por meio do trabalho e da técnica”, demarcando assim
A tarefa educativa e formativa do Estado, cujo m é sempre o de criar a aproximação de uma concepção ontológica tal como Lukács.
novos e mais elevados tipos de civilização, de adequar [conformar] a
Avançando nessa temática, Gramsci compreende que as relações
“civilização” e a moralidade das mais amplas massas populares às
necessidades do contínuo desenvolvimento do aparelho econômico de espontâneas são a expressão do folklore e podem manifestar-se
produção e, portanto, de elaborar também sicamente tipos novos de
humanidade. (GRAMSCI, 2011b, p. 23) como relações da cultura (educação, linguagem). Dessa forma,
Gramsci chama a atenção para o urgente “conhece-te a ti mesmo”
Todos esses elementos, o Estado, a Sociedade Política e a
(2011a, p. 94) como ponto de partida para a elaboração da
Sociedade Civil, juntos representam um determinado momento
consciência crítica, pela apreensão do produto histórico até então
histórico, que Gramsci denomina de Bloco Histórico – em outras
desenvolvido – consciência essa que o lósofo sardo chama de
palavras, a totalidade social. Podemos a rmar que a proposta
loso a, pelo salto do senso comum para a consciência losó ca.
gramsciana visa à superação do bloco vigente por um novo bloco,
Nas palavras do lósofo sardo,
no qual as sociedades civil e política não apenas mantenham uma
Conhecer a si mesmo signi ca ser si mesmo, ser o senhor de si mesmo,
relação recíproca, mas que a sociedade política seja dissolvida na diferenciar-se, elevar-se acima do caos, ser um elemento de ordem, mas
sociedade civil e desempenhem a mesma função, de direção da da própria ordem e da própria disciplina diante de um ideal. E isso não
pode ser obtido se também não se conhecem os outros, a história deles,
vida coletiva. a sucessão dos esforços que zeram para ser o que são, para criar a
Gramsci demarca a relação dialética entre a categoria Bloco civilização que criaram e que nós queremos substituir pela nossa.
Signi ca ter noção sobre o que é natureza e suas leis a m de conhecer
Histórico e sua compreensão de Homem, considerando esse último as leis que governam o espírito. É aprender tudo sem perder de vista a
nalidade última, ou seja, a de conhecer melhor a si mesmo através dos
também como bloco histórico, como resultado sintético de
outros e conhecer melhor os outros através de si. (GRAMSCI, 2004a, p.
de Gramsci, a loso a da práxis.
60)58.
Essa loso a distancia-se do senso comum e do imediato e
Portanto, para Gramsci, a loso a da práxis se estabelece por supera a visão idealista, ainda que os absorva no sentido dialético,
meio da articulação orgânica e dialética do conhecimento da teoria conservando-a e superando-a, assegurando a relação unitária entre
e da história das gerações anteriores, que possibilita ao sujeito teoria e prática, acenando para as condições que possibilitem sua
tanto situar-se historicamente – tornando-se um contemporâneo organicidade.
do seu tempo para envolver-se concretamente com as relações A loso a da práxis não aponta para a atividade natural do
prático-políticas – como orientar-se para um alvo concreto e homem comum com seu ponto de vista do real imediato, nem para
superior, engendrando efetivamente teoria e prática. a teorização contemplativa do lósofo, desvinculada do real,
Gramsci, embora não tenha tido acesso a todas as obras limitada à consciência comum, como a verdadeira concepção de
marxianas, teve acesso às formulações da escola do trabalho práxis, mas tendo a primeira como ponto de partida para, pelo
desenvolvida na realidade russa por Krupskaia59 durante sua intermédio da loso a, chegar à verdadeira práxis.
estadia em Moscou, e conseguiu compreender o materialismo O homem simples, entretanto, não encontra as condições
histórico-dialético como a síntese do movimento histórico em uma favoráveis para encarar os fatos de forma pura que o possibilite
relação dialética entre a realidade posta e o devir, entre o imediato alcançar a essência, mas encontra-se impossibilitado pelo véu
e o universal, como frutos da ação humana, apreendendo nesse ideológico posto em sua visão, pela integração a um determinado
período a compreensão necessária para sua posterior formulação contexto sócio-histórico predominante que o engendra nesse
da escola unitária, como a unidade indissolúvel entre teoria e prisma e o impede de compreender a dimensão da luta de classes e
prática, tendo o trabalho como fundamento dessa unidade. Essa aspirar a possibilidade de uma ação transformadora, tendo em vista
ação, não por acaso, resolveu denominar de loso a da práxis, não a ausência do elo consciente entre a consciência e o objeto e, por
apenas para despistar a intenção de seus escritos da censura mais que pense sobre as atividades práticas, não encontra
fascista, mas principalmente, ampliar, na tentativa de aclarar ainda fundamentos para transpor seu pensamento para a consciência
mais, a noção da relação unitária entre teoria e prática defendida superior.
por Marx que se encontrava eivada de mecanicismo. O homem simples percebe, nesse sentido, as atividades práticas
Nesse sentido, o termo práxis – com seu signi cado dentro do como aquilo que é produtivo, que satisfaz suas necessidades
campo marxista, como atividade teleologicamente objetiva, pelo práticas imediatas, com sua signi cação prática imanente,
qual Gramsci de ne-se de nitivamente no campo marxista – limitando-as à sua característica utilitária material, que,
con gura-se como a categoria que ocupa o lugar central da loso a generalizada, traduz o esvaziamento da consciência política, pois,
nessa esteira, a política somente incita algum interesse ao homem conhecimento, possibilitou inquestionáveis avanços e descobertas
do cotidiano apenas pelo seu aspecto prático. tecnológicas.
Essa visão limitada serve de bandeja ao sistema capitalista e ao Esse momento, caracterizado pela “Reforma-Renascimento”,
seu grupo dominante que consolida nas mentes simples sua representadas pelas insígnias de Da Vinci e Lutero, cada um com
ideologia, promovendo a despolitização e o esvaziamento de suas sua peculiaridade, mas que, “pelo seu valor de sugestão
consciências. Segundo Vázquez (2007), enchendo suas mentes de pedagógica” (GRAMSCI 2011a, p. 247), se uni cadas, poderiam
toda forma de preconceitos e preocupações que fortalecem o formar os dirigentes necessários à nova ordem. O primeiro com sua
sistema social vigente, distanciando-as cada vez mais da capacidade multifacetada, que, através do domínio do
consciência de classe e de uma práxis revolucionária conhecimento e da ação, ou seja, do saber e do fazer, em um mútuo
transformadora, fazendo-as considerar desnecessária toda a processo de desenvolvimento da ideação e da objetivação,
atividade teórico- losó ca por não apresentar nenhuma utilidade descobria novas técnicas e ampliava cada vez mais o conhecimento
prática imediata. Como afere Vázquez (2007, p. 35), os problemas que servia de fundamento para novas objetivações. O segundo,
encontram sua solução na própria prática, ou nessa forma de com sua popularidade, possibilitou às grandes massas da população
reviver uma prática passada, isto é, a experiência. o acesso ao conhecimento capaz de dissolver o folklore enraizado
Dessa forma, o homem comum traz em sua prática uma noção em sua cultura, além da progressiva libertação política. Esses dois
espontânea de práxis, limitada pelo seu cotidiano inserido em um aspectos dessas grandes personalidades formam a unidade perfeita
determinado contexto social, sabendo que sua atividade prática é para uma revolução intelectual e moral, que seria, “em suma, de ter
movida por uma atividade consciente. Nesse sentido, sem o uma Reforma e um Renascimento ao mesmo tempo” (GRAMSCI,
fundamento teórico- losó co necessário, a atividade do homem 2011a, p. 248). Esse movimento de salto histórico da metafísica à
simples delimita-se, assim, dentro desse espectro da práxis ciência moderna, segundo Gramsci (2011a, p. 166), “separa dois
simplesmente como prática. mundos da história, duas épocas, e inicia o processo de dissolução
Nessa esteira, faz-se necessário o resgate da unidade teórico- da teologia e da metafísica, desenvolvendo o pensamento
prática que redunda na verdadeira práxis e é capaz de fomentar a moderno, cujo coroamento está na loso a da práxis”.
formação omnilateral. Um processo que se iniciou com a abertura Tal pensamento ao qual se refere Gramsci não se limita mais a
ao conhecimento cientí co e sua expansão no mundo moderno um pensamento de tipo platônico, que se resume ao campo das
pelo abandono gradual das imposições metafísicas e da visão ideias, em que a prática política dissociada do trabalho e da ação é
preconceituosa de inferiorização do trabalho manual, o qual, dentro tida como práxis, muito menos a um pragmatismo de tipo
de um novo viés social de “iluminação” e valorização do americano, que se utiliza das ideias para atingir ns práticos
imediatos, o qual se isenta de qualquer tendência revolucionária. universais enquanto a segunda se refere à busca de compreensão
Esse pensamento gramsciano parte de uma concepção universal das forças con ituosas que de nem o momento de um movimento
pela percepção de que o desenvolvimento do trabalho é que histórico contínuo, mas assim como Marx, concebe a relação
possibilita o avanço e o surgimento de novas técnicas e novos unívoca entre ambas, já que a atividade produtiva é, ao mesmo
conhecimentos que movimentam a realidade social e a prática tempo, natural e humana e, simultaneamente, desenvolve a ciência
política, renovando o pensamento, em um movimento orgânico e natural e social. Isso signi ca que o conhecimento e a vontade não
dialético. se separam e impulsionam dinamicamente a história, formando
O autor sardo acrescenta (2011a, p. 166) que “O cientista uma única ciência – ainda que não haja como de nir leis universais
experimentador é um operário, não é um puro pensador; e seu no campo das ciências sociais que in uenciem sujeitos que
pensar é continuamente veri cado pela prática e vice-versa, até permaneçam passivos e inertes, assim como ocorre com as ciências
que se forme a unidade perfeita de teoria e prática”, explicitando a naturais. “Para a loso a da práxis [...]”, continua Gramsci, “[...] o ser
unidade coesa entre conhecimento e trabalho, como educação não pode ser separado do pensar”, já que “Toda a ciência é ligada
unitária, abrangendo os campos cientí co e humanista, técnico e às necessidades, à vida, à atividade do homem (ao trabalho). Sem a
social, pro ssional e político. Por essa razão, seria infrutífero atividade do homem, criadora de todos os valores, inclusive os
qualquer um dos momentos dissociado do outro, sem a nalidade cientí cos, o que seria a ‘objetividade’?” (GRAMSCI, 2011a, p. 174-
de atingir o outro, tarefa que exige, conforme o lósofo sardo, uma 175).
rigorosa disciplina de estudo, disciplina que se apresenta como Em suma, Gramsci tem uma visão dialética da objetividade
uma de suas principais concepções metodológicas. cientí ca60 e da subjetividade humana, ao considerar que a ciência
Nesse sentido, Gramsci considera o conhecimento como a é um complexo humano fundado no trabalho, por isso insiste que
cristalização histórica e processual de um movimento contínuo e, sem o homem e sua atividade não haveria ciência e, desse modo,
por esse prisma, refuta a soberania absoluta da ciência ou do afere que é “humanamente objetiva” porque através dela
pragmatismo frente à loso a da práxis, posto que: “determina-se o que é comum a todos os homens, o que todos os
Se as verdades cientí cas fossem de nitivas, a ciência teria deixado de homens podem veri car da mesma maneira, independente uns dos
existir como tal, como investigação, como novas experiências, outros” (GRAMSCI, 2011a, p.173), e sem o homem as coisas
reduzindo-se a atividade cientí ca à repetição do que já foi descoberto
[…]. Mas se nem as verdades cientí cas são de nitivas e peremptórias, continuariam a ser o que são, mas não teriam nenhum signi cado. A
também a ciência é uma categoria histórica, um movimento em contínua
própria história nos mostra que a objetividade passa por um
evolução. (GRAMSCI, 2011a, p. 174)
processo de objetivação para ser apropriada, compreendida pelo
Nesse viés, Gramsci admite a diferença essencial entre a ciência homem, para tornar-se um “universal subjetivo”. Além disso,
natural e a social, pois a primeira está voltada para a busca de leis
Gramsci não nega a objetividade e seu caráter universalizador61, maneira de pensar que consolide novos valores e relações sociais.
“pois ela foi o elemento de conhecimento que mais contribuiu para Essas lutas, segundo Gramsci (2011a), devem permitir um
uni car o ‘espírito’” (GRAMSCI, 2011a, p. 134). progresso intelectual de massa e não apenas de reduzidos grupos
Nesse contexto de organização política das classes subalternas, intelectuais, ou seja, não apenas uma transformação individual, na
pelo domínio consciente da natureza, é possível desenvolver novas postura de cada indivíduo em consonância somente com o interior
técnicas e, com o resgate do conceito de dialética, nos moldes da da sua consciência, mas com todo o grupo social, pois tal
loso a da práxis que supera a visão fechada e simplista de empreendimento demanda um determinado nível de conhecimento
conciliação entre opostos, surge “um novo modo de pensar, uma capaz de organizar as lutas e fomentar a criação de um novo tipo de
nova loso a e também uma nova técnica” (GRAMSCI, 2011a, p. sociedade.
181). Nesse sentido, a nalidade última da loso a da práxis é
Dessa forma, o ponto de partida para a construção do educativa, de formação crítica, de visão da totalidade, pois,
conhecimento deve ser sempre a realidade concreta, as relações de conforme Semeraro (2006, p. 33), a loso a da práxis é “o nexo
forças historicamente produzidas, fruto das tensões entre os orgânico entre as várias partes do real, o conhecimento da própria
grupos sociais na luta pela hegemonia. Essa luta pressupõe um história nas suas dinâmicas, contradições e criações”. Portanto, é a
ponto de vista que vem sempre acompanhado de uma pré- unidade dialética entre economia e política e suas determinações,
concepção que se origina nas condições de vida de cada um, o que isto é, como a rma Semeraro (2006), não é ato ou pensamento
não signi ca que as classes subalternas, por si mesmas, pelo fato puro, que cria as coisas idealisticamente, mas resultado da
de serem excluídas, já tragam uma visão de mundo, uma loso a atividade concreta e histórico-dialética da relação do homem com a
elevada e revolucionária, ou que naturalmente sejam portadoras da natureza e da vontade humana com as estruturas econômicas e dos
revolução. Porém, nelas se encontram a condição basilar para que, projetos políticos com as cristalizações culturais.
com uma sólida formação da autonomia que possibilite a Para o autor sardo, segundo Semeraro (2006), a própria
capacidade de luta e organização, seja possível transformar esse contradição na qual está inserido aquele que sofre dominação, que
embrião de sujeito revolucionário em sujeito que busca ser sente a dor da barbárie, impede-o de perder a capacidade de
coletivo, pois, como bem a rma Marx (2010e, p. 156), “Assim como enxergar através das próprias experiências a condição a que fora
a loso a encontra suas armas materiais no proletariado, o submetido. Essa dor latente que sente possibilita-o, junto ao
proletariado encontra na loso a suas armas espirituais”. impulso dado pelo conhecimento, pensar autonomamente e, por
Para tanto, as lutas não podem se resumir a reivindicações conseguinte, organizar-se na luta por novas vias. Desse modo, na
imediatas, mas devem promover a participação e cultivar uma nova esteira da contradição da ordem vigente, ideologia, em Gramsci,
tem dois vieses, podendo tanto ser uma ilusão da realidade como da totalidade real. Estas, pela conquista do conhecimento crítico e
uma via alternativa para novas concepções políticas, demonstrando criativo, devem tornar-se capazes de, por iniciativa própria,
assim sua visão de autonomia relativa em relação à estrutura desvelar os nexos das contradições e lançar o próprio projeto de
material e não um simples re exo da estrutura. sociedade de socialização do mundo, a ponto de permitir a
Como categoria contraditória e dialética, a ideologia nas mãos passagem do reino da necessidade ao reino da liberdade62, no qual
da burguesia torna-se instrumento de desagregação por colocar os a própria loso a da práxis como loso a das contradições será
interesses individuais como sendo de toda a sociedade e, suprassumida, quando socializada e compartilhada, tornar-se senso
aparentemente, tentar “conciliar interesses opostos e comum.
contraditórios”, visando, outrossim, obter o consenso passivo. O avanço ao socialismo não se faz por lutas esporádicas,
Gramsci adverte que as classes subalternas devem elaborar a sua espontâneas ou por grupos fechados, isolados e corporativistas,
própria ideologia, pois a: mas pela organicidade, ou seja, pela agregação e aglutinação
[...] loso a da práxis, ao contrário, não tende a resol ver paci camente organizada e ativa para a construção e a ampliação de espaços de
as contradições existentes na história e na sociedade, ou, melhor, ela é a participação coletiva, aproveitando da vontade coletiva espontânea
própria teoria de tais contradições; não é o instrumento de governo de
grupos dominantes para obter o consentimento e exercer a hegemonia como ponto de partida para, ao apropriar-se dos complexos
sobre as classes subalternas; é a expressão destas classes subalternas
processos sócio-político-econômicos, desenvolver uma vontade
que querem educar a si mesmas para arte do governo e têm interesse
em conhecer todas as verdades, inclusive as desagradáveis, e em evitar direcionada para um programa ético-universal tornando-se uma
os enganos (impossíveis) da classe superior e, ainda mais, de si mesma.
(GRAMSCI, 2011a, p. 388)
vontade operosa que move as classes subalternas para a unidade.
Como observa Gramsci (2011c, p. 140-141), “As classes
Isso signi ca que os grupos subalternos devem expor subalternas, por de nição, não são uni cadas e não podem se
constantemente suas ideias e ações ao espectro da loso a da uni car até se tornarem ‘Estado’: a história delas está entrelaçada à
práxis, que se con gura como expressão consciente das da sociedade civil, é uma função ‘desagregada’ e descontínua da
contradições existentes na história da sociedade (GRAMSCI, 2011a, história da sociedade civil”.
p. 204), a qual, por estar profundamente engendrada com o Como vimos, com o m do absolutismo estatal e clerical e a
“movimento real que supera o estado atual das coisas” (MARX apud
abertura para a atuação política e para o estudo e o trabalho
SEMERARO, 2006, p. 10), vincula-se diretamente às lutas
cientí co, os grupos subalternos tiveram a oportunidade de
subalternas que buscam superar essas contradições. Dessa feita,
adentrar no campo do protagonismo da história. Para tanto,
diante das novas contradições da história, a loso a da práxis
precisam passar por um processo formativo, que ofereça o saber
necessita se renovar constantemente, con gurando-se como teoria
mais avançado e fundamental para que superem o conhecimento
do conhecimento, para possibilitar às classes subalternas a leitura
super cial e possam elevar sua intelectualidade e sua Nesse sentido, Gramsci chama a atenção para a acuidade na
autocon ança, manifestando-a através da capacidade de construir leitura e na compreensão da “nova loso a”, que supere as
seus próprios projetos e conhecimentos e não apenas reproduzir as incrustações mecanicistas as quais tentavam limitá-la e reduzi-la a
ideias dominantes, visando assumir a direção política, cultural e dogma, em uma concepção ortodoxa de cunho idealista,
econômica da sociedade. Gramsci, que se dedicou insistentemente principalmente a que detinha os sujeitos em uma passividade
a esse objetivo, afere que tal processo não é simples, quando a rma mórbida diante da história, dada a crença no movimento
que “Marx inicia uma época histórica que provavelmente durará automático rumo à revolução – daí sua grande contribuição ao
séculos, isto é, até o desaparecimento da sociedade política e o resgatar o marxismo genuíno, com a visão de que a loso a da
advento da sociedade regulada” (2011a, p. 243). práxis “é uma loso a que é também uma política e uma política
Na verdade, como vimos em seu histórico de militância, Gramsci, que também é loso a” (GRAMSCI, 2007, p. 37). Desse modo,
ao analisar as estratégias de embate frontal – que lhe custaram elabora novos instrumentos de luta e amplia não apenas losó ca,
sucessivas derrotas – compreendeu que o contexto histórico de mas, sobretudo, politicamente os horizontes das organizações
transição e ocidentalização dos Estados e as combinações subalternas, que, munidos de novos conhecimentos, poderiam
losó cas de tendências idealistas que os intelectuais estavam organizar-se criativamente em torno de projetos próprios de
fazendo com a loso a da práxis exigia uma nova e difícil forma de construção do consenso e conquista da hegemonia. Conforme
conquistar o poder, a qual deveria transformar o subalterno em Gramsci (2007, p. 38), “A loso a da práxis, em seu fundador,
“dirigente já antes de conquistar o poder” (GRASMCI, 2011c, p. 62). reviveu toda esta experiência [...], para reconstruir a síntese da
Para tanto, a loso a da práxis tem duas grandes tarefas unidade dialética: ‘o homem que caminha com as próprias pernas’”.
revolucionárias: “combater as ideologias modernas em sua forma Nessa reedição do pensamento marxista, Gramsci restaura a
mais re nada, para poder constituir o próprio grupo de intelectuais cisão entre estrutura e superestrutura, imposta pelos maximalistas
independentes, e educar as massas populares, cuja cultura era com sua visão messiânica da revolução, na qual não viam a
medieval” (GRAMSCI, 2007, p. 35). Conforme Semeraro (2006, p. necessidade da formação das classes subalternas. Dessa forma,
40), Gramsci “havia percebido que a força das classes dominantes Gramsci (2011a, p. 400) traz a necessidade de realização de um
não se apoiava só no controle da economia, mas, principalmente, “novo tipo de lósofo, que se pode chamar de ‘ lósofo
em complexas iniciativas políticas e culturais” que se acentuaram democrático’, isto é, do lósofo consciente de que sua
após a abertura política e a Grande Guerra, deslocando a estratégia personalidade não se limita à sua individualidade física, mas é uma
revolucionária para a Guerra de Posição, uma guerra cultural, relação social ativa de modi cação do ambiente cultural”, o qual
63
política e ideológica . deve ter consciência que faz parte de uma relação pedagógica
ampla na qual “todo professor é sempre aluno, e todo aluno, modo concreto através do qual se apresenta toda reforma
professor” e que ocorre em “toda a sociedade no seu conjunto”, intelectual e moral” (GRAMSCI, 2011b, p. 19), visto que a radical
pois “a unidade entre ciência e vida é precisamente uma unidade subversão de um novo modelo social exige uma revolução não só
ativa”, ou seja, há uma relação dialética indissolúvel entre loso a econômica, mas política e losó ca, já que:
e política, conhecer e fazer, bem como nos processos histórico- [...] destacada da teoria da história e da política, a loso a não pode
econômicos que determinam as teorias. Portanto, o novo lósofo é deixar de ser metafísica, ao passo que a grande conquista da história do
pensamento moderno, representada pela loso a da práxis, é
convidado a romper com a ideia de intelectual como grupo precisamente a historicização concreta da loso a [da práxis] e sua
autônomo e independente que tem uma quali cação superior, identi cação com a história. (GRAMSCI, 2011a, p. 144)

abstrata, desconexa da realidade, sair da neutralidade cientí ca e Ademais, combatendo o idealismo e o mecanicismo, a rma que
da crença que pode mudar o mundo apenas pelo pensamento e “a loso a deve se tornar política para tornar-se verdadeira”
pelas atividades da consciência e, sobretudo, a envolver-se crítica e (GRAMSCI, 2011a, p. 189), ou seja, deve ser impulso de ações
efetivamente com o desenvolvimento cientí co das lutas transformadoras, como a rma Marx, para quem “os lósofos apenas
revolucionárias, abraçando a causa revolucionária como sua, interpretaram o mundo [...], o que importa agora é transformá-lo”64.
auxiliando a classe subalterna a traçar o caminho para a revolução, Desse modo, como a atuação do intelectual está inteiramente
a tornar-se um lósofo da práxis. vinculada ao modo de produção e às relações de classe, alerta
Esse caminho traduz-se na conquista da hegemonia, Gramsci que:
intrinsecamente vinculada ao princípio educativo da loso a da
Todo grupo social, ao nascer do terreno originário de uma função
práxis que se caracteriza pela organicidade complexa entre essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo
tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe
loso a, política e economia, que resultam da conjunção do dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no
trabalho e da ciência e se estabelece não como uma ideia abstrata, campo econômico, como também no social e político […]. (GRAMSCI,
2010, p. 15)
mas como uma atividade teórico-política e histórico-social da
classe trabalhadora. Esta, por já estar inserida no mundo produtivo, Gramsci adverte a classe subalterna a criar seus próprios
ou seja, compor a estrutura, se provida das condições losó co- intelectuais orgânicos, que devem ser um novo tipo de intelectual,
políticas preponderantes, é capaz de elaborar um modelo o lósofo da práxis. Este “deve ser um organizador de massa de
alternativo-coletivo de sociedade que supere a divisão de classes. homens, deve ser um organizador da ‘con ança’” (GRAMSCI, 2010,
Desse modo, “uma reforma intelectual e moral não pode deixar de p.15). Os intelectuais orgânicos, por serem vinculados àqueles que
estar ligada a um programa de reforma econômica; mais se organizam para construir uma nova civilização, buscam
precisamente, o programa de reforma econômica é exatamente o democratizar o poder, socializar os direitos, eliminar a barbárie,
formando um novo “bloco cultural e social”, não temem uma cultura desinteressada que visa alcançar objetivos coletivos,
universalizar a intelectualidade, pois, conscientes de seu papel de universais e não imediatos, mas de longo prazo. Além disso, deve
interação pedagógico-dialética com os subalternos, de formação formar uma vontade coletiva e uma inteligência social que se torne
crítica e econômico-cultural que eleve politicamente esses últimos, força material à medida que se apodera das massas, fomentando os
realizada coletivamente, devem levar à subsunção de si mesmos, sujeitos políticos capazes de dominar o conhecimento humano em
enquanto intelectuais separados das classes subalternas para toda a sua plenitude, para que todos sejam possuidores da
intelectuais-massa, pela superação das dicotomias entre personalidade unitária do lósofo da práxis. Assim, através do
governantes e governados, dirigentes e dirigidos, intelectual e conhecimento e ação, inteligência e vontade, visam acima de tudo
massa. Assim sendo, “a personalidade histórica de um lósofo uma nova concepção de poder, na qual o governo de Estado seja
individual é também dada pela relação ativa entre ele e o ambiente dissolvido em um estado de governo. Conforme Gramsci,
cultural que quer modi car, ambiente que reage sobre o lósofo e, [...] a loso a da práxis basta a si mesma, contém em si todos os
obrigando-o a uma contínua autocrítica, funciona como ‘professor’” elementos para construir uma total e integral concepção de mundo, não
só uma loso a e teoria das ciências naturais, mas também os
(GRAMSCI, 2011a, p. 399). Desse modo, gera um ambiente de elementos para fazer viva uma integral organização prática da
prática de ensino-aprendizagem coletiva que leva à “catarse” sociedade, isto é, para tornar-se uma civilização total e integral. (2011a,
p. 152)
pessoal e social, ou seja, à elevação do momento egoísta-
corporativo para o ético-político, no qual toda a hierarquia de A loso a da práxis, desse modo, con gura-se como a via
grupos dirigentes será subsumida pelos dirigidos e não haverá a gramsciana para a formação humana integral, isto é, a loso a que
necessidade de vanguarda. Conforme Gramsci (2011a, p.100), “a busca recuperar a união indissolúvel entre teoria e prática,
organicidade de pensamento e solidez cultural [que] só poderiam condição para o desenvolvimento humano e social pleno e integral.
ocorrer se entre os intelectuais e os simples se veri casse a mesma
unidade que deve existir entre teoria e prática”.
