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PATRIMÔNIO CULTURAL:

HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE
EDITORA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ

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COMERCIALIZAÇÃO Paulo Bento da Silva
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edição 2016 para a editora.


Solange Marly Oshima
HISTÓRIA E CONHECIMENTO

Sandra C. A. Pelegrini

Patrimônio Cultural:
Histórias, memórias e
sustentabilidade

29
Eduem
Maringá
2016
HISTÓRIA E CONHECIMENTO

Apoio técnico: Rosane Gomes Carpanese


Normalização e catalogação: Ivani Baptista CRB - 9/331
Revisão Gramatical: Tania Braga Guimarães
Edição, Produção Editorial e Capa: Eliane Arruda
Carlos Alexandre Venancio

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Pelegrini, Sandra C. A.
P381p Patrimônio cultural: histórias, memórias e sustentabilidade / Sandra C. A.
Pelegrini -- Maringá: Eduem, 2014.
118p. : il. color. fot.(Coleção História e conhecimento - EAD). n. 29.

ISBN 978-85-7628-675-2

1. Patrimônio cultural – História - Estudo e ensino. 2. Cultura – Brasil-


Sustentabilidade.

CDD 21. ed. 363.690981

Copyright © 2016 para o autor


Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo
mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos
reservados desta edição 2016 para Eduem.

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S umário

Sobre a autora > 7


Apresentação da coleção > 9
Apresentação do livro > 11
Apresentação > 11
Capítulo 1
Conceitos e significações dos bens patrimoniais
> 15

Capítulo 2
Mediações entre os estudos da história e os problemas da > 27
preservação do patrimônio ambiental

Capítulo 3
A sustentabilidade e os novos > 35
rumos das políticas preservacionistas

Capítulo 4
Ensino de história e a educação patrimonial > 47

Capítulo 5
Notas sobre os ‘Narradores de Javé’ > 59

5
PATRIMÔNIO CULTURAL:
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
Capítulo 6 > 71
SUSTENTABILIDADE A celebração em tributo ao Divino Espírito Santo
(São Luiz do Paraitinga/São Paulo)

Considerações finais > 95


Referências > 99

Anexos

Anexo 1 >107
Anexo 2 > 115

6
S obre a autora

Sandra C. A. Pelegrini
Professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM); Doutora em História So-

cial pela Universidade de São Paulo (USP); Pós-Doutora em Patrimônio Cultural

pelo NEE/Unicamp; Coordenadora do Museu Bacia do Paraná da UEM; Coorde-

nadora do Centro de Estudos das Artes e do Patrimônio Cultural (CEAPAC-UEM)

e do Programa Centro de Memórias da UEM (PRO-CMU); Líder do Diretório de

Pesquisa do CNPq: História Regional, manifestações artísticas e patrimônios cul-

turais; Consultora do Programa Iberoamericano de Ciencia y Tecnología para el

desarrollo – CYTED (Madri-Espanha). Representante da Secretaria de Estado da

Ciência e Tecnologia (SETI) no Grupo de Trabalho – Programa de Proteção, Pre-

servação do Patrimônio Escolar, coordenado pela Vice-Governadoria do Estado

do Paraná, com a colaboração da Secretaria da Educação do Paraná;Membro

da Comissão de Criação do Museu da Cultura Escolar e Educacional do Paraná –

Vice-Governadoria do Estado do Paraná. Membro da Comissão de Patrimônio da

Prefeitura Municipal de Maringá (PMM).

7
A presentação da Coleção
A coleção História e Conhecimento é composta de 42 títulos, que serão utiliza-
dos como material didático pelos alunos matriculados no Curso de Licenciatura em
História, Modalidade a Distância, da Universidade Estadual de Maringá, no âmbito
do sistema da Universidade Aberta do Brasil (UAB), que está sob a responsabilidade
da Diretoria de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal do Ensino Superior (Capes).
A utilização desta coleção pode se estender às demais instituições de Ensino Su-
perior que integram a UAB, fato que tornará ainda mais relevante o seu papel na for-
mação de docentes e pesquisadores, não só em História mas também em outras áreas
na Educação a Distância, em todo o território nacional. A produção dos 42 livros, a
qual ficou sob a responsabilidade da Universidade Estadual de Maringá, teve 38 títulos
a cargo do Departamento de História (DHI); 2 do Departamento de Teoria e Prática
da Educação (DTP); 1 do Departamento de Fundamentos da Educação (DFE); e 1 do
Departamento de Letras (DLE).
O início do ano de 2009 marcou o começo do processo de organização, produção
e publicação desta coleção, cuja conclusão está prevista para 2012, seguindo o cro-
nograma de recursos e os trâmites gerais do Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE). Num primeiro momento, serão impressos 294 exemplares de cada
livro para atender à demanda de material didático dos que ingressaram no Curso de
Graduação em História a Distância, da UEM, no âmbito da UAB.
O traço teórico geral que perpassa cada um dos livros desta coleção é o compro-
misso com uma reconstrução aberta, despreconceituosa e responsável do passado. A
diversidade e a riqueza dos acontecimentos da História fazem com que essa reconstru-
ção não seja capaz de legar previsões e regras fixas e absolutas para o futuro.
No entanto, durante a recriação do passado, ao historiador é dado muitas vezes
descobrir avisos, intuições e conselhos valorosos para que não se repitam os erros de
outrora.
No transcorrer da leitura desta coleção percebemos que os livros refletem várias
matrizes interpretativas da História, oportunizando ao aluno o contato com um ines-
timável universo teórico, extremamente valioso para a formação da sua identidade
intelectual. A qualidade e a seriedade da construção do universo de conhecimento
desta coleção pode ser tributada ao empenho mais direto por parte de cerca de 30
organizadores e autores, que se dedicaram em pesquisas institucionais ou até mesmo

9
PATRIMÔNIO CULTURAL: em dissertações de mestrado ou em teses de doutorado nas áreas específicas dos livros
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE que se propuseram a produzir.
Esta coleção traz um conhecimento que certamente marcará positivamente a for-
mação de novos professores de História, historiadores e cientistas em geral, por meio
da Educação a Distância, o qual foi fruto do empenho de pesquisadores que viveram
circunstâncias, recursos, oportunidades e concepções diferentes, temporal e espacial-
mente.
Como corolário disso, seria justo iniciar os agradecimentos citando todos aqueles
que não poderiam ser nominados nos limites de uma apresentação como esta. Roga-
mos que se sintam agradecidos todos aqueles que direta, indireta ou mesmo longin-
quamente, quiçá os mais distantes ainda, contribuíram para a elaboração deste rico rol
de livros.
Além do agradecimento, registramos também o reconhecimento pelo papel da Rei-
toria da UEM e de suas Pró-Reitorias, que têm contribuído não apenas para o êxito
desta coleção mas também para o de toda a estrutura da Educação a Distância da qual
ela faz parte.
Agradecemos especialmente aos professores do Departamento de História do Cen-
tro de Ciências Humanas da UEM pelo zelo, pela presteza e pela atenção com que
têm se dedicado, inclusive modificando suas rotinas de trabalho para tornar possível a
maioria dos livros desta coleção.
Agradecemos à Diretoria de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aper-
feiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (Capes), e ao Ministério da Educação
(MEC) como um todo, especialmente pela gestão dos recursos e pelo empenho nas
tramitações para a realização deste trabalho.
Outrossim, agradecemos particularmente à Equipe do Nead-UEM: Pró-Reitoria de
Ensino, Coordenação Pedagógica e equipe técnica.
Despedimo-nos atenciosamente, desejando a todos uma boa e prazerosa leitura.

Moacir José da Silva


Organizador da coleção

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A presentação do Livro

A apreensão do patrimônio, da cultura e da natureza exige a adoção de procedi-


mentos teóricos e metodológicos pautados por enfoques multidisciplinares que en-
volvem a história, a antropologia, a ecologia e a educação, entre outros campos do
conhecimento. Os estudos sobre os usos e costumes, saberes e práticas, crenças e
religiosidades de povos de distintas etnias ou comunidades englobam investigações
acerca da maneira como as etnias estabelecem relações de sociabilidade e sentidos de
pertença em relação ao meio onde vivem.
Justamente nessa linha de argumentação, o volume ‘Patrimônio Cultural: Histó-
rias, memórias e sustentabilidade’, de autoria de Sandra C. A. Pelegrini, estimula os
acadêmicos a pensarem sobre os significados da preservação das memórias por meio
da proteção e preservação dos bens naturais e culturais e os introduz ao universo das
políticas de salvaguarda.
O recorte temático proposto pela autora indica que ela não tem a pretensão de
esgotar as questões complexas no âmbito do patrimônio, e sim de apresentar ins-
trumentos para que os acadêmicos do curso de História a Distância da Universidade
Estadual de Maringá consigam apreender conceitos essenciais para reconhecerem os
patrimônios que os cercam e, também, perceberem o seu papel social como cidadãos
e futuros professores.
As produções de Françoise Choay, Nestor Garcia Canclini, François hartog, henry-
-pierre jeudy, Michael Herzfeld, entre outros, fundamentam as análises ora apresenta-
das porque estabelecem relações entre os bens patrimoniais, as alegorias do tempo e
do imaginário, além de referendarem a relevância do significado do vocábulo memória
como ‘lugares’ de embates sociais e como repositórios dinâmicos de reminiscências que
se edificam e se cristalizam de acordo com referenciais seletivos dos seres humanos.
Pelegrini assevera que os bens culturais devem ser preservados em função dos sig-
nificados e sentidos que despertam nos indivíduos e/ou nas coletividades; no entanto,
os interesses dos segmentos dominantes e o acesso precário às informações referentes

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PATRIMÔNIO CULTURAL: a esse assunto entre os cidadãos, os estudantes e os professores da Educação Básica e
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE do Ensino Superior dificultam ou inibem tais faculdades.
Como assinalou Michel Foucault (1926-1986), as redes de poder e de micro po-
deres interferem tanto nas relações societárias como nas políticas e sistemas de edu-
cação; por conseguinte, constituem formas políticas de manutenção e apropriação
dos discursos, inclusive por meio dos saberes e poderes neles embutidos. Em outras
palavras, o reconhecimento do que é ou não um bem patrimonial está enredado em
uma teia de interesses incomensuráveis.
Ecléa Bosi (1990), ao discutir a função social da memória, assinala que os depoi-
mentos sobre dada questão geram uma espécie de compromisso entre o pesquisador
e o narrador que, juntos, de alguma maneira, podem transformar o lugar onde as
pessoas vivem. Portanto, sob a ótica da autora, os profissionais que trabalham com a
memória das pessoas que residem nas cidades, por exemplo, tornam-se mais sensíveis
e perspicazes em relação às mudanças urbanas.
No caso da conservação e preservação dos monumentos ou do patrimônio edifi-
cado, apenas para tomar como paradigma, as memórias dos antigos moradores são
essenciais para a reconstituição e/ou restauração de praças, passeios públicos, cons-
truções. Por essa via, podemos destacar dois aspectos que se tornam evidentes neste
livro: primeiro, a seletividade das memórias, somada à intervenção do poder, interfere
diretamente na eleição dos bens considerados dignos de preservação; segundo, a res-
ponsabilidade que todos devem assumir em relação à preservação do meio ambiente
e dos bens materiais e imateriais.
Ao propor o debate sobre as interfaces entre a educação, a história e os proble-
mas da salvaguarda do patrimônio histórico e ambiental por meio de conceituações
e exemplos contemporâneos, este volume contribui para aguçar a reflexão crítica dos
estudantes acerca das políticas preservacionistas e da sustentabilidade.

Sandra C. A. Pelegrini
Autora

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I ntrodução

O patrimônio cultural se constitui de bens móveis ou imóveis, do meio natural e


de representações assentadas em conceitos históricos, etnográficos, paisagísticos, ar-
queológicos e artísticos que corroboraram para a formação das identidades de grupos
sociais e comunidades. Aliás, o conceito de Patrimônio Cultural é mais abrangente e
complexo do que o de Patrimônio Histórico na medida em que pressupõe o estudo
das maneiras como as comunidades se relacionam com os ambientes, como extraem
os insumos e demais produtos com os quais produzem artefatos, reconhecidos como
bens culturais materiais, destinados a garantir a transmissão de saberes e sustentabili-
dade das comunidades. De igual modo, abarca bens imateriais manifestos em rituais
sagrados, celebrações e festas que se tornam peculiaridades típicas de um lugar ou
região.
As definições de monumento e memória implicam a compreensão de que o primei-
ro vocábulo advém etimologicamente da concepção de ‘herança paterna’ – um termo
que nas línguas românicas deriva do latim patrimonium e faz alusão à ‘propriedade
herdada do pai ou dos antepassados’ ou ‘aos monumentos herdados das gerações
anteriores’. Já a acepção da memória, na língua latina moneo, além de se referir às lem-
branças de homens e mulheres, segundo Funari e Carvalho (2005, p. 34), significa ‘le-
var a pensar’, o que, em última instância, remete às recordações seletivas do passado.
Assinalamos, portanto, que as construções discursivas sobre a história e o patrimô-
nio e suas interfaces com as memórias e as identidades dos povos são cruciais para
a compreensão das políticas nacionais e internacionais de proteção, conservação e
salvaguarda dos bens naturais e patrimoniais, bem como para o entendimento das
justificativas legais para a escolha dos bens protegidos pelos Estados e para negar essa
prerrogativa a aqueles que foram alijados desse processo.
A memória, do ponto de vista de Jaques Le Goff, estabelece um ‘vínculo’ entre as
gerações humanas e o ‘tempo histórico que as acompanha’. Tal liame, além de con-
solidar um ‘elo afetivo’ que possibilita aos cidadãos se perceberem como ‘sujeitos da

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PATRIMÔNIO CULTURAL: história’ (1997, p. 138-139), plenos de direitos e deveres, também pode torná-los côns-
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE cios dos embates sociais que envolvem a proteção dos espaços de produção da cultura
e da história. Em outras palavras, como bem o lembra Déa Fenelón (2004), as ações em
favor da salvaguarda da(s) memória(s) podem suscitar confronto de interesses e até
desencadear lutas sociais. Por seu turno, Le Goff (1997, p. 138) salienta que a ‘identi-
dade cultural’ se faz ‘com a memória individual e coletiva’ à medida que as sociedades
elegem como bens patrimoniais, dignos de proteção e preservação, aqueles que lhes
remetem aos valores por eles considerados edificantes.
Diante das proposições supracitadas, almejamos, então, que a abordagem proposta
neste volume seja profícua tanto no sentido de despertar o interesse pela proteção
do patrimônio, quanto no de desmistificar visões cristalizadas ao longo dos tempos
que precisam ser repensadas. Esse intento nos induziu a estruturar este livro a partir
de seis capítulos: o primeiro se ocupa do esclarecimento sobre conceitos muito caros
para se estudar ou pesquisar o meio natural e o patrimônio histórico-cultural; o se-
gundo trata das mediações entre os estudos da História e os problemas da preservação
do patrimônio ambiental; o terceiro se debruça sobre as ações preservacionistas e as
soluções apontadas por organismos internacionais como a Unesco e pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional brasileiro (IPHAN) para a proteção e salva-
guarda.
A sustentabilidade estudada no quarto capítulo, viabiliza a percepção da Educação
Patrimonial como parte integrante dos projetos pedagógicos nos Ensinos Fundamen-
tal e Médio, e em particular, da grade curricular dos cursos universitários de História.
Os capítulos quinto e sexto, respectivamente, apresentam formas distintas de se inter-
pretar as fontes históricas mediante a análise do filme ‘Narradores de Javé’ e da ‘Festa
do Divino’, realizada em são Luiz do Paraitinga, interior de São Paulo, recentemente
reconhecida como patrimônio paulista.
Isto posto, esperamos que as nossas ponderações e debates se tornem elementos
multiplicadores da consciência da preservação entre acadêmicos e tutores do Ensino a
Distância da Universidade Aberta do Brasil, de seus familiares e demais membros das
suas comunidades.

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1 Conceitos e
significações dos
bens patrimoniais

O Patrimônio Cultural é definido mediante uma gama expressiva de conceitos,


entre os quais destacamos elementos do meio natural e as paisagens produzidas pela
ação humana; os conhecimentos científicos e os saberes populares tradicionais desen-
volvidos pelo homem ao longo da história. Nessa direção, os bens culturais podem
ser compreendidos como edificações, objetos ou artefatos produzidos artesanal ou
industrialmente, ou como obras que, de alguma maneira, representam balizas de de-
terminadas épocas ou marcos das transformações da vida em sociedade.
As preocupações das civilizações com a preservação de suas tradições, represen-
tadas por meio de suportes tangíveis e intangíveis, acompanham o próprio desen-
volvimento histórico da humanidade; no entanto, as atividades direcionadas para a
proteção e conservação do patrimônio ainda podem ser consideradas recentes sob a
ótica da longa duração.

OBSERVAÇÕES PRELIMINARES
No século XVIII, segundo Françoise Choay (2001), a partir da imposição de leis em
favor da proteção de determinados monumentos pelo Estado e pela Igreja, surgiram
inquietações quanto à definição dos bens patrimoniais de importância histórica ou
artística, bem como preocupações com os meios de protegê-los da depredação, dos
saques ou das pilhagens. Podemos afirmar que tais medidas tiveram, por um lado,
implicações diretas com os desdobramentos da Revolução Francesa, episódios defla-
grados entre maio de 1789 e novembro de 1799, que corroboraram para a destruição
de esculturas, edifícios arquitetônicos e outros artefatos artísticos considerados tribu-
tários do Antigo Regime ou de símbolos monumentais representativos da Igreja Cató-
lica Romana. Por outro lado, os achados arqueológicos de 1711 e 1748, decorrentes
das escavações que trouxeram à tona vestígios da existência de civilizações antigas,
como foi o caso de Herculano e Pompéia (respectivamente), cidades de veraneio dos
romanos que se mantiveram submersas em lama vulcânica por mais de dois mil anos.
A revalorização das artes da Antiguidade, sem dúvida, despertou o intento de se
perpetuar ‘testemunhos históricos’ para as futuras gerações e reforçou a ideia de que a

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PATRIMÔNIO CULTURAL: restauração fosse tomada como parte do conhecimento científico. Ainda assim, foram
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE tímidas ou quiçá nefastas, as ações em prol da preservação do patrimônio da huma-
nidade entre as últimas seis décadas do século XIX e as três primeiras do século XX.
Inicialmente, como as ações preservacionistas se restringiam ao patrimônio monu-
mental e edificado, considerado de excepcional valor artístico, outros bens extraor-
dinários, como igrejas de menor porte, modestas residências e palacetes medievais
foram preteridos em nome da conservação de castelos e catedrais. A ‘Carta de Atenas’
(1933), resultante do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna realizado na
Grécia, preceituava tanto a salvaguarda de conjuntos arquitetônicos incrustados nos
núcleos urbanos quanto a ‘inevitável’ demolição de edificações que inibissem a nota-
bilidade dos bens selecionados a partir do critério da excepcionalidade.
As ações preservacionistas referentes à Catedral de Notre-Dame constituem exem-
plos desses postulados (Figura 1).

Figura 1: Catedral de Notre-Dame - Paris/França ( Vista lateral).


Fonte: Fotógrafo desconhecido.

A beleza e o valor estético desse templo são exemplos excepcionais do estilo Góti-
co, cujo valor histórico e de uso é inestimável e justifica a sua inclusão na Lista do Pa-
trimônio Mundial da Humanidade. Construída no século XIII, a monumentalidade de
sua arquitetura, expressa em agudas altíssimas, chama a atenção de inúmeros turistas
que a visitam diariamente, em especial daqueles que são devotos da padroeira Nossa
Senhora de Reims.

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Devemos reconhecer que a atmosfera mítica emanada da luz que incide no interior Conceitos e
significações dos
do templo por meio dos vitrais multicoloridos e a imensa verticalidade de suas colunas bens patrimoniais

produzem uma áurea fantástica capaz de encantar a todos, crédulos ou não. Observa-
mos, na próxima imagem (Figura 2), as dimensões da altura da edificação comparadas
à estatura humana:

Figura 2: Fachada da Catedral de Notre-Dame - Paris/França.


Fonte: Fotógrafo desconhecido.

Localizada na região de Champagne, então província francesa, hoje situada em uma


das entradas de Paris, a antiga Abadia de Reims, como era denominada na Idade Média,
foi cenário de feiras que se tornaram célebres na Europa Ocidental.
Salutar lembrarmos que, do ponto de vista dos especialistas, esse templo, além de
sua relevância histórica, também atende ao critério de autenticidade. Outro aspecto
que justifica a sua inserção na Lista do Patrimônio Mundial da Humanidade se deve
ao fato de que a igreja continua mantendo a sua vocação original, ou seja, a realização
de missas que acompanham o ano litúrgico católico como qualquer outra igreja no
mundo.
Cabe-nos lembrar que segundo as diretrizes da ‘Carta de Atenas’ (1933), os as-
pectos referidos justificavam a demolição das construções que pudessem ofuscar a
notabilidade da referida catedral. Esse juízo de valor justificou o literal tombamento
de bens materiais medievais europeus notáveis, mas avaliados como irrelevantes se

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PATRIMÔNIO CULTURAL: comparados com as características excepcionais da Catedral de Notre-Dame, e ainda
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE explica o seu atual isolamento espacial e estilístico no cerne da cidade de Paris, como
podemos notar na Figura 3.

Figura 3: Catedral de Notre-Dame - Paris/França ( Vista aérea).


Fonte: Fotógrafo desconhecido.

Esse registro fotográfico evidencia que o entorno dessa catedral foi demolido para
lhe garantir maior visibilidade e que nessa condição o edifício ergueu-se altivo e soli-
tário na paisagem parisiense – uma ação muito mais recorrente do que imaginamos
e que pode ser observada em várias partes do território europeu, latino-americano e
caribenho até meados do século XX.
A despeito das ‘boas’ ou ‘enfadonhas’ motivações desse procedimento preserva-
cionista, na época da sua execução foi reconhecido como algo pertinente. Na atua-
lidade, os pressupostos que embasaram essa ‘prática’ são rechaçados; mesmo assim,
devemos retomar as palavras de Jacques Le Goff (1997) quando chama a atenção para
a problemática do patrimônio, e ao fazê-lo, salienta que a partir do momento em que
a sociedade se dispõe a proteger os seus bens patrimoniais, ela deflagra o processo
de ‘construção do seu ethos cultural e de sua cidadania’ (LE GOFF, 1997, p. 138-139).
Para este historiador, o ethos cultural abarca tudo aquilo que diferencia a existência
um grupo social de outros no interior de uma sociedade e constitui uma das inter-
conexões entre a ‘identidade’ e a ‘memória individual e coletiva’ de um país, estado
ou cidade (PELEGRINI, 2006, p. 116-117). Já do ponto de vista de Alfredo Bosi, ‘todo

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conhecimento que uma sociedade tem de si mesma, sobre outras sociedades, sobre Conceitos e
significações dos
o meio material em que vive e sobre sua própria existência’ contempla uma definição bens patrimoniais

antropológica dos bens culturais (1993).


A despeito das variadas acepções do patrimônio, a noção de bens culturais abarca
as maneiras de existir, pensar e de se expressar do ser humano e também as manifes-
tações dos seus saberes, práticas artísticas e cerimoniais, sistemas de valores, crenças,
tradições e modos de se relacionar com o meio onde vive. Essa definição, entretanto,
adquiriu maior visibilidade e aceitação no início da década de 1980, nas convenções
internacionais promovidas pela Organização das Nações Unidas para a Educação,
Ciência e Cultura (Unesco). A noção de patrimônio passou a ter maior magnitude em
1985, na ‘Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais’, organizada pelo Conse-
lho de Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), na Cidade do México, pois
a caracterização ampliada da cultura, apresentada no documento denominado ‘De-
claração do México’, definiu o patrimônio como a produção de ‘artistas, arquitetos,
músicos, escritores e sábios’, ‘criações anônimas derivadas da alma popular’ e ‘valores
que dão sentido à vida’.
Nessa linha argumentativa, a referida declaração frisou a importância da preserva-
ção de ‘obras materiais e não materiais que expressassem a criatividade de um povo: a
língua, os ritos, as crenças, os lugares e monumentos históricos, a cultura, jas obras de
arte, os arquivos e bibliotecas’. Mais importante do que tudo isto é: essa Carta preco-
nizou que a ‘preservação’ e o ‘apreço’ pelo patrimônio cultural permitiriam aos povos
a ‘defesa da sua soberania e independência’.
Admitimos que, embora a definição de patrimônio cultural busque contemplar as
mais diversas formas de expressão dos bens da humanidade, tradicionalmente, esse
conceito ainda continua apresentado de maneira fragmentada, associado às especifici-
dades das diversas áreas do conhecimento científico que o classifica com distintas tipo-
logias, como, por exemplo, o patrimônio cultural, natural, paisagístico, arqueológico,
artístico, e assim por diante.
Nos últimos anos do século XX e início do século XXI, há a percepção de que todo
o patrimônio se configura e se engendra mediante suas relações com a cultura e com o
meio. Essa assertiva nos leva a apreender que as diferenças hierárquicas entre os bens
patrimoniais e a cultura são construídas historicamente, de forma dinâmica, alterando-
-se ou ampliando seu cabedal de geração em geração a partir do contato com diversos
saberes (eruditos, tradicionais ou populares) que carregam consigo traços distintivos.
A retomada da acepção antropológica da cultura e do meio pelos estudiosos do
patrimônio fortaleceu as proposições de que os conhecimentos adquiridos por uma
sociedade sobre si e sobre as demais ampliaram os significados e sentidos dos bens

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PATRIMÔNIO CULTURAL: patrimoniais. Na modernidade, tal definição mantém-se vinculada às acepções de me-
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE mória e de história. Nessa direção, ao longo deste livro abordamos questões-chaves,
tais como a relação entre patrimônio e identidade; a população residente e o sentido
de pertencimento.
Antes, porém, cumpre-nos relembrar que o patrimônio cultural reúne elementos
representativos da memória social, cindidos em grandes grupos. O primeiro deles re-
fere-se aos elementos da natureza ou do meio natural; o segundo engloba a produção
intelectual humana, o conhecimento e o saber armazenado ao longo da história; e o
terceiro agrega os bens culturais resultantes das relações estabelecidas entre o homem
e o meio no processo de sobrevivência.
Por conseguinte, os sítios patrimoniais, na atualidade, são divididos em três ca-
tegorias, conforme os dados do Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional
(IPHAN, 2014) e da Unesco:

Os sítios naturais são constituídos por formações físicas, biológicas ou geoló-


gicas consideradas excepcionais, habitats animais e vegetais ameaçados e áreas
que tenham valor científico, de conservação ou estético;

Os sítios culturais englobam bens materiais e imateriais que se referem à iden-


tidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
humana, manifestos por meio de formas de expressão; os modos de criar, fazer,
viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, docu-
mentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-cul-
turais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico ou paisagístico, artístico,
arqueológico, ecológico e científico;

Os sítios mistos que reúnem os elementos dos sítios naturais e culturais.

Entre os bens que se encontram sob a tutela do IPHAN, até 2012 constam mais
de quarenta e cinco mil (45.000) bens imóveis tombados, pertencentes a noventa e
sete (97) núcleos históricos protegidos; novecentos e dez (910) edificações isoladas,
equipamentos urbanos e de infraestrutura, um (1) conjunto rural, dezessete (17) pai-
sagens naturais, dezesseis (16) ruínas, dez (10) jardins e parques históricos, seis (6)
terreiros, sete (7) sítios arqueológicos e um (1) sítio paleontológico. Há ainda qua-
trocentos e dezessete mil (417.000) artefatos tombados individualmente e sete (7)
coleções e acervos arqueológicos1.
A partir da década de 1980, alguns núcleos históricos, conjuntos arquitetônicos,
parques e reservas naturais brasileiras foram incluídos na ‘Lista do Patrimônio Mundial

1 Recentemente, no site do IPHAN foi publicada uma lista atualizada dos bens móveis e imóveis inscri-
tos nos Livros do Tombo do Instituto. Esse documento é denominado ‘Lista de Bens Culturais Inscritos
nos Livros de Tombo (1938-2012)’. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br>. Acesso em: 15 jul.
2014.

