Você está na página 1de 68

INTRODUÇÃO AOS

ESTUDOS LITERÁRIOS
EDITORA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ

REITOR: Prof. Dr. Mauro Luciano Baesso

VICE-REITOR: Prof. Dr. Julio César Damasceno

DIRETORA DA EDUEM: Profa. Dra. Terezinha Oliveira


EDUEM - EDITORA DA
UNIV. ESTADUAL DE MARINGÁ EDITORA-CHEFE DA EDUEM: Profa. Dra. Sonia Silva Marcon


Av. Colombo, 5790 - Bloco 40
CONSELHO EDITORIAL
Campus Universitário

87020-900 - Maringá - Paraná

Fone: (0xx44) 3011-4103 PRESIDENTE: Profa. Dra. Terezinha Oliveira


Fax: (0xx44) 3011-1392
EDITORES CIENTÍFICOS: Profa. Dra. Ana Lúcia Rodrigues
http://www.eduem.uem.br

eduem@uem.br Profa. Dra. Angela Mara de Barros Lara

Profa. Dra. Analete Regina Schelbauer

Prof. Dr. Antonio Ozai da Silva

Profa. Dra. Cecília Edna Mareze da Costa

Prof. Dr. Eduardo Augusto Tomanik

Profa. Dra. Elaine Rodrigues

Profa. Dra. Larissa Michelle Lara

Prof. Dr. Luiz Roberto Evangelista

Profa. Dra. Luzia Marta Bellini

Prof. Me. Marcelo Soncini Rodrigues

Prof. Dr. Márcio Roberto do Prado

Prof. Dr. Mário Luiz Neves de Azevedo

Profa. Dra. Maria Cristina Gomes Machado

Prof. Dr. Oswaldo Curty da Motta Lima

Prof. Dr. Raymundo de Lima

Profa. Dra. Regina Lúcia Mesti

Prof. Dr. Reginaldo Benedito Dias

Profa. Dra. Rozilda das Neves Alves

Prof. Dr. Sezinando Luiz Menezes

Profa. Dra. Valéria Soares de Assis

EQUIPE TÉCNICA
FLUXO EDITORIAL Edneire Franciscon Jacob

Mônica Tanamati Hundzinski

Vania Cristina Scomparin

PROJETO GRÁFICO E DESIGN Luciano Wilian da Silva

Marcos Kazuyoshi Sassaka

Marcos Roberto Andreussi

MARKETING Marcos Cipriano da Silva

COPYRIGHT © 2016 EDUEM

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, COMERCIALIZAÇÃO Gerson Ribeiro de Andrade
por qualquer processo mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a
Paulo Bento da Silva
autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos reservados desta

edição 2016 para a editora.


Solange Marly Oshima
FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM LETRAS - EAD

Luzia Aparecida Berloffa Tofalini


Márcio Roberto do Prado

Introdução aos
Estudos Literários

34
Maringá
2012
Coleção Formação de Professores em Letras - EAD

Apoio técnico: Rosane Gomes Carpanese


Edna Barbosa Bergstron
Normalização e catalogação: Ivani Baptista CRB - 9/331
Revisão Gramatical: Maria Regina Pante
Ana Cristina Jager Hintze
Produção Editorial: Carlos Alexandre Venancio
Eliane Arruda

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Tofalini, Luzia Aparecida Berloffa


T666i Introdução aos estudos literários / Luzia Aparecida Berloffa Tofalini, Márcio
Roberto do Prado. -- Maringá: Eduem, 2012.
68 p. ; 21 cm. (Coleção formação de Professores em Letras EAD; v. 34).

ISBN 978-85-7628-515-1

1. Literatura - História e crítica. 2. Crítica literária. I. Prado, Marcio roberto.

CDD 21. ed. 801

Copyright © 2012 para o autor


1a reimpressão - 2016 - Revisada
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo
mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos
reservados desta edição 2012 para Eduem.

Endereço para correspondência:

Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringá


Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 - Campus Universitário
87020-900 - Maringá - Paraná
Fone: (0xx44) 3011-4103 / Fax: (0xx44) 3011-1392
http://www.eduem.uem.br / eduem@uem.br
S umário

Sobre as autores > 7

Apresentação da coleção > 9

Apresentação do livro > 11

CAPÍTULO 1
Literatura
> 13

CAPÍTULO 2
O gênero lírico > 23

CAPÍTULO 3
O gênero épico > 35

CAPÍTULO 4
O gênero dramático > 51

EPÍLOGO
Para onde vai a literatura?
> 61

5
S obre as autores

Luzia Aparecida Berloffa Tofalini


Possui doutorado em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mes-

quita Filho - Unesp, mestrado em Letras pela Universidade Estadual de Londrina

- UEL -, especialização em literaturas de língua Portuguesa - Fafiman - Facul-

dade de Ciências e Letras de Mandaguari, e graduação em Letras pela Uni-

versidade Estadual de Maringá - UEM. Atualmente é professora do Programa

de Pós-Graduação em Letras - PLE - da Universidade Estadual de Maringá.

Márcio Roberto do Prado


Possui graduação em Letras (Português-Francês-Italiano) pela Unesp/Ara-

raquara e doutorado em Estudos Literários pela mesma instituição, com

período de doutorado-sanduíche pela Université de Paris VIII. Atualmente

é Professor Adjunto do Departamento de Letras da Universidade Estadual de

Maringá e desenvolve pesquisa no âmbito do ciberespaço e da cibercultu-

ra, enfocando, sobretudo, a possibilidade de uma poética do ciberespaço a

partir dos conceitos de “cultura colaborativa”, “inteligência coletiva” e “cultu-

ra da convergência”. Dentre os autores com os quais dialoga de modo mais

direto em suas pesquisas, destacam-se Jean Baudrillard, Pierre Lévy e Henry

Jenkins. Contudo, além do interesse específico e atual nessa área, possui ex-

periência nos seguintes temas: gênio, diabo, crítica e teoria da literatura. É

co-organizador do livro Margens instáveis: tensões entre teoria, crítica e histó-

ria da literatura (2011), além de autor de artigos para periódicos especializados

e capítulos de livros relacionados com seu campo de atuação. É membro dos

grupos de pesquisa “CELLE – Centro de Estudos de Literatura, Leitura e Escri-

ta: História e Ensino”, “Grupo Interdisciplinar de Pesquisa Jean-Jacques Rous-

seau” e “Vertentes do fantástico na literatura”, cadastrados junto ao CNPq.

7
A presentação da Coleção

Os 54 títulos que compõem a coleção Formação de Professores em Letras fazem


parte do material didático utilizado pelos alunos matriculados no Curso de Licenciatu-
ra em Letras, habilitação dupla, Português-Inglês, na Modalidade a Distância, da Uni-
versidade Estadual de Maringá (UEM). O curso está vinculado à Universidade Aberta
do Brasil (UAB) que, por seu turno, faz parte das ações da Diretoria de Educação a
Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior
(Capes).
A UEM, na condição de Instituição de Ensino Superior (IES) proponente do curso,
assumiu a responsabilidade da produção dos 54 livros, dentre os quais 51 títulos fica-
ram a cargo do Departamento de Letras (DLE), 2 do Departamento de Teoria e Prática
da Educação (DTP) e 1 do Departamento de Fundamentos da Educação (DFE). O pro-
cesso de elaboração da coleção teve início no ano de 2009, e sua conclusão, seguindo
o cronograma de recursos e os trâmites gerais do Fundo Nacional de Desenvolvimento
da Educação (FNDE), está prevista até 2013. É importante ressaltar que, visando a
atender às necessidades e à demanda dos alunos ingressantes no Curso de Graduação
em Letras-Português/Inglês a Distância, da UEM, no âmbito da UAB, nos diferentes
polos, serão impressos 338 exemplares de cada livro.
A coleção, não obstante a necessária organicidade que aproxima e estabelece a
comunicação entre diferentes áreas, busca contemplar especificidades que tornam o
curso de Letras uma interessante frente de estudos e profissional. Deste modo, as
três principais instâncias que compõem o curso de Letras na modalidade a distância
(Língua Portuguesa, Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa e
Língua Inglesa e Literaturas Correspondentes) são contempladas com livros que
são organizados tendo em vista a construção do saber de cada área. Semelhante cons-
trução não apenas trabalha conteúdos necessários de modo rigoroso tal como seria
de esperar de um curso universitário, como também atua decisivamente no sentido de
proporcionar ao aluno da Educação a Distância a autonomia e a posse do discurso de
modo a realizar uma caminhada plenamente satisfatória tanto em sua jornada acadê-
mica quanto em sua vida profissional posterior. Isso só é possível graças à competência

9
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos e comprometimento dos organizadores e autores dos livros dessa coleção, em sua
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários maior parte ligados aos departamentos da Universidade Estadual de Maringá envol-
vidos neste curso, além de convidados que enriqueceram a produção dos livros com
sua contribuição. A excelência e a destacada contribuição científica e acadêmica desses
autores e organizadores são outros elementos que garantem a seriedade do material
e reforça a oportunidade que se abre ao aluno da Educação a Distância. Além disso, o
material produzido poderá ser utilizado por outras instituições ligadas à Universidade
Aberta do Brasil, abrindo uma perspectiva nacional para os livros do curso de Letras
a Distância.
Além do trabalho desses profissionais, essa coleção não seria possível sem a con-
tribuição da Reitoria da UEM e de suas Pró-Reitorias, do Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes da UEM e seus respectivos representantes e departamentos, da Diretoria
de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do
Ensino Superior (Capes) e do Ministério da Educação (MEC). Todas essas esferas, de
acordo com suas atribuições, foram de suma importância em todas as etapas do traba-
lho. Diante disso, é imperativo expressar, aqui, nosso muito obrigada.
Por último, mas não menos importante, registramos nosso agradecimento especial
à equipe do NEAD-UEM: Pró-Reitoria de Ensino, Coordenação Pedagógica e equipe
técnica, pela dedicação e empenho, sem os quais essa empreitada teria sido muito
mais difícil, se não impossível.

Rosângela Aparecida Alves Basso
Organizadora da coleção

10
A presentação do livro

Este livro justifica seu título: Introdução aos Estudos Literários. Uma afirmação
como essa, que deveria ser óbvia, faz-se necessária devido ao fato de as ditas “introdu-
ções” ao tema incorrerem, não raras vezes, em dois problemas fundamentais: ora seu
nível não condiz com aquele que se espera de um texto introdutório, ora não leva em
consideração o atual cenário da literatura em termos acadêmicos, artístico-culturais e
comunicacionais. Com relação ao primeiro aspecto, é preciso sempre ter em mente os
objetivos e as estratégias que norteiam a produção de qualquer material com fins didá-
ticos, sem subestimar os envolvidos nem desconsiderá-los egoisticamente em nome de
uma pretensa “excelência”. Já com relação ao segundo aspecto, não se trata de repetir
a velha cantilena das “várias opções” que concorrem com a literatura (demonizadas, de
modo geral), tampouco de iniciar a série de lamentações a respeito do novo leitor que,
paradoxalmente, não lê. Assim, essa Introdução assume sua natureza e seus limites
sem receios ou pudores.
A fim de cumprir seu papel, o livro se organiza de modo claro e didático. O capítu-
lo 1, Literatura, apresenta nosso objeto de estudos de modo específico, levando em
conta aspectos relevantes, como o conceito de literatura, as diferenças entre o texto
literário e o texto não literário, aspectos que possam embasar a distinção, tais como a
conotação e a denotação e, por fim, apresenta os gêneros literários, expressão e con-
ceito de suma importância para um estudante de Letras.
O segundo capítulo, O gênero lírico, versa sobre o primeiro dos gêneros a serem
trabalhados aqui. Visando oferecer ao estudante alguns elementos básicos para o es-
tudo do gênero, o enfoque cairá em alguns dos elementos do poema, tais como rima,
métrica, ritmo, além de alguns aspectos essenciais para a definição da lírica.
Em seguida, no terceiro capítulo, O gênero épico, o mesmo procedimento será apli-
cado às narrativas em geral. Para tanto, as categorias narrativas, como enredo, tempo,
espaço, personagem e foco narrativo serão abordadas, servindo de base para a análise
literária.
Fechando os gêneros, o capítulo quatro, O gênero dramático, versará sobre a pro-
dução dessa divisão dos estudos literários, também levando em consideração alguns

11
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos de seus aspectos fundamentais, tais como a relação entre texto dramático e espetáculo.
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários Além disso, o estudo do gênero dramático abrirá espaço para o início das reflexões
mais problematizadoras sobre os limites dos gêneros e mesmo da literatura em relação
a outras artes.
Por fim, um breve Epílogo tecerá considerações sobre o papel do estudante de
Letras em relação à literatura, seja como pesquisador, seja como disseminador, levan-
do-se em conta seu papel como educador e a realidade em sala de aula. Após esse
percurso, estaremos prontos para um mergulho mais pormenorizado no tema, ques-
tionando definições, desmontando preconceitos e exercitando o pensamento crítico.
Em suma, fazendo aquilo que se espera de intelectuais como nós, mesmo em tempos
tão duvidosos e imprecisos como aquele em que vivemos.