Tal organicidade somente será possível “se a loso a da práxis 12
Desde sua vida escolar até os anos do cárcere, viveu intensa militância marcada pela
for concebida como uma loso a integral e original” (GRAMSCI, profunda imersão na luta política e social na Itália.
2011a, p. 143) e não como “uma atividade intelectual própria de 13
A região da Sardenha se localiza em uma ilha ao sudoeste da Itália.
uma determinada categoria de cientistas […] ou lósofos” 14
Na época era um curso que unia Letras e Filoso a e estudava-se, além de lologia e
loso a, antropologia.
(GRAMSCI, 2011a, p. 93) sobre a inteira maioria. Deve ser concebida
15
como a formação da consciência dialético-histórica que vislumbra O PSI tinha correntes distintas como os maximalistas e os reformistas e, por isso,
divergia em diversos pontos de vista (FIORI, 1979).
destituir o aparato dominante, ao mesmo tempo em que promove
16 31
Grande introdutor da obra de Marx na Itália e profundo conhecedor da obra de Hegel. Conforme Gramsci (2004a, p. 384), “A greve geral dos últimos dez dias espalhou-se por
In uenciou intelectuais como Croce, Gentile e Sorel que, posteriormente, tornaram-se todo o Piemonte, mobilizando cerca demeiomilhãode operários industriais e agrícolas e
seus opositores por se deterem ao materialismo positivista da época. Foi esse marxista envolvendo cerca de 4 milhões de pessoas.”. Informação retirada do Informe intitulado O
que in uenciou fortemente Gramsci a direcionar-se contra as incrustações positivistas. movimento turinense dos Conselhos de Fábrica, enviado em julho de 1920 ao Comitê
17 Executivo da Internacional Comunista, publicado pela primeira vez no órgão da
CROCE, Benedetto. Filoso a della pratica: economia ed etica. 8. ed. Bari: Laterza, 1963. p. Internacional Comunista (ano I, n.º 14, novembro de 1920) e depois em L´Ordine Nuovo
4-5. cotidiano (ano I, n.º 73, 14 de março de 1921).
18
Ver Fenomenologia do Espírito de Hegel. 32
Organização política com a conquista e participação da maioria da classe trabalhadora,
19
Segue a perspectiva crociana de ver o marxismo, porém, sua apreensão da dialética operários e camponeses, mas também dos intelectuais e pequenos burgueses, para
hegeliana e das contradições do real o possibilita dar o salto para a compreensão da enfrentarem o fascismo e fazer a revolução. Um desa o para Gramsci, que avaliava a
loso a da práxis como preferia chamar o marxismo. sociedade italiana como um caos completo, um tecido gasto e lacerado.
33
20
Processo de uni cação do Estado italiano como um aspecto do desenvolvimento A escola do trabalho era como se denominava a escola russa após a Revolução de 1917,
revolucionário europeu como um todo, oriundo da Reforma, da Revolução Francesa e do que visava uma formação conforme as referências marxianas, a qual trataremos no
Liberalismo. terceiro capítulo.
34
21
As diferenças sociais entre Norte e Sul da Itália devido ao desenvolvimento industrial e Companheiro de Gramsci no PSI, que, junto ao autor sardo e o grupo do L´Ordine Nuovo,
urbano do Norte e o cenário atrasado e rural do Sul da Itália. Diferenças que despontavam fundou o PCI, do qual foi Secretário Geral até ser preso.
sentimentos e disputas regionalistas, pois não se considerava os fundamentos reais 35
A Questão Meridional, que originalmente trazia como título “Notas sobre o problema
dessas diferenças. meridional e sobre a atitude diante deles, dos comunistas, dos socialistas e dos
22
Ver artigo O nosso Marx encontrado nos Escritos Políticos, Vol. 1. democratas”. Cf. Escritos Políticos, v.2, Civilização Brasileira.
36
23
Sobre esse tema, consultar: Mendes Segundo. Educação Para Todos: A Política dos Em 14 de outubro de 1926, pouco antes da sua prisão. Cf. Escritos Políticos, v.2,
Organismos Internacionais. In: JIMENEZ et al, (2007). Civilização Brasileira.
37
24
In: NOSELLA (2010b, p. 58). Pamphletaire signi ca pan etário e refere-se ao momento de atividade política
militante; já Fur ewig signi ca para sempre e refere-se ao legado teórico que Gramsci
25
Ver artigo A escola do trabalho. In: NOSELLA (2010b). desenvolveu no cárcere que pretendia ser clássico, desinteressado.
26 38
Isso aconteceu devido às di culdades nanceiras enfrentadas pela família que de longe Limitadas pela censura fascista através do diretor carcerário.
não podia ajudá-lo, além da perda da bolsa devido aos problemas de saúde que 39
enfrentava e o impedia de cumprir com rigor os requisitos. Segundo Lepre (2001), havia a especulação de que sua mulher, Giulia, que se
encontrava em Moscou, estivesse sendo vigiada provavelmente pela própria irmã mais
27
Refere-se à questão meridional que era o antagonismo entre o norte, desenvolvido, e o velha, Eugenia. Desse modo, Tatiana, que se encontrava na Itália, foi uma escolha racional
sul, atrasado, da Itália, o qual Gramsci superou com sua ida da ilha da Sardenha para Turim e política.
e logo depois da Itália para Moscou. 40
Dentre eles, podemos destacar o Caderno 12, Os intelectuais e a organização da cultura.
28
Notas expressas no artigo “A Revolução contra o capital”, no qual Gramsci saúda a 41
Revolução de Outubro. Publicado no jornal Avanti! Em 24 de dezembro de 1917. Posição que expressa em carta à cunhada, em 19 de março de 1927, ao revisar o plano
de estudos que havia estabelecido após a detenção, ao dizer “Estou atormentado (e este,
29
Os soviets eram conselhos ou colegiados deliberativos que surgiram pela primeira vez penso, é um fenômeno típico dos prisioneiros) por esta ideia: de que é preciso fazer algo
na Revolução Russa de 1905 e se consolidaram na Revolução de 1917, tendo como fur ewig”(GRAMSCI, 2005a, p. 128).
princípio o autogoverno. 42
Essas posições gramscianas podem ser encontradas nos Cadernos 10 e 11. No primeiro,
30
Gramsci foi eleito deputado pela região de Viena, porém cabe ressaltar que se tratava Gramsci busca resgatar o marxismo das incrustações economicistas, em resposta à teoria
de uma estratégia política para poder retornar de Moscou. do materialismo histórico, posto no “Manual popular de sociologia marxista”, escrito por
Bukharin.
43 determinação e vontade, economia e política.
Quando Stalin ascende ao poder, após a morte de Lenin.
44 55
Este Caderno encontra-se no Volume 3 dos Cadernos do Cárcere da edição da Civilização Ver “Os Prismas de Gramsci: a fórmula política da frente única” de Marcos Del Roio.
Brasileira. 56
A Frente Única era a linha política de unidade operária, adotada pela III Internacional, a
45 qual Gramsci aborda nos textos sobre A Construção do Partido Comunista. Em um destes
Gramsci cita neste Caderno três obras de Maquiavel: Discorsi, O Príncipe e A Arte da
Guerra. escritos, em agosto de 1926, pouco antes de ser preso, Gramsci, ao analisar o processo de
coalizão nos diversos países, expõe sua compreensão: “Para todos os países capitalistas,
46
Líder. põe-se um problema fundamental: o da passagem da tática da frente única, entendida em
47 sentido geral, para uma tática determinada, que formule os problemas concretos da vida
No caso de Maquiavel, pela recordação do passado da Roma Antiga, o novo Estado
nacional e opere com base nas forças populares tais como estas foram historicamente
tratava se da uni cação do Estado italiano, o que signi cava o m dos con itos internos e
constituídas” (GRAMSCI, 2004b, p. 380-381).
das invasões estrangeiras. No caso de Gramsci signi ca o estabelecimento da sociedade
regulada. 57
Devido à censura, Gramsci utilizava Ilitch para referir-se a Lenin.
48
Em um desses capítulos, Maquiavel foi acusado de conspiração e, por isso, preso e 58
Evidenciamos aqui outra aproximação gramsciana da categoria lukasciana, a chamada
torturado. E quando anistiado, recolheu-se à inatividade. Foi quando escreveu diversas desantropomor zação, a qual Lukács denomina em sua Estética pelo processo de elevação
obras, das quais se destacam O Príncipe, Os discursos da primeira década de Tito Lívio, na do homem inteiro ao homem inteiramente, do imediato ao universal, porém esta é uma
qual faz uma comparação de Florença com a Roma Antiga, e a Arte da Guerra, na qual trata questão aberta que merece um estudo mais aprofundado.
de estratégias militares para a guerra.
59
Companheira de Lenin, que encabeçou a proposta da Escola do Trabalho na Rússia
49
Devido à censura carcerária, Gramsci, por diversas vezes, defende a criação de um novo soviética junto a outros camaradas como BlonsKiy, Pistrak e outros.
tipo de sociabilidade humana. Utilizando a palavra “Estado”, referia-se a um novo tipo de
60
organização social e de governo, o qual deve ser dirigido pelos grupos sociais através dos É nesse sentido que a concepção de Semeraro (2007) se distingue da interpretação de
conselhos, isto é, o estabelecimento do autogoverno. Desse modo, cada vez que nos Coutinho (1999). Esse último acredita que Gramsci recusa a “verdade objetiva” e
referirmos a um novo tipo de Estado em Gramsci estaremos nos referindo ao Estado que o subordina a objetivação cientí ca à subjetivação humana e faz certa confusão entre
lósofo sardo denomina de “sociedade regulada”. objetividade e objetivação, enquanto o primeiro a rma que em Gramsci a objetividade da
ciência não é automática, mas depende dos interesses dos grupos que de nem o que é
50
Ver a obra Aparelhos Ideológicos do Estado, de Louis Althusser, na qual o autor nega a comum, os quais trazem sempre uma concepção de mundo, uma loso a, e a tornam
possibilidade de obtenção do consenso hegemônico ou inversão da ideologia dominante “humanamente objetiva”, porque “é o que pode ser veri cado por todos os homens”, é o
pela ideologia subalterna, pelo fato de as instituições sociais assegurarem, juntamente ao que é independente de qualquer ponto de vista, mas “no fundo depende de uma
Estado, a ideologia dominante e que, deturpadamente, essa visão é atribuída a Gramsci. especí ca concepção de mundo, é uma ideologia”, pois toda objetividade implica uma
51 subjetividade, ou está imbrincada dela, como o próprio cientista que traz consigo sua
Aqueles que defendiam a tese de que haveria o Grande Dia da Revolução, o iminente
própria concepção de mundo, sua ideologia, consciente ou inconscientemente, que
colapso do capitalismo, a derrubada do poder e o estabelecimento do Estado proletário
implica em uma unidade dialética entre ciência e política. Ou seja, o que está por trás das
em uma visão mecânica e fatalista.
ciências são as relações entre os homens e a concepção de mundo em determinado
52
Gramsci utiliza este termo funcionário do Estado referindo-se ao lósofo-político que, momento histórico.
em uma nova forma de sociabilidade humana, participará ativamente do processo de 61
Dito de outro modo, seu caráter desvelador da visão mítica da realidade para a elevação
autogoverno, podendo ser dirigente ou dirigido.
de uma visão concreta e crítica, bem como, seu caráter integrador da genericidade.
53
Cabe ressaltar que apesar de utilizar termos “liberais” devido à sua condição carcerária, 62
Ver Marx (1988), O Capital.
Gramsci apontava para uma perspectiva radicalmente revolucionária, referindo-se a
funcionários como todos os homens que compõem a nova sociedade e que participam do 63
Um grande exemplo dessa guerra foi a Guerra Fria.
autogoverno, seja na organização da vida, seja na execução de tarefas.
64
Teses sobre Feuerbach. In: MARX, K. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
54
O economicismo maximalista defendia a ideia de que a história era apenas um re exo
dos processos econômicos, dessa forma, desconsiderava a subjetividade e a vontade
humana. Gramsci seguia em contraposição e buscava mostrar a relação dialética entre
isto é, compartilhado por todos os indivíduos, o conhecimento
contribui com a humanização, com a possibilidade de produzir a
vida social através de seu trabalho e também usufruir deste,
CAPÍTULO 3 tornando-se ser genérico, pertencente ao grupo humano. Contudo,
conforme Lessa (2008, p. 53), “os objetos criados são distintos da
consciência, possuem consequências que não podem ser
controladas”.
Assim, no processo contínuo das objetivações humanas a partir
ESCOLA UNITÁRIA E FORMAÇÃO NO CAMINHO do ato de trabalho surgem modos de vida social, antes imprevistos,
tal como ocorreu com o advento da agricultura, que inaugurou o
DA EMANCIPAÇÃO HUMANA
assentamento humano nas terras férteis, possibilitando o m da
vida nômade, que, por outro lado, intensi cou a divisão do trabalho
e originou as classes sociais pela instituição da exploração do
A formação humana, como vimos no primeiro capítulo sobre a
homem pelo homem. Nesse contexto de surgimento das
reprodução social, surge com o processo de trabalho, como um
contradições e antagonismos sociais, o objetivo do trabalho
complexo indissolúvel entre produção e conhecimento, especí co
desloca-se da garantia coletiva de sobrevivência para o interesse
do ser humano, justamente pela necessidade de transmitir o
dos grupos dominantes.
conhecimento produzido e adquirido às novas gerações as quais
Como consequência orgânica dessa divisão, o conhecimento
através do processo de objetivação e consciência podem
também se torna fragmentado e, nessa esteira, conforme Ponce
transformar a realidade. Dado que a complexi cação do processo
(2007) e Manacorda (2010a), inicia-se, desde o Mundo Antigo65, o
de trabalho cria novas necessidades e novas possibilidades para
processo de formação das classes dominantes voltada para o
atendê-las, e é nesse processo ininterrupto que os homens
exercício do poder, ou seja, o conhecimento, que antes era
transformam a si mesmos, em um continuum que se denomina
socializado a todos os indivíduos de maneira integral, agora
História.
encontra-se concentrado nas mãos de poucos, intensi cando cada
Esse movimento de objetivação produz um conhecimento
vez mais a divisão entre trabalho manual e intelectual.
singular que, por sua vez, torna-se duplamente genérico. Primeiro,
Assim, a escola surge na sociedade dividida como lugar do ócio,
pelo conhecimento dos elementos que podem ser utilizados na
daqueles que não trabalhavam, como um espaço distinto de
produção ao experimentar a diversidade de possibilidades; e, ao
formação da classe dominante, nas cortes e palácios, con ada a um
tornar-se patrimônio da humanidade, à medida que é generalizado,
mestre ou amo. A escola denominava-se escola pública por agregar Embora estejamos fazendo referência aos primórdios da História
os lhos das famílias eminentes ao redor do lho do “supremo”, os da humanidade, não parece uma realidade tão distante, pois, ao
quais se interessavam pela vida pública. Essa escola, embora longo de todo esse processo, a escola esteve, nas diversas
fundada no modo de produção vigente, predominantemente sociedades, à disposição do grupo dominante com a visão de
escravista, encontrava-se separada do processo produtivo, pois “A formação que não primava pela genuína socialização dos
escola, é antes uma superestrutura porque brota com e de uma conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade a
estrutura originária de base, sobre a produção e a propriedade e é, todos os indivíduos, mas sempre focada na (de)formação
em última instância, condicionada por suas relações” (MANACORDA, intelectual para uma classe eleita, pela subalternidade que o
2010b, p. 27). Assim, a escola surge como espaço de trabalho manual representava, por isso, desenvolvido pelas castas
desenvolvimento daqueles que detinham a propriedade privada inferiores, as quais não tinham qualquer acesso ao conhecimento
com o objetivo de ensinar a dominar através do desenvolvimento ou quiçá à escola, consideradas prioridade ou propriedade dos
da oratória, da retórica, en m, da palavra, que era negada ao homens superiores, daqueles que governam. Dessa feita, a escola
trabalhador, além da apropriação dos conhecimentos produzidos. esteve sempre desvinculada da realidade, da vida, da sociedade
real.
Veri camos, com o apoio de Manacorda (2010a), que a escola
Escola e sociedade: um breve histórico surge em um mundo unilateral, porque está descolada do mundo
produtivo, ou seja, do conhecimento teórico-prático ou cientí co e,
Ao longo da história humana, após a divisão do trabalho no
por isso, não tem qualquer signi cado prático na vida cotidiana dos
próprio interior da classe dominante, surgem diversas escolas,
indivíduos, com exceção de sua função humanística de formação
como a escola do guerreiro, dos sacerdotes, etc. e, com o
para o ócio, ou seja, para usufruir dos bens culturais e materiais
desenvolvimento da matemática e a invenção da escrita, funda-se a
produzidos por outros, além da formação para a política, a qual, no
base da escola dos escribas66, a qual agudizou o cultivo e o grande
mundo egípcio, helenístico ou romano, cumpria seu papel de
interesse pelo conhecimento intelectual, pelo qual os jovens eram
formar os novos dirigentes oriundos das castas superiores. Por isso,
educados para as funções superiores, pois, segundo Manacorda
Manacorda (2010b), analisando a escola atual que a rma
(2010a, p. 47), estes se dedicavam ao desenvolvimento intelectual
sobreviver de objetivos dos tempos passados, aponta que “a escola
porque queriam salvar-se da “fadiga e protege[r-se] contra
seja mais ou menos coessencial à nossa sociedade”, isto é, não seja
qualquer tipo de trabalho […] livra[r-se] de numerosos patrões e
tão necessária por não investir no objetivo essencial da formação
superiores”.
humana para o cumprimento do papel social.
Assim, durante um longo período da história, a escola cumpriu seja, a arte dos ofícios passa a ser digna e essencial na formação e
um papel estritamente humanístico de formação das camadas na atividade do homem, considerando que um conhecimento sem o
superiores, deixando à margem do conhecimento as camadas outro desembocava nas suas limitações e a ciência não se
subalternas que se resumiam ao trabalho manual. Essa fenda que desenvolveria com excelência. Dessa forma, em busca de
se abriu na história da formação humana, à primeira vista compreender as novas relações entre cultura e trabalho,
irreparável, assegurada pela tradição mítica da realidade, a qual inconscientemente, Diderot enxerga as bases do capitalismo
atribuía aos aspectos sociais uma visão fatalista baseada na moderno ao ver claramente “o concurso de forças que operam a
vontade divina, começa a tomar uma nova con guração, quando, no mudança: o artesão pela mão de obra, o acadêmico pelas luzes e
nal da Idade Média, conhecida como “Idade das Trevas”67, na qual orientações, o homem rico pelo custeio das maquinarias”
a instrução estava entregue à Igreja no modo feudal de produção, (MANACORDA, 2010a, p. 294).
inicia-se o processo de desvelamento da razão, da abertura para as Nessa esteira, conforme Manacorda (2010a), a pedagogia admite
luzes do conhecimento com a retomada do domínio sobre a a abordagem antropológica de Rousseau e as peculiaridades da
natureza e a corrida rumo ao domínio do conhecimento cientí co, o criança, da infância, com a redescoberta da educação dos sentidos e
qual demandava tanto um rigoroso trabalho intelectual quanto um das experiências e do trabalho manual, e a escola como uma
desprendido trabalho manual pela inserção de experimentos, estrutura historicamente determinada passa por adaptações, como
lançando as bases para o desenvolvimento e o estabelecimento da a introdução do ensino de história e das ciências naturais. Ademais,
ciência como moderna força produtiva. inicia-se o processo de laicização do ensino, legando ao Estado a
Esse momento, que se iniciou na Itália e cou conhecido como oferta da educação. Despontam daí, no século XVIII, as primeiras
Renascimento, representa o primeiro passo para a (re)conciliação ideias de universalidade do ensino, ainda que retrógradas, as quais
do homem consigo mesmo e com a natureza, sobretudo, do somente serão impulsionadas pela Revolução Francesa e,
trabalho intelectual e manual e, consequentemente, da escola e do mormente, pela Revolução Industrial.
trabalho, pois signi ca o início da formação da consciência de si Foi somente com o desenvolvimento da indústria que houve a
mesmo enquanto protagonista da história. Nesse contexto, inserção da ciência no mundo produtivo que antes “apresentava-se
conforme Manacorda (2010a), os enciclopedistas, em especial como busca desinteressada da verdade, dado de contemplação”
Diderot, aferem a importância da articulação e da unidade entre o (MANACORDA, 2010b, p. 30). Com o fomento de novas técnicas e
conhecimento acadêmico e o conhecimento artesanal, o qual era tecnologias, a indústria desenvolveu suas forças produtivas e
desenvolvido nas o cinas e articulava trabalho e aprendizado em desenvolveu inclusive novas tendências cientí cas, que passaram
um só lugar e representava a única forma de instrução popular, ou de pesquisa desinteressada para ciência operativa, que conhece e
atua, tornando-se meio de intervenção humana que transforma a início a um processo gradual de expansão do ensino e das escolas
natureza e, consequentemente, a sociedade. Dessa feita, essa união ainda que em pequenas doses, assim, “o que parecia luxo […] torna-
entre ciência e indústria modi cou as estruturas sociais, o modo de se, pela própria necessidade da sociedade em seu todo, uma
vida social, criando uma diversidade de conhecimentos e exigência de massas” (MANACORDA, 2010b, p. 31).