20
da Humanidade’ elaborada pela Unesco, tais como: Conceitos e
significações dos
• O Conjunto Arquitetônico e Urbanístico de Ouro Preto (Minas Gerais); bens patrimoniais

• O Conjunto Arquitetônico, Paisagístico e Urbanístico de Olinda (Pernambuco);


• As Ruínas da Igreja de São Miguel da Missões (Rio Grande do Sul);
• O Conjunto Arquitetônico e Urbanístico de Salvador (Bahia);
• O Santuário do Bom Jesus de Matosinhos - Congonhas (Minas Gerais);
• O Parque Nacional do Iguaçu e a Foz do Iguaçu (Paraná);
• O Conjunto Urbanístico, Arquitetônico e Paisagístico de Brasília (Distrito Federal);
• O Parque Nacional Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato (Piauí);
• O Conjunto Arquitetônico e Urbanístico do Centro Histórico de São Luis (Ma-
ranhão);
• Conjunto Arquitetônico e Urbanístico do Centro Histórico de Diamantina (Mi-
nas Gerais);
• Conjunto Paisagístico do Pantanal Matogrossense (Mato Grosso e Mato Grosso
do Sul);
• Conjunto Paisagístico do Parque Nacional do Jaú;
• A Costa do Descobrimento – Bahia;
• A Mata Atlântica do Sudeste;
• As Reservas do Cerrado – Parque Nacional das Emas e Parque Nacional da Cha-
pada dos Veadeiros;
• O Centro Histórico de Goiás;
• As Ilhas Atlânticas ou as Reservas de Fernando de Noronha e Atol das Rocas2.

A vantagem da inscrição desses bens na Lista do Patrimônio Mundial da Humanida-


de pode ser sintetizada no prestígio internacional que lhes foi imputado e na garantia
do zelo pela sua manutenção e conservação. Além de receberem maior número de
turistas, alguns desses centros históricos passam a obter maior atenção por parte da
Unesco e, quando necessário, contaram com o apoio técnico especializado e o suporte
financeiro em situações emergenciais ou de sinistros.
Para que possamos demonstrar a importância da fiscalização por parte da Unesco,
tomamos como exemplo dois casos: o do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico de
Ouro Preto (Minas Gerais) e o do Conjunto Arquitetônico, Paisagístico e Urbanístico
de Olinda (Pernambuco), pois as autoridades políticas brasileiras receberam uma noti-
ficação do Comitê responsável pela vigilância dos bens inseridos nessa lista, exigindo

2 Dados atualizados sobre os bens patrimoniais brasileiros podem ser encontrados no site oficial do
IPHAN, disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal>. Acesso em: set. 2014.

21
PATRIMÔNIO CULTURAL: providências urgentes; entre elas, indicaram a adoção de planos de ação integrada
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE imediata e de políticas públicas de proteção mais eficazes frente ao avançado estado
de degradação do casario, das igrejas e demais lugares que faziam parte dos núcleos
históricos dessas duas cidades (Figuras 4 e 5).

Figura 4: Ouro Preto – Minas Gerais –Imagem registra a degradação do antigo palacete.
Fonte: foto IPHAN.

Figura 5: Vista do casario de Ouro Preto parcialmente restaurado.


Fonte: Fotógrafo desconhecido.

22
Diante da ameaça de os bens serem retirados da Lista do Patrimônio Mundial da Conceitos e
significações dos
Humanidade, os políticos, comerciantes, empresários do setor turístico e outros seg- bens patrimoniais

mentos da sociedade e das comunidades locais se mobilizaram para reunir recursos


financeiros e mão de obra disposta a auxiliar nos trabalhos de higienização e restauro
nos núcleos históricos de Olinda e Ouro Preto.

A proteção do patrimônio no Brasil: medidas precursoras


Na década de 1930, os intelectuais e o governo do Presidente Getúlio Vargas de-
monstraram interesse na proteção do patrimônio brasileiro, como recomendavam as
Cartas Patrimoniais resultantes de dois congressos internacionais realizados na Grécia
(1931 e 1933). Não ao acaso, foi decretada a primeira lei que regulamentou as ações
em prol da efetiva preservação e tombamento do patrimônio brasileiro em 1937.
Aliás, essas preocupações estavam coadunadas aos ideais getulistas no que tangia
à definição de uma identidade para a nação, porém elas se limitaram inicialmente ao
reconhecimento de bens monumentais relacionados ao estilo barroco. Para tanto, fo-
ram criadas demandas que culminaram no aperfeiçoamento dos artigos que tratavam
do assunto na Constituição Brasileira e na criação do Serviço do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (SPHAN), setor encampado pelo Ministério da Saúde e Educação,
então sob o comando de Gustavo Capanema. Após vários processos de estruturação
política e administrativa pelos governos que se sucederam no país, tal órgão acabou
denominado Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN).
A Lei do Tombamento (25/1937) foi precursora das políticas públicas de preserva-
ção em nosso país e junto com ela foram criados os quatro livros de tombo:
1. Livro Arqueológico, Paisagístico e Etnográfico;
2. Livro Histórico;
3. Livro de Belas Artes;
4. Livro das Artes Aplicadas.

Não podemos ignorar que o Decreto-Lei n. 25/1937 viabilizou o tombamento de


bens monumentais representativos do ponto de vista da cultura erudita e dos inte-
resses dos segmentos dominantes da sociedade brasileira naquela época. A existência
da Lei do Tombamento previa a implantação de leis e decretos específicos editados
em municípios, estados e federação, determinação que se mantém válida nos dias
atuais. Para tanto, foram realizados minuciosos inventários que reuniram vários tipos
de documentos comprobatórios da excepcionalidade dos bens e de sua autenticidade
como, por exemplo, o registro do imóvel ou de terras, as averbações, os memoriais
descritivos, os mapas, as fotografias, entre outros.

23
PATRIMÔNIO CULTURAL: Os bens culturais imateriais também são registrados em outros quatro livros, são
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE eles:
1. Livro de Saberes;
2. Livro das Formas de Expressão;
3. Livros das Celebrações;
4. Livro dos Lugares.

A visualidade dos bens culturais imateriais ainda é bem mais recente no Brasil e no
mundo do que os de natureza material ou natural, porque apenas nas décadas finais
do século XX e nos anos iniciais do século XXI houve maior consenso em relação à
definição das tipologias patrimoniais imateriais. Em razão disso, aumentou significati-
vamente o número de novos inventários que, por sua vez, desencadeou o aprofunda-
mento teórico nesse campo do conhecimento, e como tal, gerou a necessidade de es-
tudos sobre as novas ordens jurídicas necessárias para a proteção dos bens intangíveis
e das culturas tradicionais populares.
O Arquivo Noronha Santos e o Arquivo Central do IPHAN são responsáveis pela
‘abertura, guarda e acesso aos processos de tombamento, de entorno e de saída de
obras de artes do país’. Eles também emitem certidões e declarações comprobatórias do
reconhecimento de tais bens e os insere nos respectivos Livros do Tombo supracitados.
Nos últimos dez anos, entre o mês de dezembro de 2002 e o de novembro de 2012,
vinte cinco bens brasileiros foram registrados como Patrimônio Imaterial em seus devi-
dos livros de registros, entre os quais constam:
• Ofício das Paneleiras de Goiabeiras;
• Arte Kusiwa – Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajãpi;
• Samba de Roda no Recôncavo Baiano;
• Modo de fazer de Viola-de-cocho;
• Ofício das Baianas de Acarajé;
• Círio de Nossa Senhora de Nazaré;
• Jongo no Sudeste;
• Cachoeira de Iauretê – Lugar Sagrado dos povos indígenas dos Rios Uaupés e
Papuri;
• Feira de Caruaru;
• Frevo;
• Tambor de Crioula do Maranhão;
• Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: Partido Alto, Samba de Terreiro e Sam-
ba-Enredo;
• Modo artesanal de fazer Queijo de Minas, nas regiões do Serro e das serras da
Canastra e do Salitre;
24
• Roda de Capoeira; Conceitos e
significações dos
• Ofício dos mestres de capoeira; bens patrimoniais

• Modo de fazer Renda Irlandesa (Sergipe);


• O toque dos Sinos em Minas Gerais;
• Ofício de Sineiro;
• Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis (Goiás);
• Ritual Yaokwa do Povo Indígena Enawene Nawe;
• Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro;
• Festa de Sant’ Ana de Caicó;
• Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do Maranhão, Saberes e Práticas asso-
ciados aos Modos de Fazer Bonecas Karajá;
• Rtixòkò: expressão artística e cosmológica do Povo Karajá;
• Fandango Caiçara;
• Festa do Divino Espírito Santo de Paraty;
• Festa do Senhor Bom Jesus do Bonfim;
• São Sebastião na Região do Marajó;
• Produção tradicional e práticas socioculturais associadas à cajuína no Piauí 3.

Outros inúmeros inventários se encontram em fase de investigação e catalogação,


e caso atendam aos critérios recomendados pelo IPHAN, em breve parte da documen-
tação que lhes garantiu a certificação estará disponível para consulta no portal do
instituto na internet4.
O reconhecimento de novas tipologias patrimoniais evidencia marcantes mudanças
na percepção e na postura das autoridades políticas e dos especialistas no que tange
à definição das ações em prol da proteção dos bens naturais e culturais de distintas
etnias existentes em nosso planeta. Elas nos possibilitam entender melhor os aspectos
que envolvem, simultaneamente, as características tangíveis e intangíveis desses bens
e de suas respectivas comunidades.
Todavia, a dinâmica entre as teorias e as práticas envolve procedimentos metodoló-
gicos que necessitam ser aprimorados, sobretudo a partir da consulta às comunidades.
Elas precisam ser ouvidas e respeitadas para que a proteção de saberes e práticas não
se limitem à oficialização do registro ou à difusão dos ‘produtos culturais’.

3 Dados atualizados sobre os bens patrimoniais brasileiros podem ser encontrados no site oficial do
IPHAN, disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal>. Acesso em: set. 2014.
4 Idem.

25
PATRIMÔNIO CULTURAL: Todos os cidadãos devem estar atentos e cônscios de que os interesses privados e
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE as políticas econômicas das grandes potências mundiais ainda se impõem e, não raro,
subsidiam a apropriação de saberes tradicionais sobre as propriedades medicinais e
curativas de determinadas erva e beberagens e as transformam em produtos valiosos
para a indústria de cosméticos e de medicamentos.
Do mesmo modo, populações residentes em áreas onde o solo é valorizado sofrem
com o desencadeamento de processos de desterritorialização justificados por em-
preendimentos imobiliários e investimentos em novas tecnologias que se restringem à
análise superficial dos impactos culturais e ambientais, e, ainda, negam a presença de
uma violência velada que desrespeita as crenças e as relações entre as comunidades
com os lugares onde habitam.
Nesse sentido, assinalamos que a adoção de políticas públicas de proteção aos
bens patrimoniais naturais e culturais deve assentar-se nos princípios democráticos da
tolerância, do direito à diferença, às memórias, às histórias e às identidades, no seu
sentido mais amplo e plural.

Recursos didáticos

A TV Cultura, a TV Escola e a TV Futura exibem, com frequência, documentários


relativos ao patrimônio mundial e, em particular, relativo ao brasileiro. Referências
sobre eles e sobre o patrimônio paranaense também podem ser acessadas por meio
dos sites dessas emissoras e também no Portal da Secretaria de Educação do Paraná e
no Dia-a-dia Educação.

Fontes e referenciais para o aprofundamento temático

A preservação das memórias, das identidades e do patrimônio cultural de distintos


grupos constitui-se em um exercício de cidadania importante para fundamentar as
bases das transformações sociais necessárias para a coletividade. Considerando essa
premissa, efetue um levantamento dos bens patrimoniais existentes no município
ou região onde reside e identifique lugares representativos para as comunidades ou
grupos lá existentes. Para tanto, efetue um breve ‘inventário’ embasado na coleta de
depoimentos, de matérias jornalísticas, fotografias antigas, entre outros documentos.

26
2 Mediações entre os
estudos da história e os
problemas da preservação do
patrimônio ambiental

O mundo tem sofrido profundas transformações nos últimos anos. Os avanços


da ciência e da técnica têm modificado o lugar do homem no mundo e a natu-
reza de suas relações sociais. A educação e a cultura, cujo significado e alcance
têm se ampliado consideravelmente, são essenciais para um verdadeiro desen-
volvimento do indivíduo e da sociedade (CONFERÊNCIA MUNDIAL SOBRE AS
POLÍTICAS CULTURAIS, 1985).

Os bens culturais e naturais conjugam sentidos de pertencimento dos segmentos


sociais e das mais diversas comunidades, reafirmando-lhes o direito às identidades
plurais e ao exercício da cidadania. Esse reconhecimento é asseverado em vários do-
cumentos redigidos por instituições que atuam em prol da proteção do patrimônio
da humanidade. Como demonstramos no capítulo anterior, a Organização das Nações
Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) tem fomentado debates acerca da
diversidade cultural e veiculado sugestões que vêm sugerindo a adoção de medidas
relativas ao desenvolvimento sustentável e multiplicando a certificação de ampla gama
de bens patrimoniais.
No tocante ao patrimônio cultural, destacamos que as plataformas originárias do
chamado urbanismo ecológico e organicista abalizaram as teorias modernas de restau-
ro do patrimônio emergentes na aurora do século XX. As proposições idealistas e os
projetos inovadores de William Morris (1834-1896), John Ruskin (1819-1900) e Ca-
milo Sitte (1843-1903) influenciaram discursos críticos e concepções estético-sociais
relacionadas ao patrimônio urbano. A obra desses pensadores motivou a organização
de eventos internacionais, cuja finalidade centrou-se na busca de soluções para os de-
safios da preservação do patrimônio cultural em uma época de significativa expansão
urbana e industrial.
O alcance e o poder da destruição causada pelos confrontos bélicos decorrentes
da II Guerra Mundial (1939-1945) trouxeram à tona a necessidade de criação de ex-
pedientes internacionais direcionados para a salvaguarda do patrimônio cultural e
ambiental em momentos de conflito, e ainda de afiançar um compromisso no sentido

27
PATRIMÔNIO CULTURAL: de garantir o restauro de monumentos e a reconstrução de inúmeras cidades no pós-
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE -guerra (FUNARI; PELEGRINI, 2006).
Talvez, por essa razão, os embates entre as ‘antigas’ e as ‘novas’ concepções de
natureza, espaço, cultura e tempo emergentes no cerne do mundo urbano e industrial
constituam os principais eixos norteadores das reflexões devotadas ao patrimônio na
atualidade. Entretanto, devemos reconhecer que as intrincadas relações entre o ho-
mem e a natureza, acirradas pelo crescimento industrial e pelo aumento da densidade
populacional nas grandes metrópoles, observados no decorrer do século XIX e XX,
intensificaram a agressão ao meio, criaram a necessidade de reformas urbanas e o
consequente aumento das demolições nas áreas históricas.
Aliás, a problemática da natureza instigou a produção de especialistas não vincula-
dos apenas à ‘história ambiental’, mas também de estudiosos como Fernand Braudel,
Raymond Williams, Keith Thomas, Simon Schama e Le Roy Ladurie. Do mesmo modo,
a cultura tornou-se alvo de reflexões de renomados pesquisadores como Robert Darn-
ton, Eduard P. Thompson, Roger Chartier, Carlo Ginzburg e Lynn Hunt, entre outros.
Nesse sentido, cabe-nos, neste capítulo, estimular ponderações sobre os problemas
que envolvem o patrimônio cultural e a apropriação do meio natural ou do ambiente
urbano. Essa proposta de estudo aponta para a existência de múltiplas facetas da pro-
blemática a ser enfrentada e evidencia a relevância de uma reavaliação das concepções
mais simplistas sobre esse assunto que, por sua vez, tendem a dissociar as referências
culturais das acepções de tempo e espaço.
Podemos começar a pensar sobre isso a partir da matéria publicada por Manuela
Alegria (2014) no ‘Estadao.com’ e na ‘Revista Meio Ambiente’, em que é assinalado o
descaso em relação à crítica situação da Baía da Guanabara (Rio de Janeiro), local que
outrora abrigava ‘golfinhos e tartarugas marinhas’, era banhado por vários rios e cerca-
do por mangues e na atualidade se encontra totalmente degradado.
Diante da Figura 6, o que podemos pensar?

28
Mediações entre os
estudos da história
e os problemas da
preservação do
patrimônio ambiental

Figura 6: Registro fotográfico da Baía da Guanabara, em 22/03/2012.


Fonte: Autoria desconhecida.

De pronto, observamos a poluição e a grande quantidade de lixo acumulado nessas


águas; diante delas, podemos inferir que o ‘Programa de Despoluição da Baía de Gua-
nabara’, debatido desde o evento ‘Rio-92’1, parece não ter alcançado bons resultados.
Ele foi iniciado em 1995, depois foi ‘prorrogado’ sete vezes, e ‘após consumir mais de
US$ 1 bilhão, continua inacabado’ (ALEGRIA, 2012).
Essa imagem fotográfica, somada à análise das narrativas discursivas sobre as possí-
veis fronteiras entre o mundo civilizado e a barbárie, entre o espaço urbano e o rural,
contribui para a interpretação das transformações do meio:
• Após o advento da segunda Revolução Industrial, se intensificou a procura de
matérias-primas necessárias ao desenvolvimento capitalista;
• Acirrou-se o deslocamento de verdadeiros contingentes populacionais de um
continente para outro, e
• O meio natural passou a ser alvo de ambições desmedidas.

As modificações da paisagem natural e o desmatamento, além de outras agressões


ao ambiente, por muito tempo foram considerados inerentes à modernização e ao

1 A ‘Rio-92’ e a ‘Rio+20’, conferências que reuniam chefes de Estado com o intuito de promover
reflexões e compromissos relacionados ao uso de ‘energias limpas’ como alternativas para reduzir a
poluição ambiental.

29
PATRIMÔNIO CULTURAL: crescimento industrial. Contudo, nos finais do século XX e início do século XXI, even-
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE tos realizados em várias metrópoles propuseram discussões referentes à necessidade
de se rever os rumos do sistema capitalista de produção.
Podemos afirmar que foram relativamente poucas as políticas que visaram ao cresci-
mento econômico sem negligenciar a preservação do meio e o desenvolvimento social na
atualidade e no futuro. Do ponto de vista dos especialistas, as próximas gerações só terão
acesso a um ambiente protegido e conservado se houver ampla mobilização com vistas à
promoção do crescimento econômico e da justiça social, de modo a garantir o acesso aos
serviços públicos e o uso racional dos recursos da natureza, em especial da água.
A questão da preservação do patrimônio natural não se constitui em uma novidade;
ela vem suscitando polêmicas há longa data. Para as correntes naturalistas do século
XIX, por exemplo, a maneira mais adequada de garantir a proteção das áreas naturais
residia em afastá-las do homem. Esse entendimento, por seu turno, configurava uma
reação à corrente culturalista segundo a qual a natureza representava uma ameaça de
volta à condição ‘selvagem’ do homem (FONSECA, 1996, p. 159).
As discussões acerca da preservação, sobretudo das matas e florestas, remontam
ao século XIX, mas a chamada ‘consciência preservacionista’ na esfera ambiental se
consolidou apenas nas décadas finais do século XX. Mobilizações em torno do direito
e da proteção ao meio natural eclodiram em meados de 1980 e passaram a reivindicar
que o Estado e o empresariado assumissem suas responsabilidades. Elas se irradiaram
principalmente por intermédio da comunidade científica e de organizações preserva-
cionistas que passaram a reivindicar melhor qualidade de vida no planeta.
Como podemos notar, a salvaguarda e a proteção das ‘experiências’ e das ‘ações
humanas’ estão intrinsecamente associadas aos modos como o homem se relaciona
cultural e socialmente com o meio que o cerca. Aliás, ao longo dos anos, tal temática
se tornou recorrente, especificamente a partir da década de 1970, quando detectamos
um maior interesse dos estudiosos em relação às possíveis associações entre a preser-
vação da natureza e os legados culturais da humanidade.
Destarte, desde a antiguidade clássica as organizações societárias se dedicaram a
estabelecer uma série de diferenciações que, em última instância, buscam celebrar as
singularidades do prodígio humano frente aos desígnios da natureza. Apesar de per-
meadas por interpretações que, de certa forma, tendem a tratar a cultura e a natureza
como categorias antagônicas, as concepções de natureza desde sempre adquiriram um
sentido particular no engendramento da sociedade humana. A acepção de natureza,
ora rivalizando com a arte, ora competindo com a técnica, tendeu a cristalizar-se na
historiografia como pressuposto da negação das conexões do homem com o estado
natural.

30
Se no Renascimento as filosofias humanistas tenderam a proclamar a ‘superiorida- Mediações entre os
estudos da história
de’ do homem em relação ao ‘reino da natureza’, na Modernidade essa interpretação e os problemas da
preservação do
adquiriu maior complexidade à medida que a condição biológica humana foi admitida patrimônio ambiental

e que a própria natureza passou a ser concebida como um fenômeno em permanente


transformação.
Ademais, a ameaça iminente e o possível aniquilamento da biodiversidade, soma-
dos às reações frente às descobertas da engenharia genética e às visíveis alterações
ambientais observadas no século XX, suscitaram a progressiva politização dessa temá-
tica no espaço público e criaram novas demandas na esfera dos compromissos inter-
nacionais relativos às medidas adequadas à proteção do patrimônio natural e cultural
da humanidade.
A complexidade adquirida pela temática do patrimônio natural também fez aflorar
uma percepção distintiva da noção de paisagem porque se chegou à conclusão de
que ela resulta das relações que homens, mulheres, crianças ou adultos estabelecem
com o meio, e ainda sugere que os ‘modos’ ou ‘gêneros’ do viver humano produzem
‘paisagens culturais’.
As singularidades relacionais entre as culturas e o ambiente natural definem, confor-
me os fundamentos da geografia cultural, os traços da própria paisagem, distinguem-na
de outros espaços e determinam o seu geni’us loci, ou seja, a ‘alma do lugar’. Nesse
âmbito, torna-se possível apreender porque Augustin Berque afirma que a ‘paisagem é
uma marca, pois expressa uma civilização’ e, ao mesmo tempo, ‘participa dos esquemas
de percepção, de concepção e de ação – ou seja, da cultura – que canalizam, em certo
sentido, a relação de uma sociedade com o espaço e com a natureza’ (1998, p. 85).
Sob tal enfoque, o conceito de patrimônio ambiental adquire dimensões sociais,
cujo significado sinaliza a materialização dos sentidos que lhe foram atribuídos no
decorrer do processo histórico e lhe imprime uma perspectiva dinâmica, uma conota-
ção que fomenta a consciência do uso comum do meio e, principalmente, a respon-
sabilidade coletiva pelo espaço. Por essa via, podemos deduzir que as demandas da
modernização imputaram às elites políticas e intelectuais a necessidade de normalizar
as formas de apropriação dos territórios. Por essa razão, no decorrer do século XX, a
noção de patrimônio ambiental urbano ampliou-se e também passou a ser considera-
da fator de reconhecimento dos núcleos históricos.
Aliás, a natureza não raro referendou representações de memórias coletivas, e como
bem lembra Zélia Lopes da Silva2, cristalizou elementos fundantes das construções

2 Consultar a coletânea História, Espaço e Meio Ambiente (ROLIM; PELEGRINI; DIAS; 2000) e o texto ‘As
percepções das elites brasileiras dos anos de 1930 sobre a natureza: das projeções simbólicas às normas
para seu uso’, de Zélia Lopes da Silva (apud arruda, 2005).

31
PATRIMÔNIO CULTURAL: identitárias de distintas sociedades, inclusive da brasileira. Do ponto de vista da his-
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE toriadora, entre 1932 e 1937, os efeitos do desmatamento e da ‘descarga’ de dejetos
residenciais e resíduos industriais nos mananciais urbanos brasileiros passaram a cons-
tituir alvo de matérias veiculadas em jornais como o ‘Correio da Manhã’, a chamar a
atenção de associações como a ‘Academia Brasileira de Ciências’ e a ‘Sociedade Amigos
das Árvores’. Até os constituintes que se ocupavam da redação da Carta Magna de
1937 parecem ter ampliado os seus horizontes, tanto é que nesse documento os bens
naturais foram citados como ‘monumentos’ da nação brasileira.
A defesa efetiva dos bens naturais e culturais do país acabou sendo implementada
através do Decreto-Lei nº 25/1937 referente ao tombamento, porém os termos dessa
proteção se restringiram, conforme o artigo primeiro da lei, aos valores paisagísticos e
estéticos referentes aos ‘sítios e paisagens’ distinguidos ‘pela feição notável com que
tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana’.
Passados cerca de cinquenta e um anos, os bens enumerados no artigo nº 216 da
Carta Constitucional do país (BRASIL, 1988) mantiveram-se articulados às noções de
patrimônio ambiental circunscritas aos ‘conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico’. Mesmo as-
sim, até o ano 2012, o tombamento continuou sendo considerado um dos instrumen-
tos mais eficazes para a proteção dos bens naturais e culturais.
Os critérios de promoção de certos bens à condição de patrimônio têm se vincula-
do à imputação de valores culturalmente defensáveis. Desde a instituição da ‘Conven-
ção do Patrimônio Mundial’, em 1972, a definição dos parâmetros para identificação
dos bens de interesse universal tem oscilado entre critérios como raridade, autentici-
dade, integridade e universalidade. Os critérios de autenticidade e universalidade têm
sido tomados como balizas definidoras dos bens integrados à Lista do Patrimônio da
Humanidade, da Unesco (HALEVY, 2001).
A par da importância atribuída aos bens, perfilham-se seus significados afetivos,
culturais, estéticos, sociais, históricos, econômicos e técnicos. Por essa razão, o fran-
cês Hugues de Varine Boham argumentou, cerca de trinta e nove anos atrás, que o
patrimônio cultural deveria ser abordado a partir de três vetores básicos: o do conhe-
cimento, o dos bens culturais e o do ‘meio ambiente’. Sob esse prisma, definia o ‘pa-
trimônio do conhecimento’ como os ‘costumes’, as ‘crenças’ e o ‘saber fazer’ capazes
de viabilizar a sobrevivência do homem no meio onde vivia e delimitava o ‘patrimônio
dos bens culturais’ como o conjunto de artefatos e tudo o mais que derivava do uso
do patrimônio ambiental. Este último conceito contemplava os elementos inerentes à
natureza como o próprio meio e os recursos naturais.
Talvez a maior contribuição da abordagem de Varine-Bohan nesse campo se deva

32
ao fato de que tais acepções do patrimônio coadunam-se às noções de bens naturais Mediações entre os
estudos da história
e culturais concatenadas mediante as articulações entre natureza e cultura, haja vista e os problemas da
preservação do
que a própria cultura parece ser concebida pelo autor como a ‘natureza transformada patrimônio ambiental

pelo trabalho humano’. Ora, na medida em que os bens culturais são interpretados
como resultados da transformação da natureza, reconhecemos que as constantes alte-
rações do meio decorrem das novas necessidades que surgem ao longo da existência
humana. Interpretada dessa maneira, a referida definição do patrimônio ambiental
inclui não somente os ‘recursos naturais’ ou ‘a natureza não apropriada pelo trabalho’,
mas também os subsídios da construção cultural, quais sejam, os ambientes urbanos
percebidos como lócus da materialização das relações sociais.
Esse ponto de vista permite ainda a incorporação do conceito de territorialidade
à questão do patrimônio, pois como bem lembra Milton Santos, os territórios se de-
lineiam a partir de ‘sua utilidade atual, passada e futura’, derivam do uso que lhes é
atribuído ‘pelos grupos humanos que os criaram ou que os herdaram das gerações
anteriores’ (1997, p. 59). Essa assertiva descortina as múltiplas facetas da problemática
patrimonial, libertando-a da clausura inerente às definições isoladas, dissociadas das
referências culturais e do espaço geográfico.
Assim, depreendemos que a interpretação do patrimônio cultural ou do patrimô-
nio ambiental não pode ser abstraída dialeticamente das ações historicamente respon-
sáveis por sua construção, nem tampouco do sentido de pertencimento.
Exposto isso, vale lembrar que a instituição do tombamento para fins de proteção
do patrimônio também se engendrou no contexto da Modernidade. Curiosamente, a
proteção de ecossistemas, paisagens naturais, conjuntos arquitetônicos, centros urba-
nos, monumentos, sítios arqueológicos, peças móveis, manifestações culturais e artís-
ticas prefigurou-se, por algum tempo, como um movimento anacrônico capaz refrear
as trajetórias progressivas do desenvolvimento e a domesticação da natureza.
Em meio às contínuas transformações advindas da modernização, a defesa do meio
natural, dos núcleos históricos, das paisagens e das tradições culturais foi dotada do
sentido de afiançar a imortalidade dos signos da identidade nacional, cultural e ecoló-
gica. Portanto, somente nos últimos anos do século passado, a preservação dos bens
naturais e culturais passou a ser admitida como uma atitude positiva e inteligível. Nes-
se contexto, convém observar como tem sido tratado o patrimônio cultural latino-ame-
ricano. Quais as implicações da preservação em um continente territorialmente vasto
e culturalmente diversificado?
As várias nações latino-americanas têm características pluriculturais oriundas de
suas origens étnicas. Essa riqueza cultural se inscreve em um processo dinâmico que
se reorganiza, renova e transmite de geração em geração. Trata-se de um processo

33
PATRIMÔNIO CULTURAL: contínuo, apontado pelos especialistas como um sistema capaz de reafirmar a identi-
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE dade do povo latino-americano e de promover o seu desenvolvimento.
Mas a complexidade da proteção de uma coleção tão extensa de bens culturais
dispersos em imenso território tem implicado a adoção de ações pontuais no campo
das políticas públicas devotadas à defesa do patrimônio e do turismo cultural. Estas
têm sido respaldadas pela implantação de cursos de Educação Patrimonial e Educação
Ambiental, tomadas como instrumentos para a construção da cidadania, do progresso
econômico e da preservação dos bens culturais e socioambientais.

