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ASPECTOS METODOLÓGICOS DO ENSINO DA LITERATURA

Annie Rouxel
Trad. Neide Luzia de Rezende

Antes de questionar a maneira de ensinar literatura, gostaria de refletir sobre


alguns aspectos que me parecem preliminares incontornáveis.

1. O primeiro concerne às finalidades e aos objetivos do ensino da literatura:


ensinar literatura para quê? O para quê comanda o como. Métodos e finalidades
estão ligados. Trata-se de aumentar a cultura dos alunos? (e qual cultura?), de
formar leitores? de contribuir para a construção de suas identidades singulares
ou propiciar, pelo compartilhamento dos valores, a elaboração de uma cultura
comum, o sentimento de pertencimento a uma comunidade nacional? Esses
elementos não se excluem e compõem o espectro das possibilidades entre as
quais é lícito escolher ou não escolher. Abordarei esses aspectos ao longo de
meu texto.
2. A segunda preliminar concerne à definição da literatura: que literatura ensinar?
A abordagem dos textos varia segundo o estatuto do texto estudado e seu grau
de “legitimidade”: texto canônico, clássico versus texto contemporâneo;
Literatura geral com um grande “L” versus literatura juvenil. Depende ainda do
modo de apresentação do texto estudado: fragmento ou obra integral. A
literatura é igualmente determinada pelo seu pertencimento e os saberes
disponíveis – e didatizados – no campo. Esses diferentes parâmetros interferem
e tornam complexa a tarefa dos professores.
3. Por fim, é preciso, evidentemente, levar em conta os avanços teóricos que
configuram um novo quadro para refletir sobre o ensino da literatura. E é por aí
que vou começar.

I. Os avanços da pesquisa em literatura e em didática da literatura: mudanças


importantes

Esses avanços afetam as noções de literatura, de leitura literária e de cultura


literária.

Concepção de literatura: três mudanças fundamentais de paradigma:


1. De uma concepção da literatura como corpus, restrita aos textos
legítimos, a uma concepção extensiva da literatura.
2. De uma concepção da literatura como corpus a uma concepção da
literatura como prática, como atividade: o interesse se desloca para o
campo literário, para os processos de produção e de recepção das obras e
para os diversos agentes desse campo (escritor, edição, crítica, leitores,
escola)
3. De uma concepção autotélica da literatura (como conjunto de textos de
finalidade estética) a uma concepção transitiva da literatura como ato de
comunicação: há um interesse pelo conteúdo existencial das obras, pelos
valores éticos e estéticos de que elas são portadoras.
A leitura literária: diversas mudanças de foco são igualmente observadas nesse
domínio.
1. Do leitor modelo (que é uma virtualidade, uma construção textual, um
conceito) aos leitores reais, plurais, empíricos.
2. Do texto a ler ao “texto do leitor”, realização singular, resultado de um
processo de atualização do texto do autor.
3. De uma postura distanciada visando uma descrição objetiva do texto a
uma postura implicada, sinal do engajamento do leitor no texto. Essa
transformação da relação com o texto se traduz por uma reabilitação do
fenômeno de identificação, considerada durante muito tempo como uma
regressão. Assim, trata-se de propiciar para o jovem leitor uma “distância
participativa”.

A cultura literária: a concepção tradicional da cultura literária oscila em uma


série de oposições:
1. À cultura literária entendida como capital cultural composto de um
conjunto de dados factuais, identificáveis e quantificáveis (trata-se com
freqüência de obras legítimas) se opõe uma cultura literária interiorizada
concebida como uma “biblioteca interior”. A primeira se define como um
inventário e obedece ao princípio cumulativo (a adição); a segunda é
apreendida como processo, submetida ás variações.
2. Outro aspecto dessa dicotomia: a uma cultura literária visando à
valorização social, uma vez que responde a uma prescrição social, se opõe
uma cultura literária viva, concebida como um saber para o indivíduo, para
ele pensar, agir, se construir. A primeira concerne a identidade social do
indivíduo, a segunda participa de sua construção identitária singular.

