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Iniciação à ciência e à pesquisa

a construção do conhecimento
EDITORA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ

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autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos reservados desta Paulo Bento da Silva
edição 2013 para a editora. Solange Marly Oshima
Formação de Professores - EAD

Ana Cristina Teodoro da Silva


Luzia Marta Bellini
(ORGANIZADORAS)

Iniciação à ciência
e à pesquisa
A Construção do Conhecimento

36
Maringá
2009
Coleção Formação de Professores - EAD

Apoio técnico: Rosane Gomes Carpanese


Luciana de Araújo Nascimento Guaraldo
Normalização e catalogação: Ivani Baptista CRB - 9/331
Revisão Gramatical: Annie Rose dos Santos
Edição e Produção Editorial: Carlos Alexandre Venancio
Eliane Arruda
Ilustração da Capa: Fragmentos da gravura “Répteis”, de Maurits Cornelis Escher

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Iniciação à ciência e à pesquisa a construção do conhecimento / Ana Cristina


I56 Teodoro da Silva, Luzia Marta Bellini, organizadoras. - Maringá: Eduem, 2009.
114 p. ; 21 cm. (Formação de Professores - EAD; v. 36).

ISBN 978-85-7628-169-6

1. Educação – Ciência e pesquisa. 2. Trabalhos acadêmicos - Normalização. 3.


Pesquisa - Ética. I. Silva, Ana Cristina Teodoro da. II. Bellini, Luzia Marta. III, orgs.

CDD 21. ed. 001.42

Copyright © 2010 para o autor


1o Reimpressão 2013 - Revisada
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo
mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos
reservados desta edição 2009 para Eduem.

Endereço para correspondência:

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s umário
sobre os autores > 7

apresentação da coleção > 9


apresentação do livro > 11

capÍtuLo 1
senso comum e ciência: visões de mundo
José de Arimathéia Cordeiro Custódio
> 13

capÍtuLo 2
os debates das ciências contemporâneas:
alguns dilemas na investigação educacional
> 25
Luzia Marta Bellini

capÍtuLo 3
texto: o que é? > 39
Marilurdes Zanini

capÍtuLo 4
produção de trabalhos acadêmico-científicos fundamentais:
fichamento, resumo e resenha
> 53
Jorge Cantos

capÍtuLo 5
normas para apresentação de trabalhos acadêmicos
Luzia Marta Bellini / Carlos Alberto Mororó Silva
> 69

capÍtuLo 6
pesquisar com ética
Raymundo de Lima
> 89
5
s obre os autores
JosÉ de arImathÉIa cordeIro custÓdIo
Jornalista da universidade estadual de Londrina (ueL). Graduado em Jorna-

lismo e direito (ueL). mestre em Letras (ueL). doutor em estudos da LIngua-

gem (ueL).

marILurdes ZanInI
professora do departamento de Letras da universidade estadual de maringá

(uem). mestre em Letras (unesp-assis). doutora em Letras (unesp-assis).

JorGe cantos
professor da universidade estadual de maringá (uem). Graduado em estudos

sociais (unisinos) e em ciências sociais (Faficla). mestre em educação (uem).

doutor em Filosofia (unicamp).

LuZIa marta BeLLInI


professora do departamento de Fundamentos da educação da universidade

estadual de maringá (uem). Graduado em ciências Biológicas (usp). mestre

em educação (uFscar). doutora em psicologia social (usp).

carLos aLBerto mororÓ sILVa


professor do departamento de Fundamentos da educação da universidade

estadual de maringá (uem). Graduado em Filosofia (uFpB). mestre em serviço

social (uFpB). doutor em engenharia de produção (uFsc).

raymundo de LIma
professor do departamento de Fundamentos da educação da universidade

estadual de maringá (uem). Graduado em psicologia (uGF - rio de Janeiro).

mestre em psicologia escolar (uGF - rio de Janeiro). doutor em educação

(usp - são paulo).

7
a presentação da coleção
A coleção Formação de Professores - EAD teve sua primeira edição publicada em
2005, com 33 títulos financiados pela Secretaria de Educação a Distância (SEED) do
Ministério da Educação (MEC) para que os livros pudessem ser utilizados como material
didático nos cursos de licenciatura ofertados no âmbito do Programa de Formação de
Professores (Pró-Licenciatura 1). A tiragem da primeira edição foi de 2500 exemplares.
A partir de 2008, demos início ao processo de organização e publicação da segunda
edição da coleção, com o acréscimo de 12 novos títulos. A conclusão dos trabalhos
deverá ocorrer somente no ano de 2012, tendo em vista que o financiamento para
esta edição será liberado gradativamente, de acordo com o cronograma estabelecido
pela Diretoria de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal do Ensino Superior (CAPES), que é responsável pelo programa denominado
Universidade Aberta do Brasil (UAB).
A princípio, serão impressos 695 exemplares de cada título, uma vez que os livros
da nova coleção serão utilizados como material didático para os alunos matriculados
no Curso de Pedagogia, Modalidade de Educação a Distância, ofertado pela Universi-
dade Estadual de Maringá, no âmbito do Sistema UAB.
Cada livro da coleção traz, em seu bojo, um objeto de reflexão que foi pensado
para uma disciplina específica do curso, mas em nenhum deles seus organizadores
e autores tiveram a pretensão de dar conta da totalidade das discussões teóricas e
práticas construídas historicamente no que se referem aos conteúdos apresentados. O
que buscamos, com cada um dos livros publicados, é abrir a possibilidade da leitura,
da reflexão e do aprofundamento das questões pensadas como fundamentais para a
formação do Pedagogo na atualidade.
Por isso mesmo, esta coleção somente poderia ser construída a partir do esforço
coletivo de professores das mais diversas áreas e departamentos da Universidade Esta-
dual de Maringá (UEM) e das instituições que têm se colocado como parceiras nesse
processo.
Neste sentido, agradecemos sinceramente aos colegas da UEM e das demais insti-
tuições que organizaram livros e ou escreveram capítulos para os diversos livros desta
coleção.
Agradecemos, ainda, à administração central da UEM, que por meio da atuação
direta da Reitoria e de diversas Pró-Reitorias não mediu esforços para que os traba-
lhos pudessem ser desenvolvidos da melhor maneira possível. De modo bastante

9
InIcIação à específico, destacamos o esforço da Reitoria para que os recursos para o financiamento
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do desta coleção pudessem ser liberados em conformidade com os trâmites burocráticos
conhecImento
e com os prazos exíguos estabelecidos pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE).
Internamente enfatizamos, ainda, o envolvimento direto dos professores do De-
partamento de Fundamentos da Educação (DFE), vinculado ao Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes (CCH), que no decorrer dos últimos anos empreenderam
esforços para que o curso de Pedagogia, na modalidade de educação a distância, pu-
desse ser criado oficialmente, o que exigiu um repensar do trabalho acadêmico e uma
modificação significativa da sistemática das atividades docentes.
No tocante ao Ministério da Educação, ressaltamos o esforço empreendido pela
Diretoria da Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal do Ensino Superior (CAPES) e pela Secretaria de Educação de Educação a
Distância (SEED/MEC), que em parceria com as Instituições de Ensino Superior (IES)
conseguiram romper barreiras temporais e espaciais para que os convênios para a li-
beração dos recursos fossem assinados e encaminhados aos órgãos competentes para
aprovação, tendo em vista a ação direta e eficiente de um número muito pequeno de
pessoas que integram a Coordenação Geral de Supervisão e Fomento e a Coordenação
Geral de Articulação.
Esperamos que a segunda edição da Coleção Formação de Professores - EAD possa
contribuir para a formação dos alunos matriculados no curso de Pedagogia, bem como
de outros cursos superiores a distância de todas as instituições públicas de ensino
superior que integram e ou possam integrar em um futuro próximo o Sistema UAB.

Maria Luisa Furlan Costa


Organizadora da Coleção

10
a presentação do livro
Por que, em um curso de Pedagogia, uma das primeiras disciplinas é Iniciação à
Ciência e à Pesquisa? Há muitas respostas para essa pergunta, mas, sem dúvida, uma
delas é: “Por que os saberes que constituem a Educação como campo de conheci-
mento são, em boa parte, científicos?”. Ou seja, muito do que vocês estudarão está
fundamentado em pesquisas científicas, em investigações que priorizam métodos para
chegarem a conclusões.
Muito, mas não tudo? Sim; muito, mas não tudo. Afinal de contas, a Educação
também compreende saberes oriundos de outras formas de conhecimento, tais como
a arte, a filosofia e o senso comum. Com isso, já de partida, entendemos que há dife-
rentes tipos de conhecimento, todos respeitáveis. As fronteiras entre eles nem sempre
são rígidas, e o diálogo é bem-vindo. Durante o curso, o estudante de Pedagogia tor-
nar-se-á um caminhante de fronteiras, como afirma Edgar Morin. Para isso, deverá estar
aberto ao mundo da leitura, das reflexões, da vontade de pensar e agir.
Para iniciar esse caminho, já que boa parte do estudado será baseado em pesquisas
científicas, cabe ao aluno saber o que a ciência é, como é constituída, quais seus dile-
mas. Entendemos que o estudante universitário não é mero consumidor de informa-
ções; ele deve ser, também, produtor de conhecimentos. Desde o início de seu curso
deve estar apto a, além de estudar e debater, pesquisar e constituir-se como agente em
seu caminho e no grupo em que vive. Isso o levará a se constituir como leitor e escritor
de textos e outras ações.
O primeiro capítulo tratará de pôr em diálogo ciência e senso comum. “Pôr em
diálogo”, e não meramente diferenciá-los. Ciência e senso comum muitas vezes se
interpenetram, como verão no primeiro capítulo, Senso comum e ciência: visões de
mundo, de José de Arimathéia Cordeiro Custódio. Vocês observarão também que o
termo ciência não tem apenas uma definição: é produção humana histórica, portan-
to mutável, falível, variável. Na sequência, os debates mais atuais sobre ciência serão
apresentados por Luzia Marta Bellini no segundo capítulo, intitulado Os debates das
ciências contemporâneas: alguns dilemas na investigação educacional.
É importante salientar que não pretendemos, com este livro, dar conta totalmente
de conteúdos tão vastos. Oferecemos introduções que poderão ou deverão ser apro-
fundadas por mais estudos e pesquisas. As referências ao final de cada texto e os sites
sugeridos são caminhos indicados.
É exemplar percebermos que os autores não necessariamente concordam uns com
os outros. Ciência é debate. Cada capítulo tem um autor, traz a marca de sua trajetória,
que não é necessariamente a mesma de outros autores. Fundamentalmente, todos os
temas tratados aqui estão em debate constante, pois a ciência tem o compromisso de

11
InIcIação à buscar a verdade, não deve ter a pretensão de tê-la encontrado. O conjunto dos conhe-
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do
cimentos científicos é heterogêneo e de muita discussão. Mais vale manter o debate
conhecImento
que pretender ter encontrado a verdade. Sabemos pela história que o conhecimento
muda; o que hoje parece verdadeiro amanhã poderá ser questionado. Ciência é expe-
riência de humildade e de reconhecimento do tanto que ignoramos.
Normalmente a ciência é divulgada em textos verbais, escritos ou orais – caso de
aulas e palestras. Ciência é conhecimento público; logo, faz parte das obrigações do
cientista publicar seus resultados. Por isso vocês devem aprender a compor textos que
representem os conhecimentos obtidos. Professor deve ser autor, capaz, por exemplo,
de escrever um texto voltado a seus alunos. O capítulo três, Texto: o que é?, de Ma-
rilurdes Zanini, discute a noção de texto verbal e elementos que devem ser levados em
conta para a comunicação das idéias.
No curso, haverá grande solicitação de produção de textos e trabalhos. Vocês lerão,
estudarão e escreverão bastante, porque esses são exercícios necessários à formação
profissional do pedagogo. Por esse motivo temos um capítulo, o quarto, relativo à
elaboração de resumos, resenhas e fichamentos, denominado Produção de trabalhos
acadêmico-científicos fundamentais: fichamento, resumo e resenha, de autoria de
Jorge Cantos. E o quinto capítulo, Normas para apresentação de trabalhos acadêmi-
cos, de Luzia Marta Bellini e Carlos Alberto Mororó Silva, trata das normas que devem
ser seguidas para a apresentação de tais trabalhos.
Por fim, discutir ciência envolve discutir ética: ciência para que e para quem? Que
cuidados devemos tomar ao nos postarmos como pesquisadores, como cientistas? Que
cuidados devemos exigir dos cientistas? É o que será debatido no sexto e último capí-
tulo, Pesquisar com ética, de autoria de Raymundo de Lima.
Pretendemos que você, neste livro, encontre sentido nas leituras e interpretações
dos textos com os quais se deparará durante a graduação. Perceba que a qualidade de
seus estudos dependerá também de seu engajamento. Os textos não trazem os conhe-
cimentos prontos; o conhecimento é produzido na mente de quem elabora o texto. O
texto se completa no leitor, na leitura criativa, rica, crítica.
Explore os textos do livro, mas não fique apenas neles. Aprofunde em outros livros,
use a imensa biblioteca que a rede de computadores dispõe. Há um conjunto imenso
de pessoas que, há muitos milênios, se preocupam com o conhecimento, como este
acontece, como devemos registrá-lo, deixando-o disponível a outras gerações. Entenda
que você, agora, insere-se nesse conjunto, começa a constituir-se como ponte entre o
que já foi produzido, o que está em construção e o que virá. É caminho de surpresas,
por ora maravilhosas. E também de grande responsabilidade.

Ana Cristina Teodoro da Silva


Luzia Marta Bellini
Organizadoras do Livro

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1 senso comum e
ciência: visões de
mundo

José de arimathéia cordeiro custódio

Introdução
Qual a melhor época para podar certos tipos de árvores? A resposta é fácil: nos
meses sem “R” – ou seja, maio, junho, julho e agosto. Qual a lógica dessa resposta?
Ora, os meses sem “r” no nome são os mais secos do ano, o que significa que a poda
liberará menos líquidos das árvores, e consequentemente atrairá menos insetos que
poderiam prejudicar a saúde do vegetal. Todo esse raciocínio aparentemente com-
plexo, mas subjacente, e traduzido para uma fórmula mais simples de memorizar,
caracteriza o conhecimento do senso comum.
E como se calcula o tempo de uma gestação humana comum? Muitos médicos se
baseiam na gravidez mais famosa da História: a de Maria de Nazaré. O lapso de tempo
entre 25 de março – dia da anunciação e da concepção – e 25 de dezembro – dia do
nascimento – fixa o parâmetro.
Tais conhecimentos, tradicionais, são considerados de senso comum. Baseiam-
se em alguma experiência; parecem funcionar na maioria das vezes, embora falhem
eventualmente. São transmitidos de geração a geração, que simplesmente os conser-
va, quase nada acrescentando ou reduzindo.
Entretanto, não é semelhante o conhecimento científico? Ele também se baseia na
experiência – ou experimentação. Também pode falhar eventualmente (coitada da
Meteorologia!) e é igualmente divulgado. As aparentes semelhanças acabam aí. O co-
nhecimento dos sensos comum e científico não é, na verdade, semelhante assim. Con-
tudo, quem nega qualquer “fraternidade” entre ambos é o pensamento científico. É ele
que costuma desprezar seu “irmão” senso comum, como se este fosse o retrógrado,
o envelhecido, o extemporâneo, o ultrapassado, o infundado, o crédulo, o ignorante.

13
InIcIação à Por outro lado, o economista sueco Gunnar Myrdal (1898-1987) afirmou certa vez: “A
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do ciência nada mais é que o senso comum refinado e disciplinado”.
conhecImento
Hoje em dia, portanto, há espaço para os dois, como veremos a seguir.

o senso comum
Aranha e Martins (1993, p. 127-128) assim definem senso comum: “chamamos de
conhecimento espontâneo ou senso comum o saber resultante das experiências le-
vadas a efeito pelo homem ao enfrentar os problemas da existência. [...] Além disso,
cada geração recebe das anteriores a herança fecunda que não só é assimilada como
também transformada”. Segundo as autoras, tal conhecimento é “ametódico e assiste-
mático”, bem como “empírico” e “ingênuo”, no sentido de que não indaga a si mesmo
como tal.
Normalmente, embora relacione causas e efeitos dos fenômenos com os quais in-
terage, a pessoa que age segundo o senso comum não pergunta sobre tais causas e
efeitos, bastando-lhe a certeza – às vezes falível – de que tal causa gera tal efeito. Não
há preocupação com o “como” tal fenômeno ocorre. Com isso, certas associações de
ideias que poderiam enriquecer ou ampliar o conhecimento são desconsideradas. Um
exemplo – entre muitos – pode vir da “Física de Cozinha”: sabemos que, para evitar
que a “quentura” do chá quebre a xícara, é só colocar a colher dentro do recipiente.
A Física pode perfeitamente explicar as propriedades de absorção do calor pelo metal
em comparação com as da louça e assim esclarecer o fenômeno. Mas para quê?
A satisfação do senso comum com a compreensão da causa-efeito já levou a um
conhecimento com base em aparências. O exemplo mais conhecido é o da Terra imó-
vel, enquanto os astros, inclusive o sol, giram em torno dela. A ideia de que a Terra
tinha essa condição e estava no centro do universo vigorou por séculos. Não é à toa
que na Bíblia, no Livro de Josué (BÍBLIA, 1995a), há uma passagem na qual Deus para
o “movimento” do sol por quase um dia inteiro para que os israelenses pudessem
vencer uma batalha contra os emoritas. Como sabemos que o sol não gira em torno
da Terra, mas o contrário, já percebemos que o referido texto – assim como muitos
outros – não pode ser interpretado ao pé da letra, pois não tem sustentação factual.
Ainda assim, já circulou na Internet uma mensagem dando conta de que uma inexpli-
cável defasagem de tempo nos poderosos relógios atômicos da NASA seria esclarecida
por esta e outra passagem da Bíblia, em que o sol realiza um movimento retrógrado
por alguns minutos. Ou, mais especificamente, dez graus. Está no Segundo Livro de
Reis (BÍBLIA, 1995b).
A aparência pode ainda dar a impressão de que um fenômeno particular traduza
uma ocorrência universal, o que caracteriza um pensamento indutivo. Sem um rigor

14
na observação, esta pode se tornar uma perspectiva aleatória, baseada na incomple- senso comum e ciência:
visões de mundo
tude. Ou, simplesmente, um conhecimento produzido a partir de uma subjetividade.
A subjetividade, aliás, é forte característica do senso comum. É possível, mesmo
diante de muitos fatos mais objetivos, que os valores subjetivos individuais – valores
morais, opiniões pessoais, intuição, crenças – definam um juízo acerca de um objeto,
pessoa ou fenômeno. Assim, basta um encontro com um objeto, pessoa ou fato dife-
rente para que o senso comum logo o rotule de “estranho” ou “engraçado” (ARANHA;
MARTINS, 1993, p. 129).
Chauí (2000, p. 248) aponta algumas características próprias do senso comum.
O primeiro deles é a subjetividade. Em outras palavras, expressam saberes e valores
de um determinado indivíduo ou grupo, em condições específicas. O senso comum
também é, conforme a autora, qualitativo, ou seja, são feitos juízos dos objetos, como
grandes/pequenos, novos/velhos, próximos/distantes, belos/feios. É ainda heterogê-
neo – referem-se a fatos diferentes: “sonhar com água é diferente de sonhar com uma
escada”, exemplifica a autora. Por essas duas últimas características, o senso comum
também é individualizador – cada fato ou objeto parece próprio e ligado a um atribu-
to: mel/doce, fogo/quente etc. Ao mesmo tempo, porém, pode ser generalizador em
sua categorização: animais, artes, remédios, bebidas etc.
As generalizações trazem as associações do tipo fumaça/fogo. Com isso, aquilo que
se repete não é admirado, torna-se comum e esperado. O que chama a atenção do
senso comum é aquilo que é extraordinário, milagroso. Exatamente por essa percep-
ção, o saber comum às vezes encara uma descoberta científica como magia, maravilha,
força sobrenatural ou obra miraculosa. A ligação com o maravilhoso gera projeções
nas coisas do mundo: fatos parecem ser obra de uma entidade sobrenatural ou até de
extraterrestres.
O que hoje é considerado senso comum tem estreita relação com a tradição, por-
que esta é forma pelo qual esse tipo de conhecimento é transmitido e se perpetua no
curso da História. Por outro lado, o senso comum de hoje pode ser apenas um conhe-
cimento científico de ontem já superado na maioria dos contextos sociais. Todavia, an-
tigos conhecimentos ainda se mantêm em alguns grupos, como no interior do Brasil.
Em certas regiões, a população se guia por conhecimentos abandonados há séculos
pelos moradores das cidades. Tais localidades rurais são uma presença viva da História.
Tomemos, por exemplo, alguns conhecimentos de Medicina. Só se conhecem dois
trabalhos de Medicina produzidos na Europa do século XII; ambos foram escritos por
Hildegard de Bingen. A esse respeito, Pernoud (1996, p. 83) assinala: “Ela compôs uma
verdadeira enciclopédia de conhecimentos da época, na Alemanha, em matéria de ciên-
cias naturais e de medicina”. E acrescenta: “A medicina hildergardiana vem despertando

15
InIcIação à a atenção do público há bastante tempo e tem suscitado numerosos trabalhos [...]”
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do (PERNOUD, 1996, p. 84). Trata-se da ciência moderna tentando legitimar, com seus
conhecImento
modelos e instrumentos, um conhecimento secular assimilado pelo senso comum.
Ao enfocar as “sutilezas naturais”, Hildergard produziu conhecimentos terapêuti-
cos a partir da observação de plantas, animais, da água e das diferenças de temperatura
ambiente. Remédios naturais e dietas alimentares faziam parte de suas prescrições
para diferentes enfermidades. Tais receitas chegaram aos nossos dias pela tradição e
pelas heranças culturais familiares.
Quer um remédio para o estresse e que ainda pode ajudar a prevenir o diabetes?
Hildergard tinha, mas chamava esse mal de “cérebro fatigado”. Anote:

Tomar uma noz moscada, peso igual de canela e um pouco de cravo; reduzir a
pó; com esse pó, a flor da farinha e um pouco de água, fazer pequenas bolachas
e comer frequentemente; essa preparação ameniza a amargura do corpo e do
espírito, abre o coração, aguça os sentidos embotados, alegra a alma, purifica
os sentidos, diminui os humores nocivos, traz bom açúcar ao sangue e fortifica
(PERNOUD, 1996, p. 90).

As prescrições de Hildegard, assim como outras de sua época, não eram acuradas
quanto à dosagem e outros detalhes, como vemos atualmente. Contudo, as substân-
cias que a mística indicava como terapêuticas são cuidadosa e cientificamente estuda-
das por pesquisadores contemporâneos, os quais se indagam o que há por trás dos
eventuais resultados positivos das receitas de Hildergard. Logo, o saber medieval, que
se transformou em senso comum para parte da população, ganha o status de objeto
de estudo. Naturalmente, é mais uma apropriação da ciência moderna, que tudo quer
medir e pesar. Mas é também uma confissão de que os demais tipos de conhecimento
– como o senso comum – não podem simplesmente ser ignorados.

cIêncIa
Para Chauí (2000, p. 249), o que distingue a atitude científica do senso comum
é que a primeira indaga a si mesma e suas próprias certezas. Desconfia da falta de
perguntas e de crítica. A autora contrapõe, ponto a ponto, as características do senso
comum, ao tratar do conhecimento científico. Então, antes de mais nada, este é obje-
tivo. É também quantitativo, ou seja, busca medir, comparar e avaliar. É homogêneo,
porque busca as leis gerais que regem os fenômenos. Não é individualizador quando
reúne aparentes individualidades sob as mesmas regras, padrões e critérios de medida.
São, todavia, diferenciadores quando distinguem além da aparência de semelhança, e
descobrem leis diferentes para fenômenos iguais apenas superficialmente.
As associações ou relações causais tão recorrentes no senso comum não aconte-
cem facilmente com o conhecimento científico. Primeiro, este investiga a natureza ou

16
estrutura do fenômeno. E, ao contrário do saber comum, é a regularidade e frequência senso comum e ciência:
visões de mundo
que faz admirar. O que pareceria um milagre será explicado pela revelação de detalhes
particulares que, sempre que se repetirem, produzirão determinado efeito.
Evidentemente, ciência não é magia nem é exercida por entidades sobre-humanas.
E ao invés de fazer projeções, a ciência propala que liberta o ser humano delas. Final-
mente, o saber científico está sempre revendo a si mesmo.
O pensamento e o método científico tais como nos chegaram até hoje são uma
invenção da Modernidade, ou seja, surgiram fortes do século XV em diante, vindo a
se estabelecerem mesmo no século XVII e já encontrarem uma crise no século XIX,
exatamente a partir do momento em que atingiram seu ápice. Atualmente, no século
XXI, convivem os que ainda defendem o modelo moderno e os que o criticam, posi-
cionando-se como pós-modernos, ou contemporâneos.
Aranha e Martins (1993, p. 162) asseveram que “Até o século XIX o desenvolvimen-
to da ciência tinha sido tão grande que o homem estava convencido da excelência do
método científico para conhecer a realidade”. Era o Positivismo. E as autoras conti-
nuam: “No entanto, ainda no século XIX e no início do século XX, algumas descober-
tas golpearam rudemente as concepções clássicas, originando o que se pode chamar
de crise da ciência moderna”. Aparece a necessidade de revisão do conceito de ciência,
dos critérios de certeza e da validade dos modelos científicos (ARANHA; MARTINS,
1993, p. 163).
Já para Ronan (2001, p. 7), a História da Ciência é marcada por teorias científicas
revolucionárias, desde os babilônios e os antigos gregos. Porém ressalta:

[...] mas a revolução que mudou a forma de encarar a natureza e que gerou a
moderna concepção científica, foi a que começou no século XV e se prolongou
até o fim do século XVI. De fato suas conseqüências foram tão grandes que,
com toda a razão, muitas vezes a chamam de ‘A Revolução Científica’.

Para descrever os séculos XVII e XVIII na História da Ciência, o autor não disfarça
seu tingimento moderno:

Chegamos agora ao período em que a ciência moderna foi finalmente lançada


e estabelecida em sua inaudita viagem de conquista. Do princípio do século
XVII ao fim do século XVIII, o aspecto geral do mundo natural alterou-se de
tal forma que Copérnico teria ficado pasmo. [...] A matemática tornou-se uma
ferramenta cada vez mais essencial para as ciências físicas; os resultados eram
expressos em números, e os argumentos qualitativos eram rejeitados. Houve
também um desenvolvimento considerável no projeto e na fabricação de ins-
trumentos científicos, pois, se o mundo natural seria investigado de modo mais
rigoroso e mais preciso, então era necessário um equipamento especializado.
O desenho do que era, de fato, uma nova geração de instrumentos de precisão
começou na última parte do século XVI [...] (RONAN, 2001, p. 73).

17
InIcIação à Ciência, em sua concepção moderna, passou a ser sinônimo de instrumentalização.
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do Percebemos isso logo nos primeiros argumentos da cientista, personagem do filme O
conhecImento
Ponto de Mutação, ao falar do relógio. Percebemos isso na abertura de um desenho
animado multinacional europeu sobre a História da Humanidade, que resume em
curtas cenas os principais períodos. A partir da criação das máquinas a vapor – e com
exceção da Revolução Francesa – tudo o que a abertura mostra é uma sequência de
inovações tecnológicas: locomotiva a vapor, automóveis, avião, foguete e satélite.
A historiadora Danielle Ljacquart, citada na Scientific American História (SCIENTI-
FIC, 2004b, p. 5), entende que “as definições do que é ‘científico’ mudaram de modo
considerável”. A autora prossegue: “Para ela, a causa do ceticismo está nas prioridades
medievais: ‘As disciplinas da época estavam incluídas num conjunto no qual todos os
domínios do saber racional estavam organizados numa espécie de pirâmide, no alto
da qual ficava a teologia’”.
O que a Modernidade fez foi mudar essa figura da pirâmide, o que implicou em
uma nova forma de ver – e organizar – o mundo do ponto de vista humano. A profes-
sora de História da Ciência da Unicamp, Silvia Figueiroa, na revista Scientific American
História (SCIENTIFIC, [2005?], p. 6), propala que “O Renascimento representou, antes
de tudo, a releitura do mundo. O que foi uma tarefa imensa, de enorme impacto”.
Mais que isso: “A Terra passou a ter um novo lugar no universo” – define a autora. A
referência, evidentemente, é ao modelo heliocêntrico de Copérnico, na publicação
citado ao lado de Newton e Galileu. Não é à toa que esses dois se tornaram, séculos
mais tarde, nomes de revistas científicas voltadas para o público leigo. Eles são dois
dos representantes da concepção de ciência que se opõe à ideia de senso comum e
tradição de coloração religiosa.
A racionalidade é, segundo muitos cientistas, o elemento que separa o senso co-
mum do conhecimento científico – uma racionalidade que segue um método, realiza
uma análise, experimenta e organiza os saberes. Porém:

[...] nem todos os estudiosos da ciência aceitam o paradigma da racionalidade


com único critério que diferencia ciência de saber comum. Alguns, inclusive, re-
jeitam a oposição entre ciência e religião, dizendo que para além da racionalida-
de científica reside um sentimento humano que conduz o homem na elaboração
de respostas para as origens do Universo. A ciência seria um conjunto de tentati-
vas de respostas. A religião, por seu lado, uma experiência análoga à ciência. [...]
como ambas se constituem como buscas, hipóteses e ensaios, não se pode dizer
que uma tem precedência ou mais valor que a outra (FILOSOFIA, 2006, p. 241).

Não, pelo menos, no contexto acadêmico contemporâneo.


E quanto ao conceito de progresso da ciência? A expressão é comum, largamente
difundida, e associada às descobertas tecnológicas. Destarte, os inúmeros problemas

18
trazidos justamente pelo avanço científico põem em xeque as virtudes da ciência e senso comum e ciência:
visões de mundo
desiludem as pessoas. Já se acusam os cientistas de serem poucos neutros na produ-
ção do conhecimento. O questionamento da própria ciência é feito pela Filosofia da
Ciência, que “vem desmentindo a ideia de progresso ou evolução científica com base
nos estudos sobre as transformações científicas, na sobreposição de paradigmas, nas
rupturas epistemológicas e na descontinuidade dos processos de produção do conhe-
cimento e da tecnologia”. Mais que isso: “quando falamos em progresso científico,
este conceito está impregnado com o espírito positivista que acreditava no avanço
da ciência para a melhoria da vida humana e das condições de existência no planeta”
(FILOSOFIA, 2006, p. 253).

consIderaçÕes FInaIs
A revista Scientific American Brasil, em sua edição de fevereiro de 2004 (SCIEN-
TIFIC, 2004a), trouxe uma matéria com um título intrigante, posto o veículo em que
está: “Não sabemos que não sabemos”.
Trata-se na verdade de uma matéria que aborda as incertezas do pensamento cien-
tífico, principalmente à luz das descobertas do último século. É uma luz pós-moderna
a flagrar o cientificismo moderno. A frase-título é um jogo de palavras que o cientista
Heinz von Foerster, contemplado na matéria, faz a partir das palavras de Sócrates – “Só
sei que nada sei”.
Curiosamente, a reportagem inicia abordando os dogmas:

Os dogmas do cientificismo talvez representem a herança mais onerosa da mo-


dernidade. Mais invasivos que os dogmas religiosos, com freqüência alimen-
taram um racionalismo prepotente e desmedido (uma hybris da razão) que
pretendeu explicar tudo, impelindo à margem os inúmeros aspectos não racio-
nalizáveis da vida humana: instintos, pulsões, angústias, sentimentos, paixões
(SCIENTIFIC, 2004a, p. 21).

Há também um tempero de ironia: “O homem não é, nem nunca será, o deus diante
de quem outro homem deve ajoelhar-se. Nenhum homem, portanto, jamais será onis-
ciente. Isso vale, antes de mais nada, para os cientistas”. O pensamento tem tanto peso
que é repetido em um box ao canto da página, a título de resumo, uma prática da revista.
Notemos o que é redimido, após cinco séculos – o mito: “o mito também é um
caminho para enfrentar o desconhecido, para resistir à angústia que os excessos de
realidade provocam”. O fundamento está adiante:

Ainda que o mundo secularizado (e tecnicizado) e o aparecimento do homem


copernicano tenham delineado uma antítese radical entre mito e razão, no-
vas descobertas e mudanças de paradigmas deslocaram os limites do que é
inexplicável e indecidível, entrando para o acidentado e empolgante território

19
InIcIação à da ignorância consciente. Não se trata de buscar novidades absolutas, mas de
cIêncIa e à pesquIsa seguir o rastro da persistência de histórias, linguagens, tradições (SCIENTIFIC,
a construção do
conhecImento
2004a, p. 21).