especializações, demandando um novo homem e, assim, uma nova Dessa forma, a Revolução Francesa, uma revolução
estrutura formativa, uma nova escola que buscasse articular ciência eminentemente burguesa, de acordo com Manacorda (2010a), teve
e produção, saber e fazer, que proporcionasse uma nova práxis. em Condorcet, na área da educação, um importante representante,
No bojo das contradições do sistema capitalista, esse é o que contribuiu para a defesa de uma instrução comum para todos
segundo passo rumo à reconciliação humana consigo mesma, pois os homens, uma instrução pública e universal, portanto, “única,
representa uma verdadeira revolução no processo de formação gratuita e neutra”, inspirada em seus ideais de “Liberdade,
humana, para a qual não mais se rejeita o trabalho manual, o fazer, Igualdade e Fraternidade”, a qual deveria estar a cabo do Estado e
mais o considera como um componente de grande importância embasada no laicismo absoluto. Por isso, deveria ser uma instrução
prática para o investimento teórico e cientí co, intelectual, o saber, relativa às ciências e à tradição humanística em estreito laço com a
como elementos que se completam e são indissociáveis. Ademais, vida social e produtiva. Dessa forma, as mudanças e as exigências
outro passo proporcionado pela Revolução Industrial foi a para a formação humana surgidas com a Revolução Industrial, a
instituição da escola da fábrica, que, apesar de estar encravada na qual tem a ciência como força produtiva, busca, na verdade, efetivar
sociedade de classes, com interesses de classes, signi cou uma os ideais burgueses revolucionários para a instrução, quais sejam:
revolução dentro da revolução, pois abriu a oportunidade de acesso universalidade, gratuidade, estatalidade e laicidade de inspiração
ao conhecimento, embora limitado, para as classes marginais, fato dita democrática. A educação, que antes era privilégio de poucos,
historicamente negado, visto que, com a superação do trabalho de grupos seletos dominantes, torna-se um direito “formal”
artesanal, massas inteiras da população, entre elas os artesãos universal, “para todos”, sem distinção. Contudo, nos moldes
expropriados dos modos de produção e inclusive de sua ciência, industriais de classe, em uma nova direção que, além de não
aglutinaram-se nas fábricas, incrementando o surgimento de uma possibilitar o desenvolvimento e o conhecimento completo de um
nova classe, a classe proletária a serviço de uma nova classe ofício, como na o cina, e “reconhecer como lei geral e social da
dominante que surgia, a burguesia. Desse modo, como o produção a variação dos trabalhos e em consequência a maior
proletariado lidava com máquinas de tecnologia efêmera e cada variação dos trabalhos e em consequência a maior versatilidade
vez mais moderna, surge a necessidade de estender às massas possível do trabalhador” (MARX, 1989, p. 558), que possibilitaria
subalternas o monopólio cultural das classes privilegiadas, dando “substituir o indivíduo parcial, mero fragmento humano que repete
sempre uma operação parcial, pelo indivíduo integralmente trabalhadora. A formação unilateral prossegue então para ambas as
desenvolvido” (MARX, 1989, p. 559), oferta ao trabalhador apenas classes, concretizando-se em escolas de propostas formativas que
um restrito e mínimo conhecimento para somente atender às se tornaram inclusive antagônicas, por re etirem especi camente a
demandas da moderna tecnologia industrial que rapidamente divisão social e econômica que atinge todas as esferas sociais,
torna-se obsoleta e necessita de operários disponíveis às efetivando-se nas pedagogias modernas que buscam substituir o
constantes mudanças tecnológicas. Dessa forma, a pedagogia ensino “livresco” por considerá-lo de um tempo ultrapassado.
moderna busca vias alternativas para atendê-la, como a escola da Nesse contexto que surge o socialismo revolucionário de Marx.
fábrica e a escola técnica. Esse lósofo alemão, ao apropriar-se de toda a tradição burguesa e
Conforme Manacorda (2010a), a escola da fábrica buscava analisar a sociedade capitalista como um todo – em um movimento
reproduzir os métodos artesanais de aprendizagem da o cina na dialético de conservação e superação –, considera seus avanços no
fábrica, ou seja, utilizava os métodos de observação e imitação, a campo da instrução como a universalidade, gratuidade, laicidade e
qual na Inglaterra industrializada consistia não somente na estatalidade68, porém, critica a impossibilidade burguesa de
instrução dos operários nos princípios do trabalho produtivo, mas realizar um projeto formativo superior de união entre instrução e
na educação infantil, visando instruir a criança antes de inseri-la na trabalho na atual conjuntura social fragmentada. Assim, Marx,
fábrica e explorar seu trabalho – já que as mulheres tiveram que acusado de ser defensor da escola pro ssional (nos moldes
largar seus lares e os cuidados com seus lhos para também burgueses), delineia o esboço de um projeto de formação
adentrarem no mercado de trabalho –, enquanto a escola técnica omnilateral69, que supere o antagonismo entre cultura e pro ssão,
pretendia inserir na velha escola tradicional e humanística os novos o qual inspira novos atores sociais e cria novas tendências
conhecimentos cientí cos e pro ssionais. pedagógicas, a pedagogia socialista, a qual buscará se efetivar
Dessa forma, surgem diversas tendências pedagógicas através da criação e da proposição de novas escolas que buscam
progressistas, conservadoras e de inspiração socialista utópica, esta proporcionar a verdadeira práxis e a genuína formação omnilateral.
última embora à frente das outras tendências, limitava-se a Portanto, é necessário compreendermos a categoria formação
considerar a superação da divisão social pela apreensão do omnilateral na perspectiva marxiana, para adentrarmos no campo
conhecimento para a “participação social”. Nessa trilha, a fenda pedagógico e escolar em especí co e libertar-nos de toda visão
histórica da divisão do trabalho que, en m, poderia se fechar reducionista que possa levar a interpretações deturpadas.
recon gura-se em uma nova divisão, a divisão do conhecimento,
com a escola humanística e desinteressada para as camadas
superiores, e a escola pro ssional e prática para a classe
Formação unilateral versus formação os produtos do seu trabalho; com a própria atividade produtiva e
com o gênero humano, isto é, consigo mesmo e com os outros
omnilateral homens. Assim sendo, a divisão do trabalho dividiu o homem e a
sociedade, intensi cando-se com a grande indústria, que subsumiu
Considerando a sociabilidade capitalista que instaura um
as ciências ao capital e fez o trabalho perder todo o seu caráter de
terreno repleto de contradições. Embora fundado na divisão do
manifestação pessoal pela apropriação dos instrumentos de
trabalho, nesse terreno, encontram-se postas as possibilidades de
produção, das forças produtivas e do produto do trabalho, pelos
uma formação humana em sua plenitude, por meio do
quais se pode alcançar a realização humana e, nesse contexto,
desenvolvimento da ciência e das forças produtivas que produzem
servem somente para enriquecer o capital e não o trabalho.
o necessário para suprir as necessidades vitais e espirituais de
Essa divisão fragmenta e dilacera o homem, dado que o
todos os indivíduos. Conforme Marx (1989, p. 554), do sistema
“trabalhador baixa à condição de mercadoria e à de mais miserável
fabril nasceu o germe da educação do futuro que unirá trabalho,
mercadoria, [em que] a miséria do trabalhador põe-se em relação
ensino e ginástica como método para produzir homens plenamente
inversa à potência e à grandeza da sua produção” (MARX, 2010d, p.
desenvolvidos, por meio da elevação da produção social. É nesse
79), porque, além de produzir valor, a sua atividade é restrita a uma
sistema de divisão do trabalho, da relação entre propriedade
única parte do processo produtivo. Devido a essa dilaceração do
privada e trabalho através do valor de troca que se agudiza o
trabalho e do trabalhador, nega-se a dimensão da totalidade do
processo de desumanização, porque “ao mesmo tempo, a forma
trabalho e, por conseguinte, do conhecimento geral e de seu
capitalista da indústria moderna reproduz aquela divisão de
domínio, estabelecendo, assim, o caráter unilateral do ensino, o que
trabalho de maneira ainda mais monstruosa, na fábrica
limita o operário a uma habilidade muito particular,
propriamente dita, transformando o trabalhador no acessório
impossibilitando-o de passar a uma habilidade ou ocupação mais
consciente de uma máquina parcial” (MARX, 1989, p. 555). Dessa
moderna, mais ampla, por não poder desenvolver suas
forma, o trabalho apresenta-se como um todo contraditório, em que
potencialidades, por isso, o trabalhador “somente pode viver se
ao mesmo tempo em que é manifestação humana, atividade vital e
agregado a uma máquina particular num trabalho particular” (MARX
indispensável, representa toda a degradação e a expropriação de
apud MANACORDA, 2010b, p. 45).
sua vida pela dilaceração social, rebaixamento dos sentidos
Nesse contexto, o controle e o produto do trabalho não
humanos e do conhecimento, provocado pela divisão do trabalho e
pertencem mais ao trabalhador, mas ao dono dos meios de
pela propriedade privada, transformando o trabalho em processo
produção, pois, no capitalismo, a “sociedade se decompõe em
de estranhamento do trabalhador, que, conforme Marx (2010d),
proprietários e trabalhadores sem propriedade” (MARX, 2010d, p.
apresenta-se sob três aspectos. São eles: na relação do homem com
79). O trabalhador, desse modo, aliena não somente sua atividade, Esse processo de estranhamento aprofunda a deformação e a
mas a si mesmo e a sua natureza humana; perde sua identidade de negação humana na proporção inversa da riqueza material e
ser genérico; enfraquece a sua capacidade produtiva; empobrece- espiritual produzida, pela negação do acesso ao usufruto do seu
se intelectualmente, pois ca limitado a um simples treinamento trabalho, por isso o homem não consegue desenvolver e apurar
manual, mutilado, para dominar apenas uma parte do processo seus sentidos estéticos e perceber a beleza da boa música, da boa
produtivo. Dessa forma, o próprio trabalho, a atividade fundante do comida, do bom perfume, da textura de um bom tecido, do
mundo dos homens, sob o capital, “o trabalho mesmo se torna conteúdo de um bom livro que o próprio homem criou e que
objeto” (MARX, 2010d, p.81), está imerso no processo de somente ele, em sua humanidade, possui em potência a capacidade
coisi cação e os objetos que produz aparecem ao trabalhador como de apreciar, pois “quanto mais […] bem formado o seu produto,
estranhamento, pois, o produto representa a desefetivação tanto mais deformado ele ca […], quanto mais rico de espírito o
humana, já que: trabalho, mais pobre de espírito e servo da natureza se torna o
[…] a objetivação tanto aparece como perda do objeto que o trabalhador trabalhador, [pois o trabalho] produz espírito, mas imbecilidade,
é despojado dos objetos mais necessários não somente à vida, mas cretinismo para o trabalhador” (MARX, 2010d, p. 82).
também dos objetos de trabalho [por isso] quanto mais objetos o
trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais ca sob o Nessa direção, o trabalhador não encontra espaço e
domínio do seu produto, do capital. (MARX, 2010d, p. 80-81) oportunidade de desenvolver sua inteligência e de elevar-se
Dito de outro modo, o objetivo da produção não é a satisfação culturalmente. Ao contrário, encontra um meio social, e também
humana e seu desenvolvimento, mas o desenvolvimento dos juros escolar, o qual estagna sua inteligência ao mínimo necessário para
do capital. Por isso, o mundo objetivo, ou seja, o mundo composto reprodução do capital, esvaziando seu ser de sua característica
pelas objetivações humanas, criado pelo homem, aparece como ontológica de ser social, ser de mediações e relações ricas e
algo estranho, irreconhecível, pois, assim como o produto do complexas, pois, conforme Marx (2010d, p. 108), “o lugar de todos
trabalho não pertence ao trabalhador, o mundo exterior que os sentidos físicos e espirituais passou a ser ocupado, portanto,
congrega esses produtos e é composto pela soma dessas pelo simples estranhamento de todos esses sentidos, pelo sentido
objetivações também não lhe pertence, mas é independente dele. do ter”.
Desse modo, como a rma Marx (2010d, p. 81), “tanto mais O homem resume-se, então, às suas estritas necessidades vitais
poderoso se torna o mundo objetivo, alheio que ele cria diante de e corporais, como um animal que luta simplesmente para garantir
si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, e tanto sua sobrevivência, perdendo sua liberdade criadora e inventiva por
menos o trabalhador pertence a si próprio”. dispensar todo seu tempo e suas forças somente com o necessário
à sua reprodução vital por car à margem do acesso à riqueza
material e espiritual que ele mesmo produz, as quais concorrem vestimenta e algumas coisas mais” (MARX, 2007, p. 33).
para o processo de humanização, tornando-se, dentro das Dessa forma, a divisão do trabalho condiciona a divisão da
contradições do capital, cada vez mais embrutecido e sem valor sociedade em classes, pois “a divisão do trabalho só se torna
quanto mais produz riqueza e re na seu produto, sendo rebaixado realmente divisão a partir do momento em que surge uma divisão
física e mentalmente a um útil e mero fazedor de coisas, distante entre trabalho material e espiritual” (MARX, 2007, p. 35) e, com ela,
do seu processo de humanização. O resultado é “que o homem (o a divisão do homem. As duas dimensões do homem encontram-se,
trabalhador) só se sente livre e ativo em suas funções animais, portanto, separadas, cada uma unilateral, que são essencialmente a
comer, beber e procriar [...] e em suas funções humanas só [se do trabalhador manual, ou melhor, o operário, e a do intelectual ou
sente] como um animal. O animal se torna humano, e o humano, lósofo. Em outras palavras, considerando o trabalho produtivo
animal” (MARX, 2010d, p. 83). Marx atribui isso ao fato de que “A como o genuíno trabalho, a sociedade, na verdade, encontra-se
propriedade privada nos fez tão cretinos e unilaterais que um dividida entre os que trabalham e aqueles que não trabalham; os
objeto somente é o nosso [objeto] se o temos, quando existe para que produzem e os que não produzem. Por isso, “com a divisão do
nós como capital ou é por nós imediatamente possuído, comido, trabalho está dada a possibilidade, e até a realidade, de que as
bebido, trazido em nosso corpo, habitado por nós etc., en m, atividades espiritual e material – de que a fruição e o trabalho, a
usado70” (MARX, 2010d, p. 108). Por isso, o homem não reconhece produção e o consumo – caibam a indivíduos diferentes” (MARX,
os objetos e as atividades sociais como seus; não se reconhece 2007, p. 36).
como parte de um mundo social criado por ele mesmo, porque não Desse modo, o alheamento das potências e o processo de
se reconhece como partícipe do gênero humano, dado o desumanização oriundos da unilateralidade, ou seja, o
estranhamento de si. Pois, a sua própria vida se apresenta como desenvolvimento medíocre de apenas uma dimensão humana
força antagônica, a “energia espiritual e física própria do atinge as duas classes, excluindo de ambas a sua individualidade,
trabalhador, a sua vida pessoal [...] o que é a vida senão [...] uma porém, exacerbando o individualismo, pondo “em movimento […] a
atividade voltada contra ele mesmo [?], independente dele, não ganância e a guerra entre os gananciosos, a concorrência” (MARX,
pertencente a ele” (MARX, 2010d, p. 83). Nesse sentido, o homem 2010d, p. 79), pois “a concorrência isola os indivíduos uns dos
não vai além de si mesmo, não consegue assumir-se como autor da outros, não apenas os burgueses, mais ainda os proletários, apesar
história, porque o pressuposto de toda a existência humana, ou de agregá-los” (MARX, 2007, p. 62). Contudo, é evidente que a
seja, de toda a história, é “o pressuposto de que os homens têm de classe trabalhadora sofre a maior penalidade, pois “tem de suportar
estar em condições de viver para poder ‘fazer história’. Mas para todos os fardos da sociedade sem desfrutar de suas vantagens”
viver, precisa-se antes de tudo, de comida, bebida, moradia, (MARX, 2007, p. 41), pela privação não somente dos bens materiais
necessários à sua existência, mas, sobretudo, dos bens espirituais existência e as de todos os membros da sociedade, dá-se
produzidos e de qualquer possibilidade de sua fruição plena, exatamente o inverso: nela os indivíduos participam como
impedindo-a de humanizar-se, de ter acesso a uma formação indivíduos” (MARX, 2007, p. 66).
omnilateral. Mesmo deformada, essa é a classe que possui as bases Assim, para atingir a genuína omnilateralidade, uma formação
para tornar-se revolucionária, tarefa histórica que exige – não humana integral, exige-se o m da alienação tanto do homem pelo
somente pelo fato de que, conforme Marx e Engels (2010), não tem homem quanto do homem em relação aos fetiches criados pelo
nada a perder a não ser suas cadeias, mas, sobretudo, pelo modo de produção hodierno e a retomada de posse da própria
desprendimento de preconceitos pelo trabalho manual que já natureza imanente, da natureza humana que é o desenvolvimento
desenvolve – a apropriação das armas espirituais criadas pela “de” todos os sentidos e “em” todos os sentidos, de forma integral,
consciência comunista proporcionada pela loso a da práxis, por no qual investirá suas faculdades e forças produtivas não somente
meio da qual essa classe revolucionária por excelência atingiria ns para prover os meios imprescindíveis às suas necessidades
imensuráveis, pois: materiais, mas, sobretudo, para sua satisfação espiritual. Essa
[...] a revolução comunista volta-se contra a forma de atividade existente satisfação omnilateral, ou seja, material e espiritual, tem sua
até então, suprime o trabalho [explorado] e supera a dominação de gênese na coincidência entre realização pessoal e vida concreta
todas as classes ao superar as próprias classes [...], [pois] a classe que
derruba detém o poder de desembaraçar-se de toda a antiga imundície coletiva decorrente da supressão da propriedade privada, possível
e de se tornar capaz de uma nova fundação da sociedade. (MARX, 2007, somente quando todos os indivíduos e a propriedade privada
p. 42).
forem suplantados pela totalidade das forças produtivas como um
Nesse sentido, o trabalhador é, segundo a realidade unilateral e produto social, isto é, para satisfazer necessidades genuinamente
segundo a possibilidade, omnilateral (MANACORDA, 2010b, p. 90), humanas, pois “o indivíduo não pode desenvolver-se
por isso é a classe que, embora excluída, deverá, ao libertar-se, omnilateralmente se não há uma totalidade de forças produtivas, e
libertar também consigo todas as demais, pois “na sua uma totalidade de forças produtivas não pode ser dominada a não
emancipação está encerrada a emancipação humana universal […] ser pela totalidade dos indivíduos livremente associados” (MARX
porque a opressão humana inteira está envolvida na relação do apud MANACORDA, 2010b, p. 94)71.
trabalhador com a produção” (MARX, 2010d, p. 89), pela qual Como a indústria moderna con gura-se como a relação histórica
somente será recuperada a individualidade humana que se real e atual do homem com a natureza, é dela que vem a
expressa ao mesmo tempo em um espírito de coletividade que se possibilidade e a necessidade da omnilateralidade, “pois é a partir
realiza nas relações materiais, não pela participação de indivíduos dela que se começa a sentir a necessidade de universalidade, a
como uma classe, mas porque “a coletividade dos proletários tendência a um desenvolvimento omnilateral do indivíduo”72
revolucionários, que tomam sob seu controle suas condições de
(MARX apud MANACORDA, p. 95), porque, à medida que a produção política, a economia, o estudo, a ciência, o governo e a sociabilidade
busca universalizar-se, pelo aumento da população e pela alta humana, além da produção para criar condições técnicas de
produção de riquezas estimula-se o trabalho e o desenvolvimento enfrentar as variações tecnológicas, suprassumindo a contradição
da totalidade das forças produtivas. Por meio dessa produção, seria da personalidade do indivíduo pela divergência entre a vida
possibilitado o desenvolvimento de indivíduos inteiros, o que seria pessoal e a vida no trabalho oriunda da autonomização das
possível caso ocorresse no meio social em que houvesse a união relações sociais no interior da divisão do trabalho, pela qual “surge
dos indivíduos pelos laços de comunidade, porque “é somente na uma divisão na vida de cada indivíduo, na medida em que há uma
comunidade [com outros que cada] indivíduo tem os meios de diferença entre a sua vida pessoal e a sua vida enquanto subsumida
desenvolver suas faculdades em todos os sentidos [e] a liberdade a um ramo qualquer do trabalho e às condições a ele
pessoal torna-se possível” (MARX, 2007, p. 64). Ademais, o correspondentes” (MARX, 2007, p. 65), divisão essa que o congrega
conhecimento universal necessita ser absorvido por cada um para em uma determinada classe.
eliminar a especialização compulsória, substituindo-a pela Desse modo, é necessária uma refundação dos alicerces do
liberdade de atuar em uma multiplicidade de atividades, além do mundo produtivo com a reuni cação da ciência e da indústria,
aumento do tempo livre para uma educação humanizadora que restabelecendo o vínculo entre ciência e trabalho, suprassumindo o
capacite não apenas para a atividade teórico-prática, mas para o pragmatismo e o praticismo criados pelo sistema hodierno pela
gozo dos bens espirituais, além dos materiais. Como assevera Marx, práxis que refundaria o novo homem, um homem de tipo completo,
[...] logo que o trabalho começa a ser distribuído, cada um passa a ter um integral. Para tanto, para atender a esses imperativos, faz-se
campo de atividade exclusivo, que lhe é imposto, e ao qual não pode necessária uma refundação social mediante um processo
escapar: o indivíduo é caçador, pescador, pastor ou crítico, e assim deve
permanecer se não quiser perder seu meio de vida; ao passo que, na revolucionário de caráter radical e classista, inspirando
sociedade comunista, onde cada um não tem um campo de atividade dialeticamente um novo projeto de ensino, um novo tipo de escola,
exclusivo, mas pode aperfeiçoar-se em todos os ramos que lhe agradam,
a sociedade regula a produção geral e me confere, assim, a possibilidade que seja ao mesmo tempo teórica e prática, politécnica de tipo
de hoje fazer isto, amanhã aquilo, de caçar pela manhã, pescar à tarde, à
noite dedicar-me à criação de gado, criticar após o jantar exatamente de
marxiano, unitária, fundamentada nos aspectos mais modernos e
acordo com a minha vontade, sem que eu jamais me torne caçador, integrais da ciência, a qual, ao eliminar a divisão do ensino,
pescador, pastor ou crítico. (MARX, 2007, p. 37-38).
ofertaria a todos, sem distinção, a universalização e a apropriação
A apropriação particular da generalidade de forças produtivas do conhecimento de forma consciente e madura – e não repentina e
objetivamente existentes signi ca, en m, a absoluta expressão das espontânea e de rebaixamento cultural –, conduzindo a todos ao
faculdades criativas subjetivas do homem, que, dessa forma, pode desenvolvimento superior moderno. Pois, “o homem se apropria de
dispor-se ao exercício de diversas atividades humanas como a sua essência omnilateral de uma maneira omnilateral” (MARX,
2010d, p. 108). separação entre interesse particular e interesse comum, enquanto a
Tal desenvolvimento fomentaria um desenvolvimento de atividade, por consequência, está dividida não de forma voluntária,
habilidades e potencialidades humanas, potencializadas pela mas de forma natural73, a própria ação do homem torna-se um
apropriação universal e consciente das forças produtivas e do poder estranho e que a ele é contraposto” (MARX, 2007, p. 37).
domínio da natureza, conhecimento que o homem utilizaria a seu Dessa forma, a formação defendida por Marx não se resume a
favor, não somente individual, mas, sobretudo, coletivo, para treinar os trabalhadores em diversos ramos para ter à disposição
libertar o conjunto dos homens do reino da necessidade para mão de obra aglutinada no exército de reserva para atender à
usufruir do reino da liberdade. No reino da liberdade essas modernização cientí ca e tecnológica com a substituição de um
necessidades vitais e orgânicas não deixariam de existir, porém, trabalhador unilateral por outro, mas trata-se da apropriação
seriam supridas coletivamente pelo trabalho associado. Dessa pessoal de uma totalidade de forças produtivas que desenvolverá
forma, o novo homem poderia dedicar seu tempo livre – não mais no indivíduo, além do espírito coletivo pelo qual estará disponível
apropriado pela exploração da mais valia – e sua capacidade para a diversidade de atividades, a omnilateralidade por meio da
cognitiva, agora livre das preocupações primeiras com a unidade indissolúvel entre trabalho manual e intelectual, teórico e
manutenção de sua sobrevivência, com o convívio familiar e social, prático, em contraposição ao imperativo da fábrica e do ensino
além da dedicação aos bens culturais e atividades que enriquecem classista. Essa apropriação possibilita, outrossim, a passagem à
o espírito humano, os quais, simultaneamente, contribuiriam para o manifestação plena de si na multiplicidade de atividades que possa
desenvolvimento pessoal e coletivo com a produção cultural pelo desenvolver para desembocar na verdadeira práxis social que, em
envolvimento e exercício em atividades artísticas, culturais, Marx, signi ca a união do que os gregos dividiam em teoria (como
esportivas, cientí cas e todas as outras que melhor lhe aprouver. atividade de re exão), prática (como atividade produtiva) e práxis
Esse seria o terceiro e grande passo rumo à restauração da (como atividade política), a qual somente ocorrerá “com a
unidade humana – pois, com o m da divisão social e da superação da base, da propriedade privada, com a regulação
propriedade privada, consolidar-se-ia a omnilateralidade humana – comunista da produção, [...] a supressão da relação alienada dos
e da sociedade como um todo, não somente pelauniãodos objetivos homens com seus próprios produtos, [pela qual] os homens
individuais e sociais, mas pela transformação dos objetivos retomam seu poder sobre a troca, a produção e o modo de seu
individuais em objetivos sociais, não dentro de um engodo relacionamento recíproco”(MARX, 2007. p. 39) e recuperam em
ideológico que reforça a dominação de classe a qual “apresenta um toda a sua plenitude a identidade de pertencimento de ser
interesse particular como geral ou o geral como dominante” (MARX, genérico, de Ser Humano.