Luzia Aparecida Berloffa Tofalini e


Márcio Roberto do Prado
Autores

12
1 Literatura

PRIMEIRAS PALAVRAS
Ao revelar o ser profundo do homem, o texto literário constitui-se um signo do
mundo. Fruto da cosmovisão do artista e pacto com o contemplado, ele vem preen-
cher o espaço da necessidade do belo e do grandioso aspirado pelo espírito humano.
Com as palavras é possível exprimir sentimentos, ideias e sonhos. É do arranjo de-
las que nasce a literatura. A obra de arte literária, seja em prosa ou em verso, constitui
um riquíssimo e valioso mundo de emoções, ideias, acontecimentos, seres, lugares e
épocas. Ler é reconstruir o texto por meio de um processo de atribuição de significa-
dos, porque a leitura consiste no encontro de dois mundos: o do leitor e o da obra. É
na fusão desses dois contingentes que se encontra a construção do real.
A leitura do texto literário é um processo que envolve mecanismos de decodifica-
ção e acionamento dos conhecimentos de que o leitor dispõe. Esse processo o con-
duz para a interpretação do mundo. Trata-se de uma atividade dinâmica que implica
reconstruir significados.
Intencionamos, com este capítulo, oferecer ao estudante do Curso de Letras, mo-
dalidade a Distância, conhecimentos básicos para a leitura de textos literários. Orga-
nizando essa parte em tópicos, pretendemos tornar mais produtivo o estudo. Eis o
motivo pelo qual o tópico está dividido em: texto literário e texto não-literário; níveis
de significação das palavras - denotação e conotação; conceito de literatura; e gêneros
literários. Cabe ressaltar que o estudo dos textos e as análises serão aprofundados em
outros capítulos deste livro e em outras disciplinas.

TEXTO LITERÁRIO E TEXTO NÃO-LITERÁRIO


Imaginemos um texto como o seguinte:

Perigo para a saúde


Na panificadora ZRT, a vigilância sanitária encontrou muitos sonhos estraga-
dos. Eles foram recolhidos e a confeitaria foi multada.

13
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos Observemos que o texto contém uma notícia. Nele, a palavra “sonho” está empre-
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários gada em um dos sentidos que ela tem no dicionário (denotação), ou seja, o nome de
um doce, uma comida. Sonho é um bolo muito fofo, feito de farinha e ovos, coberto
com açúcar. Na confeitaria, por algum motivo, os sonhos deterioraram-se. O fato con-
tido na notícia realmente pode ter acontecido. É possível comprovar. Trata-se de uma
linguagem que não oferece diversidade de significados, nem de interpretação.
Examinemos agora o poema, abaixo, de Raimundo Correia:

As Pombas...
Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada...

E à tarde, quando a rígida nortada


Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam,


Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,


Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...
(apud MOISÉS, 1998, p. 239)

É possível verificar que as palavras foram escolhidas e estão dispostas no poema de


modo original. Por exemplo, no verso /E à tarde, quando a rígida nortada/ o sentido
só se completa com a leitura do verso seguinte: /Sopra, aos pombais de novo elas,
serenas/. O primeiro verso, aqui citado, deixa em suspenso qual é a ação de “rígida
nortada” e é preciso apreender o conteúdo do verso seguinte para saber que a ação é
a de soprar. Há, também, um conjunto formado pelas palavras “pombas” e “sonhos”.
Uma depende da outra e, ainda, da associação de outros elementos ligados a elas para
a significação final. O vocábulo “sonho” deixa de ter apenas sentido de dicionário e
adquire nova significação. A palavra está empregada em sentido figurado (conotação)

14
no soneto. Nele, ela adquire categoria simbólica. Não se refere a bolo nem à associa- Literatura

ção de imagens formadas no sono. Não se refere também às ideias acalentadas (ideal).
Aqui, a palavra sugere ilusão, fantasia, devaneio e outros significados que possam ser
atribuídos pelo leitor. No poema, os sonhos voam e fogem, ações que sonhos (em
sentido denotativo) não têm autonomia para realizar. Além disso, o conjunto formado
por ritmo, rimas, palavras empregadas em sentido figurativo, associações de ideias,
etc., desperta sentimentos, gera emoções.
Como podemos ver, o texto literário difere, por exemplo, do texto jornalístico.
Este, por se configurar como texto referencial, admite apenas uma linha de leitura. O
texto literário, por sua vez, é artístico e oferece várias possibilidades de leitura.

Níveis de significação das palavras: denotação e conotação


As palavras possuem níveis de significação. No texto jornalístico, “Perigo para a saú-
de”, as palavras foram empregadas em sentido comum, literal (denotativo) e, por isso,
não permitem mais de uma interpretação. Já no soneto “As Pombas”, a adolescência é
azul, os sonhos têm asas e podem voar e fugir.
Se as palavras são empregadas em sentido de dicionário, elas estão no nível da DE-
NOTAÇÃO. Trata-se de uma mensagem objetiva, com abertura para apenas uma linha
de interpretação. Quando são utilizadas em sentido figurativo, ou seja, diferente do
sentido próprio delas, elas estão no nível da CONOTAÇÃO. A conotação, juntamente
com a função poética da linguagem, é muito utilizada nos textos literários.

Quadro das diferenças entre denotação e conotação.

DENOTAÇÃO CONOTAÇÃO

Palavra com significação restrita Palavra com significação ampla

Palavras cujos sentidos extrapolam o sen-


Palavra no sentido comum de dicionário
tido comum

Palavra utilizada de modo objetivo Palavra utilizada de modo artístico

Linguagem exata e precisa Linguagem rica e expressiva

O texto admite apenas uma interpretação O texto admite várias interpretações

FONTE: (CEREJA; MAGALHÃES, 1995, p. 8).

O poético (o literário), de fato, mostra-se na linguagem. O crítico e escritor Ezra


Pound (1995, p. 32) define literatura da seguinte forma: “Literatura é a linguagem

15
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos carregada de significado. Grande Literatura é simplesmente linguagem carregada de
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários significado até ao máximo grau possível”.
Existem três meios principais para se carregar de sentido a linguagem, no mais alto
grau possível (POUND, 1995, p. 63):

1) projetar o objeto (fixo ou em movimento) na imaginação visual;


2) produzir correlações emocionais por intermédio do som e do ritmo da fala;
3) produzir ambos os efeitos, estimulando as associações (intelectuais e emo-
cionais) que permaneceram na consciência do receptor em relação às palavras
ou grupos de palavras efetivamente empregados.

É possível observar no poema a seguir, de Cruz e Sousa, uma linguagem energizada


a altíssimo grau:

Acrobata da Dor
Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,


agita os guizos, e convulcionado
salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta...

Pedem-te um bis e um bis não se despreza!


Vamos! Retesa os músculos, retesa
nessas macabras piruetas d’aço...

E embora caias sobre o chão, fremente,


afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço.
(MOISÉS, 1998, p. 312)

gavroche – do francês, significa “moleque”, “criança travessa”


Clown – do inglês, significa “palhaço”.

O poema está carregado de significação. Há uma comparação entre o palhaço (ar-


tista de circo) e o coração (órgão humano). Se projetarmos os dois elementos na

16
imaginação, é possível visualizar um palhaço no picadeiro dando cambalhotas e diver- Literatura

tindo o público, ao mesmo tempo em que é possível imaginar o coração bombeando o


sangue no cérebro (projetar o objeto – item 1 do estudo de Ezra Pound).
A produção de correlações emocionais por intermédio do som e do ritmo da
fala (item 2) é facilmente observável no soneto. O número de sílabas poéticas (a
métrica) estabelece um ritmo que sugere o som das batidas do coração. Isso fica mais
evidente se o texto for lido em voz alta. As repetições de sons vocálicos (assonância)
colaboram para o sentido do texto. Por exemplo, a repetição da letra “i”, na palavra
“tristíssimo”, sugere sofrimento. As letras ô, ê, i, u são vogais fechadas. Seu uso é
recorrente em textos literários cuja temática explora a dor, a solidão, o desespero
do ser. As repetições de sons consonantais (aliterações), por exemplo, a repetição da
letra “s”, perceptível em toda a composição, sugere a passagem do tempo de modo
lento, o que é reiterado pelo verso /pelo estertor dessa agonia lenta/. A presença
do aflautamento (sons nasalizados) é evidente em todos os versos. Trata-se de um
recurso da expressão poética que consiste em demonstrar, por meio da utilização de
fonemas com sons nasais, o lamento do ser que sofre. Dessa forma, a dor transparece
nos sons nasalizados das letras “n” e “m”, que permeiam todo o texto, e nas palavras
“chão” e “coração”. Na leitura em voz alta, percebemos uma espécie de choro atrás
das palavras de cada verso.
O terceiro meio, descrito por Ezra Pound, conjuga os dois primeiros e estimu-
la as associações de ideias e sentimentos, concorrendo para a significação plena do
texto literário Acrobata da dor. Entre a figura do palhaço e o coração humano são
estabelecidas relações de semelhança. Assim como o palhaço que, embora estando
triste, é obrigado a entrar em cena para divertir a plateia, o coração precisa “retesar os
músculos” e enfrentar a vida, porque o sofrimento sempre pede “bis”. É que a dor, a
aflição e o desespero existencial do homem se apresentam nas mais diversas situações
e fases da vida. No soneto, assim como o palhaço precisa rir, “num riso de tormenta”,
embora esteja amargurado, o coração humano, símbolo da totalidade do ser, deve rir,
não obstante as dificuldades sejam tantas que o fazem se afogar no próprio sangue.
Se o palhaço é triste, o coração é “tristíssimo”. Essa palavra (no superlativo absoluto
sintético) sugere o grau, elevado à última potência, do sofrimento do homem.
Todo o texto é construído com base em uma comparação e explora um elemento
do corpo humano (o coração) tomado pelo todo. Dá-se o nome de sinédoque a esse
tipo de figura (sinédoque é um tropo fundado em uma relação de proximidade e con-
siste em tomar a parte pelo todo). Assim, o coração é um órgão humano, um pedaço
do homem, mas no poema ele representa o homem inteiro.

17
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos Conceito de literatura
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários A palavra “Literatura” vem do latim litteratura, vocábulo derivado de littera, que
significa o ensino da escrita e da leitura das letras. Definir, porém, Literatura a partir
da etimologia da palavra, criada pelos latinos, não é tão fácil. Seria necessário acompa-
nhar a evolução semântica desse vocábulo que nasceu com sentido de “gramática” e
que só a partir do final do século XVIII começou a ter o sentido que tem hoje (AMORA,
1971, p. 11).
Ao longo do tempo, muitos conceitos foram elaborados por diversas pessoas (fi-
lósofos, historiadores, críticos, estudiosos, poetas). Em primeiro lugar, é necessário
esclarecer que o termo “Literatura” pode ser entendido em dois sentidos: amplo (qual-
quer obra escrita) e restrito (obra artística).
A primeira tentativa de conceituação deve-se aos filósofos gregos (conhecidos
como sofistas). Eles entendiam a palavra literatura em seu sentido mais amplo e consi-
deravam obra literária qualquer obra que obedecesse às normas de invenção (verdade
e originalidade), de disposição (variedade dentro da perfeita exposição) e de elocução
(pureza da língua, correção gramatical, clareza e harmonia). Arte literária, portanto,
para eles, consistia na realização dos preceitos estéticos da invenção, da disposição e
da elocução.
Quem primeiro fez a distinção entre sentido amplo e sentido restrito do conceito
de literatura foi Platão. Depois, Aristóteles, no livro Poética, afirmaria que literatura é
a imitação (mimese) da realidade. Para este, a obra só pode ser considerada artística se
imitar ou recriar a realidade.
Atualmente, o conceito de literatura, em sentido restrito, pode ser expresso da
seguinte forma: “Arte literária é, verdadeiramente, a ficção, a criação duma supra-reali-
dade, com os dados profundos, singulares e pessoais da intuição do artista” (FIGUEI-
REDO, [19--], p. 194). Há, portanto, um retorno ao conceito aristotélico: a literatura
é mimese.

Gêneros literários
A palavra “gênero vem do latim generu e significa família, raça, ou seja, conjunto de
seres que possuem características comuns.
O conceito de gênero literário constitui um árduo problema, desde a antiguidade
helênica, uma vez que vem sofrendo grande variabilidade. O problema fundamental
da dificuldade de conceituação do gênero advém do fato de a obra de arte ser recria-
ção da realidade, representação e transfiguração desse real. É que as concepções do
homem em relação a si mesmo e aos outros indivíduos, sua mundivisão e cosmovisão
são modificadas através dos séculos.

18
A primeira referência à questão dos gêneros, no Ocidente, coube a Platão. Ele se Literatura

esforçou por caracterizar o modo de operação, de imitação, do poeta. Para ele, “a


maneira como atuará a relação poeta-personagens determinará a possibilidade de três
gêneros” (apud COSTA LIMA, 1983, p. 237). No livro República, ele classifica as obras
em três gêneros:

• a tragédia e a comédia (o teatro);


• o ditirambo (poesia lírica);
• a poesia épica.

O pensador grego contribuiu muito para a teoria dos gêneros com sua classifica-
ção, distinguindo as três modalidades. Na antiguidade, os gêneros eram considerados
compartimentos estanques. Tinham regras fixas e pré-existiam aos escritores. Assim, as
regras deviam ser obedecidas rigorosamente. Não se admitia a mistura de gêneros. No
século XIX, época do Romantismo, houve diversas modificações no entendimento do
conceito de gêneros literários e muitas normas que regiam a criação literária deixaram
de ser aceitas.
Tradicionalmente, porém, e de acordo com o pensamento de Platão, o lírico, o
épico e o dramático são considerados três gêneros literários fundamentais. A cada um
deles correspondem, geralmente, espécies materiais de forma, em prosa e verso, ade-
quadas ao que se deseja exprimir. A essas formas literárias comumente se dá o nome
de espécies.