Recursos didáticos

A utilização de matérias jornalísticas referentes às catástrofes meteorológicas pode


suscitar um ótimo debate sobre as necessidades preponderantes de tratarmos o nosso
planeta com o devido respeito.

Fontes e referenciais para o aprofundamento temático

O artigo sétimo da ‘Declaração Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural’,


datado de 2005, dispõe que ‘toda criação tem suas origens nas tradições culturais’ e se
desenvolve ‘plenamente’ por meio do diálogo entre as culturas. Essa Carta argumenta
que os bens culturais, em todas as suas formas, devem ser preservados, valorizados
e transmitidos às gerações futuras ‘como registros da experiência e das aspirações
humanas’.

Anotações

34
3 novos
A sustentabilidade e os
rumos das políticas
preservacionistas

Os pressupostos da denominada ‘racionalidade científica e tecnológica’ determi-


nados pela lógica e interesse do capital tendem a subjugar os valores humanos. Ao
fazê-lo, acabam por suscitar o colapso contínuo dos recursos naturais, contudo consta-
tações desse tipo não podem ser generalizadas, tampouco estigmatizar as descobertas
científicas, porque a questão crucial não está centrada nas pesquisas e sim no uso que
se faz delas, em especial das novas tecnologias.
O grande desafio que se coloca na atualidade é o de saber conciliar o desenvolvi-
mento científico e tecnológico com os princípios da vida no e do planeta, priorizando
a sobrevivência humana e dos demais seres que o habitam. A questão da ‘boa qualida-
de de vida’ urbana está em pauta nas matérias veiculadas em jornais, revistas e progra-
mas de televisão (educativos ou não), que quase sempre tendem a enfocar o problema
mediante a exposição de opiniões de especialistas e de imagens que evidenciam as
transformações da paisagem, as catástrofes naturais e fenômenos antes vislumbrados
apenas no cinema ou na literatura. Algumas cidades são até ‘enaltecidas’ por oferecer
à população residente acesso à educação, saúde pública, educação, cultura e espaços
abertos e verdes para recriação de toda a família, quando, na verdade, isto deveria ser
tomado como algo corriqueiro e não excepcional.
A demarcação das fronteiras e do alcance da industrialização gerou e continua a ge-
rar inúmeras celeumas, porém duas correntes se destacam nesses debates: uma toma
como eixo central a ausência de políticas de investimento tecnológico planejado para
aplicação em médio e longo prazo; a outra se ocupa do impacto causado pelo aumen-
to populacional. As duas vertentes de análise convergem quando indicam os resíduos
produzidos pelo homem como problema fundamental a ser solucionado. Por essa via,
a poluição é apontada como agente destruidor do patrimônio natural e cultural, e
ainda como um dos sinais mais evidentes do ‘fracasso’ da racionalização.
Aos cientistas e tecnólogos é delegada a responsabilidade de reverter tal quadro,
porém providências aparentemente simples como a do reaproveitamento das águas
da chuva e daquelas utilizadas no banho, a propagação do uso da energia solar e de

35
PATRIMÔNIO CULTURAL: fontes alternativas, a separação e a reciclagem do lixo, entre outras atitudes, se forem
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE adotadas por parte significativa da população, realmente podem fazer a diferença.
O desrespeito ao meio gera uma violência velada, capaz de inibir a existência de
futuras gerações. A falta de regulamentação e fiscalização do camping, por exemplo,
pode ser tomada como uma das formas mais dissimuladas e agressivas de intervenção
no meio natural, principalmente porque a instalação de barracas quase sempre ocorre
em áreas próximas às reservas florestais e tendem a ameaçar a harmonia dos ecossiste-
mas. Segundo Sérgio Molina,

o homem não se contenta em poluir; demonstra também suas faculdades de


depredador destruindo árvores e plantas, matando aves e animais e, em nume-
rosíssimos casos acabam provocando sérios incêndios florestais, que significam
duras perdas, às vezes humanas (2001, p. 32).

Por essa razão, torna-se urgente a difusão de conceitos e posturas que possam fa-
vorecer a consciência da preservação tanto da paisagem natural como da construída.
Não ao acaso, há uma demanda considerável de centros de estudos cujos objetivos
centram-se na ideia de que a solução para esses problemas torna-se viável mediante
mudanças nas posturas dos cidadãos e que elas só ocorrerão por intermédio do acesso
à informação, da educação patrimonial e ambiental.
A emergência de tormentas incontroláveis e bruscas alterações climáticas, bem
como a defesa da diversidade étnica e cultural, vêm ocasionando a curiosidade cres-
cente de leigos sobre a salvaguarda do patrimônio natural e cultural. Essas deman-
das impulsionaram a produção de livros especializados e a fundação de organiza-
ções não governamentais e sem fins lucrativos (ONGS). Além disso, instituições de
ensino também têm organizado palestras, cursos de graduação e pós-graduação com
o intuito de formar peritos com sólida base científica e experiências práticas no
que tange ao manejo do meio e à preservação do patrimônio cultural (PELEGRINI,
2009).
Na América Latina, cada vez mais, notamos a implementação de disciplinas nos cur-
sos de licenciatura como ecologia, ecoturismo, patrimônio cultural e educação patri-
monial, e também a oferta de cursos de pós-graduação com linhas e pesquisas voltadas
a tais questões. No México, a promoção de atividades educativas e filantrópicas como
as do Centro de Estudos Culturais têm desenvolvido pesquisas relativas à proteção do
patrimônio cultural mexicano e difundido os seus resultados entres variados segmen-
tos sociais. No Brasil, vários cursos de mestrado e doutorado oferecem aos interessa-
dos linhas de pesquisa e disciplinas que enfocam as fronteiras espaciais e temporais
entre as populações e seus bens culturais.

36
A mudança de atitude em relação aos bens patrimoniais tem sido incentivada de A sustentabilidade e os
novos rumos das políticas
modo a proporcionar uma relação mais saudável entre o homem e o meio, bem como preservacionistas

a valorizar as raízes plurais dos povos e suas tradições. Ao aquilatarmos as interfaces


entre diferentes tipologias patrimoniais, estamos apreciando costumes, modos de vi-
ver e origens étnicas que, por sua vez, implicam a manutenção de identidades plurais
e o trato com o meio. Nesse horizonte, parece oportuna a retomada da problemática
do ‘turismo cultural’ tal como foi proposta por Josep Ballart Hernández (2005), um
estudioso desse tema que ao discorrer sobre as noções que circundam a indústria
turística e cultural, procura apontar caminhos possíveis para uma ação complementar
entre essas duas áreas, de modo a garantir o desenvolvimento sustentável dos bens
patrimoniais.
A planificação turística, processada mediante a colaboração entre a administração
pública e privada, e também o fomento da comercialização de produtos e serviços
culturais podem facultar oportunidades para a inserção social e econômica dos mu-
nícipes que vivem nos núcleos históricos. Nessa linha de argumentação, Ballart Her-
nández (2008, p. 110) afirma que a apropriada gestão do patrimônio exige esforços
conjuntos, assim como a cooperação e o compromisso entre diversos agentes da es-
fera científico-profissional, político-administrativa, econômica e da sociedade civil, de
modo a afiançar a conservação dos valores identitários e a autenticidade dos bens.
As reiteradas propostas de implantação de projetos norteados pelos princípios do
desenvolvimento sustentável, por parte de organismos internacionais e nacionais, nem
sempre alcançam êxito porque, não raro, se restringem aos aspectos econômicos da
sustentabilidade. Trata-se de um modelo que agrega valor aos bens culturais e aos pro-
dutos naturais, visando à inclusão social e à transformação das populações residentes
em partícipes de programas dessa natureza. Na esfera do turismo, por exemplo, a pers-
pectiva é de incitar a criação de micro e pequenas empresas administradas pelos habi-
tantes locais; portanto, a perspectiva não se limita à geração de empregos por terceiros.
A disposição de promover o planejamento conjunto de ações e políticas contínuas
de conservação do patrimônio foi colocada em prática a partir do ‘Congresso do Patri-
mônio Europeu’, organizado em Amsterdã, em 1975. Naquela época, foram definidas
diretrizes fundamentais que previam a descentralização de planos em prol do patri-
mônio, cindindo as responsabilidades e propondo o envolvimento da opinião pública.
O conceito de ‘conservação integrada’, então proposto, assentava-se em um modo de
abordar a gestão do patrimônio cultural urbano, pautado pela ampla integração entre
as políticas de gerenciamento e a prática econômica, política, cultural, ambiental e
físico-espacial multidimensionais, sem, no entanto, comprometer a autenticidade do
patrimônio cultural.

37
PATRIMÔNIO CULTURAL: Se, de um lado, a ‘conservação integrada’ constituiu um passo decisivo na busca da
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE sustentabilidade ao inserir a conservação do patrimônio-cultural urbano no circuito
das políticas e das ações capazes de promover o crescimento econômico regional em
todas as suas dimensões; de outro, os projetos de sustentabilidade pressupõem a ado-
ção de paradigmas do planejamento capazes de assegurar à humanidade a satisfação
das necessidades do presente, expressas por meio da exploração dos recursos naturais
pautada pela orientação do desenvolvimento tecnológico e institucional, sem compro-
meter a conservação dos mananciais naturais (ZANCHETI, 2002).
Nas décadas de 1960 e 1970, afloram esforços no sentido da adaptação de edifícios
antigos aos usos contemporâneos (mantendo-se as características originais dos imó-
veis restaurados e a reutilização do seu valor patrimonial); a partir dos anos noventa
do século XX, novas diretrizes iriam versar sobre a relação preservação – patrimônio
– integração. Inspirada nos paradigmas do planejamento, a premissa básica defendida
nos eventos internacionais sobre preservação assentava-se na defesa de programas ca-
pazes de assegurar à humanidade a satisfação de suas necessidades do presente, sem,
no entanto, comprometer a capacidade das futuras gerações de fazê-lo.
A questão da preservação tem, cada vez mais, sido inserida no contexto da com-
preensão global de incrementos socioeconômicos e ecológicos, observada em sua
diversidade físico-ambiental. Esse deslocamento do eixo central do problema toma
a conservação urbana integrada como estratégia fundamental de intervenção e corro-
bora para a percepção de quão necessárias são as conexões entre o patrimônio e as
políticas setoriais urbanas da energia, da indústria, de habitação, de transporte, etc.,
bem como as implicações ambientais do espaço urbano.
As perspectivas conceituais arroladas, conforme Sílvio Mendes Zancheti (2003),
exigem uma análise multidimensional das sociedades, assentada em quatro dimensões
básicas: a econômica, a política, a social, a ambiental e a cultural. Já os princípios da
sustentabilidade encampados pelos países signatários da Unesco e da ONU, organiza-
ções que conjugam, por exemplo, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambien-
te (PNUMA), o Fundo Mundial para a Natureza ( WWF) e a União Internacional para a
Conservação da Natureza (UICN), juntos, tomaram a iniciativa de formular propostas
publicadas no volume ‘Cuidar da Terra, estratégia para o futuro da vida’ (1991), com o
intuito de aprimorar as condições de existência dos homens, ‘sem ultrapassar a capa-
cidade de sustentação dos ecossistemas que a mantém’.
O próprio conceito encerra em si uma estratégia que tem recebido o apoio e a
aceitação de vários países do mundo e potencializado a consciência da preservação.
Entre seus propósitos, constam a orientação de ‘esforços’ no sentido da promoção do
‘bem-estar da população’; a manutenção da ‘biodiversidade dos recursos disponíveis

38
no planeta’; a organização de uma sociedade sustentada, a reconstituição da fauna A sustentabilidade e os
novos rumos das políticas
e da flora (denominada arqueoecologia), a associação entre práticas tradicionais de preservacionistas

produção e a rentabilidade.
A operacionalização de projetos assentados na acepção de sustentabilidade pressu-
põe princípios pró-ativos tais como o respeito e o cuidado em relação aos seres viven-
tes; a conservação da vitalidade e da diversidade existentes no planeta; a redução da
exploração dos recursos não-renováveis; a modificação de atitudes e práticas pessoais;
a projeção de quadros nacionais para a integração do desenvolvimento e da conserva-
ção; o fomento de alianças entre os povos. Enfim, o caráter inovador dessa perspectiva
assenta-se na proposta de promover a partilha das responsabilidades dos segmentos
públicos e privados e de consentir que as comunidades cuidem do meio onde vivem.
Apesar das críticas que tais estratégias têm sofrido, convém lembrar que quando
tratamos de ‘sociedade sustentada’, não ratificamos a manutenção do status quo ou
da ordem vigente. Ao revés disso, partimos da ideia de que a mudança de atitude do
homem em relação ao meio e ao patrimônio são condições imprescindíveis para a
preservação, e, mais do que isso, esperamos que ela se torne uma força propulsora
para a transformação da sociedade. No entanto, há que atentarmos para o inegável
desgaste da credibilidade em torno do conceito de ‘desenvolvimento sustentado’, re-
sultante, principalmente, do uso inapropriado que se faz dele em prelúdios de proje-
tos apoiados por instituições financeiras e nos discursos de autoridades políticas ou
empresariais.
O vocábulo, quando utilizado à exaustão, tende a banalizar o seu conteúdo, e em-
bora pareça ter atingido o senso comum, acaba por se transformar em um fetiche ou
em algo que magicamente faria reverter os desgastes sofridos pelo planeta, soluciona-
ria a desigualdade social, entre outras mazelas.
Por outro lado, quando a população se mobiliza e se reconhece como corresponsá-
vel pela preservação do meio, ela se envolve diretamente nas ações em prol da defesa
do patrimônio. Vale lembrar que no México, a comunidade local, ao detectar os danos
ambientais e as consequências nefastas do crescimento turístico desordenado, se opôs à
instalação de um resort entre três ilhas situadas próximas à costa de Mazatlán (Figura 7).

39
PATRIMÔNIO CULTURAL:
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE

Figura 7: Mapa de Mazatlán (México).


Fonte: Disponível em: <http://google.com.br>.

Postura semelhante foi adotada quando foi colocada em xeque a construção de um


hotel em Punta Colômbia, na ilha de Cozumel (México) (Figura 8) – uma área privile-
giada para a observação da vida marinha na área de arrecifes. Nesse caso, diagnósticos
ambientais concluiriam que as práticas de mergulho e do ‘turismo submarinho’ abala-
riam o ecossistema.

Figura 8: Imagem aérea do conjunto de ilhas.


Fonte: Disponível em: <http://umgiropelomundo.com.br/ilha-de-cozumel-mexico>.

No caso do resort, a reorientação desse tipo de atividade para algo menos inva-
sivo resolveu a questão. A solução encontrada pela instituição incumbida de tratar

40
as questões ambientais no México, a denominada Secretaria do Desenvolvimento So- A sustentabilidade e os
novos rumos das políticas
cial (equivaleria ao Ministério do Meio Ambiente brasileiro), ao ouvir os reclamos das preservacionistas

entidades representativas da comunidade de Mazatlán, sugeriu ‘alternativas de baixo


impacto’ como a organização de ‘cruzeiros ao redor das ilhas, para a observação das
aves [...] flora e fauna nativas’ (MOLINA, 2001, p. 187).
Não por acaso, as cartas patrimoniais desde a década de 1980 vêm insistindo na
importância de envolver as comunidades locais em programas de preservação e lhes
imputar responsabilidade nesse âmbito, porém, nos anos setenta do século XX, já des-
pontavam debates internacionais que sinalizavam para a urgência de se dirigir outro
olhar para tais questões.
A ‘Carta de Nairobi’ (1976) é um dos documentos que, ao se ocupar das ‘Reco-
mendações Relativas à Preservação e ao Papel Contemporâneo das Áreas Históricas’,
alertou para os perigos da abordagem e do trato meramente museal dos núcleos histó-
ricos, suas repercussões na esfera dos negócios turísticos e da especulação imobiliária.
Naquela ocasião, essa Carta já definiu o ‘ambiente’ como o cenário natural ou cons-
truído pela ação humana e aconselhou que os núcleos históricos fossem observados
no seu conjunto, abarcando a ‘organização espacial’ e seus arredores, as edificações
e seus entornos, e particularmente, as ‘atividades humanas’ desenvolvidas no local.
Alguns meses depois, a ‘Carta do Turismo Cultural’ (1976) aprofundou as suges-
tões da ‘Carta de Nairobi’, e embora salientasse as benesses advindas da promoção
dos empreendimentos turísticos, advertia para a necessidade de se combinar o uso e
a conservação dos bens naturais e culturais, de maneira a se evitar o acesso indiscrimi-
nado ao patrimônio1.
A ‘Conferência sobre Educação Ambiental’ (1977), realizada em Tsibilisi (EUA), por
mais paradoxal que possa parecer em função das posturas assumidas pelos Estados
Unidos da América, reuniu autoridades governamentais de várias partes do mundo e
respaldou um approach inovador no âmbito da valoração da natureza e dos ambientes
habitáveis, estimulando a produção e democratização de saberes interdisciplinares no
trato desse tema. Posteriormente, o documento síntese da ‘Conferência Internacional
sobre Meio Ambiente e Sociedade, Educação e Consciência Pública para a Sustentabi-
lidade’, efetuada na Grécia, em Tessalônica, destacou a urgência de se promover, na
esfera da educação, debates sobre temas como ética e sustentabilidade, identidade

1 Todas as cartas patrimoniais e de turismo, bem como as declarações resultantes dos eventos inter-
nacionais promovidos pela Unesco e entidades afins, podem ser consultadas nos sítios da Unesco, do
IPHAN e do Icomos, respectivamente: <http://www.unesco.org.br; http://www.portal.iphan.gov.br>.
<http:// www.icomos.org.br> . O Estatuto da cidade está disponível no site: <www.estatutodacidade.
org.br>.

41
PATRIMÔNIO CULTURAL: cultural e diversidade, mobilização e práticas interdisciplinares (SORRENTINO, 1998,
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE p. 27-32). O entendimento de desenvolvimento sustentável à época voltou-se às ne-
cessidades de se coadunar a preservação ambiental com a melhoria da qualidade de
vida no planeta por intermédio da otimização dos ecossistemas e dos procedimentos
socioeconômicos.
Cumpre lembrar também que, matizado desde a década de 1970, o conceito men-
cionado surgiu como resposta a duas vertentes básicas que explicavam as crises eco-
lógicas então emergentes. Uma passou a ser disseminada a partir da ‘Conferência de
Estocolmo’ (1972), na qual se consolidaram uma contundente crítica ambientalista
as formas de existência da sociedade contemporânea e a proposição no sentido da
sustentabilidade ecológica e socioeconômica. A outra, embasada no livro Limites do
crescimento em 1972 (organizada pelo ‘Clube de Roma’), ao reconhecer os limites
dos recursos naturais, sugere o controle demográfico, a paralisação capital industrial
( JACOBI, 2003, p. 189-205).
A temerária deterioração ambiental, constatada através do aniquilamento da cama-
da de ozônio, e o consequente aquecimento do planeta, detectado nas duas últimas
décadas do século XX, repercutiram consideravelmente nos debates da ‘II Conferência
Geral das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Humano’, em 1992,
no Rio de Janeiro. A ‘Rio-92’ figurou como uma das mais importantes conferências
realizadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) e consolidou a criação de estra-
tégias, políticas nacionais e a formação de redes de cooperação internacionais e inte-
rinstitucionais prescritas na chamada ‘Agenda 21’. Esse documento, assinado por cento
e setenta países, inclusive pelo Brasil, consistia de um programa estratégico universal
para que o desenvolvimento sustentável se tornasse uma realidade no século XXI. Em
síntese, apresentava uma proposta de constituição de parcerias entre governos e so-
ciedades com vistas a gerar ações capazes de dar continuidade ao desenvolvendo sem
prejuízo do meio.
Não podemos ignorar que as autoridades políticas estadunidenses se esquivaram
das recomendações da ECO-92 e não assinaram o Protocolo de Kyoto – iniciativas
internacionais que visaram à implementação de providências para conter o ‘efeito es-
tufa’. Ademais, mantiveram-se alheias às várias negociações internacionais em prol do
meio ambiente realizadas entre os anos de 1992 e 1997.
As discussões em torno desse tema reuniram representantes de várias nações na ci-
dade de Kyoto, Japão (1997); contudo os interesses econômicos conflitantes estende-
ram as negociações até o ano 2004, quando finalmente o documento foi oficializado.
Esse compromisso internacional entre as grandes potências centrou-se na adoção de
medidas devotadas a minimizar as agressões sofridas pela camada de ozônio, causadas

42
pelo lançamento de gases poluentes na atmosfera, em especial daqueles que resultam A sustentabilidade e os
novos rumos das políticas
da queima de combustíveis fósseis. Mas, novamente, os E.U.A. não seguiram as reco- preservacionistas

mendações contidas no Protocolo de Kyoto (PELEGRINI, 2009, p.15-16).


As edições do ‘Fórum Econômico Mundial de Davos’ (Suíça), realizado em 2008 e
2009, embora tenham se ocupado da problemática do aquecimento global, a preser-
vação do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável, privilegiaram as reflexões
sobre o terrorismo internacional e o crescimento econômico global. Na ocasião do
último fórum, em nome do presidente Barack Obama, Valerie Jarrett admitiu que a
‘as mudanças climáticas, a pobreza, a busca pela paz são mundiais’. Tais impasses do
ponto de vista do governo estadunidense exigiriam ‘respostas conjuntas’ (PELEGRINI,
2009, p. 16).
Por certo, a perspectiva integradora das políticas em defesa do meio ambiente, do
patrimônio cultural e do incremento de atividades turísticas tem resultado em expe-
riências positivas no sentido da promoção da cidadania e do desenvolvimento sus-
tentável em todo o mundo. As cartas patrimoniais dedicadas ao assunto asseveram a
urgência das políticas públicas nesses três campos, considerados estratégicos para a
preservação dos bens naturais e culturais, e sua respectiva manutenção. A integração
simultânea dessas áreas pode vir a corroborar para a reafirmação de códigos visuais
das identidades cívicas, patrióticas ou étnicas, à medida que consiga agregar a popu-
lação residente ao ‘legado vivo’ da história de sua cidade ou região. Para tanto, faz-se
imperiosa a adoção de políticas patrimoniais pluralistas, capazes de valorizar a diver-
sidade ambiental, as heterogeneidades culturais e as múltiplas identidades, de forma
a promover a convivência harmoniosa entre o homem e o meio e garantir a inclusão
social dos cidadãos.
A despeito da heterogeneidade das condições políticas, sociais e econômicas das
áreas preservadas e dos centros históricos latino-americanos, a maior parte parece en-
frentar questões similares como a degradação do meio ambiente e dos bens culturais,
a especulação do solo urbano, a privatização, entre outros problemas como a pobreza,
as péssimas condições de existência e trabalho, as privações que corroboram para a
crescente agressão à natureza e a descaracterização do patrimônio.
Diante de tão grandes desafios, autoridades políticas, estudiosos e técnicos devo-
tados à causa da proteção do patrimônio têm reunido esforços visando à criação de
instrumentos legais capazes de despertar a população latino-americana para o valor de
seu patrimônio, inibir os atos de vandalismo e minimizar as condições de degradação
do meio. A par das iniciativas executadas com êxito nos países de outros continentes,
foram realizados empreendimentos no campo do turismo em cidades como Cuzco e
Lima (Peru), Buenos Aires (Argentina), Quito (Equador), Havana (Cuba), e em várias

43
PATRIMÔNIO CULTURAL: regiões do território brasileiro como Olinda, Salvador, Ouro Preto, São Paulo, Rio de
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE Janeiro, São Luis, João Pessoa, entre outras.
Mas ainda há muito que se fazer no âmbito da integração da população residen-
te nessas áreas, como anunciou a Carta de Machu Picchu (1977) – um documento
que preconizava a incorporação de valores socioculturais aos processos devotados
à recuperação do patrimônio natural e cultural. A preservação do patrimônio, como
ferramenta vigorosa para a manutenção da dinâmica urbana e para a proteção do meio
ambiente, constituiu prerrogativas defendidas na década de 1980. As Declarações de
Tlaxcala (1982) e do México (1985) recomendaram também a recuperação de peque-
nos núcleos depositários de costumes e relações comunitárias tradicionais, conside-
rando as identidades plurais como elementos significativos na constituição de valores
étnicos, nacionais ou regionais.
Entretanto, toda essa diversidade não parece devidamente valorizada se as popula-
ções não reconhecerem o importância de seu patrimônio. Nessa direção, uma questão
fulcral se coloca: qual a repercussão do investimento estatal devotado à conservação e
preservação do patrimônio se as populações não aprenderem a respeitar sua própria
cultura e a valorizar o meio ambiente, se não reconhecerem esses bens como parte do
legado que deixarão para as futuras gerações? Essas e outras questões estão postas,
resta-nos refletir profundamente sobre elas.
Nesse sentido, cabe-nos, neste capítulo, estimular ponderações relativas aos pro-
blemas que envolvem o patrimônio cultural e à apropriação do ambiente na atuali-
dade. Assim, lembramos que as reflexões sobre a preservação do ambiente natural
remontam ao século XIX, porém a ‘consciência ambientalista’ é bem mais recente, vem
sendo impulsionada por movimentos e reivindicações de estudiosos e da população
desde meados da década de 1980; portanto, não partiram do Estado, como ocorreu
em relação à proteção do patrimônio histórico no século XVIII.
Assim, cabe indagar, de início, quais as práticas preservacionistas adotadas na Amé-
rica Latina, e depois, investigar de que maneira o Brasil tem enfrentado o desafio de
associar a preservação do patrimônio cultural material e imaterial, a recuperação da
memória social, o desenvolvimento e o crescimento urbano.
As noções de paisagem relacionadas ao patrimônio natural incorporam não só as
interferências do homem no ambiente natural, mas também os modos de viver e de
usufruir do espaço, contribuindo para a produção das chamadas ‘paisagens culturais’.
Sob esse ângulo, as percepções do próprio patrimônio se ampliam e alcançam acep-
ções culturais apreendidas como formas de organização dos seres humanos.

44
A sustentabilidade e os
novos rumos das políticas
preservacionistas
Recursos didáticos

Cartas Patrimoniais citadas neste capítulo encontram-se disponibilizadas no Portal


do IPHAN e se constituem em documentos singulares para a pesquisa e para o ensino
de História.

Fontes e referenciais para o aprofundamento temático

Como podemos explicar as posturas adotadas pelos E.U.A. frente à problemática


da preservação ambiental e a necessidade premente da diminuirmos a quantidade de
dejetos tóxicos lançados no planeta?

Anotações

45
PATRIMÔNIO CULTURAL:
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE
Anotações

46
4 Ensino de História e a
educação patrimonial
Na contemporaneidade, o ensino de História exerce um papel reflexivo no que
tange às abordagens historiográficas dedicadas a validar apenas os grandes feitos das
autoridades políticas ou as vivências dos segmentos mais abastados da sociedade. Por-
tanto, a articulação entre os temas abordados nessa disciplina e as metodologias da
Educação Patrimonial pode contribuir para a elevação da autoestima dos acadêmicos
e suas respectivas comunidades e, consequentemente, promover o reconhecimento e
a consciência da preservação de seus bens culturais. A salvaguarda desse patrimônio
pode integrar crianças, jovens e adultos em um projeto conjunto e motivá-los a valo-
rizar as histórias e as memórias locais, individuais e coletivas. Se assim for, tais bens
serão tomados como fonte de conhecimento e aprendizagem.
Em poucas palavras, o objetivo deste capítulo do presente volume é evidenciar a
importância da utilização de metodologias da Educação Patrimonial no ensino de His-
tória de forma contínua. Justificamos a relevância dessa abordagem pelo fato de que o
acesso à gestão dos bens culturais pode constituir-se em um fator crucial na inclusão
social dos cidadãos e também porque essa atividade pode ser tomada como uma das
competências do ofício do historiador. Por essa razão, consideramos válida a análise
de metodologias da Educação Patrimonial e a sugestão de algumas experiências que
primam por articular esses dois campos de aprendizagem.
Antes de tudo, cabe-nos lembrar que a Educação Patrimonial no Brasil tem sido
praticada, embora de maneira não sistemática, desde a década de 1940, principal-
mente em áreas reconhecidas como patrimônio nacional e inseridas na lista dos bens
inscritos pelo Comitê do Patrimônio da Unesco na Lista do Patrimônio Mundial da
Humanidade 1.
Nos municípios de Ouro Preto e Olinda, por exemplo, o Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), órgão atualmente vinculado ao Ministério da
Cultura e responsável pela identificação, catalogação e proteção dos bens culturais

1 A contagem dos bens inscritos na Lista do Patrimônio Mundial, realizada pela Unesco em 2008, apre-
sentou cerca de ‘660 sítios culturais, 166 naturais e 25 mistos, localizados em 141 Estados’ signatários
da Convenção do Patrimônio, firmada em 1972. Mas ‘pequenas diferenças no número total dos sítios
podem ocorrer devido a diferentes métodos de contagem ou pelo fato de alguns dos sítios se encon-
trarem em dois países’, ou seja, em áreas de fronteira geográfica entre duas ou mais nações. Cf. dados
disponíveis do site: <http://www.brasilia.unesco.org/areas/>. Acesso em: jan. 2010.