E embora rejeite os mitos, o pensamento científico também gerou os seus. Aranha


e Martins (1993, p. 132) chamam a atenção para os mitos da ciência surgidos com as
promessas iluministas do século XVIII:

Pela ciência o homem podia espantar o medo causado pela ignorância e supers-
tição, guardando a esperança de um mundo onde as luzes da razão permitiriam
a melhor qualidade de vida possível e a emancipação dos preconceitos, da vio-
lência e do arbítrio. No entanto, [...] há sombras nas promessas iluministas. E,
se não podemos (e não desejamos) desprezar a ciência e a razão, é preciso com
urgência indicar quais são os seus riscos e desvios.

As autoras lembram que o Positivismo do século XIX, mais do que qualquer outra
mentalidade, exagerou no valor atribuído ao conhecimento científico, marginalizando
outras formas de saber, como a religião e até a Filosofia, consideradas expressões infe-
riores e superadas da experiência humana. Só que valorizar demais a ciência também
a transformou em um mito.
Essa exclusão de outros saberes é arbitrária e mutiladora, e significa, na verdade,
um reducionismo, à medida que reduz o objeto das ciências ao fato positivo e observá-
vel; reduz a filosofia aos resultados das ciências (gerando um utilitarismo pragmatista)
e reduz as ciências humanas às naturais – como a Economia, que muitas vezes se asse-
melha à História Natural, com seus discursos darwinistas sobre “sobrevivência do mais
adaptado”, “extinção”, “competitividade”, “lei da selva” etc.
Aranha e Martins (1993) elencam os novos mitos – os científicos. Um deles é o mito
do progresso, já abordado aqui. O ideal do progresso motivou, por exemplo, a colo-
nização do norte do Paraná. Fotografias da primeira metade do século XX mostram
pioneiros triunfantes sobre as gigantescas perobas. Hoje essa perspectiva mudou. As
imagens das árvores derrubadas não são mais signo de progresso. E é sempre bom
lembrar que não só árvores foram tiradas. Ninguém se lembra de que havia índios pela
região?
Outro mito é o da tecnocracia. Ou seja, quem dita a ordem são aqueles que do-
minam as técnicas. São os cientistas, os tecnocratas. Daí segue outro mito – o do
especialista. É ele o competente em sua atuação, e não pode ser contestado. Se ele é
o que sabe, então os demais não sabem nada, e a estes resta obedecer. Mas será que é
mesmo assim?
Por outro lado, existe ainda o mito da neutralidade científica – a ideia de que as
pesquisas e os avanços da ciência não guardam relação com ideologia alguma. Assim,

20
os médicos só estariam preocupados em descobrir novas terapias – a decisão sobre senso comum e ciência:
visões de mundo
seu uso caberia a cada paciente, a cada profissional, a cada Estado. Então como expli-
car o desenvolvimento de armas de fogo, químicas e biológicas? Tais pesquisas estão
isentas de ideologia?
O modelo positivista, então, substituiu os antigos mitos, mais ligados à religião, por
mitos científicos. Criticava os antigos, mas criou novos, caindo em certa contradição.
Os pontos de vista mais contemporâneos, diferentemente, tentam levar todos os mo-
delos em consideração. Nesse âmbito, nem os mitos antigos, nem os modernos são
desprezados.
O terceiro milênio, com todos os seus augúrios, aponta para o pensamento plural,
multicultural, subjetivo e relativista. Observemos que nada disso inclina para o forta-
lecimento do senso comum, nem tampouco para a supremacia da ciência. O senso
comum resiste, apegado à tradição. Mas mesmo ele vem cedendo à força dos novos
costumes. O pensamento científico, sem a mesma âncora, fica mais sujeito à sequência
de vagas que são as contínuas descobertas e invenções. O melhor exemplo é o café: ele
faz bem ou faz mal? Depende da semana em que se responde.
O que Paden (2001, p. 10) discorre sobre o sagrado vale para o estudo de qualquer
fenômeno humano: “Há muitas concepções de mundo, dependendo dos nossos ócu-
los [...] As visões de mundo se tornaram apenas isso – visões”. Isto porque, segundo
o autor,

[...] os pontos de observação são frequentemente fixos, singulares e defensivos.


As teorias religiosas e acadêmicas, da mesma forma, têm muitas vezes esse tipo
de perspectiva monoposicionada, como se fosse marca de uma interpretação
correta que apenas uma posição possa ser válida [...] (PADEN, 2001, p. 15).

Ao contrapor ciência e religião (que possui um pensamento mais dogmático e


oposto ao científico), Paden (2001, p. 16) situa:

Certamente, a ciência desafiou os modelos religiosos e fez com que em gran-


de parte parecessem falsos, mas ela também, de muitos modos, perpetuou o
modelo único. A crença do século XIX de que a ciência substituiria a religião
como a fonte do verdadeiro conhecimento sobre o mundo foi equivalente à
substituição de uma lente por outra [...].

Conclusão: senso comum e ciência, hoje, não têm mais que estar em lados opostos
de um ringue. E é novamente Paden (2001, p. 17) que sentencia:

A capacidade de ver a própria visão de mundo como uma visão é uma marca do
pensamento contemporâneo. [...] Não apenas perceber o mundo, mas perce-
ber como percebemos o mundo está se tornando, de certa forma, uma segunda
natureza para uma cultura pluralista e autoconsciente.

21
InIcIação à
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do
conhecImento referências

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando:


introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 1993.

BÍBLIA. A.T. Livro de Josué, 10:12-14. Português. Bíblia Sagrada. Tradução


ecumênica brasileira. São Paulo: Paulinas; Loyola, 1995a.

________. Livro de Reis, 2Rs 20:8-11. Português. Bíblia Sagrada. Tradução


ecumênica brasileira. São Paulo: Paulinas; Loyola, 1995b

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000.

FILOSOFIA: ensino médio. Curitiba: Seed-PR, 2006.

PADEN, William E. Interpretando o sagrado: modos de conceber a religião. São


Paulo: Paulinas, 2001.

PERNOUD, Régine. Hildegard de Bingen: a consciência inspirada do século XII. São


Paulo: Rocco, 1996.

RONAN, Colin A. História ilustrada da ciência da Universidade de Cambridge: da


renascença à revolução científica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. v. 3.

SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL. São Paulo, ano 2. n. 21. Febr. 2004a.

SCIENTIFIC AMERICAN HISTÓRIA. A ciência na Idade Média. São Paulo: Duetto,


2004b. v. 1.

proposta de atividades

1) Todas as famílias transmitem oralmente uma grande quantidade de conhecimentos sobre


o mundo aos seus membros. A partir dos conhecimentos de sua própria família e do grupo
social ao qual você pertence, identifique aqueles que parecem confirmar ou contrariar as

22
verdades científicas. Em que bases ocorrem tais confirmações ou oposições? Qual é mais senso comum e ciência:
visões de mundo
confiável: o conhecimento mais antigo e tradicional ou o mais moderno e científico?

2) Há uma grande divulgação na imprensa das descobertas científicas e inovações tecnoló-


gicas. A partir dessa ampla difusão de informações, reflita sobre dois aspectos. Primeiro:
todas essas descobertas e inovações mudam o dia-a-dia das pessoas comuns, a curto prazo?
Segundo: há um exagero no valor de tais descobertas e inovações?

3) Você reparou que toda inovação científica e tecnológica, seja na área da saúde (Medicina,
Farmácia, Cosmética), seja na eletrônica (aparelhos de comunicação e informática, TV di-
gital), ou qualquer outra, sempre implica em comprar, consumir e gastar? Pense: por que
a ciência e tecnologia sempre estão ligadas à venda, ao comércio e ao consumo?

sugestões de sites

• <http://www.abc.org.br/> - Academia Brasileira de Ciências;


• <http://www.ciencias.com.br/> - Desenvolvido por professores, traz links com várias áre-
as;
• <http://www.on.br/site_brincando/index.html> – Site do Ministério da Ciência e Tecno-
logia;
• <http://cienciaesaude.uol.com.br/> - Página sobre Ciência e Saúde;
• <http://www.comciencia.br/comciencia/> - Revista Com Ciência de Jornalismo Científico;
• <http://cienciahoje.uol.com.br/> - Revista Ciência Hoje on-line;
• <http://www2.uol.com.br/sciam/> - Revista Scientific American Brasil on-line.

Leitura complementar

SENSO COMUM
(Carlos Fontes)

O grupo reunira-se pela primeira vez para trabalhar. O professor solicitara um tra-
balho referente ao tema “senso comum”. Na biblioteca da escola, a azáfama foi grande.
O Nelson procurou em um dicionário e leu que o senso comum era uma espécie de
conhecimento atribuído à grande maioria dos homens, denominando-se também doxa
(opinião), sendo também identificado com a opinião pública. Não era grande coisa,
mas era um bom princípio: saber o significado das palavras. Manuel descobriu um
livro na seção de filosofia, no qual um filósofo chamado Karl R. Popper afirmava que
a conhecida frase “A voz do Povo é a voz de Deus” foi durante muito tempo entendida
como uma forma de sabedoria sem limites, sendo assumida mesmo como a autoridade
final sobre todas as questões. Ninguém percebeu nada. Um pouco à frente, o texto

23
InIcIação à
cIêncIa e à pesquIsa pontuava que essa “voz do Povo” tinha hoje um equivalente moderno na “figura mítica”
a construção do
conhecImento
do “Homem da Rua”, no seu voto e na sua voz. Raquel esteve para riscar essas palavras,
mas por consideração ao Manuel que as encontrou acabou por o não fazer. Por outro
lado, se estava escrito em um livro, ainda por cima de filosofia, deveria ser, por certo,
verdadeira. “Mas o quê?”, interrogava-se Isabel. João, sempre disposto a discordar de
tudo, questionou essa última posição. Parecia-lhe demasiado “ingênua” e “pouco críti-
ca”, dado que partia do pressuposto que tudo o que estava escrito nos livros era verda-
deiro. “Há livros e livros!”. Rita sentiu-se mais do que nunca confusa, sempre acreditara
que o que está escrito nos livros era verdadeiro, não sabia o que fazer. João, empolgado
pelo impacto que as suas afirmações estavam a produzir nos colegas, não tardou em
acusá-los de estarem presos a “ideias feitas”, “preconceitos” e até a “tradições” que
lhes haviam sido incutidas ou transmitidas desde a infância e que agora os impediam
de procurar o conhecimento de uma forma objetiva. Isabel estava desesperada, mais
uma vez o seu grupo não iria conseguir concluir o trabalho. Resolveu, por isso, propor
aos colegas que fosse redigido um texto com um título, que era só por si um trabalho:

“IDENTIFICAÇÃO DOS OBSTÁCULOS DO SENSO COMUM QUE IMPEDIRAM QUE


O TRABALHO FOSSE CONCLUÍDO.”

Fonte: <http://afilosofia.no.sapo.pt/SComum.htm>.

anotações

24
2 contemporâneas:
os debates das ciências
alguns
dilemas na investigação
educacional

Luzia marta Bellini

Todo aluno que entra na universidade, de um modo ou de outro, fará parte do


debate sobre o que é, ou melhor, sobre o que são as ciências. Geralmente o termo
ciência é associado à experimentação e observação dentro e fora da universidade.
Quase todos os dias vemos produtos alimentícios, de limpeza ou outros oferecidos na
televisão, rádio, Internet, outdoor como “cientificamente comprovados”. A esse rótulo
respondemos afirmativamente. Se for cientificamente comprovado, é bom. Porém, é
essa definição de ciência a mais correta?
Para responder a essa pergunta, propomo-nos a caminhar por três dimensões. A
primeira, pela filosofia da ciência, para conhecer o pensamento de alguns filósofos en-
volvidos com a reflexão das ciências física, biologia, química, matemática e as ciências
sociais. A segunda dimensão traz diferenciações entre os campos científicos, que cha-
maremos de epistemologia das ciências. A terceira é o campo educacional, que contém
um campo rico de debates acerca das ciências e seus métodos.

pensando as cIêncIas contemporÂneas peLa FILosoFIa da


cIêncIa
Quando estamos tratando do conhecimento científico, de seus objetos de inves-
tigação, dos problemas de pesquisa, de hipóteses, dos termos teóricos, mesmo não
sabendo, estamos passando por um longo debate entre cientistas e filósofos da ciência
na definição do que seja a ciência.
Chalmers (1993), em seu livro O que é ciência, afinal?, traduz de maneira simples,
para um leitor novato na área, as diferentes correntes teórico-metodológicas que fize-
ram a discussão metodológica da investigação científica. Anuncia, logo em seu título
que, no debate sobre a definição do termo ciência, não houve consenso. Chalmers
(1993, p. 17) pergunta: “O que há de tão especial em relação à ciência?” “O que vem
25
InIcIação à a ser esse método científico que comprovadamente leva a resultados meritórios ou
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do confiáveis?”.
conhecImento
A definição de ciência, postula Chalmers (1993), repousou no fundamento seguro
de que a observação e a experimentação eram as bases para o método científico. Essa
ideia emergiu com Francis Bacon, no século XVII. O método indutivo, ou seja, deriva-
do da observação ou da experiência do pesquisador, foi o raciocínio empregado para
a descrição dos fenômenos (naturais). De acordo com esse raciocínio, o observador/
pesquisador deve empregar os seus sentidos para registrar e afirmar coisas sobre o es-
tado do mundo. Essas assertivas, também chamadas de proposições, tornam-se afirma-
ções universais se o investigador conseguir o maior número de observações possíveis.
Nesse caminho, a ciência pode ser definida como uma coleção de dados obtidos pela
observação e pela experiência.
No entanto, se obtivéssemos o maior número de observações, esse método – o
indutivo – garantiria que estaríamos fazendo ciência? Sim e não. Sim, para os indutivis-
tas, e não para uma plêiade de filósofos da ciência. Entre eles, Chalmers (1993) destaca
Popper, Kuhn, Lakatos e Feyrabend.
O problema do método indutivo foi levantado por Bertrand Russell. Chalmers
(1993, p. 37-38) conta:

Um problema mais interessante embora um tanto medonho é uma elaboração


da história que Bertrand Russell conta do peru indutivista. Esse peru descobri-
ra que, em sua primeira manhã na fazenda de perus, ele fora alimentado ás 9
horas da manhã. Contudo, sendo um bom indutivista, ele não tirou conclusões
apressadas. Esperou até recolher um grande número de observações do fato
de que era alimentado às 9 horas da manhã, e fez essas observações sob uma
ampla variedade de circunstâncias, às quartas e quintas-feiras, em dias quentes
e frios, em dias chuvosos e dias secos. A cada dia acrescentava uma proposição
de observação à sua lista. Finalmente, sua consciência indutivista ficou satisfeita
e ele levou a cabo uma inferência indutiva para concluir: Eu sou alimentado
sempre às 9 horas da manhã. Mas, ai de mim, essa conclusão demonstrou ser
falsa, de modo inequívoco, quando, na véspera do Natal, ao invés de ser ali-
mentado, ele foi degolado. Uma inferência indutiva com premissas verdadeiras
levara a uma conclusão falsa1.

Popper (1902-1994), filósofo da ciência austríaco, traz outra interpretação de ciên-


cia. Aceita a observação e a experimentação, mas ao contrário do indutivismo, assinala
que a observação e a experimentação são orientadas pela teoria. No entanto, as teo-
rias, por sua vez, não são estabelecidas como falsas ou verdadeiras à luz das evidências.

1 O problema da indução para as ciências biológicas, física e química foi resolvido em parte com a noção de proba-
bilidade. Nessa forma, o conhecimento científico não é conhecimento comprovado, mas provavelmente verdadeiro.

26
As teorias são interpretadas como hipóteses que o intelecto humano cria para os debates das ciências
superar os problemas encontrados por teorias anteriores e dar uma explicação contemporâneas: alguns
dilemas na investigação
adequada dos comportamentos de alguns aspectos do mundo ou universo.[...] educacional
A ciência progride por erros e tentativas (CHALMERS, 1993, p. 64).

Esse método é chamado de falsificacionismo por Popper. O raciocínio é o dedutivo.

O falsificacionista explora ao máximo esta particularidade lógica [...]. A ciên-


cia é um conjunto de hipóteses que são experimentalmente propostas com a
finalidade de descrever ou explicar acuradamente o comportamento de algum
aspecto do mundo ou do universo (CHALMERS, 1993, p. 65).

Para o falsificacionista, as teorias falsificáveis devem ser preferidas pelas menos fal-
sificáveis. Ou seja, quanto mais aberta for uma teoria às hipóteses ou conjecturas, mais
progresso poderemos obter na ciência. Teorias pouco falsificáveis (fechadas, com pouca
abertura a novas hipóteses) não nos permitem testá-las, não nos permitem errar e tentar
novamente. Para essa corrente, aprendemos com nossos erros (CHALMERS, 1993).
Desse modo, a ciência começa pelo problema, pela teoria ou conjunto de hipóteses2.
Outro cientista que se preocupou com o método científico foi Thomas Kuhn (1922-
1994). Sua obra A estrutura das revoluções científicas, de 1962, abriu espaço para
uma abordagem histórica das ciências (sobretudo a física). Kuhn quis ir além dos rela-
tos indutivista e falsificacionista, dando às ciências um testemunho histórico. Sua ên-
fase foi na noção de revolução científica e ciência normal e ao conceito de paradigma.
Chalmers (1993, p. 124) explica paradigma3 como:

Uma ciência madura é governada por um único paradigma. O paradigma de-


termina os padrões para o trabalho legítimo dentro da ciência que governa. Ele
coordena e dirige atividades de “solução de charadas” do grupo de cientistas
normais que trabalham em seu interior. A existência de um paradigma capaz de
sustentar uma tradição de ciência normal é a característica que distingue ciência
da não ciência, segundo Kuhn. A mecânica newtoniana, a ótica de ondas e o ele-
tromagnetismo clássico constituíram paradigmas e se qualificam como ciências.

A característica da ciência é ser constituída por uma mudança revolucionária. Por


exemplo, a física de Einstein emergiu do abandono da estrutura teórica da física de
Newton. Tornou-se uma ciência revolucionária ao realizar nova estrutura.
Kuhn admite a observação, a experimentação, os problemas de pesquisa, as hipóte-
ses. Todavia, para ele era necessário pensar as ciências sendo constituídas por grupos
de cientistas que buscavam a solução para as “charadas” científicas. Mais de um grupo

2 É importante anotar aqui que também o falsificacionismo apresenta seus limites. Ver o capítulo VI de Chalmers.
3 Chalmers pontua que Kuhn, após 1970, referiu-se à paradigma como matriz disciplinar. Em grego, paradigma
significa modelo.

27
InIcIação à poderia trabalhar com os mesmos fenômenos, mas com problemas, hipóteses e técni-
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do cas diferentes. O que determinaria a um grupo e não a outro encontrar a solução? O
conhecImento
paradigma – conjunto de regras, orientações, crenças ou jogo – leva um grupo e não
outro à descoberta e à aceitação do resultado.
Lakatos (1922-1974), filósofo e matemático, preconizou o fazer ciência por meio
dos programas de pesquisa. Considerava-se discípulo das ideias de Popper, porém
para ele a noção de programa de pesquisa aprimoraria o conceito de fasificacionismo.
Um programa de pesquisa é uma estrutura ou modelo de investigação que forneceria
orientações para investigações futuras. Esse modelo indicava aos cientistas caminhos
a serem evitados – heurística negativa4 – e caminhos compostos de uma pauta geral
para serem desenvolvidas as pesquisas. O núcleo irredutível (ou cinturão protetor)
do programa são hipóteses gerais, bases para o desenvolvimento das investigações
(CHALMERS, 1993, p. 113; FEIJÓ, 2003).

O núcleo irredutível da astronomia copernicana seriam as suposições de que


a Terra gira em seu eixo uma vez por dia. O núcleo da física de newtoniana é
composto das leis de movimento de Newton mais a sua lei da atração gravita-
cional. O núcleo do materialismo histórico de Marx seria a suposição de que a
mudança histórica deva ser explicação em termos de lutas de classes, a natureza
das classes e os detalhes das lutas sendo determinados, em última análise, pela
base econômica (CHALMERS, 1993, p. 113).

O núcleo de um programa torna-se infalsificável pela “decisão metodológica de


seus protagonistas”. Ou seja, qualquer problema entre os dados de observação e a pes-
quisa não pode ser atribuído à hipótese ou a esse núcleo irredutível. Deve ser procura-
do em outra parte da investigação. Isto é o cinturão protetor ou heurística negativa. É
a exigência de que, durante o programa, não se abandone o núcleo irredutível. Se um
cientista o abandonar, ele rompe com o programa. A heurística positiva “[...] consiste
em um conjunto de sugestões ou indícios parcialmente articulados de como mudar,
desenvolver, as “variantes refutáveis” de um programa de pesquisa como modificar,
sofisticar, o cinturão `refutável´(LAKATOS apud CHALMERS, 1993, p. 114-115).
A ciência, para Lakatos, ocorre por um progresso – lento e gradual – pelo enfra-
quecimento de um programa em favor de outro. Um novo núcleo irredutível emerge
aos poucos por tentativa e erro.
Outro pensador importante na definição da ciência que amplia o debate relativo à de-
finição da ciência é Paul Feyerabend (1924-1994). Feyerabend é chamado de anarquista
metodológico, pois em oposição a Popper aventou que os avanços científicos ocorreram

4 Heurística vem do grego euro, eureka, e significa encontrar. Podemos asseverar que essa é a dimensão da des-
coberta.

28
quando as metodologias rigorosas foram deixadas de lado. Para ele, todas as metodolo- os debates das ciências
contemporâneas: alguns
gias têm suas limitações e a única regra que sobrevive é o “vale-tudo” (CHALMERS, 1993, dilemas na investigação
educacional
p. 175). Instigante e provocador, em seu livro Contra o Método Feyerabend não quis
propagar que não pode haver metodologia ou que não possamos definir ciência. Vale-
tudo significa que as ciências não podem ser elaboradas com regras fixas e universais. Os
cientistas não devem ser restringidos pelas regras da metodologia ao fazer ciência.
Feyerabend, expôs Chalmers (1993, p. 175), aprecia a noção de programa de Lakatos,
sobretudo porque “as metodologias dos programas ajudam o cientista, mas não contêm
regras que lhe digam o que fazer”. Um aspecto relevante em Feyerabend são suas con-
siderações contra aqueles que julgam a ciência uma forma de conhecimento superior
às outras. Feyerabend considerava que não era justo rejeitar o marxismo, por exemplo,
pelo fato de que sua teoria não se conforma a alguma noção preconcebida de método
científico como fez Popper. Nem, também, defender o marxismo, como fez Althusser em
bases metodológicas semelhantes às de Popper (CHALMERS, 1993, p. 183).
Para concluir este item, chamamos a atenção aos seguintes aspectos: 1) para o in-
dutivismo, ao se afirmar como ciência uma teoria deve ter uma grande sustentação pe-
los dados; ciência é uma coleção de dados, como preconizou Chalmers (1993); 2) para
Popper, a ciência nasce quando se baseia em hipóteses, em outras teorias; 3) Kuhn
enuncia que para uma teoria se tornar uma ciência ela necessita ser aceita por um gru-
po de cientistas. A ciência é produto de conflitos que geram novos paradigmas; 4) para
Lakatos, a ciência pode ser constituída por programas de pesquisa orientadores de
investigações e hipóteses mais gerais sobre um fenômeno estudado; e 5) Feyerabend
propõe que as regras metodológicas não podem engessar a construção das ciências. As
ciências nascem quando deixamos de lado as velhas fórmulas.
Que lições podemos tirar desse percurso dos filósofos? Várias. Entre elas, a de
saber que quando tratamos de ciência, abrimos uma considerável página da história
dos cientistas e de suas reflexões acerca de uma das maiores conquistas humanas que
temos nesse planeta, o conhecimento científico.

pensando as cIêncIas contemporÂneas peLa epIstemoLoGIa


pIaGetIana
Por epistemologia piagetiana definimos a relação entre sujeito que conhece e obje-
to de conhecimento. Estes são, para Piaget, indissociavelmente dependentes em todas
as formas de conhecimento, seja o matemático, o biológico, o físico, o social, entre
outros. Entretanto, os modos dessa dependência variam segundo as disciplinas (mate-
mática, física, química, biologia, linguagem, história, entre outras) em jogo. O que isso
significa? Significa que não podemos definir todas as ciências por um mesmo método

29
InIcIação à de raciocínio. As ciências nascem pela interação do sujeito/cientista e seus objetos de
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do conhecimento. Todavia, cada objeto apresenta-se de maneira diferente ao pensamento
conhecImento
do cientista. Ou seja, uma planta ou o objeto/planta para o biólogo é diferente de
objeto/sistema solar para o físico. Para o biólogo, é possível observar ou realizar a ex-
perimentação com uma espécie de planta. Mas para o físico serão necessárias mais do
que a observação e a experimentação; o trabalho do cientista/físico exige a dedução.
Desse modo, podemos afirmar que os conhecimentos científicos apresentam epis-
temologias diferentes umas das outras. Não é possível reduzir o conhecimento cientí-
fico a um esquema epistemológico único. Em termos de ensino, esse é um importante
marco para pensarmos a aprendizagem. Não é possível também ensinar todas as disci-
plinas científicas em um mesmo padrão metodológico. Ensinar ciências para crianças e
jovens requer pensar também um caminho de observação e experimentação, enquan-
to na matemática isso não é necessário.
Piaget, ao apresentar o lugar epistêmico da biologia, matemática, física no círculo
das ciências, comparou a natureza da relação sujeito/objeto na biologia com as rela-
ções presentes na física e na matemática, estabelecendo que:

- na matemática, a atividade operatória (de pensamento) do sujeito parece ser


a única em jogo; não há elemento experimental feito ao objeto. As noções de
espaço, o número, a lógica das classes ou de relações não nascem em nos-
sa mente por meio de experimentos, o sujeito que conhece recorre somente
à coordenação das ações ou operações (ou de pensamento) efetuadas sobre
objetos. Os conhecimentos matemáticos não se originam de uma abstração a
partir dos objetos, mas de uma abstração a partir da coordenação das ações
(mentais). O sujeito elabora o seu pensamento (isto implica em dizer coorde-
nação de suas ações) graças à aplicação de seus pensamentos aos objetos. Des-
se modo, a matemática é produto da atividade do sujeito. O matemático não
recorre à experiência como critério de verdade: uma proposição matemática é
verdadeira quando pode ser demonstrada racionalmente, independentemente
de sua concordância atual com a realidade externa (PIAGET, 1979a).
- o conhecimento físico marca a interdependência entre o sujeito e o objeto. A
construção dos conhecimentos físicos estabelece a existência de dados exterio-
res que o sujeito só descobre mediante a experiência em laboratório ou similar.
Quando esses conhecimentos alcançam certo grau de generalidade, a experiên-
cia e a atividade operatória do sujeito físico se confundem com os esquemas
matemáticos necessários para sua formalização. Assim, mesmo sendo mais rea-
lista que a matemática, a física alcança, em graus diversos, uma assimilação da
realidade experimental aos esquemas lógico-matemáticos construídos através
da atividade do sujeito (PIAGET, 1979a).
- o conhecimento biológico é mais realista que a própria física, ou seja, traba-
lhamos com “objetos” plantas, animais, e outros seres todos mais próximos a
nós, em escala de tempo e espaço e destes objetos não podemos fugir. Não
podemos descrever uma planta sem a presença da planta. Dela extraímos os
dados. Nesse sentido, a dedução desempenha em biologia um papel muito
menor que na física. Os dados “exteriores” são mais independentes do sujeito
que no campo elaborado pelo matemático. Temos que nos prender aos objetos
para pensá-los. Por ser uma forma de conhecimento que abarca a história de
desenvolvimentos, a dedução sofre severas limitações para o desenvolvimento
da biologia (PIAGET, 1979b).

30
Neste sentido, a forma de abstração do conhecimento matemático, a abstração re- os debates das ciências
contemporâneas: alguns
flexionante, é elaborada pelas ações que podemos exercer sobre os objetos, e essen- dilemas na investigação
educacional
cialmente das coordenações mais gerais das ações: disso decorre a generalidade e a
fecundidade de suas aplicações. Isto significa que para a matemática a atividade opera-
tória (de pensamento) do sujeito é imprescindível à formulação do campo teórico. O
matemático não precisa recorrer a outro critério de verdade como a experimentação
em laboratório ou a observação senão às relações lógico-matemáticas que estabelece
por seu próprio pensamento.
O conhecimento físico, por outro lado, marca uma interdependência entre o sujei-
to e o objeto que consiste na acomodação das ações do sujeito aos dados da experiên-
cia e à assimilação do objeto aos esquemas lógico-matemáticos do sujeito. Tomemos
como exemplo o relato de Inhelder e Piaget (1972), no livro De la lógica del niño a
la lógica del adolescente, acerca de soluções que crianças e adolescentes apresentam
para o problema da queda de corpos no plano inclinado. O dispositivo elaborado por
Inhelder e Piaget, como prova cognitiva, consiste em um plano regulável, com diver-
sas inclinações. Sobre ele roda uma bola, que na parte inferior do plano salta de um
trampolim. O problema proposto é encontrar a correspondência entre as alturas da
queda e do salto5.
Enquanto temos essas formas de conhecimento do sujeito nas situações da mate-
mática e da física, a biologia formula muitas de suas explicações por meio da observa-
ção dos seres vivos. Assim, as descobertas nessa área ocorrem a partir de seus objetos,
dos seres vivos e suas relações. Piaget alerta que, quando uma propriedade é extraída
a partir dos próprios objetos, ela esclarece, tão somente, acerca deles: uma proprie-
dade dessa natureza se for muito geral, arrisca-se a ser pobre e pouco utilizável, pois
se aplica a tudo.

5 A criança, ao tentar solucionar esse problema, mesmo sem calcular a forma parabólica da curva des-
crita no salto, poderá descobrir que o salto só depende da altura da queda, excluindo os fatores massa,
inclinação e distância. Essa situação vai exigir do sujeito a construção de um quadro de referência que
explore, de forma exaustiva, todas as combinações que alteram uma das variáveis e conservam as demais.
Desse modo, o sujeito muda seu pensamento, isto é, assimila o objeto (INHELDER, PIAGET, 1972).
Piaget observou que a abstração, nesse caso, procede do objeto, porém a partir de ações especializadas
do sujeito, e assume uma forma lógico-matemática. Assim, a causalidade física é uma coordenação ope-
ratória, da mesma natureza da que o sujeito utiliza para agrupar as próprias operações, porém atribuída
ao objeto por assimilação das transformações do objeto às transformações operatórias. Por isso, Piaget
propôs que a objetividade “extrínseca” do conhecimento físico corresponde, de forma muito próxima,
à “objetividade intrínseca” da matemática. Nesse contexto, no ensino de física o professor deve aliar a
arte de interpretar textos e de descoberta dos enunciados à observação e experimentação. Ele estará,
dessa maneira, mantendo uma atividade básica para a construção de conhecimentos da ciência física: a
experimentação e observação.

31
InIcIação à As ciências biológicas comportam um terceiro tipo de relação entre a atividade
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do do sujeito e o objeto. A atividade de pensamento do sujeito se reduz a um mínimo,
conhecImento
porque o biólogo não pode se esquecer dos objetos e dos “dados” fornecidos pela
natureza6.
As ciências sociais, compreendendo nesse rol a educação e a psicologia, nos levam
a pensar que trabalhamos com diferentes objetos. Mais: esses “objetos” não são como
os objetos das ciências biológicas, da matemática, da física, da química. São “objetos”
que são sujeitos, culturas, aprendizagem. Nessa perspectiva, para Piaget, o pensamen-
to científico se orienta em duas direções complementares: conhecimento do objeto,
da realidade exterior e conhecimento do sujeito, de sua organização mental e suas
formas culturais, sociais entre outras. Serão, então, necessárias a indução (buscar da-
dos na realidade em que vivemos) e a dedução, ou seja, a construção de abstrações
mais complexas para interpretarmos o sujeito e seu meio (de ensino, cultural, social,
econômico entre outros).
Como vimos, neste item tratamos de outra dimensão do debate científico: a dos
objetos e suas ciências. A intenção aqui é alertar ao estudante que inicia seu percurso
na universidade que não há objeto único, nem metodologia única na constituição das
ciências. É um debate importante das ciências contemporâneas.

pensando o deBate das cIêncIas contemporÂneas na


educação
No Brasil, o debate das ciências contemporâneas ficou evidente nas investigações
desenvolvidas no campo educacional7. Tomando a década de 30 do século XX como
início das pesquisas, tivemos dois marcos8: o da pesquisa centrada na concepção de
que os dados falam por si, ou seja, de um postulado empirista; e o da pesquisa cen-
trada nas investigações históricas em que dados e teorias justificavam o fazer ciência.
Essa dicotomia entre teoria e prática percorreu décadas e ainda persiste nas pes-
quisas educacionais. É plausível postular que essa dicotomia iniciou com a presença

6 Quando surgiu a classificação sistemática das espécies, a forma mais elementar de conhecimento biológico, esta
consistiu em agrupamentos aditivos de classes ou de relações, ou atividade operatória a que chamamos de lógica
de encaixes.
7 Na verdade esse debate entrou pelas Ciências Sociais e passou a todos os campos de estudo: psicologia, peda-
gogia, antropologia, entre outras áreas. Debateu-se, no Brasil, a influência de muitas matrizes científicas como o
positivismo, o marxismo de Weber, Durkhein.
8 É importante a leitura das obras ‘Anísio Teixeira: a obra de uma vida’, organizada por Carlos Monarcha, da DP&A
Editora; Estórias da Educação de Pombal a Passarinho, de Lauro Oliveira Lima, Editora Brasília; Educação Brasileira
contemporânea: organização e funcionamento, de organização de Walter E. Garcia, editora McGraw-Hill, para com-
preender ao temas das pesquisas como a busca de dados sobre escolarização; as investigações de Florestan sobre
cantigas de crianças em vilas operárias, entre outras.