II. O ensino da literatura: aspectos metodológicos

Como já explicitei nessa introdução, pensar sobre o ensino da literatura e suas


modalidades práticas supõe que se defina a finalidade desse ensino. É a formação de um
sujeito leitor livre, responsável e crítico – capaz de construir o sentido de modo
autônomo e de argumentar a respeito – que é previsto aqui. É também, obviamente, a
formação de uma personalidade sensível e inteligente, aberta aos outros e ao mundo que
vislumbra esse ensino da literatura.
Essa formação resulta da sinergia de três componente, que são a atividade do
aluno sujeito leitor no âmbito da classe constituída em “comunidade interpretativa”
(FISCH, 2007), a literatura ensinada – textos e obras – e a ação do professor cujas
escolhas didáticas e pedagógicas se revestem de uma importância maior.

Instituir o aluno sujeito leitor. Isso significa, em primeiro lugar, tanto para o
professor quanto para o aluno, renunciar à imposição de um sentido convencionado,
imutável, a ser transmitido. A tarefa, para ambos, é mais complexa, mais difícil e mais
exultante. Trata-se de partir da recepção do aluno, de convidá-lo à aventura
interpretativa com seus riscos, reforçando suas competências pela aquisição de saberes e
de savoir-faire. O paradoxo da leitura literária em sala se atém ao fato que, lugar de
estudos e de aquisição de saberes, ela, de fato, não é mais apenas uma leitura. Como
fazer para que ela o seja? Como desenvolver, em proveito da leitura – quer dizer, sem
prejuízo para o investimento do leitor – a dialética leitura/estudo/leitura? Finalmente,
como adquirir os saberes no âmbito da leitura?
Na tensão entre o texto e o leitor que caracteriza a leitura literária em classe, os
saberes úteis são de três ordens: saberes sobre os textos, saberes sobre si e saberes sobre
a atividade lexical.

Os saberes sobre os textos – conhecimento dos gêneros, poética dos


textos, funcionamento dos discursos etc. – são descobertos e adquiridos no
âmbito da leitura. O estudo de uma obra integral, por exemplo, permite
descobrir, identificar e compreender os fenômenos sobre os quais serão
assentados os conceitos e as noções que, ao longo do tempo, se transformarão
em ferramentas de leitura. A leitura da obra fornece a ocasião de reinvestimentos
capazes de automatizar e de afinar as abordagens do texto. Esses saberes podem
ainda ser verificados nas atividades de escrita literária em que o aluno se situa
em posição de autor investido de uma intenção artística.
Os jovens alunos do ensino fundamental dispõem também de saberes
sobre os textos (em geral sobre os contos e as fábulas). Algumas experiências de
leitura se sedimentaram e são memorizadas. A familiaridade com as formas, com
os motivos, determina alguns saberes implícitos. As lógicas associativa e
comparativa fundam essas elaborações que concernem sobretudo a escrita
narrativa.

Os saberes sobre si remetem à expressão de um pensamento pessoal e de


um julgamento de gosto assumidos. É a afirmação de uma subjetividade
mobilizada na leitura. Na primeira etapa do ensino fundamental, os alunos
revelam seus pensamentos e suas emoções mais diretamente e o professor deve
frequentemente lembrar a eles a necessidade de voltar ao texto. Na etapa
seguinte, os adolescentes resistem em revelar aquilo que eles consideram sua
intimidade. Pudor ou medo do contrassenso, do erro de interpretação que os
desprestigia diante da classe e do professor? Eles se refugiam com frequência
num silêncio teimoso, às vezes no psitacismo ou em observações sem perigo
para eles. Trata-se, pois, de dar-lhes confiança para que eles ousem pensar a
partir de si próprios. Diversas atividades podem ser planejadas para fazer
emergir a subjetividade deles, para que eles aprendam a escutar a si próprios.
Três exemplos:
- a prática dos diários de leitura (e a lógica associativa);
- a “escuta flutuante”: sensações e imagens mentais. (Protocolo de investigação
de Nathalie Rannou a propósito do haicai);
- a prática metacognitiva do autorretrato de leitor (ou da autobiografia de leitor,
segundo a idade).