Quadro dos gêneros literários.

GÊNERO ESPÉCIE
soneto, canção, ode, elegia, madrigal,
Lírico (geralmente em verso)
écloga ou égloga, etc.

Epopeia
(em verso) poema
poemeto
Épico
Romance
(em prosa) novela
conto

Tragédia
Dramático (em prosa ou em verso) comédia
drama

19
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos Atualmente, entende-se que os gêneros são manifestações em contínuo movimen-
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários to. O estudioso Emil Staiger (1972, p. 161), por exemplo, nega a existência de obras
puramente líricas, épicas ou dramáticas. Para ele, não há exclusividade de lirismo em
uma poesia lírica, uma vez que ela participa, em diversos graus e modos, de todos os
gêneros, e apenas a primazia do lírico autoriza a denominação de versos líricos. Na
sua concepção, os gêneros não existem isoladamente, mas misturados. Outro teórico,
Costa Lima (1983, p. 251), também entende que “os gêneros, bem como a própria
ideia de literatura, são fenômenos dinâmicos em constante processo de mudança”.
Os gêneros possuem estreita relação com problemas de natureza estética, ética,
filosófica e social. Por isso, há dificuldade de se construir uma “única interpretação
objetiva, nítida e indiscutível do que sejam gêneros literários” (COELHO, 1993, p. 46),
até porque toda classificação traz no seu bojo a sua própria contradição.
No entanto, o gênero é exatamente a escala através da qual a obra se relaciona com
todo o universo da literatura e, desse modo, não reconhecer a existência de gênero,
na obra, equivaleria a dizer que ela não possui relações com outras obras (TODOROV,
1975, p. 12).
De qualquer forma, é difícil encontrar, a não ser na teoria, uma homogeneidade de
estilo que permita o ajustamento aos gêneros consagrados pela tradição, porque no
dizer de Costa Lima (1983, p. 255), “o conteúdo das obras passa através de uma forma
e as formas são filtros, são os gêneros literários”.

Referências

AMORA, Antônio Soares. Teoria da Literatura. 9. ed. São Paulo: Clássico-Científica,


1971.

AZEVEDO, Álvares de. Lira dos vinte anos. São Paulo: Klick, 1999.

CEREJA, W. R.; MAGALHÃES, T. C. Literatura brasileira. São Paulo: Atual, 1995.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura e linguagem. 5. ed. São Paulo: Vozes, 1993.

COSTA LIMA, Luiz. Teoria da Literatura em suas fontes. 2. ed. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1983.

20
FIGUEIREDO, Fidelino. Últimas aventuras. Rio de Janeiro: Noite, [19--]. Literatura

MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira através dos textos. 26. ed. São Paulo:
Cultrix, 1998.

POUND, Ezra. A B C da Literatura. Tradução de Augusto de Campos e José Paulo


Paes. São Paulo: Cultrix, 1995.

STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. Tradução de Celeste Aida


Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1972.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura fantástica. Tradução de Maria Clara


Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975.

Proposta de Atividades

Leia o poema a seguir.

Trindade
A vida é uma planta misteriosa
Cheia d’espinhos, negra de amarguras,
Onde só abrem duas flores puras,
− Poesia e amor...
E a mulher... é a nota suspirosa
Que treme d’alma a corda estremecida,
− É fada que nos leva além da vida
Pálidos de langor!
A poesia é a luz da mocidade –
O amor é o poema dos sentidos,
A febre dos momentos não dormidos
E o sonhar da ventura...
Voltai, sonhos de amor e de saudade!
Quero ainda sentir arder-me o sangue,
Os olhos turvos, o meu peito langue
E morrer de ternura!
(AZEVEDO, 1999, p. 212)

1) Há palavras empregadas em sentido conotativo no poema. Identifique-as. No contexto,


quais significados poderiam ser atribuídos a elas?
2) Há muitas metáforas no texto. Identifique-as.

21
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos 3) Os termos vida, mulher e poesia estão destacados no poema. O que essas palavras suge-
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários
rem? Leve em consideração que elas formam um conjunto com outros recursos da expres-
são poética.

Anotações

22
2 O gênero lírico

Geralmente, o gênero lírico apresenta-se sob a forma versificada. O verso, porém,


não é condição da poesia, embora tenha sido por muito tempo o caráter distintivo
entre ela e a prosa. A poesia decorre do estado emotivo ou lírico do poeta.
A palavra lírico origina-se de lira, um instrumento musical de cordas. Na Grécia an-
tiga, os poetas cantavam seus textos poéticos ao som da lira. Em Roma, as composições
eram declamadas. Mais tarde, na Idade Média, durante o período provençal, os textos
em poesia voltaram a ser cantados. No século XIV, época do Humanismo, os poetas
deixaram o instrumento musical. A poesia, entretanto, nunca perdeu a sua ligação
com a música porque ela mesma se encarrega da melodia, fazendo uso de elementos
que resultam em musicalidade, como os esquemas métricos e rítmicos, repetições de
fonemas (aliterações e assonâncias), de construções sintáticas (anáforas), de ideias e
sentimentos, entre outros recursos.
O tom lírico do texto poético advém da eclosão dos sentimentos mais íntimos da
alma. Por isso, mesmo discorrendo acerca de coisas muito simples, a linguagem da
poesia evita o comum, o instrumental e apresenta-se estranha. É que a poesia, por
possuir uma linguagem diferente, mostra-se difícil, exigente, estrangeira.
Façamos a leitura de um poema:

Suspiro d’alma
Suspiro que nasce d’alma,
Que à flor dos lábios morreu...
Coração que o não entende
Não no quero para meu
Falou-te a voz da minha alma,
A tua não na entendeu:
Coração não tens no peito,
Ou é dif ’rente do meu.

23
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos Queres que em língua da terra
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários Se digam coisas do céu?
Coração que tal deseja,
Não no quero para meu
(GARRETT, 1963, p. 312)

Como podemos ver, o próprio título, “Suspiro d’alma”, atesta o lirismo do texto.
Nada pode ser mais interior que a alma. Além disso, a palavra “suspiro” é altamente
sugestiva e dá indícios de que o poema tratará de sentimentos. A composição pertence
ao gênero lírico, ou seja, há uma eclosão da subjetividade do “eu” lírico (voz que fala
no poema), evidenciada pelo sentimento amoroso que aparece nos versos /Falou-te a
voz da minha alma,/ A tua não entendeu:/ e pela dificuldade de expor, em palavras,
as emoções mais íntimas. Essa dificuldade está explícita nos versos: /Queres que em
língua da terra/ Se digam coisas do céu?/. Nas estrofes percebemos também musica-
lidade, uma das marcas do gênero lírico. Tal pode ser comprovado nos versos de sete
sílabas (redondilhas maiores). As rimas, assonâncias, aliterações e anáforas colaboram
para a intensidade musical.
No verso /Falou-te a voz da minha alma,/ transparece o caráter confidencial e
lírico do discurso. Há uma dilatação da interioridade. Uma multiplicidade de sensa-
ções, pertencentes à profundeza do ser, anseiam por eclodir. O “eu” lírico, porém, não
encontra palavras capazes de reproduzir todo o contingente do seu “eu” mais abissal.
Nesse caso, só a linguagem da poesia pode arcar com essa tarefa. Mas ela não traduz
nada. A ela cabe unicamente o papel da sugestão. Aí está o motivo pelo qual o poeta
joga com as ideias, os sentimentos, a emoção, a musicalidade e a imagística, patentea-
dos em todo o texto.
Na imagem gerada no poema, por meio da comparação feita entre dois corações,
sobressai a beleza incomensurável da profundidade humana. Os versos da primeira
estrofe, escolhidos como exemplo, remetem ao fundo misterioso e oculto do homem,
porque somente a via da interiorização lírica possibilita esse tipo de discurso.
Além disso, devemos ter em mente que um texto lírico possui princípios orga-
nizadores específicos que marcam essa forma de linguagem poética. A rima, a ca-
deia prosódica, a métrica e o ritmo1, dentre outros, são alguns desses princípios

1 Nessa Introdução aos estudos literários, apenas entraremos em contato com esses conceitos
importantes. O seu estudo mais aprofundado bem como de outros elementos será realizado na
disciplina de “Práticas de Leitura do Texto Literário” por meio do livro Leitura do texto literário:
práticas e letramento.

24
organizadores. De modo geral, texto lírico, como qualquer composição orgânica, uti- O gênero lírico

liza todos os seus elementos de forma equilibrada e coesa, de modo que a forma não
apenas se adequa ao conteúdo, mas também o intensifica.
Conforme foi dito, os elementos inerentes à lírica unem-se na criação de um poema
de modo orgânico, todavia isso não é empecilho para que algum desses elementos
adquira destaque especial, servindo como uma espécie de centro gravitacional para os
demais. Vejamos a passagem abaixo:

Amemos! Quero de amor


Viver no teu coração!
Sofrer e amar essa dor
Que desmaia de paixão!
(AZEVEDO, 1999, p. 201)

Nessa passagem, do poeta romântico Álvares de Azevedo, encontramos algumas


das rimas mais óbvias e recorrentes na literatura em língua portuguesa, formando os
pares amor/dor e coração/paixão. Obviamente, o fato de pertencerem a um mesmo
campo semântico (ao menos amor, coração e paixão) permite que estabeleçamos
uma relação imediata entre as palavras e as ideias. Essa relação, porém, é reforçada
pela rima, a identidade sonora no fim de cada verso. Desse modo, a palavra, em prin-
cípio estranha ao grupo “dor”, passa a ser quase necessária em função da repetição
sonora, ligando-a a “amor”. Daí decorre o clichê segundo o qual “quem ama, sofre”.
Isso só é possível porque um princípio muito forte preside à organização do texto
lírico: som chama som. Desse modo, assim como ocorre na rima localizada no fim de
versos, também podemos encontrar repetições e recorrências sonoras (que podería-
mos chamar de cadeia prosódica) que estabelecem relações e reforçam a expressivi-
dade do poema. Vejamos uma famosa estrofe do poeta simbolista Cruz e Sousa:

Vozes veladas, veludosas vozes, 


Volúpias dos violões, vozes veladas, 
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.
(CRUZ E SOUSA, 1997, p. 97)

A utilização desse recurso, com a repetição sistemática dos fonemas /v/, /z/, /l/, /d/ e
/t/, por meio da figura aliteração, ou seja, a repetição de sons consonantais, além da
repetição dos sons vocálicos, a assonância, embeleza o poema. Porém, além do intuito

25
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos de causar prazer ao reforçar a musicalidade do texto, tal recurso faz que as ideias se
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários amarrem de modo poderoso, gerando novos efeitos de sentido, graças às palavras
que, pouco relacionadas à primeira vista, passam a ter uma ligação íntima em função
da repetição dos sons.
Outro elemento que merece destaque é a métrica, a contagem de sílabas poéticas
de um verso. Essa contagem se dá por meio das emissões sonoras e nem sempre será
equivalente à divisão silábica da gramática normativa. A utilização adequada da métrica
pode gerar efeitos expressivos consideráveis, e uma de suas mais evidentes ocorrên-
cias pode ser encontrada no poema “A tempestade”, do poeta da primeira geração
romântica Gonçalves Dias:

A tempestade
Quem porfiar contigo... ousara
Da glória o poderio;
Tu que fazes gemer pendido o cedro,
Turbar-se o claro rio?
A. Herculano

Um raio
Fulgura
No espaço
Esparso,
De luz;
E trêmulo
E puro
Se aviva,
S’esquiva
Rutila,
Seduz!

Vem a aurora
Pressurosa,
Cor de rosa,
Que se cora
De carmim;
A seus raios
As estrelas,

26
Que eram belas, O gênero lírico

Tem desmaios,
Já por fim.

O sol desponta
Lá no horizonte,
Doirando a fonte,
E o prado e o monte
E o céu e o mar;
E um manto belo
De vivas cores
Adorna as flores,
Que entre verdores
Se vê brilhar.

Um ponto aparece,
Que o dia entristece,
O céu, onde cresce,
De negro a tingir;
Oh! vede a procela
Infrene, mas bela,
No ar s’encapela
Já pronta a rugir!
Não solta a voz canora
No bosque o vate alado,
Que um canto d’inspirado
Tem sempre a cada aurora;
É mudo quanto habita
Da terra n’amplidão.
A coma então luzente
Se agita do arvoredo,
E o vate um canto a medo
Desfere lentamente,
Sentindo opresso o peito
De tanta inspiração.

27
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos Fogem do vento que ruge
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários As nuvens aurinevadas,
Como ovelhas assustadas
Dum fero lobo cerval;
Estilham-se como as velas
Que no alto mar apanha,
Ardendo na usada sanha,
Subitâneo vendaval.

Bem como serpentes que o frio


Em nós emaranha, — salgadas
As ondas s’estanham, pesadas
Batendo no frouxo areal.
Disseras que viras vagando
Nas furnas do céu entreabertas
Que mudas fuzilam, — incertas
Fantasmas do gênio do mal!

E no túrgido ocaso se avista


Entre a cinza que o céu apolvilha,
Um clarão momentâneo que brilha,
Sem das nuvens o seio rasgar;
Logo um raio cintila e mais outro,
Ainda outro veloz, fascinante,
Qual centelha que em rápido instante
Se converte d’incêndios em mar.