2007, p. 49), mas pelo reordenamento social, pois, “enquanto há a
Nessa perspectiva, sobre as bases esboçadas por Marx, Gramsci Nesse espectro, a nova escola cientí ca, humanística, técnica e
defende sua proposição de educação e escola visando erguer os pro ssionalizante atenderia de uma só vez os imperativos
alicerces da formação do homem unitário, refutando os imperativos dominantes, instruir para o mundo produtivo e disseminar os ideais
classistas modernos de atender mecanicamente aos interesses dominantes através de sua visão de mundo, sua loso a. Nessa
impostos pela industrialização. tela, surgem diversas teorias pedagógicas a m de dar conta das
novas exigências industriais e políticas que, partindo não mais da
contemplação, mas do efetivo processo de trabalho, buscam
As propostas pedagógicas do início do século organizar uma didática que abarque e harmonize os aspectos
XX humanos e os interesses individuais e coletivos. Em um terreno de
disputa entre iniciativas religiosas e laicas, em toda a Europa se
As revoluções ocorridas do século XVIII ao XX movimentaram e discute e se trabalha para criar uma nova proposta de escola. Desse
reorganizaram não só as forças produtivas e o modo de produção, modo, surgem diversos estudiosos e várias teorias pedagógicas
mas, sobretudo, a ideologia que legitimaria a ordem vigente e as que, a partir de Rousseau74, aferem a necessidade de iniciar o
exigências da formação humana. Sob os ideais democráticos processo educativo desde a infância. Dentre essas teorias, registra-
burgueses, os grilhões, que antes eram de ferro, passaram a ser se, segundo Manacorda (2010a), a pedagogia utópica socialista
grilhões de ideias, as quais precisavam de espaços e organismos representada por Robert Owen75, que a rmava buscar restituir a
que as disseminassem como ideais de toda a sociedade. Associado dignidade dos trabalhadores e atingir a perfeição com a proposta
a esse dilema, estava o fato de que, com o desenvolvimento da de formação integral pela superação da divisão do trabalho, porém,
indústria e das maquinarias, era necessário ensinar algo para que o fundado na “ilusão pedagógica de que basta um sistema de
trabalhador desenvolvesse bem o seu trabalho sem causar instrução para modi car a sociedade” (MANACORDA, 2010a, p.
prejuízos, dada a rapidez com que as máquinas se modernizavam e 331).
tornavam-se obsoletas. Para atender a essas necessidades, surgem Na contramão dessa perspectiva, Marx, a partir da crítica à
dois projetos, a escola da fábrica, que, no bojo das contradições, é o economia política e à educação burguesa, concebe a generidade
primeiro espaço de difusão do conhecimento à classe trabalhadora humana enquanto ser social isento de qualquer interesse classista,
na qual se buscava aplicar o método artesanal de ensino – porém, no contexto da relação entre trabalho, educação e transformação
explicitamente orientada para o atendimento especí co e imediato social. Ao abordar o problema no Conselho Geral da Associação
das necessidades do capital – e as escolas técnico- Internacional dos Trabalhadores, Marx demonstra a di culdade que
pro ssionalizantes que pretendiam unir o ensino humanístico aos se impõe para a educação dos trabalhadores, pois “exige-se, de um
conteúdos cientí cos, superando a escola humanista tradicional.
lado, uma mudança das condições sociais para criar um sistema de conhecida como a tendência pedagógica que fundamentalmente se
instrução adequado e, do outro, um adequado sistema de instrução rma em respeitar a evolução psicológica da criança, diferente do
para poder mudar as condições sociais” (MARX apud MANACORDA, que ocorria no ensino artesanal (transmissão) – baseia-se na
2010a, p. 102). espontaneidade do aluno, na livre iniciativa e nos jogos como
Analisando a emergência da grande indústria, Marx (1989, p. representações do mundo real, do mundo produtivo, como
560) assevera que “a indústria moderna, ao dissolver a base elementos educativos. Por isso, esses métodos são também
econômica da família antiga e o correspondente trabalho familiar, chamados de métodos ativos, e portanto, como a rma Manacorda
desintegrou também as velhas relações familiares. O direito das (2010a, p. 368), “o próprio trabalho, nessas escolas, não se
crianças tinha de ser proclamado”, efetivando-se, minimamente, a relaciona tanto ao desenvolvimento industrial, mas ao
redução do trabalho das crianças nas fábricas, fato que não desenvolvimento da criança”. Desse momento em diante, a
somente as deixaram disponíveis para frequentar a escola, mas as psicologia, que emerge, sobretudo, de experimentos médicos77
libertou totalmente do poder e da in uência de suas famílias que para o atendimento de necessidades especiais infantis, associou-se
se encontravam ocupadas no trabalho. de nitivamente à pedagogia moderna, apresentando a criança
Não obstante, a partir do postulado de Marx relativo à educação como sujeito da sua própria aprendizagem.
e ao ensino no contexto da sociabilidade burguesa, Nessa tela, após a Primeira Guerra Mundial, período em que se
compreendemos que, antes de tudo, a superação da divisão social acirra a crise mundial, é na escola estadunidense que os métodos
em classes necessitaria de uma consciência de classe que deve ativos foram além. Foram instituídos os centros educativos,
ocorrer em consonância com o estabelecimento de uma pedagogia fundados no critério learning by doing ou aprender fazendo,
revolucionária, em que a formação humana integral ocupe a apresentando os conteúdos abstratos de forma concreta e
centralidade do projeto. estimulando a autonomia na resolução de problemas, visto que o
Somado ao reconhecimento do trabalho e sua importância no mundo socioeconômico demandava uma prática e uma urgente
processo educativo está o reconhecimento da infância e da solução. Sob a orientação de John Dewey, foram criadas novidades
psicologia infantil como fator preponderante no desenvolvimento pedagógicas, a exemplo do Plano Dalton”78, de Helen Parkhurst79,
da moderna pedagogia que se estabelece no início do século que exacerbaram os métodos ativos e in uenciaram, sobremaneira,
passado na Europa e Estados Unidos, tais reconhecimentos formam a política educacional italiana, bem como alguns dos fundamentos
dois aspectos que se repelem, mas se unem no objetivo de formar o da pedagogia socialista soviética. Pois, com a Revolução de
homem produtor e ativo: buscar unir teoria e prática. Nessa trilha, Outubro, que tinha como pressuposto a constituição de uma
76
conforme Manacorda (2010a), a Escola Nova – que cou sociedade comunista, a pedagogia socialista soviética buscava a
criação da escola do trabalho que, seguindo a tradição marxista, conhecimento historicamente produzido, negando a importância de
atendesse aos imperativos de formação omnilateral esboçados por sua transmissão e, consequentemente, do papel do professor nesse
Marx e Engels, os quais deveriam ir além da adição da formação processo, ou seja, os métodos se sobressaiam aos conteúdos em
pro ssional ao ensino tradicional. É válido destacar a re exão de nome da autonomia absoluta dos estudantes.Tudo isso assentado
Marx (1989, p. 559) sobre a instrução primária: no solo da democracia arquiburguesa, tal como era a democracia
A legislação fabril arrancou ao capital a primeira e insu ciente estadunidense. Essas circunstâncias levaram Krupskaya83, após um
concessão de conjugar a instrução primária com o trabalho na fábrica. contato mais próximo84, a concluir que
Mas, não há dúvida de que a conquista inevitável do poder político pela
classe trabalhadora trará a adoção do ensino tecnológico, teórico e Tuttavia, una conscenza più esatta della scuola americana contemporanea
prático, nas escolas dos trabalhadores. ci mostra quanto profondamente ci sbagliamo si pensamo così. Per non
parlare nenmemo delle scuole speciali per i negri, in America tutta la
Porém, como a rmara o próprio Pistrak (2011), quando scuola è permeata da uno spirito sciovinista arciborghese85.(KRUPSKAYA
começaram o trabalho da Escola não tinham programa ou uma base apud MANACORDA, 1964, p. 98)

teórica necessária para solucionar os problemas. Tinham apenas a Dessa forma, Krupskaya concorda com Lenin quando o mesmo
vontade de educar as novas gerações no espírito comunista e, por a rma que “Não podemos deixar de colocar francamente a questão,
isso, diante das di culdades, descobriram e lançaram mão de uma reconhecendo, abertamente, apesar das antigas mentiras, que a
série de ideias ditas de pedagogia social desenvolvidas pelos educação não poderia ser independente da política” (LENIN apud
pedagogos modernos, tal como o Plano Dalton. PISTRAK, 2011, p. 19)86 e, assim, de ne a diferença essencial entre
80
São esses espaços expostos no Plano Dalton que serão os objetivos da escola burguesa e os objetivos da escola operária.
adaptados ao modelo educacional na escola do trabalho Continua Krupskaya:
81
soviética , nos quais, segundo a idealizadora do plano, Helen
Il ne che lo stato borghese assegna a la scuola è di servire da strumento
Parkhurst, del dominio di classe della borghesia [...mentre] Il ne [della classe
operaia] consiste nell´educare una generazione che possa attuare i ni
The children are the experimenters. The instructors are the observers, who della classe operaia [che è] porre ne al dominio di classe87 . (KRUPSKAYA
stand ready to serve the community, as their special talents are needed. As apud MANACORDA, 1964, p. 99)
observers they study the children to nd out what environment will best
meet the immediate education needs. As specialists, their function is to
Desse modo, evidencia-se uma incongruência essencial entre as
give technique, to point the way to the acquisition of information, and to
maintain intellectual and technical standards82.(DEWEY, 1922, p. 1) duas propostas e a impossibilidade de harmonização dos seus
objetivos, pois o ensino frente à realidade atual signi ca refutar a
Esse trecho nos mostra que a pedagogia nova trazia uma direção
pretensiosa neutralidade do ensino burguês e educar a criança para
totalmente voltada para a prática imediata, exaltando o
a tomada de posição frente às exigências sociais, reconhecendo
conhecimento e o interesse imediato em detrimento do
que a “criança e, sobretudo, o adolescente não se preparam apenas
para viver, mas já vivem uma verdadeira vida” (PISTRAK, 2011, p. Nesse quadro de grandes agitações e greves revolucionárias,
33). surgem os movimentos nacionalistas e populares que
Pistrak (2011, p. 89), ao analisar os limites dessas duas “propugnavam o restabelecimento de um Estado forte, capaz de
correntes, a rmava, em sua crítica, que os mesmos acreditavam que reconstruir a ordem e a prosperidade”. Logo, conforme Konder
“pela via pací ca do progresso gradual, é que se pode alcançar o (1977), tais movimentos tiveram o apoio preponderantemente da
futuro melhor, realizar a felicidade dos homens”, negando o pequena burguesia, bem como de outras camadas sociais. Esse
problema fundamental que reside no terreno das relações emaranhado de grupos e teorias resultou em ideias de oposição
antagônicas do contexto vigente, que é a luta de classes. tanto ao liberalismo como ao comunismo, alicerçando as bases do
Dessa feita, considerando que Gramsci foi preso em 1926, e fascismo fundado por Mussolini90, que, segundo Konder (1977, p.
somente em 193288 escreveu o Caderno 12 acerca da Escola 8), apresentava-se como um movimento de ecletismo oportunista
Unitária, e o livro Fundamentos da Escola do Trabalho no qual que importou “do marxismo alguns conceitos, desligando-os do
Pistrak expõe a tendência a aderir ao Plano Dalton foi publicado em contexto em que tinham sido elaborados, misti cando-os e
agosto de 1924, compreendemos que embora a re exão de tornando-os úteis aos seus propósitos”.
Gramsci se dirija nas cartas à escola soviética, entendemos que se A Itália, que mesmo após a uni cação ainda era um estado
direcionavam diretamente à proposta da escola nova de viés liberal pobre, nesse período chega à beira da ruína, pois a industrialização
que se inseriu no modelo escolar soviético, assim como na Reforma proporcionada pela guerra gerou con itos internos entre o norte e
Gentile. Certamente essas observações o in uenciaram o sul, devido à concentração da indústria no norte italiano, que
decisivamente em suas formulações sobre a Escola Unitária. agudizou o empobrecimento das camadas camponesas do sul e da
Nesse sentido, buscamos esboçar, de forma breve, o quadro pequena burguesia com a dissolução de suas empresas.
sócioeconômico no pós-guerra da situação geral italiana e também Nessa situação de caos econômico, desemprego em massa e
europeia como um todo, que desencadeou os caminhos para o profunda situação de descontentamento, instaura-se a crise do
fascismo e a Reforma Gentile, como plano educacional fascista. parlamentarismo, com fortes rebatimentos nos maiores partidos
89
O saldo negativo e devedor da Primeira Guerra agudizou a italianos que surgiram no pós-guerra, o Socialista e o Popular
miséria e a luta de classes, fatos que aliados aos ideais (católico), além do fracasso das instituições democráticas. Toda
revolucionários advindos da Revolução Russa, geraram o despertar essa ebulição de eventos causa sérias e signi cativas mudanças na
das consciências e uma grande crise política e estatal, com a estrutura social italiana.
descrença nos governos que favoreceram o surgimento de Nesse campo minado, os fascistas encontraram o caminho
movimentos e grupos em oposição aos governos liberais. aberto para ncar raízes e se estabelecerem como alternativa à
O totalitarismo […] não estende a ter súditos passivos não-participantes,
crise, objetivando suprimir o Estado Liberal, que, no governo de
mas soldados fanáticos e “convictos”. Trata-se de fato, da tentativa de
Nitti (1919-1920) e também de Giolitti (1921-1922), buscaram mobilizar a inteira população, transformando segundo um modelo bem
preciso o conjunto dos papéis e das formas de participação. […] para o
consolidar um governo de coalizão para ampliar o domínio do fascismo totalitário o problema das massas não era uma questão apenas
sistema político liberal. Para tanto, esses governos viabilizaram o de disciplina e de submissão, mas uma questão de consenso […].

sufrágio universal e fecharam acordos com os movimentos armados Porém, é com a Marcha sobre Roma, em 1922, que o fascismo dá
fascistas, visando, outrossim, suprimir os grupos radicais e trazer os o último golpe psicológico na crise e no Estado e, com o apoio da
reformistas para o governo. velha classe governante93, ascende ao poder, dando início ao
O fascismo torna-se um partido e, após a saída da fração extenso período de terror branco, com a supressão das liberdades
comunista91 do Partido Socialista, se aproxima do PSI e se constitucionais, a proibição de greves e sindicatos, a pena de morte,
estabelece como força que se ergue com métodos de guerra prisões e execuções.
aplicados à política. Esse movimento de sincretismo ideológico, Visando reorganizar a sociedade em crise, o fascismo investe
ligeiramente toma conta das massas, devido à ampla adesão da nas corporações e na escola como instrumentos de fortalecimento
juventude italiana aos ideais nacionalistas, que pregava a do regime, vislumbrando em ambas o desenvolvimento da
solidariedade de todas as classes, burgueses e proletários, com “solidariedade” e do “progresso” nacional através de uma reforma
uma única missão, a fundação de um novo Estado, isto é, a moral e cultural que incrementariam o desenvolvimento da
reconstrução do país. Não obstante, o fascismo, visando alcançar e produção. A escola, pois, na lógica fascista, assume como objetivo
mobilizar as massas, investe na propaganda através de símbolos e geral a formação de pessoas capazes de assegurar o progresso
ritos e no combate violento aos seus adversários, formando uma econômico e histórico nacional e elevar o nível moral e “cultural”
mentalidade social homogênea enquanto se organiza e se da massa visando promover os melhores elementos de todas as
fortalece. classes para garantir a renovação constante das classes dirigentes.
Com a conquista do consenso das massas por manifestar-se No nal de 1922, Giovanni Gentile com sua concepção de
como personi cação da vontade e das necessidades destas, o “Estado ético”, assume o Ministério da Instrução Pública e inicia, na
fascismo92 constitui-se em um regime fechado e totalitário erguido Itália, uma reforma educacional nos moldes fascistas sob o governo
sobre essa convicção direcionada por determinados valores e ns, Mussolini, sob certo espírito nacionalista que introduz a
com vistas a proteger a sociedade italiana do “perigo do obrigatoriedade do ensino religioso católico. A Reforma Gentílica94,
bolchevismo”, com o fortalecimento da soberania do Estado sobre a como cou conhecida, assumidamente neohegeliana ou
sociedade e a disciplinada organização das massas. Nas palavras de neoidealista, segundo Miranda (2007), pautava-se na busca pelo
Gentile (1988, p. 44-45), princípio geral da loso a do espírito como o motor da educação e
da consciência, para a construção do espírito nacionalista tendo a espírito”.
família como a molécula social e a liberdade objetiva na gura do Todo esse cenário demonstrava a preocupação do regime
Estado. Tal liberdade limitava-se à disciplina diante de regras e leis fascista em negar a luta de classes em nome da exaltação do
perante a pátria, a família e o Estado. nacionalismo pelo suposto con ito de nações, além do
Baseado na identidade da loso a e educação do espírito, conhecimento pelo perigo da instrução para todos, que, conforme
Gentile a rma que para a restauração desse novo Estado fazia-se Mussolini (apud MIRANDA, 2007), deveria ser evitada. De acordo
necessária a restauração da escola para a constituição do novo com Mussolini,
homem, que deveria ocorrer de forma “unitária”, na união do [deve-se] criar a classe dos guerreiros, que está sempre pronta para
espírito, família, cidade, escola e nação. Dessa forma, conforme morrer; a classe dos inventores, que procu ra o segredo do mistério; a
classe dos juízes, a classe dos grandes chefes das indústrias, dos grandes
Horta (2008), o idealismo expressava um aparente dualismo, ao exploradores, dos grandes governadores. E é através dessa seleção
mesmo tempo em que a rmava a liberdade didática do professor95 metódica que se cria a grande categoria, dos quais eles vão sustentar o
império98.
no ensino primário, controlava o trabalho docente do nível
elementar da seguinte forma: ressalta o respeito ao regime e o Nesse contexto de efervescência e involuções políticas,
amor à nação; insere inclusive o ensino religioso católico 96
como econômicas e pedagógicas que Gramsci tece suas considerações e
meio de controle do povo, de formação de gerações dóceis; guarda elabora sua proposição revolucionária de escola, presentes em seus
a loso a para as camadas superiores. Em nome de uma escola “do Escritos políticos, nas Cartas e nos Cadernos do Cárcere.
povo” e “para todos” buscava-se respeitar as tradições populares,
mantendo-as ncadas nas raízes folclóricas. Tudo isso com a
Os fundamentos da escola unitária e da nova
intervenção de um grande colaborador da reforma: Lombardo-
Radice97. concepção de formação
Todavia, foi na escola média que a reforma empenhou esforços Este modo de conceber a educação como o desenrolamento de um o
para manipular ideologicamente os jovens e manter o status quo: preexistente teve sua importância quando se contrapunha à escola
jesuítica, isto é, quando negava uma loso a ainda pior, mas hoje está
oferecia um ensino doutrinário do regime; aprofundava a igualmente superado. Renunciar a formar a criança signi ca só permitir
discriminação das classes subalternas com a oferta do ensino que sua personalidade se desenvolva acolhendo caoticamente, do
ambiente geral, todos os motivos de vida. (GRAMSCI, 2005a, p. 386)
pro ssional especializado; inferiorizava a formação do trabalhador.
Pois, conforme Mochcovitch (1988, p. 60), estes visavam que “não A Escola Unitária constitui-se na proposta gramsciana formulada,
se deve lançar às massas as pérolas da cultura, mas reservar apenas especialmente, no contexto do cárcere, esboçada, com maior
ao homem das classes superiores o complexo desenvolvimento do sistematicidade, no Caderno 12 de 1932, no qual explicita um
projeto universal e omnilateral de formação humana, embasado na o autor sardo depara-se com o modelo educacional italiano que
loso a da práxis, isto é, na formação de uma nova concepção de pôde acompanhar enquanto militante comunista durante e após a
mundo capaz de consolidar uma nova relação do homem com o Primeira Guerra e com o modelo educacional soviético, no qual
mundo e consigo mesmo, através da unidade entre atividade como vimos estavam inseridos seus lhos, por isso, “interessava[-
manual e intelectual. se] muitíssimo” pela matéria.
Para tanto, no cárcere, ao se debruçar sobre o estudo da Nessa esteira, conforme Mochcovitch (1988, p. 53), Gramsci
formação dos intelectuais em contraste com a realidade da “manifesta-se contra a reforma imposta em sua época, à medida
formação humana, encontrada nas propostas pedagógicas que esta atinge o caráter comum e único da escola, pela distinção
modernas e nos modelos e métodos de ensino na Itália, nos Estados precoce entre formação intelectual e humanista geral e formação
Unidos e na Europa como um todo, Gramsci, ao confrontar-se com o pro ssional”. Assim, no período pré-carcerário, tece considerações
processo instantâneo de industrialização, encontrou-se diante da sobre a educação e a função da escola divulgadas em artigos para
prodigiosa tarefa de propor um projeto formativo centrado no os jornais da época, dentre eles, podemos destacar: Socialismo e
homem que se distinguisse dos demais no tocante à relação cultura (1916), A escola do trabalho (1916), A escola vai à fábrica
trabalho e educação. Dessa feita, com o interesse de pai para com a (1916), A universidade popular (1916), Homens ou máquinas?
educação dos lhos, os quais se encontravam inseridos no projeto (1916) e A escola de cultura (1919).
de escola soviética, aliado ao interesse e à vontade teórico-política Em Socialismo e Cultura (1916), Gramsci destaca a oportuna e
de militante comunista de consolidar e atender à necessidade conveniente negação do conhecimento ao proletariado pelo
imperiosa de proposição de um projeto político-revolucionário de governo liberal, bem como conceitua cultura como a aquisição da
formação humana de viés genuinamente comunista e, portanto, consciência superior que não ocorre como uma evolução
omnilateral, é que assentou sua proposta de escola unitária como espontânea, mas pelo ato de re exão sobre as condições e as
escola da práxis. Gramsci utilizou-se das informações enviadas necessidades que, partindo de um, pode tomar conta de toda a
através de cartas que invocara à sua mulher e do conhecimento classe, acionando suas forças para uma revolução, pois, “cada
rmado pelos lósofos da práxis (Marx e Engels) que tinha através revolução foi precedida por um intenso trabalho de crítica”
dos textos editados em sua época, ainda que no cárcere não (GRAMSCI, 1916)99. Dessas linhas emerge uma concepção
pudesse fazer referência a eles. ontológica de “ser” que se aproxima da ontologia marxiano-
Como, no início do século XX, diversas propostas pedagógicas lukásciana, quando diz que:
despontavam buscando atender às necessidades político- […] nada disso pode ocorrer por evolução espontânea, por ações e
econômicas decorrentes do desenvolvimento das forças produtivas, reações independentes da própria vontade, como ocorre na natureza
vegetal e animal, onde cada ser singular seleciona e especi ca seus
próprios órgãos inconscientemente, pela lei fatal das coisas. O homem é
(GRAMSCI, 2004a, p.60). Aproxima-se da crítica de Marx à uma
sobretudo espírito, ou seja, criação histórica, e não natureza. (GRAMSCI,
2004a, p.58) formação unilateral, porém, limita-se ainda a defender “a
equiparação do operário a qualquer outro pro ssional”.