Os saberes sobre o ato léxico ou saberes metaléxicos são aqueles nos


quais se sustenta a “cooperação interpretativa” (ECO, 1985) ou, para dizer como
Catherine Tauveron, aqueles que asseguram o equilíbrio entre “direitos do texto”
e “direitos do leitor” (TAUVERON, 2004)1. Se é conveniente encorajar a leitura
subjetiva, é conveniente também ensinar aos alunos a evitar uma subjetividade
desenfreada, fonte de delírio interpretativo. O problema da liberdade do leitor e
dos limites da interpretação deve ser abordado em classe, mesmo se isso parece
1
. Este texto de C. Tauveron será publicado no Brasil em ROUXEL, A., LANGLADE, G., REZENDE, N.
Leitura subjetiva e ensino da literatura. São Paulo: Alameda Editorial (no prelo). N.T.
ambicioso. Distinguir, como sugere Vincent Jouve (2004)2, subjetividade
necessária, programada pelo texto, e subjetividade acidental supõe uma reflexão
crítica que não está fora do alcance dos alunos. Eles são capazes de compreender
que existem muitas maneiras de ler e que uma leitura socializada impõe regras.
Para isso, os alunos dispõem de duas colaborações: o recurso ao texto, a
arbitragem dos pares. A atenção ao texto é uma das primeiras competências
desenvolvidas pelos alunos. Desde o começo da escolaridade, os professores se
preocupam em estabelecer o hábito de submeter as hipóteses à autoridade do
texto. Os pequenos, querendo argumentar sobre o texto, apontar para este e
dizem: “está escrito!”. A sala de aula representa assim esse papel de regulador.
Ela é o espaço intersubjetivo onde se confrontam os diversos “textos de leitores”
a fim de estabelecer o texto do grupo, objeto se não de uma negociação ao
menos de um consenso. A presença da sala de aula é essencial na formação dos
jovens leitores: lugar de debate interpretativo (avatar do conflito de
interpretação), ela ilumina a polissemia dos textos literários e a diversidade dos
investimentos subjetivos que autoriza.

A literatura ensinada: a escolha das obras

Essa escolha é determinante para a formação dos sujeitos leitores. Sabemos que
o professor deve levar em conta os programas e as prescrições oficiais, mas muitas
vezes lhe é permitido escolher, numa determinada lista, as obras para ler e estudar em
sala. Eis algumas reflexões capazes de orientar suas escolhas.
- É importante confrontar os alunos com a diversidade do literário (cujo
conhecimento afina os julgamentos de gosto):
- Diversidade genérica: ao lado de gêneros tradicionais (romance, teatro, poesia,
ensaio), os novos gêneros (autoficção, história em quadrinhos, álbum)-
Diversidade histórica: obras canônicas, clássicas, fundadas em valores nos quais
uma sociedade se reconhece, obras contemporâneas, literatura viva que lança um
olhar sobre mundo de hoje.
- Diversidade geográfica: literatura nacional, literatura estrangeira,
principalmente as grandes obras traduzidas do passado e do presente que se
abrem para outras culturas e constituem lugares de compartilhamento simbólicos
em momento de globalização.
- É importante também de propor obras das quais eles extrairão um ganho ético e
estético, obras cujo conteúdo existencial deixa marcas. Durante muito tempo
enfatizamos o estudo formal em detrimento do conteúdo, o que explica, como
denunciou Todorov (2007) e muitos outros sociólogos (Baudelot, Cartier,
Detrez, 1999) , o desapego dos jovens pela leitura. O desafio é de monta,
portanto, já que concerne tanto ao desenvolvimento do gosto de ler quanto a
construção identitária do leitor e o enriquecimento de sua personalidade. Assim,
as experiências de leitura invocadas pelos adolescentes durante as conversas ou
em suas autobiografias de leitor – que representam para eles um
“acontecimento” que os transformaram – provêm de obras que os colocam
diante de grandes questões existenciais: o amor, a morte, o desejo, o
sofrimento etc. A literatura popular que agrada tanto aos jovens – Harry Potter,
Crepúsculo – explora esse veio. A antropóloga Michele Petit (2002) explica que
essas leituras particulares respondem a uma necessidade e que possuem o mérito

2
Este texto também estará presente no livro a ser publicado no Brasil, conforme a nota 1. N.T.
de verbalizar emoções e vivências, que muitas vezes se furtam à apreensão (da
consciência, da memória). A literatura lida em sal convida também a explorar a
experiência humana, a extrair proveitos simbólicos que o professor não consegue
avaliar pois estão ligados à esfera íntima. Enriquecimento do imaginário,
enriquecimento da sensibilidade por meio do vivido fictício, construção de um
pensamento, todos esses elementos que participam da transformação identitária
são mobilizados na leitura. “Nós pensamos somente a partir daquilo que nos é
lançado por outros (...)”, escreve Michèle Petit (2008, p. 38). “Sem o outro, não
há sujeito (...) [a identidade] se constrói tanto num movimento centrífugo quanto
centrípeto, num impulso em direção ao outro, uma ruptura de si, uma
curiosidade – uma vontade às vezes feroz”.
- Segundo a modalidade de leitura (autônoma ou na classe), convém observar o
grau de dificuldade da obra proposta.