32
do debate das ciências contemporâneas entre o empirismo e as tendências históricas. os debates das ciências
contemporâneas: alguns
Como em outras áreas, o empirismo fez escola no Brasil. Como ressaltamos no primei- dilemas na investigação
educacional
ro item deste capítulo, para o empirismo a ciência é uma coleção de dados. Em seu
aspecto mais juvenil, o empirismo apregoa que os “dados falam por si mesmo”. Isso
significa que para essa concepção de ciência o fato, o dado prevalece sobre o pesqui-
sador. O pesquisador é passivo. Cabe-lhe colher os dados e elaborar sua teoria. Este é,
usando a metáfora recipiente, um depósito de dados.
Quando na década de 50 do século passado muitas pesquisas com influência norte
-americana traçaram um programa de investigações behavioristas na educação brasilei-
ra, tivemos uma época com produções científicas que priorizavam o dado como forma
de elaborar ciência. Pesquisas sobre alfabetização e em aprendizagem centraram-se em
aspectos mais formais da sala de aula do que em variáveis sócio-econômicas, por exem-
plo. É preciso salientar que muitas investigações desse porte foram bem elaboradas,
uma vez que os cientistas davam-lhe um acabamento intelectual formal, isto é, utiliza-
vam a dedução como fonte de interpretação dos dados. Isto deu muito fôlego aos em-
piristas em sua versão positivista. Ou seja, na versão teorizada por Comte (1798-1857),
em que ser positivista significava “[...] fixemos a atenção sobre aquilo que é positivo”.
Para Comte, positivo é o que “é útil, experimentável e concreto, sendo definido como
útil, experimentável e concreto tudo aquilo que pode ser investigado e evidenciado
pela ciência” (BELLO, 2004, p. 42).
Comte construiu um sistema – o positivo – justificado pela experiência e pela ciên-
cia. Sua teoria prescrevia que no século XIX a sociedade havia alcançado um estado
ideal para explicar não só os fenômenos naturais como também os fenômenos sociais.
Esse estado era o positivo, em que “a imaginação e a argumentação (entendidos como
soluções para o estado metafísico) deviam ceder lugar à observação” (GIANOTTI,
2007, p. 24).
Comte não foi um empirista ingênuo ou puro, isto é, alguém que reduzia todo
conhecimento aos fatos ou aos dados, isolando-os aí.

A visão positiva dos fatos abandona a consideração das causas dos fenômenos
(procedimento teológico ou metafísico) e torna-se pesquisa de suas leis, en-
tendidas como relações constantes entre fatos observáveis. Segundo Comte,
a procura de leis imutáveis ocorreu pela primeira vez na história quando os
antigos gregos criaram a astronomia matemática. Na época moderna, o mesmo
procedimento reaparece em Bacon (1561-1626), Galileu (1564-1642) e René
descartes (1596-1650), os fundadores da filosofia positiva, para Comte9 (GIA-
NOTTI, 2007, p. 24).

9 É importante anotar aqui que não somente Comte entusiasmou-se com os filósofos modernos. Esse mesmo
entusiasmo aparece em Marx.

33
InIcIação à As primeiras manifestações do positivismo no Brasil ocorreram em 1850, com o
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do doutorado de Manuel Joaquim Pereira de Sá, apresentado na Escola Militar do Rio de
conhecImento
Janeiro. A tese versava sobre ciências naturais e física (GIANOTTI, 2007). Essa influên-
cia estende-se aos estudos de matemática e, mais tarde, aos de ciências sociais.
O positivismo deixou um interessante legado, que foi o método quantitativo. Com-
te, ao tomar o empirismo moderno como o marco do positivismo, traz a sua concepção
de ciência o rigor do método quantitativo. Como assumiu o formalismo, ele também
trouxe ao positivismo a dedução como marco do conhecimento, contribuindo, desse
modo, com as bases para a pesquisa empírica.
Em contraposição a esse tipo de método, um debate se impôs: a da historicidade
dos fenômenos urbanos, rurais, e, porque não assinalar, dos educacionais. O debate
era claro: os dados não falam por si. É necessário pensar as classes sociais, o fenômeno
social e cultural para as investigações sobre a escola e suas demandas. Não se aceitava
mais um mundo social sem contradições e sem enfrentamentos. Os homens e a socie-
dade não eram números.
Nesse caso, no âmbito das ciências humanas e da educação, o marxismo e o estru-
turalismo de Lewis Strauss, a sociologia de Max Weber foram teorias que desencadea-
ram investigações. A ideia de luta de classes de Karl Marx permeou as investigações
de Florestan Fernandes10 (1920-1995)”, o qual desenvolveu trabalhos, nas décadas de
1950 e 1960, influenciado por Marx, Weber e outros pensadores. Por Marx para descre-
ver a situação do estado brasileiro e o forte contingente de operários que não tinham
acesso às escolas. Por Weber para demonstrar como a burocracia favorecia um grupo e
impedia outros de terem acesso à cultura, à informação. As investigações de Florestan
Fernandes uniam teorias consideradas complementares à investigação empírica. É um
dos poucos pensadores/cientistas das ciências humanas que soube trabalhar, em suas
investigações, a dimensão empírica, ou seja, da pesquisa de campo com a dimensão
histórica, propiciando à ciência contemporânea educacional um grande lastro.
Na década de 80 do século XX, tivemos muitos debates no país. Era uma época em
que o Brasil iniciava uma luta mais aberta contra a ditadura militar. Pudemos conhecer,
no âmbito universitário, os debates mais recentes das ciências na educação graças à
liberdade para publicar e pesquisar.

10 Antes de Florestan, seu mestre Anísio Teixeira compôs um importante capítulo na história da educação brasi-
leira. Anísio Teixeira fez investigações no campo da aprendizagem (teve Dewey como orientador), no campo da
escolarização de crianças e jovens em conjunto com outros intelectuais como Paschoal Leme, Fernando Azevedo,
entre outros. São investigações fundamentadas em dados importantes sobre a situação da escolarização no Brasil.

34
Em oposição ao positivismo, em diferentes campos das áreas humanas no Brasil os debates das ciências
contemporâneas: alguns
cresceram grupos de pesquisadores que trabalhavam com a teoria marxista. Também dilemas na investigação
educacional
cresceram grupos como a fenomenologia, a teoria crítica da Escola de Frankfurt, o
cognitivismo, o construtivismo e outras correntes.
De modo diferente do marxismo, a fenomenologia opôs-se ao positivismo. Não
identificou na história de classes e sim na condição do indivíduo no mundo a sua marca
de pensar a cultura, a vida, a identidade, o sofrimento e a esperança de viver. Não im-
porta que mundo político, mas quaisquer dos mundos. Os pesquisadores desse campo
consideravam que o sujeito da investigação não aparecia na teoria, ele era um dado a
mais. Para a fenomenologia, pesquisar sujeitos em sua condição no mundo significa “ir
ao encontro das coisas” sem ideias preconcebidas. Busca-se compreender e descrever o
dado, mas este não é o determinante da análise. Não se afirma que o sujeito conhece. O
sujeito no mundo constrói atos diversos: há o ato de percepção, o ato cognitivo, o ato
de imaginação11, pelos quais o homem interpreta o mundo (BELLO, 2004).
Outras pesquisas contribuíram, nesse percurso, ao debate das teorias científicas na
área educacional. Em oposição ao behaviorismo ou comportamentalismo12 ocorreu o
debate com o cognitivismo. Ele se deu em várias décadas, mais acentuadamente na
década de 60 e 70 do século passado. Se para o primeiro a linguagem verbal13 seria a
fonte da aprendizagem, para o cognitivismo a fonte seriam os modos de pensar ou as es-
tratégias de resolução de problemas, inclusive os problemas decorrentes da linguagem.
Há ainda vários debates da ciência contemporânea no campo educacional. Ainda
permanece, em nossa opinião, o debate entre o empirismo, entendido erroneamente
como método quantitativo, e o historicismo. Não é um debate muito fértil. Por quê?
Porque, em primeiro lugar, algumas tendências teóricas se aproximam na metodo-
logia proposta e na interpretação. Por exemplo: Mauricio Tragtemberg (1929-1998)
produziu inúmeras investigações sobre a escola e a burocracia apoiando-se em Max
Weber e Marx para a explicação da exclusão de jovens da escola. Não são teorias que
se auto-excluem quando explicam o fenômeno da instituição escolar e do papel da
burocracia na exclusão de pais e alunos das informações escolares. Outro exemplo: é

11 Ângela Ales Bello, em ‘Fenomenologia e ciências humanas’, faz uma boa interpretação de Husserl. Nesse livro
da Editora da Universidade Sagrado Coração podemos conhecer a diversidade de interpretações de mundo. É
importante saber que não há uma corrente fenomenológica. Podemos falar em fenomenologia quando destacamos
Husserl, Sartre, Merleau-Ponty, Peirce, cada qual com sua direção.
12 Também é importante ressaltar que quando falamos em behaviorismo ou comportamentalismo e cognitivismo
há inúmeras correntes de cada área. Não se trata de uma única maneira de ser comportamentalista ou cognitivista.
13 Da década de 90 a 2008 assistimos, curiosamente, a um debate similar: o debate entre os vygoticianos e piagetia-
nos. Para os primeiros, a linguagem é fonte de conhecimento. Para os segundos, o pensamento.

35
InIcIação à possível trabalhar com coleta de dados em um trabalho científico relativo às condições
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do de vida de alunos trabalhadores tomando a teoria de Marx como base para a interpre-
conhecImento
tação. É possível também investigar o ensino a distância em uma perspectiva histórica
e cultural.
Para terminar este item: entendemos que o estudo dos debates referentes à ciência
contemporânea deve ser cuidadoso. Estamos tratando de investigações em um universo
de homens concretos que são ao mesmo tempo sujeitos e objetos de suas indagações.
Estamos tratando de debate das ciências contemporâneas e é necessário conhecê
-lo em diferentes perspectivas, a filosófica, a epistemológica e a social. Para Denzin e
Lincoln (2006), o sujeito que pesquisa deve ser multicultural. Precisa conhecer as tra-
dições de história e de pesquisa, deve reconhecer as concepções do EU e do OUTRO e
necessita da ética e política da pesquisa.

enFIm, hÁ dILemas...
Atualmente, decorrida quase uma década do século XX, muitas produções e estra-
tégias de pesquisa sobrevieram à área educacional. Podemos tratar, nesta nova década,
de positivismo e de pós-positivismo, de feminismo, de discursos radicalizados, de mo-
delos marxistas. Há uma riqueza em paradigmas e perspectivas teóricas. Temos hoje,
em 2008, mais debate sobre os estudos de casos, etnografia, observação participante,
fenomenologia, história de vida, pesquisa-ação, aplicada, documental, clínica, retórica
(discursos, textos), retórica das imagens, entre outros. Todavia, no Brasil permaneceu
o conflito entre pesquisa empírica e teórica. Permaneceu, também, a ideia de que não
é possível a coleta de dados com pesquisa histórica. Ou a ideia de que coleta de dados
é investigação positivista. Isso leva-nos, como orientadores, a partir os alunos ao meio.
Uma metade quer lidar com dados, a outra com teoria. Quando se formam, não con-
seguem trabalhar a realidade. Ela não é uma coisa nem outra. A realidade é múltipla.
Há outros conflitos. Esse é de ordem política. É desejável que o debate acerca das
ciências leve os alunos a uma pesquisa competente. Sempre encontramos alunos no
mestrado e doutorado que não querem ler um autor como Dewey, porque o julgam
“liberal”. Já outros não querem ler Marx, considerando-no “comunista”. Outros, ainda,
julgam Piaget neoliberal, outros Vygotsky um “Marx da aprendizagem”. Quantos equí-
vocos metodológicos e científicos...
Alves-Mazzotti (2006) desenvolveu uma pesquisa sobre dissertações e teses na área
de educação e constatou que, embora já tenhamos um capital acumulado em inves-
tigações educacionais, muitas pesquisas mofam nas prateleiras de nossas bibliotecas,
uma vez que são inconsistentes, vazias, repetitivas, às vezes muito rebuscadas. Tam-
bém essa produção é preciso debater.

36
os debates das ciências
contemporâneas: alguns
dilemas na investigação
referências educacional

ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. A revisão da bibliografia em teses e dissertações: meus


tipos inesquecíveis. In: BIANCHETTI, Lucídio; MACHADO, Ana Maria Netto (Org.). A
bússola do escrever. 2. ed. São Paulo: Cortez; Florianópolis: EFSC, 2006.

BELLO, Agnes Ales. Fenomenologia e ciências humanas: psicologia, história e


religião. Bauru, SP: Edusc, 2004.

CHALMERS, Alan. O que é ciência, afinal?. São Paulo: Brasiliense, 1993.

DENZIN, Norman K.; LINCOLN, Yvonna S. (Org.). O planejamento da pesquisa


qualitativa: teorias e abordagens. 2. ed. Porto Alegre: Artmed; Bookman, 2006.

FEIJÓ, Ricardo. Metodologia e Filosofia da ciência: aplicação na teoria social e


estudo de caso. São Paulo: Atlas, 2003.

GIANOTTI, José Arthur. Augusto Comte: vida e obra. In: TRINDADE, Hélgio (Org.).
O positivismo: teoria e prática. Sesquicentenário da morte de Augusto Comte. Porto
Alegre: Editora da UFRGS, 2007.

INHELDER, Bärbel; PIAGET, Jean. De la lógica del niño a la lógica del


adolescente. Buenos Aires: Paidós, 1972.

PIAGET, Jean. Epistemologia de la física. Buenos Aires: Paidós, 1979a.

______. Introducción a la epistemologia genética: el pensamiento biológico,


psicológico y sociológico. Buenos Aires: Paidós, 1979b.

37
InIcIação à
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do
conhecImento proposta de atividades

1) Afinal, como posso definir o que é ciência?


2) O que é ciência para o empirismo, para Popper, Kuhn, Lakatos e Feyerabend?
3) O que é epistemologia das ciências para Piaget?
4) Como posso tratar o debate sobre as ciências contemporâneas na educação?
5) Por que é importante o debate das ciências contemporâneas?

anotações

38
3 texto: o que é?

marilurdes Zanini

o teXto: espaço de Interação VerBaL


A interação verbal, em quaisquer esferas sociais pelas quais transitam e nas quais
atuam os sujeitos, se dá via enunciados completos de significação, ou seja, via textos,
espaços em que se instauram as atividades linguísticas ou todas as ações linguísticas,
cognitivas e sociais necessárias para a sua organização, produção, compreensão e seu
funcionamento no seio social.
Nesse contexto, os sujeitos da interação e as condições segundo as quais produzem
os seus textos levam-nos a compreender que os sentidos do texto são construídos
pela interação desses sujeitos que, doravante, serão referidos como autor-leitor. Am-
bos procuram no texto pistas sobre o que se diz, para quem se diz, por que se diz, a
razão por que se diz, quando e como se diz. Isso nos faz aceitar que o texto se constrói
a partir da reflexão sobre as necessidades impostas pelas situações comunicativas, as
quais traduzem as condições que circunstanciam a sua produção: o que escrever, para
quem escrever, por que, para que escrever, quando, onde e como escrever. Dessa for-
ma, o texto só se constrói para e com o outro – aquele com quem se estabelecem as
relações de interlocução. A sua organização se faz, pois, pela relação cooperativa que
o autor estabelece com o leitor, ou seja, pela interação.
Como texto que é este trabalho, o seu objetivo é dialogar com aqueles que desejam
produzir textos que possam ser lidos por qualquer pessoa e não somente por si mesmos.
Ou seja, para aqueles sujeitos que, como eu espero fazê-lo aqui, refletem sobre o funcio-
namento da linguagem e sobre a adequação do seu texto ao contexto em que circulará.

o teXto: um espaço de mÚLtIpLas LeIturas


Quando refletimos sobre o funcionamento da linguagem e sobre a adequação do
texto ao seu contexto, passamos a compreender que os sentidos do texto não são
construídos dissociados dos contextos de produção e de uso.
No caso dos textos escritos, por mais bem claros que sejam, não são totalmente
explícitos, uma vez que o autor pressupõe que o leitor tenha conhecimentos prévios

39
InIcIação à sobre o assunto/tema, sobre a situação em que o texto foi escrito, sobre o léxico da
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do língua em que foi escrito, sobre o autor do texto; enfim, sobre o que envolveu a sua
conhecImento
produção. É isso que justifica as múltiplas leituras atribuídas para um único texto.
Cada leitor que se apropria de um mesmo texto constrói sentidos proporcional-
mente ao seu saber acumulado. Dessa forma, os sentidos atribuídos pelo leitor estarão
tanto mais próximos das intenções do autor quanto maior for o saber que têm um do
outro, do contexto e do assunto.
Nesses espaços de interação pela linguagem, a partir dos quais se constroem senti-
dos e não um só sentido, a leitura e a escrita se unem a fim de cumprirem sua função
social no processo de sua produção. Logo, se a construção dos sentidos se dá pelas
relações estabelecidas com aquilo que o texto traz implícito, autor e leitor têm que
considerar as características e condições dos contextos de produção e de uso; ou seja,
de um lado, o autor deve adequar os recursos expressivos, as variedades da língua e
o estilo ao leitor, ao objetivo, enfim, ao contexto de uso em que se realiza a situação
comunicativa; de outro, o leitor lerá o texto reconhecendo esses recursos expressivos,
a variedade de língua e o estilo conforme a sua pertinência ao contexto de produção
e de uso, no caso do texto oral, em que a interação se dá face a face, e ao contexto de
uso, mais importante para a sua interpretação, no caso do texto escrito.
A organização textual se faz, pois, pela relação cooperativa que o autor estabelece
com o leitor, ou seja, pela interação:
a) O que escrever? Para se escrever, tem que se ter algo para dizer. Isso implica o
processamento de informações sobre o assunto a ser abordado, as quais são
obtidas pela leitura de outros textos, de mundo.
b) Para quem escrever: o outro. Outro que, para Geraldi (1996. p. 102), “não se ins-
creve no texto apenas no seu processo de produção de sentidos, na leitura; o outro
se insere já na sua produção, como condição necessária para que o texto exista. É
porque se sabe do outro que um texto acabado não é fechado em si mesmo.”
c) Para que e por que escrever? Os sujeitos interagem, se tiverem um objetivo e
uma razão para fazê-lo. Encontrar um objetivo para escrever torna-se uma con-
dição cooperativa com as demais, o que favorece o desencadeamento do pro-
cesso de produção textual. O texto se constrói, assim, a partir de um assunto,
“com uma finalidade e um destinatário” (GERALDI, 1987, p. 19).
d) Quando escrever? A condição temporal. O momento em que o texto se constrói.
Também aqui se considera o espaço de tempo de que se dispõe para a produção
textual escrita. Por isso, a consideração a essa condição auxilia a organização das
etapas do processo.
e) Como escrever? Neste momento, a atenção se volta para o gênero e tipo de

40
texto mais adequados às condições de uso. Independentemente de quais sejam, texto: o que é?

o texto resulta de um equilíbrio variável entre dois movimentos fundamentais:


retroação e progressão (KOCH, 2002). Nesses movimentos, as informações se
distribuem em, pelo menos, dois blocos: o dado – aquilo que o autor sabe que
o leitor conhece, no que ele se apóia para saltar para o novo – a informação
nova, que o autor deseja acrescentar ao já conhecido. É assim que o texto ex-
pande: na retroação, ocorre o movimento de volta ao já conhecido – o dado;
na progressão, ocorre o movimento de avanço, o acréscimo de informação – o
novo. A dosagem e a disposição dos dois blocos interferem na construção do
sentido e permitem ao leitor extrapolar o limite textual, recorrendo ao contex-
to e às condições de produção, indispensáveis para a compreensão e para a
construção dos sentidos do texto. O domínio desses conhecimentos torna-se
imprescindível aos parceiros da comunicação – quem escreve e quem lê.

Dessa forma, “os textos escritos são configurações objetivizadas, que possuem va-
lidade intersubjetiva. Podem ser lidos por qualquer pessoa, e não apenas pelo autor”.
( VILELA; KOCH, 2001, p. 542).
Para a materialização – produção e organização – dos objetivos pretendidos, o
autor do texto tem à sua disposição

todos os recursos da língua – em todos os seus planos (fonológico, morfológi-


co, sintático, semântico, pragmático) e níveis (lexical, frasal, textual-discursivo)
– em termos de unidades e estruturas (sejam elas fonológicas, morfológicas,
sintáticas, textuais)”, uma vez que “funcionam como pistas e instruções de sen-
tidos que são coadjuvados nesta função por mecanismos, fatores e princípios
(TRAVAGLIA, 2004, p. 45).

o teXto: produção e orGanIZação


Para organizar o texto, valemo-nos dos ensinamentos da Linguística Textual que,
segundo Koch (2002), por meio de um instrumental teórico e prático adequado, auxi-
lia o desenvolvimento da competência textual dos sujeitos, tornando-os mais aptos a
interagir socialmente por meio de textos dos mais variados gêneros, nas mais diversas
situações de interação social. Instrumental que nos permite compreender que o texto
se organiza pelos princípios da coerência e da coesão, os quais envolvem a seleção
e a combinação dos elementos, dentro das inúmeras possibilidades que a gramática
da língua nos põe à disposição. Nessa tarefa, o autor tem que tomar um conjunto de
decisões que vão funcionar como instruções ou sinalizações que orientam a constru-
ção do sentido. Logo, a seleção e a combinação dos elementos não são aleatórias. São
escolhas objetivas do autor. Por isso, um texto nem sempre é tido como pronto na sua
primeira versão. A escrita envolve etapas. A escrita é trabalho, porque requer tempo e

41
InIcIação à atenção do autor às etapas de produção:
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do • Leitura;
conhecImento
• plano;
• escrita;
• reflexão e
• reescrita.

Trata-se de um processo contínuo em busca da interação pela linguagem; isto é,


a escrita é projeto seguido pelo autor, a fim de que o seu leitor construa um sentido
o mais próximo do esperado e desejado. O texto, para ser texto, tem, pois, que ter
coerência e coesão.

a coerêncIa e a coesão: Fatores orGanIZacIonaIs


A coerência textual trata do modo com que os elementos subjacentes à superfície
estão veiculados no texto. Para permitir ao leitor a sua construção, o autor vale-se da
coesão que terá sua importância aumentada, à medida que contribuir para a constru-
ção e manutenção da coerência.
Assim, enquanto as marcas de coesão encontram-se no texto, a coerência é construí-
da “a partir dele, em dada situação comunicativa, com base em uma série de fatores de
ordem semântica, cognitiva, pragmática e interacional” (KOCH; ELIAS, 2006, p. 186).
A forma como se constroem a coerência e a coesão aqui será discutida a partir da
leitura de dois textos: texto 1 e texto 2.

texto 1:

“Só acredito naquilo que posso tocar. Não acredito, por exemplo, em Luiza
Brunet” (Luís Fernando Veríssimo).

texto 2:

Escorregar (R.N.A.P)

Toda vez que vejo aquela grama “verdinha” do Estádio Willy Davis, me vêm
à mente recordações da minha infância. Quando eu era criança sempre ia
àquele lugar com meus primos brincar.
Como de costume, todos os domingos minha família se reunia na minha
avó, para almoçarmos juntos. E logo após o almoço, eu e meus primos
íamos para o quintal brincar de queima, banca-caixão, bandeirinha, ele-
fante-colorido, “que disco é esse?”, casinha, esconde-esconde, pé-na-lata,
pé-na-bola e outras. Mas era só dar cinco horas da tarde, que já íamos
para perto do meu tio “Vardo” e ficávamos insistindo para ele nos levar
para escorregar no morro do Estádio Willy Davis. E quando ele falava que

42
iria nos levar, saímos que nem doidos atrás de pedaços de papelões para texto: o que é?
escorregarmos.
Então ele juntava toda aquela criançada e nos levava no seu Corcel I.
Nunca ia menos de sete crianças com ele, já que sempre os vizinhos da
minha avó iam juntos. Chegando lá, subíamos aquele morro correndo,
para ver quem chegava primeiro lá no alto. Nenhuma descida era igual à
outra, às vezes os papelões ficavam enroscados na grama e nos ralávamos
todos. E lá no Estádio também tinha uma planta, que nós chamávamos de
“plantinha dorme-dorme”, porque quando relávamos nela, ela se encolhia
toda parecendo. E depois que o carro do meu tio quebrou, nós paramos de
ir escorregar lá.
E só agora eu percebo como uma simples brincadeira me trouxe muita
felicidade na infância. E mesmo eu me ralando toda, não me arrependo
de nenhuma escorregada, já que tudo para mim era diversão. E descobri
também que, quando nós somos crianças, as pequenas satisfações que os
adultos nos proporcionam ficam marcadas em nossa vida.

Segundo a concepção assumida neste trabalho, a frase de Luís Fernando Veríssimo,


escritor, jornalista, humorista e cronista brasileiro, é um texto – texto 1: tem coerência
e coesão. Assim como também é um texto Escorregar – texto 2, produzido por um
aluno em situação de ensino-aprendizagem.
Ambos apresentam fatores organizacionais que permitem ao leitor construir a coe-
rência. São fatores que se entrelaçam e são reconhecíveis mediante o apoio do contex-
to: ou seja, “a situação de interação imediata, a situação mediata (entorno sócio-políti-
co-cultural) e também o contexto cognitivo dos interlocutores” (KOCH, 2002, p. 40).
A coesão materializa os fatores da coerência, já que oferece ao leitor as “pistas” para
que ele compreenda e interprete o texto, segundo os objetivos do autor.
O arranjo linguístico – seleção de palavras, entrelaçamento delas em sequências
– diz respeito à linearidade do texto; ou seja, à organização das palavras nas orações,
destas nos períodos e destes nos parágrafos, os quais se unem para formar um todo
significativo. O arranjo linguístico diz respeito às escolhas de palavras e ao seu arranjo
em espaços – orações, períodos, parágrafos – que cumprem a sua função na comple-
tude do texto. Cada escolha vai ter a sua função nesse tecido que é o texto. As palavras
unem-se, ligam-se, procurando não deixar vazios que possam comprometer a “malha”
do texto. Por isso, cada uma tem que estar no seu lugar, segundo as intenções do au-
tor, a fim de que quem leia o texto possa construir o significado na sua totalidade. O
arranjo linguístico diz respeito, pois, à organização sintático-semântica do texto; isto
é, aos encaixamentos que realizamos na superfície do texto, escolhendo palavras que
comportem significados segundo os objetivos pretendidos. É uma “tecelagem” feita de
palavras visando à progressão do texto.
Isso significa que, se a coesão textual não é garantia para a construção da coerência
de um texto, ela é a grande responsável por nos fazer entender que:

43
InIcIação à a) Os elementos do texto, ao serem substituídos por outros equivalentes, podem
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do apresentar instruções de conexão (nível sintático) marcadas por nomes que
conhecImento
“encapsulam” informações contidas em sequências expandidas.
b) O autor, ao referir-se a nomes ou sequências textuais, pode fazê-lo por meio de
rótulos, marcados por escolha lexical.
c) O autor, para expandir o texto, pode retomar nomes por meio da sua repetição,
o que caracteriza a reiteração, total ou parcial.
d) O autor pode recuperar um termo ou uma sequência por meio da pronomina-
lização, desde que haja um contexto específico proposto implicitamente pela
co-textualidade.
e) No estabelecimento das relações sequenciais (nível pragmático), evidenciam-se
instruções de consequência, indicadas pela expansão das frases, por meio de
outras conectadas pelas conjunções.
f ) A descrição definida é outra estratégia de progressão textual, marcada pela ên-
fase que o autor deseja dar a certos traços ou características do referente.

Assim, o texto se organiza de forma coerente, quando se reconhece nele:

1) A situacionalidade: é a ponte entre o mundo real e o mundo construído pelo


autor. O arranjo linguístico do texto de Luís Fernando Veríssimo permite-nos depreen-
der o assunto “crença”: ... acredito...; isto é, o que ele toma como verdadeiro. Fica
patente que ele se dirige àqueles que falam a língua portuguesa e é com eles que
pretende estabelecer a comunicação. Traz o assunto para um texto com a intenção, o
objetivo, de provocar nos leitores reações de prazer e de humor, construído por:
a) escolhas lexicais – “Só acredito...”, que encapsulam “tomar como verdade”;
b) estabelecimento de relações sequenciais – “... naquilo que posso tocar”, que,
em sua vida, é aquilo em que pode pôr a mão, apalpar, ver, sentir;
c) reiteração parcial – “Não acredito em...”;
d) instruções marcadas por nomes que encapsulam as informações – “Luiza Bru-
net”. Encapsulamento que rotula a beleza da mulher brasileira, pois o nome
Luiza Brunet é rótulo da beleza nacional.

O dado é marcado pelo assunto crença e pelo código linguístico, língua portu-
guesa, conhecidos do leitor, já que Veríssimo se dirige a leitores brasileiros. O salto
ao novo se dá em um movimento marcado pela sequência “Só acredito naquilo que
posso tocar”.

44
Diante dessas relações que o arranjo linguístico permitiu estabelecer, como leito- texto: o que é?

res, percebemos que o escritor (autor) teve uma intenção ao escrever a frase, ou seja,
trouxe para o seu texto outro fator de coerência: a intencionalidade.

2) A intencionalidade revela o objetivo (por que) e a finalidade (para que) do


autor ao escrever o seu texto. No caso, o objetivo de Luís Fernando Veríssimo não
foi outro senão o de passar uma concepção bem humorada do que para ele é crível,
“acreditável”.
Ao referenciar Luiza Brunet, o escritor dá relevância ao assunto e ao tema de seu
texto, pois recorre ao contexto que permite a si mesmo e ao leitor reconstruir o mun-
do, os conceitos. Para isso, vale-se de um arranjo linguístico que permite construir os
significados para o texto, acessando informações.

3) A informatividade corresponde à distribuição da informação contida no texto


e à previsibilidade com que a informação é representada. Por isso, Veríssimo ilustra
essa informação com um exemplo novo para o leitor e para o texto: “Não acredito, por
exemplo, em Luiza Brunet”. Ao concentrar o foco dessa informação em uma estratégia
coesiva de encapsulamento e de rótulo – Luiza Brunet, Veríssimo remete o leitor ao
contexto e ativa os seus conhecimentos prévios, de mundo.
O movimento dado/novo se dá agora pela relação que se estabelece entre a sequên-
cia “Só acredito naquilo em que posso tocar” (conhecido, no texto) e a sequência “Não
acredito em Luiza Brunet”. O texto se expande na retroação, retomando o conhecido
(nesse momento, o já dito no texto) “acredito”, por meio da repetição que incorpora
o novo ao texto: Não acredito em Luiza Brunet. Percebemos que o novo está ancorado
no dado.
Essa informatividade, o novo do seu texto, é construída pela intertextualidade,
que compreende o modo pelo qual o texto se relaciona com outros textos, com os
seus conhecimentos prévios, com o mundo em que se insere.
A dosagem das informações leva em conta a situação comunicativa, de uso, prin-
cipalmente, e o conhecimento que o leitor tem sobre o que está tematizado no texto.
Deve se apresentar na medida necessária para que o leitor “seja capaz de reconstruir o
objetivo da produção do texto” (KOCH; ELIAS, 2006, p. 50).

4) A intertextualidade marca o momento em que o autor traz para o seu texto as


suas leituras de mundo, as relações que estabelece com suas próprias experiências e
com as contidas em outros textos e no que circunda tanto ele como o seu leitor. Para
expandir o seu texto, o autor “joga” com o contexto e dele traz a referência.