Um som longínquo cavernoso e ouco


Rouqueja, e n’amplidão do espaço morre;
Eis outro inda mais perto, inda mais rouco,
Que alpestres cimos mais veloz percorre,
Troveja, estoura, atroa; e dentro em pouco
Do Norte ao Sul, — dum ponto a outro corre:
Devorador incêndio alastra os ares,
Enquanto a noite pesa sobre os mares.

28
Nos últimos cimos dos montes erguidos O gênero lírico

Já silva, já ruge do vento o pegão;


Estorcem-se os leques dos verdes palmares,
Volteiam, rebramam, doudejam nos ares,
Até que lascados baqueiam no chão.

Remexe-se a copa dos troncos altivos,


Transtorna-se, tolda, baqueia também;
E o vento, que as rochas abala no cerro,
Os troncos enlaça nas asas de ferro,
E atira-os raivoso dos montes além.

Da nuvem densa, que no espaço ondeia,


Rasga-se o negro bojo carregado,
E enquanto a luz do raio o sol roxeia,
Onde parece à terra estar colado,
Da chuva, que os sentidos nos enleia,
O forte peso em turbilhão mudado,
Das ruínas completa o grande estrago,
Parecendo mudar a terra em lago.

Inda ronca o trovão retumbante,


Inda o raio fuzila no espaço,
E o corisco num rápido instante
Brilha, fulge, rutila, e fugiu.
Mas se à terra desceu, mirra o tronco,
Cega o triste que iroso ameaça,
E o penedo, que as nuvens devassa,
Como tronco sem viço partiu.

Deixando a palhoça singela,


Humilde labor da pobreza,
Da nossa vaidosa grandeza,
Nivela os fastígios sem dó;
E os templos e as grimpas soberbas,
Palácio ou mesquita preclara,
Que a foice do tempo poupara,
Em breves momentos é pó.
29
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos Cresce a chuva, os rios crescem,
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários Pobres regatos s’empolam,
E nas turvam ondas rolam
Grossos troncos a boiar!
O córrego, qu’inda há pouco
No torrado leito ardia,
É já torrente bravia,
Que da praia arreda o mar.

Mas ai do desditoso,
Que viu crescer a enchente
E desce descuidoso
Ao vale, quando sente
Crescer dum lado e d’outro
O mar da aluvião!
Os troncos arrancados
Sem rumo vão boiantes;
E os tetos arrasados,
Inteiros, flutuantes,
Dão antes crua morte,
Que asilo e proteção!

Porém no ocidente
S’ergue de Anotações
repente
O arco luzente,
De Deus o farol;
Sucedem-se as cores,
Qu’imitam as flores
Que sembram primores
Dum novo arrebol.

Nas águas pousa;


E a base viva
De luz esquiva,
E a curva altiva
Sublima ao céu;
Inda outro arqueia,

30
Mais desbotado, O gênero lírico

Quase apagado,
Como embotado
De tênue véu.

Tal a chuva
Transparece,
Quando desce
E ainda vê-se
O sol luzir;
Como a virgem,
Que numa hora
Ri-se e cora,
Depois chora
E torna a rir.

A folha
Luzente
Do orvalho
Nitente
A gota
Retrai:
Vacila,
Palpita;
Mais grossa
Hesita,
E treme
E cai.
(DIAS, 1997, p. 156-62 )

Reproduzindo de modo evidente o aumento da intensidade da chuva, o poema


varia de duas sílabas poéticas (Um/rai/o – na poética da língua portuguesa conta-
mos até a última sílaba tônica) na primeira estrofe até chegar a onze sílabas poéti-
cas (Nos/úl/ti/mos/ci/mos/dos/mon/tes/er/gui/dos), passando por todas as outras
quantidades intermediárias, até voltar a dois (E/cai). Desse modo, as sílabas do poe-
ma espelham as gotas da tempestade, demonstrando o quanto a métrica pode ser
expressiva.

31
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos Podemos ainda mencionar o ritmo, a oscilação de sílabas fortes e fracas, para vis-
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários lumbrarmos o papel de organização dos elementos do texto lírico. Nesse caso, um
bom exemplo, bastante conhecido, pode ser encontrado no poema “I-Juca Pirama”, do
mesmo Gonçalves Dias. Em uma famosa estrofe lemos o seguinte:

Meu canto de morte


Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo tupi
(DIAS, 1997, p. 124)

Se dividirmos as sílabas e marcarmos as sílabas fortes, encontraremos o seguinte


padrão:

Meu/can/to/ de/mor/te
Gue/rrei/ros,/ ou/vi:
Sou/fi/lho/ das/sel/vas,
Nas/sel/vas/cre/sci;
Gue/rrei/ros,/ de/scen/do
Da/tri/bo/ tu/pi.

Com isso, e lembrando que a divisão se dá por emissão sonora e que a contagem
vai apenas até a última sílaba tônica, percebemos que todos os versos mantêm o pa-
drão de fraca/forte/fraca/fraca/forte. Se experimentarmos ler o poema, reforçando a
diferença das sílabas, até mesmo acompanhando essa diferença batendo a mão em
alguma superfície, notaremos como o ritmo do poema pode ser relacionado, dentre
outras coisas, à marcação de um tambor de guerra indígena, em profunda coerência
da forma com o conteúdo do poema em questão.
Assim, podemos perceber como há especificidades no gênero lírico que fazem que
ele se diferencie dos demais gêneros literários. Além disso, pudemos perceber que
essas especificidades não cumprem apenas uma função diferenciadora, sendo, tam-
bém, elementos fundamentais para a constituição do texto lírico. Podendo, por vezes,
ocupar a posição de destaque, cada um dos elementos da lírica trabalha, não obstante,
em conjunto com os demais para a plena realização da obra. Dessa maneira, conhecer
cada um desses elementos é muito importante para que possamos enfrentar – e bem
– o desafio do poema.
32
O gênero lírico

Referências

AZEVEDO, Álvares. Lira dos vinte anos. São Paulo: Klick, 1999.

CAMPOS, Geir. Pequeno dicionário de arte poética. São Paulo: Cultrix, 1978.

CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Edusp, [19--].

______. Na sala de aula: caderno de análise literária. São Paulo: Ática, 1986.
(Fundamentos).

CARA, Salete. A poesia lírica. São Paulo: Ática, 1985. (Princípios).

CARVALHO, Amorim. Tratado de versificação portuguesa: teoria moderna da


versificação. Lisboa: Portugália, [19--].

CRUZ E SOUSA, João. Poesias completas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

DIAS, Gonçalves. Poemas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

GARRETT, Almeida. Lírica completa. Lisboa: Arcádia, 1963.

GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons, ritmos. São Paulo: Ática, 1986. (Princípios).

PIRES-DE-MELO, José. Teoria do ritmo poético. São Paulo: Rideel; Brasília:


UniCEUB, 2001.

STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. Tradução de Celeste Aida


Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1972.

33
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários
Proposta de Atividade

O soneto a seguir foi escrito por Manuel Maria Barbosa du Bocage, cujo pseudônimo era
Elmano Sadino:

Soneto
Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel das paixões, que me arrastava:
Ah! Cego eu cria, ah! Mísero eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana:
De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe a Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua origem dana.
Prazeres, sócios meus, e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos.
Deus, oh Deus!... Quando a morte à luz me roube
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.
(MOISÉS, 1998, p. 239)

Escreva um texto apontando os elementos que, conjugados, tornam o texto lírico.

Anotações

34
3 O gênero épico

A linguagem constitui o elemento distintivo do homem entre todos os outros seres.


Todo o conteúdo da sua imaginação pode ser manifestado e transformado em história
por meio dela. Na oralidade, encontra-se a origem da narrativa, porque o instinto hu-
mano de narrar histórias constitui uma das formas mais elementares de transmissão de
conhecimentos. É da narrativa oral que surgiram espécies em prosa como o romance,
a novela, o conto e a crônica. As narrativas podem ser apresentadas em vários modos
de linguagem: na verbal oral ou escrita (pela utilização de palavras), na não-verbal ou
visual (pelas imagens), na teatral (pela representação) ou gestual (pelo uso de gestos).
O texto artístico-literário-narrativo, entretanto, exige elaboração (uso de técnicas).
Na qualidade de transfiguração, transmutação, recriação da realidade, ele deve irradiar
a beleza, afinal é arte. A ficção não pretende fornecer um simples retrato da realidade,
mas antes criar uma imagem da realidade, uma reinterpretação, uma revisão dela. “É
o espetáculo da vida através do olhar interpretativo do artista, a interpretação artística
da realidade” (COUTINHO, 1988, p. 31).

HISTÓRIA / NARRATIVA / NARRAÇÃO
As palavras ‘narração’ e ‘narrativa’, segundo Reis e Lopes (1988, p. 66), podem ter
diversos significados e são empregadas em diversos contextos. Algumas linhas teóricas
preferem nominar essa divisão como ‘discurso’ e ‘história’, porque estes são os dois
planos fundamentais de análise da descrição narrativa (Cf. REIS; LOPES, 1988, p. 67).
O teórico Gérard Genette ([199-], p. 25-27) faz distinção entre os vocábulos: histó-
ria, narrativa e narração. Para ele, história abarca “o significado ou conteúdo narrativo
(ainda que esse conteúdo se revele, na ocorrência, de fraca intensidade dramática
ou teor factual)”. Narrativa abrange o significante, o enunciado, o discurso ou texto
narrativo em si. E narração compreende “o ato narrativo produtor e, por extensão, o
conjunto da situação real ou fictícia na qual toma lugar”.
As narrativas podem ser escritas de forma linear (o começo da história coincide
com o início dos fatos), in media res (começando pelo meio, como é o caso de Os

35
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos Lusíadas, de Camões) ou in ultima res (iniciando pelo final, como Memórias Póstu-
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários mas de Brás Cubas, de Machado de Assis).

Elementos fundamentais da narrativa


A narrativa assume-se “como fenômeno eminentemente dinâmico, implicando me-
canismos de articulação que asseguram essa dinâmica” (REIS; LOPES, 1988, p. 68).
No ato da narração, a estratégia narrativa é desenvolvida e aprofundada “pela particu-
larização de categorias da narrativa e domínios de codificação de onde decorrem as
práticas narrativas na sua existência concreta” (REIS; LOPES, 1988, p. 68).
As narrativas são estruturadas sobre cinco elementos essenciais: para contar uma
história é necessário que haja um narrador que conte os fatos (enredo) vividos por
personagens (seres que agem) em um tempo e espaço (ambiente) determinados.
Podemos visualizar esses elementos no quadro abaixo:

Quadro dos elementos essenciais da narrativa.

ENREDO CONJUNTO DE FATOS DE UMA HISTÓRIA.

Voz que conta a história; é ele, basicamente, quem caracteriza a nar-


Narrador
rativa, porque é ele quem organiza todos os demais componentes.

Personagens Participantes que vivenciam a história.

Tempo Momento ou época em que os fatos acontecem.

Espaço Lugar onde os fatos ocorrem.

Esses são os elementos fundamentais da narrativa e, embora possamos des-


tacar outros (em outras disciplinas vamos fazê-lo), devemos ter em mente que tais
categorias narrativas são incontornáveis para uma boa leitura de um texto do gênero
épico. Além disso, percebemos que as narrativas, através dos tempos, assumiram
diversas formas que veremos a seguir.

A epopeia
O vocábulo épico tem origem no grego epos, que significa justamente narrativa,
recitação. A poesia épica nasceu na Grécia, entre os séculos IX e VIII a.C. Trata-se de
uma narrativa oral em forma de versos, que contava eventos do passado e que tinha
como principais personagens os deuses e os heróis. Essas personagens serviam de
exemplo para aqueles que ouviam as histórias.

36
As duas epopeias, Ilíada e Odisseia, são tradicionalmente atribuídas a Homero O gênero épico

e constituem os dois primeiros modelos épicos. A escritura dos poemas épicos era
um processo bastante demorado porque consistia no aproveitamento das narrativas
orais que contavam histórias e grandes feitos de um povo. Tanto a Ilíada quanto a
Odisseia serviram de modelo para Virgílio escrever a Eneida, epopeia mais conheci-
da na antiguidade romana.
Na Idade Média, séculos XII, XIII e XIV, surgiram poemas narrativos inspirados
nos combates da cavalaria andante. Os mais conhecidos são: a Canção de Roland,
o Romance de Alexandre, os romances da Távola Redonda e o Cantar de Mio Cid.
O quadro abaixo resume as partes da epopeia, com seu conteúdo:

Quadro das partes da epopeia.

PARTES CONTÉM
É uma introdução em que se propõe o assunto do
1 – Exórdio ou Proposição
poema. O herói e o tema são apresentados.
Parte em que se pede inspiração a uma divindade
2 – Invocação
para criar o poema.
Parte em que o poema é dedicado a alguém. (Não era
3 – Oferecimento
obrigatória)
Parte em que são narrados os fatos. É o corpo do
4 – Narrativa
poema.
Parte em que se faz o fechamento da epopeia. É o
5 – Epílogo
desfecho do poema. (Não era obrigatória)

Desse modo, percebemos que a epopeia configura-se como um texto narrativo


bastante específico, com partes bastante marcadas. E é com essa noção em mente que
devemos enfocar, em nosso contexto, a epopeia em língua portuguesa.