A aprendizagem da leitura literária e o interesse da atividade do sujeito leitor


levam a privilegiar as obras complexas que não oferecem uma compreensão imediata.
Essas obras impulsionam uma atividade intelectual formadora, suscitando processos
interpretativos conscientes e inconscientes. Se nos ativermos à teoria de Umberto Eco3,
“o texto é um organismo preguiçoso”, “um tecido de brancos”, o texto é “esburacado” e
espera que o leitor o complete. O leitor investe no texto a partir de sua experiência de
mundo e da literatura e se representa o universo ficcional com imagens mentais que lhe
são próprias. Ao mesmo tempo, a incompletude do texto suscita no leitor uma forte
atividade inferencial: inferências lógicas, ligadas ao sistema lingüístico, inferências
pragmáticas que convocam os saberes enciclopédicos – ambas são automáticas – e
abduções que requerem relações cujos resultados permanecem marcados pela incerteza.
São essas últimas que oferecem a possibilidade de ricos debates interpretativos na
classe.
No fundamental 1, a escolha de obras complexas é feita na maior parte das vezes
justamente por causa de suas potencialidades formadoras. Catherine Tauveron (2004ª)
recomenda para os menores “textos resistentes”, que ofereçam “jogo e proporcionem o
sentido do jogo”. Ela destaca a dimensão lúdica da leitura literária, que coloque leitor
diante de um obstáculo que o obrigue a uma transgressão de seu habitus de leitor. Entre
esses textos, Catherine Tauveron (1999) distingue duas categorias: os textos prolíferos e
os textos reticentes. Os primeiros se caracterizam por sua forte polissemia; eles
comportam zonas de indecisão que não impedem contudo a compreensão imediata. Os
segundos programam a desorientação do leitor que deverá rever sua compreensão
errônea. Esses textos pedem vigilância: o leitor atento e imaginativo se empenha em
desmontar as armadilhas que lhe são montadas e esse jogo criativo de elucidação, de
busca de coerência, lhe dá prazer. Esse prazer sutil é evocado por Wolfgang Iser em
L’acte de lecture (1985): “a leitura só se torna prazer se a criatividade entra em jogo, se
o texto nos oferece uma chance de colocar nossas aptidões à prova”.
A fim de ilustrar a natureza dos obstáculos aos quais os alunos são confrontados,
quatro categorias podem ser convocadas. Obstáculos que:
- requerem escolhas enunciativas: obras que dispõem de vários
narradores, obras fundadas sobre um revezamento de narração (que
compõe uma estrutura em quebra-cabeças); confusão da origem
enunciativa (narrador externo ou personagem?);

3
Lector in fabula. e Les Limites de l’interprétation.
- resultam de escolhas formais, estruturais: estrutura não linear, encaixes
de narrativas, de comentários metanarrativos...
- que embaraçam a mímesis, que afetam o mundo ficcional representado:
confusão cronológica, retenção de informações (sobre a motivação das
personagens, por exemplo), disseminação de índices ambíguos,
representação do conteúdo de pensamento ou de sonho de uma
personagem sem transição com a representação do mundo da intriga.
- que manifestam escolhas éticas ou estéticas surpreendentes ou
transgressoras: ponto de vista inesperado do narrador, surgimento do
sonho da fantasia num universo realista, ecos intertextuais ou reescrita
transgressiva ou paródica.