45
InIcIação à Luiza Brunet, modelo, atriz, empresária, reconhecida como exemplo de beleza no
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do Brasil e no mundo, é a referência do bloco informativo – o dado – na qual Veríssimo se
conhecImento
ancora e para a qual remete o seu leitor. Essa referência de beleza é contextual, perten-
ce, pressupostamente, ao conhecimento de ambos. Assim, Veríssimo remete o leitor
ao conhecido, ao contextual e faz surgir um novo texto, por meio do diálogo que ele
e o seu leitor estabelecem a partir da referência Luiza Brunet que, no texto, estabelece
uma nova concepção de crença.
Luís Fernando Veríssimo, com isso, faz-nos inferir que ele não acredita em nada
além do que é concreto. O concreto para ele é aquilo em que pode tocar. Luiza Brunet
é concreta. Existe, mas para ele não, porque lhe é intocável, inatingível. Engrossa com
isso a fileira daqueles que a têm como o perfil da beleza brasileira.
O imbricamento desses fatores de coerência fez com que os leitores se envolvam
com o seu texto e o aceitem, reagindo segundo as suas intenções – o humor. É esse
envolvimento que tece o princípio da aceitabilidade.

5) A aceitabilidade é, portanto, a aceitação do texto como coeso, coerente e rele-


vante para o leitor.
O texto de Veríssimo cumpre as suas funções comunicativas e se organiza segundo
condições de produção e de uso, reconhecidamente marcadas.
O texto 2 – Escorregar – é um texto visualmente mais reconhecível como tal na sua
estrutura. Organiza-se em blocos, em princípio, e também visualmente reconhecidos
como parágrafos. É mais extenso. Tem uma estrutura marcada por uma introdução,
desenvolvimento e conclusão. As condições de sua produção foram criadas em sala de
aula. Trata-se de um texto produzido em situação de ensino-aprendizagem de língua
portuguesa, em uma sequência de aulas que compreenderam as atividades de uma
oficina de produção textual. Não é o texto de um escritor, no sentido lato da palavra,
como o é o de Luís Fernando Veríssimo, que tem o dom e o talento de poucos ao lidar
com as palavras. É o texto de um aluno, autor, que tomou a escrita como sinônimo de
trabalho, seguindo as etapas de produção: leitura; plano; escrita; reflexão; reescrita.
Fez dela um processo contínuo em busca da interação pela linguagem, uma vez que a
tornou um projeto que seguiu com a intenção de que o seu leitor construísse um sen-
tido o mais próximo daquele que desejava. Por isso, aqui, recuperamos as condições
de sua produção, ao mesmo tempo em que reconhecemos nos nomes ou nas sequên-
cias textuais, marcados por escolha lexical, os fatores de coerência, como o fizemos
com o texto de Veríssimo.
Se a situacionalidade é um fator de coerência que se constrói a partir dos conhe-
cimentos prévios do leitor, o autor leva em conta: os conhecimentos linguísticos, as

46
experiências de vida, aquilo que ele já sabe sobre o assunto. Assim, quanto mais o texto: o que é?

autor perceber que o leitor necessita de “pistas” para se contextualizar, ou quanto mais
próximos dos seus ele quiser que esse leitor construa os sentidos, mais referências e
informações ele trará para o texto.
O assunto surgiu a partir da leitura de um texto literário, discutido e explorado
quanto aos efeitos produzidos, em sala de aula. Nessas discussões, lembranças da in-
fância foram resgatadas e exploradas em textos como o de R.N.A.P.
A situacionalidade, refletida no arranjo linguístico que emerge na superfície do
texto e que constitui a coesão textual, dilui-se no texto e segura os demais fatores da
coerência:
Toda vez que vejo aquela grama “verdinha” do Estádio Willy Davis, me vêm à
mente recordações da minha infância. Quando eu era criança sempre ia àquele
lugar com meus primos brincar.
As recordações se comprimem naquelas sobre as quais o autor julga ser possível,
devido às condições de produção, falar à exaustão: “recordações da minha infância”.
Assim, temos o tema do texto.
Ele é retomado pela informatividade, ou seja, “novidades” – o novo – para o
texto: quando eu era criança...; nos domingos minha família se reunia na minha
avó; ..., eu e meus primos íamos para o quintal brincar..; ...(brincar) de queima,
banca-caixão, bandeirinha, elefante-colorido, “que disco é esse?”, casinha, esconde
-esconde, pé-na-lata, pé-na-bola e outras;... íamos para perto do meu tio “Vardo” e
ficávamos insistindo para ele nos levar para escorregar no morro do Estádio Willy
Davis; ... uma simples brincadeira me trouxe muita felicidade na infância; ... tudo
para mim era diversão.
Já a intertextualidade, no texto 2, é marcada pela retomada da leitura realizada an-
tes de sua produção: o texto trazia as recordações da infância de uma escritora, “Quan-
do tudo podia ser brinquedo”. Também as experiências do autor são trazidas ao texto.
A intencionalidade emerge no arranjo textual, comprometido com um leitor ge-
ral, com o objetivo de fruição, sem a pretensão de persuadir alguém a tomar uma
posição diante do que se diz. Simplesmente, diz e se reconhece como ser humano que
compartilha experiências pela linguagem: “...tudo para mim era diversão...”
A aceitabilidade é tecida, à medida que os outros fatores de coerência são percep-
tíveis. As escolhas lexicais e arranjos sintáticos são aceitos no contexto em que o texto
2 circula – uma coletânea elaborada ao final de uma oficina de leitura e produção de
textos em ambiente escolar.

47
InIcIação à o teXto: estrutura e orGanIZação
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do O texto é uma estrutura sequencial heterogênea, em que se imbricam sequências
conhecImento
descritivas, narrativas, dissertativas, cuja relevância pode tipificá-lo como narrativo,
descritivo, argumentativo, expositivo ou injuntivo, isto é, imperativo.
A estrutura de um texto, em quaisquer tipologias – descritiva, narrativa, disserta-
tiva, apresenta: introdução, desenvolvimento, conclusão. É o “esqueleto” do texto.
No momento da produção – ou da leitura – de um texto, o conhecimento supe-
restrutural ou sobre os gêneros textuais é acionado, pois, além de permitir a opção
pelo gênero mais adequado ao evento social, também nos dá uma orientação “sobre
a ordenação ou sequenciação textual em conexão com os objetivos pretendidos”
(KOCH; ELIAS, 2006, p. 54).
Isso se reflete na materialização linguística que constitui o texto, que, no texto
1, provocou um efeito de humor, causado por um jogo de palavras usado por Verís-
simo – “Só acredito naquilo que posso tocar. Não acredito, por exemplo, em Luiza
Brunet.” Brunet é intocável, por isso, não acredita que ela exista. Veríssimo joga com
o implícito. A situação comunicativa permite isso.
Já, no texto 2, o jogo é explícito, uma vez que os objetivos do seu autor e as
condições de sua produção impunham maior clareza de sentidos. Por isso, a organi-
zação dos dois textos é diferente.
A organização são os arranjos que mobilizam cada uma das partes estruturais do
texto. Segundo as condições de sua produção, as organizações textuais são diferen-
tes, visto que a organização textual se faz segundo as necessidades impostas pelas
situações de interação verbal que ocorrem nas várias esferas sociais pelas quais os
sujeitos – autor e leitor – circulam. Em cada situação, eles são impelidos a interagir
com os outros, diferentemente. Para satisfazer às necessidades oriundas dessas si-
tuações, observam o mundo, os objetos, as pessoas, os acontecimentos, os lugares,
os sentimentos, as ações. Refletem sobre tudo isso, estabelecem relações entre os
elementos e acabam por descobrir suas características. Começam, então, a agrupar
esses elementos, de acordo com certos parâmetros ou critérios, organizando-os em
busca de significados, da construção de sentidos. Refletem sobre a linguagem, sobre
formas linguísticas associadas aos conhecimentos. Questionam. Estabelecem objeti-
vos de vida, para si e inferem os daqueles com quem dialoga. Expõem-se. Interagem
com o mundo e com os outros. Recorrem a estratégias que deem conta do processo
de interação pela linguagem, quer na leitura, na escuta, na oralidade, na escrita.
Os textos são produtos de leitura – de outros textos, de mundo, dos outros, que
se organizam, segundo as situações de uso. Por isso, torna-se importante a aquisição
de conhecimentos que permitam aos sujeitos aprimorar domínios de leitura, de

48
escrita e de formas linguísticas aceitáveis para cada prática de linguagem, ou seja, texto: o que é?

para cada situação de interação verbal.


Os textos, portanto, são espaços em que os sujeitos interagem pela linguagem
porque organizam cognitivamente o mundo, com o objetivo de representar determi-
nados aspectos da realidade social e de expor o seu conhecimento.
Do ponto de vista estrutural, canonicamente, em situação de escolarização, os
textos apresentam a seguinte estrutura:

Título
Introdução
Desenvolvimento
Conclusão

O título tem duas funções:


1) resumir o texto;
2) ser convidativo e instigante para o leitor.
Na introdução, o autor do texto situa o leitor sobre o assunto, o tema, o código lin-
guístico, o objetivo – explícita ou implicitamente. Nesse momento, faz-se um acordo
com o leitor, situando-o.
O desenvolvimento expande o que se “prometeu” ou acordou na introdução. É o
momento em que a informatividade se fortalece com argumentos, provas, fatos, que
vão garantir a aceitabilidade do texto.
A conclusão, por sua vez, apresenta o resumo do que foi dito no desenvolvimento
e retoma, consequentemente, a introdução.

teXto: tIpo e Gênero teXtuaL


O texto 1 apresenta duas sequências do tipo argumentativo: “Só acredito naquilo
que posso tocar. Não acredito, por exemplo, em Luiza Brunet.”
O texto 2 apresenta sequências de três tipos entrelaçados:
a) Descritivo:
Toda vez que vejo aquela grama “verdinha” do Estádio Willy Davis, me vêm à mente
recordações da minha infância. Quando eu era criança sempre ia àquele lugar com
meus primos brincar. Como de costume, todos os domingos minha família se reunia
na minha avó, para almoçarmos juntos. E logo após o almoço, eu e meus primos ía-
mos para o quintal brincar de queima, banca-caixão, bandeirinha, elefante-colorido,
“que disco é esse?”, casinha, esconde-esconde, pé-na-lata, pé-na-bola e outras. Mas era
só dar cinco horas da tarde, que já íamos para perto do meu tio “Vardo” e ficávamos
insistindo para ele nos levar para escorregar no morro do Estádio Willy Davis. E
quando ele falava que iria nos levar, saímos que nem doidos atrás de pedaços de

49
InIcIação à papelões para escorregarmos. Então ele juntava toda aquela criançada e nos levava
cIêncIa e à pesquIsa no seu Corcel I. Nunca ia menos de sete crianças com ele, já que sempre os vizinhos da
a construção do
conhecImento
minha avó iam juntos. Chegando lá, subíamos aquele morro correndo, para ver quem
chegava primeiro lá no alto. Nenhuma descida era igual à outra, às vezes os papelões
ficavam enroscados na grama e nos ralávamos todos. E lá no Estádio também tinha
uma planta, que nós chamávamos de “plantinha dorme-dorme”, porque quando relá-
vamos nela, ela se encolhia toda parecendo.

b) Narrativo: E depois que o carro do meu tio quebrou,...


c) Argumentativo: nós paramos de ir escorregar lá. E só agora eu percebo como
uma simples brincadeira me trouxe muita felicidade na infância. E mesmo eu
me ralando toda, não me arrependo de nenhuma escorregada, ...
d) Descritivo: já que tudo para mim era diversão.
e) Narrativo: E descobri também...
f ) Argumentativo: que, quando nós somos crianças, as pequenas satisfações que
os adultos nos proporcionam ficam marcadas em nossa vida.

Isso significa que vários tipos podem se entrelaçar em um texto.


Entretanto, o texto 1 marca o gênero frase de humor e o texto 2, reservadas todas
as proporções das condições – e, consequentemente, relativizado – em que foi pro-
duzido uma crônica.

aFInaL, o que É um teXto?


Texto é um enunciado pleno de significação, independente de sua extensão, pro-
duzido para satisfazer às necessidades provocadas pelas situações de interação verbal
que ocorrem nas várias esferas sociais pelas quais os sujeitos transitam. É um espaço de
interação verbal, no qual todas as ações linguísticas, cognitivas e sociais se entrelaçam
de modo tal que autor e leitor recorrem a estratégias capazes de cumprir os objetivos
da interação pela linguagem e, juntos, constroem os sentidos do texto. Essas estraté-
gias sociocognitivas são necessárias para o processamento textual, por isso mobilizam,
pelo menos, conforme Koch, três grandes sistemas de conhecimento: o linguístico
– que diz respeito ao domínio da gramática e do léxico da língua na qual o texto é pro-
duzido; o enciclopédico ou de mundo – afeto ao conhecimento de mundo em que
se inserem o conhecimento prévio, “as vivências pessoais e eventos espácio-temporais
situados” (KOCH, 2002, p. 42); o conhecimento interacional – que abrange outros
conhecimentos, as condições de produção, que permitem a autor e leitor dialogarem.
Esses sistemas de conhecimento são importantes, tanto na produção quanto na leitura
do texto, porque eles permitem um balanceamento das informações a serem passadas,
uma seleção adequada da variante linguística e do gênero textual.
Dessa forma, os textos 1 e 2 – respeitando-se o espaço que ocupa cada um de seus
50
autores – cumprem a sua função comunicativa Cada qual usou na materialização do texto: o que é?

texto tudo aquilo que julgou ser necessário para a construção dos sentidos desejados.
Se o texto é um espaço em que autor e leitor interagem quando têm um objetivo
para fazê-lo, impulsionados pelas situações comunicativas a que estão expostos, am-
bos não podem desconsiderar o contexto em que se envolvem as condições de produ-
ção, de uso e tudo o que possa contribuir para a construção dos sentidos do texto. Isso
porque, tanto na escrita quanto na oralidade, os sujeitos – autor e leitor – valem-se
de recursos além dos linguísticos, presentes no texto. Estes são pistas que ativam os
conhecimentos tidos na memória, levam a refletir sobre a situação comunicativa em
que se envolvem os parceiros da comunicação. Ou seja, o contexto diz respeito a tudo
aquilo que circunda o texto e que possa auxiliar na construção dos seus sentidos. Por
isso, as suposições que constituem o contexto são sempre ancoradas nos saberes que
ambos – autor e leitor – têm acumulados. É o contexto, pois, que nos permite, como
ocorreu, principalmente, na leitura do texto 1, preencher as suas lacunas e estabelecer
relações entre o explícito e o implícito. Ambos os textos, segundo o contexto de uso –
frase de humor e crônica – jogaram, em um balanceamento adequado e equilibrado,
com o explícito e com o implícito.

referências

GERALDI, João W. O texto na sala de aula. Cascavel: Assoeste, 1987.

______. Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação. Campinas, SP:


Mercado de Letras; ALB, 1996.

KOCH, Ingedore G.V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.

KOCH, Ingedore G.V.; ELIAS, Vanda M. Ler e compreender os sentidos do texto.


São Paulo: Contexto, 2006.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática, ensino plural. São Paulo: Contexto, 2004.

VERÍSSIMO, Luis F. Luis Fernando Veríssimo. [s. l.]: Pensador Info [2008?].
Disponível em: <http://www.pensador.info/autor/Luis_Fernando_Verissimo>.
Acesso em: 12 nov. 2008.

51
InIcIação à VILLELA, Mário; KOCH, Ingedore G.V. Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa:
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do Almedina, 2000.
conhecImento

proposta de atividades

1) Pesquise na Internet o tema: o que é texto. Procure diferentes definições.

2) Elabore um texto que compare as definições encontradas com a apresentada neste capí-
tulo. Deixe claras as aproximações e diferenças entre os autores.

anotações

52
4 produção de trabalhos
acadêmico-científicos
fundamentais: fichamento,
resumo e resenha

Jorge cantos

Introdução
A produção de todo trabalho acadêmico-científico de qualidade é necessariamente
antecedida pela leitura e análise de textos e implica a documentação daquilo que se
leu e se analisou.
Texto é o nome genérico que se dá para toda e qualquer porção de linguagem
codificada por um emissor, normalmente escrita, e que necessita ser decodificada por
um receptor. Em linhas gerais, eles podem ser divididos em obras de leitura, para
aquisição de conhecimentos, e em obras de consulta, para exposição de uma teoria.
As dimensões de um texto são as mais diversas possíveis. Podem ser desde uma obra
inteira com vários volumes até uma página apenas.
Ora, existem muitos tipos de textos: literários, teóricos, técnicos, jornalísticos, aca-
dêmicos, científicos. Texto científico é aquele que tem unidade, coerência e consis-
tência, portanto, rigor de pensamento e expressão (unidade), concatenação de ideias
(coerência) e demonstração das informações (consistência). São priorizados aqui os
textos acadêmico-científicos, ou seja, aqueles próprios da academia, sobretudo da uni-
versidade, que visam ao estudo, à pesquisa e à produção de trabalhos científicos.
Igualmente, são muitos os modelos de análise de textos disponíveis em manuais
de metodologia científica. O modelo que seguimos é o das análises textual; temática;
interpretativa e crítica; de problematização e de síntese.
Variados são os meios e os instrumentos de documentação, dos quais o fichamen-
to é somente um deles, incluso neste enfoque também como um tipo de produção
científica.

53
InIcIação à Por fim, as formas de produção científica são as mais diversas possíveis. Essa abor-
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do dagem constitui-se apenas em uma das possibilidades. São especificados três tipos de
conhecImento
trabalhos acadêmico-científicos fundamentais, quais sejam, fichamentos, resumos e
resenhas.

LeItura e anÁLIse cIentÍFIcas de teXtos


A base da criação de qualquer texto está a leitura. Ler é fundamentalmente apro-
priar-se da ideia central do texto, de sua estrutura, de seus conceitos e de seu contexto
lógico e histórico. Imaginemos, então, como ela é indispensável para quem pretende
desenvolver textos acadêmico-científicos; nesse caso, a elaboração de fichamentos, re-
sumos e resenhas!
Ora, a leitura é a base porque sem ela é impossível o domínio do discurso cientí-
fico. E sem domínio desse discurso não há como elaborar textos científicos. Por isso,
é preciso desenvolver o hábito da leitura, o que implica não apenas ler muito e ler
sempre, mas especialmente ler bem, isto é, ler compreensivamente, ou melhor ainda,
ler de modo científico.
Isto significa que não devemos fazer uma leitura apressada dos textos-fonte de
estudo ou de pesquisa, como se lêssemos um texto qualquer. Aliás, por vezes são
necessárias mais de uma leitura de um mesmo texto, pois afinal o que se requer é que
se observe e se compreenda a sua estrutura. De fato, para o domínio da estrutura do
texto são exigidas várias leituras e sempre uma leitura pausada, com anotações, com
releitura exaustiva. Ou seja, leitura analítica da articulação e do sentido do discurso
científico, que deve ser documentada e organizada (fichamento), e é condição indis-
pensável para posteriores sínteses (resumos, resenhas) ou outra aplicação (monogra-
fias, artigos) do material lido e analisado, porquanto se trata de leitura de estudo e
como fonte de pesquisa.
Entretanto, “O sentido está sempre no viés. Ou seja, para se compreender um dis-
curso é importante se perguntar: o que ele não está querendo dizer ao dizer isto? Ou,
o que ele não está falando, quando está falando disso?” (ORLANDI, 1987, p. 275 apud
MEDEIROS, 2004, p. 13).
Em vista disso, adaptada à proposta de trabalho, é necessária uma leitura seletiva;
de profundidade; atenta, eficiente e eficaz; de questionamento do texto e de conversa
produtiva com o seu autor. Tratam-se de leituras de reconhecimento ou exploratórias,
analíticas, reflexivas, interpretativas, críticas, explicativas e capazes de compor sínteses
(MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 20-21).
Utilizam para tal intento as mais variadas técnicas de leitura, tais como a técnica
dos sublinhados, que deve ser utilizada de forma criteriosa a partir da segunda leitura

54
de um texto; a de atribuição de títulos e subtítulos aos parágrafos; a de anotações e produção de trabalhos
acadêmico-científicos
apontamentos à margem da página; a de acesso e identificação da obra etc. Com rela- fundamentais:
fichamento, resumo e
ção a esta última: resenha

Recomenda-se que a identificação do livro para futura leitura seja feita a partir
da observação do título, da data de publicação da obra, da ficha catalográfica,
de leitura atenta da orelha, do sumário, da introdução, do prefácio ou apre-
sentação, da bibliografia. Rápida folheada em todo o livro antes de dar início à
leitura também é procedimento recomendável (MEDEIROS, 2004, p. 14).

Como já explicitamos anteriormente, o que seguem neste capítulo são apenas algu-
mas diretrizes para a leitura, análise e interpretação de textos voltados para o estudo
e para a pesquisa na academia, especificamente quanto à elaboração de fichamentos,
resumos e resenhas. Vale destacar que os limites entre um e outro tipo de análise de
texto, de documentação e de produção de textos científicos não são de modo algum
fixos, mas há uma interpenetração e complementaridade entre os diversos tipos de
análise, documentação e produção, respectivamente.

análise textual
A análise textual, primeira abordagem de um texto, compreende, uma vez que se
tenha determinado a unidade de leitura, um conjunto de atividades preparatórias para
análises mais aprofundadas.
Faz-se, primeiramente, uma leitura corrida, sem pausa, rápida e completa do texto
para captar a sua ideia central e a visão de conjunto do autor. Ora, a ideia central pode
estar claramente identificável no título, na introdução ou no corpo do texto ou, pelo
contrário, encontrar-se mais diluída no texto. É por isso que se recomenda ler quase
de um só fôlego para se obter a visão de conjunto do texto. Nessa primeira leitura,
deve-se prestar atenção apenas ao que é essencial, deixando de lado os pormenores.
São feitas, em seguida, outras leituras mais minuciosas para se levantar todos os
elementos básicos à devida compreensão do texto. Ora, levantar os elementos básicos
de um texto implica, primeiramente, a assinalação dos pontos passíveis de dúvidas; o
levantamento de dados a respeito do autor; e o estudo do vocabulário, termos e concei-
tos. Em segundo lugar, o exame das referências históricas, com a verificação das doutri-
nas expostas e a sondagem de fatos apresentados e da autoridade dos autores citados,
ou seja, situar o texto em seu contexto. Em terceiro lugar, a elaboração de um esquema
das ideias expostas no texto (SEVERINO, 2003, p. 51-53; MEDEIROS, 2004, p. 161).
Explicitando, é por isso que, além de uma primeira leitura rápida e completa para
se captar a ideia central, são necessárias outras tantas leituras do texto, mais minucio-
sas, para se apropriar de sua estrutura, ou seja, da concatenação das ideias secundárias

55
InIcIação à entre si e delas com a ideia central (segunda leitura); do sentido exato de cada termo
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do e conceito (terceira leitura); e do contexto lógico e histórico do autor, do texto e do
conhecImento
leitor (quarta leitura). É aconselhável, por fim, que se faça um esquema mental e por
escrito, um apanhado geral das ideias que se revelaram mais salientes.
As perguntas mais comuns levantadas em uma análise textual são: Quem é ou quem
são os autores do texto? Que métodos os autores utilizaram? (MEDEIROS, 2004, p. 161).

[...] a busca de esclarecimentos tem tríplice vantagem: em primeiro lugar, di-


versificando as atividades no estudo, torna-o menos monótono e cansativo; em
segundo lugar, propicia uma série de informações e conhecimentos que passa-
riam despercebidos numa leitura assistemática; em terceiro lugar, tornando o
texto mais claro, sua leitura ficará mais agradável e muito mais enriquecedora
(SEVERINO, 2003, p. 52-53).

Podemos perceber que a análise textual tem atividades que lhe são próprias e, ao
mesmo tempo, incorpora alguns elementos típicos de outras análises de textos, o que
lhe confere a condição de pré-requisito das demais.

análise temática
A análise temática consiste na segunda etapa de uma análise de texto. É a busca de
compreensão mais aprofundada de sua mensagem global, tarefa já facilitada uma vez
que se tenha feito a análise textual. Busca-se ouvir o conteúdo da mensagem do autor
sem intervir nele.
As perguntas mais comuns em uma análise temática são: ‘De que trata ou do que
fala o texto’, ou seja, ‘Qual é o seu assunto?’; ‘Sob que perspectiva o autor trata sobre
o assunto’, ou seja, ‘Qual é o tema?’; ‘Quais são os limites do texto?’. As respostas a
essas perguntas permitem a identificação do tema do texto, que nem sempre se dá
facilmente ao leitor (SEVERINO, 2003, p. 54; MEDEIROS, 2004, p. 161).

Nem sempre o título da unidade dá uma ideia fiel do tema. Às vezes apenas
o insinua por associação ou analogia; outras vezes não tem nada que ver
com o tema. Em geral o tema tem determinada estrutura [...] Além disso, é
preciso captar a perspectiva de abordagem do autor: tal perspectiva define o
âmbito dentro do qual o tema é tratado, restringido-o a limites determinados
(SEVERINO, 2003, p. 54).

Outras perguntas que a análise temática procura levantar e responder: como o tema
está problematizado? Que ou qual a dificuldade a ser resolvida? Que problema foi foca-
lizado? Qual o problema a ser solucionado? São perguntas que dizem respeito à proble-
matização do tema. Como, muitas vezes, o problema não está posto de forma precisa
no texto, é necessário explicitá-lo (SEVERINO, 2003, p. 54; MEDEIROS, 2004, p. 161).
Um terceiro tipo de questão relaciona-se às hipóteses do autor: Como ele responde
à dificuldade levantada? Como soluciona o problema? Que posição ele assume? Que

56
ideia defende? O que quer demonstrar? Qual é e como demonstra seu raciocínio? produção de trabalhos
acadêmico-científicos
Quais são seus argumentos ou sua argumentação? As respostas a essas perguntas reve- fundamentais:
fichamento, resumo e
lam a ideia central do texto e as concatenações lógicas com as quais o autor procura resenha

demonstrar sua tese (SEVERINO, 2003, p. 54-55).


Outros tipos de questões possíveis em uma análise temática são: Há outros assuntos
paralelos à ideia central? Há outras ideias secundárias que não fazem necessariamente
parte da estrutura do texto, mas que estão intercaladas no texto? Trata-se de um tipo
de perguntas que são dispensáveis ao raciocínio, mas que completam o pensamento
do autor (MEDEIROS, 2004, p. 61; SEVERINO, 2003, p. 55).
É bom frisarmos que a análise temática serve de base principalmente para o resumo
do texto, pois quando se pede um resumo, o que se tem em vista é a síntese das ideias
do raciocínio do autor. Daí o resumo poder ser escrito com outras palavras, desde que
as ideias sejam as mesmas do texto (SEVERINO, 2003, p. 55).

análises interpretativa e crítica


A análise interpretativa, terceira abordagem de um texto, objetiva situar o autor e
apresentar uma posição própria do leitor a respeito das ideias do texto, consistindo
em um diálogo entre o autor e o leitor. Como é aqui que a possibilidade de interferên-
cia da subjetividade do leitor mais ocorra, exatamente por isso ele deve redobrar os
esforços a fim de controlá-la.

Interpretar, em sentido restrito, é tomar uma posição própria a respeito das


ideias enunciadas, é superar a estrita mensagem do texto, é ler nas entrelinhas,
é forçar o autor a um diálogo, é explorar toda a fecundidade das ideias expostas,
é cotejá-las com outras, enfim, é dialogar com o autor (SEVERINO, 2003, p. 56).

Por isso, as atividades de uma análise interpretativa compreendem situar o autor


dentro de sua obra e no contexto da cultura de sua área e destacar as contribuições
originais (MEDEIROS, 2004, p. 161).
Mais que o contexto histórico, trata-se de compreender o contexto lógico do texto:
situar o pensamento desenvolvido na unidade com o pensamento geral do autor (re-
lacionamento lógico-estático); situar o pensamento do autor com a cultura filosófica
em geral (relacionamento lógico-dinâmico); explicitar os pressupostos (princípios nos
quais se fundamenta a posição do autor); comparar ideias expostas com ideias seme-
lhantes em outras abordagens (comparação de ideias temáticas afins). Uma leitura é
tanto mais fecunda quanto mais sugere temas para a reflexão do leitor (SEVERINO,
2003, p. 56-57).
O próximo passo da análise interpretativa é a crítica. É a fase mais delicada da
interpretação, porque é o momento da avaliação do leitor em relação ao conteúdo

57
InIcIação à lido, que varia de acordo com a natureza do texto. As perguntas mais comuns em uma
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do crítica são: Qual é a coerência interna do texto? Qual é sua originalidade? Qual é o seu
conhecImento
alcance? Qual é a validade das ideias? Que contribuições o texto apresenta? O autor
atingiu os objetivos propostos? O texto supera a pura retomada de textos de outros
autores? Há profundidade na exposição de ideais? A tese foi demonstrada com eficácia?
A conclusão está apoiada em fatos? (MEDEIROS, 2004, p. 162).
É por intermédio da crítica que o leitor formula um juízo crítico, ou seja, toma
posição frente ao texto, julgando-o quanto sua coerência interna (até que ponto o
raciocínio do autor foi eficaz na demonstração da tese proposta) e quanto sua origina-
lidade (até que ponto a contribuição do autor é relevante). Acrescenta-se uma possível
crítica pessoal do leitor às posições defendidas no texto (SEVERINO, 2003, p. 57). O
leitor crítico é aquele que reescreve ou recria o que lê.

problematização e síntese
A problematização, quarta abordagem em uma análise de texto, consiste em desta-
car as questões que o texto levanta para discussão.
Diferentemente da determinação do problema da unidade, que é uma das tarefas
da análise temática e que consiste na dificuldade inicial que levou o autor à elaboração
do texto, a determinação da problematização é geral ao texto, ou seja, é tomada em
sentido amplo de levantamento de temáticas para a reflexão e discussão de questões
explícitas ou implícitas no texto (SEVERINO, 2003, p. 58).
A síntese é a elaboração pessoal do leitor que se segue à discussão da problemática
levantada pelo texto e à reflexão e discussão a que ele conduz. Ela deve refletir sinteti-
camente as ideais do texto original (MEDEIROS, 2004, p. 162).
Ora, a síntese está menos ligada à leitura como tal e mais ligada à construção lógica
de uma redação. De fato, sempre exigida no contexto das atividades didáticas, é ela,
enquanto resultado das diferentes análises de texto, que permite ao acadêmico-pes-
quisador se arriscar à produção de textos científicos com maior segurança.

produção de teXtos acadêmIco-cIentÍFIcos


É comum na academia a reclamação de muitos professores sobre as dificuldades
dos alunos acerca da elaboração de trabalhos acadêmico-científicos, tais como ficha-
mentos, resumos e resenhas. É para superar essa dificuldade que contribui significa-
tivamente o exercício de leituras, análises e interpretações de textos, que, uma vez e
devidamente documentadas, são pré-requisitos de capacitação do aluno para a reda-
ção de trabalhos que exijam embasamento científico e que sejam elaborados segundo
técnicas de pesquisa e normas técnicas de apresentação.

58
Fichamento produção de trabalhos
acadêmico-científicos
As leituras, depois de analisadas, necessitam serem documentadas, isto é, fichadas. fundamentais:
fichamento, resumo e
Mas como converter uma leitura em fichamento? Para que ele serve? resenha

Fichamento é o ato de anotar, registrar, catalogar, documentar, ou seja, fichar, que


significa colocar as anotações de leitura em fichas, quer sejam estas manuais ou com-
putadorizadas, para fins de estudo ou pesquisa. É um trabalho de documentação e
de anotações que tem como função pôr à disposição do acadêmico-pesquisador, de
forma acessível, uma série de informações acerca do material lido, funcionando como
registro (SANTOS; PARRA FILHO, 1998, p. 138) de utilidade ímpar para futuras con-
sultas. “O fichamento permitirá identificação das obras lidas, análise de seu conteúdo,
anotações de citações, elaboração de críticas e localização das informações lidas, con-
sideradas importantes” (MAGALHÃES; ORQUIZA, 2002, p. 23).
De fato, o trabalho de pesquisa pressupõe um grande número de apontamentos
que serão utilizados na futura elaboração de um texto. Tais registros, organizados na
forma de fichas, vão constituindo fichários e arquivos, os quais, com o avanço da in-
formática, vão paulatinamente deixando de serem manuais para serem cada vez mais
computadorizados. No entanto, para ambos os casos, a organização das fichas em fi-
chários e arquivos, que são espaços onde se pode encontrar sempre e com facilidade o
material aí colocado, obedece a uma estrutura mais ou menos padronizada.
Assim, o primeiro elemento estrutural de uma ficha é a classificação numérica do
assunto. O modelo mais seguido é o critério decimal de classificação criado por Melvil
Dewey em 1876 (SANTOS; PARRA FILHO, 1998, p. 139).

Essa classificação divide todos os campos do saber em dez grupos numerados de


zero a nove cada um, os quais por sua vez se dividem em outros dez, cada um
desses últimos se subdividem também em outros dez e assim sucessivamente,
o quanto for necessário, partindo-se sempre do geral para o particular, do todo
para as partes, do gênero para a espécie (SANTOS; PARRA FILHO, 1998, p. 140).