47
PATRIMÔNIO CULTURAL: brasileiros, toma para si a tarefa de difundir conceitos essenciais para a preservação.
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE Além disso, organiza oficinas de restauração nas quais adolescentes e jovens são esti-
mulados a aprender técnicas de recuperação de distintos tipos de patrimônio como
pinturas, talhas em madeira, esculturas em pedra-sabão e edifícios com características
estéticas específicas, das quais a mais conhecida é a do barroco. Essas atividades extra-
curriculares e interdisciplinares se propõem a valorizar as referências culturais locais
ou regionais.
Um exemplo disso é que, em 1953, a Unesco lançou o Programa Escolas Associadas
(PEA), um projeto que, à época, contava com a participação de trinta e três escolas
secundárias espalhadas em quinze Estados-membros. Atualmente, a proposta reúne
mais de sete mil e setecentas instituições educacionais em 175 países. Seu objetivo
centra-se em fomentar diretrizes relacionadas ao binômio ‘escola-paz’ e consiste em
compartilhar práticas educacionais, materiais e métodos entre escolas de diversas par-
tes do mundo. Apesar das diferenças étnicas identificadas, o PEA busca fazer com que
as escolas de países de uma mesma região partilhem ‘denominadores comuns’, que
podem ser a língua ou a cultura. A concretização dos planos de ‘Ação para a Educação’
é estimulada pela Unesco com vistas a estabelecer trocas de experiências por meio da
realização de seminários regionais e workshops.
O trabalho do PEA se desenvolve mediante a cooperação entre os ministérios da
educação dos Estados-membros e respectivas comissões nacionais vinculadas à Unes-
co. Juntos, eles reúnem ‘escolas-piloto’ para ‘promover atividades e trabalhos expe-
rimentais para elevar a qualidade da educação, particularmente em suas dimensões
ética, cultural e internacional’. Entre os principais objetivos do PEA, salientamos o
intuito de [...] desempenhar um papel multiplicador através da difusão da informação
e dos resultados obtidos, de modo que outras escolas do país possam aprender sobre
o trabalho desenvolvido e promover [...] atividades similares2.
O documento intitulado ‘Nova Estratégia das Escolas Associadas e seu Plano de
Ação (2004-2009)’ destaca a preocupação da Unesco com o fortalecimento de ‘quatro
pilares da Educação para o Século XXI’, quais sejam, ‘aprender a conhecer, a fazer, a
ser e a viver juntos’. Outro aspecto considerado prioritário diz respeito à promoção
de uma educação de qualidade e antenada com os problemas do nosso tempo, entre
os quais se inclui a preservação do planeta. A recente organização do Seminário ‘O
Fogo no Meio Rural e a Proteção dos Sítios do Patrimônio Mundial Natural no Brasil:
Alternativas, Implicações Socioeconômicas, Preservação da biodiversidade e Mudanças

2 Sobre o PEA, consultar: <http://www.brasilia.unesco.org/comunidades/ PEA/PEA/>. Acesso em: jul.


2008.

48
Climáticas’, realizado em Foz do Iguaçu, Paraná, em abril de 2007, tende a confirmar Ensino de História e a
educação patrimonial
um dos princípios cabais manifestos pela Unesco desde a sua criação em 1946. Nesse
caso específico, o objetivo básico é:

[...] congregar os principais grupos sociais e as entidades envolvidas com a


gestão dos recursos naturais no meio rural, bem como as instituições preo-
cupadas com o desenvolvimento de pesquisas científicas e ações que visam à
substituição do uso do fogo nas atividades agrossilvipastoris, representando um
esforço conjunto da sociedade brasileira pela preservação de áreas protegidas
reconhecidas como Sítios do Patrimônio Mundial3.

Salientamos que esse evento debateu temas como as alterações climáticas, a diversi-
dade biológica e a conservação da natureza e dos recursos ambientais. Desse encontro
resultou a publicação de um livro com o mesmo título, destinado a embasar ações volta-
das à ‘preservação florestal’ e à ‘prevenção de desastres’ (inclusive incêndios). A lingua-
gem didática, simples e acessível marcou as características pedagógicas dessa edição4.
Sem dúvida, as diretrizes da Unesco tomam a educação como um parâmetro funda-
mental para a promoção de ações em prol do patrimônio natural e cultural (entendido
como ‘a expressão mais profunda da alma dos povos’), envolvendo o sentido de per-
tença dos segmentos sociais e de diversas comunidades. Aliás, esse é um dos aspectos
assinalados na ‘Declaração universal da Unesco sobre a diversidade cultural’, de 2001.

A CONSCIÊNCIA CRÍTICA E A PRESERVAÇÃO


Desde meados do século XX, os bens patrimoniais vêm sendo tomados como re-
ferenciais identitários capazes de se transformar em ‘ferramentas’ para salvaguardar
a soberania dos povos e promover a inclusão social; mas os grandes desafios para
aqueles que se dedicam à defesa dos bens naturais e culturais (imateriais ou materiais,
móveis ou imóveis) não se circunscrevem à descoberta de meios eficazes para o de-
senvolvimento da educação patrimonial ou da educação ambiental, consistem também
em despertar a consciência e o apreço a esses bens5.
Se as identidades culturais podem ser reavivadas por meio da preservação do pa-
trimônio de distintas etnias, comunidades ou grupos, a educação patrimonial pode

3 O livro O fogo no meio rural e a proteção dos sítios do patrimônio mundial no Brasil, editado
pela Unesco, Prevfogo/Ibama, no ano 2008, encontra-se disponível em: <http://www.brasilia.unesco.
org/comunidades/ PEA/PEA/>. Acesso: 12 jul. 2008.
4 Idem.
5 Essas questões foram debatidas com maior profundidade no artigo Cultura e Natureza: os desafios
das práticas preservacionistas na esfera do patrimônio cultural e ambiental, de autoria de Pelegrini
(2006, p. 115-140).

49
PATRIMÔNIO CULTURAL: contribuir para fomentar a consciência do valor cultural e simbólico dos mais variados
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE bens. Por isso, a educação nesse campo deve se iniciar pela percepção direta de que
o conceito de patrimônio cultural é muito amplo e vai muito além dos bens culturais
móveis e imóveis representativos da história nacional – como monumentos, igrejas
ou edifícios públicos (SÃO PAULO, 1992); ele abarca o meio ambiente e a natureza, os
bens materiais produzidos pelo homem, bem como as inúmeras formas de manifesta-
ções culturais intangíveis.
Aliás, a partir de 2003, quando a Unesco realizou a ‘Convenção para a salvaguarda
do patrimônio cultural imaterial’, houve significativa mobilização em torno do registro
dos bens imateriais nos países da América Latina e Caribenha, na Ásia, na África, nos
países árabes e do Pacífico (PELEGRINI; FUNARI, 2008, p. 57-63).
No Brasil, essa movimentação vem ocorrendo desde o momento em que a vigente
Constituição da República, de 1988, estabeleceu que ao ‘poder público’, em ‘cooperação
com a comunidade’, caberia ‘promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro’, e
que esse patrimônio se constituía de ‘bens materiais e imateriais’ relativos à ‘identidade,
à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira’ (cf. Artigos
215 e 216). Essa iniciativa foi basilar para a implantação do Decreto n. 3551/2000, a partir
do qual foi definida a figura jurídica do registro e foram criados os Livros dos Saberes, das
Formas de Expressão, das Celebrações e dos Lugares, como já abordamos.
Certo é que a associação entre a educação patrimonial e o ensino de História tende
a enfatizar a diversidade e a pontuar as mudanças culturais, sociais e ambientais que
têm se processado com o passar dos tempos, sem dissimular os conflitos de interesses
de distintos grupos ou segmentos societários. O ensino e a aprendizagem nessa esfera
devem tratar a população como agente histórico-social e como produtora de cultura.
Para isso, deve valorizar os artesanatos locais, os costumes tradicionais, as expressões
de linguagem regional, a gastronomia, as festas, os jeitos de viver e sentir das diversas
etnias que convivem em nosso país ou em outras áreas do planeta.
A articulação sistemática entre diversas áreas do conhecimento e as metodologias
da Educação Patrimonial e Ambiental precisa partir da ideia de que a sociedade que
não respeita o patrimônio cultural e natural em toda a sua diversidade corre o risco
de perder a identidade e enfraquecer seus valores mais singulares, inviabilizando o
exercício da cidadania. Justamente o enfoque sobre os processos históricos de cons-
trução das identidades étnicas possibilita o desenvolvimento de reflexões em torno do
significado coletivo e plural da História e das políticas de preservação. Isto, por sua
vez, implica o fomento e a manutenção das práticas do passado sem que ignoremos
os benefícios da tecnologia, do manejo das áreas e parques protegidos e da atribuição
de novos valores de uso aos imóveis restaurados, visando à sua inserção na dinâmica
social e econômica de suas respectivas regiões ou cidades.
50
A produção de conhecimento, o ensino e a aprendizagem nessa área precisam con- Ensino de História e a
educação patrimonial
templar as relações entre o meio e a sociedade – postura que inclui a análise dos
elementos determinantes do processo de desenvolvimento, da preservação do meio
e dos bens culturais, o estudo do papel dos atores envolvidos e das formas de orga-
nização social em diferentes temporalidades da história do Brasil. Além disso, deve
impulsionar a busca de soluções alternativas em prol de novas formas de crescimento
econômico, em uma perspectiva que priorize o desenvolvimento ancorado nos pres-
supostos da sustentabilidade socioambiental.
Essa questão se tornou premente nas últimas décadas do século XX e continua na
pauta dos protocolos internacionais. No Brasil, em particular, a problemática relação
entre o homem e o meio adquiriu maiores dimensões a partir de meados desse século,
quando grande parte da população brasileira passou a residir em áreas urbanas –
aspecto que agravou a degradação das condições de vida e intensificou os impasses
ambientais. Tal constatação evidencia, como sugeriu Enrique Leff (2000, p. 123-124),
que há um desafio crucial a ser enfrentado, qual seja, a alteração das bases do conhe-
cimento fundado na ênfase econômica do desenvolvimento que visa apenas ao lucro
fácil e ao retorno rápido dos investimentos.
Se for acionada como recurso capaz de promover o desenvolvimento intelectual e
moral de crianças ou adultos, certamente a educação tenderá a suscitar a integração
coletiva, como também um tratamento diferenciado do patrimônio. A relação entre
ensino e aprendizagem nessa área pode facilitar a convivência dos indivíduos com a
coletividade e com o meio onde vivem. Nesse contexto, poderão ser contemplados a
pesquisa, o registro e a exploração das potencialidades dos bens culturais e naturais,
que permitiriam reconstituir as memórias que ficaram soterradas sob os escombros do
crescimento urbano e auxiliariam na redescoberta de raízes culturais e étnicas dos ha-
bitantes do nosso país. À medida que o cidadão se perceber como parte integrante do
seu entorno, sua autoestima tenderá a elevar-se e a sua identidade cultural se valoriza-
rá. Essa experiência permitirá que alunos e professores se tornem agentes entusiastas
da preservação do patrimônio em todas as suas dimensões.
Para tanto, a aquisição do conhecimento e a apropriação dos bens culturais por
parte da comunidade constituirão fatores indispensáveis no processo de ‘preservação
sustentável’ e da ‘conservação integrada’ patrimônio. Esta última assertiva foi preco-
nizada pela ‘Declaração de Amsterdã’ (1975) e inaugurou uma nova abordagem das
questões da preservação, pois ratificou a necessidade de integração do patrimônio à
vida social (PELEGRINI, 2006a, p. 5).
O ato de preservar envolve conservar as raízes que vinculam os cidadãos ao seu
passado e às suas origens e tradições e, segundo atesta Castells (2000), implica cres-
cermos e nos desenvolvermos com identidade. Para que essa assertiva se concretize,
51
PATRIMÔNIO CULTURAL: torna-se necessário ampliarmos a visão equivocada de que os bens culturais se limitam
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE aos lugares arqueológicos, à arquitetura ou aos antigos objetos em desuso. Funda-
mentalmente, cabe-nos, enquanto profissionais do ensino e acadêmicos do curso de
História a Distância, difundir a ideia de que os bens patrimoniais congregam nossas
experiências vividas, que ficam condensadas em formas de linguagem diversificadas,
expressas em tradições e nas maneiras de usufruir os bens e os espaços físicos.
A noção de patrimônio deve se estender aos bens simbólicos dos grupos subal-
ternos da sociedade e abarcar todos os moradores da cidade, expandindo o direito
ao usufruto cotidiano dos bens preservados (CANCLINI, 1994, p. 97). Nessa direção,
podemos assegurar que a Educação Patrimonial constitui uma prática educativa e so-
cial que possibilita a integração de diversos conhecimentos e, em última instância,
demonstra que os estudos sobre os significados do patrimônio representam uma in-
terpretação múltipla do sentido do passado e da memória, questões que se articulam
aos temas do direito, da política, da educação ambiental e do desenvolvimento tecno-
lógico, industrial e social (HORTA, 1999, p. 36).
Na América Latina, essa atividade educacional é muito recente, mas vem se inten-
sificando desde as décadas de 1980 e 1990. Em nosso país, como já afirmamos, essa
preocupação foi contemplada mediante a inclusão de temas transversais nos Parâ-
metros Curriculares Nacionais no Ensino Fundamental (PCNs/1998) e por meio da
organização de novas grades curriculares das disciplinas dos cursos de graduação –
conforme parecer do Conselho de Educação Superior (CNE/CES 13/2002). No caso
da História, foram inseridas novas habilidades na formação dos professores, como
‘Gestão de políticas de preservação do patrimônio histórico’, ‘História da Arte’ e ‘Ar-
quivística’ (CES 492/2001 – Resolução do Conselho Nacional de Educação, publicada
no Diário Oficial da União).
A abertura do ensino de História às questões do nosso tempo torna imperiosa a in-
terdisciplinaridade e a apreensão das propostas pedagógicas na esfera do patrimônio.

USOS E PRÁTICAS
Em termos práticos, a abordagem do tema patrimônio pode ser encetada na dis-
ciplina de História, em colaboração ou não com outras disciplinas – como Educação
Artística, Artes e Geografia. De todo modo, convém iniciar por reconhecer o corpo
docente e discente, os funcionários e demais colaboradores da escola como membros
vitais para o funcionamento da instituição e, por consequência, como parte integran-
te do patrimônio vivo da escola. Depois, cumpre apreciar os seus espaços coletivos
(valorizando-se as suas instalações) e os distintos ambientes que compõem o edifício,
como a biblioteca, as quadras de esporte, as áreas de entretenimento e outros lugares
que abrigam festas, celebrações e sociabilidades (locais de encontro entre as pessoas).
52
Em seguida, podemos sugerir que os alunos investiguem os bens culturais existen- Ensino de História e a
educação patrimonial
tes no bairro onde se situa a instituição escolar, coletem entrevistas e depoimentos das
pessoas mais idosas do local para levantar dados sobre rituais religiosos, costumes,
práticas culinárias ou beberagens, lendas, entre outras informações que possibilitem
o reconhecimento de tradições populares ou bens culturais da comunidade, bairro ou
cidade. Essas atividades devem ser equacionadas de acordo com os planos de aula da
disciplina e com a faixa etária dos alunos (PELEGRINI, 2008a).
Para Horta (1999, p. 6), a Educação Patrimonial equivale a uma forma de ‘alfabe-
tização cultural’ que habilita os cidadãos ou comunidades a apreciarem o universo
sociocultural onde se inserem. A eficácia dessa ação se consolida na medida em que
proporciona a troca de conhecimentos acumulados entre a escola, a comunidade, os
especialistas e as instituições devotadas à defesa do patrimônio.
Existem vários métodos para se desenvolver a educação patrimonial, porém as ex-
periências empíricas têm mostrado a eficácia da aplicação de quatro etapas: a obser-
vação, o registro, o exame e a apropriação. Conforme sugere Horta (1999), a primeira
etapa visa a identificar o objeto, sua função e significado. Exercícios de percepção
visual e sensorial, entrevistas e relatos recolhidos de acordo com os métodos e técnicas
da história oral são úteis nessa fase6. Em uma segunda etapa, procedemos ao ‘registro’
dos bens reconhecidos pela comunidade, mediante a fixação do conhecimento, de sua
observação e análise crítica. Para tanto, a confecção de desenhos, descrições verbais e
escritas, gráficos, fotografias, maquetes, mapas e plantas arquitetônicas são essenciais,
uma vez que reúnem um rol significativo de informações.
A terceira etapa consiste do exame do patrimônio levantado, ou seja, o desenvolvi-
mento da capacidade de análise e avaliação crítica, interpretação das evidências e signi-
ficados que comprovem a relevância coletiva dos bens reconhecidos como patrimônio.
O levantamento de hipóteses, discussões, questionamentos, somado a pesquisas em
bibliotecas e arquivos públicos ou privados, pode ajudar a desvendar o significado
desses bens culturais. Por fim, a quarta etapa constitui-se da ‘apropriação’, que implica
envolvimento afetivo dos alunos com os bens culturais. Para isso, necessitamos estimu-
lar a participação criativa e a valorização do patrimônio local. Como? Com a realização
de atividades recreativas e da releitura do patrimônio através de diferentes meios de
expressão, como a poesia, a música, a dança ou a pintura, entre outras formas de
linguagem.
A partir dessas etapas, os aprendizes poderão efetuar uma classificação dos bens
culturais de sua cidade ou região. No Ensino Médio, sugerimos a organização de

6 Sobre os usos dos métodos da história oral, consultar Marieta Ferreira e Janaína Amado (2002).

53
PATRIMÔNIO CULTURAL: equipes de alunos que se ocuparão de visitar fazendas e parques ecológicos e inves-
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE tigar as características da área urbana do município, para identificar monumentos e a
origem dos nomes de ruas, praças e outros espaços ou representações da arte pública
(PELEGRINI, 2008b). Essa atividade poderá incluir a listagem de objetos materiais de
propriedade pública ou privada como livros, fotografias, pinturas, instrumentos mu-
sicais, veículos e outros documentos ou artefatos de valor histórico, cultural, artístico,
etnológico ou paisagístico. Ademais, incluirá o levantamento de patrimônios naturais e
bens imateriais como costumes, cantigas populares e formas de saber-fazer de artesãos
que ainda se dedicam a fabricar objetos tradicionalmente utilizados (SOUZA, 2001).
O resultado dessa pesquisa poderá ser apresentado pelos diversos grupos de estu-
dantes ao professor e demais colegas, que lhes darão sugestões sobre como trabalhar
em defesa desses bens. O debate fornecerá subsídios para que o grupo avalie o sig-
nificado do patrimônio e seu valor como legado ou como herança do passado a ser
transmitida ao futuro. Todos notarão que o patrimônio cultural é vivo e dinâmico, e
ainda compreenderão que nem tudo que é antigo é patrimônio, mas somente aquelas
coisas que continuam inseridas na dinâmica social e por isso mantêm um valor cultural
intrínseco (PELEGRINI, 2008a).
É crucial, como sustentam os especialistas, que a comunidade possa se apropriar
de seus bens culturais, associando-os à sua vida e ao seu cotidiano. Quem sabe assim
consigamos alcançar maior sensibilização da população quanto aos impasses da pre-
servação na atualidade.
A alusão a um singelo exemplo talvez possa nos ajudar a despertar a afeição neces-
sária ao trato dos bens culturais (se é que podemos tratar desse tema de tal modo!).
As publicações ‘Projecto Baúl de mis tesoros’ (Chile)7 e ‘Tesouros do Brasil – a Valo-
rizando nosso patrimônio. Preservando nossa cultura’ (Brasil) chamam nossa atenção
porque tomam como foco vivências e sociabilidades que envolvem as relações entre as
pessoas, edifícios e espacialidades.
Uma capela rodeada por pequenos jardins floridos, situada em uma região lon-
gínqua, pode não ser reconhecida como modelo excepcional do patrimônio da hu-
manidade, mas essa pequena igreja é apreciada pelos habitantes locais e guarda em si
representações importantes relativas à memória coletiva daqueles cidadãos8.

7 Essa edição foi organizada sob o patrocínio da Unesco e do Ministério de Educação do Chile e cen-
trou-se na sugestão de ações de valoração do patrimônio de uma forma fácil e divertida entre os alunos
de terceiro e quarto básico (séries equivalentes do Ensino Fundamental em nosso país).
8 Exemplos semelhantes podem ser encontrados em Soares (2003), Souza (2001) e Cadernos do
CEOM – Educação Patrimonial e Fontes Históricas (2001); Pelegrini (2008a); Horta (1999); Fernandes
(1993).

54
Mesmo que para os habitantes de outras localidades essa capela e a praça que a Ensino de História e a
educação patrimonial
circunda não assumam qualquer importância, esse detalhe não anula seu valor como
patrimônio da cidade desenvolvida em torno dessa área, tampouco as doces lembran-
ças que povoam as reminiscências da população que lá cresceu e atingiu a vida adulta.
O fato de tal lugar integrar as histórias de vida da população residente, de ter sido
o cenário predileto de brincadeiras infantis e de festas, de ter abrigado os flertes da
juventude e acolhido apaixonados de diferentes gerações torna esse local um espaço
referencial, imerso em uma parte das memórias coletivas e individuais dos cidadãos
contemporâneos e seus antepassados.
Experiências expressivas foram vivenciadas no interior da capela ou na relva de
seus jardins. Nesse templo, gerações iniciaram-se nos rituais religiosos, receberam os
sacramentos. Alguns até se casaram nesse santuário. Provavelmente, as próximas ge-
rações darão continuidade às celebrações e atividades lúdicas que reconhecem como
parte de sua cultura. Modos de viver e formas de entender o mundo se entrelaçam
às lembranças do tempo pretérito e concorrem para a construção dessas identidades
culturais. Os espaços vivenciados e as sensações experimentadas trazem à tona, por
meio de recordações, bens culturais da comunidade e estimulam o sentido de perten-
cimento ao local.
As cores da cidade, seus sons e fragrâncias reavivam impressões, lembranças e re-
tentivas humanas. Conforme Michel Maffesoli, uma cidade não é composta somente
dos esboços da malha urbana, do delineamento das ruas e das edificações, suas ima-
gens se mesclam com as fantasias, os mistérios e as leituras que os habitantes fazem
dela. Sob essa ótica, a cidade é um ‘território’ construído ‘por sensações, aromas,
ruídos, lugares de encontros constitutivos dessa teatralidade cotidiana’ (1996, p. 277);
portanto, a memória da cidade é a memória de seus habitantes.
Mesmo que no futuro o estilo arquitetônico daquele templo desapareça ante a
imposição de projetos modernizadores, se aquela pequena igreja e seu entorno forem
preservados tornar-se-ão exemplares únicos de sociabilidades de tempos pretéritos,
constituirão um marco para a cidade e seus habitantes. Ao longo dos anos, o valor sim-
bólico do conjunto aumentará e agregará um significado histórico reconhecido como
um bem cultural singular de sua região, estado ou país.
Com efeito, a partir desse exemplo, desejamos destacar que a sensibilização da
comunidade (somada ao acesso à informação) constitui o fundamento do processo de
conhecimento do patrimônio, por isso o contato com dados referentes aos bens da
comunidade e com outros sítios torna-se vital para a construção de meios adequados
para a eficaz proteção de seus bens.

55
PATRIMÔNIO CULTURAL: Entendemos que a difusão da legislação que trata do assunto e a veiculação de
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE informações sobre as Cartas Patrimoniais que normatizam as ações no campo do patri-
mônio cultural e ambiental devam ser incluídas entre as atividades de ensino e apren-
dizagem, bastando para isso utilizarmos uma linguagem que dê conta de explicar as
entrelinhas das referidas Cartas, das leis federais, estaduais ou municipais. Tal estudo
é válido, uma vez que algumas cartas resultantes de convenções nacionais ou interna-
cionais sugerem recomendações salutares para a preservação de diversas tipologias
patrimoniais e, não raro, se traduzem em políticas públicas adotadas pelos Estados-
-membros da Unesco, como é o caso do Brasil.
O tombamento da cultura material, o registro dos bens intangíveis e as regras de
proteção dos parques nacionais e demais áreas reconhecidas como patrimônio natu-
ral, paisagístico ou arqueológico são itens a serem debatidos. Todos os cidadãos têm
o direito de saber que os processos de tombamento ou registro definidos, respectiva-
mente, pelos Decretos n. 25/1937 e n. 3551/2000, podem ser solicitados por qualquer
pessoa, desde que tais bens integrem a chamada ‘herança nacional comum’. Para isso,
é necessário efetuarmos uma proposta que contemple os seguintes itens:

1 - caracterizar o bem em questão, identificando o bem material (apontar o


endereço e local onde se encontra) ou descrevendo o bem imaterial (mediante
minucioso inventário histórico, cultural e social);

2 - destacar o nome do proprietário do bem (exceto quando se tratar de conjun-


to urbano, cidade, vila ou povoado);

3 - identificar o(s) grupo(s) que mantêm vivas as práticas de seus ancestrais;

4 - delimitar a área que se deseja tombar do conjunto urbano, sítio ou paisagem


natural;

5 - ressaltar na argumentação o valor histórico e excepcional de saberes, cele-


brações, festas ou rituais ainda inseridos nas práticas atuais das comunidades
de origem;

6 - relatar ‘o nome completo e endereço do proponente do tombamento ou


registro9.

Os encaminhamentos ora sugeridos constituem aspectos basilares para a organi-


zação de ‘inventários’ de bens que nossas próprias comunidades desejem tombar ou
registrar. Para tanto, cabe-nos salientar a importância histórica e os valores sociocul-
turais locais, e também destacar a relação entre a permanência dos elementos formais

9 Algumas dessas noções foram inspiradas na publicação de Tombamento e Participação Popular, uma
espécie de ‘cartilha’ produzida pelo Departamento do Patrimônio Histórico, do Município de São Paulo.
Ela encontra-se disponibilizada no site da Secretaria de Cultura do referido Estado.

56
e as tradições dos grupos que vivem na região onde se situa o bem referenciado. A Ensino de História e a
educação patrimonial
consistência da proposta de tombamento, devidamente documentada e encaminhada
ao poder público, será avaliada por especialistas, aos quais caberá deferir ou indeferir
a proposta.
Convém esclarecermos que o tombamento e o registro não são os únicos meios
legais pertinentes à proteção do patrimônio. Os próprios inventários configuram um
dos primeiros passos a serem dados para embasar e desencadear projetos de tom-
bamento ou registros de patrimônios coletivos. Além disso, os poderes municipais
podem criar leis específicas que estabeleçam incentivos à preservação e incluir nos
planos diretores das cidades meios efetivos para a salvaguarda de seu patrimônio,
integrando-o ao planejamento urbano ou ao calendário das efemérides citadinas.

Recursos didáticos

As Secretarias de Educação, Cultura e Turismo editam calendários de festas e even-


tos dos municípios. A leitura atenta desse tipo de documento, publicado em formato
de panfletos ou de matérias ilustrativas nos portais das prefeituras, pode constituir
um procedimento valioso para o mapeamento de ‘práticas tradicionais locais’ e para a
descoberta de ‘práticas inventadas’, cujo objetivo é o de atrair turistas para as cidades
de modo a gerar renda.

Fontes e referenciais para o aprofundamento temático

Ao efetuarem uma análise comparativa entre os Decretos n. 25/1937 e n. 3.55/2000,


disserte sobre a relevância da figura jurídica do tombamento no que tange à proteção
dos bens naturais e dos bens culturais materiais brasileiros.
Pesquise se existe na cidade ou na região onde você reside leis ou atos do poder
executivo que se ocupam de proteger e preservar bens patrimoniais naturais e cultu-
rais; na sequência, observe quais são os grupos sociais ou comunidades beneficiadas
por essa legislação.