Na França, a literatura para jovens oferece uma mina de obras de qualidade para
essa aprendizagem da leitura literária. Há um grande número de obras nesse domínio –
álbuns, romances, peças de teatro – cuja fartura corresponde às grandes obras da
literatura contemporânea. A leitura dessas obras tende a criar um novo horizonte de
expectativas nos alunos.
No ensino médio, a relação com a complexidade resulta primeiro dos programas
que estipulam o encontro com obras do passado. O sentimento de alteridade domina
diante de textos que é preciso aprender a descobrir. Deve-se estimular a curiosidade
diante desses objetos diferentes cujos códigos linguísticos, éticos e estéticos são
desconhecidos ou pouco conhecidos. A inventividade do professor é requisitada para
elaborar um dispositivo capaz de interpelar os alunos. Relação da obra com outros
objetos semióticos da mesma época – um poema, um quadro, uma música; confrontação
da obra com suas adaptações contemporâneas que funcionam também como “textos de
leitores” – por exemplo, o romance de Proust, Em busca do tempo perdido, adaptado em
HQ ou para a tevê; vaivém entre uma obra do passado e sua reescrita contemporânea;
leitura de um clássico em comparação com uma obra do presente tratando da mesma
problemática, como sugeria Ítalo Calvino (1996), propondo a seguinte dupla definição
do clássico: “13 – É clássico aquilo que tende a relegar a atualidade à situação de rumor
de fundo sem, no entanto, extinguir esse rumor. 14 – É clássico aquilo que persiste
como rumor de fundo exatamente onde ali a atualidade que está mais distante reina
soberana”. Desse diálogo entre passado e presente pode nascer um conjunto de questões
que revelam um início de interesse, Trata-se de compreender a que necessidade
respondia essa obra no seu tempo e é a história literária que pode ser convocada para
tentar responder a essa questão. É também importante compreender como essa obra
pode ainda nos concernir hoje, um convite à leitura atualizada proposta por Yves Citton
(2007) no seu livro Lire, interpréter, actualiser – pourquoi les études littéraires?.
Se levamos em conta as reações entusiasmadas dos colegiais a partir da leitura
de certos grandes clássicos (com frequência mediadas pela adaptação cinematográfica),
compreende-se que essas obras vivem ainda por causa das leituras que necessariamente
as transformam. É essa reação sensível que indica a apropriação da obra pelo aluno.
Nesse caso se produz esse fenômeno próprio da leitura literária: a alteração da obra pelo
leitor e a alteração do leitor pela obra. Este, o leitor, se expõe ao ler, se desapropria de si
mesmo para se confrontar com a alteridade e descobrir a alteridade que está nele.
Entretanto, para que ocorra esse fenômeno é preciso que os alunos tenham
acesso às obras integrais. É ilusório esperar que se possa vivenciar essa experiência na
escola a partir unicamente da leitura de um fragmento. É por isso que a atividade de
leitura em sala de aula é em geral frustrante. Ao lado do tempo de estudo, a leitura
integral efetuada na esfera privada é a única capaz de modificar a relação dos alunos
com o texto. A prática da leitura cursiva, que se pode discutir na sala, oferece
possibilidades de renovação do ensino da literatura.

O professor, sujeito leitor

Como vimos, o papel do professor não é mais transmitir uma interpretação


produzida fora dele e institucionalizada. As obras críticas, os livros do professor, os
paradidáticos propõem o “prêt à penser” [“pronto para pensar”] e o “prêt à enseigner”
[“pronto para ensinar”]4. Quando se trata de clássicos, os discursos se repetem e formam
uma matéria que é preciso conhecer e observar com distanciamento crítico.
O professor é um sujeito leitor que tem sua própria leitura do texto. É também um
profissional que precisa vislumbrar, em função de diferentes parâmetros (idade dos
alunos, expectativas institucionais), que leitura do texto poderá ser elaborada na aula.
Sua ética profissional o proíbe de expor sem mediação sua própria leitura: é preciso
efetuar acomodações (no sentido óptico e fotográfico do termo) e antecipar as
dificuldades dos alunos. É preciso também renunciar a algumas singularidades de sua
leitura pessoal. De todo modo, diante de um público mais velho, não se exclui a
possibilidade de compartilhar sua leitura, sem, contudo, impô-la.
No geral, espera-se que a compreensão e a interpretação do texto trabalhado na aula
resultem de uma negociação suficientemente liberal capaz de admitir variações que não
alterem o núcleo semântico do texto, de modo a deixar aberta a polissemia.
O professor do ensino fundamental 1 busca primeiro, mediante questões abertas,
recolher a leitura dos alunos, identificar zonas de incompreensão de dificuldades para
submetê-las ao debate interpretativo. Ele também pode guiar a atenção para o texto e
fazer com que os alunos levantem hipóteses e cheguem a interpretações aceitáveis ou
satisfatórias.
O processo é parecido no ensino fundamental 2: o professor recolhe hipóteses de
leitura, elaborações semânticas lacunares, insuficientes, às vezes erradas, a partir das
quais suscita a reflexão dos alunos. Desse modo, ele ancora o processo interpretativo na
leitura subjetiva dos alunos.
Permanece a questão do como se busca instaurar o aluno sujeito leitor. Com
relação à teoria das instâncias leitores de Michel Picard (1986), é preciso admitir que o
lu [lido] se exprime em classe que o lectant [leitante], instância do secundário, não
aparece imediatamente no discurso dos alunos, aparece mais durante as trocas, onde se
estabelecem o/os texto/os da classe. Há, pois, lugar para os afetos, para a axiologia (que
permaneceu censurada por muito tempo) nas intervenções dos alunos. Dessa liberdade
resultam interações mais ricas na classe, mais argutas: alguns alunos se arriscam à
aventura interpretativa. É claro que aparece então o problema do erro de leitura e de seu
tratamento: longe de ser estigmatizada, a proposição do aluno deve ser acolhida para dar
lugar a investigações. Estabelecida a constatação do erro, este pode se tornar um espaço
de formação se o aluno é solicitado a descrever o movimento da leitura que o
engendrou. Assim a reflexão se faz sobre o ato léxico e não mais sobre o texto, a fim de
construir as competências de leitor. Em face de zonas de opacidade e incerteza dos
textos resistentes, é aconselhável não colocar os alunos de sobreaviso para não errar,
pois os frutos que tiram dessa experiência – boa ou má – de confronto com a dificuldade
são insubstituíveis. Os gestos profissionais requeridos pelo ensino da literatura supõem