Educação (pedagogia), por exemplo, está classificada na primeira decimal 3 (Ciên-


cias Sociais) e na segunda decimal 7, portanto, com o número 37. Normalmente uti-
lizado em catalogações de títulos em bibliotecas, esse método é, igualmente, por de-
mais útil, mas não obrigatório, para o acadêmico-pesquisador que pretende trabalhar
de forma racional.
O segundo elemento estrutural de uma ficha é que todas elas têm um cabeçalho,
do qual deve constar o título genérico, normalmente o da obra ou do trabalho que está
sendo utilizado na pesquisa, podendo ser desmembrado em título próximo (que é um
desdobramento do título genérico), e título específico (que é uma subdivisão do título
próximo) (SANTOS; PARRA FILHO, 1998, p. 144-145).

59
InIcIação à O terceiro elemento estrutural das fichas é a referência, que é o conjunto de ele-
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do mentos que permitem a identificação, no todo ou em parte, de documentos impressos,
conhecImento
de elementos essenciais e elementos complementares. Ela nunca deve ser colocada ao
final do texto, mas encabeçando-o e deve ser apresentada de acordo com a Norma
Brasileira (NBR) 6023 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
O quarto elemento estrutural de uma ficha, o principal, é o texto, que varia con-
forme a modalidade de fichamento. Os fichamentos mais comuns são do tipo biblio-
gráfico, de esboço, de comentário ou analítico, de crítica, de citação, de resumo e de
resenha. Eles permitem a identificação das obras lidas, a análise de seu conteúdo,
anotações de citações, elaboração de críticas e localização das informações lida, consi-
deradas importantes (MAGALHÃES; ORQUIZA, 2002, p. 23).
O fichamento bibliográfico contém dados gerais sobre a obra lida. Ele identifica, de
forma bastante abreviada, o objetivo da obra, os problemas que ela pretende resolver,
os resultados obtidos, a metodologia utilizada e a sua contribuição para o conhecimen-
to ou para a prática social dos homens.
O fichamento de esboço apresenta as principais ideias do autor lido de forma esque-
matizada e com a indicação da página do documento. Trata-se de um texto mais detalha-
do que o resumo, visto que apresenta uma síntese das ideias do autor página por página.
O fichamento de comentário ou analítico incorpora a interpretação e a crítica pes-
soal do pesquisador (daí também ser chamado de fichamento crítico) com referência
às ideias expressas pelo autor lido. Ou seja, é um comentário do leitor sobre a forma
como o autor desenvolve seu trabalho (aspecto metodológico); uma análise crítica de
seu conteúdo (referencial da própria obra); interpretação do texto (tornando mais cla-
ros trechos obscuros); comparação com outros trabalhos referentes ao mesmo tema; e
explicitação da importância da obra.
O fichamento de citações é feito com a reprodução literal, entre aspas e com indi-
cação de página, de parte dos textos considerados pertinentes ao estudo e ao trabalho
a realizar posteriormente pelo acadêmico-pesquisador.
O fichamento de resumo (que é um instrumento indicativo do conteúdo do texto)
e o fichamento de resenha (que incorpora o resumo, mas vai além dele, pois supõe a
apreciação do leitor) estão entre os tipos de trabalhos mais exigidos na academia. Eles
são detalhados nas duas próximas subseções, independentemente de sua forma de
apresentação em ficha ou não.
Outros elementos são ainda importantes em um fichamento, como indicação da
obra (a quem ela é recomendada); anotação de localização da obra fichada (para fu-
turas consultas); palavras-chave (no caso de fichamento de resumo) e numeração das
fichas (quando da necessidade de mais de uma ficha para uma mesma temática).

60
resumo produção de trabalhos
acadêmico-científicos
O resumo, apresentado na forma de fichamento ou não, consiste na exposição fundamentais:
fichamento, resumo e
abreviada, mas fidedigna, das ideias do autor ou de fatos essenciais de um texto, co- resenha

mumente elaborado com palavras do leitor na ordem em que elas são apresentadas
e obedecendo à articulação lógica do texto. Todavia, como resumir uma obra? Que
utilidade tem o resumo?
A resposta depende do tipo de resumo que se pretende elaborar. Assim, ele pode
se apresentar de várias formas, conforme o objetivo a que se destina. Há resumos
que são elaborados tendo em vista fazer referência a publicações, os quais são regu-
lamentados pela NRB 6028. Outros são uma das modalidades de fichamento, quando
são feitos com o objetivo de documentação e organização de pesquisa. Nesse caso,
obedecem à estrutura dos fichamentos. Outros, ainda, integram artigos, monografias,
dissertações, teses etc. Nesse caso, devem seguir as normas estabelecidas pela edito-
ras de revistas ou instituições aos quais são submetidos. Outros, enfim, são especifi-
camente acadêmicos, quando se constituem em atividades de aprendizagem nas mais
diversas disciplinas na academia. Aqui eles necessitam de adaptação aos objetivos
pretendidos na disciplina, podendo ser mais sintéticos ou mais extensos ou sofrer
variantes na estrutura.
A NBR 6028 (ASSOCIAÇÃO, 2003b, p. 1) “[...] estabelece os requisitos para re-
dação e apresentação de resumos” define resumo como “Apresentação concisa dos
pontos relevantes de um documento” e o classifica em três tipos. Resumo Crítico,
que é “[...] redigido por especialistas com análise crítica de um documento. Também
chamado de resenha. Quando analisa apenas uma determinada edição entre várias,
denomina-se recensão”. Resumo Indicativo, que “[...] indica apenas os pontos princi-
pais do documento, não apresentando dados qualitativos, quantitativos etc. De modo
geral, não dispensa a consulta ao original”. E Resumo Informativo, que “[...] informa
ao leitor finalidades, metodologia, resultados e conclusões do documento, de tal
forma que este possa, inclusive, dispensar a consulta ao original”.
Quem teve acesso à Norma 6028 antes de sua reformulação em novembro de
2003 pode constatar que ela explicitava não ser seu objetivo a normalização de re-
sumos críticos. Mesmo que agora ela não deixe mais isso explícito, a rigor continua
tratando apenas de resumos indicativos e informativos. Aliás, na versão anterior ela
dava exemplos desses dois tipos de resumos, o que deixou de acontecer com a sua
reformulação.
Em todo caso, é da norma n. 6028 que podem ser extraídas as regras gerais de
apresentação de resumos. Ela reza que:

61
InIcIação à 3.1 O resumo deve ressaltar o objetivo, o método, os resultados e as conclu-
cIêncIa e à pesquIsa sões do documento. A ordem e a extensão desses itens dependem do tipo de
a construção do
conhecImento
resumo (informativo ou indicativo) e do tratamento que cada item recebe no
documento original.
3.2 O resumo deve ser precedido da referência do documento, com exceção do
resumo inserido no próprio documento.
3.3 O resumo deve ser composto de uma seqüência de frases concisas, afirmati-
vas e não de enumeração de tópicos. Recomenda-se o uso de parágrafo único.
3.3.1 A primeira frase deve ser significativa, explicando o tema principal do
documento. A seguir, deve indicar a informação sobre a categoria do trata-
mento (memória, estudo de caso, análise de situação etc.).
3.3.2 Deve-se usar o verbo na voz ativa e na terceira pessoa do singular.
3.3.3 As palavras-chave devem figurar logo abaixo do resumo, antecedidas
da expressão Palavras-chave; separadas entre si por ponto e finalizadas tam-
bém por ponto.
3.4 Devem-se evitar:
a) Símbolos e contrações que não sejam de uso corrente;
b) fórmulas, equações, diagramas etc., que não sejam absolutamente ne-
cessários; quando seu emprego for imprescindível, defini-los na primeira
vez que aparecem.
3.5 Quanto a sua extensão os resumos devem ter:
a) de 150 a 500 palavras os de trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e
outros) e relatórios técnico-científicos;
b) de 100 a 250 palavras os de artigos de periódicos;
c) de 50 a 100 palavras os destinados a indicações breves.
Os resumos críticos, por suas características especiais, não estão sujeitos a limi-
tes de palavras (ASSOCIAÇÃO, 2003b, p. 2).

O objetivo maior do resumo é a captação da ideia central do texto. O pesquisador


acadêmico:

[...] deve apresentar a ideia central com suas próprias palavras, evitando obser-
vações ou colocações subjetivas. As palavras são de quem está elaborando o re-
sumo, mas a ideia é do autor; nem mais nem menos. Não se trata de transcrever
ou citar o texto consultado (SANTOS; PARRA FILHO, 1998, p. 147).

Aliás, não se utilizam citações em resumos. Para isso existe o fichamento de citações.
Destarte, o resumo pode ser feito na forma direta, na qual o resumista redige assu-
mindo-se como se fosse o próprio autor (Por exemplo: Há atualmente grande avanço
da historiografia sobre a educação brasileira...). Ou na forma indireta, de comentário
(Por exemplo: Enfatiza que atualmente há grande avanço da historiografia sobre edu-
cação brasileira...). Nesse último caso, aconselha-se eliminar frases do tipo: “O autor
destaca neste texto” ou “Este texto analisa”, ou ainda “A presente abordagem consiste”
etc. É preferível a forma sintética: analisa, enfatiza, discute etc. Isso e a possível confu-
são entre resumo e comentário estão entre os motivos pelos quais se pode defender o
uso da linguagem direta na redação de resumos.
Não obstante, independentemente do tipo de linguagem adotada, o importante é
que o resumista busque a essência dos fatos e se mantenha fiel às ideias do autor. É por

62
isso que a elaboração de resumo pressupõe as fases da leitura compreensiva do texto, produção de trabalhos
acadêmico-científicos
das análises do texto, da elaboração de um plano e, por fim, da redação do resumo fundamentais:
fichamento, resumo e
propriamente dito. resenha

resenha
Como resenhar uma obra? Para que serve uma resenha?
A resenha é a apreciação de uma obra ou de um texto que tem por objetivo dar uma
ideia de seu conteúdo. É produzida, comumente, para fins de publicação em jornais,
revistas ou periódicos. “É uma forma de promover junto ao público em geral deter-
minadas obras que poderiam permanecer despercebidas nas livrarias e bibliotecas de
modo geral” (SANTOS; PARRA FILHO, 1998, p. 156). Por ter como objetivo divulgar
objetos de consumo cultural, pode tornar-se um texto de caráter mais ou menos efê-
mero, uma vez que tais objetos variam muito rapidamente. A sua extensão também
varia de acordo com o espaço que o veículo de comunicação lhe reserva, se bem que
normalmente não se trata de um texto muito longo.
A resenha é um recurso muito importante também para o pesquisador, quer seja
acadêmico ou não, pois é uma maneira fácil e rápida de seleção das obras a serem uti-
lizadas em sua pesquisa, permitindo-lhe “[...] estabelecer comparações entre as obras
de uma mesma área, fazer avaliações e emitir juízo de valor” (ANDRADE, p. 60 apud
MEDEIROS, 2004, p. 158).

Resenha é, portanto, um relato minucioso das propriedades de um objeto ou


de suas partes constitutivas; é um tipo de redação técnica que inclui variadas
modalidades de textos: descrição, narração e dissertação. Estruturalmente, des-
creve as propriedades da obra (descrição física da obra), relata as credenciais
do autor, resume a obra, apresenta suas conclusões e metodologia empregada,
bem como expõe um quadro de referências em que o autor se apoiou (nar-
ração), e finalmente, apresenta uma avaliação da obra e diz a quem a obra se
destina (dissertação) (MEDEIROS, 2004, p. 158-159).

Entre os autores de metodologia científica há relativo consenso de que existem


dois tipos de resenha: a descritiva, denominada por alguns resenha-resumo; e a
crítica, também chamada de científica, resumo crítico, recensão ou recensão crítica.
Na resenha descritiva, o resenhista faz uma exposição de ideias do texto ou
dos textos lidos, que tem função informativa sobre o autor, a obra e seu conteúdo
(resumo).
Os principais elementos que compõem a resenha descritiva são basicamente os
seguintes: primeiramente, título da resenha, com ou sem subtítulo. Em segundo lu-
gar, a referência, na qual constam o nome do autor ou dos autores do texto; o título
da obra e o subtítulo, se houver; se tradução, nome do tradutor; nome da editora;

63
InIcIação à lugar e data da publicação da obra, número de páginas e volumes. Em terceiro lugar,
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do a descrição sumária de partes, capítulos e índices; resumo da obra, que não precisa
conhecImento
obedecer necessariamente à estrutura da obra, mas deve apreender a sua essência, sa-
lientando objeto, objetivo e gênero; tom do texto; métodos utilizados; ponto de vista
que o autor defende. Por fim, quando de divulgação podem-se acrescentar dados
sobre aquisição e preço da obra resenhada. Convém assinalar que essa estruturação,
já que não existe um modelo único, é uma adaptação de Medeiros (2004. p. 163).
Na resenha crítica, além das atividades da resenha descritiva, o resenhista compa-
ra as diversas ideias do autor da obra resenhada entre si com as dos outros autores,
avalia a importância do assunto e apresenta suas próprias convicções. Ela não deve
ser entendida como um texto no qual se faz um resumo seguido de uma avaliação
crítica, porquanto a atitude crítica deve estar presente desde a primeira à última
linha.
Por isso, é importante ao resenhista ter profundo conhecimento das ideias do
autor e de sua posição no contexto acadêmico-científico, social e político. “É co-
mum criticar-se determinadas obras sem que antes esta tenha sido examinada na
sua devida profundidade. O resenhista nunca deve aventurar-se em áreas que não
domina. [...] É importante também que a sua crítica não sofra distorções em função
de ideologias“ (SANTOS; PARRA FILHO, 1998, p. 156-157). Daí que a resenha crítica
exige que o resenhista seja alguém com conhecimento na área, uma vez que avalia a
obra, julgando-a criticamente!
Com algumas variações, Marconi e Lakatos (2003, p. 265-266) enumeram exten-
siva e minuciosamente um conjunto de elementos constitutivos da estrutura de uma
resenha crítica, o que ajuda e muito a quem tem que enfrentar a tarefa de resenhar:
1. Referência: autor (autores); título (subtítulo); imprensa (local da edição, editora,
data); números de páginas; ilustração (tabelas, gráficos, fotos etc.); 2. Credenciais
do autor: informações gerais sobre o autor; autoridade no campo científico; quem
fez o estudo? Quando? Por quê? Onde?; 3. Conhecimento: resumo detalhado da
ideias principais; de que trata a obra? O que diz? Possui alguma característica espe-
cial? Como foi abordado o assunto? Exige conhecimentos prévios para entendê-lo?;
4. Conclusão do autor: o autor faz conclusões/ (ou não?) Onde foram colocadas?
(final do livro ou dos capítulos?) Quais foram; 5. Quadro de referências do autor:
modelo teórico; que teoria serviu de embasamento? Qual o método utilizado?; 6.
Apreciação: a) Julgamento da obra: Como se situa o autor em relação às escolas
ou correntes científicas, filosóficas, culturais? Como ele se situa em relação às cir-
cunstâncias culturais, sociais, econômicas, históricas etc.?; b) Mérito da obra: Qual
a contribuição dada? Ideias verdadeiras, originais, criativas? Conhecimentos novos,

64
amplos, abordagem diferente?; c) Estilo: conciso, objetivo, simples? Claro, conciso, produção de trabalhos
acadêmico-científicos
coerente? Linguagem correta; Ou o contrário?; d) Forma: Lógica, sistematizada? Há fundamentais:
fichamento, resumo e
originalidade e equilíbrio na disposição das partes?; e) Indicação da obra: a quem é resenha

dirigida: grande público, especialistas, estudantes?


As autoras apresentam, ainda, outro modelo de estrutura de resenha crítica, cria-
do pelo professor Antônio Rubbo Müller da USP, composto de nove itens e que,
segundo elas, apresenta todas as partes necessárias para a perfeita compreensão do
texto resenhado (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 266-268).
Retomando, reforçando, explicitando e clareando ainda mais com outras pala-
vras, já que são tantos os modelos de apresentação de resenhas: toda resenha é sem-
pre precedida do cabeçalho (título) e da referência. Quanto à parte textual, é bom
que se siga certa sistematização. Em primeiro lugar, se apresenta a qualificação do
autor do texto a ser resenhado quanto a sua posição no meio científico e social. Em
segundo lugar, se situa o contexto lógico e histórico do texto. O resenhista deve dar
uma ideia completa do conteúdo da obra, inclusive do seu aspecto formal, da meto-
dologia adotada pelo autor, se o texto é resultado de trabalho teórico ou de campo
etc. Em terceiro lugar, faz-se a apresentação do conteúdo do texto, que coincide
com o seu resumo. Deve-se aqui seguir a sequência lógica do texto. Se a resenha for
crítica, segue-se a posição crítica do resenhista.
Comparativamente, resenha não é resumo! Esse é apenas um elemento da estru-
tura da resenha. Além disso, o resumo não admite juízo valorativo, o comentário, a
crítica. A resenha exige tais elementos (MEDEIROS, 2004, p. 170).
Enfim, é na resenha que as diretrizes para a leitura, análise e interpretação de
textos se tornam imprescindíveis, porquanto toda boa resenha deva ser precedida,
ao mesmo tempo em que se constitui, uma vez delimitada a unidade de leitura e
devidamente documentada, na análise textual, na análise temática, na análise inter-
pretativa e crítica e na problematização e síntese pessoal.

concLusão
A tarefa de produção de textos acadêmico-científicos é ao mesmo tempo complexa
e simples, difícil e fácil. Tudo depende se o acadêmico se contentar em reproduzir
conhecimentos ou se arriscar à aventura de produzi-lo. A metodologia científica é de
pouca utilidade para o primeiro, mas é um instrumento eficaz para aquele que optar
por ser produtor de conhecimentos. Ora, a produção de conhecimento científico se dá
pela prática da pesquisa, da qual a elaboração de fichamentos, resumos e resenhas se
constituem em sua propedêutica. É por isso que a produção desses e de outros tantos
textos acadêmico-científicos pressupõem um acadêmico pesquisador.

65
InIcIação à
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do
conhecImento referências

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6022: informação e


documentação. Artigo em publicação periódica científica impressa. Apresentação.
Rio de Janeiro: ABNT, 2003a. Disponível em: <http://blog.tera-rocker.com/arquivos/
pdf/ normas_ abnt/6022-artigo_publicacao_periodica_cientifica_e_impressa.pdf>.
Acesso em: 20 set. 2008.

______. NBR 6023: Informação e documentação. Referências. Elaboração. Rio de


Janeiro: ABNT, 2002a. Disponível em: <www http://www.habitus.ifcs.ufrj.br/pdf/
abntnbr6023.pdf>. Acesso em: 25 set. 2008.

______. NBR. 6028: Informação e documentação. Resumo. Apresentação. Rio de


Janeiro: ABNT, 2003b. Disponível em: <http://blog.tera-rocker.com/arquivos/pdf/
normas_abnt/6028-resumo.pdf>. Acesso em: 27 set. 2008.

______. NBR 10520: Informação e Documentação. Citações em documentos.


Apresentação. Rio de Janeiro: ABNT, 2002b. Disponível em: <http://blog.tera-rocker.
com/arquivos/pdf/normas_abnt/10520-citacoes_em_documentos.pdf>. Acesso em:
27 set. 2008.

______. NBR 14724: Informação e documentação. Trabalhos acadêmicos.


Apresentação. Rio de Janeiro: ABNT, 2002c. Disponível em: <http://cpd1.ufmt/
ivairton/doc/pfc/NBR-14724-2002-apresentacao.pdf>. Acesso em: 28 set. 2008.

FREIRE, Paulo. Considerações em torno do ato de estudar. In: ______. Ação


cultural para a liberdade e outros escritos. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
p. 9-12.

MAGALHÃES, Luzia Eliana Reis; ORQUIZA, Liliam Maria. Metodologia do trabalho


científico: elaboração de trabalhos. Curitiba: Fesp, 2002.

MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos da metodologia


científica. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

66
MEDEIROS, João Bosco. Redação científica: a prática de fichamentos, resumos, produção de trabalhos
acadêmico-científicos
resenhas. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2004. fundamentais:
fichamento, resumo e
resenha

SANTOS, João Almeida; PARRA FILHO, Domingos. Metodologia científica. São


Paulo: Futura, 1998.

SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 22. ed. rev. e


ampl. São Paulo: Cortez, 2003.

proposta de atividades

Tome um texto curto, de poucas páginas ou mesmo de apenas uma, mas rico de conteúdo,
como, por exemplo, Considerações em torno do ato de estudar, de Paulo Freire:

1) Leia-o atentamente de forma compreensiva.

2) Faça:
a) Análise Textual: identifique, principalmente, a ideia central, a estrutura do texto e
os conceitos.
b) Análise Temática: explicite o tema, o problema, as hipóteses e a metodologia.
c) Análise interpretativa e crítica do texto.
d) Problematização do texto.
e) Síntese do texto.

3) Escolha um ou mais tipos de fichamento e fiche o texto.

4) Produza:
a) um resumo;
b) uma resenha descritiva;

5) Aventure-se a uma resenha crítica.

anotações

67
InIcIação à
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do
conhecImento anotações

68
5 normas para
apresentação de
trabalhos acadêmicos

Luzia marta Bellini / carlos alberto mororó silva

Introdução
Todo professor de Metodologia de Pesquisa, quando inicia o ensino dos funda-
mentos teóricos e técnicos para a elaboração de trabalhos acadêmicos, se depara
com obstáculos didáticos. Esses obstáculos são: a escrita e o estilo de redações
científicas, as diferentes formas de descrever textos, a necessidade de citar os docu-
mentos, os autores, o ano de edição dos livros lidos, os números das páginas cita-
das e a correção da língua portuguesa. A superação desses obstáculos é necessária
dada a exigência de o aluno ser claro na apresentação de seu objeto de estudo,
seu problema, hipótese de pesquisa e suas escolhas teóricas e metodológicas. Sem
essas condições, o texto acadêmico não contribui para o aprimoramento dos co-
nhecimentos e dos saberes no contexto universitário.
Os trabalhos acadêmicos exigem um estilo próprio de redação e de apresen-
tação, informação de dados consultados, das leituras feitas e referências de anos
e páginas de publicação. Não é um estilo melhor ou pior que outros modos de
escrita, é apenas diferente. Essa maneira de escrever, citar e apresentar um traba-
lho acadêmico confere respeito aos leitores, aos autores consultados e mostra a
honestidade/dignidade de quem o escreve.
O percurso de aprendizagem desse estilo é longo. Exige dos alunos uma mu-
dança em seus hábitos de ler e escrever. Quando os alunos se deparam com a
tarefa de elaborar um trabalho acadêmico, frequentemente fazem cópia dos textos
lidos. Daí a necessidade de entender que há passos metodológicos que devem ser
percorridos para apreender normas que serão aplicadas no novo estilo de escrita.

69
InIcIação à Comecemos pela definição de trabalhos acadêmicos. Trabalhos acadêmicos são
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do aqueles relacionados à produção de um saber científico. São eles: resumo, ficha-
conhecImento
mento, resenha, relatório e análise crítica. Há outros tipos de trabalhos acadêmi-
cos: os projetos de pesquisa, as monografias, os artigos científicos, as dissertações
de mestrado e as teses de doutorado. Estes são mais complexos. Todavia, todos
os trabalhos acadêmicos devem atender os critérios estabelecidos pela Associação
Brasileira de Normas e Técnicas – ABNT. Cabe-nos ressaltar: não se trata de impor
rédeas na escrita dos alunos; os critérios técnicos ou de critérios não foram criados
para adornar o texto; são normas que explicitam o caráter do texto (o acadêmico),
a clareza e a objetividade (lógica) do autor, a honestidade (citar os autores lidos,
não plagiar), a originalidade do trabalho.

Formas BÁsIcas de teXtos acadêmIcos


os trabalhos didáticos
No início da caminhada na disciplina de Metodologia de Pesquisa, os primeiros
trabalhos são o resumo, a resenha, e o fichamento. Esses são denominados traba-
lhos didáticos (SEVERINO, 2000). Os três tipos de trabalho são modos de síntese
de textos lidos pelo aluno. Os três auxiliam o aluno a retirar as noções básicas e
conceitos dos autores. O resumo é uma síntese de um texto, de um capítulo ou do
livro todo; não é uma síntese das palavras, mas dos argumentos centrais do autor.
No resumo, o aluno permanece fiel ao autor (SEVERINO, 2000, p. 131).
Para ajudar na confecção de um resumo, é preciso que o estudante faça: a)
decodificação do assunto ou tema que o autor expõe. O aluno deve-se perguntar
“qual o tema do autor? Por que esse tema? E a resposta que ele dá?”. Deve também
encontrar o problema de investigação que o autor delimitou em seu texto, a ideia
central do autor, que conduta teórica assume, quais respostas propõe e quais argu-
mentos utiliza para justificar o problema e as respostas.
A resenha tem a característica de apresentar um texto, um livro, um artigo te-
cendo um comentário sobre as ideias dos autores. A resenha também é uma sín-
tese, mas com uma análise do texto. Severino (2000) classifica as resenhas em: a)
informativa, quando expõe apenas os argumentos do autor; b) crítica, quando é
feita uma análise sobre o valor e o alcance dos argumentos do autor; e c) crítico-in-
formativa, quando são expostos os argumentos do autor na apresentação do texto
analisado. As resenhas são importantes para o público, pois ajudam a selecionar
os textos e permitem a nossa atualização bibliográfica (SEVERINO, 2000, p. 131).
O fichamento é importante para o aluno organizar o material que consulta para
seus estudos e pesquisa. Pode ser feito manualmente ou por computador. Contém

70
as referências do livro ou artigo, citações, frases ou comentários que se constituem normas para
apresentação de
em um arquivo ou memória dos estudos feitos pelo aluno. No capítulo anterior, o trabalhos acadêmicos

quarto, vimos com mais detalhes como podemos elaborar os fichamentos, os quais
transformam-se em informações preciosas que constroem a vida intelectual do es-
tudante universitário.
Uma observação importante: há dois tipos de resumos. Um que o aluno faz
para seu estudo ou para apresentar ao professor com as dimensões básicas: tema,
problema, hipótese, justificativa, argumentos e conclusões. O outro tipo de resumo
é aquele que apresentamos em artigos ou em eventos científicos. Nesse segundo
sentido, o autor do resumo segue a mesma lógica (tema, problema, hipótese, ob-
jetivos, fundamentação teórica, argumentos e conclusão), mas, agora, o caráter do
texto é outro. No primeiro, escrevemos como aprendizes que expõem o texto de
uma leitura, no segundo escrevemos como autores.
Vejamos dois resumos. Um de um livro que apresentaremos a um professor de
didática da matemática e outro que enviaremos para uma revista como síntese do
artigo que redigimos.
Resumo do livro de Guy Brousseau, Introdução ao estudo das situações didá-
ticas: conteúdos e métodos de ensino.

Guy Brousseau, matemático francês, expõe, em seu livro “Introdução ao estudo


das situações didáticas”, a teoria das situações didáticas. Sua tese é a de que na
situação de ensino podemos elaborar uma modelo de interação entre o aluno e
o conhecimento escolar. Em outras palavras, é um contexto que cerca o aluno,
o professor e o sistema educacional. Sua ideia central é a de que os professores
precisam contemplar um plano didático para a comunicação da matemática
escolar e trazer os alunos a esse programa. Para isso Brousseau propõe uma
tipologia de situações didáticas para o ensino em matemática observando três
categorias para o trabalho do professor: a) troca de informações não codifica-
das ou sem linguagem; b) troca de informações codificadas em uma lingua-
gem (mensagens) e c) troca de opiniões (sentenças referentes a um conjunto
de enunciados que exercem papel de teoria). Em três capítulos o pesquisador
demonstra como o professor deve proceder em situações de ensino de mate-
mática e como deve buscar a validação de suas mensagens. O aluno deve ser
encaminhado pelo professor a resolver problemas matemáticos por meio de
interpretação e, aos poucos, aprender a linguagem da área e como comunicar-
se por essa linguagem.

Resumo feito para um artigo:

Resumo

O artigo apresenta uma análise retórica do conceito de evolução em 12 livros


didáticos (ciências e biologia) enfatizando o papel das metáforas na constitui-
ção dos argumentos evolucionistas. Para essa análise fez-se a discussão da trans-
posição didática da noção de evolução do conhecimento científico para o co-
nhecimento didático. Os procedimentos metodológicos foram: a) agrupamento

71
InIcIação à dos argumentos acerca do tema evolução dos 12 livros didáticos; b) compara-
cIêncIa e à pesquIsa ção dos elementos constitutivos da noção de evolução nas metáforas utilizadas
a construção do
conhecImento
por Lamarck, Darwin e nas metáforas pedagógicas usadas pelos autores dos
livros, inclusive as imagens. Como conclusão obteve-se: as metáforas pedagó-
gicas presentes nos 12 livros didáticos trabalham uma noção de evolução que
é mais próxima do criacionismo do que ao conceito de Lamarck e de Darwin
(descendência com modificação) reduzindo-a a uma ideia não científica.

Palavras-chave: Teoria da argumentação. Metáforas pedagógicas. Conceito de


evolução nos livros didáticos. Metáforas científicas. Criacionismo.

Como pontuamos, o resumo não é um jogo de palavras. É a exposição da lógica


do trabalho que lemos ou que escrevemos para um artigo. A sequência necessária
é: objeto de estudo (tema, ideia central), problema e hipótese de pesquisa, tipo de
análise, procedimentos metodológicos e conclusão. O resumo deve ser elaborado
desse modo porque figurará na Internet ou em veículos impressos como a janela
para encontrar o texto.
Já uma resenha pode conter mais que as indicações. Vejamos a resenha escri-
ta pelo professor de Filosofia de Portugal, Desidério Murcho. Trata-se da resenha
do livro Bilhões e bilhões, de Carl Sagan, editado em Portugal em 1998 (a edição
brasileira é do mesmo ano), feita em 2004, publicada no site <http://www.critica-
narede.com/index.html>.:

SAGAN, Carl. Biliões e Biliões: pensamentos sobre a vida e a morte no limiar


do milênio. Tradução de Francisco Agarez e Rita Silva Lopes. Lisboa: Gradiva,
1998. 252 p.

Foi finalmente publicada a tradução portuguesa do último livro do malo-


grado Carl Sagan, falecido em Dezembro de 1996. A obra está dividida em
três partes, cada uma das quais está subdividida em 6-7 capítulos. No final
podemos ler um epílogo da autoria da sua mulher, Anne Druyan, redigido
já depois da morte de Carl Sagan. A tradução de Francisco Agarez e Rita
Silva Lopes é não só correcta e elegante — o que só por si é um feito neste
país — mas extremamente cuidada e muito inteligente. É caso para dizer que
Francisco Agarez e Rita Silva Lopes estiveram à altura do grande autor que
traduziram.
A primeira parte trata da quantificação, da inteligência do mundo que os
números nos dão. A segunda parte trata dos problemas ambientais do nosso
planeta, dos factos relevantes e do que podemos fazer. A terceira parte trata
da incansável capacidade humana para a guerra, do aborto, das descobertas
de Axelrod e termina com um capítulo redigido por Carl Sagan já depois de
ter sido submetido a várias transfusões de medula óssea.
A primeira parte constitui um excelente antídoto para os que encaram com
horror os números, a matemática, a precisão. Sagan mostra como a quanti-
ficação nos permite um conhecimento muito mais profundo do mundo que
nos rodeia. Recomendaria vivamente este capítulo aos estudantes de letras
portugueses — mas infelizmente, a divulgação científica não faz geralmente
parte das preferências literárias destes estudantes, que se deixam subjugar
por preconceitos irracionalistas anti-rigor e anti-matemática.