Em A escola do trabalho100, Gramsci faz uma severa crítica ao
No artigo que avalia A Universidade Popular (1916)102, Gramsci
investimento do governo italiano na formação das camadas médias
critica o ensino e os métodos que subestimam o público que a
letradas que nada fez por uma escola do trabalho que possibilitasse
frequenta103 e dá várias lições de como ensinar de forma fecunda e
ao proletariado aperfeiçoar-se e elevar-se para o desenvolvimento
profícua, a rmando que:
da produção, escola esta necessária na situação da guerra que se
espraiou durante o pós-guerra. Por isso, a rma que “é o Este modo de apresentar aos ouvintes a série de esforços, os erros e
vitórias pelos quais os homens para alcançar o atual conhecimento, é
proletariado que deve erigir a escola do trabalho” (GRAMSCI, muito mais educativo do que a exposição esquemática deste mesmo
2004a, p.58) e reivindica a sua valorização e de suas competências conhecimento. Forma o estudioso, dá ao seu espírito a elasticidade da
dúvida metódica que faz do diletante o homem sério, que puri ca a
com a oferta de condições favoráveis e leais “para um melhor curiosidade, vulgarmente compreendida, e a transforma em estímulos
sãos e fecundos do cada vez maior e perfeito conhecimento. (GRAMSCI,
aproveitamento dos produtos de nossos talentos, porque estamos
1916)104
abertos a todos os meios necessários para a nossa elevação interior
e para a valorização das nossas boas qualidades” (GRAMSCI, 2004a, Nessa trilha, continua ressaltando o contínuo progresso do
p. 59). Nessas a rmações, veri camos que, embora as críticas de conhecimento através da apropriação do que já fora descoberto e
Gramsci sejam contundentes, trazem uma visão ainda de cunho produzido, por isso, a rma a imperiosa necessidade da “[...] parte
idealista, pois ainda não se articula com um plano revolucionário mais vital do estudo: este espírito criativo, que fazia assimilar os
superior. dados enciclopédicos e os fundia numa chama ardente de nova
Assim, em A escola vai à fábrica (1916) 101
, Gramsci acirra a vida individual”, pois o “[...] ensino desenvolvido, desta maneira,
crítica à manobra do governo em utilizar os jovens no trabalho torna-se ato de libertação” (GRAMSCI, 1916)105. E continua
fabril de munições para a guerra, a rmando que o ministro acredita destacando a necessidade desse processo de tentativa-erro para se
que “a qualidade da escola possa mudar porque os estudantes irão chegar à verdade, fundado nos conhecimentos anteriores, não de
à fábrica”. Contudo, Gramsci deixa bem claro que não concebe a simples conhecimentos prévios individuais, mas através da
escola do trabalho como um simples ajuste da escola à fábrica, apropriação do desenvolvimento histórico de todo o conhecimento
quando a rma que “a escola quando é feita com seriedade, não humano. Assim, assevera “Como do erro se chega à certeza
deixa tempo para a fábrica […]. Enxertar uma na outra, como se está cientí ca. É o caminho que todos devem percorrer. Mostrar como
fazendo, é mais uma das tantas aberrações pedagógicas que, na foi realizado pelos outros é o ensino com resultados mais
Itália, sempre tem impedido a escola de ser uma coisa séria” fecundos” (Ibidem).
2004a, p. 74)
No artigo Homens ou Máquinas (1916), Gramsci avalia o debate
entre os vereadores Sincero e Zini sobre o ensino pro ssional e se Gramsci aqui já demarca o objetivo que a escola deve perseguir
depara com dois problemas: o PSI não havia apresentado nenhum para formar indivíduos inteiros, isto é, eximir-se dos interesses
programa escolar preciso, apenas princípios gerais; e a escola imediatos, pela busca do alto desenvolvimento do indivíduo de
estava dividida em técnicas e pro ssionais de acordo com as forma desinteressada, de um modo que trate de cultura formativa e
classes: burguesia e proletariado. Gramsci (2004a, p. 74), então, não só informativa, deixando o indivíduo experimentar e
denuncia que “a cultura é um privilégio. A escola é um privilégio” e desenvolver suas aptidões para melhor contribuir com a
reivindica o seu acesso também aos lhos dos trabalhadores, para coletividade. Desse modo, as categorias desinteressada e
que, com as devidas condições, seja garantido o sério coletividade constituirão dois princípios que, após 1917, serão
aproveitamento dos estudos. Por isso, a rma que “O Estado não cada vez mais ampliados e nortearão os princípios da escola
deve pagar a escola, com o dinheiro de todos, também para o lho unitária.
dos medíocres e de cientes ricos, enquanto deixa de fora os jovens Perseguindo esses objetivos, Gramsci, junto aos camaradas do
proletários inteligentes e capazes” (GRAMSCI, 2004a, p. 74). partido106, em abril de 1919 inauguram a Escola de Cultura e
Ainda nesse artigo, Gramsci, de forma preliminar, assevera o Propaganda Socialista, o L’Ordine Nuovo, que visava dar o primeiro
ponto essencial que limita a formação dos indivíduos, mormente do passo para a desarticulação do Estado Liberal e a instituição de uma
proletariado, às “atuais condições da sociedade, que determinam educação verdadeiramente integral para as novas gerações, que
certa especialização entre os homens – especialização antinatural, demandava a formação da liderança revolucionária, a qual
já que não baseada na diferença de capacidades e, por isso, transformaria e dirigiria a sociedade. Gramsci expôs no artigo “A
destruidora e prejudicial à produção” (2004a, p. 74). Dessa feita, escola de cultura”107 a satisfação pelo êxito do projeto, o qual era
aproxima-se da visão de formação humana marxiana, a qual alvo de ceticismo de alguns. Assim, tendo como público os
somente será possível com um conjunto de fatores harmônicos: trabalhadores fora da idade escolar, Gramsci compara a experiência
uma nova sociedade e uma escola de novo tipo que oportunize aos da escola burguesa com o projeto e destaca o superior
indivíduos desenvolver livremente suas aptidões e capacidades aproveitamento dos trabalhadores que, mesmo cansados,
para colaborar com o trabalho associado. Desse modo, delineia os esforçavam-se com intensa atenção, a rmando que “Isto não seria
pressupostos em direção à escola unitária, ao propor que: possível se o desejo de aprender, para estes operários, não surgisse
O sacrifício da coletividade só se justi ca quando se dá em benefício de uma concepção do mundo que a própria vida lhes ensinou e que
dos que merecem. Por isso, o sacrifício da coletividade deve servir,
sobretudo, para dar às pessoas de valor aquela independência
eles sentem necessidade de esclarecer para possuí-la
econômica necessária para que possam consagrar tranquilamente seu concretamente, para poder atuá-la plenamente”, e tornam a escola
tempo aos estudos e para que possam fazê-lo com seriedade. (GRAMSCI,
viva pelo “desejo de adquirir conhecimento, de [...] tornardes das obras já existentes sobre os intelectuais” (GRAMSCI, 2010, p.
capazes, donos do vosso pensamento e da vossa ação, artí ces 18). Em sua proposta, expressa, sobretudo no Caderno 12, o teórico
108
diretos da história da vossa classe” (GRAMSCI, 1919) . Na escola italiano, de forma dialética, analisa e, ao mesmo tempo, refuta o
burguesa, ao contrário, a rma Gramsci (Ibidem), ela possui a modelo educacional dominante existente, apresentando a escola
nalidade última implícita de apenas “fazer carreira, de conquistar unitária como alternativa revolucionária capaz de colocar o
um ‘diploma’, de empregar a própria vaidade e a própria preguiça, conhecimento a serviço da classe trabalhadora.
de se enganar, hoje a si próprios e, os outros, amanhã”, isto é, Destarte, a obra de Gramsci traz incrustações sobre a escola, que
atender apenas a interesses egocêntricos e imediatos do sistema se destaca de seus precursores Croce e Gentile, pois estes se
vigente. pautavam no materialismo histórico de fundo neoidealista ou
Desse modo, Gramsci já buscava com o L´Ordine Nuovo a neohegeliano, sua obra se colocava como uma alternativa ao que
superação da dualidade entre humanismo e técnica instaurada pela Suchodolski (1992) classi ca como a querela entre a Pedagogia da
escola liberal idealista, que resultava na formação unilateral dos Essência e a Pedagogia da Existência que desemboca no século XX,
indivíduos, dada uma sociedade em que a cultura geral era expressando-se como a crise da escola. Ao contrário de seus
privilégio de poucos, e por isso, distante dos homens simples. precursores, o autor sardo permite-se uma análise a partir do
Contudo, somente no cárcere, a partir de 1929, retoma o materialismo histórico-dialético elaborado por Marx, assentado no
assunto, quando diz que “Agora que posso fazer anotações em real, nas contradições da vida, considerando os fenômenos em sua
caderno, quero ler de acordo com um plano e aprofundar origem (essência) e evolução, articulados com a totalidade social,
109 em uma relação dialético-orgânica que mostra sua originalidade.
determinados temas” (GRAMSCI, 2005, p. 316) . Preocupado com
o contexto reformista, Gramsci, do cárcere, busca toda informação Gramsci vislumbra sutilmente nos cadernos resgatar o marxismo do
110 determinismo positivista e economicista e do praticismo
possível sobre os novos métodos, através das cartas e literaturas
acessíveis. Baseado nas categorias desenvolvidas ao longo de sua voluntarista em que fora mergulhado a partir da Segunda
trajetória militante, emerge a ideia da Escola Unitária como um Internacional111, que se apresenta em uma unidade político-
plano educacional, não somente para uma profunda mudança na losó ca, a loso a da práxis. É sobre esta que se assenta seu
Itália sob a ótica do PCI, em resposta à Reforma Gentile, mas método, uma loso a orgânica, viva, que, ao mesmo tempo em que
sobretudo, um plano que se pretendia universal, que se é uma concepção de mundo, é um modo cientí co de interpretá-lo.
consolidasse como a proposta moderna superior e integral de Nessa trilha, do cárcere, sem noção do que realmente ocorria na
ensino, a qual, segundo o autor sardo, nasce de uma pesquisa, “a Rússia, devido aos silêncios intermitentes de Giulia, de início dá
primeira parte da pesquisa poderia ser uma crítica metodológica todo apoio ao modelo educacional russo, no qual seus lhos estão
inseridos, guardando suas críticas ao modelo educacional italiano, 2005a, p. 438)113.
que se revelam nas críticas à educação da sobrinha Mea – como no Porém, ao que tudo indica, Gramsci buscava informações
caso da visita de Lady Astor à escola soviética em que criticou em seguras para, em contraste com os modelos educacionais liberais,
um artigo de opinião o modo como as crianças são tratadas na como o italiano, aprofundar-se no assunto para desenvolver suas
Rússia, ao a rmar que “os russos têm tanta ansiedade em manter as aferições no caderno que redigirá em 1932. Entretanto, bem antes
crianças limpas que nem lhes deixam o tempo de sujarem” de sistematizar seus estudos e se debruçar sobre tal questão na
(GRAMSCI, 2005b, p. 80). Essa crítica, Gramsci combateu-a redação do Caderno 12, encontramos referências nos chamados
energicamente, a rmando que: cadernos miscelâneos, já em 1929, no Caderno 1, quando destaca a
[...] esta ilustre senhora é espirituosa e epigramática, mas mais pretensão de:
espirituoso é certamente o autor do artigo, que ergue
desesperadamente aos céus seus braços liberais e exclama: “Mas o que [...] investigar a origem histórica exata de alguns princípios da pedagogia
será destas crianças quando tiverem crescido e não for possível obrigá- moderna: a escola ativa, ou seja, a colaboração amigável entre professor
las a tomar banho!”. Aparentemente, ele pensa que, uma vez tornada e aluno; a escola ao ar livre; a necessidade de deixar livre, sob a
impossível a coerção, os jovens não farão nada além de mergulhar vigilância, mas não sob o controle evidente do professor, o
programaticamente na lama, como reação individual-liberal ao desenvolvimento das faculdades espontâneas do estudante. (GRAMSCI,
autoritarismo do qual atualmente são vítimas. (GRAMSCI, 2005b, p. 80 – 2010, p. 62)
grifo nosso).
Gramsci segue a nota fazendo uma análise prévia dessa
Nessa réplica, Gramsci nos mostra que tem conhecimento dos pedagogia: reconhece os progressos e os retrocessos dessa
fenômenos pedagógicos que estão surgindo em seu tempo, o que, pedagogia moderna; destaca a contribuição de Pestalozzi e
de fato, ocorre, devido aos livros e às revistas que pôde receber no Rousseau no combate aos métodos pedagógicos jesuíticos; critica,
cárcere, e ainda que compreende a importância do papel da entretanto, as curiosas involuções que tornam as ideias uma
transmissão do conhecimento no processo de formação, ou em espécie de dogma, de igreja; afere que “A ‘espontaneidade’ é uma
outras palavras, de humanização. Com base nisso, aos poucos, destas involuções: [pois] quase se chega a imaginar que o cérebro
dadas as abordagens e as contradições sobre a educação dos lhos, do menino é um novelo que o professor ajuda a desnovelar”
se a rma o interesse sobre o tema, especialmente no período em (GRAMSCI, 2010, p. 62). Neste mesmo período, na carta de 22 de
que Délio, seu lho mais velho, chega à idade escolar112. Sabendo abril de 1929 à cunhada, ao tratar das rosas que cuidava no cárcere,
que o modelo educacional soviético buscava erigir uma escola de expõe um verdadeiro paradoxo que a rmava encontrar-se em
base marxista, sob a justi cativa de saber sobre a educação dos con ito em sua mente: “[...] hesito entre duas concepções do
lhos, começa a pedir que a esposa, através de cartas, aborde o mundo e da educação: ou ser rousseauniano e deixar agir a
assunto metodicamente, a rmando que não sabe “nada de todo o natureza, que nunca erra e é fundamentalmente boa, ou ser
sistema de educação, o que [o] interessa muitíssimo” (GRAMSCI,
voluntarista e forçar a natureza, introduzindo na evolução a mão Segue a carta criticando instrumentos super ciais utilizados no
experiente do homem e o princípio de autoridade” (GRAMSCI, ensino, o Meccano116, que, como a rma, “intelectualiza
2005a, p. 334). rapidamente”, ou seja, assim como “o rádio e o avião” e, aqui
Gramsci, desse modo, deixa clara a estreita relação dialética poderíamos acrescentar, a televisão e a internet, “destruíram o
114
entre espontaneísmo e voluntarismo , porém, nega o ‘robinsonismo’ que foi o modo de fantasiar tantas gerações”
absolutismo do primeiro e sua primazia em relação ao segundo, (GRAMSCI, 2005a, p. 353-354). Esses mecanismos não estimulam a
pois concebe o homem como um bloco histórico e, por isso, não criatividade e a fantasia construtora, necessárias para o
pode ser formado no campo do individualismo absoluto, mas pela desenvolvimento do conhecimento e do trabalho humano – como
intervenção de outros, dos adultos, dos pais, dos professores. Desse Leonardo, que idealizou voar quase 500 anos antes da invenção do
modo, a formação humana é um produto e um processo social e primeiro avião – e, com a sua fantasia criativa, contribuiu com os
histórico. De acordo com o lósofo sardo, “Na realidade, toda primeiros experimentos para que outros pudessem realizar aquilo
geração educa a nova geração, isto é, forma-a; e a educação é uma que em sua época era apenas uma utopia.
luta contra os instintos ligados a funções biológicas elementares, Nessa trilha, após alguns meses sem nenhuma carta da esposa,
uma luta contra a natureza, a m de dominá-la e de criar o homem em 30 de dezembro de 1929, Gramsci escreve uma carta a Giulia,
‘atual’ à sua época” (GRAMSCI, 2010, p. 62). na qual, ao tratar da educação de Délio, faz uma verdadeira análise
Nesse sentido, Gramsci não confunde o desenvolvimento da dos métodos, da loso a e dos objetivos do ensino no contexto
autonomia da criança com o espontaneísmo extremo e absoluto, soviético, a partir das impressões obtidas na correspondência com
nem com tendências precoces e inatas, mas com inclinações as Giulia. Assim, a rma “que o estágio de desenvolvimento intelectual
mais variadas que surgem quando oportunizadas e, se de Délio [...] está muito atrasado para a sua idade, está
desenvolvidas, podem tornar-se capacidades, habilidades, como demasiadamente infantil”, pois, ao comparar consigo, afere que:
expõe ao retrucar a avaliação apressada que Giulia faz de Délio e [...] com menos de cinco anos e sem ter nunca saído de um vilarejo, isto
do autor sardo na carta de 1.º de julho de 1929115: é, tendo um conceito muito restrito das extensões, sabia com uma
varinha encontrar a cidadezinha onde morava, tinha a ideia do que era
E ele (Délio), será que tem inclinação para consertar as coisas? Esta uma ilha e encontrava as principais cidades da Itália num grande mapa
inclinação, em minha opinião, seria um indício... de capacidade mural; isto é, tinha uma noção de perspectiva, de um espaço complexo, e
construtiva, de caráter positivo, mais do que o brinquedo meccano. Você não só de linhas abstratas de direção [...]. Não acredito ter sido
está errada se acredita que eu, quando criança, tinha tendências... excepcionalmente precoce, longe disso. (GRAMSCI, 2005a, p. 385)
literárias e losó cas, como escreveu. Ao contrário, era um intrépido
pioneiro […]. (GRAMSCI, 2005a, p. 353) Ademais, aponta esse quadro como resultado da postura de
“neutralidade” dos educadores diante da educação das novas
gerações, isto é, da esposa e dos familiares, o que lhe parece que
seja a visão de todos na Rússia, quando diz que (GRAMSCI, 2005a, p. 406), os quais considera e cazes.
Mas, do conjunto destes dados, tive a impressão de que a concepção sua Provavelmente, em uma leitura apressada desse trecho,
e do resto de sua família seja excessivamente metafísica, isto é, poderíamos a rmar que Gramsci fosse a favor da violência.
pressuponha que na criança está em potência todo o homem e é
necessário ajudá-la a desenvolver o que já contém em estado latente, Contudo, utiliza a palavra ‘pitada’ e ‘até física’ para ironizar sobre
sem coerções, deixando agir as forças da natureza ou seja lá o que for. seus cuidados com a cunhada (Tania). Ademais, na carta à cunhada
(GRAMSCI, 2005a, p. 385-386)
de 14 de julho de 1930, ressalta que a coerção de que trata, na
Gramsci, dessa forma, combate energicamente a visão de verdade, deve ser exercida “combinando na medida justa a
natureza imanente, isto é, a de que o indivíduo já traga consigo impiedade fria e a persuasão afetuosa” (GRAMSCI, 2005a, p. 429).
dons e talentos que se manifestarão espontaneamente sem a Porém, é na carta a Giulia da mesma data que de ne a infância
necessidade de qualquer intervenção exterior, por isso a rma que como o momento ideal para exercer essa coerção na vida do
“o homem é toda uma formação histórica obtida com a coerção indivíduo, a rmando que:
(entendida não só no sentido brutal e de violência externa), e é só o
[...] com as crianças, até que a personalidade chegue a certo grau de
que penso: de outro modo, se cairia numa forma de transcendência desenvolvimento, um pouco de pedantismo seja necessário e
indispensável. Habitualmente acontece, […] que o pedantismo seja
ou de imanência” (GRAMSCI, 2005a, p. 386). Desse modo, Gramsci
exercido mais tarde, precisamente quando é prejudicial, entre os 12 e os
resgata o caráter ontológico da educação, que é criar em cada 16 anos, exceto quando nem esta preocupação existe; mas, então, o
resultado são os rapazes “fora da lei”. (GRAMSCI, 2005a, p. 432)
indivíduo a sua humanidade, e destaca o fundamental e importante
papel do educador na atividade interativa e educativa de formação Gramsci justi ca seus argumentos a rmando que:
das novas gerações, a qual denomina coerção. Assim, o lósofo Antes da puberdade, a personalidade da criança ainda não se formou e é
sardo aponta os problemas intelectuais e sociais advindos da mais fácil guiar sua vida e fazê-la adquirir determinados hábitos de
ordem, de disciplina, de trabalho: depois da puberdade, a personalidade
anulação desse importantíssimo agente no processo educativo. De se forma de modo impetuoso e toda intervenção alheia se torna odiosa,
acordo com Gramsci, tirânica, insuportável. [Contudo], o que acontece é que os pais sentem a
responsabilidade em relação aos lhos exatamente neste segundo
Renunciar a formar a criança signi ca só permitir que sua personalidade período, quando é tarde: então, naturalmente, entra em cena o porrete e
se desenvolva acolhendo caoticamente, do ambiente geral, todos os a violência, que, no m das contas, dão bem poucos frutos. (GRAMSCI,
motivos de vida. [...] está se formando um novo tipo de “bom selvagem” 2005a, p. 439)
corrompido pela sociedade, isto é, pela história. Daí nasce uma nova
forma de desordem intelectual muito interessante (GRAMSCI, 2005a, p. Desse modo, Gramsci denuncia que, quando a coerção
386 – grifos nossos).
educativa, isto é, a intervenção consciente não ocorre na infância, a
Nesse trecho, Gramsci demarca o papel da educação, que, força repressiva entra em ação na vida dos jovens que não foram
segundo o autor sardo, deve ocorrer com o emprego de “meios de habituados a um método de disciplina, porém com menos e cácia.
convencimento […] com uma pitada de coerção até física” Rea rma essa sua visão, quando, na carta de 28 de julho de 1930 à
sua mãe, avalia o baixo nível intelectual da sobrinha Mea e circunstâncias, é modi cada pelos homens e que a coincidência da
recomenda: “tentem acostumá-la a trabalhar com disciplina e alteração de ambas só pode ser compreendida como práxis
restringir um pouco sua vida ‘mundana’: menos sucesso de vaidade revolucionária, ou seja, o processo revolucionário demanda, além
e mais seriedade em termos de substância” (GRAMSCI, 2005a, p. de uma radical mudança estrutural no modo de vida social, uma
435). reformulação na organização do ser social, que exige, portanto, a
117
Em carta posterior , Gramsci ironicamente atesta o baixo nível capacidade revolucionária de educar as novas gerações com base
intelectual de Mea que, apesar de estar no quinto ano, escreve na loso a da práxis.
como se no terceiro estivesse, por isso a rma que tem “cérebro de Apesar de considerar a coerção como parte integrante da
rã: sabe gritar, mas não sabe pensar e re etir” (GRAMSCI, 2005a, p. atividade educativa, Gramsci não pormenoriza a criança como um
467). Embora pareça ofensivo, na verdade, o autor sardo estava ser inferior e passivo, mas como alguém que deve ser respeitado
avaliando o sistema italiano de ensino que situava a educação em sua individualidade para formar com segurança a sua
como suporte ideológico do Estado. Este, por sua vez, retirava o personalidade. Diz Gramsci (2005a, p. 463):
papel educativo da família, deixando-o centralizado no professor, Eu penso que é conveniente tratar as crianças como seres já razoáveis e
que era visto como a personi cação do Estado fascista e, além com os quais se fala seriamente até das coisas mais sérias; isto lhes
causa uma impressão muito profunda, reforça o caráter, mas
disso, priorizava o controle do “espírito” dos alunos na condução do especialmente evita que a formação da criança seja deixada ao acaso
das impressões do ambiente e à mecanicidade dos encontros
amor e da submissão à pátria que era disseminada como a vontade
fortuitos118.
coletiva nacional, acima da adequada instrução. Esse sistema
educacional, na verdade, tinha como nalidade última manter o A partir de 1931, quando Délio, seu lho mais velho, chega à
caráter classista da escola, isto é, limitar a instrução das classes idade escolar, Gramsci começa a deslocar sua atenção para o
subalternas para a ascensão da classe dirigente. sistema escolar soviético e se surpreende ao constatar a total
Gramsci certi ca que a falta de ação e persuasão do educador espontaneidade a que submeteram seu lho, durante o processo de
gera dois problemas sérios: de ciência na formação do indivíduo, alfabetização. Indignado escreve:
ou seja, falta de conhecimento e reconhecimento de si enquanto [...] me parece inexplicável que ele comece a escrever da direita para a
esquerda e não da esquerda para a direita; estou contente com o fato de
ser social, e ainda, di culdades no seio da própria sociedade,
que escreva com as mãos, já é alguma coisa. Se lhe desse na cabeça
estagnando o desenvolvimento individual e coletivo. Coloca como começar a escrever com os pés seria muito pior. (GRAMSCI, 2005b, p.