Epopeia em língua portuguesa


Com o advento do Renascimento, houve uma revalorização e imitação da cultura
greco-romana. Sua literatura começou a ser imitada. Em Portugal, no ano de 1572,
foram publicados Os lusíadas, epopeia glorificadora de Portugal, escrita por Luís Vaz
de Camões. O poema, composto por 10 cantos, 102 estrofes e 8.816 versos, procurou
obedecer às convenções do gênero no tocante à estrutura e à interferência dos deuses
e outras entidades mitológicas (nereidas, ninfas, monstros etc.). Em alguns pontos,
porém, essa epopeia mostra-se desobediente aos padrões clássicos, por exemplo, a
coexistência do maravilhoso pagão e do maravilhoso cristão, a pausa para descanso

37
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos das aventuras na Ilha dos amores (Canto IX) e a inserção do lírico nos episódios de
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários Inês de Castro (Canto III) e do Gigante Adamastor (Canto V ).
A estrofe apresentada, a seguir, é a terceira do Canto I, de Os lusíadas: rimas

Cessem do sábio Grego e do Troiano______________ a


As navegações grandes que fizeram;______________ b
Cale-se de Alexandro e de Trajano_______________ a
A fama das vitórias que tiveram;________________ b
Que eu canto o peito ilustre lusitano,_____________ a
A quem Netuno e Marte obedeceram._____________ b
Cesse tudo o que Musa antiga canta,_____________ c
Que outro valor mais alto se alevanta____________ c
(CAMÕES, [19--?], p. 12).

O “narrador” (voz que fala na epopeia) ordena que as longas viagens de Ulisses
(Odisseia) e de Enéias (Ilíada) e a fama das vitórias de Alexandre Magno e do impera-
dor romano (antiguidade greco-romana) sejam esquecidas, porque agora ele cantará
feitos maiores, realizados pelo povo português. Afirma, ainda, que até mesmo os deu-
ses (Netuno e Marte) obedecem à grandeza do povo lusitano. Pode-se observar que a
estrofe é escrita em oitava rima, ou seja, A B, A B, A B, C C, e os versos são decassíla-
bos heroicos: decassílabos (10 sílabas poéticas); heroicos (quando as sílabas poéticas
mais fortes ocorrem na sexta e na décima sílabas). Exemplo:

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Ces/sem/ do/ sá/bio/ Gre/go e/ do/ Troi/a/no

Esses são alguns dos elementos mais marcantes da epopeia. É importante, todavia,
destacar que a epopeia é uma forma literária muito particular, ligada a um contexto só-
cio-histórico bastante específico, mas que não é a única possibilidade de manifestação
da épica. Na verdade, para um leitor dos dias de hoje, outras possibilidades do gênero
épico são muito mais familiares: as espécies épicas da prosa de ficção.

A prosa de ficção
As espécies épicas em prosa são o romance, a novela e o conto, além de outros sub-
gêneros (fábula, apólogo etc.). Como já estudamos, os gêneros são dinâmicos e podem
misturar-se. A fronteira entre lírica e épica é, por vezes, bastante fluida. A épica, todavia,

38
encontra seus próprios elementos organizadores que, embora estejam eventualmente O gênero épico

presentes em outros gêneros, são determinantes para que possamos identificar um texto
épico e, sobretudo, para que tenhamos como analisá-lo e interpretá-lo. Na narrativa,
saber quem fez o que, quando, onde, por que e quem contou, traduz-se nas categorias
narrativas como personagem, enredo, tempo, espaço e foco narrativo que, dentre ou-
tras, oferecem elementos que fazem da narrativa o que ela é e nos permitem abordá-la de
modo objetivo. Cada um desses elementos é de suma importância para um texto épico,
seja qual for sua espécie. Assim, mantenhamos esses elementos em mente ao abordar as
possibilidades de configuração da prosa de ficção.

ROMANCE
Primitivamente, a palavra romance significava qualquer obra escrita em romance ou
romanço1. O termo “romance” designava geralmente obras de cunho popular ou folcló-
rico, tanto em prosa quanto em verso. Entre essas obras estão os romances ou novelas
de cavalaria e poemas de cunho amoroso ou satírico. Só no século XII, a epopeia clássica
cedeu lugar ao romance de características modernas. A partir dessa época, o vocábulo
romance passou a ser empregado com a significação que tem atualmente. É por isso que
podemos afirmar que o romance, tal como o entendemos hoje, é a epopeia transformada.
A epopeia identificava-se com o modo de ser do homem que pertencia à cultura da
antiguidade clássica e do Renascimento, mas ela deixou de atender aos anseios e à cultu-
ra desse homem, e o romance encontrou, na sociedade burguesa, solo fértil para nascer.
Aguiar e Silva, grande estudioso da literatura, afirma que o romance nasceu devido a
um motivo fundamental, de caráter histórico-filosófico: “a epopeia corresponde ao tem-
po do mito, ao período de viva e fresca intuição e de religioso arcano da Natureza miste-
riosa e tremenda, quando o homem não adquirira ainda consciência do seu significado
de indivíduo; o romance é uma forma representativa por excelência, do mundo burguês
e do homem como indivíduo, como entidade autônoma, como realidade singular peran-
te o mundo e a sociedade” (AGUIAR E SILVA, 1986).
O romance surge, portanto, como testemunha do declínio da Idade Média, trazendo,
em vez da imobilidade, a consciência da transformação. Nasce como produto cultural da
relação entre os homens, refletindo as questões sociais da época e projetando-as, uma
vez que dialoga com elas. Conforme Donaldo Schuler (1989, p. 6),

1 Palavra que designa o conjunto das línguas românicas, correspondendo, numa fase de transi-
ção entre o latim e as línguas vulgares, à linguagem que precedeu cada uma das línguas români-
cas modernas <http://www.infopedia.pt/$romanco>.

39
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos O romance retratou, desde o começo, conflitos individuais e vida cotidiana,
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos opondo-se a noções medievais latinas, que privelegiavam qualidades fixas, per-
Literários
sistentes ainda em epopeias nacionais como a Chanson de Roland e o Poema
de Mio Cid, obras em que não se admite contaminação de lealdade e traição,
amplamente praticada no romance.

Por sua vez, o estudioso George Luckács (1989, p. 177) esclarece que

O romance é o gênero literário mais típico da sociedade burguesa. Há, sem dúvi-
da, obras da Antiguidade, da Idade Média e do mundo oriental que apresentam
algumas semelhanças com o romance, mas seus traços característicos só apare-
cem depois que ele se torna a expressão da sociedade burguesa. É no romance,
ademais, que as contradições específicas da sociedade burguesa têm sido figu-
radas de modo mais adequado e típico. As contradições da sociedade capitalista
fornecem, assim, a chave para a compreensão do romance enquanto gênero.

A narrativa romanesca representa o modo de ser da sociedade, reproduzindo uma


cosmovisão fundamentada na subjetividade. O romance é dirigido ao indivíduo fora
da sociedade, favorecendo a abordagem dos problemas e conflitos interiores. Ele “re-
tratou, desde o começo, conflitos individuais e vida cotidiana” (SCHULER, 1989, p. 6).
Essa espécie literária constitui uma forma narrativa que valoriza o homem, indiví-
duo comum. Comporta os mais variados assuntos, tramas complexas e análises por-
menorizadas do comportamento das personagens. No romance, há várias pequenos
conflitos, gravitando em torno de um núcleo dramático central.
O romance apresenta uma sucessão de episódios interligados que exigem do autor
um tratamento diferente, quer na apresentação dos acontecimentos, quer no estudo
das personagens. Tais acontecimentos são explorados em sentido vertical, ou seja, com
profundidade. Nessa espécie narrativa, vários destinos psicológicos estão em jogo, por
isso se pode dizer que psicologicamente ele é plurilinear.
Essa espécie tem liberdade de exploração do tempo, do espaço e da ação, poden-
do abarcar grande número de personagens. Por possuir forma narrativa mais longa
que a novela e o conto, viabiliza interconexões bastante elaboradas entre as catego-
rias fundamentais do gênero. E, embora essa espécie tenha domínio do tempo, do
espaço e da ação, quando o romance termina, a narrativa não oferece mais ao autor
a oportunidade de continuar. Tudo o que for acrescentado não terá mais importân-
cia. O Guarani2, de José de Alencar, constitui um exemplo de narrativa ficcional de
romance.

2 Sugerimos a leitura do romance. Disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br>. (Aces-


so em 01/09/2010).

40
Outro exemplo é O Cortiço, de Aluísio Azevedo. Leia, abaixo, um fragmento do O gênero épico

romance:
Desde que a febre de possuir se apoderou dele totalmente, todos os seus atos,
todos, fosse o mais simples, visavam um interesse pecuniário. Só tinha uma
preocupação: aumentar os seus bens. Da suas hortas recolhia para si e para a
companheira os piores legumes, aqueles que por maus, ninguém compraria;
as suas galinhas produziam muito e ele não comia um ovo, do que, no entanto
gostava imenso; vendia-os todos e contentava-se com os restos das comidas
dos trabalhadores. Aquilo já não era abição, era uma moléstia nervosa, uma
loucura, um desespero de acumular, reduzir tudo a moeda. E seu tipo baixote,
socado, de cabelos à escovinha, a barba sempre por fazer, ia e vinha da pedreira
para a venda, da venda às hortas e ao capinzal, sempre em mangas de camisa,
de tamancos sem meias, olhando para todos os lados, com o seu eterno ar de
cobiça,l apoderando-se, com os olhos, de tudo aquilo de que ele não podia
apoderar-se logo com as unhas (AZEVEDO, 1992, p. 212).

NOVELA
Nas suas origens, a novela, contrária ao poema épico que cultuava as grandezas
antigas, destacou o novo, o original, inclinando-se para ele. Trata-se de uma narrativa
menos extensa e menos complexa que o romance. Embora ela tenha muitos pontos
de contato com o romance, no que concerne à disposição dos núcleos dramáticos, é
configurada de modo diferente.
Os núcleos não se apresentam agrupados em torno de um conflito central, mas
sucedem-se em uma série de episódios que estão ligados entre si apenas pela perma-
nência de determinadas personagens que não chegam a desaparecer inteiramente na
narrativa ou no seu próprio núcleo.
É por isso que a novela, ao menos potencialmente, pode ter duração ilimitada. As-
sim, se o escritor quiser dar continuidade à narrativa, o fio pode ser sempre retomado.
Ela não tem um fim como o romance. Nesse sentido, a novela pode abarcar ainda mais
personagens que o romance.
Na novela, todo o universo ficcional gira em torno de uma figura da qual presen-
ciamos a ação, ou seja, ela é psicologicamente unilinear. Nessa espécie, há uma con-
densação do que é largamente desenvolvido no romance. Privilegiam-se as ações em
detrimento das análises. Há uma precipitação para o desfecho, que pode ser observada
na rapidez dos diálogos, narrações e descrições (AMORA, 1971, p. 165-166).
Um bom exemplo de novela é Memórias de um sargento de milícias3, de Manuel
Antônio de Almeida.

3 Sugerimos a leitura da novela. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br>. (Acesso


em: 01 set. 2010).

41
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos CONTO
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários Essa espécie narrativa nasceu na oralidade. Suas principais aparições remontam a
antigas civilizações, sob forma de narrativas imaginárias e fantásticas. O conto origina-
se de diversas formas de narrativa doméstica tais como a fábula, o caso, a anedota, o
provérbio, as histórias curtas de tom libertino, piedoso ou moralizante.
No século XVII, considerava-se um bom conto aquele que narrava um episódio, com
unidade de ação com princípio, meio e fim, dentro de um espaço físico, um tempo defi-
nido. Conforme Luzia de Maria (2004, p. 24-25), tempos atrás, para ser considerado um
bom conto, a narração de um episódio tinha de ter princípio, meio e fim, com espaço fí-
sico, tempo e uma unidade de ação. Esse era o conceito de conto do século XVII. Porém,
com o passar do tempo, o conto foi se aprimorando, tomando novas formas, o gênero foi
perdendo sua rigidez e se abrindo para o que estava por vir (MARIA, 2004, p. 96).
Na concepção de Nádia Gotlib (1985, p. 29), o que houve na história do conto foi
uma mudança técnica, e não uma mudança de estrutura, pois o conto continua com a
mesma estrutura do conto antigo; o que muda é apenas a sua técnica. Entretanto, para
Luzia de Maria (2004, p. 40), o conto contemporâneo reduz a ação ao máximo; registra
os fatos da vida como se estivessem numa sucessão de quadros; coloca, em lugar dos
tradicionais diálogos, “monólogos paralelos que vão descortinando o mundo interior
de cada personagem e joga por terra o esquema da construção dramática tradicional:
desenvolvimento, clímax e desenlace”:

Descontinuidade; quebra da sequência previsível; utilização de todas as lin-


guagens (inclusive diálogo entre o texto e a tipografia ou entre o texto e as
ilustrações, alterando-se até mesmo a forma convencional do livro); incorpo-
ração, num mesmo texto, de fragmentos diversos, de vários autores, estilos e
época, etc., realizando o que se chama “intertextualidade”; simultaneamente
de cenas, imitando procedimentos do cinema moderno; introdução na prosa,
de técnicas da construção de poemas; inclusão, na composição do texto, de
posicionamentos autocríticos, ou seja, textos que refletem e questionam seu
próprio processo de construção. Estes são alguns dos procedimentos formais
que encontramos presentes na narrativa moderna, logo, também no conto mo-
derno (MARIA, 2004, p. 85-86).