72
A segunda e a terceira partes são as mais brilhantes do livro. Aconselho vi- normas para
vamente a leitura da segunda parte a todos os “ecologistas” do mundo, para apresentação de
trabalhos acadêmicos
que percebam o que está realmente em causa. Uma das desgraças do mundo
contemporâneo consiste no facto de toda a gente querer usar as mesmas
estratégias que os publicitários usam para vender detergentes e pensos hi-
giénicos. O resultado último deste deplorável estado de coisas é o facto
de alguns dos temas de discussão mais importantes — como os temas que
dizem respeito ao meio ambiente — se tornarem patéticos: manifestações
de rua de duvidosa racionalidade nas quais não se apresentam razões nem
dados, manifestando-se apenas uma veemente negação (quando a negação,
sem explicação, não basta). Suspeito aliás que muitas pessoas terão aderido
a tais manifestações sem conhecerem muito bem a realidade — que, a pro-
pósito, tem de ser quantificada de forma rigorosa.
A leitura deste grupo de capítulos é por isso imprescindível. Neles se dá con-
ta do verdadeiro estado ecológico de alguns dos aspectos do nosso planeta,
como o efeito de estufa provocado pela combustão intensiva de produtos
derivados do petróleo e o problema do ozono provocado pelos CFC. Sagan
oferece ao leitor dados mais que suficientes para que se perceba realmente
o que se passa. E oferece soluções. A inteligência, a precisão e a moderação
com que Sagan lida com os problemas é notável. Por exemplo, um dos as-
pectos mais atraentes dos combustíveis fósseis é o facto de ser barato (cerca
de 20 dólares o barril), quando comparado com fontes de energia alter-
nativa, como a solar e a eólica. Mas não estaremos enganados nas contas?
Afinal, não devíamos acrescentar ao preço do petróleo as despesas militares
de países como os Estados Unidos se vêm forçados a fazer para proteger as
suas fontes de fornecimento? E o preço dos derrames (como o do Valdez)?
Se contabilizarmos estas despesas adicionais, o preço estimado sobre para
qualquer coisa como 80 dólares o barril. Se agora somarmos a isto os custos
ambientais provocados pelo consumo desse petróleo no ambiente local e
global, o preço real é capaz de chegar às centenas de dólares o barril. E
quando por causa da protecção do petróleo se desencadeia uma guerra,
como foi o caso no golfo Pérsico, o custo sobe muito mais, e não apenas em
dólares. (pág. 145).
Da terceira parte destaco o capítulo 15, sobre o aborto, e o capítulo 16, so-
bre os resultados de Axelrod. Em Portugal assistimos recentemente à triste
“discussão” relativo à despenalização do aborto. As razões de um lado e do
outro denotavam em geral um perfil de tal modo provinciano que fiquei
assustado com o atraso cultural português. Em primeiro lugar, ninguém
tem aparentemente dados precisos sobre o que quer que seja, nem conheci-
mento dos argumentos correntes da literatura filosófica sobre a matéria; em
segundo lugar — mais grave — as pessoas não sabem o que é argumentar,
não sabem o que é defender uma ideia com razões. Em terceiro lugar, toda
a gente se acha intitulada a ter uma opinião que vale a pena ser ouvida, só
porque é dela. Sugiro por isso fortemente que leiam, para começar, este
capítulo do Carl Sagan. Ele defende uma posição moderada, com bons ar-
gumentos e ampla informação científica. Não quer dizer que a ideia de Carl
Sagan tenha de ser aceita — com certeza que não! —, mas vale a pena tê-la
em consideração.
Quando escolhi o livro de Peter Singer, “How Are We to Live?”, referi o ex-
celente capítulo sobre o dilema do prisioneiro e a solução de Axelrod — o
mesmo acontece no capítulo 16 de “Biliões e Biliões”, intitulado “As Regras
do Jogo”. Sagan consegue mostrar de modo muito simples a importância da
solução da estratégia de Axelrod para lidar com as situações que dão origem
ao dilema do prisioneiro. Axelrod chamou “pagar na mesma moeda” (“tit
for tat”) a esta estratégia. A importância moral dos resultados de Axelrod é

73
InIcIação à imensa. Na verdade, constituem nada mais nada menos do que a refutação
cIêncIa e à pesquIsa empírica do preceito cristão de oferecer a outra face. A estratégia de pagar
a construção do
conhecImento
na mesma moeda consiste em começar por cooperar, fazendo de seguida
ao outro o que ele nos fez a nós. A estratégia é boa porque não dá origem
a círculos de não cooperação, nem permite que sejamos explorados. Esta
estratégia tem ainda a vantagem de apresentar um padrão simples que a
outra pessoa compreende rapidamente, o que lhe permite cooperar com
segurança, dissuadindo-a ao mesmo tempo de não cooperar.
No último capítulo, “No vale das sombras”, Carl Sagan faz a narrativa de sua
infeliz doença. É um capítulo doloroso de ler — e ao mesmo tempo maravi-
lhoso –, pois Carl Sagan revela a sua imensa lucidez e inteligência em uma
situação na qual é fácil perder a compostura. Carl Sagan foi um daqueles
grandes espíritos acerca dos quais subsiste a dúvida de saber se a humanida-
de o mereceu. O meu ceticismo leva-me a pensar que não, mas esta é uma
matéria que só o futuro poderá resolver. Só tenho uma maneira de prestar
homenagem a um dos maiores seres humanos que alguma vez pisaram o
nosso planeta: cultivar diariamente a tolerância e a bondade, o amor pelo
conhecimento e pela justiça e estimular os outros a fazer o mesmo. Não
posso fazer mais do que isto. Ninguém pode fazer mais do que isto.

os traBaLhos cIentÍFIcos
Outra categoria de trabalhos didáticos são os trabalhos propriamente científi-
cos, ou seja, os projetos, as monografias, os artigos, as dissertações e teses, que são
formas de relatório final de investigações feitas pelos alunos.
Um primeiro passo para o exercício metodológico e teórico de uma investigação
é feito quando o aluno chega ao final do curso de graduação, com o Trabalho de
Conclusão de Curso - TCC. Também um curso de especialização é finalizado pelo
estudante com uma monografia. O TCC e a monografia são os primeiros relatórios
acadêmicos no percurso da graduação e pós-graduação, respectivamente.
Santos (2000, p. 38) define monografia como o relatório ou “texto de primeira
mão resultante de pesquisa científica e que contém a identificação, o posiciona-
mento, o tratamento e o fechamento competentes de um tema/problema”. Em ge-
ral, a monografia é produzida para obtenção do grau de bacharel ou licenciado ao
término de um curso de graduação ou para a obtenção de grau de especialista em
um programa de pós-graduação.
Um segundo passo metodológico é dado durante o mestrado. Uma dissertação
de mestrado cresce em complexidade temática e teórica. Podemos enunciar que o
mestrado constitui-se em um momento em que o exercício teórico e metodológico
é feito para “[...] identificar situar, tratar e fechar uma questão científica de maneira
competente” (SANTOS, 2000, p. 39). Neste sentido, a dissertação pode se configu-
rar como um estudo teórico ou experimental acerca de um tema, apresentando um
recorte teórico-metodológico apurado e contribuindo com a ampliação referente
ao tema investigado.

74
Outro passo nesse exercício metodológico está na tese de doutorado. Uma tese normas para
apresentação de
é definida como um trabalho resultante de uma pesquisa delimitada em seu objeto, trabalhos acadêmicos

com caráter inédito e original. Demanda maior grau de conhecimento do assunto,


maior conhecimento e aprimoramento teórico. Confere ao seu autor o grau de
doutor.
Beuren (2003, p. 40) assinala que “Em dissertações e teses é exigido um grau
maior de aprofundamento de sua parte teórica, um tratamento metodológico mais
rigoroso e um enfoque original do problema”.
Outro passo acadêmico é dado quando elaboramos textos ou artigos científicos.
Estes visam a tratar de um assunto específico, destinam-se à publicação em revistas,
livros, periódicos, entre outros meios de comunicação, e têm seu tamanho estipu-
lado em média entre 5 a 15 páginas. Para algumas revistas, o número mínimo de
páginas é 10 e o máximo é 25 páginas. Embora de porte menor, esse tipo de traba-
lho serve para divulgar, no meio científico, resultados de pesquisas que geralmente
corroboram para o avanço da ciência. Os artigos são o meio mais propício para
tornarmos públicas as produções acadêmicas. Atualmente com a Internet, temos
portais importantes como, por exemplo, o Scielo, no qual encontramos revistas de
qualidade que divulgam boa parte da produção brasileira em quase todas as áreas.

os eLementos FormaIs
Todo trabalho acadêmico elaborado pelo aluno deve conter introdução, desen-
volvimento e conclusão. São passos metodológicos, mas também lógicos. Por que
lógico? Porque devemos enunciar o objeto de estudo, o problema de pesquisa,
a hipótese (se houver), os objetivos e a justificativa na introdução. Esses são os
primeiros elementos de um texto. Em geral, o texto pode ser dividido em seções e
subseções ou capítulos, conforme o estilo de escrita do autor. Porém, a lógica não
pode ser sacrificada pelo estilo.
Nesse caminho, cabe-nos lembrar que os argumentos do autor devem ser ex-
postos de forma clara e coerente. As afirmações ou argumentos precisam ser iden-
tificados pelos autores que o aluno leu e interpretou. Por exemplo, a frase: “Alguns
autores afirmam que a educação está em crise”. Essa frase não é aceita na redação
dos trabalhos científicos porque “alguns autores” precisam de nomes e datas de pu-
blicação. Devemos, então, escrever: “Santos (2000) afirma que a educação pública
em relação ao número de matrículas e evasão escolar está em crise”.
Outro elemento importante para a redação científica é a padronização da lin-
guagem ao longo de todo o texto, no que tange à pessoa gramatical. Devemos
padronizar as pessoas verbais, isto é, devemos usar ou a primeira pessoa (nós) ou

75
InIcIação à a terceira pessoa (impessoal). Exemplos da mistura de pessoas verbais que não
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do deve ocorrer no corpo do texto: fomos, fui; observou-se, observei; precisou-se,
conhecImento
precisamos, precise. A utilização numérica deve ser sempre ascendente: 1, 2, 3...
Primeiro, segundo... Nas siglas, devemos sempre usar o nome por extenso, seguido
entre parênteses ou hífens da sigla, como, por exemplo: Universidade Estadual de
Maringá (UEM).
Pesquisadores das áreas biológicas e exatas costumam recomendar que o texto
acadêmico seja escrito na forma verbal impessoal: procurou-se estabelecer critérios
de avaliação... Conclui-se que a educação a distância... Para esses estudiosos,
essa forma verbal confere maior cientificidade à escrita. Todavia, há normas pró-
prias de uso das pessoas verbais para cada área (humanas, biológicas, exatas), para
cada programa (cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado) em
cada instituição de ensino.
Diante de algumas finalidades do texto, é lícito que se empregue a primeira
pessoa do singular ou do plural. Essa é uma prática comum em relatórios e justifi-
cativas, como, por exemplo, “O meu interesse em participar como tutor do curso
pedagogia a distância...” e “Fomos participar do curso de capacitação para tutores
na Universidade Estadual de Maringá - UEM...”.
Devemos também evitar o uso de elocução afetiva ou valorativa. Essas formas
são comuns em redações de acadêmicos que estão iniciando seu percurso na uni-
versidade. No entanto, o uso de elocuções afetivas e valorativas torna um texto
acadêmico um tanto bajulador. Vejamos esses exemplos:

a) “A educação a distância é muito importante para o desenvolvimento do país...”;


b) “As aulas do querido professor...”.
c) Muitos pesquisadores dedicam-se a salvar a educação...
d) O computador na escola ajudará na contenção da violência...

No primeiro caso (a), a afirmação é imprecisa. O que é importante?, deve se


perguntar o estudante; Para quem é importante? Qual o grau de importância? No
segundo (b), o estudante exagera no adjetivo. No terceiro (c), trata-se de um slo-
gan, situação que devemos evitar nos textos científicos. Ademais, o sujeito da frase
é indeterminado: quem são esses pesquisadores? No quarto exemplo (d), temos
uma frase elaborada para produzir um efeito de valor, porém vai na contramão da
lógica. Podemos perguntar: de que violência se fala? Por que o computador pode
ajudar? Como?

76
Da mesma forma, algumas expressões devem ser evitadas por sua imprecisão: normas para
apresentação de
antigamente (quando, no século passado? na antiguidade clássica?); há muito tem- trabalhos acadêmicos

po (Há quanto tempo? Dez anos, Mil? Milhões?); Na sociedade atual (Qual? 2008?,
1997?1978?). Isso significa que temos que datar, fornecer dados precisos. Sem isto
o texto não é considerado científico.

um elemento formal: as citações e como usá-las


Como vemos, as referências como datas, nomes dos autores, ano de edição,
número de páginas citadas são a base do texto científico. O aluno, ao elaborar um
texto acadêmico, desde o mais simples trabalho rotineiro (destinado à avaliação de
uma disciplina) à produção de um texto mais elaborado (destinado à publicação ou
para a monografia, dissertação e tese), deverá seguir as normas de citação da ABNT.
Sem esse cuidado seu texto será compreendido como um plágio.
O plágio ocorre quando há apropriação indevida de uma obra artística ou cien-
tífica. Plagiar, no caso da escrita de um texto acadêmico, é citar ou copiar partes
de um texto de um autor sem indicar a autoria. Muitos alunos argumentam: escre-
veram com suas palavras as ideias do autor. Mesmo assim, as ideias e os conceitos
continuam sendo dos autores. Devemos-lhes o crédito e o respeito. Afinal, graças
aos estudos de muitos pesquisadores temos a possibilidade de iniciar as nossas
investigações.
Desta maneira, as citações, diretas ou indiretas, são necessárias aos textos cien-
tíficos. Citação é toda forma de alusão a um texto retirado de outra fonte literária.
Temos três tipos de citações: a citação direta; a citação indireta e a citação de citação.
A citação direta é quando extraímos excertos de uma fonte (livros, artigos im-
pressos ou on-line, jornais, revistas etc.) e mantemos a redação em seu formato
original. Para isso são utilizadas aspas no início e no término do trecho extraído do
livro estudado somente se a citação não exceder três linhas. Quando exceder três
linhas, a citação deverá ser recuada 4 centímetros da margem esquerda, usar fonte
11, espaçamento simples (1,0) e não se deve usar as aspas.
Fornecemos como exemplo um trecho do artigo Da Metáfora Comunicação à
metáfora arte em John Dewey, de Marcus Vinicius da Cunha (ANPED, GT: Filosofia
da Educação/n.17, Agência Financiadora: CNPq, <www.anped.org.br/reunioes/26/
trabalhos/marcusviniciusdacunha.rtf.>:

Em Democracia e Educação, Dewey (1959, p. 207) considera que é funda-


mental que o conhecimento seja ensinado sempre em estreita conexão com
a experiência do educando. “Nada se objeta – diz ele – a que as informações
sejam expressas com palavras; a comunicação opera-se necessariamente por

77
InIcIação à meio de palavras”. Mas se o conteúdo comunicado não vier “incorporado à
cIêncIa e à pesquIsa experiência existente de quem aprende, converte-se em simples palavras,
a construção do
conhecImento
isto é, em puros estímulos sensoriais, desprovidos de significação”.

Usamos também a citação indireta. Nesse caso, retiramos as ideias e os argu-


mentos do texto consultado, porém não transcrevemos com as palavras do autor.
Nesse tipo de citação, não é necessário pôr aspas. Indicamos duas formas de cita-
ção do autor. A primeira é quando apresentamos as ideias do autor lido e o indica-
mos entre parênteses com o ano da edição do livro. Utilizamos novamente o texto
Da Metáfora Comunicação à metáfora arte em John Dewey, de Cunha (2003).

Abordar o campo da educação como espaço de discursos metafóricos signifi-


ca considerar que as teorias pedagógicas possuem certas características pró-
prias da retórica. Como toda argumentação retórica destina-se a julgamento
(ARISTÓTELES, 2000), intui-se que o discurso educacional, a exemplo do
retórico, faz-se com o objetivo de persuadir determinados ouvintes, a comu-
nidade composta pelos envolvidos no processo de ensinar e aprender. Para
ser persuadida, tal comunidade precisa ser colocada em determinadas dis-
posições frente aos conteúdos da teoria educacional, o quais, quando novos,
necessitam expressar-se por intermédio de significados já conhecidos. Vem
daí a relevância das metáforas, bem como do empenho em desvendá-las.

Outro modo de fazer a citação indireta é:

Em Philosophy of Education, Dewey (1958, p. 29) considera que a proposta


de extinguir a educação “técnica”, em benefício do modelo “literário”, carre-
ga traços de medievalismo e integra uma campanha encetada contra a ciên-
cia, sob o argumento de que “catástrofes, como a da recente guerra, são o
resultado da devoção ao método e às conclusões científicas”. Considerando
que “o homem está fora e acima da natureza”, os adeptos dessa perspectiva
criticam a proposição deweyana de aplicar a ciência aos assuntos humanos,
sociais e morais.

A citação da citação ocorre quando fazemos referência a um excerto de um au-


tor sem extrai-lo de sua obra original. Essa citação pode ser feita de formato direto
ou indireto, ou seja, reproduzida literalmente conforme se encontra na fonte con-
sultada ou interpretada. Para esses casos, usa-se a expressão latina “apud”, seguida
da fonte consultada. Exemplo disponível em: <http://www.ufrgs.br/faced/setores/
biblioteca/citacoes.html>. “O homem é precisamente o que ainda não é. O homem
não se define pelo que é, mas pelo que deseja ser” (ORTEGA Y GASSET, 1963, apud
SALVADOR, 1977, p. 160).

da Formatação
Um trabalho acadêmico deve ser impresso em folha de papel branco no formato
A-4 (210 x 297mm), somente em seu anverso. Desde 2007 alguns programas de

78
pós-graduação estão aderindo à prática de imprimir nas duas páginas da mesma normas para
apresentação de
folha por política ecológica de menor gasto de papel. Por ora, apenas os textos trabalhos acadêmicos

impressos em editoras utilizam a dupla impressão.


Em relação às margens do papel, este deve apresentar 3cm à esquerda, 2cm à
direita, 3cm na parte superior e 2cm na parte inferior. A fonte deve ser Times New
Roman ou Arial tamanho 12. Alinhamento justificado, entre linhas 1,5 e duplo
entre parágrafos, com recuo 0 à esquerda e a direita. As citações com mais de três
linhas devem ser obrigatoriamente separadas do texto. Em notas de rodapé, pagi-
nação, legendas de ilustração, usa-se o mesmo tipo de fonte, porém com tamanho
reduzido para 11 ou 10.
As seções ou subseções são separadas dos parágrafos que as precedem e antece-
dem por dois espaços duplos.

dados pré-textuais
A apresentação visual/formal de um trabalho não é apenas uma dimensão esté-
tica. Essa apresentação tem a função de uniformizar os elementos de identificação
do trabalho científico. Devemos usar esses elementos em trabalhos rotineiros na
graduação e na pós-graduação. Deste modo, vamos construindo o hábito acadêmi-
co de comunicação das ideias e argumentos.
A Associação Brasileira de Normas e Técnicas (ABNT) não prescreve um modelo
para a identificação dos elementos em trabalhos acadêmicos, mas sugere alguns
modos de apresentação. Indicamos, aqui, uma capa com cabeçalho, que possibilita
ao aluno dispor dos elementos indicadores de seu trabalho. Vejamos o Quadro 1.

79
InIcIação à Quadro 1 - Modelo de capa para trabalhos
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do acadêmicos: resumo, fichamento, síntese entre outros.
conhecImento

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
DEPARTAMENTO DE FUNDAMENTOS DA
EDUCAÇÃO
CURSO: PEDAGOGIA – MODALIDADE A DISTÂNCIA
DISC.: Iniciação à Ciência e à Pesquisa
PROF. Dr. Carlos Alberto Mororó Silva
Aluna: Maria José Santos

Fichamento do Livro ‘Educar pela Pesquisa’, de autoria de Pedro Demo

Maringá
2008

Quanto aos elementos pré-textuais preconizados para trabalhos de monografia,


dissertação e tese, temos: a) a capa, que é um item imprescindível aos trabalhos acadê-
micos. A capa deve conter os elementos identificadores, como o nome da instituição
e do curso; nome do autor; título do trabalho e subtítulo – se houver; cidade da ins-
tituição onde o trabalho é apresentado e o ano da entrega do trabalho. No Quadro 2
apresentamos o modelo para a capa.

80
Quadro 2 - Modelo de capa para monografia, dissertação e tese normas para
apresentação de
Exemplo disponível em: trabalhos acadêmicos

<www.pcm.uem.br/m_dissertacoes_defendidas_2006.html - 54k>.

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM EDUCAÇÃO PARA A CIÊNCIA E
MATEMÁTICA
(Times 14 maiúsculo centralizado)

ANA LIDIA OSSAK


(Times 12 maiúsculo centralizado)

PROFESSOR, ALUNO E LIVRO DIDÁTICO EM


AULAS DE CIÊNCIAS: ANÁLISE RETÓRICA
DE ARGUMENTOS DIDÁTICOS
(Times 14 centralizado)

MARINGÁ

2006
(Times 12 centralizado)

O segundo elemento é a folha de rosto, um item obrigatório na apresentação


de um trabalho acadêmico, a qual acrescenta: finalidade e natureza do trabalho –
monografia, dissertação, tese: identificação do grau pretendido; instituição, programa,
e área de concentração; nome do orientador e co-orientador – se houver; local e ano
da entrega do trabalho. O Quadro 3 indica como fazer a folha de rosto.

81
InIcIação à Quadro 3 - Modelo de uma folha de rosto.
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do
conhecImento

ANA LÍDIA OSSAK

PROFESSOR, ALUNO E LIVRO DIDÁTICO EM AULAS


DE CIÊNCIAS: ANÁLISE RETÓRICA DE ARGUMENTOS
DIDÁTICOS

Dissertação apresentada ao Pro-


grama de Pós-Graduação em Edu-
cação para a Ciência e Matemática
do Centro de Ciências Exatas da
Universidade Estadual de Maringá,
como requisito parcial para a obten-
ção do título de Mestre em Educa-
ção para a Ciência.

Orientadora:

Co-orientador: (se houver)

MARINGÁ
2006

A folha de aprovação é também imperativa nesses tipos de trabalhos, porque, além


de conter os dados de identificação, é acrescida dos nomes dos membros da banca
examinadora e das respectivas instituições a que pertencem – sendo necessária a assi-
natura dos membros; data de aprovação; nome e assinatura do coordenador do curso.
O Quadro 4 dá o exemplo de como proceder.

82
Quadro 4 - Modelo de folha de aprovação. normas para
apresentação de
trabalhos acadêmicos

ANA LÍDIA OSSAK

PROFESSOR, ALUNO E LIVRO DIDÁTICO EM AULAS


DE CIÊNCIAS: ANÁLISE RETÓRICA DE ARGUMENTOS
DIDÁTICOS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação


para a Ciência e Matemática do Centro de Ciências Exatas da Universida-
de Estadual de Maringá como requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Educação para a Ciência composta pelos membros:

COMISSÃO JULGADORA

_________________________________________
Prof. Dr ... (Presidente)
Universidade Estadual de Maringá

__________________________________________________________
Prof. Dr.
Universidade Federal do Rio de Janeiro

__________________________________________________________
Profa Dra
Universidade Estadual de Maringá

Aprovada em: Maringá, ______/______________ / 2006.

Local da defesa:

Há alguns elementos pré-textuais opcionais, mas que comumente estão presentes


em trabalhos dessa natureza, quais sejam: a dedicatória, os agradecimentos e a epí-
grafe, os quais possuem o objetivo de manifestar o reconhecimento a pessoas e/ou
instituições a quem o autor deseje homenagear. Quanto à epígrafe, esta se constitui de
uma citação com a autoria devidamente identificada, e que pode também aparecer no
corpo do trabalho, ao lado superior, em letras tamanho 10, do lado direito da folha.

83
InIcIação à Um elemento obrigatório é o resumo. É imprescindível em um trabalho científico.
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do Deve ser escrito de forma sucinta, descrevendo os aspectos essenciais do trabalho
conhecImento
(objeto de estudo, objetivos, justificativa, procedimentos metodológicos e resultados).
É recomendável que não ultrapasse 500 palavras. Deve ser redigido em um único
parágrafo. Logo após o resumo, escrevem-se as palavras-chaves, em torno de 3 a 5 pa-
lavras representativas do assunto abordado no trabalho. No Quadro 5, apresentamos
o exemplo de um resumo.

Quadro 5 - Modelo de um resumo.

PROFESSOR, ALUNO E LIVRO DIDÁTICO EM AULAS DE CIÊNCIAS:


ANÁLISE RETÓRICA DE ARGUMENTOS DIDÁTICOS

RESUMO

O objeto de estudo desta dissertação foi o campo da argumentação ou


da linguagem em uma situação de ensino de ciências, mais especifica-
mente sobre a nutrição das plantas, com crianças na 6ª série do Ensino
Fundamental de uma escola pública. A linguagem foi compreendida como
recursos cognitivos, como demonstram Reboul (2004) e Lakoff e Johnson
(2002). Partimos do pressuposto de que todo ato de ensinar implica na
exposição e no encadeamento de argumentos que são o nosso modo de
pensar. O objetivo deste trabalho foi estudar o modo de comunicação, nas
aulas de ciências, entre a professora, o livro utilizado pela escola e as
crianças, examinando as figuras de retórica na dinâmica livro didático/pro-
fessora/alunos. Os problemas da pesquisa foram: Como a professora de
ciências reconstitui conceitos de nutrição das plantas? Como os alunos
responderam à professora em termos de modelo conceitual da nutrição
das plantas? Como as figuras de retórica do livro didático podem levar
à adesão dos alunos? Nossos procedimentos foram: a) o exame das ar-
gumentações do LD, b) a análise da elocução da professora nas aulas
e c) a dinâmica discursiva dos alunos diante dos argumentos da profes-
sora. Observamos e gravamos três aulas de ciências de 19, 20 e 21 de
setembro de 2005. Antes disso, ficamos um mês na escola para definir a
turma com a qual estaríamos trabalhando. Como resultados, obtivemos: a
figura de retórica mais expressiva utilizada pela professora é a sinédoque,
considerada um recurso adequado para a transposição didática, uma vez
que sintetiza definições. O problema é que a sinédoque constitui modelos
genéricos para a nutrição do caule, deixando as crianças sem respostas
para perguntas singulares sobre o tema. As imagens do livro que poderiam
se constituir como “ilustração” para o pensamento do aluno são tratadas
como o real. Os argumentos dos alunos não são compartilhados nem pelas
lições nem pela professora. A professora espera que seus alunos decodifi-
quem os desenhos, as definições e os alunos que suas perguntas possam
ser explicadas pelas definições. De modo geral, podemos afirmar que a
professora empresta sua voz ao livro didático e este define a aula, deixan-
do os questionamentos dos alunos de lado.
Palavras-chave: Retórica. Argumentação. Ensino de ciências. Comunica-
ção em sala de aula. Transposição didática.

84
Esse resumo deve ser elaborado em uma língua estrangeira. Em geral, se utiliza o normas para
apresentação de
Inglês Abstract, o Francês Resumée e o Espanhol Resumen. No caso de uma tese de trabalhos acadêmicos

doutorado, é imperativa a tradução na língua inglesa.


Há outros elementos, como a lista de ilustrações, fluxograma, desenhos, gráficos,
fotografias, figuras, mapas, quadros, lista de tabelas, lista de abreviaturas e siglas, lista
de símbolos, entre outros, esclarecedores e que servem para a fundamentação, ilustra-
ção ou comprovação para o estudo realizado, configurando-se também como elemen-
tos pré-textuais que podem até ser opcionais caso sejam pouco citados; caso contrário,
quando aparecem em quantidade significativa é necessário constá-los no sumário do
trabalho.
Finalmente, compondo essa fase pré-textual, apresentamos um modelo de sumário
no Quadro 6, o qual se caracteriza por ser um componente obrigatório no trabalho
científico, sendo responsável pela enumeração das principais seções e subseções apre-
sentadas no corpo do trabalho, favorecendo ao leitor a rápida localização de determi-
nado no texto.

Quadro 6 - Modelo de sumário.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO

2 A RETÓRICA NA SITUAÇÃO PEDAGÓGICA COMO OBJETO DE


ESTUDO

3 ARGUMENTAÇÃO NA SITUAÇÃO DE ENSINO: pesquisas sobre o


ensino de ciências

4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

5 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

6 CONCLUSÃO

REFERÊNCIAS

85
InIcIação à É importante observar que conforme a NBR 14724:2005/2006, no item paginação,
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do lemos:
conhecImento

Todas as folhas do trabalho, a partir da folha de rosto, devem ser contadas


sequencialmente, mas não numeradas. A numeração é colocada, a partir da
primeira folha da parte textual, em algarismos arábicos, no canto superior di-
reito da folha, a 2 cm da borda superior, ficando o último algaritmo a 2 cm da
borda direita da folha. Havendo apêndice e anexo, as suas folhas devem ser
numeradas de maneira contínua e sua paginação deve dar seguimento à do
texto principal (ASSOCIAÇÃO, 2002).

Na introdução, o autor deve apresentar, de forma clara e objetiva, seu objeto de


estudo, problema de pesquisa, hipótese (que pode ser demonstrada pelos estudos que
se fez do tema), a justificativa do trabalho e seus objetivos. Pode até fazer um breve
comentário acerca dos pressupostos teórico-metodológicos discutidos em cada seção
ou capítulo.
No desenvolvimento do trabalho se discute com amplitude o cerne do assunto
abordado. Trata-se, pois, do momento propício em que o autor expõe a composição
do que e de como foi analisado o tema, a caracterização teórica e metodológica que
deu suporte à pesquisa.
A conclusão sintetiza os resultados obtidos com o trabalho. É também a ocasião
para a manifestação argumentativa do autor a respeito do tema proposto, podendo
sugerir novas abordagens a serem retomadas em trabalhos análogos.

elementos pós-textuais
Os elementos pós-textuais, em geral, têm um vínculo com o texto, e é comum
apresentá-los ao final deste, os quais compõem de: referência; glossário, apêndice(s);
anexo(s), índice(s).
As referências são o ordenamento – transcritas segundo as normas da ABNT – de
todos os autores, documentos, artigos de Internet, jornais, revistas, entre outros, utili-
zados na construção do texto e que permitem a sua identificação individual. É mister,
no corpo do texto, aparecer apenas como indicadores de autoria da citação ou fonte
consultada, ano e página; e nas referências bibliográficas deve-se inserir a sua identi-
ficação completa.
Ainda em se tratando das referências recomendamos ao aluno consultar as normas
da ABNT ao se propor redigir um texto acadêmico ou científico, pois as possibilidades
de se fazer uma referência, oriunda de uma citação em um texto, conforme o tipo de
citação e o referencial utilizado e com que objetivos são inseridos no texto revelam
infinitas variações; nesse caso, o aconselhável é que as normas sempre estejam ao
alcance do estudante.

86
consIderaçÕes FInaIs normas para
apresentação de
Optamos por apresentar, neste capítulo, as primeiras lições para que o aluno saiba trabalhos acadêmicos

a diferença entre os trabalhos acadêmicos e os demais trabalhos (jornalístico, textos


de manuais didáticos, cartas, textos de weblogs, entre outros). Com essas indicações, o
estudante já sabe que precisa efetuar um exercício metodológico para sua nova forma
de apresentar redações na universidade. É um início para que construa novos suportes
para o curso e referenciais que aprimorem seu crescimento intelectual.
Acreditamos que educar é um processo contínuo de formação e competência. Esse
processo não se realiza somente em uma sala de aula ou mediante aulas-conferências.
O acadêmico necessita de uma conduta inovadora, o que só é possível quando se desa-
marra dos limites da sala de aula e se vai em busca de mais saberes. Só assim seremos
também responsáveis por nossa própria formação educacional.

referências

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 14724: informação e


documentação. Trabalhos acadêmicos. Apresentação. Rio de Janeiro: ABNT, 2002.
Disponível em: <http://cpd1.ufmt/ivairton/doc/pfc/NBR-14724-2002-apresentacao.
pdf>. Acesso em: 28 set. 2008.

BEUREN, Ilsen Maria (Org.). Como elaborar trabalhos monográficos em


contabilidade: teoria e prática. São Paulo: Atlas. 2003.

BROUSSEAU, Guy. Introdução ao estudo das situações didáticas. São Paulo: Ática,
2008. 125p.

CUNHA, Marcus Vinicius. Da metáfora comunicação à metáfora arte em John Dewey.


In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 26, 2003, Poços de Caldas. Anais... Poços de
Caldas: ANPED, 2003. Disponível em: <www.anped.org.br/reunioes/26/trabalhos/
marcusviniciusdacunha.rtf>. Acesso em: 17 dez. 2008.

DEWEY, John. Democracia e Educação: introdução à Filosofia da Educação. 3. ed.


São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.

87
InIcIação à OSSAK, Ana Lídia. Professor, aluno e livro didático em aulas de ciências: análise
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do retórica dos argumentos didáticos. 2006. 157f. Dissertação ( Mestrado)-Universidade
conhecImento
Estadual de Maringá, Maringá, 2006. Disponível em: <www.pcm.uem.br/m_
dissertacoes_defendidas_2006.html>. Acesso em: 17 dez. 2008.

SALVADOR, Ângelo D. Métodos e técnicas da pesquisa bibliográfica elaboração


e relatório de estudo científico. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria Sulina
Editora, 1971.

SANTOS, Antonio Raimundo dos. Metodologia cientifica: a construção do


conhecimento. 3 ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2000.

SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 21. ed. São


Paulo: Cortez, 2000.

proposta de atividades

1) Procurar, em sites de universidades, monografias, dissertações e teses da área educacional


como exercício para aprimorar a disciplina intelectual.

2) Efetuar buscas pela Internet de portais de educação para fazer contato com artigos e textos
de caráter científico.