39)119
urgente, então, a tarefa necessária de “educar os educadores”
(GRAMSCI, 2005a, p. 440), inspirado na terceira Tese sobre Gramsci não se conforma e rebate os métodos com severas
Fuerbach, na qual Marx expressa que a educação, assim como as críticas às contradições da lógica desse sistema, que nega a
transmissão explícita dos conhecimentos, a coerção e a persuasão direção consciente na vida da criança, não mecânica, mas que
no processo de ensino escolar, mas as utiliza em outros aspectos da busque dar signi cado para a criança, cabendo a esta a
vida social: responsabilidade de, nesse momento, escolher o que a criança deve
Só uma coisa me surpreende: que haja muito pouca lógica no sistema. aprender, reconhecendo que, nessa idade, a criança absorve muito
Por que, desde a mais tenra idade, tê-lo obrigado a se acostumar a vestir mais e reage muito mais aos estímulos do ambiente do que se
como os outros? Por que não ter deixado livre sua personalidade
também no modo de vestir e tê-lo educado segundo um conformismo imagina, e a exteriorização desses conteúdos pode fazê-los incorrer
mecânico? Teria sido melhor cercá-lo com os objetos de uso e depois no equívoco de acreditar que é pura originalidade, como numa
esperar que ele escolhesse espontaneamente: as cuequinhas na cabeça,
os sapatos nas mãos, as luvas nos pés, etc.; ou, melhor ainda, era preciso análise que faz de uma carta de Délio:
pôr perto dele roupas de menino e de menina e lhe deixar a liberdade
de escolha. (GRAMSCI, 2005b, p. 39) […] a forma a rmativa e aforística da mensagem também me parece
muito importante, se a mensagem tiver sido realmente pensada por ele
Mas é na carta a Teresina120, referindo-se a Mea, que Gramsci de modo espontâneo e original e não for lembranças de uma frase
ouvida e aprendida de cor. Mas também neste caso teria importância,
de ne as qualidades que devem ser estimuladas na criança para o porque até escolher o que vale a pena recordar e repetir tem
importância na idade dele, mas um pouco menos, não é verdade? [...]
desenvolvimento de sua autonomia, a rmando que: pode-se conceber isto de modo original e espontâneo? Por isso, mesmo
que Délio tivesse repetido uma frase ouvida e tivesse instintivamente
Mais do que todas estas coisas me parece importante a “força de
apreendido uma parte de seu signi cado, seria muito interessante.
vontade”, o amor pela disciplina e pelo trabalho, a constância nos
(GRAMSCI, 2005b, p. 49)
objetivos, e neste juízo levo em conta, mais do que a criança, aqueles
que a orientam e tem o dever de fazer com que adquira tais hábitos, sem
sacri car sua espontaneidade. (GRAMSCI, 2005a, p. 43 – grifos nossos) Gramsci ressalta que não se deve fazer juízo precipitado das
aptidões da criança e tentar limitar seu futuro a uma determinada
Gramsci deixa claro que o desenvolvimento dessas qualidades
pro ssão, pois, para o autor sardo, uma habilidade não exclui as
não depende exclusivamente da criança, como em um processo de
demais, mas juntas e orgânicas deveriam representar o indivíduo
evolução linear e natural, já que o homem é, sobretudo, um ser
integral, como quando a rma: “ co contente com o fato de que
social que, em interação com outros, a rma-se como tal. Por isso,
Délio ame as obras de fantasia e ele próprio faça fantasias; não
a rma que a formação humana depende, sobretudo, do exercício da
acredito que, por isso, não possa se tornar um grande ‘engenheiro’
direção consciente de quem educa, o qual deve assumir a atividade
construtor de arranha-céus ou de centrais elétricas, pelo contrário”
educativa como uma tarefa revolucionária que semeará hoje os
(GRAMSCI, 2005b, p. 51).
frutos que se deseja colher nas gerações de amanhã. Assim, na
Nessa trilha, Gramsci começa a perceber a in uência da
polêmica paradoxal desenvolvida nas cartas entre espontaneidade
Pedagogia Nova sobre sua mulher, no tocante à educação dos lhos,
e direção, faz uma avaliação à cunhada Tatiana121, de uma carta que
sabendo que a educação dos lhos representava todo o contexto
recebera de Délio, na qual busca mostrar à família a importância da
socioeducativo soviético, deixando claras suas impressões quando
a rma que: carta de 7 de dezembro de 1931 quando, entre outras coisas,
Às vezes me parece que […] em sua consciência, [há] um certo con ito solicita à cunhada Tatiana, o número da revista Pégaso que,
ainda não resolvido: isto é, você (pelo menos me parece, às vezes) segundo ele, traz “escritos sobre a reforma escolar Gentile”.
compreende bem intelectualmente, teoricamente, que é um elemento
do Estado e tem o dever, como tal, de representar e exercer o poder de Como Tatiana não se encontrava em Moscou, Gramsci propõe a
coerção, em determinadas esferas, para modi car molecularmente a Giulia na carta de 14 de dezembro de 1931 um trabalho de
sociedade e, especialmente, para tornar a geração que surge preparada
para a nova vida […], mas me parece que, praticamente, você não pesquisa sobre o tema no cenário soviético:
consegue se livrar de certos hábitos tradicionais, relacionados às
concepções espontaneístas e libertárias que explicam o surgimento e Por que, então, você não poderia estudar precisamente algumas coisas
desenvolvimento dos novos tipos de humanidade capazes de que também me interessam e, assim, se tornar minha correspondente
representar as diferentes fases do processo histórico. (GRAMSCI, 2005b, em algumas matérias que interessam a nós dois, porque o re exo da
p. 64) atual vida intelectual de Délio e Giuliano? Em resumo, desejaria […] ser
informado sistematicamente sobre o quadro cientí co no qual funciona
Desse modo, após ter recebido um cartão de Tania122, no qual a escola ou as escolas, que Giuliano e Délio frequentam, para ser capaz
de compreender e avaliar as poucas referências que às vezes, me faz a
descreve os novos métodos educativos, inicia sua jornada em busca respeito. [...] você deveria fazer um verdadeiro trabalho, e não só
escrever cartas: isto é, fazer uma sondagem, tomar notas, organizar o
de informações mais precisas sobre a escola soviética e já tece material recolhido e expor os resultados com ordem e coerência.
algumas considerações prévias, assinalando que aparentemente (GRAMSCI, 2005b, p. 134)

não há nenhuma novidade no que se faz nessa escola,


Ademais, na mesma carta, Gramsci solicita uma explanação
demonstrando sempre sua preocupação com a apressada e pré-
sobre a inserção de novos métodos na escola, quando a rma:
xada orientação pro ssional que pode limitar a formação das “tenho muito interesse em saber como foi inserido na escola
crianças. A rma Gramsci (2005b, p. 127-128): primária o princípio das brigadas de assalto e os nichos
Vou car contente se me escrever sobre os novos métodos de educação especializados123 e qual objetivo pedagógico se propõem
que mencionou no cartão, porque, acredito, sempre houve crianças que
brincam com passarinhos vivos, com bolas de gude, ou levam objetos alcançar”. Conhecendo os objetivos da escola soviética quando
prediletos para a cama. O que se deve ver é se mudou a relação entre as esteve em Moscou, que se propunha a buscar a unidade entre
crianças e as coisas, isto é, se se consegue despertar nas crianças um
novo modo de conceber a natureza e a vida. Parece-me muito ensino pro ssional, técnico, cientí co e humanista, Gramsci,
interessante que, até nos níveis mais elementares da escola, tenham
introduzindo a instituição das brigadas de assalto. […] seria preciso ter
apoiando-se nas informações recebidas nas cartas e munido de
mais detalhes não só sobre o método, mas [...] sobre a disponibilidade informações sobre os métodos estadunidenses, questiona se esses
de material didático: um perigo que, parece-me, logo se apresenta é o de
criar precocemente uma orientação pro ssional. novos métodos realmente auxiliariam nesse propósito ou se não
iriam distanciar as crianças do contato com a realidade e acelerar:
A partir de então, Gramsci empreende seu trabalho na pesquisa
[...] arti cialmente a orientação pro ssional e distor[cer] as inclinações
sobre a educação e os novos métodos de ensino, solicitando das crianças, fazendo perder de vista o objetivo da escola única de
publicações recentes sobre o assunto, como podemos conferir na conduzir as crianças a um desenvolvimento harmonioso de todas as
atividades, até que a personalidade formada acentue as inclinações mais […] não acredito nestas inclinações genéricas tão precoces e con o
profundas e permanentes, porque nascidas num nível mais alto de pouco em sua capacidade de observar as tendências de ambos para uma
desenvolvimento de todas as forças vitais […]. (GRAMSCI, 2005b, p. 134) orientação pro ssional. Acredito que, em cada um deles, coexistam
todas as tendências, tal como em todas as crianças, tanto para a prática
Desse modo, embora não tenhamos acesso às cartas que Giulia quanto para a teoria ou fantasia, e que de fato, seria correto guiá-los
neste sentido, para um ajuste harmonioso de todas as faculdades
enviou a Gramsci e analisar o teor da correspondência vinda de intelectuais e práticas, que podem se especializar no tempo apropriado,
Moscou, podemos veri car que Gramsci percebe alguns pontos com base numa personalidade vigorosamente formada em sentido total
e integral. (GRAMSCI, 2005b, p. 224-225)
convergentes entre a reforma educacional italiana e as teorias
pedagógicas modernas de estadunidense que se inseriam na escola Assim, embora Gramsci não tenha tido acesso a todo o legado
soviética. A reforma educacional italiana e a teoria escolanovista marxiano, percebemos por meio da obra A Ideologia Alemã, diversas
continuavam a ofertar um ensino interessado, isto é, a negar o passagens que expressam a visão de Marx de homem completo, as
conhecimento universal à população em geral, ainda que ambas as quais Gramsci parece parafrasear, pois nelas, o lósofo da práxis
teorias pedagógicas se apresentassem de forma divergentes, uma parece uníssono com o lósofo alemão, quando de ne sua visão de
mais centralizadora, a outra de tipo liberal democrática. Para homem novo, inteiro, omnilateral.
Gramsci, o ensino genuinamente desinteressado é de nido por ele São de Gramsci as seguintes palavras:
na carta a Giulia, em 28 de março de 1932, como algo devidamente O homem moderno deveria ser uma síntese daquelas características que
são... hipostasiadas como características nacionais: o engenheiro
interessado “não no sentido mecânico e imediato da palavra”, americano, o lósofo alemão, o político francês, recriando, por assim,
imposto pela industrialização, muito menos “nas nuvens”124, mas dizer, o homem italiano do Renascimento, o tipo moderno de Leonardo
da Vinci transformando em homem-massa ou homem coletivo, ainda
essencialmente assentado no real, porém, com objetivos que mantendo sua forte personalidade e originalidade individual.
universalizantes e práticos, em uma palavra, revolucionários. (GRAMSCI, 2005b, p. 225)

Nessa trilha, em 1.º de agosto de 1932, Gramsci, em carta a Dessa maneira, conforme Schlesener (2009), o autor sardo toma
Giulia, critica a tendência de de nir de forma apressada as como referência para suas formulações de homem novo, o homem
inclinações das crianças, no caso, dos lhos, e resume para a esposa renascentista, pro cuamente Leonardo Da Vinci, como modelo de
o caráter geral da genuína formação do homem omnilateral que homem integral, porque este encarnava uma personalidade capaz
esperava que seus lhos tivessem e se tornassem, pois, conforme de desempenhar atividades política, cientí ca e social e, por
expõe, a infância deve ser o período em que a criança deva ter conseguinte, de governar e ser governado.
acesso aos diversos ramos de atividade produtiva e intelectual e O homem do Renascimento, no contexto de sua comunidade,
conhecer suas potencialidades, as quais, na culminância da desempenhava, ademais, o papel de intelectual orgânico, de
juventude, poderá amadurecer e aperfeiçoar. lósofo, pois, segundo Schlesener (2009, p. 33), “os intelectuais
procuravam re etir sobre as contradições que permeavam o
processo político, elaborando um pensamento econômico, ético e coloca em ação, de modo efetivo, todo o plano para alcançar os
social, ao lado de uma loso a que ainda buscava a objetivos gerais e também os especí cos da revolução no âmbito
universalidade”. Dessa feita, para a aquisição dessa visão de escolar, que são a formação de um novo Estado e a formação do
universalidade, na o cina, a escola renascentista, o aprendizado, novo homem – tal como veri camos com a renovação do Estado
segundo Nardini (apud SHLESENER, 2009, p. 43), “implicava a liberal, com Dewey, e com o estabelecimento do fascismo, com
participação ativa em todo o processo de trabalho, desde o mais Gentile. Conforme Gramsci (2010), todo grupo social que é ou se
simples aos mais complexos”. pretende dominante cria para si o grupo de intelectuais que
Nessa perspectiva, Gramsci questiona sua mulher sobre os difundem sua hegemonia. Por isso, Gramsci questiona se essas
métodos da escola soviética: “Você acha que o método Dalton125 inovações pedagógicas poderiam ser generalizadas, pois nelas,
pode produzir Leonardos, ainda que como síntese coletiva?” contraditoriamente, “o professor não tem sequer o direito de
(GRAMSCI, 2005b, p. 225). Esse método, por dissolver a ideia e a estabelecer o que os rapazes devem aprender; não pode saber o
utilização de classes ou salas de aula, poderia interferir na que eles vão ser na vida, assim como ignora para que tipo de
formação da personalidade coletiva do indivíduo e, sociedade devem ser preparados” (GRAMSCI, 2010, p. 176), ou seja,
consequentemente, representar um agravo na formação do modo o professor não tem consciência dos objetivos especí cos e
teórico-prático coletivo de ser, tão necessária para o fundamento resultados que a sua ação pedagógica pode alcançar. Desse modo,
de uma nova realidade em transição. Conforme Gramsci (2010, p. Gramsci a rma que “É útil acompanhar todas estas tentativas, que
175), não são mais do que ‘excepcionais’, talvez mais para ver o que não
O sistema Dalton não é mais do que a extensão às escolas médias do
se deve fazer do que por qualquer outra razão” (GRAMSCI, 2010, p.
método de estudo seguindo as universidades italianas, que deixam ao 177). Com essa assertiva, Gramsci se posiciona contra a adoção das
aluno toda a liberdade para o estudo: em certas faculdades, realizam-se
vinte exames no quarto ano universitário e depois a tese de conclusão pedagogias liberais ou libertárias para atingir ns revolucionários,
do curso, o professor nem sequer conhece o aluno. ainda que reconheça seu avanço na luta contra a escola mecânica e
Na verdade, o que ocorre é que apesar de todo o arcabouço jesuítica, mas derruba por terra a ideia de vinculá-las ao objetivo
marxiano e empenho revolucionário soviético, faltava ao Partido revolucionário de genuína formação omnilateral do novo
uma direção pedagógica para a formação da nova geração, do novo intelectual em processo de transição, dado o peso ideológico que
homem, e essas di culdades se expressavam na adoção de carrega – ainda que reconheça o aspecto ativo, ou seja, de interação
métodos liberais de ensino, pois, embora houvesse a tentativa de e desenvolvimento da criatividade e autonomia, porém, após o
adaptação aos seus objetivos, certamente não foram bem processo de (con)formação humana, isto é, de transmissão da
compreendidos pelo corpo docente. Pois, é o corpo docente quem humanidade produzida pelas velhas gerações para as novas. Nas
palavras de Gramsci (2010, p. 39), se inserem, tendo, para tanto, os intelectuais dominantes,
Deve-se distinguir entre escola criadora e escola ativa, mesmo na forma monopolizado durante séculos a ideologia e a escola; por outro
dada pelo método Dalton. Toda escola unitária é escola ativa, embora lado, a massa popular ca à margem da direção e não consegue
seja necessário limitar as ideologias libertárias neste campo e
reivindicar com certa energia o dever das gerações adultas, isto é, do criar o seu grupo de “dirigentes”, sendo esse problema o ponto
Estado, de “conformar” as novas gerações. central da revolução.
Desse modo, ao contrário da visão mecanicista de que a Para Gramsci, a camada que quiser impor-se como camada
superação do capitalismo é inevitável e que ocorrerá com o dominante tem como tarefa elaborar seus próprios intelectuais
amadurecimento de suas contradições, Oldrini (1991) aponta que a orgânicos e assimilar os tradicionais. Nesse processo, a escola tem
compreensão da questão dos intelectuais e de sua formação para a um papel preponderante de formação e de divulgação da cultura,
constituição de um novo tipo de Estado se coloca para Gramsci sobretudo, no atual contexto do capital em que há uma diversidade
como fundamental, e a escola é compreendida como um espaço de níveis de intelectuais e uma escola correspondente para cada
essencial que necessita de métodos adequados para cumprir a nível, os quais têm a dupla função de obtenção do consenso e de
tarefa de formação e divulgação da nova cultura. Nessa trilha, garantia da coerção “legal”. Gramsci, portanto, estabelece dois
embora Gramsci a rme que gostaria de ter feito um estudo momentos de formação dos novos intelectuais: o primeiro se inicia
metódico, sistemático e profundo sobre os intelectuais, para o qual no momento de transição; o segundo se consolida com a revolução.
demandaria uma apropriação maior sobre a educação em sentido Como cada momento tem o seu espaço, o primeiro,
128
amplo e a função da escola em sentido restrito, as condições do preponderantemente, ocorre no âmbito do partido e o segundo,
cárcere o permitiram apenas destacar em breves notas o que na escola.
conseguiu aferir de mais importante para a formação do novo A priori, Gramsci coloca o partido político como espaço de
homem que trabalharia na fundação da ordine nuovo 126
. Sobre formação losó co-política do intelectual orgânico, com sua função
essas notas, ele mesmo a rma que as reorganizou e sistematizou-as organizativa e diretiva do intelectual para o exercício da função de
no Caderno 12 buscando atender seu objetivo 127
. caráter nacional e internacional. Os intelectuais orgânicos deveriam
Nesse Caderno, Gramsci analisa a atuação e a função dos lutar pelo domínio com as próprias forças sem ter que recorrer às
intelectuais e as transformações históricas que exerceram velhas classes viciadas nas tradições da cultura aristocrática.
in uência na constituição e na exigência de um novo tipo de Contudo, com a abertura da formação em massa e a agudização do
intelectual, o intelectual moderno. Em seus estudos, afere que processo de industrialização, ampliou-se enormemente a categoria
historicamente todo grupo dirigente cria seus próprios intelectuais dos intelectuais e, para a composição de novas gerações
para sustentarem a demanda ideológica do modelo social em que intelectuais, na iminência da revolução, Gramsci a rma que é
preciso um projeto orgânico, isto é, a luta por outros espaços de que passava o sistema escolar, que teimava na oferta de um ensino
formação que se tornem hegemônicos. Na civilização moderna, unilateral. Por isso Gramsci (2010, p. 33) adverte:
pois, tende-se a fragmentar a formação, criando diversas escolas A tendência atual é de abolir qualquer tipo de escola “desinteressada”
para criar os intelectuais necessários para o ensino nas escolas da (não imediatamente interessada) e “formativa”, ou de conservar apenas
um seu reduzido exemplar, destinado a uma pequena elite de senhores
classe dirigente, já que a complexi cação da ciência que permeou e de mulheres que não devem pensar em preparar-se para um futuro
as atividades práticas culminou na crise da escola, a qual, segundo pro ssional, bem como a de difundir cada vez mais as escolas
pro ssionais especializadas, nas quais o destino do aluno e sua futura
Gramsci, é o re exo sintomático de uma crise orgânica de grande atividade são predeterminados.
amplitude. Essa crise:
Assim, Gramsci afere a crise como um problema histórico-
[...] liga-se precisamente ao fato de que este processo de diferenciação e dialético que se impõe, e exige como solução racional, o resgate do
particularização ocorre de modo caótico, sem princípios claros e
precisos, sem um plano bem estudado e conscientemente estabelecido: aspecto revolucionário129 da educação que deve se expressar em
a crise do programa e da organização escolar, isto é, da orientação geral
de uma política de formação dos modernos quadros intelectuais, é em
uma “[…] escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa,
grande parte um aspecto e uma complexi cação da crise orgânica mais que equilibre de modo justo o desenvolvimento da capacidade de
ampla e geral. (GRAMSCI, 2010, p. 33)
trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o
Portanto, a escola, que antes era dividida em pro ssional e desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual”
clássica, essa última embalada pelo prestígio, é posta em xeque (GRAMSCI, 2010, p. 33).
pela “crescente necessidade do novo tipo de intelectual urbano […] Nessa tela, Gramsci, que visava à constituição de uma nova
que pôs em discussão o próprio princípio da orientação concreta de sociedade, a sociedade regulada130, não se restringiu a delinear
cultura geral, da orientação humanista” (GRAMSCI, 2010, p. 33). uma proposta teórico-pedagógica geral de ensino, mas buscou
Essa nova demanda de intelectuais surge em um campo minado de evidenciar métodos práticos e estruturas condizentes que
contraposições entre o novo que quer nascer e o velho que não pudessem de forma assertiva balizar o trabalho docente, que
quer morrer. Dito de outro modo, o alto desenvolvimento da ciência também se encontrava em processo de construção, contrapondo-se
e da tecnologia – e, portanto, dos novos intelectuais unitários que a todo esvaziamento teórico que as pedagogias modernas se
deverão ser formados em uma reedição do humanismo, pela empenhavam em legitimar. Éo que podemos veri car em uma
conjunção da técnica ao saber clássico –, a resistência das velhas crítica aos métodos de ensino universitários de seu tempo, que
camadas tradicionais que monopolizavam o conhecimento também foram atingidos por essas ideais e que muito se
desinteressado e buscavam manter um reduzido exemplar da aproximam aos pilares do “aprender a aprender” que servem de
escola humanista tradicional para a elite, além das especializadas parâmetros para as propostas educacionais hodiernas, as quais
para a grande massa, tudo isso desembocou na profunda crise por Gramsci classi cou como unilaterais e têm como objetivo uma
absorção mínima com o estudo de métodos e não do próprio saber. uma carreira escolar regular, a m de taylorizar o trabalho
Para Gramsci, “[...] deve-se estudar ou estudar para saber estudar? intelectual” (GRAMSCI, 2010, p. 36). Desse ponto de vista, Gramsci
Deve-se estudar ‘fatos’ ou o método para estudar os ‘fatos’? A propõe uma organização do currículo escolar disposto nos diversos
prática do ‘seminário’ deveria precisamente complementar e graus da carreira escolar, “de acordo com a idade e com o
vivi car o ensino oral” (GRAMSCI, 2010, p. 151). desenvolvimento intelectual-moral dos alunos e com os ns que a
Gramsci não nega a importância da apreensão de métodos, pelo própria escola pretende alcançar” (GRAMSCI, 2010, p. 36), xando-
contrário, é um exímio defensor do rigor do método, mas, se em escolas primárias e médias, para que essa escola se rme
sobretudo, do rigor intelectual e, por isso vai além, defendendo a como escola criadora.
disciplina de estudo para a assimilação do saber necessário, na qual ConformeGramsci (2010), cada nível tem suas peculiaridades. A
se apreende na prática o método e se torna capaz de desenvolver escola primária não deveria ultrapassar três ou quatro anos e não
não somente os métodos de estudo, mas principalmente, os deveria negligenciar a noção de organização da sociedade e uma
métodos cientí cos. formação política simples, abrandando o dogmatismo, mas que
A escola únitária, que deverá integrar a formação da capacidade estabeleça as bases de uma nova concepção de mundo que se
técnica com a político-cultural, deverá, portanto, preparar os novos sobreponha às concepções folclóricas, inserindo as primeiras
intelectuais através dos círculos de cultura, os quais, segundo noções de Estado e de sociedade131, objetivando incutir a
Gramsci (2010), poderão elevar os diversos elementos envolvidos disciplina dinâmica através da apropriação da consciência de
no processo, dado que os círculos deverão organizar-se como indivíduo e ser social que pode ser capaz de, ao apropriar-se do
colegiados deliberativos, nos quais cada membro especialista conhecimento já produzido, avançar e ampliar o que já fora
contribuirá para a quali cação do trabalho e do conhecimento alcançado pela humanidade. Nesse sentido, a escola média deveria
coletivo e, consequentemente, da quali cação individual, de modo durar cerca de seis anos e ir além de um simples elo entre a escola
que os mais evoluídos auxiliarão na aceleração da formação dos primária e a universidade, como ocorre nos liceus, nos quais se dá
mais atrasados, em um processo em que todos desenvolverão um salto do ensino dogmático e autoritário da escola primária à
coletivamente a capacidade de serem dirigentes ou dirigidos. teórica autonomia e autodisciplina, sem nenhum amadurecimento
Para tanto, Gramsci insiste na disciplina do estudo e do trabalho e direcionamento. Por isso, para Gramsci, essa é a fase decisiva,
que oportunize a absorção do método e rigor cientí co para a [...] na qual se tende a criar os valores fundamentais do “humanismo”
estrati cação das capacidades e dos hábitos de cada um, pois “Este [de novo tipo], a autodisciplina intelectual e a autonomia moral
necessárias a uma posterior especialização […], esta fase escolar já deve
tipo de trabalho intelectual é necessário a m de fazer com que os contribuir para desenvolver o elemento da responsabilidade autônoma
autodidatas adquiram a disciplina dos estudos proporcionada por nos indivíduos, deve ser uma escola criadora” (GRAMSCI, 2010, p. 39).
Essa fase criadora deve ser erguida sobre uma base já às classes que acessam a cultura. Tal como Marx, Gramsci também
consolidada de “coletivização” ou desenvolvimento da vontade defendia que o Estado garantisse os custos dessa escola de forma
coletiva ou comum, na contramão do individualismo do ideário pública e gratuita. Como destaca,
burguês. Por meio desse desenvolvimento, “tende-se a expandir a A escola unitária requer que o Estado possa assumir as despesas que
personalidade, tornada autônoma e responsável, mas com uma hoje estão a cargo da família, no que toca à manutenção dos escolares,
isto é, que seja completamente transformado o orçamento da educação
consciência moral e sólida e homogênea” (Ibidem). Contudo, essa nacional, ampliando-o de um modo imprevisto e tornando-o mais
fase não se xa na exigência de originalidade criadora, mas, complexo: a inteira função da educação e formação das novas gerações
torna-se, ao invés de privada, pública, pois somente assim pode ela
sobretudo, na “posse do método” e de sua utilização, ainda que envolver todas as gerações, sem divisões de grupos ou castas […].