Na contemporaneidade, o conto apresenta um caráter plástico. A narrativa curta,


comparada à novela e ao romance, “condensa e potencia no seu espaço todas as pos-
sibilidades da ficção” (BOSI, [19--?], p. 7).
É uma forma narrativa mais breve, mais objetiva e com estrutura mais simples, em-
bora possa ter conteúdo denso e psicológico, como é o caso dos contos de Machado
de Assis. Apresenta um único conflito, em geral, iniciado próximo do desfecho. Por
isso, o conto não tem a simultaneidade do romance nem a continuidade da novela. A
história é contada com poucas personagens e o tempo e o espaço são reduzidos.

42
Como qualquer narrativa, o conto trabalha com a sucessão de acontecimentos in- O gênero épico

teressantes para o homem. E é “em relação com um projeto humano que os aconte-
cimentos tomam significação e se organizam em uma série temporal estruturada; e
tudo na unidade de uma mesma ação” (GOTLIB, 1985, p. 11-12). Embora o conto seja
caracterizado por ser uma narrativa curta, com um número reduzido de páginas ou
linhas, essa espécie não é definida apenas pelo seu tamanho, mas pela sua concisão e
brevidade (MARIA, 2004, p. 23). Assim, o conto é curto porque é denso. Pelo fato de
ser uma narrativa curta, as categorias da narrativa são condensadas, e a sua brevidade
exige do escritor a hierarquização dos fatos a serem narrados, uma vez que a intenção
é provocar no leitor um efeito marcante.
O conto não é curto porque tem número reduzido de palavras, mas porque contrai
a matéria narrativa, condensa-a, deixando fluir aquilo que de melhor ela tem para
impactar o leitor. Em outras palavras, a ação é condensada para que sejam apresenta-
dos os melhores momentos dela. O conto deve produzir impacto no leitor. Por isso,
o contista precisa ser objetivo, destacando apenas o que realmente é importante para
“marcar” o leitor. Ele deve omitir, expandir contrair e apresentar pontos de vista tanto
do narrador quanto das personagens de tal forma que estes não declinem o tema cen-
tral da composição.
Por ser breve, o conto comporta número limitado de personagens, apresentadas
rapidamente, de modo monofacetado, ou seja, revelando apenas uma faceta de seu
caráter. Não há lugar para detalhamento e aprofundamento das características físicas
e psíquicas. Marcado pela objetividade, esse tipo de narrativa exige objetividade por
parte do artista. Ele precisa destacar aquilo que de fato é importante para construir o
impacto. A visão é recortada As personagens são consideradas instrumentos da ação,
que é prioridade nessa espécie narrativa. E o narrador exerce a função de mero assis-
tente, ou participante; ele é um intermediário entre a ação e o leitor.

Quadro comparativo das espécies: romance, novela e conto

ROMANCE NOVELA CONTO


Simultaneidade Continuidade Brevidade
Tempo e espaço ilimitados Tempo e espaço ilimitados Tempo e espaço reduzidos
Psicologicamente
Psicologicamente unilinear Psicologicamente unilinear
plurilinear
Narrativa longa Narrativa curta
Narrativa longa
(geralmente, menos (contração, omissão,
(extensão e complexidade)
extensa que o romance) concentração)
Visão totalizante Visão abrangente Visão recortada

43
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos Grande número de Grande número de Número restrito de
Literários personagens personagens personagens
Liberdade de exploração
Privilégio da ação Exploração da ação
do tempo, espaço e ação
Multiplicidade dramática
Multiplicidade dramática
(Núcleos dramáticos
(Núcleos dramáticos giram
ligados entre si Unidade dramática
em torno de um núcleo
devido à permanência (único núcleo narrativo)
central e ligam-se a ele
de determinadas
intimamente)
personagens)
Variedade de temas e Variedade de temas e Variedade de temas e
assuntos assuntos assuntos
Fim Fim (conto tradicional)
Duração ilimitada
(o que acontecer depois de (final enigmático ou final
(o fio não se quebra e
encerrada a história não inconcluso (conto moderno
pode ser retomado)
interessa mais) e contemporâneo))

Leia o conto: O Cemitério4, de Lima Barreto

Pelas ruas de túmulos, fomos calados. Eu olhava vagamente aquela


multidão de sepulturas, que trepavam, tocavam-se, lutavam por espaço,
na estreiteza da vaga e nas encostas das colinas aos lados. Algumas pa-
reciam se olhar com afeto, roçando-se amigavelmente; em outras, trans-
parecia a repugnância de estarem juntas. Havia solicitações incompreen-
síveis e também repulsões e antipatias; havia túmulos arrogantes, impo-
nentes, vaidosos e pobres e humildes; e, em todos, ressumava o esforço
extraordinário para escapar ao nivelamento da morte, ao apagamento
que ela traz às condições e às fortunas.
Amontoavam-se esculturas de mármore, vasos, cruzes e inscrições;
iam além; erguiam pirâmides de pedra tosca, faziam caramanchéis extra-
vagantes, imaginavam complicações de matos e plantas – coisas brancas
e delirantes, de um mau gosto que irritava. As inscrições exuberavam;
longas, cheias de nomes, sobrenomes e datas, não nos traziam à lem-
brança nem um nome ilustre sequer; em vão procurei ler nelas celebrida-
des, notabilidades mortas; não as encontrei. E de tal modo a nossa socie-
dade nos marca um tão profundo ponto, que até ali, naquele campo de

4 Disponível em: <http://contosdocovil.wordpress.com/2008/06/21/o-cemiterio>. Acesso em:


9 set. 2010).

44
O gênero épico
mortos, mudo laboratório de decomposição, tive uma imagem dela, feita
inconscientemente de um propósito, firmemente desenhada por aquele
acesso de túmulos pobres e ricos, grotescos e nobres, de mármore e
pedra, cobrindo vulgaridades iguais umas às outras por força estranha às
suas vontades, a lutar…
Fomos indo. A carreta, empunhada pelas mãos profissionais dos
empregados, ia dobrando as alamedas, tomando ruas, até que chegou
à boca do soturno buraco, por onde se via fugir, para sempre do nosso
olhar, a humildade e a tristeza do contínuo da Secretaria dos Cultos.
Antes que lá chegássemos, porém, detive-me um pouco num túmulo
de límpidos mármores, ajeitados em capela gótica, com anjos e cruzes
que a rematavam pretensiosamente.
Nos cantos da lápide, vasos com flores de biscuit e, debaixo de um
vidro, à nívea altura da base da capelinha, em meio corpo, o retrato da
morta que o túmulo engolira. Como se estivesse na Rua do Ouvidor, não
pude suster um pensamento mau e quase exclamei:
— Bela mulher!
Estive a ver a fotografia e logo em seguida me veio à mente que aque-
les olhos, que aquela boca provocadora de beijos, que aqueles seios tú-
midos, tentadores de longos contatos carnais, estariam àquela hora redu-
zidos a uma pasta fedorenta, debaixo de uma porção de terra embebida
de gordura.
Que resultados teve a sua beleza na terra? Que coisas eternas cria-
ram os homens que ela inspirou? Nada, ou talvez outros homens, para
morrer e sofrer. Não passou disso, tudo mais se perdeu; tudo mais não
teve existência, nem mesmo para ela e para os seus amados; foi breve,
instantâneo, e fugaz.
Abalei-me! Eu que dizia a todo o mundo que amava a vida, eu que
afirmava a minha admiração pelas coisas da sociedade – eu meditar como
um cientista profeta hebraico! Era estranho! Remanescente de noções
que se me infiltraram e cuja entrada em mim mesmo eu não percebera!
Quem pode fugir a elas?
Continuando a andar, adivinhei as mãos da mulher, diáfanas e de de-
dos longos; compus o seu busto ereto e cheio, a cintura, os quadris, o
pescoço, esguio e modelado, as espáduas brancas, o rosto sereno e ilumi-
nado por um par de olhos indefinidos de tristeza e desejos…

45
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos Já não era mais o retrato da mulher do túmulo; era de uma, viva, que
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários me falava.
Com que surpresa, verifiquei isso.
Pois eu, eu que vivia desde os dezesseis anos, despreocupadamente,
passando pelos meus olhos, na Rua do Ouvidor, todos os figurinos dos
jornais de modas, eu me impressionar por aquela menina do cemitério!
Era curioso.
E, por mais que procurasse explicar, não pude.

A composição acima possui estrutura de conto. Trata-se de uma narrativa curta, se


comparada com o romance ou a novela. Observemos que os fatos do enredo começam
próximos do desfecho. A história não começa contando, por exemplo, a infância do
narrador. O texto tem início quando a personagem-narrador já está caminhando no
meio dos túmulos no cemitério. Sabemos muito pouco de sua vida pregressa. Embora
possamos supor algumas coisas, temos certeza somente de que, desde os dezesseis
anos, ele vivia despreocupadamente.
No conto em questão, há apenas um conflito cujo clímax ocorre quando o retrato
da moça do túmulo, na mente do narrador, passa a ser o de uma mulher viva (“Abalei-
me! Eu que dizia a todo o mundo que amava a vida, eu que afirmava a minha admira-
ção pelas coisas da sociedade – eu meditar como um cientista profeta hebraico! Era
estranho!”).
Entre as personagens, encontramos apenas o narrador e algumas pessoas que
acompanhavam um enterro. Sabemos que essas pessoas fazem parte da ação pelos
indícios que o texto dá: “fomos calados”; “fomos indo”; “antes que lá chegássemos”.
Essas pessoas sequer têm nomes. Aliás, nem o narrador tem. O número de persona-
gens é, portanto, reduzido.
O espaço é constituído apenas pelo cemitério e pela mente do narrador. O tempo é
extremamente curto. Dura o tempo de uma caminhada rumo a uma cova. E, a bem da
verdade, ao terminar o conto, não sabemos se o defunto foi enterrado ou não. O que
fica evidente é a perturbação que ocorre na mente do narrador-personagem.

Referências

AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. 7. ed. Coimbra: Almedina,
1986.

46
ALENCAR, José de. O Guarani. 17. ed. São Paulo: Ática, 1992. O gênero épico

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo:


Martin Claret, 2002.

AMORA, Antônio Soares. Teoria da Literatura. 9. ed. São Paulo: Clássico-Científica,


1971.

AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 25. ed. São Paulo: Ática, 1992.

BARRETO, Afonso Henriques de Lima. O Cemitério. In: STEEN, Edla Van. Os


melhores contos de Lima Barreto. São Paulo: Global, 2001.

BOSI, Alfredo (Org.). O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, [19--?].

BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 1993. (Princípios).

CAMÕES, Luís Vaz. Os Lusíadas. São Paulo: FTD, [19--?].

CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: CANDIDO, Antonio et al. A


personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1995. p. 53-80.

COUTINHO, Afrânio. Notas de teoria literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


1988.

DIMAS, Antonio. Espaço e romance. São Paulo: Ática, 1987. (Princípios).

GENETTE, Gerard. O discurso da narrativa. Lisboa: Vega, [199-].

GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 1985. (Princípios).

KOTHE, Flávio. O herói. São Paulo: Ática, 1985. (Princípios).

LEITE, Ligia Chiappini. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1985. (Princípios).

LUCKÁCS, George. O romance como epopéia burguesa. Tradução de Letízia Zini


Antunes. Assis: Unesp, 1989.

47
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos MARIA, Luzia de. O que é conto. São Paulo: Brasiliense, 2004.
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários
Anotações
MESQUITA, Samira. O enredo. São Paulo: Ática, 1986. (Princípios).

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 2002. (Fundamentos).

REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo:
Ática: 1988.

SCHULER, Donald. Teoria do romance. São Paulo: Ática, 1989.

TREVISAN, Dalton. Cemitério de elefantes. Rio de Janeiro: Record, 1964.

Proposta de Atividades

Leia o conto Uma vela para Dario5, do escritor paranaense Dalton Trevisan.
1) Trace um perfil da personagem protagonista.
2) Em que extensão de tempo ocorre a ação?
3) Descreva o espaço onde a ação decorre.
4) Como toda narrativa, esse conto apresenta uma sequência de fatos interligados que
compõem a história. Divida a narrativa do conto em três momentos: estado inicial,
transformações e estado final.
5) Escreva um texto, apontando os elementos que configuram a composição como conto.

5 Sugerimos a leitura prévia do contoUma vela para Dario. Disponível em <http://www.releitu-


ras.com/daltontrevisan_dario.asp> (Acesso em 03/09/2010).