3) Pesquisar sites que apresentem as normas da ABNT, como fazer notas de rodapé, citações
diretas e citações indiretas, como também as formas de referências do uso de documentos
eletrônicos e de email nas citações;

4) Elaborar um pequeno texto no qual constem essas citações.

anotações

88
6 pesquisar
com ética

raymundo de Lima

“Não por medo, mas por dever, evitai os erros”.


René Descartes

“Não vemos, efetivamente, que necessidade haveria de se proibir o que nin-


guém deseja realizar. Aquilo que se acha severamente proibido tem que ser
objeto de um desejo”.
Sigmund Freud

Pesquisar, no sentido mais amplo, é procurar conhecer algo de forma sistemática.


Uma das características da pesquisa científica é ser aberta e pluralista, tanto na escolha
do assunto e método a ser usado na investigação como também na escolha dos meios
de divulgação dos resultados. Toda e qualquer ciência deve ser modesta em suas teses,
teorias; ser aberta às discussões e estar disposta a acolher posicionamentos críticos; do
contrário, tal conhecimento poderia ser considerado pseudociência, que como tal “fala
às necessidades emocionais poderosas que a ciência frequentemente deixa de satisfazer
[...]” (SAGAN, 1996, p. 29). Assim, o dogmatismo e a pretensão de ter conquistado ‘a’
verdade absoluta fazem a pseudociência estar mais próxima da ideologia religiosa.
Compartilhamos com o posicionamento de que a ciência moderna convive com
uma crise em seu interior, sem precedentes na sua história, principalmente as Ciên-
cias Humanas e Sociais, que hoje atravessam uma profunda crise de confiança episte-
mológica, tal como observa Boaventura Sousa Santos (1989). Os avanços da ciência
na contemporaneidade, por um lado, sinalizam que suas pesquisas nem sempre se
pautam pela primazia da verdade e da ética, vistos os diversos interesses ideológicos
fora e dentro dela própria e, por outro lado, ainda que se considere o conhecimento
científico como a forma de conhecimento mais elaborada, sistematizada e aberta a
discussões, ela é um produto ‘demasiadamente humano’; portanto, “traz as glórias e
mazelas da natureza humana” (MORAIS, 1988).
Neste sentido, a ciência não deve ser compreendida como um fim em si mesma,
isto é, desde a elaboração de um projeto de pesquisa até sua apresentação de resul-
tados em forma de artigo teórico, monografia ou relatório, ela deve ser confrontada

89
InIcIação à com a ética. A humanidade já sofreu os efeitos de pesquisas científicas sem ética: cerca
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do de 1,5 mil gêmeos foram utilizados em ‘pesquisas científicas’ pelos nazistas, dos quais
conhecImento
apenas duzentos sobreviveram e contaram sobre sua dor e sofrimento psíquico. “Não
temos garantia de que fatos como os de Auschwitz não vão se repetir”, alerta Jona Laks,
um sobrevivente desses experimentos. A tragédia da talidomida na dédada de 1960
conscientizou a comunidade científica e a sociedade em geral do uso indiscriminado
de drogas terapêuticas, o que levou o FDA (Food and Drug Aministration), nos EUA, a
ser mais rigoroso no controle dos procedimentos experimentais desenvolvidos pelos
fabricantes de produtos farmacêuticos.
O professor que ensina disciplinas de metodologia científica e orienta os alunos
a como realizar a pesquisa deve educar o iniciante da pesquisa a ser orientado pela
ética, em vez de simplesmente ensinar ou instrui-lo como fazer pesquisa. Ou seja,
deve fazer parte da formação da ‘atitude científica’ uma ‘consciência ética’ ou uma
‘consciência da responsabilidade’ do ato de fazer pesquisa científica. Um iniciante à
pesquisa científica com consciência ética, responsável, representa menos perigo do
que outro que vira as costas para a ética, de tão ambicioso que está para chegar ao
resultado ‘fim’ da pesquisa, sem se importar com os meios que usa.
Ainda que os cursos de formação universitária sejam displicentes e despreparados
em formar uma ‘consciência ética’ no estudante, é consenso desenvolver no pesqui-
sador um ‘sentimento de responsabilidade’ e ‘prudência’ ao elaborar um projeto de
pesquisa. Por exemplo, um aluno do curso de Pedagogia que pretende investigar um
assunto tomado como problema de uma determinada escola pública deverá pedir au-
torização da direção da escola para realizar sua pesquisa. Possivelmente, dependendo
do tipo de investigação, ele precisará de autorização da professora ‘x’, dos pais, e até
mesmo dos próprios alunos, mesmo ciente de que eles são menores de idade. O pes-
quisador deve ainda levar em conta que sua presença alterará a rotina da turma e a aula
da professora; se pretende usar um gravador, certamente irá provocar reações subje-
tivas em cada envolvido, inclusive no próprio pesquisador. Ou seja, um ato aparente-
mente simples incorre em um cálculo ético ou moral nos procedimetnos da pesquisa.
Até certo ponto, o iniciante à pesquisa está dispensado de ter uma formação teó-
rica sobre ética ou memorizar o código de ética; contudo, no caso de psicólogos e
médicos, hoje em dia é imprescindível saber as sinalizações éticas da profissão, os
protocolos, as resoluções dos Comitês de Ética, bem como a discussão sobre os limi-
tes dos procedimentos e do uso de técnica (observação, entrevista) e instrumentos
(gravador, filmadora) devem fazer parte dos cuidados do pesquisador e orientador,
ambos responsávaveis pela pesquisa. Da nossa posição de sujeitos, cada “eu” é respon-
sável pelo seus atos. Atualmente, os iniciantes são alertados acerca da possibilidade

90
da pesquisa tramitar pelos conselhos ou comissões de éticas para ser autorizada ou pesquisar com ética

não, sobretudo se esta envolve seres humanos, animais, ou se poderia causar danos
ao meio ambiente1.
Por conseguinte, não basta ser apenas racional e ter um propósito de sistematização
na pesquisa, é imprescindível desenvolver uma atitude de razoabilidade e de respon-
sabilidade relativa aos possíveis danos ao outro, ainda que este tenha conscientemen-
te consentido como ‘objeto’ no processo de investigação científica. Compartilhamos a
ideia de que o ensino deve ser com pesquisa; e que pesquisa deve ser conduzida com
ética. A pesquisa eticamente conduzida deve ter um sentido preventivo: saber evitar
práticas abusivas e contrárias “à dignidade humana”, causar sofrimento desnecessário
nos animais e efeitos danosos ao meio ambiente.
O propósito deste capítulo é estabelecer uma discussão entre ética e pesquisa cien-
tífica. Nesse percurso, torna-se necessário ao iniciante da pesquisa científica distinguir
alguns elementos geralmente confundidos nessa relação: ética, moral, código de ética
ou código dos profissionais, declaração ética ou protocolo ético, e a finalidade ou
funcionalidade dos comitês de ética.

ÉtIca e moraL

“Não estamos discutindo nenhum assunto trivial,


mas como devemos viver”. Platão, A República.

A ética é uma palavra de origem grega (ethike, ethikós), diz respeito aos costumes.
Em Aristóteles, a ética é uma doutrina do bem, do “estar bem” do sujeito consigo pró-
prio e com os outros. A ética faz parte da filosofia prática que tem por objetivo elaborar
uma reflexão sobre problemas fundamentais acerca da natureza do “bem” e do “mal”,
do “certo” e do “errado”. Ela trata dos princípios gerais e universais que justificam
aplicá-los para orientar a conduta do homem em sociedade. Neste sentido, ela seria
a “ciência da finalidade, para a qual se dirigem os comportamentos humanos – bem
como o estudo dos meios para atingi-la” (KATZ, 1984, p. 25).
De origem latina, a moral (moralis, de mor-, mos) também se refere aos constu-
mes. Entretanto, segundo vários autores “a moral está mais preocupada na construção
de um conjunto de prescrições destinadas a assegurar uma vida em comum justa e
harmoniosa” ( JAPIASSU; MARCONDES, 2006, p. 172).

1 Escapa ao nosso propósito, neste capítulo, analisar a ética voltada para o meio ambiente. Ferrater Mora e Priscila
Cohn (apud SANTOS; SILVA NETO, p. 92) consideram que uma ética do meio ambiente abarca a totalidade dos
problemas éticos, pois permite vê-los em suas múltiplas conexões.

91
InIcIação à Do ponto de vista teorético, ética e moral têm o mesmo sentido: orientar as pessoas
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do para o bem e evitar o mal. A distinção é sutil: a ética investe na busca de leis univer-
conhecImento
sais que desenvolvem a capacidade dos seres humanos de julgar e decidir escolher o
“bem”, o “certo”, em vez do “mal” ou o “errado”. Conforme pontua Cortella (2006), a
ética pressupõe a possibilidade de decisão, opção, escolha, liberdade.

É impossível falar em ética sem falar em liberdade. Quem não é livre não pode,
evidentemente, ser julgado do ponto de vista da ética. Três grandes questões
orientam a ética: quero? devo? posso? Ou seja, tem coisa que eu devo mas não
quero, tem coisa que eu quero mas não posso, tem coisa que eu posso mas não
devo...A área de Saúde, de Ciência e Medicina, é recheada desses dilemas éticos.
Tem muita coisa que você quer, mas não pode, muita coisa que você deve, mas
não quer (CORTELLA, 2006).

Este autor ainda assinala que é discutível apontar alguém como “antiético” (contra
a ética ou falta-de-ética), porque, ainda que o sujeito cometa uma falta ética, com
certeza ele tem consciência de seu ato; logo, ele não pode ser considerado como to-
talmente “antiético”.
Há uma outra palavra que também provoca discussão: “aético” (aquele que não
sabe avaliar, julgar, e decidir entre o certo e o errado). Podemos afirmar que as crian-
ças, os perversos e os loucos (psicóticos) poderiam ser considerados aéticos. As crian-
ças, porque ainda estão formando sua personalidade. Os perversos, porque padecem
de um defeito de caráter, isto é, sua personalidade não aceita a inscrição da lei (admi-
nistrada pelo Superego, conforme a Psicanálise), portanto, são incapazes de acordo
pleno com as regras da civilização, e carecem de autocrítica, remorso e compaixão.
Os loucos, porque além de serem reféns do conflito entre o “eu e mundo externo”,
perderam a razão ou o juízo, que retira sua coerência no uso de palavras e gestos,
sendo que ainda são incapazes de fazer o ‘teste da realidade objetiva’. A justiça tipifica
como “inimputáveis” as pessoas que cometeram crimes sem plena consciência ou
sem razão. Entende a justiça – representante moral e legal da sociedade – que os

92
atos provenientes de pessoas inimputáveis2 não devem ser condenados, mas que estas pesquisar com ética

devem ser reeducadas ou tratadas psicologicamente.


Francis Imbert (2001) propõe que a ética situa-se antes de qualquer conformidade
moral; ela a precede na ordem do fundamento. Esclarece que uma formação ética se
pauta mais pelo engajamento do sujeito com sua consciência, sua ‘discernibilidade’,
ou seja, sua capacidade de escolha e de apercepção crítica de seu atos diantes das
contingências da vida, a fim de não se deixar massificar. Já uma formação enfatizada
na moral impõe obediência às regras, exige ordem e disciplina, impõe a fabricação de
hábitos, de “bons hábitos”, de “almas virtuosas”, que, para o autor, é uma constante
na pedagogia. Imbert declara que “os professores estão bastante impregnados de uma
moral. [Mas] será que possuem uma ética?”3.
Para a ética, existem princípios ou leis universais que o sujeito pode saber escolher
e decidir pelo ‘bem’, o ‘respeito’, o ‘correto’. Por seu lado, a moral exclui o imprevisto
e desconfia da capacidade do sujeito escolher o bem. Daí ela se preocupar em criar
uma “produção externa”, impondo regras, normas, hábitos, enfim, cria um regime
objetivando sujeitos-submissos à moral dominante. Enquanto a moral é particularista,

2 No âmbito do Direito, é denominada imputabilidade penal a capacidade que tem a pessoa que praticou um crime
de saber o que estava fazendo. Assim, se considerada “inimputável”, uma pessoa não poderá ser penalmente
responsabilizada pelos seus atos. No Código Penal, o conceito de imputabilidade é fornecido indiretamente pelo
de inimputabilidade. Imputável é o sujeito mentalmente são e desenvolvido, capaz de entender o caráter ilícito do
fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento; capacidade que o homem adquire progressivamente,
com o desenvolvimento físico e mental. Maturidade e sanidade mental são dois elementos que integram a imputa-
bilidade, com a consequente capacidade plena de entender e de querer. Tal capacidade não implica na consciência
da ilicitude do seu ato; o que importa é que o sujeito que cometeu um ilícito saiba que esse ato é reprovado pela or-
dem jurídica ou pela moral codificada em forma de leis. Por nascermos e vivermos em sociedade é que adquirimos a
consciência do que é ou não lícito, sem que façamos conhecimento da legislação. Também a vontade do sujeito para
o “bem” ou para o “mal” deve ser considerada outro requisito nessa avaliação: a vontade de querer, de sofrer, de
escolher uma determinada ação, a consciência do que lhe é juridicamente “errado” etc. No Brasil, o Código Penal
considera “inimputáveis” os menores de 18 anos, a doença mental crônica (psicose ou esquizofrenia), os deficien-
tes mentais (inteligência abaixo dos padrões considerados normais), as pessoas com desenvolvimento cognitivo
e cultural incompleto (surdo-mudo, silvícolas etc). (Cf.: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Imputabilidade_penal>).
3 Francis Imbert, em seu livro A questão da ética do campo educativo (Ed. Vozes, 2001), também trabalha com o
trocadilho que se encontra no Livro II da Ética a Nicômaco: um jogo de palavras entre “êthos” (maneiras de ser
habituais, caráter) e “éthos” (hábito moral: “a virtude moral é filha de bons hábitos; daí vem que, por uma ligeira
mudança, do termo caráter deriva o termo moral” . Enquanto que a “ética” [éthos] aponta para uma ciência das
virtudes, que não dirige, mas inspira a formação de hábitos saudáveis, a “moral” [êthos] unifica, padroniza, canaliza
hábitos enrijecidos, e impõe a todos o que deve ser cumprido. Para Kant, os ‘imperativos categórigos’ (sic) funcio-
nam como obrigações morais, vão contra nossa vontade e desejos, mas têm abrangência universal. Por exemplo,
o imperativo categórico: "Age de tal modo que a máxima da tua ação se possa tornar princípio de uma legislação
universal". No sentido da ética, virtude é o que faz com que um sujeito aja de forma a fazer o bem para si e para os
outros. Platão considerava a virtude como uma qualidade que o indivíduo traz consigo e que, portanto, não pode
ser ensinada. Aristóteles pensa o contrário, ou seja, ações boas realizadas e repetidas pelo sujeito formam o hábito
(gr.: areté = virtude) de ser bom. “Ela [a virtude] é a medida justa entre dois extremos, um por excesso e outro por
falta. A partir da modernidade, se entende que a virtude é a disposição moral para o bem, ou “a força de resolução
que o homem revela na realização de seu dever” (Kant). São virtudes: a justiça, a moderação, a prudência, a cora-
gem, a tolerância, a generosidade, a humildade, a fidelidade, a polidez etc.

93
InIcIação à profundamente vinculada e identificada com grupos religiosos, nacionalistas, étnicos,
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do políticos ou classistas, a ética tem conteúdo universal e parte do princípio da igualdade
conhecImento
dos seres humanos e de seus direitos inalienáveis à paz, ao bem-estar e à felicidade,
individual e coletiva. A moral é historicamente datada e suas normas e sanções mudam
de acordo com as transformações da sociedade, sempre refletindo a visão do mundo
e os interesses das elites. Basta recordar as manifestações dos senhores escravocratas,
dos primeiros capitães da indústria e dos tecnocratas das grandes empresas, cada qual
em cada época justifica a pobreza e a desigualdade com um discurso supostamente
racional e neutro, que não passa de ideológico.
A pedagogia e a religião são os braços da moral. A escola determina regras e regula-
mentos; o professor impõe sua autoridade, controla a disciplina dos alunos e, no fun-
do, pensa-os unidos, ligados e indiferenciados no projeto educativo. Daí os equívocos
e fracassos de se apostar em um “único método de ensino para ensinar tudo a todos”,
conforme a proposta comeniana, pensada no século XVII. Já o sentido proposto pela
ética é outro: em vez da imposição da regra (moral), a ética propõe a formação de
consciência da lei pelo educando; em vez de pensar “indivíduos”, ela pensa em “su-
jeitos” com livre-arbrítrio, que podem escolher o “bem” tanto em si como nos outros.
No sentido freudiano, a criança e o adulto podem “superar” o princípio do prazer
(selvagem ou incivilizado), substituindo-o pelo princípio da realidade (educado ou
civilizado). O homem se distingue da criança pelo que se apresenta como sujeito
educado, civilizado, que, no fundo, está submetido às regras culturais e da própria
civilização moderna.
Imbert (2001) destaca que a psicanálise estilhaça exatamente o paradigma criança
-imaturidade/ adulto-maturidade, porque o adulto pode não ter “superado” a criança
perversa que traz dentro de si. Efeito do recalque bem sucedido, tal superação não ga-
rante um progresso de maturidade no adulto. A psicanálise suspeitará do efeito moral
da pedagogia, justamente porque essa não reconhece o sujeito dividido (consciente//
inconsciente) e também porque opera a partir do exterior do sujeito, fazendo-o re-
primido em seus conflitos e também na sua possibilidade de encontrar um caminho
propriamente ético.
A ciência hegemônica e a pedagogia são filhas da era moderna, no século XVII.
Bacon anuncia uma nova ciência, e Comênio forja uma nova educação sintonizada
com essa nova ciência. Parece que ambas – ciência e pedagogia – foram mais influen-
ciadas pelo espírito das regras morais (made in religião) do que pelos princípios da
ética (made in filosofia). Como vivemos uma época marcada por profundas crises na
sociedade que atingem a ciência e os modos de educação em geral, possivelmente
teremos que reinventar a propria ética. Por exemplo, a atual crise da autoridade do

94
pai-lei na família e do professor-disciplinador na escola nos obriga a repensar uma pesquisar com ética

nova ética que funcione melhor em uma modernidade ‘líquida’4 ou pós-modernidade,


já que os valores e as regras morais da educação informal e formal hoje não funcio-
nam. No campo das ciências, Boaventura Sousa Santos (1989) vislumbra uma ciência
pós-moderna, que em vez de se manter como se fosse um produto da elite intelectual
e economicamente abastada, se orienta para a “sensocomunicação” (sic) visando à
emancipação dos vários setores da sociedade, incluindo as pessoas comuns. Sua pro-
posta de “um conhecimento sistemático e prudente para uma vida mais digna e decen-
te” está presente na reorganização de uma nova universidade, mais aberta, pluralista e
comprometida com a realidade concreta das pessoas, bem como a formação do novo
cientista, mais engajado em uma ética da produção e socialização desse conhecimento.
Por conseguinte, trata-se de forjar um novo paradigma para a universidade, as ciências
e a formação de novos quadros de profissionais cientistas que irão produzir e aplicar
tais conhecimentos visando à emancipação da humanidade.

cÓdIGos de ÉtIca e deontoLoGIa


Os códigos de ética são direcionados para cada categoria profissional de acor-
do com os seus interesses corporativos. Assim, uma ética médica codificada, quer
no Brasil ou em outros países do mundo, é uma ‘ética’ centrada nos interesses dos
médicos, relegando para segundo plano os interesses da sociedade e os do doente
(LANDMANN, 1985, p 16). O mesmo sentido pode ser aplicado no código de ética dos
psicólogos, enfermeiros, advogados etc.
Em verdade, os códigos de ética deveriam ser denominados mais apropriadamente
“códigos morais” ou “deontologia” (do grego “deon”: dever, obrigação + “logos”: tra-
tado, teoria), visto que se tratam de uma convenção entre profissionais visando mais
a sua autoproteção diante de eventuais situações-limites na atuação profissional do
que ‘à ética’ tal como descrevemos anteriormente. Trata-se, portanto, de um acordo
prévio entre colegas visando a situações previsíveis, a sinalizações morais de como agir
profissionalmente, bem como aos dispositivos mais ou menos punitivos para aqueles
que transgredirem com o que foi convencionado como “deveres” ou “obrigações” de
cada ato profissional. O sentido dos códigos não é policialesco, mas sim o dever, o
respeito, o tratamento digno e responsável para com o outro. Como postulou o sábio
judeu Hilel: “se não sou por mim, quem o será? Mas se só sou por mim e para mim,
que sou eu?”.

4 Modernidade ‘líquida’ é um termo cunhado pelo pensador Zymunt Bauman para o controvertido termo “pós-
modernidade” ( Ver a última seção deste capítulo).

95
InIcIação à Foi Jeremy Bentham que em 1834 introduziu sua “deontologia aplicada” ou “teoria
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do e prática do dever”. Conforme assevera Cravreul (1983, p. 250), “a deontologia, em
conhecImento
princípio, não é a lei, mas ela é ‘a parte de nossas ações à qual as leis deixam um
campo livre’”. Assim, a concepção utilitarista de Bentham, com a deontologia, visa
a “enxugar” a discussão sobre a ética, tornando-a útil, normativa e prescritiva na
atuação profissional. No fundo, a deontologia tem o propósito de “trazer de volta para
o caminho correto os indivíduos que dele se afastaram”; indicando a conduta correta,
os procedimentos, e sinalizando uma hierarquia de sanções para os transgressores
dessa moral codificada. Na linguagem lacaniana, “a deontologia é bem a expressão
ideológica e jurídica de um Discurso do Senhor que não quer prestar contas a não ser
a si mesmo” (CRAVREUL, 1983, p. 250).
Há uma deontologia em Kant que fundamenta-se em dois conceitos que lhe dão
sustentação: a razão prática e a liberdade. O agir por dever ou obrigação é o modo de
conferir à ação o valor moral; logo, a perfeição da moral kantiana só pode ser atingida
por uma vontade livre do sujeito. O “imperativo categórico” kantiano no domínio da
moralidade é a forma racional do dever-ser, determinando a vontade submetida à
obrigação. Em Kant, é o sujeito que escolhe ser moral por dever de consciência; na
concepção utilitarista de Bentham, a deontologia consiste no conjunto de regras e
princípios que regem a conduta de um profissional, digamos de “fora para dentro”.
Segundo essa concepção, cada profissão deve elaborar uma ‘doutrina’ que dirige os
atos considerados morais; o estudo dos deveres ou obrigações realizadas por cada
profissão vira “discurso de obrigações”, ‘úteis’ no sentido da moral capitalista5. Assim,
são constuídos “discursos sobre obrigações”, “resolvidas a partir dos direitos e de que
a um direito correspondem diversas obrigações, não existindo aqui uma correlação
um-por-um” (TUGENDHAT, 1996, p. 338).
Na análise de Tugendhat, “toda moral tem afinal um irredutível componente deon-
tológico” (1996, p. 338), ao contrário da ética, cuja função está direcionada para uma
teoria, que busca as leis universais, bem como os seus argumentos de por que deve-
mos ser éticos. Os códigos profissionais têm um propósito normativo e coercitivo; seu
cumprimento não depende da repressão policial e nem na memorização obrigatória
do profissional do que foi convencionado e as sanções previsíveis para cada trans-
gressão do mesmo. As sinalizações repressivas ou que coíbem certos atos previstos

5 No verbete “Deontologia”, a enciclopédia Wikipédia acrescenta que “Desta maneira percebe-se que aqueles que
têm como mister o ensino da disciplina de Ética e Deontologia, deverão ter o conhecimento de Filosofia, Ética, que
é seu capítulo de estudos, Moral, em seus planos normativo e factual, de Direito e finalmente de Deontologia, que
se explicita no, equivocadamente denominado, Código de Ética”.

96
nos códigos não têm o poder para obrigar alguém a ser ético; sua função é servir de pesquisar com ética

guia ou diretriz para os conselhos julgarem uma suspeita-denúncia de transgressão da


conduta profissional. Embora exista a tendência de constar no currículo de formação
profissional uma disciplina sobre ética profissional, cujo propósito é ler e discutir o
código de ética e seus fundamentos, é sabido que a formação da atitude ética depende
fundamentalmente da disposição do sujeito, de sua personalidade e assimilação às
regras de civilidade para conviver em sociedade.
No campo da pesquisa, existem grupos (geralmente ligados aos interesses religio-
sos) determinados a influenciar a aprovação de leis e os atos de governo, visando a
“moralizar”, a “refrear” e a “proibir” certos tipos de pesquisas. Alguns embates, neste
sentido, são veiculados pela mídia em âmbito nacional e internacional: o experimento
com energia nuclear objetivando buscar respostas referentes ao surgimento do uni-
verso (referimo-nos ao megainvestimento do Grande Colisor de Hádrons ou LHC), às
pesquisas com alimentos transgênicos (com o pseudo-argumento de aumentar a capa-
cidade da terra para produzir alimentos para a humanidade), o uso de células-tronco
(com o propósito de prevenção e cura de doenças até hoje sem cura) etc.
Ora, a intenção de moralizar as pesquisas científicas parece caminhar na contramão
da discussão ética, que, como já abordamos, não é proibitiva, mas sim necessariamen-
te aberta, plural, democrática e humanitária. A intenção de simplesmente moralizar,
proibir, refrear indica uma influência religiosa, pior, do fundamentalismo religioso, an-
ticientífico, totalitário ou antidemocrático. A humanidade sofreu a experiência totalitá-
ria do nazismo, cujas pesquisas “científicas” foram conduzidas sem regras morais, sem
discussão ética, ainda que fossem reguladas por lei do Estado6; também a experiência
totalitária soviética, carente de ambas, refreou o desenvolvimento da genética por ser
uma “coisa burguesa”. Ou seja, há que se investir em uma discussão verdadeiramente
ética, criar comitês científico-filosóficos e dispositivos convencionados para a realiza-
ção de pesquisas, mas estes jamais devem ser objetos de interesses fundados apenas
em um moralismo religioso com intenções totalitárias.

6 Todo sistema ditatorial quer ser reconhecido como moral; assim, leis geralmente são promulgadas com o discurso
de proporcionar um bem para todos. No fundo, trata-se de um discurso ideológico, que camufla, distorce, mas visa
a dominar os corações e mentes. Por exemplo, “no dia 14 de julho de 1933 foi promulgada uma lei ‘para a pre-
venção de uma descendência hereditariamente doente’. Por essa lei, seriam considerados hereditariamente enfer-
mos os portadores das seguintes ‘enfermidades’: fraqueza mental congênita, esquizofrenia, qualquer deformação
hereditária, cegueira hereditária, surdez hereditária, qualquer deformação levada a cabo nas mulheres ‘inferiores’
(sob a orientação do ginecologista Carl Clauderg). Algum tempo depois, em Auschwitz, se procedeu à eliminação
sumária desses mesmos ‘doentes’, sob a direção dos cientistas Mengele, Entress, Rhode, Klein, entre outros” (KATZ,
1984, p. 23).

97
InIcIação à protocoLos de pesquIsas e comItês de ÉtIca
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do O protocolo de pesquisa é “um conjunto de documentos que o pesquisador pre-
conhecImento
para como parte do processo de elaboração do seu projeto de pesquisa” (MARTINS,
1999, p. 25).
Desde uma simples pesquisa de iniciação científica até as pesquisas de grande por-
te que necessitam de ‘participantes’ não podem ser utilizadas com a justificativa de
servirem aos mais elevados propósitos da ciência, do cientista, ou para bem-estar da
sociedade, da indústria, comércio etc.
A filosofia do protocolo – também chamada de “declaração”7 – é que o bem-estar,
a dignidade e a integridade das pessoas que se submetem às pesquisas devem sempre
prevalecer sobre os interesses da ciência.
Desse modo, os Protocolos nacionais e internacionais, bem como a criação de Co-
missão ou Comitê de Ética nos institutos de pesquisas e universidades representam
um avanço de eticidade nas pesquisas científicas.
Depois dos experimentos abomináveis empreendidos pelos nazistas8, em que pes-
soas eram usadas como “cobaias humanas vivas”9, tornou-se imperativo fazer uma dis-
cussão sobre se se deve deixar liberdade total à ciência para pesquisar. Os cientistas
devem ser responsabilizados por consequências danosas decorrentes de suas pesqui-
sas? A responsabilidade pela pesquisa cabe somente aos cientistas ou à instituição/
organização para quem ele trabalha? Até que ponto a pesquisa eticamente conduzida
consegue controlar seus efeitos, sobretudo se esse conhecimento é transformado em
tecnologia e passa a servir aos interesses do mercado?
Para prevenir os danos causados pelas pesquisas científicas, cometidos por pessoas
sem consciência e sem ética, foi necessária a criação de um protocolo internacional
como forma de fornecer diretrizes para os pesquisadores e organizações/instituições.
A experiência nos últimas décadas orienta que não basta ser investido da busca da ver-
dade do conhecimento; não basta cada profissão ter um código de ética e conselhos;
é imperativo criar convenções e dispositivos de prontidão (comitês e conselhos de
ética), bem como sinalizações de perigo e previsão sobre responsabilização de pesqui-
sadores, organizações e instituições de governo.

7 A Declaração dos Direitos Humanos foi adotada Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de
1948, e sem dúvida é o marco inaugural nessa consciência e ação internacional, no sentido de respeitar os direitos
que fundamentam a civilização humana, bem como proteger a humanidade dos efeitos dos regimes ditatoriais.
8 Os fatos mais graves dos experimentos desenvolvidos pelos nazistas se referem aos 1,5 mil gêmeos, aproximada-
mente, que serviram como “cobaias vivas” em pesquisas científicas, dos quais apenas 200 sobreviveram e apenas
80 ainda estão vivos. Muitas dessas pesquisas consistiam em aplicação de substâncias diversas no organismo de um
dos gêmeos, enquanto o outro era usado como controle (OLIVEIRA, 2002).
9 Referimo-nos aos experimentos de Joseph Mengele, considerados como “barbárie científica” (sic). (SANTOS;
SILVA NETO, 2000, p. 83).
98
Em 1947, surge então a Declaração de Nüremberg, que obriga a fundamentação pesquisar com ética

ética e científica das pesquisas conduzidas em seres humanos. E conforme expõe Mar-
tins (1999, p. 25), “Tal pesquisa deve estar de acordo com os princípios científicos
aceitos pela comunidade dos cientistas e respaldados pela literatura, por outras fontes
de informação, por trabalho em laboratório e, quando indicado, por experiências em
animais (B.11)”.
Todavia, era o período da “guerra fria” entre Estados Unidos e União Soviética, as
pequenas guerras e as ditaduras não deixaram de existir, de modo que a codificação de
Nüremberg mostrou-se insuficiente e impotente para garantir o bem-estar dos envolvi-
dos diretamente com as pesquisas. Ainda que representasse um grande esforço ético,
esse código não impediu que os cientistas fossem servis aos seus regimes políticos, ou
ao poder do mercado, e também aos cientistas desejosos de uma ciência sem limites
e sem fronteiras.

O Manifesto Russel-Einstein, lançado em 1955, alertava sobre as novas ameaças


trazidas pela “guerra fria”, e é considerado o primeiro reconhecimento solene
pelos cientistas de uma responsabilidade coletiva pelo impacto social da ciên-
cia. Ao Manifesto segue-se o estabelecimento da Conferência Pugwash para as
Ciências e Questões Mundiais, fórum da comunidade científica internacional
para a promoção ativa dos valores universais de racionalidade e objetividade
e que, se propõe, estar ao lado e acima das divisões políticas e ideológicas
(TOULOUSE apud SANTOS; SILVA NETO, 2000, p. 84).

Em seguida, convencionou-se a Declaração de Helsinque (Finlândia), em 1964, na


18ª. Assembléia Médica Mundial. Essa declaração foi submetida a debates e revisões
em 1975, 1983, 1989, 1996 e 2000, quando foram acrescentadas mais duas novas exi-
gências que tiveram grande relevância histórica no controle de experiências em seres
humanos: cada pesquisa deve ser formulada num protocolo de pesquisa e sub-
metida a um comitê de ética independente do pesquisador (B.13).
Assim, o protocolo da pesquisa científica passou a exigir, ao mesmo tempo, cien-
tificidade e eticidade. A cientificidade diz respeito à pesquisa ser conduzida por pes-
soas cientificamente qualificadas. No caso, alunos até podem realizar uma pesquisa
com seres humanos, desde que acompanhada por um pesquisador-orientador e ser
submetida por uma comissão ou conselho de ética.
No Brasil, a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde enuncia princípios de
acordo com a Declaração de Helsinque, que, para sua eficácia maior, devem estar de
acordo com as leis e regulamentação do país onde se realizam as experimentações (B.13).
Portanto, a cientificidade do projeto de pesquisa deve ser analisada e discutida pe-
los membros dessa comissão ou conselho, com os princípios que norteiam, no caso, a
pesquisa clínica, o “uso” de seres humanos no processo de investigação científica, se

99
InIcIação à houve ou não consentimento dos envolvidos10, bem como os cuidados para publica-
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do ção de trabalhos científicos (pensaremos mais à frente nessa temática).
conhecImento
A análise dos projetos de pesquisa deve questionar e verificar como os participan-
tes serão tratados; se eles serão tratados como simples ‘meios’ ou como ‘fins’ “cons-
titui uma violação ao princípio de respeito às pessoas enquanto agentes autônomos”
(ZOBONI; FRACOLI, 2001).
No espírito da Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS), em 10 de outubro
de 1996, a Resolução 196/96 do CSN estabelece os princípios básicos para apreciação
ética dos protocolos de pesquisa, cria os Comitês de Ética em Pesquisas (CEP) e a
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Os comitês de ética das pesquisas
são constituídos por um colegiado multi e transdiciplinar e pelo menos um de seus
membros deve ser representante de usuários da instituição. Sua função precípua é ze-
lar pelos interesses dos sujeitos da pesquisa, prevenindo e protegendo-os de possíveis
danos causados em nome de uma pesquisa dita “científica”.