57
PATRIMÔNIO CULTURAL:
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE
Anotações

58
5 Notas sobre os
‘Narradores de Javé’

Quando assistimos ao filme ‘Narradores de Javé’, de sobressalto deparamo-nos


com um enredo singular que nos propõe uma reflexão crítica sobre as construções
discursivas que envolvem as visões lineares de interpretação da história, além de nos
permitir debater os conceitos de memória, oralidade, bens culturais e os sentidos atri-
buídos às políticas preservacionistas, os critérios utilizados para se definir o que deve
ou não ser preservado.
As breves considerações que tecemos sobre essa obra do cinema nacional se devem
à perspicácia da diretora, do roteirista, dos atores e demais membros da equipe que in-
teragiram com os moradores de Gameleira da Lapa, onde essa produção foi realizada.
O grupo captou de maneira incomum as filigranas da ‘alma’ do nordestino e ao final
das gravações incentivou os gamelenses a se mobilizarem em torno da organização de
um projeto de reciclagem de lixo1 – aspecto que envolve outro olhar sobre as relações
do homem com o meio.
Ora, quando tratamos dos bens culturais imateriais, estamos lidando não apenas
com saberes, celebrações ou rituais, mas também com as formas do homem se conec-
tar ao lugar onde vive no tempo presente. Portanto, a análise de ‘Narradores de Javé’
se justifica porque a sua trama tangencia mazelas, desde longa data, enfrentadas por
historiadores, antropólogos e outros pesquisadores que atuam no campo do inventa-
riamento de bens patrimoniais tangíveis e intangíveis.
Essa produção cinematográfica (Figura 9), cujo gênero é definido ora como drama,
ora como comédia, não raro, é tomada pelo público como mero entretenimento. Mas
quando nos detemos na análise dos elementos compositivos do enredo, da fotografia,
da linguagem cênica e da sensibilidade expressa nos diálogos, detectamos a profundi-
dade do tema abordado e as múltiplas leituras que a obra nos permite. Particularmen-
te, interessa-nos apontar a visibilidade que esse filme para os sentidos de pertença que

1 Em 2001, durante as filmagens, os dois mil moradores foram incentivados pelos atores e produtores
a recolher e separar o lixo amontoado nas ruas, calçadas e quintais havia cerca de onze anos. Eles pas-
saram a exigir das autoridades providências para a coleta seletiva e reciclagem desse lixo. Cf. Relatos e
imagens disponíveis no site: <http://www.narradoresdejave.com.br>. Acesso em: dez. 2006.

59
PATRIMÔNIO CULTURAL: a comunidade da fictícia Javé atribui ao povoado, suas expressões culturais e mitos de
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE origem.

Figura 9: Imagem da Capa do Filme em DVD.


Fonte: Disponível em: <http://www.narradoresdejave.com.br>.
Acesso em: dez. 2006.

O longa-metragem lançado em 2003, sob a direção de Eliane Caffé, foi a público em


um momento muito profícuo, qual seja, no mesmo ano em que a Unesco proclamou a
‘Convenção do Patrimônio Imaterial’. Em 2003, os debates sobre o patrimônio cultural
intangível ganharam repercussão entre os especialistas e também na mídia. Aliás, a
questão do apontamento dos bens imateriais vinha sendo alvo de ponderações oficiais
no Brasil desde 1998, quando foi criado o Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial
(GTPI), a partir das disposições da Constituição de 1988 – conforme já abordamos.
Observamos, no tocante patrimônio cultural, que os órgãos públicos levaram quase
uma década para acionar instrumentos jurídicos capazes de atender às demandas con-
cernentes à Carta Magna do Brasil. A sua distinção como meio de ‘expressão’ e ‘modos
de criar, fazer e viver’ se tornou objeto do Decreto n. 3551, apenas no ano 2000. A
partir de então, assistimos à paulatina implementação dos Livros de Registro de Bens
Culturais Imateriais.
Diante disso, torna-se interessante retomarmos a abordagem do drama vivenciado
pelos moradores de Javé, quando este vilarejo se encontrava às vésperas de ser coberto
pelas águas do reservatório necessário para a construção de uma hidrelétrica – tida

60
como signo do progresso na região. A temática abordada não é excepcional, outras Notas sobre os
‘Narradores de Javé’
manifestações artísticas como músicas e filmes se inspiraram em situações similares,
como é o caso das usinas de Sobradinho (Bahia) ou de Itaipu (Paraná). Todavia, o que
chama a atenção são as formas utilizadas por Eliane Caffé e Luis Alberto de Abreu para
conduzir o roteiro e a narrativa cinematográfica2.
Segundo o enredo, na tentativa de evitar que o lugarejo desaparecesse, a comuni-
dade ‘javélica’ inicialmente se une em torno de um projeto comum: driblar as imposi-
ções da modernidade que ameaçavam o seu cotidiano. Para tanto, opta pela estratégia
de transformar o local em um núcleo histórico a ser reconhecido como patrimônio,
pois um deles já ouvira falar da existência de uma lei que ‘proibia’ a destruição dos
povoados elevados a essa categoria.
Tal tática foi sugerida por Zaqueu (interpretado por Nelson Xavier), personagem
que narra o ‘causo’ em seu novo estabelecimento comercial, instalado às margens da
represa que encobriu Javé. Na época que antecedeu a inundação, ele era o comercian-
te que estabelecia os elos entre Javé e o ponto mais próximo de abastecimento. Sua
atividade lhe conferia o contato com o ‘mundo’ exterior e o acesso à informação.
Zaqueu orquestrou a mobilização da comunidade e propôs que o único adulto
alfabetizado assumisse o encargo de ‘recolher depoimentos’, de modo a fundamentar
o ‘registro científico’ da história local. A transcrição das memórias dos moradores, sob
a ótica desse personagem, constituiria o argumento base do documento destinado a
salvaguardar o lugar e impedir o seu desaparecimento. Ao longo desse processo e em
meio a situações hilárias, os indivíduos começam a esboçar seus vínculos afetivos com
o lugar, bem como os seus valores culturais e religiosos.
O personagem Antônio Biá (Figura 10), representado pelo ator José Dumont, é im-
pelido a redigir a história de Javé, embora tivesse sido rechaçado por escrever inúme-
ras cartas relevando ‘acontecimentos’ que promoveram a maledicência e a discórdia
entre os cidadãos javelenses. Esse ‘mal feito’ fora um ardiloso recurso utilizado por ele
para aumentar o volume de cartas em circulação e evitar que a Agência de Correios
fechasse – o que lhe garantiria o emprego como carteiro. Daí a insistência de todos no
sentido de que ele se comprometesse a escrever uma história ‘científica’, não inventa-
da, como outrora o fizera.
Diante das circunstâncias, Biá assume a tarefa que lhe atribuíram e com muita
sagacidade procura ouvir as narrativas da população residente; entretanto, tende a

2 E. Caffé revela que as histórias de pessoas que viviam no interior de Minas Gerais e da Bahia foram
ouvidas por toda a equipe. O contato com esses depoimentos possibilitou a compreensão daquele
universo e foi decisivo na construção do enredo e dos diálogos. Cf. GERRA, R. Entrevistas. Exclusivo:
Eliane Caffé. Cineclick. Disponível em: <www.cineclick.com.br/entrevistas>. Acesso em: 14 out. 2006.

61
PATRIMÔNIO CULTURAL: ‘floreá-las’ com vistas a ampliar a carga poética da história e sua densidade dramática
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE e/ou cômica.

Figura 10: Imagem do personagem Antônio Biá - Personagem de José Dumont.


Fonte: Disponível em site: <http://www.narradoresdejave.com.br>. Acesso em: dez. 2006.

Na cena da Figura 10, Biá (personagem no centro da imagem) está colhendo de-
poimentos de dois irmãos e está cercado de outros habitantes de Javé que, simulta-
neamente, visam acompanhá-lo na busca da ‘verdade científica’ e, simultaneamente,
vigiá-lo de modo a garantir que não invente histórias mirabolantes.
Após muitos percalços, o personagem depara-se com um entrave que comprome-
teria seu o ofício de ‘pseudo-historiador’: chegam ao seu conhecimento cinco versões
sobre o mito fundador de Javé. As múltiplas memórias e os vestígios encontrados, to-
mados como documentos imprescindíveis ao que poderíamos definir como um ‘inven-
tário’ dos bens materiais e imateriais do povoado, acabam por inviabilizar a confecção
do ‘Livro da Salvação de Javé’.
Eis a chave da trama: situações tragicômicas apresentam variáveis que se alternam
de acordo com os entrevistados e dificultam a síntese dos ‘acontecimentos históricos’.
‘Indalécio’ e ‘Indaleô’, por exemplo, são identificados como os fundadores do luga-
rejo.
O(s) personagem(s) histórico(s) ora personificam um fidalgo que teria contestado
as imposições da Coroa portuguesa, ora representam minorias étnicas como os negros
quilombolas e outros excluídos da ‘história oficial’ como os próprios sertanejos.

62
Notas sobre os
‘Narradores de Javé’

Figura 11: Imagem do personagem Antônio Biá colhendo o relato de um


dos membros distante da família do fidalgo que teria fundado Javé.
Fonte: Disponível em: <http://www.narradoresdejave.com.br>. Acesso em: dez. 2006.

Sob o prisma de uma das mulheres ouvidas, a personagem nomeada ‘Mariadina’


teria salvado todos da morte e demarcado as fronteiras geográficas de Javé através de
um canto – uma tradição oral reconhecida pela população residente do lugarejo como
uma forma legitimar ou documentar aquilo que a sociedade tomada como civilizada
faz por meio de escrituras, do registro de terras ou da cartografia.
Na Figura 12, Mariadina aparece em primeiro plano e suas companheiras carregam
a bandeira que demarcaria o lugarejo.

Figura 12: Imagem de Mariadina - Atriz Luci Pereira.


Fonte: Disponível em: <http://www.narradoresdejave.com.br>. Acesso em: dez. 2006.

63
PATRIMÔNIO CULTURAL: A figura feminina aparece aqui fortemente armada e travestida com as indumen-
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE tárias comuns às cangaceiras; nesse caso, há alusão à mulher forte e lutadora tal qual
Maria Bonita, do bando de Lampião.
A despeito da comicidade e das artimanhas dos principais personagens que re-
presentam o ‘povo’ nordestino, nos depoimentos surgem imagens míticas, lendas,
cantos e formas de pensar a história que colocam em xeque os ‘velhos’ paradigmas da
disciplina. Os vestígios do passado não são reconhecidos apenas mediante documen-
tos textuais (praticamente inexistentes). Eles fazem aflorar embates sobre o que seria
‘digno’ de ser preservado como ‘memória histórica’ local.
A demarcação das fronteiras de Javé constitui outro exemplo significativo dos valo-
res que regiam as relações entre aquelas pessoas. A delimitação das terras, comum a
todas as versões, teria sido realizada por meio de um canto. Não havia um documento
escrito. A tradição oral é que legitimava a posse da terra, bem como a salvaguarda des-
se ‘espaço’ como ‘patrimônio histórico’.
O enredo do filme, sem dúvida, problematiza os métodos da escrita da história e da
oralidade, aponta pistas sobre os embates entre a ‘história oficial’ e as outras histórias
narradas por personagens que normalmente são privados de expor e preservar suas
reminiscências.
No entanto, entre uma bebedeira e outra, Biá, eleito com o historiador oficial da
história de Javé, pressente que o ‘registro científico’ da história local não seria suficien-
te para deter os rumos do ‘progresso’ e evitar a inundação.

A NARRATIVA HISTÓRIA E A LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA


A análise de ‘Narradores de Javé’ não se esgota nos aspectos ora salientados, no
entanto, do ponto de vista dessa reflexão, torna-se salutar observar como essa produ-
ção fílmica foi capaz de realizar uma avaliação crítica acerca da construção histórica do
passado e da preservação dos bens culturais considerados representativos das ‘identi-
dades’, cujos sentidos e significados foram atribuídos a uma comunidade imaginária.
Ao trazer à tona a percepção das contínuas disputas pelas memórias entre os sujei-
tos ou segmentos da sociedade, a obra evidencia o sentido de pertença que vincula os
personagens ao meio onde vivem. As referências ao mito de Indalêo surgem vigorosas
na narrativa cantada em dialeto africano pelo membro mais antigo do grupo. O bravo
quilombola teria conduzido seu ‘povo’ ao paraíso terrestre, onde havia fartura e a
integração lúdica com a água e a floresta. A oralidade é, pois, ratificada como prática
milenar, capaz de transmitir às gerações futuras as experiências vividas, tal como fa-
ziam os antigos sacerdotes ou curandeiros.
Essa produção não é a única a se ocupar da criatividade daqueles que não dese-
jam assistir inertes à aniquilação de seus valores socioculturais ou de seus lugares

64
de origem. Mas sua relevância se destaca pelo modo como o enredo é conduzido: a Notas sobre os
‘Narradores de Javé’
‘comunidade javélica’ nega-se a admitir a real possibilidade de assistir ao naufrágio de
seus referenciais e luta por suas tradições. Em outros termos, talvez o maior legado
deixado por esse filme para aqueles que estudam as questões da proteção do patrimô-
nio esteja centrado na percepção de que os próprios cidadãos têm de si mesmos e que
só há sentido na preservação daquilo que eles coletivamente reconhecem como valo-
res a serem transmitidos como herança cultural. Ademais, não podemos negligenciar
que a postura de alguns personagens evidencia que as culturas se transformam através
dos tempos e essa dinâmica é parte inerente das próprias culturas.
Podemos apreender esse aspecto na medida em que as falas de Biá e das crianças
mostram-se antenadas às ‘novidades’ e ‘modismos’ que de alguma forma chegam até
eles. Não ao acaso, Biá faz referências às ‘tartarugas ninjas’ e às figuras de desenhos
animados americanos, altamente consumidos nos cinemas e difundidos nos progra-
mas infantis apresentados na televisão brasileira. A astúcia com que tendem a absorver
essas informações e digeri-las de acordo com seus interesses constitui alvo de inquie-
tação entre os especialistas.
O desfecho do filme também não dissimula uma preocupação latente entre os estu-
diosos do patrimônio. Nas dramáticas cenas da inundação de Javé, efetuadas por meio
de tomadas intercaladas em planos abertos e fechados, observamos o destaque aos
personagens que se negavam a deixar seus lares e demais pertences, inclusive os restos
mortais de seus antepassados e entes queridos como filhos e sobrinhos enterrados no
cemitério do lugarejo.
Em uma das passagens mais emocionantes do filme, a senhora de idade avançada
apresentada na Figura 13, uma das moradoras locais da imaginária Javé, indaga: ‘Como
os nossos mortos vão viver debaixo d’ água?’

Figura 13: Uma senhora da comunidade de Gameleira da Lapa que atuam no filme.
Fonte: Disponível em: <http://www.narradoresdejave.com.br>. Acesso em: dez. 2006.
65
PATRIMÔNIO CULTURAL: O foco dessa imagem (Figura 13) representa conceitos singulares à problemática da
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE salvaguarda dos bens imateriais, que ratificam os laços da população ‘javélica’ com a
terra onde criaram seus filhos e constituíram família – o que, em outros termos, indica
que os problemas vivenciados por eles não se circunscrevem ao campo socioeconô-
mico. As redes de sociabilidade e os elos afetivos entre as pessoas (amigos, vizinhos e
familiares) e entre eles e o meio ecoam nos monólogos, nos diálogos e transbordam
nas lágrimas dos personagens representados por atores ou coadjuvantes residentes na
locação, Gameleira da Lapa.
Outro aspecto que devemos ressaltar diz respeito à leitura que os responsáveis
pelo filme efetuam sobre a concepção de patrimônio imaterial que embasa as polí-
ticas públicas preservacionistas no Brasil. Quando o reservatório vai se formando e
encobrindo o campanário da igreja, resignados, os moradores ficam atônitos diante da
imagem da água cobrindo o campanário da igreja de Javé (Figura 14).

Figura 14: Imagem do sino da Igreja de Javé.


Fonte: Disponível em: <http://www.narradoresdejave.com.br>. Acesso em: dez. 2006.

Na sequência, os moradores se esforçam para resgatar o sino, que é retirado das


águas e carregado em carro de boi (recorrente nas narrativas sobre a chegada dos
fundadores). Tomado como relíquia a ser preservada, esse artefato do passado confi-
gura-se como um marco do recomeço da vida em outro lugar.
O sino constitui-se em um elemento representativo para a ‘comunidade javélica’:
a sua sonoridade marcava o horário das missas, sinalizava a chegada de forasteiros,
anunciava os nascimentos e mortes, momentos de alegria ou tristeza. O hábito de to-
car o sino não se restringia às funções rituais, o instrumento era utilizado como meio

66
de difusão de informações importantes no dia a dia do povoado. Notas sobre os
‘Narradores de Javé’
Sabemos que o referido instrumento sonoro de origem oriental se transformou em
um signo da cristandade e que funcionava como marcador do tempo. Le Goff (1984)
assevera que, nos séculos VI e VII, a sonoridade das badaladas soadas nos campanários
das igrejas ou nas torres dos mosteiros se impunha como um meio de normatizar e
regrar não apenas a vida dos homens da Igreja, mas também da sociedade em geral.
Lembramos que os sinos, incorporados ao cotidiano dos cristãos europeus, aportaram
na América portuguesa juntamente com os representantes da Igreja que para cá se
deslocaram.
Como ressaltou Fábio César Montanheiro (2007, p. 1-2): ‘D. Pedro Sardinha, pri-
meiro bispo do Brasil, assumiu sua diocese de Salvador’ (1552) e trouxe consigo ‘or-
namentos, peças de prata e outras alfaias do serviço da igreja e sinos’. É oportuno
retomarmos nesse momento o fato de que ‘O toque dos Sinos em Minas Gerais’ e
o ‘Ofício de Sineiro’ foram registrados como bens imateriais pelo IPHAN no ano de
20093. Aliás, consta no portal do Instituto:

O Toque dos Sinos em Minas Gerais constitui forma de expressão que associa
os sinos, o espaço onde estão instalados – as torres, os sineiros e a comunidade
que os ouve em um processo de codificação e decodificação de mensagens
há muito tempo transmitidas nas cidades de Minas Gerais. Essa forma de ex-
pressão, que associa a estrutura dos toques à ocasião religiosa em que devem
ser tocados, contribui para o agenciamento de formas de sociabilidade, origi-
nalmente, relacionados à vida religiosa daquelas comunidades, mas que, hoje,
ultrapassa essa dimensão, abrangendo sentidos e significados relacionados à
sua identidade cultural4.

Retomando as reflexões sobre ‘Narradores de Javé’, cumpre-nos salientar que seu


enredo e sua narrativa nos fazem pensar criticamente na construção do discurso his-
tórico materializado em bens culturais. Mais do que isso, nos chama a atenção para a
existência de distintos referenciais simultaneamente tangíveis e intangíveis presentes
em memórias individuais e coletivas, expressivos do ponto de vista dos sentidos a eles
atribuídos.
Aliás, essa produção nos leva a indagar por que o reconhecimento mais amplo da
cultura popular tornou imperiosa a distinção entre os bens patrimoniais e a criação da
categoria ‘intangível’ para nomear as tipologias que não se enquadravam na ‘definição

3 Mais informações sobre os bens imateriais reconhecidos pelo Iphan estão disponíveis no site http://
portal do iphan.gov.br.
4 As cidades de Minas Gerais referidas são: Ouro Preto, Mariana, São João Del Rei, Catas Altas, Con-
gonhas do Campo, Diamantina, Sabará, Serro e Tiradentes. Cf. PORTAL DO IPHAN. Disponível em:
<http://portal do iphan.gov.br>. Acesso em: fev. 2011.

67
PATRIMÔNIO CULTURAL: convencional’ circunscrita aos núcleos urbanos, edifícios, monumentos, artefatos, etc.
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE Talvez, uma das respostas cabíveis a tais indagações esteja articulada às próprias pos-
turas assumidas pela Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a
Cultura/Unesco que privilegiou a preservação da cultura material desde que passou a
se ocupar desse assunto, após o fim da II Guerra Mundial, como assinalamos.
Sabemos também que:

1. A Unesco só se sensibilizou em relação aos bens intangíveis pela insistente


reivindicação de alguns países no sentido do reconhecimento de tradições que
não se identificavam com os valores culturais ocidentais;

2. As autoridades políticas e os especialistas internacionais precisaram de um


tempo relativamente grande, ou seja, cerca de 30 anos, para ouvirem os cla-
mores dos porta-vozes das culturas tradicionais populares para encontrarem
efetivas soluções para a proteção e valorização da tão decantada pluralidade
cultural da humanidade5.

Essa interpretação relativa às posturas da Unesco nos permite indagar também se


é possível preservar os bens intangíveis sem salvaguardar a materialidade impregnada
nas celebrações, saberes de ofício, modos de fazer beberagens, lugares tidos como
sagrados ou pontos de encontro e sociabilidades. Por certo que não, mas o essencial é
percebermos que a proteção de tais bens pressupõe o trânsito entre essas duas catego-
rias: o ‘tangível’ e o ‘intangível’, e ainda implica reunirmos condições necessárias para
a transmissão dos conhecimentos de uma geração para a outra.
Como bem atesta José Reginaldo Santos Gonçalves:

O material e o imaterial aparecem de modo indistinto nos limites dessa catego-


ria. A noção de patrimônio cultural [...], enquanto categoria do entendimento
humano, na verdade rematerializa a noção de ‘cultura’ que, no século XX, em
suas formulações antropológicas, foi desmaterializada em favor de noções mais
abstratas, tais como estrutura, estrutura social, sistema simbólico, etc. (GON-
ÇALVES, 2007, p. 218).

Essa ampliação do conceito de cultura talvez explique porque as Cartas Patrimo-


niais da Unesco e do Icomos, nas décadas finais do século XX, passaram a recomendar
a indispensabilidade da catalogação de manifestações típicas da população dispersa
em várias regiões do planeta6.

5 Uma análise aprofundada sobre esse assunto pode ser encontrada no livro O que é patrimônio cultu-
ral imaterial (PELEGRINI; FUNARI, 2008).
6 Cabe-nos pontuar que na primeira década do século XXI, as maiores demandas de reconhecimento
do patrimônio imaterial são encaminhadas por países da América Latina e do Caribe, da África, dos
Estados Árabes, Ásia e do Pacífico (PELEGRINI; FUNARI, 2008, p. 57).

68
Diante dos argumentos ora arrolados, cumpre-nos ainda inferir sobre o que te- Notas sobre os
‘Narradores de Javé’
ria motivado a morosidade na oficialização da ‘Convenção do Patrimônio Imaterial’
(2003), pela Unesco. Difícil apresentar hipóteses cabais para isto, no entanto, alguns
dados podem nos auxiliar a pensar sobre ela.
No Brasil, as publicações de Mário de Andrade e Luis Camera Cascudo, nas décadas
de 1920 e 1930, já explicitavam preocupações com o levantamento e a definição das
manifestações da cultura popular. Aos esforços do Grupo de Trabalho Patrimônio Ima-
terial (GTPI), instituído em 1998 pelo Ministério da Cultura, somaram-se as atividades
desenvolvidas pelo Centro Nacional de Referência Cultural (incorporado ao IPHAN em
1973) e pela Fundação Pró-Memória (extinta em 1990).
Entre os objetivos do GTPI, destacavam-se:

1. A formulação de estratégias para a proteção dos bens culturais intangíveis


e a promoção de discussões para fundamentar a minuta do decreto presiden-
cial que criou o Registro de Bens de Natureza Imaterial como instrumento de
acautelamento;

2. A instituição do Programa Nacional de Identificação e Referenciamento de


Bens Culturais de Natureza Imaterial.

Por seu turno, como já pontuamos, a Constituição de 1988 oferecia garantias ao


‘pleno exercício dos direitos culturais’ e ao ‘acesso às fontes da cultura nacional’, além
de admitir a contribuição dos indígenas e negros na formação da ‘nação’ brasileira (cf.
os Artigos 215 e 216, já mencionados). A implantação do Decreto n. 3551/2000 ofi-
cializou a salvaguarda dos bens imateriais, que passou a ser efetuada oficialmente em
quatro livros: dos Saberes; das Formas de Expressão; das Celebrações e dos Lugares,
como referimos. A sociedade brasileira e seus respectivos especialistas parecem enfim
ter admitido o inevitável: a riqueza da diversidade da nossa cultura. As antigas teorias
raciais depreciativas e as preocupações com a ‘inautenticidade’ da cultura brasileira,
resultante do que era considerado ‘um largo trabalho de imitação das ideias e costu-
mes estrangeiros’, comum entre intelectuais no século XIX, cederia lugar, em mea-
dos do século XX, para a ‘construção do mito da democracia racial’. O Estado Novo
de Getúlio Vargas se esforçaria para ‘estabelecer a síntese da nacionalidade brasileira’
(GONTIGO, 2003, p. 56-57).
Assim, inferimos que, segundo a concepção estado-novista, cabia constatar o que
era ‘intrínseco’ ao homem brasileiro a sua ‘natural’ desigualdade sociocultural. Sob
esse prisma, o Estado Nacional devia minimizá-la reforçando os traços culturais posi-
tivos de um ‘povo’ concebido como uma ‘raça de mestiços’, dotada de traços morais,
políticos e sociais, de maneira a não abalar os pilares da ‘construção da nação’. Tal

69
PATRIMÔNIO CULTURAL: façanha se faria por meio de símbolos e bens patrimoniais considerados representati-
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE vos da história do país.
Por certo, as alusões às inquietudes afloradas nas posturas dos personagens de
‘Narradores de Javé’ aguçaram nossa sensibilidade e motivaram o encerramento dessa
exposição de motivos com reflexões nunca acabadas, mas que são sempre acrescidas
quando direcionamos nosso olhar aos relatos sobre as trajetórias dos maiores interes-
sados na preservação de seus bens patrimoniais, quais sejam, os homens e mulheres
que se reconhecem entre si, partilham identidades e exercitam práticas culturais co-
letivas.

Recursos didáticos

O filme ‘Narradores de Javé’ constitui um interessante instrumento para a com-


preensão das balizas que envolvem a construção das histórias oficiais e das memórias
individuais e coletivas da população de uma dada localidade. Por meio da observação
dos personagens enredados em situações hilárias, do elenco, dos roteiristas e dos
diretores, podemos perceber as sutilezas que envolvem as reminiscências sociais e
individuais no processo de reconhecimento do sentido de pertença entre os membros
de comunidades com traços distintivos, mas igualmente formadores das identidades
culturais brasileiras.

Fontes e referenciais para o aprofundamento temático

Faça uma breve pesquisa na internet sobre o enredo de filmes que tratam da ques-
tão da preservação das memórias e histórias de Sete Quedas (Guaíra/ Paraná), entre
outros locais que sucumbiram frentes aos avanços do progresso e da necessidade de
se criar fontes de energia por meio de hidroelétricas.

70
6 A Celebração em
tributo ao Divino
Espírito Santo
(São Luiz do Paraitinga/
São Paulo)

As celebrações em louvor ao Divino Espírito Santo1 evidenciam vínculos com o


catolicismo lusitano, mas apresentam atributos peculiares que transitam nas frontei-
ras do sagrado e do profano, comuns a outras festas populares reconhecidas como
bens patrimoniais imateriais. A análise de meticulosos afazeres coletivos expressos na
cultura e na religiosidade popular implica a percepção das peculiaridades desse ritual
e dos embates entre sujeitos sociais que dela participam. Embora seja realizada em
diversas regiões do Brasil, destacamos, neste capítulo, as particularidades dos festejos
realizados em São Luiz do Paraitinga (Figura 15), considerando que se configura como
uma das manifestações da cultura popular mais tradicionais dessa cidade paulista que
cresceu cercada pelas montanhas da Serra do Mar do Litoral Norte de São Paulo, situa-
da no cone leste do estado.
Na Figura 15, notamos as montanhas da Serra do Mar que cercam a cidade e algu-
mas de suas características urbanísticas, ou seja, ladeiras e ruas estreitas com calçamen-
to, o casario e os campanários um dos muitos templos que a urbe abriga.
Os tributos ao Espírito Santo no Brasil datam oficialmente do século XIX, e ao
longo de mais de duzentos anos, quase sempre foram realizados no mês de maio,
cinquenta dias após a Páscoa Cristã, ora dependendo do calendário litúrgico católico,
ora de acordo com o calendário agrícola da região. As homenagens ultrapassaram as
fronteiras culturais e territoriais do catolicismo português e adquiriram singularidades
relacionadas à história dos lugares onde se realizam e se transformam, descartando ou
incorporando novos elementos lúdicos e sujeitos sociais. Essas razões já indicam a re-
levância do estudo sobre a Festa do Divino, registrada como um bem cultural luizense

1 Parte deste texto foi originalmente publicado na revista: Patrimônio e Memória, Unesp, v. 7, p. 231-
256, 2011.

71
PATRIMÔNIO CULTURAL: pelo poder executivo municipal em 20022, no entanto, os embates pela memória e as
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE lutas pelo poder que a envolvem merecem particular atenção.

Figura 15: Vista de São Luiz do Paraitinga.


Fonte: Disponível em: <http://www.saoluizdoparaitinga.sp.gov.br>.