48
O gênero épico

Anotações

49
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários
Anotações

50
4 O gênero dramático

Na sua origem grega, o teatro era escrito em versos, condição que perdurou
através do tempo, seja de modo sistemático, seja em casos específicos. Além disso,
apesar da polarização inicial em duas espécies, a tragédia e a comédia, os anos
trouxeram igualmente novas possibilidades, tais como os mistérios, os autos, as
tragicomédias, os dramas, os melodramas, dentre outros. Algo deve ser notado a
partir de tal condição: o gênero dramático apresenta grandes dificuldades para sua
delimitação e sua classificação, comunicando-se com a lírica e com a épica, compar-
tilhando com esses outros gêneros elementos fundamentais, como ritmo, perso-
nagem, expressividade da cadeia prosódica, espaço, apenas para citarmos alguns.
Por isso, devemos lançar nosso olhar para as particularidades dramáticas tendo em
vista essas dificuldades.
Podemos encontrar, porém, elementos que nos permitam trabalhar o gênero,
distinguindo alguns de seus elementos e manifestações. A tragédia, por exemplo,
é uma forma de drama marcada pela seriedade e dignidade. Explora o destino
trágico do homem. Geralmente envolve conflito entre a personagem e outra ins-
tância superior (destino, sociedade, deuses). A tragédia tinha fim didático, ou seja,
pretendia ensinar por meio da reflexão provocada pelo horror ou pela piedade. A
comédia, por seu turno, nasceu com personagens cujas atitudes eram ridículas e
engraçadas. Visava, em primeiro lugar, à diversão, mas também era moralizante.
Retirava seu assunto das situações engraçadas da vida real. Atualmente, as situações
da vida cotidiana são exploradas como tema, por isso podemos estabelecer um
quadro das espécies dramáticas como o que segue:

51
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos Quadro das espécies dramáticas.
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários

Tragédia
Época clássica Comédia
Drama satiresco
Mistérios
Milagres
Idade Média
Auto
Farsa

Renascimento Tragicomédia

Romantismo Drama

Criações populares Variedades

Ópera
Criações poético-musicais Opereta
Melodrama

Vejamos um caso particular que se insere em nossa tradição literária. No século XV,
em Portugal, encontramos o escritor Gil Vicente. Seu teatro não segue uma lei de três
unidades básicas que era vigente no teatro clássico: ação, tempo, espaço. Além disso, a
ideologia das obras vicentinas apresenta sempre o confronto entre a forma de pensa-
mento medieval e renascentista (como entre o Teocentrismo e o Antropocentrismo).
A linguagem é o recurso que o autor melhor explora para conseguir efeitos cômicos
ou poéticos. Escritas em versos que chamamos de “redondilhas” (cinco ou sete sílabas
poéticas), as peças incorporam trocadilhos, ditos populares e expressões típicas de cada
classe social. A obra teatral de Gil Vicente pode ser didaticamente dividida em dois blo-
cos: autos e peças.
Um das peças vicentinas mais famosas e representativas é o Auto da Barca do In-
ferno. Reproduzimos, a seguir, um fragmento no qual a personagem Parvo se dirige ao
Diabo e, depois, ao Anjo:

Vem Joane, o Parvo, e diz ao Arrais do inferno:


(ARRAIS, S. M. Mestre ou patrão de
barco. Fig. Guia, condutor)

Parvo Houdaquesta! (Houdaquesta!- Ô de casa!)


Diabo Quem é?
Parvo Eu sou.
É esta naviarra nossa? (naviarra – grande barca)
Diabo De quem?
Parvo Dos tolos.
Diabo Vossa.
Entrai.

52
Parvo De pulo ou de voo? O gênero dramático
Oh, pesar do meu avô!
Soma: vim adoecer
e fui má-hora morrer,
e nela pêra mim só.
Diabo De que morreste?
De quê?
Samicas de caganeira. (samicas – talvez, porventura)
Diabo De quê?
Parvo De caga-merdeira.
Má ravugem que te dê! (ravugem – sarna que ataca os cães)
Diabo Entra! Põe aqui o pé!
Parvo Hou-lá não tombe o zambuco! (zambuco – pequeno barco)
Diabo Entra,tolaço eunuco (tolaço – superlativo de tolo)
que se nos vai a maré!
Parvo Aguardai, aguardai, hou-lá!
E onde havemos nós d’ir ter?
Diabo Ao porto de Lúcifer.
Parvo Hã?
Diabo Ao inferno! Entra cá.
Parvo Ao inferno? Erramá! (erramá – má hora, mau momento)
Hiu! Hiu! Barca do cornudo,
Pero Vinagre, beiçudo,
rachador d’Alverca, hu-há!
(...)
Chega o Parvo ao batel do Anjo e diz: (batel – pequeno barco, canoa)
Parvo Hou da barca!
Anjo Samicas alguém.
Parvo Quereis-me passar além?
Anjo Quem és tu?
Parvo Não sou ninguém.
Anjo Tu passarás, se quiseres;
porque em todos teus fazeres
per malícia não erraste.
Tua simpreza t’abaste
pera gozar dos prazeres.
Espera entanto per i:
veremos se vem alguém
merecedor de tal bem
que deva de entrar aqui.
(...) (VICENTE, 2000, p. 29-32).

Esse auto é de 1517 e situa-se em um momento de passagem, no contexto da lite-


ratura portuguesa, do mundo medieval para o Humanismo e o Renascimento. Devido
a essa perspectiva medievalesca, possui temática religiosa e constitui uma alegoria
dramática do juízo final. Todavia, afastando-se de uma perspectiva religiosa estrita,
em um misto de seriedade, gravidade e humor, a peça retoma as estruturas formais
da tradição teatral e dos temas recorrentes na história da literatura Ocidental.

53
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos A peça possui apenas um ato, dividido em várias cenas. As personagens represen-
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários tam diversas classes sociais. Elas se dirigem ao local onde as barcas estão atracadas.
Cada uma delas leva um objeto representativo da sua profissão. Os objetos repre-
sentam seu apego à vida. Lá, o Anjo, no comando da barca que conduzirá os bons
ao paraíso, e o Diabo, comandando a barca que levará os condenados ao inferno,
esperam por elas (almas). A personagem Anjo representa o Bem; é mensageiro de
Deus e, por sua gravidade e sisudez, retrata os dirigentes da Igreja Católica, da épo-
ca. O Diabo vem da parte do mal e sabe que fará boa colheita.
A linguagem das personagens é coloquial. Por ela é possível identificar a classe so-
cial à qual as personagens pertencem. O fidalgo é o primeiro a chegar. Ele representa
a nobreza. Seus pecados são a luxúria e a tirania. O agiota é condenado pela ganância
e avareza. O sapateiro, pelo roubo. O frade, por viver um falso moralismo religioso.
Brísida Vaz, prostituta e feiticeira, desencaminhou muitas jovens. O judeu, por sua
vez, nem aceita o cristianismo e, por isso, não consegue nem chegar perto do Anjo. O
Diabo aceita levar o judeu e o seu bode, mas não dentro de sua barca. Eles vão rebo-
cados. O corregedor e o procurador manipularam a justiça. O enforcado é condena-
do por corrupção. O anjo só permite a entrada na barca do céu aos quatro cavaleiros,
que sofreram o martírio por lutar pelo cristianismo, e ao Parvo, pela ingenuidade. O
efeito cômico é estabelecido principalmente pela presença da personagem Parvo. É
ela quem dá unidade ao texto, uma vez que as cenas são independentes.
O tempo é um tempo metafísico, porque as personagens já estão mortas, ou seja,
fora do tempo compreendido entre o nascimento e a morte. O espaço é uma espécie
de porto situado entre a terra e o céu. Ao fim, notamos que se trata de um auto com
sentido moralizador. A crítica e a sátira que permeiam o texto têm função educativa.
Como podemos ver, os textos que compõem o gênero dramático permitem diver-
sas abordagens e, caso não estejamos atentos, podemos confundir o gênero dramático
com os demais. A presença de tempo, espaço, personagens e um enredo reconhecível
poderiam nos levar a pensar: em que isso é diferente de um texto épico? Em primeiro
lugar, diferentemente de textos posteriores que buscarão forçar de modo sistemático a
fronteira entre os gêneros, o auto vicentino não apresenta narrador e, portanto, não nos
permite analisar o foco narrativo. Contudo, o elemento mais marcante do texto dramá-
tico é seu potencial para a encenação. Trata-se de um texto pensado para o palco, para a
realização cênica.
Alguns exemplos podem nos dar uma noção de como o palco é importante para o
gênero dramático. Na peça em versos de Vinícius de Moraes, Orfeu da Conceição, encon-
tramos uma nota do autor na qual lemos:

54
Todas as personagens da tragédia devem ser normalmente representadas por O gênero dramático
atores da raça negra, não importando isto que não possa ser, eventualmente,
encenada com atores brancos. [...] Tratando-se de uma peça onde a gíria po-
pular representa um papel muito importante, e como a linguagem do povo é
extremamente mutável, em caso de representação deve ela ser adaptada às suas
novas condições. [...] As letras dos sambas constantes da peça, com música de
Antônio Carlos Jobim, são necessariamente as que devem ser usadas em cena,
procurando-se sempre atualizar a ação o mais possível (MORAES, 1986, p. 400).

Nessas instruções para os encenadores, algumas coisas são imutáveis (os sambas
não podem sofrer alteração), outras são fortemente recomendadas (a utilização de
atores negros), mas outras podem – e devem – ser modificadas conforme as neces-
sidades, como no caso das gírias. Tudo isso ocorre em nome da melhor execução da
peça no palco. Para reforçar a ideia, podemos destacar as seguintes didascálias (ou
rubricas: instruções para a encenação que encontramos nas peças) de outro auto de
cinco séculos depois de Gil Vicente, o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna: “

Essa fala dará ideia da cena, se se adotar uma encenação mais simplificada e
pode ser conservada mesmo que se monte um cenário mais rico. [...] Aqui po-
de-se tocar uma música alegre e o Palhaço sai dançando. Uma pequena pausa e
entram Chicó e João Grilo (SUASSUNA, 1986, p. 25).
Aqui o espetáculo pode ser interrompido, a critério do ensaiador, marcando-se
o fim do primeiro ato. E pode-se continuá-lo, com a entrada do Palhaço (SUAS-
SUNA, p. 71).

Como notamos, as possibilidades de utilização do texto no espetáculo dão ideia


do quanto o texto dramático é particular, em especial se pensamos justamente no
espetáculo. Ao poder ser visto como algo que não é um fim em si mesmo, mas como
algo cuja meta é o palco, o texto dramático abre espaço, inclusive, para uma discussão
pertinente sobre os próprios limites da literatura, afinal, ao assumir o texto dramático
como parte de um todo (o espetáculo), poderíamos nos questionar se não estamos
nos referindo a outra forma de arte: nem inferior, nem superior à “literatura propria-
mente dita”, apenas particular e, portanto, diferente.
Dessa forma, o gênero dramático reforça a ideia de que a literatura exige um olhar
detido sobre sua natureza, configuração e limites. Quando mantemos esse olhar aten-
to, a literatura consegue nos dizer muito de si mesma, tanto nos momentos em que
confirma nossas expectativas, quanto naqueles em que frustra essas mesmas expec-
tativas. Talvez nos ensine mais nesses momentos de suposta frustração, já que nos
permite não apenas afiar o espírito crítico e o rigor analítico, mas também promover o
exercício da tolerância e da superação do preconceito.

55
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários
Referências

ARISTÓTELES. Poética. In: ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGUINO. A poética clássi-


ca. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 2005. p. 19-52.

BRECHT, Bertold. Estudos sobre teatro. Tradução de Fiama Pais Brandão. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

COSTA, Lígia Militz. A poética de Aristóteles: mimese e verossimilhança. São Paulo:


Ática, 1992. (Princípios).

COSTA, Lígia Militz; REMÉDIOS, Maria Luiza. A tragédia: estrutura & História. São
Paulo: Ática, 1988. (Fundamentos).

FARIA, João. Ideias teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2001.

MAGALDI, Sábato. Iniciação ao teatro. São Paulo: Ática, 2006. (Fundamentos).

MORAES, Vinicius. Poesia completa & prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira.


São Paulo: Perspectiva, 2007.

PRADO, Décio de Almeida. A personagem no teatro. In: CANDIDO, Antonioet al. A


personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1995. p. 81-102.

ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Edusp; Unicamp; Perspectiva, 1997.

SUASSUNA, Ariano. Auto da compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1986.

SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno: [1880-1950]. Tradução de Luiz Sérgio


Repa. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

VICENTE, Gil. Auto da barca do inferno: farsa de Inês Pereira. Auto da índia. São
Paulo: Ática, 2000.

56
O gênero dramático

Proposta de Atividades

Leia o fragmento da Farsa de Inês Pereira1, de Gil Vicente:


(...)
Ida a Mãe, fica Inês Pereira e o escudeiro, e senta-se Inês Pereira a lavrar, e canta
esta cantiga:
Si nos hubiera mirado,(Si nos hubiera mirado– Se não os tivesse visto)
no penara,(no penara– não sofrera)
pêratampoco os mirara. (pêratampoco os mirara – mas tampouco
os teria visto)

O Escudeiro, vendo cantar a Inês Pereira, mui agastado lhe diz:


Vós cantais, Inês Pereira?
Em vodas me andáveis vós? (vodas – festas, bodas)
Juro ao corpo de Deus
que esta seja a derradeira!
Se vos eu vejo cantar,
eu vos farei assoviar...
Inês Bofé, senhor meu marido,
se vós disso sois servido,
bem o posso eu escusar. (escusar – dispensar)

Esc. Mas é bem que o escuseis,


e outras coisas que não digo!
Inês Por que bradais vós comigo?(bradais – ralhais)
Esc. Será bom que vos caleis.
E mais: sereis avisada
que não me respondais nada,
em que ponha fogo a tudo;
porque o homem sesudo(sesudo– sério, prudente, sensato)
traz a mulher sopeada.(sopeada – contida, reprimida)

1 Sugerimos a leitura da peça, disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br>. Acesso em:


8 set. 2010.

57
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos Vós não haveis de falar
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários com homem nem mulher que seja;
nem somente ir à igreja
não vos quero eu leixar.
Já vos preguei as janelas,
porque vos não ponhais nelas.
Estareis aqui encerrada,
nesta casa tão fechada,
como freira d’Oudivelas.

Inês Que pecado foi o meu?


Por que me dais tal prisão?
Esc. Vós buscastes discrição...
Que culpa vos tenho eu?
Pode ser maior aviso,
maior discrição e siso,
que guardar eu meu tesouro?
Não sois vós, mulher, meu ouro?
Que mal faço em guardar isso?