O CONEP é uma das comissões permanentes do Conselho Nacional de Saúde.


É constituída por 13 membros titulares e 13 suplentes. Suas principais funções
são: estabelecer normas específicas no campo da ética em pesquisa, funcionar
como instância final de recursos, informar e assessorar os órgãos de saúde e
sociedade em geral sobre questões relativas à ética em pesquisa, estimular a
criação e registrar os CEPs. A CONEP é também responsável pela aprovação
final de protocolos de pesquisa pertencentes a áreas temáticas especiais: 1)
genética humana, 2) reprodução humana, 3) novos equipamentos, insumos
e dispositivos para a saúde, 4) novos procedimentos ainda não consagrados
na literatura, 5) populações indígenas, 6) projetos que envolvam aspectos de
biossegurança, 7) pesquisas com participação estrangeira ou com remessa de
material biológico para o exterior (PALACIOS, [2008?]).

Em nosso entendimento, os princípios consolidados na ética da pesquisa médica11


e biomédica, quando preveem o “consentimento livre e esclarecido” do sujeito, tam-
bém deveriam nortear as análises dos projetos de pesquisa nas ciências humanas e
sociais, uma vez que correm o risco de somente servirem à causa de uma “ciência sem
consciência”, causando-lhes prejuízos em sua dignidade e integridade física e psico-
lógica. Donde surgem algumas perguntas: o consentimento dos participantes envol-
vidos na pesquisa é condição suficiente para autorização da pesquisa? Como ficam as
pesquisas envolvendo crianças e adolescentes, portadores de doença mental, ou com

10 Cf.: SILVA, L.C.S. A questão do consentimento. Tb: ZOBONI, E.; FRACOLLI, L. A. Vulnerabilidade do sujeito da
pesquisa. Cadernos de Ética em Pesquisa. CONEP, Ano 4, n. 8, ago/ 2001 (p. 20-21 e 28-30).
11 “O uso do termo ‘consentimento’, no Código de 1988, é restrito aos Artigos 123 e 124. Nos dois Artigos, a pes-
quisa com seres humanos é admitida, desde que haja ‘consentimento’” (SILVA DE SOUSA, 2001, p. 30).

100
história de delinquência, e demais sujeitos em situação de “substancial diminuição de pesquisar com ética

suas capacidades de consentimento”? Lembramos que “na moralidade pós-moderna


é o consentimento, que, por sua vez, supõe uma determinada noção de autonomia”
(SILVA DE SOUSA, 2001, p. 29), ou seja, o “consentimento” deve ser acatado como “di-
reito” e “autonomia do sujeito”, ou há mais fatores envolvidos? Qual é a relação entre
“consentimento” e “direitos humanos”?
Contudo, existe consenso que os responsáveis pelas pesquisas, em qualquer área
do conhecimento, devem informar e esclarecer aos participantes ou informantes
sobre os objetivos da pesquisa. Noutros termos, os sujeitos participantes da pesqui-
sa devem formalizar um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Isso

[...] significa que nenhum ser humano poderá ser submetido a qualquer pro-
cesso de investigação científica sem que para isso tenha dado seu consentimen-
to explícito. Para consentir em participar o sujeito tem que ser amplamente
esclarecido de todos os objetivos, procedimentos, resultados esperados, riscos
e benefícios, ainda que potenciais. Além disso, tem que ser garantida total liber-
dade para decidir se quer ou não participar. Há que ter uma atenção redobrada
nas condições em que o consentimento é solicitado para que não se impo-
nha qualquer constrangimento ao sujeito. Ninguém pode ser discriminado em
seu atendimento por não ter aceito participar de uma pesquisa (PALÁCIOS,
[2008?]).

Torna-se necessário, também, esclarecer aos pesquisadores que as informações


colhidas, obviamente com o “consentimento livre e esclarecido” dos participantes,
devem ser descartadas assim que seja concluída a pesquisa. Pólio (apud PAIVA, 2005,
p. 43) aconselha que:

quando um pesquisador consegue o consentimento de professores para obser-


var ou gravar [nas] suas salas de aula, apenas parte do objetivo do estudo pode
ser revelado para não afetar o comportamento do professor. No entanto, depois
da conclusão do estudo, qualquer pesquisador tem a obrigação de informar ao
professor os detalhes do estudo.

Portanto, para evitar constrangimento, ressentimento ou uma incômoda sensação


se ter sido apenas “usado”, o bom senso do pesquisador e a ética codificada orientam
que se faça um retorno da pesquisa para aqueles que direta ou indiretamente contri-
buíram para sua realização. A autora referida cita o caso de uma professora ressentida
por não ter sido convidada para a defesa da dissertação e por ter tido o acesso ao tra-
balho tempos depois da defesa. Fica a sugestão para o pesquisador “devolver” aos que
contribuíram pela realização da pesquisa no mínimo um resumo, palestra ou conversa
sobre a mesma. Ressaltamos ser imprescindível que o anonimato dos participantes seja
garantido, de forma a evitar que ele venha a se sentir constrangido ou sofra com os
resultados da pesquisa.

101
InIcIação à ÉtIca nas puBLIcaçÕes: a comunIcação dos resuLtados das
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do pesquIsas
conhecImento
Atualmente, as revistas de publicações científicas devem seguir os critérios de cien-
tificidade e eticidade, com adaptações e exigências de acordo com as normas conven-
cionadas pelos conselhos editoriais específicos de cada publicação.
Não sabemos se existe uma ética, no sentido estrito, para as publicações científicas
no Brasil, mas certamente existe uma política editorial fundamentada em alguns prin-
cípios ético-morais norteadores para os conselhos editoriais darem os seus pareceres.
Cada revista científica – ou periódico acadêmico – adota uma linha de publicação de
artigos, critérios técnicos e normas, principalmente quanto a sua formatação (“cara”
do artigo), citações, número de páginas, referências bibliográficas.
Atualmente, mede-se a produtividade das universidades pelo número de artigos
científicos publicados. Vivemos, portanto, a “corrida pela Lattes”12, a cultura do “publi-
ca ou morre” (publish or perish), que pressiona pesquisadores e alunos muitas vezes a
apropriar-se de uma ideia alheia e reproduzir integralmente suas frases e períodos ou
com outras palavras. “O plágio tem sido considerado como cópia integral ou parcial de
trabalho intelectual alheio, sem a devida menção ao autor” (PAIVA, 2005).
Falta uma discussão relativa à ética nas comunicações dos resultados da pesquisas,
principalmente com os alunos iniciantes nos cursos que carecem de uma disciplina
sobre ética em seus currículos13. Embora as universidades incentivem a realização de
projetos de iniciação científica, em algumas delas falta mobilizar os seus Comitês de
Ética para palestras, cursos e orientações específicas, porque não raro existem falhas
éticas nas apresentações orais e escritas em eventos dentro e fora da comunidade aca-
dêmica. A eventual publicação em revistas especializadas ou não dependerá do parecer
do conselho editorial de cada revista, que o faz com respostas padronizadas (favorável,
desfavorável, ou favorável com revisões), portanto, não há discussão.

12 Cf.: OZAI, Antonio. A corrida pelo Lattes. Revista Espaço Acadêmico. n. 46, mar. 2005. Tb.: UNIVERSIDADE:
A democracia ameaçada. São Paulo: Xamã, 2005. p. 87-96. Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.
br/046/46pol.htm>
13 Embora exista o reconhecimento de avanços significativos no uso e aprimoramento dos protocolos, convenções,
e fiscalização das pesquisas médicas e biomédicas pelos Comitês de Ética, uma pesquisa do Departamento de Cirur-
gia e Ortopedia da Faculdade de Medicina de Botucatu (Universidade Estadual Paulista) revela que na maioria das
revistas científicas brasileiras há pouca preocupação em relação aos aspectos éticos da pesquisa em seres humanos,
contidas nas Instruções dos Autores. Um levantamento com 139 revistas científicas apontou que 79,1% não fazem
referência a aspectos éticos. Mesmo assim, foi baixo (20,8%) o número de revistas que fazem referência aos aspectos
éticos da pesquisa com seres humanos. Foi observado, ainda, que essas revistas apresentam critérios extremamente
flexíveis de avaliação utilizados nesses estudos. Consta no artigo consultado que ‘grande parte’ das revistas científicas
de língua inglesa, nessa área, fazem referência a aspectos éticos da pesquisa com seres humanos (Cf.: CONEP, 2000)
[grifos nossos].

102
O cumprimento da ética nas pesquisas, contudo, é mais responsabilidade do orien- pesquisar com ética

tador do que dos alunos iniciantes da pesquisa, por motivos óbvios. Cabe ao orienta-
dor sinalizar aos alunos, desde o projeto de pesquisa, a obrigação de citar um artigo
parcial ou totalmente (do contrário, pode ser considerado plágio), prepará-los para
acolher o posicionamento dos pareceristas, o uso da linguagem apropriada no texto
científico (projeto, relatório, artigo, monografia), a cooperação com outros pesqui-
sadores, como coletar os dados respeitando os protocolos éticos, dar retorno aos in-
formantes ou participantes da pesquisa (dar uma palestra, convidar para a defesa da
dissertação), manter o anonimato desses participantes, usar com prudência e sigilo
absoluto o conteúdo dos questionários, entrevistas, fotos, filmagem, ainda que sejam
autorizados pelos participantes etc.
Para ilustrar um desses problemas entre publicação é ética, citamos uma discussão
na revista eletrônica Espaço Acadêmico (<www.espacoacademico.com.br14>), a qual
nos revela parecer estar longe de conseguirmos um consenso sobre o problema do
plágio. Uma autora veio ao editor, e este levou ao conselho editorial sua solicitação de
providências sobre o plágio do seu artigo por uma autora de outra revista eletrônica.
A reclamante argumentava que seu

artigo também foi publicado com algumas alterações numa revista eletrônica
em [outro país]. Estou muito preocupada e não sei muito bem como agir. Não
sei se é mais adequado que vocês entrem em contato com a pessoa que orga-
niza esta revista, pois o mesmo pode acontecer com outros autores da revista
espaço acadêmico. Caso possam me orientar no sentido de como devo agir, eu
agradeço a ajuda. [Alerto que] No site estão as informações da autora que co-
piou meu artigo e aí embaixo está o e-mail que recebi de uma aluna informando
sobre o plágio.

O debate que se seguiu por email entre os membros do conselho editorial da revis-
ta serviu para esclarecer alguns pontos ético-morais e legais do plágio segundo as leis
brasileiras como também foi útil para nortear os procedimentos que a revista provavel-
mente deverá adotar nesses casos.
Por nossa conta e risco extraímos do debate algumas observações: há os que se
posicionam como resignados, isto é, são autores que foram tomados pelo cansaço e
impotência para reclamar por seus direitos, uma vez que seus artigos são plagiados
parcial ou totalmente em outras revistas eletrônicas ou impressas. A prática mais
corriqueira é “apropriar da ideia e tratá-la com outras palavras”. Com frequência,

14 O autor é membro do Conselho Editorial da revista eletrônica www.espacoacademico.com.br, além de publicar


mensalmente artigos e ensaios, desde 2002.

103
InIcIação à diversos tipos de plágio ocorrem no dia-a-dia em jornais e revistas de grande cir-
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do culação, sem mencionarmos as reportagens de televisão, rádio e Internet. Parece-
conhecImento
nos que nada podemos fazer para coibir tal modalidade camuflada de plágio. Os
mais legalistas preferem formalizar um processo judicial, cientes da possibilidade
de demora e incerteza de ganho da causa. Os mesmos criticam a tendência de nossa
universidade de “relativizar” e “minimizar” (sic) o problema do plágio nos trabalhos
acadêmicos, “desde que não caracterize a substância principal do texto”, isto é, que o
texto “apresente-se como seu complemento”, e não revela a “intenção de fraudar”, ou
ainda por ter sido um mero “equívoco e confusão” do autor no trabalho (RÜDIGER,
2003). Outra reação parece racionalizar seus sentimentos com uma saída “filosófica”,
argumentando: por que não socializar para a humanidade nosso conhecimento?15 Até
que ponto podemos afirmar que aquele artigo realmente contém ideias originais do
autor, uma vez essas fazem parte de uma corrente de interdependência de conheci-
mentos de tantos autores? Um deles foi pessoal e evasivo: “eu simplesmente escrevo e
nem me importo se serão republicados, plagiados, portanto, o meu prazer é escrever,
não me preocupo em receber retorno material ou adquirir prestígio”. Ainda nessa
linha filosófica, um autor argumenta que “a internet nos faz voltar à era em que o
conhecimento era anônimo, ou produto de toda a sociedade (como os grandes poe-
mas gregos existiam na boca do povo; até Homero, publicá-los e ser considerado o
‘autor’). ‘Uma vez que algo cai na rede, é peixe’”.
Um artigo de Gabriel Perissé, que não faz parte do Conselho Editorial da revista
Espaço Acadêmico, defende a curiosa ideia de “plágio criativo”. Escreve:

Eu defendo, porém, o plágio criativo, com o qual “roubamos” da seara alheia


(de autores conhecidos ou não) algo que pode tornar o nosso trabalho mais
fértil e promissor...O plágio criativo é uma imitação inteligente de versos e
metáforas, de ideias e frases, de resultados e conclusões de outros autores, e,
devo esclarecer, esse processo criativo é utilizadíssimo pelos grandes escrito-
res, que são ao mesmo tempo grandes leitores e descobriram o óbvio: nada
existe de novo sob o sol... frase que o autor do Eclesiastes deve ter copiado de

15 Posição semelhante à que tramita na Assembléia Legislativa do Paraná/2008, que considera “injusto proibir o
aluno universitário de fazer cópia integral do livro para seus estudos, no caso de a obra estar esgotada e de não
haver exemplares suficientes em bibliotecas públicas”. O mesmo raciocínio poderia ser: por que não fazer fotocópia
de qualquer texto ou livro, como se esse fosse um patrimônio da humanidade?

104
algum outro escritor [...]16 (PERISSÉ, 2003, p. 73-88) [grifos nossos]. pesquisar com ética

Reforçando nossa observação inicial, não existe consenso sobre o plágio dentro e
fora da produção teórica, científica, e de textos de ficção.
Aproveitamos o momento para chamar atenção para duas sugestões práticas so-
bre o plágio: a) a vítima pode tomar uma atitude de comunicação moral, ou seja, a
reclamante deve escrever para a pessoa que usou seu texto e confrontá-la. Se a autora
se sente tão frustrada e ofendida, uma boa maneira é desmascará-la como plagiadora
junto a seus colegas e chefes, obrigando-a a fazer uma errata17; b) uma atitude pautada
na legalidade foi sugerida por um membro do Conselho da revista ora referida:

Uma vez constatado o plágio, cabe, em primeiro lugar, a denúncia, pública,


ampla e estridente. Como se trata, porém, de direitos individuais, capítulo di-
reito autoral, creio que o prejudicado deveria assumir o encargo de efetuar essa
denúncia, com o respaldo da revista, que simplesmente atestará que a matéria
foi publicada em tal data em seu site originalmente, tendo sofrido apropriação
indevida pela ‘copiadora’. Decisão quanto a processo deve ser de alçada indivi-
dual, porém os editores do plágio (provavelmente involuntários, mas mesmo
assim pode ser considerado crime), deveriam ser também formalmente noti-
ficados e instruídos a retirarem o artigo de sua base, colocando em seu lugar
um alerta, informando que tal matéria, publicada em tal data por tal autora, era
na verdade uma apropriação de artigo anterior publicado na revista, e estabe-
lecendo ainda que a copiadora ficasse banida de qualquer colaboração futura
em suas páginas, assim como essa informação deveria ser tramitada erga omnes
para que constasse a fraude deliberada.

Outro problema que envolve a ética nas publicações de textos científicos é em


relação à autoria e co-autoria. Existem duas tendências: aquela que radicalmente

16 Segundo pesquisa do autor, “o conceito de plágio é um conceito relativamente novo. Na Idade Média, as ‘leis
da imitação’ permitiam e estimulavam a busca de um exemplum, de um modelo do passado que servisse de base
para fazer algo de novo com o antigo, mesmo que depois todos pudessem perceber ali, na obra realizada, mais o
antigo do que o novo.// Talvez estivesse no bojo dessa mentalidade a ideia da imitatio Christi, que não era simples
cópia do comportamento de Cristo, mas uma ascese que implicava na assimilação e na imitação pessoal do modelo
da santidade cristã.//O medievalista Jacques le Goff menciona sempre o fato de que, naquela época (cujas trevas
são mais nossas do que dela...), os professores e artistas usavam as fontes cristãs e greco-latinas com a liberdade de
quem realmente podia apropriar-se, sem falsos escrúpulos, do que lhes parecia inspirador.// Não era, portanto, imi-
tação pura e simples, mas plágio criativo. No século XII, por exemplo, John of Salisbury ensinava explicitamente
aos seus alunos que o segredo da filosofia e do escrever bem estava em ler os grandes mestres do passado e redigir
como se os estivessem encarnando num novo contexto histórico.//Mais do que meramente copiar, o escritor pres-
tava uma homenagem ao imitado, dizendo, nas entrelinhas, que só o imitava porque nele encontrara um valor...
inimitável.//O poeta Décio Valente publicou em 1986 um livro intitulado O plágio, em que faz uma arguta, e por
vezes paranóica... identificação de cópias conscientes ou inconscientes, voluntárias ou involuntárias, mal feitas ou
magistrais, de pensamentos, versos, poemas inteiros, cópias realizadas por autores conhecidos ou desconhecidos,
geniais ou medíocres...//(PERISSÉ, Gabriel. O conceito de plágio criativo. Revista Técnica do Instituto de Ensino
e Pesquisa (IPEP). São Paulo, v. 3, n. 1/2, p. 73-88, jan./dez. 2003. Disponível em: <http://www.ipep.edu.br/portal/
publicacoes/revista/revista/abertura.pdf> Tb.: <http://www.hottopos.com/videtur18/gabriel.htm>.
17 Cf.: “Físicos acusados de plágio publicam errata de artigo”. Folha de S. Paulo, Cad. Ciência, 14/09/2007.

105
InIcIação à considera que o orientador não tem o direito de reivindicar co-autoria nos trabalhos
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do de seus orientandos. Deveria estar claro no contrato de pesquisa que a função do
conhecImento
orientador é ‘orientar’ (lembrando a função da bússola) e não ‘fazer’ a pesquisa com
ou no lugar do orientando, bem como também a redação do texto contendo os re-
sultados. Evidentemente, cada orientador tem um estilo de orientação, cada um es-
tabelece uma distância psicopedagógica maior ou menor em relação ao ‘lugar’ do
orientando, para que ele possa conquistar um estilo e desenvolver sua autonomia de
fazer a pesquisa. Cabe ao orientador, contudo, se pode perder o foco: a pesquisa é do
aluno-iniciante, é seu investimento intelectual, e a produção de artigos e monografia é
de sua inteira responsabilidade.
Todavia, surge outro problema que costuma ser debatido na organização dos even-
tos acadêmicos e científicos e conselhos das revistas: afinal, os orientadores podem rei-
vindicar co-autoria nos trabalhos de seus orientandos? Pensamos não ser adequado o
orientador reivindicar co-autoria nos artigos em vias de publicação simplesmente por-
que o trabalho do professor-orientador é de ensino-orientação. Ainda que em alguns
textos o orientador necessite interferir muitas vezes com o propósito de melhorá-los, a
ideia inicial é do aluno-orientando, e lembramos mais uma vez que ele é o sujeito que
conduziu o processo da pesquisa. Consideramos ser uma atitude mesquinha, na con-
tramão da ética, o orientador que reivindica co-autoria nos artigos parciais e trabalhos
de conclusão da pesquisa.
Paiva (2005, p. 43-61) entende ser possível uma co-autoria, desde que justificada
em termos de participação substancial no planejamento, execução e publicação da
pesquisa. Na verdade, a autora segue a recomendação do grupo de Vancouver18:

O crédito à autoria deveria levar em conta apenas as contribuições substanciais:


1) para a concepção e planejamento, ou análise e interpretação dos dados; e
2) em forma de rascunho do artigo ou revisão crítica com conteúdo intelectual
importante; 3) com aprovação final da versão a ser publicada. As condições 1, 2,
e 3 devem ser respeitadas. A participação apenas na captação de recursos ou na
coleta de dados não justifica a autoria. A supervisão geral de grupo de pesquisa
não é suficiente para se ter autoria.

à GuIsa de concLusão: proBLemas da ÉtIca na


pÓs-modernIdade
Como vimos até aqui, a ética é a reflexão que orienta os seres humanos como agir
bem nas várias situações. Uma dessas situações é a pesquisa científica. Por conseguinte,

18 Grupo de Vancouver (Canadá) é composto informalmente de editores de periódicos de clínica geral, foi fundado
em 1978, para estabelecer normas para os manuscritos a serem submetidos aos seus periódicos.

106
a ética deve guiar tanto o processo de produzir conhecimentos quanto o de usá-lo ou pesquisar com ética

aplicá-lo para o bem comum.


O sociólogo e pensador da ciência Boaventura Sousa Santos (2003) prevê um novo
paradigma científico com base em sua sensocomunicação e emancipação da socie-
dade, visto que muitos grupos sociais ainda estão à margem dos seus benefícios.
Assim, as conquistas da ciência não devem ficar na mão de uns poucos que podem
pagar pelas suas descobertas e invenções tecnológicas, mas devem proporcionar ‘uma
vida decente’ para todos. Por exemplo, as descobertas da biomedicina hoje são de-
correntes de investimento econômico das grandes empresas, cujo interesse é o lucro;
cabem aos governos e às diversas organizações não-governamentais exigirem o aces-
so às descobertas científicas e inovações tecnológicas, isto é, as próprias empresas e
projetos de pesquisas devem ser orientados segundo o princípio ético da igualdade e
solidariedade, que é também base do ideal moderno de justiça.
No “mundo contemporâneo, não é mais possível dizer que a pesquisa científica
esteja isenta de comprometimentos éticos, e nem fundar juízos éticos apenas sobre
resultados empíricos” (MATHEUS, 2005).
Questionamos: como reinventar, atualizar e aplicar princípios da ética em uma
ciência cada vez mais complexa? Os cientistas são senhores de suas pesquisas, mas
essas muitas vezes “estão a serviço de outras instâncias decisórias: os não-cientistas,
empresários, políticos, militares etc. que detêm o poder de aprovar ou não os seus
resultados e os aplicarem de acordo com seus interesses” (FREIRE-MAIA, 1997, p. 128-
9); como exercer, então, a autonomia na pesquisa? Como proceder eticamente em
uma sociedade complexa e em transformação constante? É, ainda, possível se pensar
em ética em uma sociedade em que os valores são relativizados, e os novos costumes
dão a impressão de: ‘caos moral’, ‘falta de comprometimento’, ‘compromisso fraco’,
‘individualismo’, ‘império do efêmero’, ‘perda do amor pela verdade’ etc.
Esses são os sintomas da pós-modernidade, que na ótica de alguns autores “não é
boa nem má” (KERBS, 2003). Porque buscar um estilo de vida saudável, curtir a vida,
cuidar do meio ambiente, lutar contra a violência e as discriminações, evitar criticar o
estilo de vida do outro, denunciar atos corruptos, lutar pelos direitos dos homosse-
xuais, as mulheres escolherem o que fazer com seu corpo são ações fundadas em uma
ética ou moral de nossa época denominada pós-moderna.
A discussão ética na contemporaneidade, embora ainda fazendo parte do projeto
iniciado na modernidade, escapa dos parâmetros traçados por esta, desde o século
XVII. Ou seja, há autores que consideram que o “pós-modernismo é uma época de
pós-moralidade porque despreza valores incondicionados mais elevados, tais como
serviço em prol de outrem e abnegação” (KERBS, 2003).

107
InIcIação à Enquanto que a modernidade, no século XVII, forjou a ética baseada nos valores
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do como trabalho, economia, ciência, tecnologia, nas grandes teorias otimistas para ex-
conhecImento
plicar tudo, a pós-modernidade, por sua vez, parece desacreditar desses valores. A
fórmula baconiana “conhecer é poder” é por ela repensada e relativizada; afinal, o co-
nhecimento usado pelo poder econômico vem conduzindo a humanidade a se indagar
se o planeta sobreviverá aos efeitos dessa ciência e tecnologia com base no lucro-pe-
lo-lucro. O conceito de know how, o direito de patentes atualmente são questionados
como fundados em interesses meramente utilitaristas e capitalistas, já que trouxeram
pouco benefício para a humanidade.
Para Zigmunt Bauman (2000, 2007a, 2007b), a pós-modernidade, no fundo, é a
continuação da própria modernidade, mas “sem as ilusões e promessas que os seus
profetas nos fizeram acreditar”. A descrença atual de que uma grande teoria pudesse
explicar tudo e projetar uma sociedade igualitária, o declínio do culto ao progresso,
a ascensão do irracionalismo em suas versões religiosa-fundamentalista, a indiferença
própria do individualismo e das instituições etc., representam, no fundo, “uma espécie
de Renascimento dos ideais banidos e cassados por nossa modernidade racionalizado-
ra” ( JAPIASSU, 2001, p. 56).
A modernidade via no trabalho, na ciência e na tecnologia os meios para o ser hu-
mano – ou a coletividade – conquistar o progresso, a liberdade, a autonomia, a saúde,
a vida boa e feliz. Na pós-modernidade, em vez dos valores voltados para o coletivo,
preponderam os valores individualizados de amor, felicidade, prazer, auto-realização.
Na realidade, “tais valores são precários e transitórios; trata-se não mais de uma cultura
comprometida com a história em movimento, mas sim com a atualidade, o aqui-agora,
bem como o seu modo de participação é lúdico-estético, seu modo de consumo é
profano, sua relação com o mundo é realista” (MORIN, 1969).
Na pós-modernidade, segundo Harvey (1993), não podemos conceber o indivíduo
alienado no sentido marxista clássico, porque ser alienado pressupõe um sentido de
eu coerente, não fragmentado, do qual se aliena. O modernismo dedicava-se muito
à busca de futuros melhores, mesmo que a frustração perpétua desse alvo levasse à
paranóia. Mas o pós-modernismo tipicamente descarta essa possibilidade ao concen-
trar-se nas circunstâncias esquizofrênicas induzidas por uma fragmentação e por todas
as instabilidades (inclusive linguísticas) que nos impedem até mesmo de representar
coerentemente, para não falar de conceber estratégias para produzir, algum futuro
radicalmente diferente. Ou seja, nesse contexto, como forjar uma ética universal?
Em síntese, a pós-modernidade não confia na razão, nem na ideia de progresso,
em valores universais, em neutralidade moral, no paradigma da ‘ciência moderna’,
que conforme alguns autores já se exauriram. Possivelmente também há ceticismo

108
sobre uma ética nas pesquisas científicas. Embora a vida e o próprio tempo estejam pesquisar com ética

se liquefazendo (BAUMAN, 2007), a pós-modernidade tende a supervalorizar a sub-


jetividade (em vez da objetividade científica), a ‘imagem’ – a que domina a realidade
(Lipovesky) – investe em uma sociedade mais ocupada com o “espetáculo” (DEBORD,
1997). Assim, o espírito pós-moderno supervaloriza o estético e é displicente para
com a ética, minimiza a austeridade e maximiza o hedonismo, é frouxo na cobrança da
disciplina, mas exalta a tolerância, enfim, não sabemos que tipo civilização está sendo
reconstruída com esses princípios.
Zizek (1999) afirma que a sociedade “pós-modernista, que aparenta ser hedonista
e permissiva, na realidade é saturada de normas, regulamentos e obrigações que visam
a promover nosso bem-estar”. A obrigação de se divertir, de ‘curtir a vida adoidado’,
“como se isso fosse uma espécie de dever, e, consequentemente, se sentem culpados
quando não são felizes...” são efeitos do superego pós-moderno, que em Freud era
uma instância estritamente moral. Para o autor, o superego pós-moderno impõe uma
obrigação ao gozo: “Desfrute!”, “Você pode!”, “Você pode violar, desde que justifique
ser moral”, “Você deve cumprir seu dever e deve sentir prazer em fazê-lo”. Ou seja, “o
superego [pós-moderno] controla a zona na qual esses dois opostos se sobrepõem e
na qual a ordem de sentir prazer em cumprir seu dever coincide com o dever de sentir
prazer” (ZIZEK, 1999).
Um dos sintomas-reflexo da nova moralidade é a ‘razão e a moral cínicas’ (ZIZEK,
1990). Surge, então, uma conduta transgressiva dos valores modernos, que quer ser
reconhecida como ‘moral’. A ação cínica pretende “construir uma justificativa ‘moral’
para seus atos imorais ou até perversos”19.
Se fizer sentido o ponto de vista que entende que a humanidade perdeu o amor
pela verdade, que não mais acredita em valores universais, que a ética e a moral estão
se liquefazendo, então como pensarmos em uma ética orientada para as pesquisas
científicas? E será que podemos acreditar em uma ética? Ainda que pareçamos pessi-
mistas nesses questionamentos, cumpre-nos ser otimistas nas ações baseadas em uma
ética pela vida e pelo bem comum.

19 Zizek (1999, 2004) cita o escabroso caso dos necrófilos, nos EUA, que se julgam no “direito” de fazer sexo com
cadáveres. Ou seja, qualquer cadáver é “um potencial parceiro sexual ideal de sujeitos ‘tolerantes’ que tentam evitar
toda e qualquer forma de molestamento: por definição, não há como molestar um cadáver” (Tb.: “Para entender o
pós-modernismo”. Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.br/035/35eraylima.htm>.

109
InIcIação à
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do
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proposta de atividades

1) Por que o ser humano precisa de ética? Por que as pesquisas devem respeitar a ética e os
protocolos?
2) A ética por si pode garantir que as pesquisas contribuam para o bem coletivo? Argumente.
3) Cite e comente sobre um problema ético que pode comprometer a aprovação de um pro-
jeto de pesquisa educacional.

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pesquisar com ética

sugestões de Filmes

Sugestões de filmes que abordam o problema da ética na escola e na educação:

• Escritores da liberdade: discute a ausência de sonhos na geração atual, os grupos infor-


mais e gangs; propõe como saída a leitura e a redação das vivências cotidianas dos alunos.

• Primavera de uma solteirona: discute qual é a função ética do professor(a): ensinar,


instruir, educar ou doutrinar?

• Meu mestre, minha vida: discute o professor entre a autoridade e o autoritarismo para
resgatar uma escola tomada pela barbárie.

• Nenhum a menos: filme chinês que revela a pobreza da escola no campo, as contradi-
ções entre o socialismo real e os valores capitalistas, o papel messiânico da televisão e o
comprometimento da professora de não perder nenhum aluno.

• Ao mestre com carinho: um filme clássico sobre escola; discute o racismo, a indisciplina
e a rebeldia adolescente.

• Os incompreendidos: autobiográfico, o diretor questiona a escola tradicional, seus va-


lores e sua opção de vida.

• Madadayo: professor em final de carreira consegue fazer dos alunos um grupo de amigos
até o final da vida.

• A onda (The wave): uma experiência pedagógica que reproduz os valores nazi-fascistas
em uma escola norte-americana.

• Acusação: baseado em um caso verídico, professores sofrem os efeitos de uma fal-


sa denúncia de pedofilia, bem como os sucessivos julgamentos durante dez anos.

• Escola da desordem: aluno processa a escola por ter sido aprovado sem saber ler e
escrever.

• O senhor das moscas: baseado no livro homônimo, depois de sofrer acidente, crianças e
adolescentes tentam conviver numa ilha sem o comando de adultos. Será que eles repro-
duzem os valores e regras de convivência adquiridos da civilização?

113
InIcIação à
cIêncIa e à pesquIsa
a construção do
conhecImento anotações

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