Dos primeiros tempos aos atuais, os tributos ao Divino têm se tornado terrenos fér-
teis para a materialização de laços de pertença entre os grupos sociais que dela parti-
cipam, propiciando uma atmosfera promissora para fazer aflorar e, depois, consolidar,
vínculos identitários em meio a uma diversidade considerável de crenças, costumes
e etnias. Esses traços da celebração realizada em São Luiz do Paraitinga podem ser
observados em outras festas realizadas em Cunha (São Paulo), Paraty (Rio de Janeiro),
Pirenópolis e Goiás Velha (Estado de Goiás), Jaraguá (Bairro de Goiânia), Diamantina
e Serro (Estado de Minas Gerais), Vale do Guaporé (Estado de Rondônia), interior do
Mato Grosso, entre outras cidades do interior do Brasil.
Em todas as celebrações, independente do lugar onde são realizadas, notamos a
ocorrência de rivalidades entre as autoridades provinciais e as eclesiásticas, entre estas
e os grandes proprietários, somadas às estratégias utilizadas pelos segmentos sociais

2 São Luiz do Paraitinga é um centro núcleo histórico tombado em 1984 pelo Conselho de Defesa do
Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico, do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT) e
reconhecido como patrimônio brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN), em 2010. A Festa do Divino foi reconhecida pelos poderes municipais no Artigo segundo da
Lei Complementar no 1044, de 13 de novembro de 2002.

72
menos abastados para conservarem suas práticas culturais e religiosas, e que consti- A Celebração em
tributo ao Divino
tuem aspectos significativos a serem investigados, pois estão diretamente relacionados Espírito Santo
(São Luiz do Paraitinga/
à dinâmica da festa e da cidade. São Paulo)

Isto posto, optamos por uma abordagem que prime por historiciar as práticas so-
cioculturais presentes nesses rituais e por uma interpretação que não tenda a espal-
mar as negociações entre sujeitos sociais com interesses distintos, mas, por vezes,
até convergentes. Possivelmente, à luz dos conceitos de ‘hibridismo’ e de ‘fronteiras
culturais’, essa proposição se torne exequível.
Assim sendo, cabe-nos lembrar que Nestor Canclini, em sua apreciação sobre as
culturas hídridas, ratifica a postura de que os cruzamentos culturais ‘incluem uma
reestruturação radical dos vínculos entre o tradicional e o moderno, o popular e o
culto, o local e o estrangeiro’ (2006, p. 241). Assinala que pensar a hibridação como
um processo sociocultural permite a compreensão de ‘estruturas ou práticas discretas,
que existiam de forma separada’, mas podem se ajustar ‘para gerar outras estruturas,
objetos ou práticas’ (2006, p. xix). Já Stuart Hall, ao referir-se ao conceito de hibrida-
ção, também o concebe como um processo, porém como um ‘processo’ de ‘tradução
cultural [...] agonístico’ (2003, p. 74), e sempre incompleto, no qual as identidades se
encontram em transição e suspensas à espera de barganhas estabelecidas em campos
de disputa pelo poder, nos quais são concebidos outros sentidos aos encontros e às
práticas culturais.
A assertivas de ambos se mostram pertinentes à análise da Festa do Divino, pois, de
pronto, constatamos as suas origens no catolicismo europeu e uma espécie de releitu-
ra daquele formalmente instituído pela Igreja Católica Romana é trazida pelos portu-
gueses ao Brasil, onde é reestruturada mediante negociações entre os sujeitos sociais
que aqui passaram a viver. Mas, antes de referendarmos a positividade do conceito de
hibridação, fundamentados na ideia das trocas culturais, destacamos que esses encon-
tros, do ponto de vista de Peter Burke (2003), apresentam as ambiguidades das mistu-
ras e a complexidade dos traços que se mesclam. Nesse caso, eles não só determinaram
as continuidades da tradição e produziram o enriquecimento dos rituais, mas, também
envolveram perdas e exclusões.
Se assim for, as identidades culturais, presentes nos ritos em honra do Divino Espí-
rito Santo, não se restringem ao catolicismo instituído ou do popular, mas espraia-se
por meio da mobilidade das fronteiras culturais permeáveis a outras formas de mani-
festação da religiosidade, nas quais prevalecem a esperança no porvir.
Nos limites de uma pesquisa em andamento, não temos a pretensão de elencar
a vasta produção acadêmica sobre a festa do Divino, tampouco subtrair a sua signifi-
cativa contribuição àqueles que se debruçam sobre o tema. Porém, entendemos que

73
PATRIMÔNIO CULTURAL: seja necessário enfrentar os paradoxos das práticas coletivas de devoção, de forma a
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE aprofundar os estudos referentes ao patrimônio imaterial. Como não se trata de uma
tarefa fácil, talvez seja mais prudente enveredarmos por um breve histórico de São
Luiz do Paraitinga, capaz de oferecer visibilidade às comunidades devotas do Divino,
observando como se dão as relações de dádiva e contradádiva no universo mítico;
procurarmos apreender os sentidos atribuídos pelos fiéis às experiências vivenciadas
nos rituais religiosos que surgem dos anseios presentes no mais íntimo de suas almas
e da tradição que alimenta o prazer de celebrar a vida.

A CIDADE CRESCE ENTRE REZAS E LABORES


Muito antes de ser elevada à condição de cidade, o acanhado lugarejo serrano,
São Luiz do Paraitinga era, no século XVIII, um dos recantos onde a população ren-
dia homenagens ao Espírito Santo. Era comum entre as famílias lusitanas cada qual
possuir o seu padroeiro, quando adquiriam terras no Brasil, transportavam ima-
gens de sua devoção e as instalavam em altares portáteis, denominados oratórios.
Assim que se fixavam, erguiam pequenas capelas e as nomeavam em honra do seu
santo protetor (TIRAPELI, 2005, p. 17-19); desse modo, foram surgindo as igrejas,
inclusive aquela que viria a ser a matriz São Luiz de Tolosa do Centro Histórico de
Paraitinga (Figura 16), onde atualmente se concentram os devotos que participam
da Festa do Divino.

Figura 16: Mapa Ilustrado de São Luiz de Paraitinga (s/dados da autoria).


Fonte: Disponível em: <http://www.saoluizdoparaitingasp.com.br>. Acesso em: jul. 2014.

74
Construir templos católicos e ofertar seus respectivos terrenos aos membros do A Celebração em
tributo ao Divino
clero consistia um acordo tácito entre eles, os latifundiários e os comerciantes. Atitu- Espírito Santo
(São Luiz do Paraitinga/
des como essas eram bem vantajosas: criavam-se as condições para atrair moradores São Paulo)

e, consequemente, reunir maior número de fiéis e de trabalhadores com ofício diver-


sificado – vetores que, por sua vez, contribuíam para a formação dos povoados na
circunvizinhança das igrejas.
Como assinala Tirapeli:

Detrás do ato piedoso, há a busca de fins lucrativos com a venda de terras ao


redor do patrimônio, reservando o fazendeiro para si e sua família os melhores
lotes. À parte o lucro com as terras, sendo o pároco ligado às famílias, promove-
-se um entendimento entre o clero e os comerciantes (2005, p. 18).

Conforme acordado entre os padres, os comerciantes e os fazendeiros, elegiam-se


as melhores datas para a realização de festanças, inclusive os casamentos e os batiza-
dos. Nesses dias, aqueles que assim o desejassem poderiam comemorar e efetuar suas
compras. No Vale do Paraíba, bem como em outras regiões da Colônia, ao ‘fazendeiro
benfeitor’ que doava as terras e edificava as capelas era facultado o direito de ser sepul-
tado no interior da igreja ou em seu entorno, prerrogativa que reforçava o seu prestí-
gio social e afiançava o descanso eterno para os seus espíritos. Afinal, o campo santo
tornava-se ainda mais sagrado em um espaço imaculado e ainda demarcava muito bem
as fronteiras sociais e territoriais ocupadas pelos segmentos dominantes.
Certamente, os fidalgos da Coroa portuguesa gozavam de tal privilégio, em especial
aqueles considerados responsáveis por povoados prósperos ou pela fundação de cida-
des. Aliás, no que diz respeito a São Luiz do Paraitinga, alguns estudiosos sustentam
que o local teria se tornado povoado em 1769, outros afirmam que nessa data teria
sido reconhecido como cidade3. Mas consta dos documentos da Prefeitura Municipal
que o local teria se transformado em vila nos primeiros meses de 1773, com o apoio
do governador, capitão-general D. Luís Antonio de Souza Botelho Mourão e, posterior-
mente, elevada à condição de cidade em 1857.4

3 Há certa controvérsia em relação à data de fundação da São Luís do Paraitinga. Segundo os docu-
mentos consultados no Condephaat, o povoado teria sido fundado oficialmente em 1769, no governo
de Luís Antônio de Souza Botelho Mourão. Entretanto, consta do website da Prefeitura Municipal de
Paraitinga que na referida data o povoado teria se formado oficialmente, tornando-se cidade apenas em
1.857. Cf. website oficial da Prefeitura Municipal de Paraitinga. Disponível em: <http://www.saoluizdo-
paraitinga.sp.gov.br>. Acesso em: jul. 2010.
4 Cf. Lei Provincial de 30 de abril de 1.857. Dicionário Geográfico da Província de São Paulo. São Paulo:
Espíndola, 1901.

75
PATRIMÔNIO CULTURAL: A despeito dessa anódina celeuma5, interessa-nos palmilhar dados indicativos que
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE possibilitem a compreensão de como se formaram as comunidades que organizavam
as festividades religiosas em honra do Divino na região do Vale do Paraíba. Sabemos
que, inicialmente, as margens mais estreitas do Rio Paraitinga serviram de entreposto
aos tropeiros e bandeirantes – homens dispostos a capturar indígenas e a encontrar
ouro, prata e pedras preciosas nos rincões da Província de São Paulo. A propósito, os
locais de pouso ou das paradas destinadas ao registro, pedágio e fiscalização de merca-
dorias, locados nas grandes propriedades determinaram a maior parte da fundação das
vilas6. Se elas fossem serpenteadas por rios, como ocorria em São Luiz do Paraitinga,
maiores seriam as suas chances de se tornarem núcleos populacionais, uma vez que
favoreciam o comércio fluvial, o transporte e o deslocamento de pessoas ou simples-
mente figuravam como pontos adequados à travessia.
Nos primeiros tempos, a agricultura de subsistência (feijão, mandioca, milho e cana
de açúcar) e a expansão das lavouras de algodão e café propiciaram um momentâneo
desenvolvimento ao lugarejo que, anos mais tarde, voltaria efetivamente a crescer em
função da economia cafeeira. Aos poucos, São Luís do Paraitinga, além de produzir cer-
ta variedade de gêneros agrícolas, tornou-se um centro de abastecimento das tropas
que transportavam o café do Vale do Paraíba para o litoral.
A riqueza das famílias da região perdurou por poucas décadas. Na passagem do
século XIX para o XX, ‘a economia do município caracterizava-se muito mais pela pro-
dução de gêneros alimentícios básicos [...], do que como produtora concorrente de
café no Vale’ (LOPES, 2007, p. 126). A decadência econômica não tardou, ela

[...] se consolidou definitivamente a partir dos anos 20 do século XX, com o


deslocamento da produção de café para a região Oeste do Estado de São Paulo
e o esgotamento do solo, em virtude da forma predatória de cultivo emprega-
da. As grandes fazendas de monocultura e escravistas fragmentaram-se, em um
primeiro momento devido ao sistema da herança divisível; depois foram os
próprios herdeiros que se incumbiram de negociar a sua parte (Lopes, 2007,
p. 126)...

A partir das décadas de 1930-1940, o valor dessas terras baixou e acabou atraindo
interessados do sul de Minas Gerais, que introduziram as atividades pecuárias e man-
tiveram a tradição de erguer igrejas. Em 1950, iniciou-se a obra da Capela Santa Cruz,

5 Consta dos documentos oficiais da prefeitura de São Luiz do Paraitinga que o Capitão Vieira da
Cunha e João Sobrinho de Moraes manifestaram interesse em ‘povoar a região dos sertões da Paraitinga
e, por isso, receberam do Capitão de Taubaté, Felipe Carneiro de Alcaçouva e Souza as primeiras sesma-
rias da então Vila de Guaratinguetá’.
6 A esse respeito, consultar o artigo No cinquentenário de morte de monsenhor Claro Monteiro, do Pe.
H. A. Viotti, publicado na Revista Arquivo Municipal, São Paulo, v. 14, p. 41-43, Tirapeli, 2005, p. 16.

76
agregadora de famílias devotas dos Santos Reis Magos e da Santa Cruz (LOPES, 2007, A Celebração em
tributo ao Divino
p. 126-127). Espírito Santo
(São Luiz do Paraitinga/
Certo é que, desde o início, as paragens no entorno do Rio Paraitinga prosperavam São Paulo)

com a edificação das capelas, as quais, por sua vez, catalisavam as festas religiosas
sempre patrocinadas pelos benfeitores – aspecto que a princípio estaria em consonân-
cia com a hipótese inicialmente levantada nesta reflexão, pois explicaria a estrutura
organizacional, os choques de interesses e a constituição de hierarquias entre os par-
ticipantes das festas. A distinção entre os saberes sagrados, os afazeres prosaicos e a
condição socioeconômica dos fiéis constituem uma das características das festividades
sacralizadas desde os tempos da colônia, costume que se manteve inclusive nas home-
nagens ao Divino, em São Luiz do Paraitinga.
Essa pista torna relevante a observação atenta dos sentidos atribuídos pelos sectá-
rios das celebrações em tributo ao Santo Espírito e sugere que as formas de organiza-
ção da festa e sua estrutura protocolar possam colocar em evidência algumas práticas
diretamente articuladas aos valores socioculturais e às fronteiras simbólicas do poder
presentes na sociedade brasileira.
Se, entre o final do século XVIII e início do XIX, esses rituais apresentavam traços
significativos do catolicismo lusitano, aos poucos adquiriram características próprias
de uma releitura resultante do hibridismo cultural e religioso entre os colonizadores
portugueses, os africanos, os indígenas e seus descendentes nascidos no Brasil. De
todo modo, no período da festa em Paraitinga, intensificavam-se as interações entre os
fiéis brancos e os senhores devotos, e entre os escravos e os pobres livres; todos apa-
rentemente se uniam no anseio de agradecer às bênçãos recebidas, renovar seus votos
e cumprir penitências. Porém, enquanto uns penhoravam a sua gratidão ao Divino ou
aos santos que representavam o êxito das colheitas e clamavam a Ele que ‘evitasse as
intempéries, granizo, geadas e até mau olhado’ (ARAÚJO, 1949, p. 81), outros louva-
vam aos negros bem-aventurados como São Benedito e Nossa Senhora do Rosário,
rogando-lhes proteção no seu dia a dia e, quiçá, a sua liberdade.
Nessa linha interpretativa, torna-se relevante observar os protocolos da Folia do
Divino e apreender como se dão as relações de dádiva e contradádiva nessa circuns-
tância.

OS CERIMONIAIS EM TRIBUTO AO SANTO ESPÍRITO


No século XIX, as datas de realização da Festa do Divino Espírito Santo em São
Luiz do Paraitinga coincidiam com o período da semeadura de grãos e de poucas
chuvas – um clima propício à efetivação de comemorações ao ar livre que incluíam a

77
PATRIMÔNIO CULTURAL: ritualização de crenças, a comensalidade7 e as manifestações de fé de toda a gente.
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE No entanto, essa conformação alterou-se com o passar das últimas vinte décadas, me-
diante as transformações atinentes aos ciclos econômicos, ao manejo inadequado do
solo e da ocupação das várzeas do Rio Paraitinga – aspectos que elucidam os relatos de
viajantes e as correspondências de padres comentando os alagamentos da parte baixa
da cidade, como, por exemplo, o ocorrido em dezembro de 18638.
Dos preparativos à sua concretização, os festejos incluíam uma série de protoco-
los a serem seguidos no decorrer do ano, com o objetivo de que transcorressem da
melhor forma as procissões e rezas do terço, entremeadas por cavalhadas, rodas de
jongo, congadas, moçambiques, dança das fitas, paus-de-sebo e cantorias. Entre um
labor e outro do cotidiano, várias pessoas se ocupavam dos afazeres do folguedo, das
atividades prosaicas às mais sacralizadas.
As comemorações em honra do Divino normalmente se iniciavam, como afirma-
mos, no dia de Pentecostes: referência ao quinquagésimo dia depois do sábado da
semana da Páscoa cristã. Acreditam os fiéis que ‘de repente, veio do céu um som, como
de um vento impetuoso, e encheu toda a casa’ onde estavam os apóstolos de Cristo.
‘E apareceram, distribuídas entre eles, línguas, como de fogo, e pousou sobre cada
um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e passaram a falar em outras línguas,
segundo o Espírito lhes concedia que falassem’.
Essa manifestação de Deus, narrada no Ato dos Apóstolos,9 referenda o poder fan-
tástico manifesto por meio do controle sobre elementos da natureza (o vento e o fogo)
e delimita as fronteiras imaginárias e territoriais da força transformadora de Deus sobre
os homens, bem como a necessidade de que eles se submetessem aos seus desígnios.
A alusão ao fato de que os discípulos de Cristo teriam ficado repletos do Santo Es-
pírito e, nessa circunstância, passaram a se expressar em diversos idiomas, materializa
a fé Naquele que tudo pode. O simbolismo do milagre fundamenta, do ponto de vista
dos fiéis, o sentido da celebração, motivada tanto pelo reconhecimento das supos-
tas bênçãos alcançadas quanto pela expectativa do atendimento de novas promessas.

7 A comensalidade diz respeito ao consumo de alimentos e bebidas típicas, associadas a práticas de


devoção efetuadas em datas especiais, quando são organizadas mesas fartas, oferecidas aos familiares e
amigos (GONÇALVES, 2002).
8 Cabe lembrar, portanto, que as enchentes em São Luiz do Paraitinga são mais frequentes do que o
poder público admite quando tenta explicar a falta de infraestrutura capaz de proteger os edifícios tom-
bados do centro histórico, inclusive o da Igreja Matriz São Luiz de Tolosa, nos primeiros dias de janeiro
de 2010. Cf. inúmeras matérias jornalísticas publicadas pela mídia nacional e internacional (Folha de S.
Paulo; Veja; Isto é; Le Mond).
9 Cf. Atos dos Apóstolos, Capítulo 2, versículo 1. Em Êxodos, consta que Pentecostes era denominado
também ‘Festa da Colheita’, porque em Israel, na mesma época, eram recolhidos os primeiros frutos da
colheita de grãos. Bíblia de Estudo de Genebra (1999, p. 1272).

78
Ambos os sentimentos justificam o dever de render periodicamente gratidão ao Divi- A Celebração em
tributo ao Divino
no; para tanto, os fiéis se organizam em grupos. Espírito Santo
(São Luiz do Paraitinga/
Um deles é o de foliões, constituídos basicamente de seis figuras principais, mas São Paulo)

esse número de pessoas pode variar de um ano para o outro ou de acordo com a
região onde se realiza. Em Paraitinga, o ‘alferes’ sai à frente, sendo incumbido do
translado da bandeira, posto de prestígio, comumente assumido pelo ‘festeiro’ ou
‘imperador’, ou seja, pelo organizador administrativo da festa; na sequência, seguem
quatro músicos, dois tocadores de viola (mestre e contramestre), um percurcionista
de caixa (contralto) e outro de triângulo (tipi); por fim, vai o ‘cargueiro’, responsável
por angariar as ‘prendas’ doadas pelas comunidades.10
Os seis integrantes, ao visitarem as residências, cumprem um protocolo recorren-
te: o alferes ocupa posição destacada, os músicos tocam e cantam uma ária para cada
ocasião: na chegada, no momento do peditório e no final, para penhorar a gratidão do
grupo às famílias que os recebem (SANTOS, 2008, p. 107-108). Os anfitriões, por sua
vez, também seguem as formalidades, cabe à dona da casa receber a ‘santa bandeira’ e
atrelar fitas coloridas ao seu mastro, e em sequência, oferecê-la aos membros da família
para que seja beijada, em um ritual de louvor ao Divino. Enquanto isso, os foliões reto-
mam a cantoria, o dono da casa entrega a prenda e a sua esposa passeia com a bandeira
pelo interior casa, adentra cada um dos seus ambientes para que sejam abençoados.
Nos meses que antecedem à festa, os foliões assumem uma função primordial,
qual seja, a de preservar os símbolos que representam o Espírito Santo e peregrinar
no perímetro rural de São Luiz do Paraitinga, nos distritos do município e nas cida-
des vizinhas como Cunha, Lagoinha, Natividade da Serra, Taubaté, entre outras, para
arrecadar prendas e motivar os devotos a se prepararem para o grande encontro de
louvação ao Divino.
Os elementos simbólicos como a ‘bandeira’, a ‘santa coroa’, a ‘pomba branca’ e o
‘cetro’ representam a realeza da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, sua benevo-
lência e compaixão. Os foliões e aqueles que os acompanham personificam os peca-
dores arrependidos e dispostos, simultaneamente, a aproximar o Santo Espírito das
comunidades onde habitam e prestar homenagens ao Divino. Por essa razão, vestem
suas indumentárias, adoram os símbolos que o representam, tocam cânticos animados
e dançam alegremente. Eles oram por meio de suas expressões corporais e alegorias.
A bandeira é confeccionada com tecido rubro e adereços dourados, encimada por
uma pomba branca, às vezes prateada. Os tons de vermelho desse artefato simbolizam o

10 Fontes como fotografias e depoimentos orais coletados na pesquisa de campo indicam que essa
composição altera-se com frequência, de acordo com o número de foliões disponíveis.

79
PATRIMÔNIO CULTURAL: fogo que se refere à forma pela qual o Espírito Santo se manifestou aos apóstolos e à Vir-
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE gem Maria no cenáculo, conforme narrativa bíblica. No seu mastro são ostentadas fitas
coloridas que vão sendo acrescentadas à medida que ela vai passando de casa em casa.
Os cânticos em louvor ao Espírito Santo e aos veneráveis São Benedito e Nossa
Senhora do Rosário adquirem destacada importância social nessas formas de manifes-
tação da religiosidade, pois reavivam a fé e o entusiasmo das comunidades no decorrer
do ano. As músicas estão presentes durante todo o tempo dedicado aos preparativos
da festa; seus temas se adéquam a cada situação: do recolhimento das prendas nos
giros dos foliões às novenas, procissões, missas e também nos demais rituais festivos.
Já o oratório oficial, denominado ‘Sala do Império’, é uma referência emblemática
para os fiéis luizenses. O maior e mais adornado deve ser aquele disposto na residên-
cia do responsável pela festa (o imperador), neles são depositados os ex-votos – alcu-
nha douta atribuída ao testemunho material e agradecimento público aos santos de
predileção pessoal que atenderam aos pedidos de seus fiéis.
Na Figura 17, verificamos elementos habitualmente encontrados na Sala do Império:

Figura 17: Sala do Império – São Luiz do Paraitinga (2009).


Fonte: Fotografia: Tom Villanova.

Como podemos observar, esse oratório recebeu ornamentos com insígnias doura-
das (bordados, fitas) e veludo vermelho (cor e textura das vestes da realeza). As flores
e demais enfeites são todos em reverência ao Divino. A coroa que representa a sua
presentificação entre os fiéis é destacada por suas dimensões e centralidade da sua
disposição em relação aos demais artefatos. O manto roxo lembra a paixão de Cristo,
símbolo da penitência e da escuridão da noite, propícia às vigílias e peregrinações dos
devotos, como demostração do arrependimento dos seus pecados.

80
A baixa iluminação no ambiente e o brilho da luz na sustenção da coroa reforça o A Celebração em
tributo ao Divino
contraste claro/escuro, criando a atmosfera adequada à reflexão. As pombas dispostas Espírito Santo
(São Luiz do Paraitinga/
à frente e na mesma direção da coroa remetem às passagens bíblicas que antecedem São Paulo)

a manifestação do Santo Espírito; além disso, as aves brancas representam a pureza e


um elo entre a terra (fronteira territorial dos humanos) e céu (espaço do sagrado, dos
santos e das divindades).
O uso intenso das cores em questão são frequentes nos oratórios menores, monta-
dos nas outras casas que acolhem os foliões do giro para a reza dos terços. Eles podem
ser plasticamente mais simples, mas também recebem ex-votos, como cartas com pe-
didos e agradecimentos, velas, fotos de parentes e amigos que se encontram enfermos
ou não puderam estar presentes na ocasião.
A prática de generosa distribuição de alimentos é uma tradição presente em inúme-
ras festas populares; nesse caso, o ‘afogado’ representa a ‘comida consagrada’, ou seja,
a ‘hóstia do povo’ (SILVA, 2009, p. 94). O prato, preparado com as prendas recolhidas
pelos foliões, mistura a carne bovina bem temperada com os insumos verdes, os legumes
coloridos e os tubérculos (dependendo da região). Ele é cozido lentamente em panelões
aquecidos em fogões a lenha, armados com tijolos de barro, cerca de 90 cm do chão.
Os recipientes utilizados no feitio do prato possuem cerca de um metro de dia-
metro e 60 cm de profundidade; trata-se de uma espécie de caçarola de ferro com
quatro alças, cujo tamanho oferece uma dimensão da abundância almejada por todos
os devotos e a benevolência do Divino que, providencialmente, garantiu solo fértil e
temperaturas adequadas ao plantio, às fartas colheitas e aos bons pastos para as ‘cria-
ções’, ou seja, para os rebanhos de bovinos, suínos, entre outros animais.
O antigo costume de ofertar os alimentos que nutrem a alma e o corpo, somado
ao de doar a si mesmo e o seu tempo para os afazeres das cerimônias em tributo ao
Espírito Santo, representa para os devotos a redenção momentânea dos seus pecados
e reascende a esperança na chegada de uma nova era, na qual haveria igualdade, pros-
peridade e abastança para todos.
A intenção dos fiéis retribuírem as benesses recebidas envolve o trabalho coletivo
e individual em um circuito de ‘dádiva’ e ‘contradádiva’ que caminham lado a lado –
aspecto que, do ponto de vista de José Reginaldo Santos Gonçalves e Márcia Contins,
gera ‘simbolicamente uma relação permanente com o Espírito Santo’ (GONÇALVES,
2008, p. 79). Esse tempo, conforme os autores, é

[...] fortemente demarcado por meio de uma série de alterações espaciais, com-
portamentais, emocionais, fisiológicas, usos de objetos materiais e que vêm
estabelecer simbolicamente uma delicada e progressiva separação em relação
a um tempo cotidiano, um tempo profano, voltado para atividades mundanas
(GONÇALVES, 2008, p. 74).

81
PATRIMÔNIO CULTURAL: As percepções das fronteiras culturais, temporais e territoriais tornam-se diferen-
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE ciadas, porque ocorrem relativas trocas entre os próprios fiéis (esposos e esposas, pa-
drinhos e afilhados, familiares e amigos), e entre eles e o Espírito Santo, representado
especialmente na coroa e na bandeira. As relações de dádiva e contradádiva tornam as
mediações entre os devotos e o clero desnecessárias, pois os contatos com o Divino se
dão noutro plano – aspecto que desagrada o clero, rejeitado em sua função primordial
de intercessor entre Deus e os pecadores.
A dinâmica e a função dos espaços privados e públicos também se alteram: as re-
sidências são preparadas para acolher o visitante ilustre, transmutado nos símbolos
referidos. As igrejas e o núcleo histórico são adornados para receber todos os que
aguardam o início dos rituais religiosos e o tempo da consagração, o da meditação e o
de se alinhar à procissão do Divino.
Do mesmo modo, os locais de tráfego de automóveis dão lugar aos grupos de dan-
ça que vão se apresentar e para a multidão que vem em busca de graças e da renovação
de promessas.
A reverência ao sagrado se materializa no respeito distintivo dedicado à recepção
da bandeira. A ela são devotadas todas as honrarias e candidamente lhe é reservado o
mais prestigiado lugar da residência. A Sra. M. H. M. (76 anos), orgulhosa por ainda
continuar recebendo a bandeira em sua casa, afirma que manterá a tradição até a
morte. Ela monta o seu oratório no lugar privilegiado da sala de visitas, após a reza
do terço serve aos foliões do Divino, como fazia na mocidade, o costumeiro ‘café com
paçoca’. Acompanhada pelos filhos P. I. M. J. e M. A. M. C. relembra, durante entrevista,
que ela e a filha faziam uma limpeza impecável e enfeitavam toda a casa para receber
a bandeira do Divino:

A gente ajeitava o altarzinho e colocava flor fresca, apanhada dos canteiros de


casa e dos vasos de rosa, cravo, copo-de-leite, samambaia. Hoje não posso mais
cuidar do jardim, mas a Cida compra as flores mais bonitas da feira! Era e con-
tinua sendo um dia feliz, mas de muita oração11.