Vós não haveis de mandar


em casa somente um pêlo;
se eu disser: “Isto é novelo”,
havei-lo de confirmar.
E mais: quando eu vier
de fora, haveis de tremer;
e cousa que vós digais
não vos há-de valer mais
que aquilo que eu quiser.
(...) ( VICENTE, 2000, p. 90-91).

1) Observe que não há um narrador. É possível, mesmo sem a presença dessa figura, saber
o que se passa entre o Escudeiro e Inês? Descreva o modo de ser de Inês e do Escudeiro.
2) Por que se pode afirmar que o texto é moralizante? Redija um texto justificando sua
resposta.

58
O gênero dramático

Anotações

59
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários
Anotações

60
E pílogo
Para onde vai a
literatura?
Após as considerações sobre o fenômeno literário que aqui foram expostas, cabe
uma reflexão final acerca também dos rumos da literatura. Afinal, é inegável que a
literatura insira-se atualmente em um cenário artístico e comunicacional complexo,
em meio a novas possibilidades que se oferecem, sobretudo, em função de novos
meios de comunicação e das relações que as pessoas estabelecem com eles e consigo
mesmas. Os efeitos de tal cenário são sentidos de modo evidente.
Em seus primórdios, a literatura ocupava um espaço e desempenhava um papel
muito relevante na sociedade. As epopeias homéricas, por exemplo, não apenas repre-
sentavam uma grande realização artística, mas também serviam de base religiosa, polí-
tica, histórica etc. O teatro clássico grego estava ligado a grandes acontecimentos cul-
turais e sociais, arregimentando a pólis, a cidade-estado grega, e dela participando. Em
competições que eram realizadas, a comunidade tinha participação expressiva como
público, ressaltando a inserção dessa manifestação artística em termos expressivos.
Além disso, a literatura da Antiguidade também desempenhava um papel de gran-
de importância na constituição da própria identidade nacional dos povos em que se
manifestava. No Império Romano, a criação (incompleta, é verdade) da Eneida do
poeta Virgílio não representa apenas uma grande realização artística; ela também ecoa
a criação do próprio império, sobretudo aquele sedimentado por Otaviano Augusto.
Em relação à própria língua utilizada, a literatura também assume esse papel de
afirmação de identidade. Quando Dante escreve sua Divina comédia em seu italiano,
e não em latim, favorece a visão do outrora “latim vulgar” como língua artística, contri-
buindo para toda uma tradição posterior. E, quando um autor como o alemão Goethe
escreve seu Fausto, ele também oferece ao leitor uma obra que sintetiza o espírito e a
identidade do povo alemão, de um modo que é reconhecido por autores posteriores
com preocupação específica sobre o que significaria “ser alemão”, como é o caso do
declarado discípulo de Goethe no século XX, Thomas Mann.
E hoje? A literatura não ocupa mais esses espaços. Mas será que isso significaria que
ela não possui mais relevância social e artístico-cultural? Uma visão mais mal-humorada

61
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos e com vocação apocalíptica diria que somos assediados a todo instante pela cultura de
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários massa e por suas manifestações de qualidade duvidosa, e que a literatura, igualmente
assediada, teria cada vez menos representatividade, ligando-se também a um novo per-
fil do consumidor de arte que leria pouco, e mal. Apenas para ficarmos com um exem-
plo rasteiro, poderíamos tentar lembrar dos nomes de, ao menos, dez “imortais” que
fazem parte da Academia Brasileira de Letras ou dos últimos dez vencedores do Prêmio
Nobel de literatura. Sem o auxílio prestativo da internet, apenas um grupo reduzidíssi-
mo de pessoas poderia responder prontamente, mesmo entre os especialistas.
Todavia, sem desconsiderar que não vivemos em um mar de rosas em matéria de
literatura (será que algum dia tal mar de rosas realmente existiu?), é sempre mais inte-
ressante relativizar os fatos a partir do exercício crítico, o que nos permite uma visão
com maior perspectiva e discernimento. Muitos caem na facilidade de afirmar que a
literatura não possui mais espaço, ou que os leitores atuais (em especial os jovens)
não leem com proficiência ou, pura e simplesmente, não leem. Mas como explicar os
números impressionantes de séries como Harry Potter, Percy Jackson ou Crepúsculo?
Muitos preferem destacar, antes, o que consideram falta de excelência artística de au-
tores e de obras e simplesmente ignoram o fato de que, independentemente da quali-
dade em questão, as pessoas leem, mesmo os jovens. A questão quantitativa, portanto,
deve ser vista com cuidado.
Por outro lado, a questão qualitativa também permite visões e abordagens diferen-
tes. Harry Potter aproveita-se do apreço pela fantasia como escapismo? Crepúsculo
é um amontoado de clichês? Todos os sucessos literários da atualidade estão apenas
visando cifras monumentais da televisão e do cinema sem levar em conta sua condição
de obra de arte? Tudo isso pode (e deve) ser levado em conta, mas não deve mascarar
uma pergunta igualmente importante, e da qual ninguém deveria fugir, especialmente
um estudante de Letras e professor em formação: será que os “defeitos”, enquanto
defeitos, não estariam nos olhos preconceituosos e enviesados de quem vê? São per-
guntas em excesso, claro. Mas o excesso, aqui, mostra que não tratamos de verdades
absolutas, como, por sinal, ocorre com tudo, de modo que a arte, em geral, e a litera-
tura, em particular, não são exceção.
A própria relação da literatura com outras mídias e artes mostra como os proces-
sos são complexos. Tomemos um exemplo emblemático. Uma série que faz sucesso
atualmente, Crônicas de gelo e fogo, é conhecida no Brasil mais pelo nome de seu
primeiro volume, A guerra dos tronos. Um dos motivos para tal mudança é o sucesso
da série televisiva da rede HBO, veiculada em 2011 e intitulada Game of Thrones.
Novamente teríamos a constatação de que mídias e artes audiovisuais mostram sua
proeminência em relação à pobre palavra escrita. Mas temos que perceber que o

62
sucesso da série levou a uma revitalização do ciclo romanesco, iniciado em 1996, Para onde
vai a literatura?
incrementando as vendagens e sua penetração em outros idiomas e países.
A internet também desempenha um papel de destaque nesse drama. Habitualmen-
te acusada de polarizar tempo e interesse de crianças e adolescentes (mas não apenas
deles!), ela seria mais uma das vilãs responsáveis pela decadência da literatura e da
leitura. Acostumados a uma leitura de mensagens curtas e superficiais e possuidores
de uma cultura pior do que aquela de almanaque, os nativos digitais estariam, por
fim, alijados dos prazeres e dos benefícios da Alta Literatura. Aqueles que afirmam tal
coisa ignoram que esses nativos digitais, membros da geração Y e seus sucessores, uti-
lizam a linguagem verbal tanto para a escrita quanto para a leitura de um modo que
pode ser particular, mas que denota uma inquestionável proficiência. Se quisermos
acusá-los de não ser capazes de leitura em profundidade, temos de nos perguntar se
somos capazes de manter uma dezena ou mais de janelas de bate-papo, escrevendo e
lendo, sem perder o fio condutor de nenhum dos processos comunicacionais, a
despeito de sua pretensa superficialidade.
Diante disso, percebemos que nosso papel, como profissionais e estudiosos da
literatura, claro, mas em especial como educadores e fomentadores de cultura e arte,
é levar em conta as diversas faces do contexto em que nosso objeto de discussão se
insere. A máquina mercadológica e midiática com a qual a literatura dialoga, ora à
margem, ora imersa em seus meandros, pode ser um elemento dificultador. E pode,
igualmente, ser utilizada de maneira a atuar como mediadora de leitura, proporcio-
nando uma relação com essa forma artística específica que, sem desconsiderar essa
especificidade, não cai na tentação facilitadora de um fechamento simplista que é o
agente da alienação.
Assumindo que o cenário não é tão assustador como alguns podem crer, o que
podemos – e devemos – fazer? Correndo o risco do exagero repetitivo, devemos, em
primeiro lugar, não cultivar preconceitos ou medos, deixando a literatura seguir seu
caminho junto de outras formas artísticas e dinâmicas comunicacionais. Em seguida,
podemos assumir nosso alto papel como legatários responsáveis pela continuidade
das discussões e reflexões sobre a literatura. Manter viva e dinâmica a tradição lite-
rária significa manter viva nossa memória cultural profunda, o que não apenas nos
ajuda a entender de onde viemos, mas também explica onde estamos e para onde
vamos. Hoje temos uma tendência à brevidade e a deixar as coisas incompletas? Pois
ao menos desde a passagem do século XVIII para o XIX a literatura ocidental traz uma
demanda de brevidade e de trabalho com formas fragmentárias de modo consciente
e programático. O lugar-comum, aqui, é verdadeiro: o passado explica o presente e
auxilia-nos a preparar o futuro.

63
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos O estudioso de literatura sempre foi uma espécie de “sacerdote da cultura”. E,
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários por meio de seus ritos, tem assumido, através dos séculos, a função de conservação
e permanência. Situado em um universo de constante atualização – típico de uma
sociedade sob a influência cultural e comunicacional da internet –, aquele que se
propuser a ser esse sacerdote deve lidar com a tensão de, a um só tempo, atualizar
e manter. Parece difícil, quase uma contradição intransponível, mas nos ensina uma
lição importante: viver sob o signo da atualização não significa viver sob o signo
da descartabilidade. Diferentemente daqueles que aproveitam apenas o prazer da
literatura, o especialista assume a difícil tarefa de separar o perene do descartável.
O descartável, como seria de se esperar, desaparece ao cair nos desvãos da História.
O perene, o eterno, continua presente, apesar de atualizar, de se transformar. Na
verdade, é justamente essa capacidade de renovação que garante sua permanência.
Quando nos lembramos de que “amor é fogo que arde sem se ver”, lembramo-nos de
Camões, mas também lembramo-nos de Renato Russo e da banda Legião Urbana. No
futuro, também nos lembraremos de outros que farão que o amor continue ardendo
sem se ver.
No fim, após essa Introdução aos estudos literários, é importante que tenhamos
sempre em mente que não estamos aqui nem estaremos no futuro diante de uma sala
de aula apenas por uma questão utilitária e insensivelmente profissional. Estamos aqui
e estaremos lá para que a chama não se apague e para passá-la ao próximo corredor.
Desse modo, daremos nossa contribuição – minúscula, mas imprescindível – para que
a literatura seja literatura, para que possamos desafiar o tempo com a memória e a per-
manência, para que possamos separar o descartável daquilo de que não podemos abrir
mão porque faz de nós o que somos. Em suma, para podermos ser como Marco Polo,
o mesmo que escreveu o Livro das maravilhas e que se “atualiza” como personagem
de um escritor de séculos depois, Ítalo Calvino. Para provar que a literatura muda,
mas não morre, o novo Marco Polo viaja o mundo vendo as maravilhas d’As cidades
invisíveis (nome do livro de Calvino), descrevendo-as depois ao Grande Khan. No fim,
a cidade que resta é a cidade infernal, ecoando a Dite da Divina comédia de Dante
(permanência e atualização, como sempre). Diante da afirmação de Kublai Khan sobre
a inutilidade de tudo (uma vez que o ponto final é o inferno), Marco Polo retruca com
perfeição:

O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o
inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem
duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas:
aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo.
A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber
reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e
abrir espaço (CALVINO, 2003, p. 158).

64
Essa constatação é tão eloquente que o crítico estadunidense Harold Bloom, defen- Para onde
vai a literatura?
sor – por vezes exagerado – da literatura, vê nela uma bela síntese do que fazemos e
do motivo porque fazemos: “O conselho de Calvino elucida-nos sobre como e por que
ler: para ficarmos alertas, para buscarmos e reconhecermos a possibilidade do bem,
para trabalhar pela sobrevivência do bem, e para abrir espaço ao bem em nossa vida”
(BLOOM, 2001, p. 60). Não é pouco, convenhamos. Então prossigamos na caminhada,
pois ela está apenas começando.

Referências

BLOOM, Harold. O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo. Tradução de


Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.

______. Como e por que ler. Tradução de José Roberto O´Shea. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001.

CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi. Rio de Janeiro:


O Globo, 2003.

______. Porque ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1993.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000.

DARTON, Robert. A questão dos livros: passado, presente e futuro. Tradução de


Daniel Pellizzari. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

BLOOM, Harold. O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo. Tradução de


Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.

65
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários
Proposta de Atividades

Conforme vimos, a reflexão mais atualizada sobre os rumos da literatura muitas vezes nos
leva a um território movediço e duvidoso. O efeito de tal percurso é a insegurança e o medo.
O profissional de Letras, porém, não pode se furtar à reflexão sobre o assunto. Diante disso,

a) Escolha uma obra literária que tenha uma versão ou adaptação em outro suporte e arte
(cinema, quadrinhos etc.). Que tipo de diálogo se estabelece? Qual obra é mais relevante e
por quê?
b) Visite alguma rede social e procure a presença da literatura nesse espaço virtual. Se houver,
como se dá essa presença? Se não houver, o que poderia explicar a ausência?
c) Considere sua realidade em sala de aula até aqui. Qual é o espaço que a literatura teve?
Como seus professores contribuíram para sua formação como leitor? Na condição de pro-
fessor em formação, como você pretende contribuir para o fomento da leitura literária
entre seus alunos?

Anotações

66
Para onde
vai a literatura?

Anotações

67
INTRODUÇÃO
IntroduçãoAOS
aos
ESTUDOS LITERÁRIOS
Estudos
Literários
Anotações

68

Você também pode gostar