(GRAMSCI, 2010, p. 36)
seja para descobrir verdades velhas – o que indica a maturidade
intelectual para se chegar a verdades novas. Por isso, Gramsci Desse modo, a rma que a desvantagem será superada com o
propõe que nessa fase a atividade se desenvolva “nos seminários, conjunto da nova organização social que emergirá, pois:
nas bibliotecas, nos laboratórios experimentais”, indicando uma O advento da escola unitária signi ca o início de novas relações entre
perspectiva clara de trabalho de pesquisa. trabalho intelectual e trabalho industrial não apenas na escola, mas em
toda a vida social. O princípio unitário, por isso, irá se re etir em todos
Propõe então uma estrutura escolar que: pudesse funcionar em os organismos de cultura, transformando-lhes e emprestando-lhes um
horário integral; dispusesse de diversos espaços pedagógicos, tais novo conteúdo. (Idem, p. 40).

como laboratórios, bibliotecas, refeitórios, vestiários, entre outros; Gramsci, dessa forma, assenta o princípio marxiano de unidade
tivesse um número reduzido de alunos para cada professor; indissolúvel entre trabalho e educação ou trabalho manual e
utilizasse do método do círculo de cultura visando fomentar a intelectual como o alicerce sobre o qual deverá se erigir a
participação do aluno na busca do conhecimento superior teórico- sociedade regulada, que terá, em todos os espaços da vida social,
prático e do espírito e modo de pensar e agir coletivo. ambientes culturais e formativos132 integrados ao mundo da
Contudo, Gramsci que enxerga a realidade com lente dialética, produção e do trabalho, espaços esses que colaborarão
não concebe a educação como um complexo exclusivo da escola in reciprocamente para a formação de um novo tipo de homem, o
locus, mas de todos os espaços sociais. O lósofo italiano adverte lósofo da práxis, que, parafraseando Marx, será capaz não apenas
que um ambiente social rico em cultura possibilita “naturalmente” de interpretar a realidade, mas, sobretudo, de transformá-la, dando
o desenvolvimento mais rápido de certas aptidões e noções que se um impulso na cultura nacional133, através do centro de cultura
complementam e se elevam com a atividade escolar. Por isso, integrado, que poderá se sobrepor a toda unidade político-religiosa
compreende que a própria condição subalterna das classes e folclórica dominante. Conforme Gramsci (2010, p. 42), “com seu
trabalhadoras con gura-se como uma grande desvantagem frente ensino, a escola luta contra o folclore […] a m de difundir uma
a concepção da atualidade como síntese do passado, de todas as
concepção mais moderna [do mundo]”.
gerações passadas, que se projeta no futuro. (GRAMSCI, 2010, p. 43).
Nesse sentido, Gramsci (2010) reconhece o homem com um ser
ligado ineliminavelmente a duas esferas134: orgânica e social. Esse Para tanto, segundo Gramsci (2010), é necessário que os
homem, para apropriar-se de sua humanidade, necessita apoderar- intelectuais, e em especí co, o corpo docente seja consciente do
se das leis naturais para dominá-las, pois estas independem de sua papel losó co-político que sua atividade representa no processo
vontade, e das leis civis criadas por ele. Estas, por sua vez, por ele revolucionário, tendo consciência de que sua atividade é,
podem ser modi cadas conforme o grau de desenvolvimento sobretudo, uma atividade de vanguarda da revolução. Por isso,
coletivo, assumindo, sobretudo, o trabalho como base da adverte que:
organização da estrutura e da superestrutura humana. Assevera [...] o nexo instrução-educação135 somente pode ser representado pelo
trabalho vivo do professor, na medida em que o professor é consciente
Gramsci (2010, p. 43):
dos contrastes entre o tipo de sociedade e de cultura que ele representa
e o tipo de sociedade e de cultura representado pelos alunos; é também
[...] a lei civil e estatal organiza os homens do modo historicamente mais
consciente de sua tarefa, que consiste em acelerar e disciplinar a
adequado a dominar as leis da natureza, isto é, a tornar mais fácil seu
formação da criança conforme o tipo superior em luta com o tipo
trabalho, que é a forma própria através da qual o homem participa
inferior. (GRAMSCI, 2010, p. 44)
ativamente na vida da natureza, visando a transformá-la e socializá-la
cada vez mais profunda e extensamente.
O resultado da ausência desse nexo que oferece as noções
Por isso, Gramsci (2010) reivindica o trabalho não somente concretas é, conforme Gramsci (2010, p. 44), a abstração de
como uma concepção teórica, mas também como atividade prática conceitos, tornando-se uma escola retórica, na qual “faltará a
que incute a convicção espontânea de respeito à ordem que regula corporeidade do certo e o verdadeiro só será verdadeiro
a vida dos homens de forma necessária, porém, livre. Desse modo, verbalmente”, pois o aluno “enche a cabeça com fórmulas e
para Gramsci (2010, p. 43), “O conceito e o fato do trabalho (da palavras que não tem para ele, na maioria dos casos, nenhum
atividade teórico-prática) é o princípio educativo imanente à escola sentido, e que são logo esquecidas”. Contudo, esse sentido dado
primária, já que a ordem social e estatal (direitos e deveres) é pela escola não deve se restringir a uma contextualização rasteira e
introduzida e identi cada na ordem natural pelo trabalho” e é imediata, baseado nos simples conhecimentos prévios imediatos
através dela que o homem é capaz de libertar-se de toda concepção do aluno, mas, fazer a conexão real com todo o acúmulo cultural e
mágica do mundo e estabelecer uma visão materialista histórico- losó co que permita a organização de uma formação cultural
dialética desse mundo, pois ela: superior.
[...] fornece o ponto de partida para o posterior desenvolvimento de uma Em referência à escola italiana, Gramsci (2010) a rma que essa
concepção histórica, dialética, do mundo, para a compreensão do cisão entre a escola e a vida foi determinante para a crise da escola,
movimento e do devir, para a avaliação da soma de esforços e sacrifícios
que o presente custou ao passado e que o futuro custa ao presente, para portanto, inserir métodos ativos em um contexto fragmentado, ao
invés de elevar o discente, leva-o a uma condição de mera pro ssional e escola formativa, da qual a primeira
passividade e não atinge os objetivos da educação humanista nos contraditoriamente se estabelece como escola democrática,
termos gramscianos, que é a formação desinteressada, isto é, que quando, segundo Gramsci (2010, p. 49), “é destinad[a] a perpetuar
não vise atender “a uma imediata nalidade prático-pro ssional”, as diferenças sociais, como ainda a cristalizá-las em formas
mas que busque, “o desenvolvimento interior da personalidade, a chinesas”.
formação do caráter através da absorção e da assimilação de todo o Contudo, o lósofo sardo não se contrapõe a esse modo de
passado cultural da civilização europeia moderna”, que Gramsci ensino da escola que denominava oligárquica, pois a escola “era
a rma ser o “pressuposto necessário de toda a civilização moderna, oligárquica já que destinada à nova geração dos grupos dirigentes,
isto é, para ser e conhecer conscientemente a si mesmo” (GRAMSCI, destinada por sua vez a tornar-se dirigente: mas não era oligárquica
2010, p. 47). pelo seu modo de ensino” (Ibidem). Dessa forma, Gramsci
Gramsci (2010) reconhece o valor que o estudo reivindica um ensino que garanta também para as classes
“desinteressado” do grego e, mormente, do latim teve na educação subalternas o ensino clássico, uma formação unitária que dê as
do jovem para a aquisição dos hábitos psicofísicos de compostura condições de não somente tornar-se um pro ssional quali cado,
de disciplina metódica apropriados para fazer surgir grandes mas, mormente, de governar ou ser governado, com a eliminação da
estudiosos. Estes implicitamente recorriam ao materialismo multiplicidade de escolas especializadas, desde o início da carreira
histórico para analisar todos os aspectos do objeto, proporcionando escolar, que eternizam a divisão e as diferenças dos grupos sociais.
uma síntese losó ca do desenvolvimento histórico-real, Contudo, não se deve confundir a escola unitária gramsciana com a
determinado pelo fato de que o jovem: proposta de escolas pro ssionais de tempo integral em nosso
[...] mergulhou na história, adquiriu uma intuição historicista do mundo e tempo histórico, pois estas eram justamente o modelo escolar que
da vida, que se torna uma segunda natureza, quase uma Gramsci combatia na Itália, como o próprio lósofo sardo assinala:
espontaneidade, já que não pedantemente inculcada pela “vontade”
exteriormente educativa. Este estudo educava sem que tivesse a Se se quer destruir esta trama, portanto, deve-se não multiplicar e
vontade expressamente declarada de fazê-lo, com uma mínima hierarquizar os tipos de escola pro ssional, mas criar um tipo de escola
intervenção “educativa” do professor: educava porque instruía. preparatória (primária-média) que conduza o jovem até os umbrais da
(GRAMSCI, 2010, p. 48) escolha pro ssional, formando-o, durante este meio tempo, como
pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem
Gramsci (2010) declara a necessidade de buscar uma nova dirige. (Ibidem).

matéria que: substitua o lugar de sustentáculo que o latim e o


Nessa trilha, Gramsci (2010, p. 50) critica explicitamente a
grego ocupavam na educação tradicional; seja capaz de formar e
pedagogia nova que, segundo ele, “quis destruir o dogmatismo
instruir de forma desinteressada desde a infância até “chegar aos
precisamente no campo da instrução, do aprendizado de noções
umbrais da escolha pro ssional”; supere a dicotomia entre escola
concretas, isto é, precisamente no campo em que um certo
dogmatismo é praticamente imprescindível”, rebaixando o nível a base de sua formação, partindo da técnica-trabalho para a
racional, dado que o dogmatismo é introduzido “no campo do técnica-ciência e à concepção humanista histórica que possibilita
sistema religioso e [portanto, passa-se] a ver descrita toda a formar o especialista-político. Para Gramsci (2010, p. 53),
história da loso a como uma sucessão de loucuras e de delírios”. O problema da criação de uma nova camada intelectual, portanto,
Esse rebaixamento ocorre, ademais, com o afrouxamento da consiste em elaborar criticamente a atividade intelectual que cada um
possui em determinado grau de desenvolvimento, modi cando sua
disciplina de estudo justamente quando as camadas populares relação com o esforço muscular-nervoso no sentido de um novo
acessam as escolas médias, impedindo-as de desenvolverem a equilíbrio e fazendo com que o próprio esforço muscular-nervoso,
enquanto elemento de uma atividade prática geral, que inova
capacidade de concentração e contenção física que demanda um perpetuamente o mundo físico e social, torne-se o fundamento de uma
nova e integral concepção do mundo.
processo de adaptação psicofísica porque “é um hábito adquirido
com esforço, aborrecimento e até mesmo sofrimento” (GRAMSCI, Desse modo, Gramsci, não nega a fundamental interação entre
2010, p. 51) e, sobretudo, impedindo-as de formarem sua camada ensino e trabalho, mas a concebe do ponto de vista mais avançado,
de intelectuais. Como assevera Gramsci (Idem, p. 52), “Se se quiser não se restringe ao trabalho manual da fábrica, refutando os
criar uma nova camada de intelectuais, chegando às mais altas imperativos classistas modernos impostos à escola de atender
especializações, a partir de um grupo social que tradicionalmente mecanicamente aos interesses impostos pela industrialização,
não desenvolveu as aptidões adequadas, será preciso superar manifestando-se na escola pro ssionalizante que se apresenta
enormes di culdades”. como uma proposta democrática, por garantir o acesso histórico aos
Como, para Gramsci (2010), “é impossível falar de não- lhos dos trabalhadores, mas que visa somente sujeitar os
intelectuais porque não existem não-intelectuais”, podemos aferir indivíduos à lógica da produção capitalista que, para eternizar o
que não foi por acaso que ampliou sua noção de intelectual, como status quo, utiliza-se de propostas pedagógicas mecanicistas e
ele mesmo a rma, “Eu amplio muito a noção de intelectual e não positivistas que também se intitulam ativas para atender às
me limito à noção corrente que se refere aos grandes intelectuais”. urgentes e voláteis tecnologias da produção.
(GRAMSCI, 2005, p. 84). Cabe ressaltar que Gramsci, tal como Marx, não se opõe ao alto
Gramsci buscava resgatar a relação entre estrutura e desenvolvimento das forças produtivas, mas afere que o alto
superestrutura de incrustações economicistas e fatalistas, que desenvolvimento da indústria deveria proporcionar também o alto
levavam a uma passividade mórbida diante da história, desvelando, desenvolvimento humano. Por isso, destaca o desenvolvimento
sobretudo, o papel do homem no processo de conquista de um técnico e tecnológico contínuo como elemento que enriquece o
novo tipo de sociabilidade humana, através da constituição de um processo educativo e possibilita um desenvolvimento autônomo no
novo tipo de intelectual, moderno, que tem no trabalho (industrial) âmbito escolar, coordenado com a produção, mas radicado,
sobretudo, no ensino rigoroso de toda a cultura humana já a pedagogia nova limitava-se a um desenvolvimento espontâneo,
desenvolvida, a loso a e a ciência. Estas, integradas, são porém pondo o homem na mesma passividade mórbida diante da
consideradas como um humanismo de novo tipo, pois não se história, já que coloca o homem frente apenas de si mesmo e não
restringem a um saber enciclopédico, mecânico e desconectado da do mundo concreto e das coisas, das relações sociais em constante
vida, mas formativo, porque edi cado em um movimento dialético movimento.
que considera o presente e o passado, e sobretudo, o devir. Na perspectiva da pedagogia nova, o jovem aprende a encarar o
Buscando respeitar o desenvolvimento das aptidões da criança, mundo como um produto pronto e imutável, assim como encontra a
divide sua proposta no nível inicial, quando essa relação é si mesmo como pronto e acabado, desconsiderando totalmente o
intrinsecamente unitária pelo fato de que a criança deva ser posta aspecto histórico e social e, sobretudo, a luta de classes, a qual
em contato com os mais diversos conhecimentos e processos determina o ambiente social, rico ou pobre, que, por sua vez,
produtivos, compatíveis com seu nível intelectual, e criativos donde propicia ou não o desenvolvimento das potencialidades humanas,
descobrirá suas habilidades para, no nível seguinte, desenvolvê-las levando, sobremaneira, ao fatalismo histórico e mecanicista como
e amadurecê-las, e somente assim serem inseridos na atividade se o homem nada pudesse fazer para mudar a realidade e o seu
social. Porém, veri camos que a proposição de escola gramsciana destino, dado que esse não lhe pertence. O destino do jovem, nessa
tende a superar, além dos esquemas tradicionais, a dicotomia entre perspectiva, estava previamente traçado pelo fato de conter em si
a espontaneidade do aluno e a organicidade do conhecimento, mesmo o limite da sua potencialidade. Essa formação unilateral
entre seus interesses subjetivos e os dados objetivos, visando termina por desenvolver apenas uma habilidade, corrobora com a
uni car motivação e racionalização que as pedagogias modernas, sociedade classista e dual e perpetua a unilateralidade do ensino
a rmando buscar superar, agudizaram. ao corroborar com a dicotomia entre trabalho intelectual e manual.
Desse modo, a concepção de formação unitária de Gramsci se Para Gramsci, a escola deve realmente ser ativa e libertadora no
contrapõe radicalmente ao inatismo, ou seja, em conceber o sentido de que está historicamente envolvida com a realidade
homem como um produto pronto e acabado que já traz em si seus social e não a um voluntarismo praticista voltado à estrita
dons, virtudes e habilidades, confrontando-se, diretamente com as quali cação pro ssional para atender aos carecimentos industriais
tendências pedagógicas novas que se limitam a uma aparente e imediatos. Assim, assenta-se em oposição à visão das pedagogias
parcial superação da divisão entre ensino e ciência, saber e fazer, que encerram a relação pedagógica e educativa no indivíduo
ao a rmar que tais habilidades se manifestarão espontaneamente. singular. Em outras palavras, para o lósofo sardo, a educação, a
Enquanto as pedagogias tradicionais reduziam o homem a um instrução e o ensino devem estar articulados com o
processo formativo limitado e predeterminado pela situação social, desenvolvimento da sociedade como um todo e não ao sujeito em
particular, pois deve estar em consonância com o conjunto social Nessa esteira, Gramsci, implicitamente, resgata o caráter
que se estabelece em uma relação comunitária e coletiva, pela qual ontológico da educação que é (con)formar em cada indivíduo a sua
os indivíduos poderão desenvolver-se livremente pela união humanidade, a qual somente é possível através do processo de
indispensável do desenvolvimento singular e social, opondo-se transmissão do conhecimento que a rma que deve ocorrer através
severamente contra a pedagogia naturalista de autonomia da da coerção, isto é, do fundamental e importante papel do educador
individualidade singular, que é baseada no jogo, que mantém a na atividade interativa e educativa de formação das novas
infantilidade das mentes infantis, visto que o trabalho e a vida não gerações, pois isentar-se desse papel representa, além de uma
são um jogo. criminosa negligência pedagógica, uma violação histórica ao
A vida é um processo dinâmico e dialético, e esse movimento homem que é, acima de tudo, um ser histórico e social. Este ser
vivo demanda a aprendizagem de conceitos e categorias concretas desenvolve suas qualidades na interação com outros e com a sua
para que os indivíduos possam: veri car e atuar plenamente sobre história, e não como um progressivo processo natural que depende
a vida real; tornar-se demiurgos da sua própria vida e da história; exclusivamente de si mesmo, mas ao situar-se historicamente como
tomar posse do próprio pensamento e da ação, movidos por uma um contemporâneo de seu tempo.
nova concepção do mundo que considera os aspectos orgânicos da Desse modo, Gramsci também se distingue das pedagogias
realidade como frutos da ação e da intervenção humana pela qual a ativas no campo da disciplina e rigor dos estudos, mormente no
realidade pode ser efetivamente transformada. É nesse espectro ensino de noções concretas e objetivas. Por isso, o autor sardo, por
que a loso a da práxis é teoria e prática educativa em que ao viver em um momento de expansão escolar em que a instrução, o
tempo que destitui as ideologias modernas dominantes, livrando as ensino e a educação sofrem um processo de fusão, atribui à escola
massas da cultura folclórica imobilizante, educa-as, munindo-as dos o espaço de maturação da personalidade do jovem e, portanto, um
conhecimentos necessários à autonomia de conceberem a sua espaço também de amadurecimento moral e “cívico”, de
própria concepção de mundo e criarem os seus próprios compreensão dos próprios direitos e deveres, não por imposição
intelectuais, promovendo uma nova cultura que não se embase em mecânica de regras, mas pelo sentimento de pertencimento ao
interesses egocêntricos classistas, mas centradas no ser social, gênero humano do qual participa pela conquista da consciência
visem ao alcance de objetivos emancipadores, e, portanto, o m da superior que se efetiva na prática, a qual deve ocorrer para além da
exploração do homem pelo homem. Esse novo tipo de cultura escola, na interação com os adultos. Contudo, Gramsci não pode ser
formativa e não apenas informativa permitirá ao indivíduo acusado de tradicional e dogmático, visto que consegue distinguir
experimentar suas aptidões para perceber como poderá avançar os momentos em que é necessária uma certa coerção dada a
enquanto indivíduo e ser genérico. urgente e necessária transmissão do conhecimento em um estágio
inicial que dará as bases e as possibilidades de desenvolvimento do estavam imersos os pedagogos soviéticos – mormente após a
indivíduo, capacitando-o para, criativamente, educar o ambiente difusão da visão economicista do materialismo histórico de
que o educa. Esse é o momento em que o indivíduo andará com as Bukharin, em 1921, a qual o lósofo sardo dedica um caderno136
próprias pernas, no qual desenvolverá de maneira ativa sua própria inteiro objetivando desmisti cá-la – impediam-nos de
autonomia para sobrevir sobre o meio em que vive e modi cá-lo de compreenderem a incompatibilidade política de ambos os projetos
modo conveniente para atender as necessidades coletivas. educativos e, portanto, de ambos os projetos de sociedade, dado
Desse modo, Gramsci apresenta a escola unitária não apenas que a concepção de mundo mobiliza e orienta a personalidade
como alternativa à crise da estrutura da escola tradicional que se humana para o estabelecimento de um determinado modo de vida
assentava em um cenário no qual despontavam novas concepções social.
pedagógicas contraditórias que buscavam soluções práticas e Partindo do pressuposto de que, em Gramsci, a nalidade última
imediatas, como no modelo italiano, aprofundando o processo de do projeto educativo é a conquista da hegemonia subalterna,
curvatura da vara, como a rma Saviani (1995), da velha escola que quando o Estado será dissolvido na sociedade civil. A escola
se dividia em humanista e instrumental para a escola ativa e unitária, nesse contexto, será um organismo verdadeiramente
pro ssional. Gramsci, sobretudo, tinha uma proposta que visava desinteressado, de proposição de organização coletiva e de
recuperar a formação do homem consoante à recuperação do autogoverno, por isso, Gramsci refuta o ensino de matérias como
marxismo do fatalismo mecanicista que reforça a unilateralidade do religião que permitem interpretação classista e folclórica da
ensino. Essas novas pedagogias, para atenderem aos interesses realidade, assinalando o ensino de matérias que não incorram no
industriais capitalistas de viés liberal, limitaram-se ao aspecto risco de variar conforme a perspectiva do professor, mas que
puramente prático e utilitário do conhecimento. desenvolva o espírito investigativo e a autonomia da investigação
Assim como Gramsci relutou contra as pedagogias modernas no com a absorção dos métodos e da disciplina de estudo.
contexto de governos liberais, também não dispensou críticas ao Portanto, a escola unitária não será um espaço democrático
contexto educacional socialista soviético, pela incoerência teórico- somente porque garantirá o acesso a todos sem distinção, mas para
revolucionária de adoção de métodos liberais de ensino para além disso, porque será um espaço não apenas de apropriação da
atingir o objetivo nal da revolução que era o comunismo. Por isso, cultura, mas de sua produção pela sua vinculação orgânica com a
reconhecendo as limitações da falta de programa ou uma base vida real, tornando-se um organismo de governo, de teoria e de
teórica necessária que atendesse à vontade operosa de educar as prática da autodireção, de preparação técnica formativa capaz de
novas gerações no espírito comunista, podemos aferir que, no munir os estudantes da vontade coletiva e das condições objetivas
cárcere, Gramsci reconhece que a visão mecanicista em que para atuarem na tarefa de governar ou ser governado. Dessa forma,
mediações de cunho religioso ou “classista” que levem a uma concepção mítica da
o ensino deverá ser garantido pelo Estado de forma gratuita e
realidade ou que possam levar a interpretações interessadas, mas fundada nos métodos e
obrigatória, à medida que o Estado representará os organismos conhecimentos cientí cos. Contudo, Marx não corrobora com estes ideais no mesmo viés
do ideário burguês, por isso, conserva os princípios “educativos”, mas suprassume os
associados de autogoverno, composto por indivíduos conscientes, mecanismos para atingi-los, reivindicando um novo solo social em que estes devem ser
participativos e criativos. assentados.
69
Nesse viés, a proposição gramsciana de formação humana Ver Capítulo: Trabalho Educação e Reprodução Social.
70
aproxima-se da visão de formação humana marxiana, pois, para Grifos do autor.

ambas, a formação omnilateral somente poderá ocorrer com o 71


Ver A Ideologia Alemã.