Essa acolhida expressa a devoção dos fiéis que acreditam estar recebendo em
seus lares o próprio Espírito Santo. Para tanto, seguiam cuidadosamente todos os

11 Cf. Sra. M. H. M., residente em Paraitinga desde o nascimento (1935), entrevista efetuada na resi-
dência da depoente em 21/04/2008, com uso de gravador, durante 3h35min, acompanhada pelos filhos
P. H. M. J. (engenheiro, casado, 48) e M. A. M. C. (professora, casada, 44 anos). Como não obtivemos
a autorização por escrito para a transcrição e publicação do conteúdo das entrevistas, optamos por
utilizar apenas as iniciais dos nomes dos depoentes. A coleta de depoimentos respeitou os preceitos
metodológicos da história oral, tal como sugere Alessandro Portelli, no artigo O momento da minha
vida: funções do tempo na história oral (FENELON, 2004).

82
protocolos dos rituais. Do ponto de vista de M. H. M., ‘havia muito respeito’, e tran- A Celebração em
tributo ao Divino
sitar a frente da bandeira sem lhe render os devidos tributos, ou seja, sem ao menos Espírito Santo
(São Luiz do Paraitinga/
fazer um sinal da cruz ou uma genuflexão era algo repudiável. Como expõe João Rafael São Paulo)

C. C. dos Santos, continua sendo uma atitude considerada desrespeitosa em relação


‘ao símbolo, mas, sobretudo, àquela comunidade identificada pelo culto ao Espírito
Santo’ (SANTOS, 2008, p. 108).
A reza dos terços e de novenas, realizadas nas casas da população urbana, nos
sítios e fazendas dos arredores, normalmente eram gerenciadas pelas irmandades do
Santíssimo e de São Benedito, responsáveis pela preparação das procissões que circu-
lavam pelas principais ruas do centro histórico, em particular nas calçadas de pedras
lavradas. Essas irmandades, quase sempre, se uniam aos seis foliões que percorriam
o perímetro urbano e rural e também os municípios mais próximos para arrecadar
prendas, consumando o ‘peditório’.

Figura 18: Bandeira do Grupo de Congada (2009),


Festa do Divino de São Luiz do Paraitinga/ São Paulo.
Fonte: Fotografia de Tom Villanova.

Os festejos normalmente têm a periodicidade de dez dias12, mas podem variar


de acordo com as necessidades locais. Em 2009, por exemplo, eles reuniram um

12 Essa periodicidade pode variar: nos anos de 2005 e de 2010, os rituais foram realizados, respectiva-
mente, durante 10 e 9 dias. Cf. Programação das Festas guardada por um dos entrevistados.

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PATRIMÔNIO CULTURAL: contingente significativo de pessoas nas procissões que passavam pela praça Dr. Os-
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE waldo Cruz, no centro histórico da cidade. A celebração recebe fiéis vindos de toda
a região do Vale do Paraíba, inclusive as companhias de dança de jongo, congada,
moçambique de cidades vizinhas, bem como as equipes que realizam a cavalhada,
representação inspirada nas celebrações realizada na Europa.
A cavalhada encena os confrontos entre dois grupos de cavaleiros (na sua maioria
declarados católicos) que surgem na arena armados com lanças e montados em seus
animais, em uma referência aos combates que envolviam cristãos e mouros, liderados
por Carlos Magno. Enquanto os primeiros usavam trajes azuis, os outros se vestiam de
vermelho, mas ambos tinham suas indumentárias complementadas por fitas coloridas
e outros enfeites. Em Paraitinga, a cavalhada passou a ser realizada no campo de fute-
bol na periferia da cidade (Distrito de Catuçaba), no último domingo da festa e, por
vezes, também no primeiro sábado.
Sobre isso, Pedro Isidoro Munhoz declara:

Hoje pessoas de muito longe vem prestigiar a nossa festa. Muitos filhos de al-
feres, mestres e percussionistas, como eu, quando se tornaram jovens foram
estudar em São Paulo e só voltam na época da festa para participar da procissão
principal e para assistir a cavalhada. Eu e o Ney da Dona Antônia, lembra mãe?
Nós sempre lutávamos no grupo que atacava os mouros. Era vitória certa! Ora,
que jovem gostava de perder uma batalha, mesmo que fosse uma espécie de
teatro? Para nossa família, a festa é sempre um momento de louvor ao Divino. É
isso que procuro passar para os meus filhos: o respeito e a fé no Santo Espírito
que rege as nossas vidas 13.

Participar da cavalhada, como relata P. I. M. J., para os jovens consistia uma ‘santa
diversão’ colocada a serviço do Divino e implicava a construção e a consolidação de
redes de sociabilidades. A princípio, demarcavam claras fronteiras entre os segmentos
sociais, talvez até certo status, uma vez que os rapazes eram escolhidos por suas ‘vir-
tudes’ e ‘insígnias egrégias’. Algo que será característico também no Brasil: os líderes
das equipes eram portugueses, em geral, com algum vínculo, mesmo nos mais dis-
tantes graus de parentesco dos fidalgos (quiçá, dos nobres). Mas quando necessário,
incluíam-se entre as equipes descendentes lusitanos nascidos aqui. Já os grupos de
congada, jongo e moçambique contavam predominantemente com a participação dos
negros e demais afrodescendentes. Essa era uma das maneiras dos colonizadores e
demais desterritorializados manterem suas conexões culturais e identitárias com seus
compatriotas ou clãs, expressa nas práticas de devoção, danças, batuques e desafios
verbais que mesclavam tributos aos santos cristãos e às entidades africanas.

13 Cf. entrevista com P. I. M. J, Op. cit

84
Após a abolição da escravidão, as ‘confrarias’ de afrodescendentes, proibidas pelos A Celebração em
tributo ao Divino
poderes instituídos, mas dissimuladas sob a tutela das Irmandades de Nossa Senhora Espírito Santo
(São Luiz do Paraitinga/
do Rosário ou de São Benedito, desempenhariam funções cruciais na manutenção São Paulo)

dos folguedos em honra do Divino. Considerando as hipóteses de que essas entida-


des são relevantes nos processos de ‘tradução cultural’ e do ‘hibridismo’, conforme
conceituações sugeridas por Stuart Hall e Peter Burke, respectivamente, seria possível
afirmar que elas viabilizaram os ‘encontros entre as culturais’, desvendados na rituali-
zação conjunta dos cultos católicos e afro brasileiros? Talvez esses encontros tenham
implicado a conquista de novas fronteiras territoriais, simultaneamente, públicas e
privadas. Porém, a circulação pelas ruas e o adentrar nas moradias garantiram aos
sujeitos sociais tal conquista.

CONTENDAS ACADÊMICAS E EMBATES POLÍTICOS


O culto ao Espírito Santo se instituiu no Brasil concomitantemente à ocupação dos
territórios da ‘Terra de Santa Cruz’. A Igreja católica admite que, em meados do século
XVI, essa celebração teria sido trazida pelos portugueses para a colônia recém-conquis-
tada, porém tanto cá na colônia, como lá na metrópole a sua origem esteve atrelada
à religiosidade popular14. A Festa do Divino se mostrava cindida em duas partes: a
sagrada e a profana, contudo, poderíamos afirmar, como sugere Peter Burke e Homi
Bhabha, que essas fronteiras se mesclariam, pois são permeáveis e os limites entre uma
e outra são tênues.
A documentação levantada evidencia constantes embates entre os homens do
clero e os leigos; logo, a abertura das festas, quando não ocorriam desentendimen-
tos, contava com missas oficiadas pelo vigário da paróquia local e a organização de
alvoradas, procissões, novenas e a reza de terços, ainda que restritos às pessoas liga-
das à Igreja, como os membros das irmandades. Essas peculiaridades da celebração
se mantiveram até os dias atuais; entretanto, a fé e a folia, tomadas como baluartes da
conciliação ou da emblemática seiva capaz impulsionar as mobilizações populares,
não conseguiram diluir os conflitos emanados das diferenças socioculturais entre os
participantes dos tributos ao Divino Espírito Santo.
Por essa razão devemos estar preparados para driblar as ardilosas armadilhas impreg-
nadas nas perspectivas simplórias, não raro, cristalizadas na literatura especializada,

14 Estudiosos dos festejos religiosos, como C. Cascudo, afirmam não ter encontrado documentos es-
critos que comprovem a data de origem do culto ao Espírito Santo no Brasil. Todavia, vários indícios
apontam para o fato de que ele se instituiu logo após a ocupação das terras brasileiras pelos portugue-
ses. A correspondência do jesuíta Gonçalo Rodrigues, datada de 1561, transcrita por Paulo Micele, faz
menção à coroação do Imperador do Divino entre os tripulantes de uma nau, em pleno mar (MICELE,
1994, p. 172-173).

85
PATRIMÔNIO CULTURAL: segundo as quais os grupos minoritários e/ou mantenedores da cultura popular e
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE de tradições centenárias seriam blocos homogêneos (SANTOS, 2008). As mobilidades
das fronteiras culturais, distintas no tempo e no espaço, contradizem tais pressupos-
tos, embora poucas pesquisas sobre as homenagens dos luizenses ao Espírito Santo
tenham conseguido escapar desses jargões acadêmicos, em especial daquelas que as
tomam ‘apenas’ como manifestações folclóricas15.
É possível que essa ocorrência esteja articulada à compreensão distorcida da acep-
ção do termo folclore – do inglês folklore. Para aqueles que comungam da ideia de
superioridade da civilização ocidental, tal conceito estaria circunscrito ao conjunto de
superstições de comunidades baldias, apregoado por meio de crenças no fantástico,
lendas, costumes, provérbios e demologias16. Em outras palavras, se resumiriam aos
fenômenos considerados decorrentes da prática de sortilégios, da ignorância do povo
ou da ‘ausência’ de conhecimento.
Os estudiosos que tendem a desqualificar a diversidade cultural e a atribuir su-
premacia às práticas dos ‘homens letrados’ acabam referendando a ideia de que as
tradições religiosas populares, quando se mesclam ou se distinguem do catolicismo
oficialmente instituído, resultariam da ignorância e das crendices de comunidades ét-
nicas ou de contingentes populacionais residentes na área rural. Essas inferências,
quase sempre partilhadas pelo clero, reforçam as construções discursivas pautadas
pelas dualidades entre civilização/barbárie, cidade/campo, progresso/atraso. Enfim,
perspectivas que, em última instância, recaem também sobre as abordagens que va-
lorizam apenas os conhecimentos expressos pela linguagem textual e os sobrepõem
aos transmitidos por meio da oralidade como, por exemplo, os casos contados de
uma geração a outra, os provérbios, os cânticos e os desafios travados entre as com-
panhias afrobrasileiras de jongo17, cuja característica é justamente reiterar as crenças
nos ancestrais e nos poderes da palavra, usando nas rodas linguagens metafóricas com
referências ao cotidiano que envolvem o canto e a dança, marcados pela sonoridade
de instrumentos de percussão.

15 Esse enfoque pode ser detectado nos artigos da coletânea Manifestações artísticas e celebrações
populares no Estado de São Paulo. São Paulo: CENPEC/Imprensa Oficial, 2004. Trata-se da Coleção
Terra Paulista. Histórias. Arte. Costumes, redigidos por Jorge Miguel Marinho, Anamelia Bueno Buoro,
Roberto Santos, Alberto T. Ikeda e Américo Pellegrini Filho, produzida com os subsídios do Centro de
Estudos e Pesquisas em Educação e Ação Comunitária (CENPEC), dirigido por Maria Alice Setubal.
16 No âmbito científico, a demologia é tida como o fenômeno psíquico, passível de análise por meio da
demopsicologia, cujo interesse é decifrar o significado e a origem de tais comportamentos.
17 Aliás, cumpre lembrar: o Jongo do Sudeste foi reconhecido com patrimônio imaterial brasileiro, ins-
crito no Livro de Registro das Formas de Expressão, pelo IPHAN, em 15/12/2005 (PELEGRINI; FUNARI,
2008, p. 74). Outras peculiaridades sobre as práticas afrobrasileiras podem ser consultadas em Costa
(2010) e Pelegrini (2009).

86
Mas enganam-se aqueles que garantem existir uma unidade incontestável entre A Celebração em
tributo ao Divino
os grupos que preservam referenciais culturais tradicionais, como aqueles devotados Espírito Santo
(São Luiz do Paraitinga/
ao Santo Espírito. A observação atenta da atuação de tais grupos torna perceptíveis São Paulo)

os embates performáticos e os choques de interesse entre os sujeitos que interagem


nessas festas. Aliás, as rivalidades não se limitam às confrontações entre as equipes
da cavalhada, de jongo, moçambique e congada, mas também, entre eles, o clero e as
elites. Estes dois últimos disputam a liderança do evento, em função do poder político
e das vantagens que o prestígio social pode lhes proporcionar, enquanto os demais
lutam para conquistar espaços e adquirir visibilidade.
Mais um aspecto a ser lembrado diz respeito ao fato de antes do término da festa
eram escolhidos os responsáveis por organizar aquela que se realizaria no ano seguin-
te. Talvez caiba aqui ponderações relativas à estrutura organizacional da própria festa:
desde o início, os festeiros e administradores dos festejos normalmente eram os gran-
des proprietários de terras ou membros do clero. Essa dinâmica, por um lado, unia
os ‘luizenses’ e criava redes de sociabilidades duradouras; e por outro, colocava em
evidência a notoriedade conquistada por aqueles que seriam nomeados ‘Imperadores
do Divino’, aclamados pelas comunidades que viviam nas proximidades das barrancas
do Rio Paraitinga como indivíduos virtuosos.
Na atualidade, um grupo seleto de pessoas continua assumindo as incumbências
do festeiro, na medida em que é reconhecido por sua retidão ou possui rendimentos
que os capacitem a arcar com gastos inerentes a sua função ou encargo. Assim, as
autoridades políticas municipais (vereadores, prefeitos), padres ou membros de seg-
mentos mais abastados tornam-se candidatos rivais em potencial.
No Brasil, apesar da reconhecida pluralidade étnica e cultural, as crenças e prá-
ticas afrobrasileiras foram, e ainda são, combatidas ou renegadas. A participação das
congadas, jongos e moçambiques nas festas em tributo ao Divino, não raro, gerava
dissabores ao clero e demais administradores da festa, defensores do catolicismo mais
conservador. Em diferentes momentos, os padres demonstraram aversão à cultura
afrobrasileira e às comemorações em tributo a São Benedito e a Nossa Senhora do Ro-
sário, e ainda alegaram que os costumes dos moradores dos bairros rurais deformavam
a religião católica por ignorância ou superstição. A crítica das autoridades religiosas
incidia, sobretudo, na estrutura ritualística das festas, que mantinha os andores em
honra aos santos negros nas procissões, as peregrinações, as cantorias, os beijamentos
da bandeiras e os adornos com fitas coloridas nos mastros (TOLEDO, 2001, p. 20).
Todavia, em alguns episódios, acirrados desentendimentos entre os padres e os
foliões chegaram a resultar na suspensão da festa. O padre italiano Natalino Ignácio
Gióia, recém-chegado em Paraitinga em 1912, ao alegar ‘falta de respeito ao sagrado’

87
PATRIMÔNIO CULTURAL: extinguiu a Festa do Divino do calendário religioso local entre 1913 e 1943. O sacer-
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE dote condenava as danças das fitas, os grupos de jongo, a congada, o moçambique, e
ainda a distribuição do ‘afogado’ – tomada por ele como ‘farra’ tal qual as danças18.
Desde sempre, houve desavenças entre os padres da região e as autoridades ecle-
siáticas e políticas, tanto em relação à proibição do ‘peditório’, quanto ao destino a ser
dado às prendas arrecadas durante o giro. Os padres das capelas menores indagavam
se elas deviam permanecer nas freguesias ou ser enviadas para a Igreja Matriz de São
Luiz de Tolosa19– contrariando os seus superiores. Se, por um lado, essa indagação le-
vantada pelo vigário da Capela de Lagoinha, em meados de 1872, colocava em evidên-
cia choques de interesses locais; por outro, indicava a existência de insatisfações por
parte do clero quanto à proibição do ‘peditório’, imposto desde os tempos da Colônia.
Ao relembrar um dos alagamentos ocorrido na região em 1863, o vigário Natalino
Ignácio Góia teria dado a entender que tal fenômeno tinha sido uma manifestação do
Santo Espírito contra o desagravo do delegado de polícia, responsável pela detenção
do ‘grupo de foliões do Divino’ que ‘esmolava pelas ruas da cidade sem a devida auto-
rização’. Segundo a argumentação do padre, o súbito aumento do nível das águas do
Rio Paraitinga atingira justamente o ‘edifício da cadeia’, que ficara totalmente destruí-
do, em uma indireta alusão às possíveis punições imputadas pelo Divino aos ímpios
ou incrédulos20.
A crença de que as enchentes seriam um castigo de Deus reaparecem nas explica-
ções dos cristãos (católicos ou evangélicos) para a ocorrência da destruição do centro
histórico da cidade em janeiro de 2010. Elas são justificadas, no entendimento deles,
como resultado da devassidão carnavalesca que afastou o ‘povo’ dos ‘ensinamentos de
Deus’ e os fez submergir as ‘festas mundanas’. Embora o engenheiro Jairo Borriello
avalie o ‘desastre’ por uma perspectiva técnica, admite que algumas ‘coincidências
reforçam a versão religiosa’ e destaca dois exemplos: 1) uma das residências ‘ter sido
destruída pelas águas e apenas uma parede, a única com crucifixo pregado, ter re-
sistido’; 2) ‘as imagens de santo [...] sendo encontradas de pé’. E Borriello ressalta,

18 A menção às palavras do clérigo consta do texto de Judas T. Campos (1997, p. 56) e Santos (2008,
p. 135).
19 Os Ofícios das Câmaras, de São Luiz do Paraitinga e documentos relativos às celebrações, no período
1840 a 1903 (MOC-CMSLP. XVIII. F. Festas e documentos de 13/04/1872 e 19/03/1872) foram mantidos
na casa do Dr. Oswaldo Cruz, transformada em Museu, mas atualmente encontram-se no acervo do
Arquivo do Estado de São Paulo. Aliás, valiosos documentos foram salvos da última enchente por terem
sido deslocados para referido arquivo ou por estarem sendo restaurados.
20 Os documentos supracitados são mencionados também por Janime Almeida, em Foliões (Tomo II e
II). (Tese de Doutorado/História) FFLCH/USP, 1987, p. 537 e 538 e em João Rafael Coelho Cursino dos
Santos (2008, p. 102).

88
durante a entrevista publicada pela Folha de S. Paulo: ‘isso é fato’ e ‘ajuda a aumentar A Celebração em
tributo ao Divino
esse sentimento’ místico21. Espírito Santo
(São Luiz do Paraitinga/
Assim, o motivo do desabamento da Igreja Matriz, erguida no século XIX, seria São Paulo)

tomado como ‘um claro recado’: as orgias que tomaram conta das cidades de Sodoma
e Gomorra se repetiram em Paraitinga. A moradora Bruna Aparecida da Silva (23 anos)
argumentou: ‘Vai mais gente à Festa do Saci do que à Festa do Divino, que é a festa do
padroeiro’, disse a cozinheira. O agricultor João Rangel dos Santos (67 anos), pai de
um rapaz que foi soterrado, assinala com indignação: ‘Tem que fazer festa para Deus,
não para o outro lado. Saci é do outro lado, da esquerda, não é não?’. As menções
feitas ao personagem folclórico Saci Pererê podem ser interpretadas como variantes
indígenas do ‘príncipe das trevas’ ou como ‘demônios dos ares’ na versão católica,
denominação atribuída a eles pela teologia, que os define como ‘anjos de perdição
[...] que escolheram um meio termo não tendo sido imediatamente aprisionados no
inferno’, permanceram entre os seres humanos, praticando ‘pequenos males à espera
de serem precipitados definitivamente no abismo de fogo no Dia do Juízo Final’ 22.
Cumpre salientar que as evidências levantadas até aqui sugerem a hipótese de
que as regulares mostras coletivas de devoção ao Santo Espírito desafiaram conven-
ções longevas do catolicismo instituído, mas simultaneamente, as reafirmaram quan-
do esses argumentos interessaram a determinados segmentos sociais ou aos grupos
religiosos que, por meio de discursos que remetem à eterna luta entre o bem e o mal,
referendam o temor das forças fantásticas capazes de agir sobre o curso normal da
natureza.
Os tributos coletivos devotados ao Divino Espírito Santo contribuíram para a mo-
dulação das práticas sociais em São Luiz do Paraitinga, uma vez que a crença no Divino
corroborou para o deflagar de transformações que teriam se processado tal qual o
compasso binário dos cânticos cadenciados em honra Dele ou de acordo com ritmo
dinâmico das coreografias afrobrasileiras, marcadas pela regularidade acelerada da su-
cessão de sons fortes e fracos da percussão.
A complexidade dessa hipótese, sem dúvida, torna-se muito atrativa ao pesquisa-
dor, mas implica o investimento em diligências capazes de oferecer indicativos sobre
o cotidiano dos luizenses. Para tanto, entendemos ser necessário evitar as abordagens
nas quais predominam visões simplórias sobre os modos de viver nas pequenas cida-
des. E, em especial, aquelas construções discursivas que se pautam pela perspectiva de

21 Cf. Rogério Pagnan. São Luiz de Paraitinga SP: Povo acha que enchente foi um castigo de Deus. Folha
de S.Paulo, 17 de janeiro 2010.
22 Idem.

89
PATRIMÔNIO CULTURAL: que um centro histórico ‘se assemelha a um vilarejo perdido no tempo’ e seus mora-
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE dores constituem uma comunidade ‘pacata’ e ‘hospitaleira’, características considera-
das inerentes ao universo da ‘cultura caipira’ e a condição de cidade cujo patrimônio
edificado foi tombado.
Tais assertivas, por um lado, tendem a dissimular interesses econômicos, ocultados
por simulacros da fé, e, por outro, a difundir a noção de que a preservação da cultu-
ra e do patrimônio possa mascarar embates entre as frações de classe, comunidades
étnicas ou religiosas, e ainda salvaguardar convivências harmoniosas, conservadas ou
‘suspensas’ em algum lugar do tempo pretérito.
Sabemos que os atrativos turísticos cresceram, tanto em função das celebrações
religiosas como das diversões tomadas como profanas (carnaval, Saci-Pererê, etc.), en-
tretanto, são geradores de emprego e renda. Nesses termos, o conceito de ‘hospitalida-
de’ não pode ser tomado apenas como uma característica da população luizense, mas
como estratégia de atividades lucrativas proporcionadas pelo turismo. Ora, torna-se
evidente a importância das interfaces entre a preservação do patrimônio, o turismo
cultural e a exploração comercial dos eventos, bem como as questões relacionadas à
sustentabilidade, uma vez que a cidade é considerada Instância Turística (PELEGRINI;
NAGABE; PAZ; 2010, p. 15).
Como não é objetivo desta reflexão, não podemos nos aprofundar nessa ques-
tão, apenas buscaros demonstrar que seria precipitado reduzir a acepção de ‘cultura
caipira’ às práticas pouco comuns nas grandes metrópoles, como ‘tomar a fresca’ na
varanda, conversar com os vizinhos na calçada ou ‘matutar’ sobre os últimos aconte-
cimentos. Embora atentos ao perigo das caracterizações apressadas acerca dos modos
de viver dos interioranos (no plural), alguns estudiosos da cultura ainda validam uma
definição da ‘cultura caipira’ circunscrita aos estereótipos recorrentes, outros pesqui-
sadores alegam que os luizenses, apesar de suas ‘inatas’ qualidades, não vivem alheios
às mídias sociais, nem ao conforto proporcionado pela tecnologia moderna23. Nota-
mos nesses enfoques a permanência de uma visão pueril da figura do ‘caipira’, envolta
por paisagens bucólicas, onde não haveria lugar para vivências conflituosas ou jogos
políticos.
É possível que essas interpretações estejam embasadas teoricamente em verten-
tes analíticas que se consolidaram a partir de duas hipóteses antagônicas: a de que a
cultura popular – manifesta nos eventos do ‘povo’ deflagrados nos espaços públicos
assume, de um lado, uma performance questionadora do status quo ou, de outro, a

23 Embora Santos efetue uma ácida crítica à interpretação de Abílio Guerra, não se deteve profunda-
mente na discussão acerca da noção de ‘cultura caipira’, atesta enfaticamente que o ‘caipira’ acompanha
as novidades do mundo urbano (Santos, 2008).

90
reafirmam. Mikhail Bakhtin (1987), por exemplo, assevera que os foliões e seus feste- A Celebração em
tributo ao Divino
jos simplesmente não se opõem às elites, mas à imposição de uma ‘cultura oficial’ – Espírito Santo
(São Luiz do Paraitinga/
abordagem que influenciou parte significativa da produção acadêmica brasileira. Mas, São Paulo)

sob o ponto de vista de historiadores dedicados aos estudos da cultura, como Peter
Burke (1989), as conjecturas formuladas por Bakhtin impulsionaram uma mudança
de paradigma na disciplina e levaram os pesquisadores a inquirir se haveria rígidas
fronteiras de classe nas experiências culturais ou religiosas.
A propósito, não devemos ignorar que, por longo tempo, vertentes opostas a essa,
inclusive as correntes fundamentadas no materialismo histórico considerado orto-
doxo, defenderam a tese de que tais manifestações apenas alicerçavam a dominação
social. Assim sendo, entendemos que sejam oportunas as advertências de Carlo Ginz-
burg (1989) quando este admite a importância da circularidade dos valores culturais
entre distintas formas de organização societária e entre os indivíduos e grupos que as
compõem.
Igualmente, ponderadas são as ressalvas de Homi Bhabha no que tange às ‘fron-
teiras’ fluídas da cultura, alcunhadas na pós-modernidade, uma vez que, por essa via,
a ênfase analítica recai na percepção de como se dão a ambivalência e o conflito de
diferenças no encontro entre as culturas (2003, p. 27).
Como afirmamos, entendemos que não nos cabe apenas louvar os processos de
hibridação, mas atentarmos para o fato de que o excesso de positividade atribuída aos
encontros culturais pode dissimular os limites das negociações entre os sujeitos so-
ciais. Logo, a hibridação pode tanto fortalecer permanências como produzir rupturas
e implodir projetos sociais (BURKE, 2003).
Atualmente, os esforços dos festeiros e do clero local, somados aos das autoridades
públicas, coordenam a apresentação das cavalhadas, das rodas de jongo e de moçam-
bique (entre outras modalidades da expressão da cultura afrobrasileira), da dança das
fitas e das brincadeiras como o ‘pau-de-sebo’, as farras com os bonecos gigantes ‘João
Paulino’ e ‘Maria Angu’, shows de músicas sertanejas no coreto da Igreja Matriz São
Luiz de Tolosa. Em outras palavras, notamos que antigos e novos elementos foram
remodelados ou incorporados às Celebrações do Divino Espírito Santo no Vale do
Paraíba e em outras regiões do país onde tais festas continuam sendo praticadas.
Nas solenidades em honra do Divino, todas as ações são tomadas como formas
de trabalho voltadas para o seu engrandecimento e louvor. Nessas ocasiões, ocorrem
procissões, danças e folguedos que chamam a atenção de toda a cidade e dos turistas
que a visitam. A importância cultural das Folias do Divino se confirma por figurar
entre uma das mais tradicionais festividades católicas nacionais, recorrentes em vários
Estados da União. Todavia, ela ainda não foi reconhecida como um bem imaterial pelo

91
PATRIMÔNIO CULTURAL: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), com o foram a Festa do
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE Divino de Paraty e o Círio de Nazaré e outros bens já registrados nos livros de celebra-
ções, formas de expressão, saberes e ofícios.
A fé no porvir e a crença nos poderes e generosidades do Espírito Santo não são es-
camoteadas quando a multidão se rende aos signos que o representam e se emociona
diante da ‘coroa’ ou da procissão que serpenteia as ruas e vielas do centro histórico,
sob a atmosfera enigmática resultante da sonoridade peculiar dos cânticos religiosos
e da luz misteriosa das velas que iluminam o cortejo dos fiéis, ora esperançosos, ora
aflitos, ou simplesmente agradecidos pelas bençãos alcançadas. A festa que a cada ano
se realiza entre os meses de maio e junho, em São Luiz do Paraitinga, desde meados
do século XVIII (mas oficialmente datada do século XIX), faz aflorar a confiança de que
o ‘Menino Deus’ voltará e nascerá de novo.
Aos devotos, enquanto aguardam que isso aconteça, cabe venerar os elementos
simbólicos que nutrem a expectativa de que dias melhores virão no ‘Santo Nome’ de
Jesus Cristo. A todos os demais que acompanham as celebrações com admiração, pelo
que ela representa em termos culturais ou religiosos, cumpre cobrar dos atuais gover-
nantes a implementação de efetivas políticas públicas proteção e salvaguarda dessas
formas de manifestações populares.
Entendemos que seja fundamental frisar que o registro da Festa do Divino e dos afa-
zeres que envolvem os folguedos, além de revitalizar códigos identitários e a diversida-
de cultural do país, possibilitará o acesso das gerações vindouras às memórias, histórias
e tradições significativas porque são recriadas, ano a ano, coletiva ou individualmente.
E, como conjeturamos antes, aos estudiosos das homenagens ao Divino Espírito Santo
não cabe ‘ações redentoras’ das tradições, pois as culturas e os bens patrimoniais são
dinâmicos e tais tentativas possivelmente se mostrariam impróprias e ineficazes.
A devoção, o ritual e a festa devem ser tomados como elementos da cultura ma-
terial e imaterial que resistem à passagem do tempo, porque guardam sentidos de
pertencimento entre os membros das comunidades; nesse caso, daquelas radicadas
em São Luiz de Paraitinga e em seus arredores. Nessa linha de raciocínio, asseveramos
que as festas relacionadas à religiosidade popular, com todas as suas singularidades,
constituem celebrações compartilhadas por parte da população do Vale do Paraíba que
desafiou as convenções seculares do catolicismo português, assimilou outras religio-
sidades e sujeitos sociais ao incorporar novos elementos em suas práticas e ao reco-
nhecerem as memórias coletivas ou individuais como um legado vivo a ser transmitido
às gerações futuras, sobretudo porque as reverências ao Santo Espírito lhes conferem
traços identitários e sentidos de pertença.