equilíbrio de todas as forças sociais, fundadas em uma nova 72


MARX, K. Miséria da Filoso a.
sociedade e através de uma nova escola que oportunize aos 73
A divisão entre trabalho intelectual e manual que nos é apresentada como algo natural.
indivíduos desenvolver livremente suas aptidões, sem que o seu 74
A descoberta da infância, suas características e suas necessidades, ocorreu após Emílio,
de Rousseau.
futuro já esteja predeterminado pelo lugar que ocupa na sociedade,
75
dado que os indivíduos não ocuparão mais grupos antagônicos, o Industrial e lantropo que iniciou suas investidas pedagógicas em sua fábrica para os
lhos de seus operários na Escócia criando a Infant´s School que se espraiou por toda a
que somente se efetivará com o m da propriedade privada e da Europa.
divisão classista do trabalho, que eternizam o antagonismo de 76
Movimento educacional que se espraiou pela Europa e pelo mundo, através do grande
expoente do movimento escolanovista,John Dewey, quando no período do Pós-Guerra
classes e a oposição entre trabalho manual e intelectual, usurpando
inicia uma série de viagens ao Japão, China, Turquia, México, URSS, Escócia, pelas quais o
do homem a possibilidade de desenvolver em toda sua plenitude a seu pensamento losó co e pedagógico se difunde e se a rma como um dos
instrumentos mais e cazes para enfrentar e superar a crise pós-bélica e renovar e
sua essência que é ser omnilateral, fato que somente será possível consolidar o (neo)liberalismo. Esse movimento, tendo como base a posição positivista do
com o advento da sociedade unitária e emancipada. ensino de ciências aliado ao liberalismo, trazia um caráter ativista, ou seja, que a ação
signi ca conhecer. Esse movimento chega inclusive ao Brasil, através de Anísio Teixeira,
Lourenço Filho e Fernando de Azevedo, entre outros. John Dewey, professor universitário
e lósofo, sob in uência evolucionista e hegeliana, tinha interesse por estudos
psicológicos e losó cos da educação centrados na experiência e a nados com os ideais
liberais em crise, no início do século XX. Desse modo, considerava a educação para a
65
Conforme Manacorda (2010a), é o dado mais antigo da história que remete a um formação do cidadão ativo como ferramenta de harmonização e equilíbrio social, que
processo formativo dirigido. deveria ocorrer com a oferta de igualdade de oportunidade intelectual, desconsiderando
66 os aspectos sociais, tendo, assim, os fundamentos das ideias socialistas como antagônicas
O ofício de escriba (no Egito Antigo) consistia em transmitir ordens como um
às suas, ainda que em algum momento tenha tido alguma aproximação de personalidades
mensageiro, uma função de prestígio, a qual necessitava de habilidades que se adquiria
revolucionárias.
através dos estudos de livros na “escola dos escribas” para torna-se um verdadeiro
erudito, ou seja, instruir-se para arte do bem falar. Para esta função eram destinados os 77
Tal como Montessori na Itália.
jovens nobres ou elevados. Ver Manacorda (2010a). 78
“O método de laboratório de Dalton destrói sem piedade a organização do tempo. A
67
Termo atribuído por Petrarca. Ver Ponce (2007). organização do tempo é uma verdadeira maldição para a criança. A abolição da
68 organização do tempo é, na realidade, o primeiro passo no sentido da libertação do
Nos textos em que se refereàformação, Marxdefendeoacessoàeducaçãoa todos, sem
aluno”. Vide Helen Parkhurst In: Dewey (1922). O Plano Dalton eliminava a organização
distinção, de forma gratuita, que deve ser garantida pelo Estado, porém laico, isto é, sem
das classes e instituía os laboratórios os quais eram frequentados de acordo com a
necessidade de cada aluno que livremente organizava seus próprios horários. pragmático do mito da pátria, invocando a união da nação, com a manipulação das massas
79 populares através de propagandas patrocinadas, que, ao mesmo tempo em que difundia o
Discípula de John Dewey. fascismo, explorava o consumo dirigido.
80
DEWEY, Evelyn. The Dalton Laboratory Plan. O livro, publicado pela primeira vez em 91
Devido a cisões internas, em janeiro de 1921, no Congresso de Livorno, a fração
1922 nos Estados Unidos, traz a supracitada como autora, porém a idealizadora do plano comunista composta por Gramsci, Bordiga e Togliatti é excluída e, poucos dias depois,
foi Helen Parkhurst, sob a orientação de John Dewey. fundam o Partido Comunista Italiano (PCI).
81
Será conjugado ao método dos complexos. 92
Segundo Konder (1977), fascismo tem origem na palavra fascio e signi ca feixe e se
82
“As crianças são experimentadoras. Os instrutores são observadores que se encontram remete a um símbolo da Roma Antiga representado pelo machado reforçado por muitas
prontos para servir a comunidade, como seus talentos especiais permitirem. Como varas, por meio do qual o machado representava o Estado e as varas representavam a
observadores eles estudam as crianças que descobrem que ambiente satisfará melhor unidade do povo em torno de sua liderança.
suas necessidades educacionais imediatas. Como especialistas, sua função é fornecer a 93
Grandes industriais, o Exército, o Rei Vitor Emanuel e sua família.
técnica, apontar o caminho para a aquisição da informação e manter o padrão intelectual e
94
técnico” (Tradução livre). Essa reforma foi construída sobre a Lei Casati, de 1859, que pretendia ser a Carta Magna
83 da escola italiana e criou o sistema nacional de escola pública, tendo o Estado como único
Companheira de Lenin e emissária da educação. gerenciador do ensino, desde o elementar até o superior, uma organização centrada no
84
No texto referenciado por Manacorda (1964), Krupskaya sugere que passou uma burocratismo hierárquico que separava o ensino humanístico do técnico.
semana nos Estados Unidos, acompanhando as atividades escolares em 1923. 95
A supressão de interferência exterior na ação didática do professor concretiza-se na
85
“Todavia, um conhecimento mais exato da escola americana contemporânea nos mostra diminuição do controle que o Ministério mantinha sobre as escolas por meio da inspeção,
o quanto profundamente nos equivocamos por pensarmos assim. Por não falar nem e da ampliação do controle por meio dos exames. Ver Horta (2008).
mesmo das escolas especiais para os negros, na América toda a escola é permeada pelo 96
Gentile considerava o ensino religioso como um empecilho para o desenvolvimento
espírito nacionalista arqui-burguês” (Tradução livre). moral e intelectual que sustenta os regimes absolutos e autoritários. Contudo, considerou
86
Discurso na Conferência dos Educadores Políticos, em 1920. oportuno e conveniente a sua oferta obrigatória nas escolas primárias.
97
87
“O m que o estado burguês determina à escola é de servir de instrumento de domínio Giuseppe Lombardo-Radice, liberal socialista, de orientação losó ca nitidamente
de classe da burguesia [enquanto o] m [da classe operária] consiste em educar uma idealista, que, ao mesmo tempo, militou por um largo tempo nas leiras socialistas.
geração que possa realizar os ns da classe operária [que é] pôr m ao domínio de classe” Colaborou com a reforma educacional de Gentile, no âmbito da educação primária, mas,
(Tradução livre). com o assassinato de Matteoti (líder socialista morto pelo regime fascista, em 1924),
rompeu com o fascismo. Conforme Ferrière (apud HORTA), é considerado um dos pioneiros
88
É válido lembrar que alguns elementos encontrados nas cartas do cárcere nesse da Educação Nova na Europa.
intervalo acerca da educação dos lhos, que se encontravam com a mãe, em Moscou, 98
revelam que o Plano Dalton foi realmente integrado à escola soviética nos anos Canestri-Ricuperati, La scuola in Itália dalla legge Casati a oggi, Loecher, Torino, 1976, p.
posteriores à publicação de Pistrak, período em que o autor sardo por interlocução de sua 138. In Charnitizky, J. La riforma de Giovanni Gentile in fascismo e scuola. La riforma
família teve acesso aos processos de ensino, in uenciando, fortemente, seus escritos scolastica del regime (1922-1943) La Nuova Itália, Firenze, 1996. Disponível em
sobre a escola unitária. www.univirtual.it/corsi/2003/gecchele/ download/modulo_6.pdf. Acesso em: 10/2010.
99
89
Conforme Konder (1977), a Primeira Guerra foi uma estratégia de expansão do In: NOSELLA (2010b, p. 53). Trata-se de uma obra que integra a Coleção Educadores do
imperialismo do capital que havia se tornado a fusão do capital nanceiro com o capital MEC a qual traz um conjunto de textos selecionados (artigos originais) de Gramsci.
industrial. 100
Publicado em 18 de julho de 1916 no Jornal Avanti!, Ano XX, n.º 198.
90
Segundo Konder (1977), Mussolini, que havia deixado o PSI para participar da Primeira 101
Publicado em 8 de setembro de 1916 no Jornal Avanti!, Ano XX, n.º 250.
Guerra, “passou-se com armas e bagagens para o lado da burguesia e se incumbiu de
102
vender-lhes a sua interpretação da teoria da luta de classes” (1977, p. 8-9), substituindo-a Publicado em 29 de dezembro de 1916 no Jornal Avanti!.
pela luta entre nações proletárias e capitalistas, inserindo o idealismo “revolucionário” 103
São pessoas que não puderam seguir os estudos regulares.
104 122
In: NOSELLA (2010b, p. 62). Tatiana, cunhada de Gramsci, a quem algumas vezes chama de Tania.
105 123
In: NOSELLA (2010b, p. 63). Conforme Coutinho em nota na edição das Cartas vol. 2 (2005), Brigadas de assalto
106 eram coletivos estudantis teoricamente criados para estimular a socialização e o costume
Terracini, Togliatti e Tasca. da autodireção. Já os Nichos especializados eram espécies de laboratórios que buscavam
107
Publicado em 20 de dezembro de 1919, no L’Ordine Nuovo. retratar a realidade, como o nicho dos seres vivos que era um viveiro reservado para
animais domésticos.
108
In: NOSELLA (2010b, p. 68). 124
(GRAMSCI, 2005b, p. 179-180).
109
Carta a Tatiana, de 20 de janeiro de 1929. 125
Método de laboratório que suplantou as classes criado pelos americanos idealizadores
110
Conforme a carta de 14 de dezembro de 1931 à cunhada Tania, podemos destacar as da Escola Nova.
Revistas L´Educazione Fascista, La Cultura e Pégaso. 126
Nova ordem.
111
Ver: OLDRINI, Guido. Gramsci e Lukács, adversários do marxismo da Segunda 127
Internacional. Congresso Internacional de Szeged: Hungria, 1991. Segundo Oldrini, não “Em relação às breves notas que escrevi sobre os intelectuais italianos, não sei
tendo, Marx e Engels, por motivos alheios, conseguido construir um sistema losó co realmente por onde começar: elas estão espalhadas em uma série de cadernos,
doutrinário do marxismo para se opor às críticas, os marxistas acabaram por cair em um misturadas com várias outras notas, e deveria inicialmente reunir todas para poder
ecletismo incoerente para completar as doutrinas “econômicas” de Marx, as quais Gramsci ordená-las.”. Carta de 22 de fevereiro de 1932 à Tania. (GRAMSCI, 2005b).
e Lukács reagiram. 128
Cabe ressaltar que partido deve ser compreendido conforme o conceito de sociedade
112
Como expressa na carta ao lho, em 20 de maio de 1929, “Soube que você vai à escola civil de Gramsci, isto é, os diversos espaços de organizações da vida coletiva e cultural,
[...], acho que já é muito grande e em pouco tempo irá me escrever cartas. [...]. Assim, você como os sindicatos, as associações, clubes, etc., ou seja, os intelectuais orgânicos
vai me dizer se gosta dos outros meninos da escola, o que é que aprende e como gosta de aglutinados e organizados, cumprindo a função de escola de formação revolucionária.
brincar” (GRAMSCI, 2005a, p. 342). 129
Mesmo não sendo uma questão de nossa pesquisa, pudemos aferir que em algumas
113
Carta a Giulia, de 11 de agosto de 1930. passagens da obra de Gramsci, mormente, nos escritos do Cárcere, encontram-se a
perspectiva de base ontológica em consonância com os fundamentos do autêntico
114
No sentido dado no contexto, que é de intervenção consciente e orientada pelo marxismo que o lósofo sardo busca recuperar.
objetivo de levar o outro a uma apropriação mais profícua até o seu amadurecimento. 130
Devido à censura a que Gramsci estava submetido no cárcere, refere-se à sociedade
115
Conforme Coutinho em nota, a data dessa carta foi posta por pesquisadores do comunista como sociedade regulada.
Instituto Gramsci. Ver Cartas (2005a). 131
Gramsci se refere ao modo de organização da vida coletiva e social.
116
Trata-se de um brinquedo, inventado em 1901 (auge industrial), pelo inglês Frank 132
Hornby, que tinha como base os princípios da engenharia mecânica e, portanto, consistia Academias, universidades, institutos, círculos de cultura. Ver Caderno 12.
em um kit de peças para montagem em inteira conexão com as linhas de produção fabris. 133
No sentido de envolvimento e participação de todos os sujeitos e não em uma visão
117
Carta a Grazietta, em 29 de dezembro de 1930. reduzida tal como a visão fascista.
134
118
Trecho da carta à cunhadaTatiana, de 15 de dezembro de 1930, na qual expressa sua Não se exclui a esfera inorgânica da qual o homem depende.
discordância de terem escondido dos lhos, Délio e Giuliano, que o pai estava preso. 135
135 Para Gramsci (2010), instrução trata-se dos conhecimentos adquiridos na escola, e
119
Carta a Tatiana, em 20 de abril de 1931. educação daqueles adquiridos em todos os espaços da vida social, pois, como adverte
(2010, p. 44), “a consciência da criança não é algo ‘individual’ (e muito menos
120
Carta de 4 de maio de 1931. Na carta de Délio a rma amar fábulas, e por isso, individualizado): é o re exo da fração da sociedade civil da qual a criança participa, das
conforme Giulia o lho tem instinto literário. relações sociais tais como se aninham na família, na vizinhança, na aldeia, etc.”.
121 136
Carta de 1.º de junho de 1931. Ver GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. v.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2011.
Para tanto, Gramsci, que se orientava para a constituição de uma
nova forma de sociabilidade humana, na qual a democracia e a
liberdade sairiam do campo da mera formalidade jurídica e se
CONCLUSÃO efetivariam verdadeiramente no campo das relações sociais
coletivas e emancipadas, assinala os espaços e os organismos
sociais, mormente os espaços de produção e difusão cultural, que
emergem na sociedade civil, como o partido, como locus de
formação do quadro revolucionário, os intelectuais orgânicos.
As re exões tecidas em nossa investigação sobre a formação Desse modo, a obra gramsciana objetiva apontar para o horizonte
omnilateral e os fundamentos da proposição de Escola gramsciana, revolucionário, revelando novas estratégias de luta que corroboram
com base na revisão da literatura marxiana-gramsciana, e apoiadas com a conquista de uma nova sociedade, demonstrando duas fases:
nos fundamentos da ontologia marxiana e dos demais textos de a conquista da direção e a conquista do domínio. A primeira deve
autores de mesma perspectiva teórica, levam-nos a a rmar que a ocorrer no seio da sociedade com a obtenção do consenso, isto é, a
proposição de Escola Unitária do lósofo sardo volta-se luta pela adesão das classes subalternas à loso a da práxis e sua
radicalmente para a perspectiva revolucionária de formação tomada de posição diante da sua própria vida e da história, que
humana no contexto de uma nova forma de sociabilidade humana. possibilitará a segunda conquista que é efetivamente a instauração
Gramsci, intelectual-militante italiano que dedicou toda a sua de um novo modo de vida social, não em uma inversão de
vida e obra à luta das classes subalternas, em um contexto de dominação de classes, mas pela dissolução do poder hierárquico,
transição e de crise do capital que buscava expandir-se, vivenciava antes centralizado nas mãos de poucos, para os organismos de
o modelo democrático burguês, no qual a teoria marxiana se governo associados, nos quais todos poderão ser dirigentes ou
apresentava eivada de positivismo e economicismo, elementos dirigidos. Para tanto, é necessário que a camada intelectual do
próprios da ideologia liberal que ao se engendrar ao marxismo partido esteja junto à classe subalterna, envolvida em uma
pretendia engessar a possibilidade real revolucionária. Buscando interação intensa, preparando-a e ajudando a fomentar sua
recuperar o marxismo dessas incrustações, conseguiu aferir a ideologia, pois a transformação da classe subalterna em dirigente
formação das classes subalternas como via necessária para atingir o antes da efetiva tomada do poder é o momento fundamental da
horizonte revolucionário, resgatando a luta proletária da aguda estratégia gramsciana.
passividade a que se submetera, dada a misti cação evolucionista Podemos, assim, a rmar que o senso comum é o princípio e o
que permeava a visão dos acontecimentos históricos e do devir. m da loso a da práxis, considerando que é a partir da realidade
concreta que deve se mover dialeticamente as contradições para a Cabe ressaltar, que o conhecimento produzido, seja ele produzido
ampliação da hegemonia através da difusão consciente da pela classe dominante ou dominada, torna-se patrimônio da
ideologia subalterna, visando transformar a ideologia subalterna humanidade. Portanto, o que existe não é o conhecimento
em dominante do cotidiano, senso comum, fundamento da vida dominante, mas o conhecimento que fora apropriado de forma
social. Nessa tela, esses espaços educativos, de difusão da cultura privada pelos grupos dominantes.
proletária, têm o papel essencial no avanço da luta revolucionária É a esse propósito, de superação da superação, que Gramsci se
de, confrontar a ideologia dominante e fortalecer a ideologia propõe a delinear uma alternativa que o atenda, não se
subalterna, pela conquista efetiva da hegemonia que, segundo restringindo a uma resposta às necessidades imediatas que se
Gramsci, dissemina-se nos espaços da sociedade civil. impunha através das pedagogias modernas que despontavam no
Nesse contexto, a escola, como um espaço de contraditórias início do século XX – tal como a Escola Nova que in uenciou
relações e construções, que ao mesmo tempo pode consolidar a expressivamente as políticas educacionais de diversos países e tem
hegemonia dominante, pode também tornar-se um espaço de rebatimentos ainda hoje na lógica dessas políticas em todo o
consolidação de uma contra-hegemonia, a qual, no contexto de mundo, mormente nos países da periferia do capital –, mas,
transição, tem o papel fundamental de organização das novas sobretudo, a uma demanda histórica de reconciliação do homem
gerações. Estas, em consonância com a inauguração de uma nova consigo mesmo, visando ao m da alienação e do estranhamento
sociedade, deverão suprassumir a exclusão da formação das massas que os submergem à lógica da exploração e da coisi cação do
historicamente deixadas à margem do espaço escolar por ser modo de produção vigente. Esse é um sistema que recon gura o
privilégio das elites, e aproveitar-se da senda aberta com o homem à sua imagem e semelhança, como um objeto e produto
desenvolvimento tecnológico industrial que abriu a possibilidade que é formatado para uma utilidade prática na lógica capitalista,
de formação da classe trabalhadora – estritamente voltada para a que quali ca a classe trabalhadora nas habilidades exigidas por
atividade pro ssional no sentido de formação da força de trabalho essa lógica para expô-la na prateleira do mercado de trabalho,
para simplesmente manusear meios de produção – para elevá-la da esperando ser escolhida e sua vida consumida pelo capitalista que
formação inferior, transmitindo-lhe os conhecimentos a transmutará no objeto de desejo desenfreado dos donos dos
historicamente produzidos pela humanidade. As classes meios de produção, os lucros do capital.
subalternas deverão apropriar-se criticamente para conservá-los e Desse modo, Gramsci reivindica, de modo contundente,
superá-los, dado que tais conhecimentos, a partir do advento da mormente para as classes subalternas, os conhecimentos
propriedade privada e da exploração do trabalho, foram desinteressados que formam efetivamente o lósofo democrático,
historicamente produzidos sob interesses classistas dominantes. que deverá ter a capacidade organizativa e dirigente visando
atender ao interesse da classe que representa, qual seja, o m da exploração capitalista, com a defesa do inatismo mecanicista dos
propriedade material e espiritual privada, fundada no trabalho indivíduos, atribuindo a eles mesmos os limites e as possibilidades
explorado. Nesse espectro, o lósofo sardo resgata o aspecto de seu crescimento intelectual e econômico individual. Outrossim,
ontológico da educação que é a transmissão da humanidade que se consideravam a educação como via “revolucionária” para a
realiza sobremaneira na transmissão dos conhecimentos harmonia social, visando, somente, a renovação do liberalismo em
produzidos pelo homem. Esse lósofo sugere sobremaneira que crise. São por esses motivos que Gramsci radicalizou e exacerbou
assumia o trabalho como fundante do ser social, posto que aliava a sua visão de formação, resgatando a terceira Tese sobre Feuerbach,
recuperação que faz da visão de mundo, na qual a rma a unidade transformando-a em um verdadeiro grito de ordem: o educador
entre ciência e trabalho – revelando-se na loso a da práxis – com deve ser educado!
o propósito de eliminar a visão mítica e folclórica da realidade, Para Gramsci, a relação pedagógica ocorre em todos os espaços
como uma loso a que basta a si mesma. Nessa tarefa, a nalidade da vida social. A escola, entretanto, tem como papel precípuo ser
última da escola unitária é atender ao princípio ativo da loso a da um espaço no qual as novas gerações se formarão em um
práxis, isto é, formar omnilateralmente, formar uma personalidade humanismo de novo tipo – fundado em uma nova concepção
integral, na qual a criação da vontade coletiva seja a manifestação comunitária que desenvolverá o espírito coletivo e, imbuído desse
unitária entre teoria e prática, individualidade e coletividade, espírito, formará uma nova concepção de mundo que guiará a
objetividade e subjetividade. É somente com o acesso ao postura ético-política do homem novo. Ao entrar em um processo
conhecimento mais avançado, que a classe subalterna será capaz de aquisição histórico-dialética de si através do contato com as
de constituir a sua própria identidade, produzir novos antigas gerações, e ao absorverem as experiências e os valores
conhecimentos e formar seus intelectuais orgânicos capazes de historicamente necessários, as novas gerações poderão recuperar a
construir o próprio saber e organizar-se para a função dirigente. visão de homem do folclore e do misticismo, produzindo sua
Por esse motivo, Gramsci refutou veementemente as pedagogias humanidade para o amadurecimento de sua personalidade em um
modernas do início do século XX, as quais repercutem até o âmbito culturalmente superior, dada a conexão recíproca com a
momento hodierno, pois estavam explicitamente concatenadas vida real e suas contradições. Essa apropriação da cultura universal
com os ideais liberais de dominação. Estas, em nome da não visa apenas justapor as contradições, mas enfrentá-las e
espontaneidade absoluta e do individualismo egocêntrico, superá-las, em uma unidade ideológica que cimente a unidade
negavam a transmissão do conhecimento e o desenvolvimento do entre os intelectuais e os simples para que todos tornem-se
espírito coletivo, esvaziavam o papel do professor e negavam a luta especialistas e políticos, ou seja, pessoas formadas na técnica
de classes, corroborando para a manutenção do sistema de cientí ca e política, embasados em uma visão ampla em que
técnica não se resuma somente ao conjunto de noções cientí cas histórico e entendida como uma teoria que vislumbrava um
aplicadas na indústria, mas diga respeito também aos instrumentos momento de transição socialista e que, ao contrário de todos os
mentais, ao conhecimento losó co, para sua atuação na sociedade outros projetos educacionais apresentados, estava alinhado com
do trabalho livre e associado. Essa relação alinha-se a uma nova uma nova proposta de sociedade. Vale destacar que, a amplitude da
con guração social, de base marxista, na qual o trabalho associado obra gramsciana não nos permite nalizar as nossas considerações
e a diversidade de atividades exigem uma formação completa, de modo pronto e acabado, mas como uma vereda que se abre,
omnilateral, desenvolvida em um espaço adequado desde a apontando uma longa jornada a percorrer, de idas e vindas teórico-
infância, que possibilite o desenvolvimento de todas as habilidades práticas diante dos vastos elementos novos que se apresentaram
humanas, as quais serão absorvidas e potencializadas no conjunto durante o processo de desvelamento de seu pensamento, porém,
das atividades coletivas e da interação social. nos permite contribuir com a desmisti cação da visão reduzida e
Desse modo, a natureza da formação omnilateral no viés do oportunamente reformista do lósofo sardo.
marxismo genuíno, como a loso a da práxis resgatada por Aferimos, desse modo, a extrema relevância, como
Gramsci, é essencialmente revolucionária, pois pretende romper contraposição à ordem vigente, da contribuição teórica de Gramsci
com todos os paradigmas hodiernos que visam simplesmente em defender severamente a necessária elevação do ser humano, de
justapor opostos, mantendo a contradição funcional do sistema fazer de cada indivíduo um contemporâneo de seu tempo, isto é,
vigente. A formação omnilateral visa, única e exclusivamente, a rmando, de modo contundente, a apropriação e o acesso a todo
contribuir para a dissolução do poder e organização dos múltiplos patrimônio intelectual e material construído historicamente pela
sujeitos da sociedade civil, criando a subjetividade necessária que humanidade, e consequentemente, a luta teórica e prática pela
somente é possível com a subversão da ordem de dominação para a construção de uma nova forma de sociabilidade humana. Para
instituição de uma sociedade genuinamente humana, Gramsci (2004), só se conhece a cultura quando se conhece a si
possibilitando a formação dos sujeitos coletivos não somente no mesmo, inspirado em nosce te ipsum137, pois somente por esse
âmbito da escola unitária, mas em todos os espaços e instituições processo de conhecimento de si e da genericidade humana, o
que a sociedade vier criar, pela participação ativa na vida política, homem pode sair da condição de subalternidade e elevar-se
econômica e cultural. cultural e materialmente, podendo, dessa feita, ativa e
Em suma, aferimos que a teoria gramsciana traz em seu cerne conscientemente, participar da construção da história.
uma grande contribuição de caráter revolucionário para a discussão Evidencia-se, portanto, que Gramsci não compartilha dos ideais
educacional, especialmente na contraordem das propostas dominantes que colocam a educação como redentora de todas as
dominantes. Entretanto, deve ser analisada em seu contexto mazelas sociais. Mas afere que para a formação do homem novo e
livre é necessária conjuntamente a consolidação de uma nova
sociedade, emancipada, em que os antagonismos de classes sejam
superados e sejam postas as possibilidades materiais e espirituais
de desenvolvimento das potencialidades individuais e coletivas,
REFERÊNCIAS
omnilateralmente, para ns universais, e essa sociedade, tal como
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