92
A Celebração em
tributo ao Divino
Espírito Santo
Recursos didáticos (São Luiz do Paraitinga/
São Paulo)

A implementação do Decreto no. 3551/2000 constitui um indicativo irrefutável de


que não há acaso algum, mas sim a confluência de reivindicações sociais e interesses
políticos. Diante do exposto, faça uma síntese do conteúdo da referida lei e reflita
sobre seu significado para a preservação das celebrações que se incluem entre os pa-
trimônios imateriais brasileiros (Consultar Anexo II deste livro).

Fontes e referenciais para o aprofundamento temático

Há em sua cidade ou região alguma celebração religiosa reconhecida como uma


tradição pelos devotos, pela população residente ou por autoridades políticas muni-
cipais ou eclesiásticas?

Anotações

93
PATRIMÔNIO CULTURAL:
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE
Anotações

94
C onsiderações finais

Desde a década de 1990, o patrimônio cultural e natural vem sendo cada vez mais
reconhecido como um instrumento poderoso para se salvaguardar a independência,
a soberania e as identidades culturais dos povos. No entanto, os grandes desafios para
aqueles que se dedicam à defesa dos bens patrimoniais não se circunscrevem à desco-
berta de meios eficazes para estimular debates sobre a proteção ou preservação, mas
sim contribuir para que as comunidades mantenham o apreço por suas tradições e
desenvolvam a ‘consciência da preservação’, de modo a garantir a transmissão de seus
valores culturais às próximas gerações.
No âmbito psicológico e social, é fundamental que as comunidades se sintam valo-
rizadas e estimuladas a proteger suas tradições. Nesse sentido, a educação patrimonial
e ambiental pode fornecer subsídios para avivar a percepção do valor cultural e sim-
bólico dos mais variados bens, sejam eles naturais, materiais ou imateriais. A educação
nesse campo atinge os seus objetivos quando convence os cidadãos de que as reservas
naturais, os monumentos, igrejas ou edifícios públicos não são os únicos bens patri-
moniais que representam as memórias nacionais ou comunitárias de segmentos sociais
distintos. Além disso, fomentam o sentido de pertença e demonstram que patrimônio
cultural refere-se aos bens materiais e imateriais relativos às produções humanas, seus
saberes e crenças, ele também abarca as paisagens naturais e culturais e as relações que
os seres humanos estabelecem com esses locais.
A partir do momento em que a população aprecia e reconhece as interfaces entre
as suas próprias condições de existência e o meio circundante, a valorização da suas
heranças e tradições passa a alimentar o amor-próprio de cada indivíduo ou do grupo.
Essas heranças impregnadas na ‘alma dos povos’, como a Unesco assinala, se manifes-
tam de inúmeras maneiras e sintetizam valores materializados em produções culturais
múltiplas como, por exemplo, atividades manuais, canções, festas, receitas culinárias,
entre outras.
Desse modo, a associação entre o conteúdo programático das disciplinas do Ensi-
no Básico e Universitário com as metodologias da Educação Patrimonial e Ambiental

95
PATRIMÔNIO CULTURAL: deveria se tornar referencial preponderante na esfera das políticas públicas de preser-
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE vação, uma vez que, juntos, se tornam capazes de oferecer visibilidade para as mudan-
ças culturais, sociais e ambientais que vêm se processando com o passar dos tempos.
O ensino e a aprendizagem na esfera do patrimônio devem tratar os estudantes como
sujeitos sociais e agentes históricos multiplicadores da valorização dos bens patrimo-
niais culturais e naturais das diversas etnias que povoam o mundo.
As políticas públicas de preservação precisam primar por investimentos contínuos
em projetos que possibilitem aos indivíduos fazer escolhas e devem garantir o acesso
às várias versões de suas histórias e memórias para que possam romper, ou pelo me-
nos, questionar o senso comum e as tentativas de impor perspectivas hierarquizantes
da cultura, assentadas em binômios como o da civilização versus barbárie.
O acesso à informação nos permite colocar em xeque visões consolidadas da narra-
tiva histórica sobre o passado e que, não raro, inibem a pluralidade étnica de um povo
ou nação. Como Sandra Pelegrini pontua nos capítulos do presente volume direito é
conquistado, e se inviabilizado, pode comprometer as bases das relações democráti-
cas, enfraquecer e até aniquilar os valores mais singulares de um grupo, comunidade
ou nação.
Portanto, somente o exercício da cidadania é capaz de desmistificar o conheci-
mento sobre a formação e o processo de construção das identidades e possibilitar o
desenvolvimento de reflexões em torno do significado coletivo e plural da história e
das políticas de preservação. Ademais, pode fomentar o desejo de manutenção das
práticas do passado sem ignorar os benefícios da tecnologia, promover a discussão so-
bre o manejo das áreas e parques protegidos, bem como sobre a imputação de novos
valores de uso aos imóveis restaurados, visando à manutenção dos bens protegidos
e preservados na dinâmica social e econômica da região ou cidade onde se inserem.
Se a educação for acionada como recurso capaz de promover o crescimento in-
telectual de crianças ou adultos, certamente tenderá a suscitar sua integração indivi-
dual e coletiva, e quiçá, um tratamento diferenciado do patrimônio. Talvez a relação
ensino e aprendizagem nessa área possa favorecer a convivência dos homens com a
coletividade, com o meio onde vivem. Desse ponto de vista, a educação patrimonial
pode constituir, como alega Maria Luiza Horta (1990), uma metodologia permanente e
sistêmica de trabalho educacional, em especial nas disciplinas de História e Geografia.
Em termos práticos, a abordagem sobre a proteção, conservação e preservação dos
bens patrimoniais pode ser iniciada na própria escola, valorizando-se a área e o edifí-
cio em que ela se encontra instalada, a biblioteca, as áreas de entretenimento e outros
espaços que possam figurar como bens coletivos. Em seguida, podemos sugerir que
os alunos investiguem os bens culturais de suas respectivas famílias, de seus bairros,

96
de sua cidade. Tornam-se imperiosas a difusão da legislação que trata do assunto e a Considerações Finais

veiculação de informações sobre os decretos que normatizam as ações no campo do


patrimônio cultural e ambiental, tais como o tombamento, as regras de proteção dos
parques nacionais e demais áreas protegidas. Faz-se necessário desvendar e adver-
tir a população sobre os procedimentos para a preservação dos bens (manutenção,
conservação, restauração, uso e administração). Contudo, devemos ambicionar algo
mais, como,por exemplo, irradiar o saber referente ao patrimônio por meio de agentes
comunitários, professores do Ensino Fundamental, Médio e Superior, propalando o
significado dos bens culturais e naturais entre as comunidades.
A associação entre o Ensino de História, os conhecimentos relativos à preservação
de diferentes tipologias patrimoniais e a Educação Patrimonial é valiosa pelo seu efei-
to multiplicador. Aquilo que o jovem aprende na escola, normalmente, acaba sendo
compartilhado com familiares, amigos ou colegas de trabalho. Dessa forma, conse-
guimos propalar a consciência da preservação dos bens culturais e naturais entre as
comunidades.
São muitos os desafios a serem enfrentados quando procuramos equacionar o en-
sino de História e a Educação Patrimonial, mas, sem dúvida, o primeiro passo consiste
na compreensão mais densa do próprio conceito de patrimônio cultural e da rele-
vância do exercício de proteção dos bens socialmente produzidos. Essas atividades
implicam ações permanentes de cidadania, a conquista do direto à memória, o reco-
nhecimento das tradições de uma determinada comunidade, grupo ou etnia, região ou
localidade. E mais: exigem esforços conjuntos no sentido de garantir o usufruto dos
bens materiais e imateriais por todos os cidadãos.
Ratificamos então, que a apreensão do modo como as pessoas interpretam seu pa-
trimônio é significativo porque ampliará o alcance das políticas de salvaguarda, ainda
circunscritas às responsabilidades do Estado. Por essa via, assinalamos que as deman-
das pela manutenção e conservação do patrimônio no Brasil atenderão aos diversos
interesses da sociedade e contemplarão a preservação das identidades de diferentes
segmentos sociais, concretizando o tão decantado respeito à diversidade e às tradições
culturais da população e suas respectivas comunidades.

97
PATRIMÔNIO CULTURAL:
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE
Anotações

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105
PATRIMÔNIO CULTURAL:
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE
Anotações

106
A nexo 1

Decreto no. 25/1937 (25/novembro/1937)1

Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos

DECRETO-LEI Nº 25, DE 30 DE NOVEMBRO DE 1937.2

Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional.

O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, usando da atribuição que


lhe confere o art. 180 da Constituição,
DECRETA:
CAPÍTULO I
DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL
Art. 1º Constitue o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens
móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interêsse público, quer
por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional
valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.

1 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0025.htm>. Acesso em:


jul. 2000.
2 Foi mantida a grafia original do documento datado de 1937.

107
PATRIMÔNIO CULTURAL: § 1º Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte inte-
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE grante do patrimônio histórico o artístico nacional, depois de inscritos separada ou
agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata o art. 4º desta lei.
§ 2º Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também sujeitos
a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe
conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pelo natureza
ou agenciados pelo indústria humana.
Art. 2º A presente lei se aplica às coisas pertencentes às pessôas naturais, bem como
às pessôas jurídicas de direito privado e de direito público interno.
Art. 3º Exclúem-se do patrimônio histórico e artístico nacional as obras de orígem
estrangeira:
1) que pertençam às representações diplomáticas ou consulares acreditadas no país;
2) que adornem quaisquer veiculos pertecentes a emprêsas estrangeiras, que façam
carreira no país;
3) que se incluam entre os bens referidos no art. 10 da Introdução do Código Civíl,
e que continuam sujeitas à lei pessoal do proprietário;
4) que pertençam a casas de comércio de objetos históricos ou artísticos;
5) que sejam trazidas para exposições comemorativas, educativas ou comerciais:
6) que sejam importadas por emprêsas estrangeiras expressamente para adôrno
dos respectivos estabelecimentos.
Parágrafo único. As obras mencionadas nas alíneas 4 e 5 terão guia de licença para
livre trânsito, fornecida pelo Serviço ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

CAPÍTULO II
DO TOMBAMENTO
Art. 4º O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional possuirá quatro Li-
vros do Tombo, nos quais serão inscritas as obras a que se refere o art. 1º desta lei, a
saber:
1) no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, as coisas pertencen-
tes às categorias de arte arqueológica, etnográfica, ameríndia e popular, e bem assim as
mencionadas no § 2º do citado art. 1º.
2) no Livro do Tombo Histórico, as coisas de interêsse histórico e as obras de arte
histórica;
3) no Livro do Tombo das Belas Artes, as coisas de arte erudita, nacional ou estran-
geira;
4) no Livro do Tombo das Artes Aplicadas, as obras que se incluírem na categoria
das artes aplicadas, nacionais ou estrangeiras.

108
§ 1º Cada um dos Livros do Tombo poderá ter vários volumes. Anexos

§ 2º Os bens, que se inclúem nas categorias enumeradas nas alíneas 1, 2, 3 e 4 do


presente artigo, serão definidos e especificados no regulamento que for expedido para
execução da presente lei.
Art. 5º O tombamento dos bens pertencentes à União, aos Estados e aos Municípios
se fará de ofício, por ordem do diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, mas deverá ser notificado à entidade a quem pertencer, ou sob cuja guarda
estiver a coisa tombada, afim de produzir os necessários efeitos.
Art. 6º O tombamento de coisa pertencente à pessôa natural ou à pessôa jurídica
de direito privado se fará voluntária ou compulsóriamente.
Art. 7º Proceder-se-à ao tombamento voluntário sempre que o proprietário o pedir
e a coisa se revestir dos requisitos necessários para constituir parte integrante do pa-
trimônio histórico e artístico nacional, a juízo do Conselho Consultivo do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ou sempre que o mesmo proprietário anuir,
por escrito, à notificação, que se lhe fizer, para a inscrição da coisa em qualquer dos
Livros do Tombo.
Art. 8º Proceder-se-á ao tombamento compulsório quando o proprietário se recu-
sar a anuir à inscrição da coisa.
Art. 9º O tombamento compulsório se fará de acôrdo com o seguinte processo:
1) o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, por seu órgão compe-
tente, notificará o proprietário para anuir ao tombamento, dentro do prazo de quinze
dias, a contar do recebimento da notificação, ou para, si o quisér impugnar, oferecer
dentro do mesmo prazo as razões de sua impugnação.
2) no caso de não haver impugnação dentro do prazo assinado que é fatal, o diretor
do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional mandará por símples despa-
cho que se proceda à inscrição da coisa no competente Livro do Tombo.
3) se a impugnação for oferecida dentro do prazo assinado, far-se-á vista da mesma,
dentro de outros quinze dias fatais, ao órgão de que houver emanado a iniciativa do
tombamento, afim de sustentá-la. Em seguida, independentemente de custas, será o
processo remetido ao Conselho Consultivo do Serviço do Patrimônio Histórico e Ar-
tístico Nacional, que proferirá decisão a respeito, dentro do prazo de sessenta dias, a
contar do seu recebimento. Dessa decisão não caberá recurso.
Art. 10. O tombamento dos bens, a que se refere o art. 6º desta lei, será considera-
do provisório ou definitivo, conforme esteja o respectivo processo iniciado pela notifi-
cação ou concluído pela inscrição dos referidos bens no competente Livro do Tombo.
Parágrafo único. Para todos os efeitos, salvo a disposição do art. 13 desta lei, o
tombamento provisório se equiparará ao definitivo.

109
PATRIMÔNIO CULTURAL: CAPÍTULO III
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE DOS EFEITOS DO TOMBAMENTO
Art. 11. As coisas tombadas, que pertençam à União, aos Estados ou aos Municípios,
inalienáveis por natureza, só poderão ser transferidas de uma à outra das referidas
entidades.
Parágrafo único. Feita a transferência, dela deve o adquirente dar imediato conhe-
cimento ao Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Art. 12. A alienabilidade das obras históricas ou artísticas tombadas, de propriedade
de pessôas naturais ou jurídicas de direito privado sofrerá as restrições constantes da
presente lei.
Art. 13. O tombamento definitivo dos bens de propriedade partcular será, por ini-
ciativa do órgão competente do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
transcrito para os devidos efeitos em livro a cargo dos oficiais do registro de imóveis e
averbado ao lado da transcrição do domínio.
§ 1º No caso de transferência de propriedade dos bens de que trata êste artigo, de-
verá o adquirente, dentro do prazo de trinta dias, sob pena de multa de dez por cento
sôbre o respectivo valor, fazê-la constar do registro, ainda que se trate de transmissão
judicial ou causa mortis.
§ 2º Na hipótese de deslocação de tais bens, deverá o proprietário, dentro do mes-
mo prazo e sob pena da mesma multa, inscrevê-los no registro do lugar para que
tiverem sido deslocados.
§ 3º A transferência deve ser comunicada pelo adquirente, e a deslocação pelo pro-
prietário, ao Serviço do Patrimônio Histórico e Artistico Nacional, dentro do mesmo
prazo e sob a mesma pena.
Art. 14. A. coisa tombada não poderá saír do país, senão por curto prazo, sem
transferência de domínio e para fim de intercâmbio cultural, a juízo do Conselho Con-
sultivo do Serviço do Patrimônio Histórico e Artistico Nacional.
Art. 15. Tentada, a não ser no caso previsto no artigo anterior, a exportação, para
fora do país, da coisa tombada, será esta sequestrada pela União ou pelo Estado em
que se encontrar.
§ 1º Apurada a responsábilidade do proprietário, ser-lhe-á imposta a multa de cin-
coenta por cento do valor da coisa, que permanecerá sequestrada em garantia do
pagamento, e até que êste se faça.
§ 2º No caso de reincidência, a multa será elevada ao dôbro.
§ 3º A pessôa que tentar a exportação de coisa tombada, alem de incidir na multa
a que se referem os parágrafos anteriores, incorrerá, nas penas cominadas no Código
Penal para o crime de contrabando.

110
Art. 16. No caso de extravio ou furto de qualquer objéto tombado, o respectivo Anexos

proprietário deverá dar conhecimento do fáto ao Serviço do Patrimônio Histórico e


Artístico Nacional, dentro do prazo de cinco dias, sob pena de multa de dez por cento
sôbre o valor da coisa.
Art. 17. As coisas tombadas não poderão, em caso nenhum ser destruidas, demo-
lidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização especial do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artistico Nacional, ser reparadas, pintadas ou restauradas, sob pena de
multa de cincoenta por cento do dano causado.
Parágrafo único. Tratando-se de bens pertencentes á União, aos Estados ou aos
municípios, a autoridade responsável pela infração do presente artigo incorrerá pes-
soalmente na multa.
Art. 18. Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Na-
cional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe im-
peça ou reduza a visibílidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de
ser mandada destruir a obra ou retirar o objéto, impondo-se nêste caso a multa de
cincoenta por cento do valor do mesmo objéto.
Art. 19. O proprietário de coisa tombada, que não dispuzer de recursos para pro-
ceder às obras de conservação e reparação que a mesma requerer, levará ao conhe-
cimento do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional a necessidade das
mencionadas obras, sob pena de multa correspondente ao dobro da importância em
que fôr avaliado o dano sofrido pela mesma coisa.
§ 1º Recebida a comunicação, e consideradas necessárias as obras, o diretor do
Serviço do Patrimônio Histórico e Artistico Nacional mandará executá-las, a expensas
da União, devendo as mesmas ser iniciadas dentro do prazo de seis mezes, ou provi-
denciará para que seja feita a desapropriação da coisa.
§ 2º À falta de qualquer das providências previstas no parágrafo anterior, poderá o
proprietário requerer que seja cancelado o tombamento da coisa. ( Vide Lei nº 6.292,
de 1975)
§ 3º Uma vez que verifique haver urgência na realização de obras e conservação ou
reparação em qualquer coisa tombada, poderá o Serviço do Patrimônio Histórico e Ar-
tístico Nacional tomar a iniciativa de projetá-las e executá-las, a expensas da União, in-
dependentemente da comunicação a que alude êste artigo, por parte do proprietário.
Art. 20. As coisas tombadas ficam sujeitas à vigilância permanente do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que poderá inspecioná-los sempre que fôr
julgado conveniente, não podendo os respectivos proprietários ou responsáveis criar
obstáculos à inspeção, sob pena de multa de cem mil réis, elevada ao dôbro em caso
de reincidência.

111
PATRIMÔNIO CULTURAL: Art. 21. Os atentados cometidos contra os bens de que trata o art. 1º desta lei são
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional.

CAPÍTULO IV
DO DIREITO DE PREFERÊNCIA
Art. 22. Em face da alienação onerosa de bens tombados, pertencentes a pessôas
naturais ou a pessôas jurídicas de direito privado, a União, os Estados e os municípios
terão, nesta ordem, o direito de preferência.
§ 1º Tal alienação não será permitida, sem que prèviamente sejam os bens ofere-
cidos, pelo mesmo preço, à União, bem como ao Estado e ao município em que se
encontrarem. O proprietário deverá notificar os titulares do direito de preferência a
usá-lo, dentro de trinta dias, sob pena de perdê-lo.
§ 2º É nula alienação realizada com violação do disposto no parágrafo anterior,
ficando qualquer dos titulares do direito de preferência habilitado a sequestrar a coisa
e a impôr a multa de vinte por cento do seu valor ao transmitente e ao adquirente,
que serão por ela solidariamente responsáveis. A nulidade será pronunciada, na forma
da lei, pelo juiz que conceder o sequestro, o qual só será levantado depois de paga a
multa e se qualquer dos titulares do direito de preferência não tiver adquirido a coisa
no prazo de trinta dias.
§ 3º O direito de preferência não inibe o proprietário de gravar livremente a coisa
tombada, de penhor, anticrese ou hipoteca.
§ 4º Nenhuma venda judicial de bens tombados se poderá realizar sem que, prè-
viamente, os titulares do direito de preferência sejam disso notificados judicialmente,
não podendo os editais de praça ser expedidos, sob pena de nulidade, antes de feita
a notificação.
§ 5º Aos titulares do direito de preferência assistirá o direito de remissão, se dela
não lançarem mão, até a assinatura do auto de arrematação ou até a sentença de adju-
dicação, as pessôas que, na forma da lei, tiverem a faculdade de remir.
§ 6º O direito de remissão por parte da União, bem como do Estado e do município
em que os bens se encontrarem, poderá ser exercido, dentro de cinco dias a partir da
assinatura do auto do arrematação ou da sentença de adjudicação, não se podendo
extraír a carta, enquanto não se esgotar êste prazo, salvo se o arrematante ou o adjudi-
cante for qualquer dos titulares do direito de preferência.

112
CAPÍTULO V Anexos

DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 23. O Poder Executivo providenciará a realização de acôrdos entre a União e os
Estados, para melhor coordenação e desenvolvimento das atividades relativas à prote-
ção do patrimônio histórico e artistico nacional e para a uniformização da legislação
estadual complementar sôbre o mesmo assunto.
Art. 24. A União manterá, para a conservação e a exposição de obras históricas e
artísticas de sua propriedade, além do Museu Histórico Nacional e do Museu Nacio-
nal de Belas Artes, tantos outros museus nacionais quantos se tornarem necessários,
devendo outrossim providênciar no sentido de favorecer a instituição de museus esta-
duais e municipais, com finalidades similares.
Art. 25. O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional procurará entendi-
mentos com as autoridades eclesiásticas, instituições científicas, históricas ou artísticas
e pessôas naturais o jurídicas, com o objetivo de obter a cooperação das mesmas em
benefício do patrimônio histórico e artístico nacional.
Art. 26. Os negociantes de antiguidades, de obras de arte de qualquer natureza, de
manuscritos e livros antigos ou raros são obrigados a um registro especial no Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, cumprindo-lhes outrossim apresentar
semestralmente ao mesmo relações completas das coisas históricas e artísticas que
possuírem.
Art. 27. Sempre que os agentes de leilões tiverem de vender objetos de natureza
idêntica à dos mencionados no artigo anterior, deverão apresentar a respectiva rela-
ção ao órgão competente do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
sob pena de incidirem na multa de cincoenta por cento sôbre o valor dos objetos
vendidos.
Art. 28. Nenhum objéto de natureza idêntica à dos referidos no art. 26 desta lei po-
derá ser posto à venda pelos comerciantes ou agentes de leilões, sem que tenha sido
préviamente autenticado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ou
por perito em que o mesmo se louvar, sob pena de multa de cincoenta por cento sôbre
o valor atribuido ao objéto.
Parágrafo único. A. autenticação do mencionado objeto será feita mediante o paga-
mento de uma taxa de peritagem de cinco por cento sôbre o valor da coisa, se êste fôr
inferior ou equivalente a um conto de réis, e de mais cinco mil réis por conto de réis
ou fração, que exceder.
Art. 29. O titular do direito de preferência gosa de privilégio especial sôbre o valor
produzido em praça por bens tombados, quanto ao pagamento de multas impostas em
virtude de infrações da presente lei.

113
PATRIMÔNIO CULTURAL: Parágrafo único. Só terão prioridade sôbre o privilégio a que se refere êste artigo os
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE créditos inscritos no registro competente, antes do tombamento da coisa pelo Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Art. 30. Revogam-se as disposições em contrário.

Rio de Janeiro, 30 de novembro de 1937, 116º da Independência e 49º da Repúbli-


ca. GETULIO VARGAS.

Gustavo Capanema

114
A nexo 2 Anexos

Decreto no. 3.551 (04/agosto/2000)1

Presidência da República
Subchefia para Assuntos Jurídicos

DECRETO Nº 3.551, DE 4 DE AGOSTO DE 2000.

Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimô-


nio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras
providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, in-
ciso IV, e tendo em vista o disposto no art. 14 da Lei no 9.649, de 27 de maio de 1998,
D E C R E T A:
Art. 1o Fica instituído o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que cons-
tituem patrimônio cultural brasileiro.

1 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3551.htm>. Acesso em: jan.


2001.

115
PATRIMÔNIO CULTURAL: § 1o Esse registro se fará em um dos seguintes livros:
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE I - Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de
fazer enraizados no cotidiano das comunidades;
II - Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que mar-
cam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras
práticas da vida social;
III - Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas manifestações
literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas;
IV - Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuá-
rios, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais
coletivas.
§ 2o A inscrição num dos livros de registro terá sempre como referência a conti-
nuidade histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a
formação da sociedade brasileira.
§ 3o Outros livros de registro poderão ser abertos para a inscrição de bens culturais
de natureza imaterial que constituam patrimônio cultural brasileiro e não se enqua-
drem nos livros definidos no parágrafo primeiro deste artigo.
Art. 2o São partes legítimas para provocar a instauração do processo de registro:
I - o Ministro de Estado da Cultura;
II - instituições vinculadas ao Ministério da Cultura;
III - Secretarias de Estado, de Município e do Distrito Federal;
IV - sociedades ou associações civis.
Art. 3o As propostas para registro, acompanhadas de sua documentação técnica,
serão dirigidas ao Presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
- IPHAN, que as submeterá ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.
§ 1o A instrução dos processos de registro será supervisionada pelo IPHAN.
§ 2o A instrução constará de descrição pormenorizada do bem a ser registrado,
acompanhada da documentação correspondente, e deverá mencionar todos os ele-
mentos que lhe sejam culturalmente relevantes.
§ 3o A instrução dos processos poderá ser feita por outros órgãos do Ministério da
Cultura, pelas unidades do IPHAN ou por entidade, pública ou privada, que detenha
conhecimentos específicos sobre a matéria, nos termos do regulamento a ser expedido
pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.
§ 4o Ultimada a instrução, o IPHAN emitirá parecer acerca da proposta de registro e
enviará o processo ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, para deliberação.
§ 5o O parecer de que trata o parágrafo anterior será publicado no Diário Oficial da
União, para eventuais manifestações sobre o registro, que deverão ser apresentadas ao

116
Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural no prazo de até trinta dias, contados da Anexos

data de publicação do parecer.


Art. 4o O processo de registro, já instruído com as eventuais manifestações apresen-
tadas, será levado à decisão do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.
Art. 5o Em caso de decisão favorável do Conselho Consultivo do Patrimônio Cul-
tural, o bem será inscrito no livro correspondente e receberá o título de ‘Patrimônio
Cultural do Brasil’.
Parágrafo único. Caberá ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural determi-
nar a abertura, quando for o caso, de novo Livro de Registro, em atendimento ao
disposto nos termos do § 3o do art. 1o deste Decreto.
Art. 6o Ao Ministério da Cultura cabe assegurar ao bem registrado:
I - documentação por todos os meios técnicos admitidos, cabendo ao IPHAN man-
ter banco de dados com o material produzido durante a instrução do processo.
II - ampla divulgação e promoção.
Art. 7o O IPHAN fará a reavaliação dos bens culturais registrados, pelo menos a
cada dez anos, e a encaminhará ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural para
decidir sobre a revalidação do título de ‘Patrimônio Cultural do Brasil’.
Parágrafo único. Negada a revalidação, será mantido apenas o registro, como refe-
rência cultural de seu tempo.
Art. 8o Fica instituído, no âmbito do Ministério da Cultura, o ‘Programa Nacional do
Patrimônio Imaterial’, visando à implementação de política específica de inventário,
referenciamento e valorização desse patrimônio.
Parágrafo único. O Ministério da Cultura estabelecerá, no prazo de noventa dias, as
bases para o desenvolvimento do Programa de que trata este artigo.
Art. 9o Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 4 de agosto de 2000; 179o da Independência e 112o da República.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO (Presidente)


Francisco Weffort (Ministro da Cultura)

117
PATRIMÔNIO CULTURAL:
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E
SUSTENTABILIDADE
Anotações

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