4
Jogos de palavras que fazem menção a “prêt à porter” do mundo da moda. N.T.
a sagacidade do professor, que é adquirida com a experiência, ele deve avaliar as
dificuldades e seu tratamento: previsão, apagamento, regulação, intervenção se
distribuem em função dos textos e das situações.
Enfim, a confrontação com os textos resistentes (principalmente os de nossa
modernidade) permite também desenvolver uma competência que é aceitar a
persistência de zonas de sombra no texto, aceitar a abertura da obra – que finalmente
autoriza um investimento pessoal do leitor (fora do controle ou do consentimento do
professor ou da turma). Renunciar à transparência do texto, admitir o desconforto da
incerteza é ganhar maturidade. Michel Meyer, em seu ensaio Questions de rhétorique
(1993, p.143-4), denuncia as simplificações fáceis e transforma a complexidade num
valor: “É preciso se recusar terminantemente a abolir a problemática anulando-a por
arremedos de respostas, com as quais os homens se satisfazem quando precisam se
apoiar em ilusões que acabam muitas vezes em exclusões”.

Para concluir

Depois do colóquio Sujets lecteurs et enseignement de la littérature [Sujeitos


leitores e ensino da literatura], ocorrido em Rennes em 2002, o conhecimento e o
reconhecimento do sujeito leitor progrediram muito.
A teorização das instâncias de leitura de Michel Picard foi difundida nos cursos
de formação de professores; a tipologia das posturas de leitura dos colegiais
estabelecida por Dominique Bucheton (1999) permite uma observação mais fina das
relações do texto dos alunos durante o ato de leitura; enfim, mais recentemente, a
teorização de Gérad Langlade (2006) sobre a atividade ficcionalizante do leitor oferece
um olhar novo sobre as maneiras de ler, sobre nossos movimentos de pensamento no
interior do ato de leitura.
As pesquisas atuais em didática da literatura, fundadas no estudo preciso de
transcrições de curso, mostram que é a atenção dada ao aluno enquanto sujeito, a sua
palavra e a seu pensamento construído na e pela escritura, que propicia seu investimento
na leitura. A importância do clima estabelecido no interior da comunidade interpretativa
(a classe, o professor) encontra-se em destaque: um contexto onde reinam a confiança, o
respeito e a escuta mútuos é propício ao encontro com os textos literários – e é mesmo
determinante. Permite (ao mesmo tempo em que é o fruto) o ensino de “atitudes” que
constituem, segundo Jean-Claude Chabanne (2009), um “terceiro saber”.
Disponibilidade em relação ao texto e desejo de literatura são fenômenos construídos
decorrentes tanto dos domínios cognitivos quanto afetivos. As pesquisas atuais em
literatura e em antropologia cultural5 se interessam pelas emoções e pelos laços que elas
tecem com a cognição. E é sobre a emoção e a intelecção que se constroem a relação
estética com a literatura. Pela leitura sensível da literatura, o sujeito leitor se constrói e
constrói sua humanidade. Na abordagem didática da literatura enquanto arte, o campo
das emoções é ainda pouco explorado e constitui inegavelmente uma via para pesquisas
futuras.

5
Principalmente os trabalhos de Jean-Claude Ameisen, difundidos na emissão de France Inter, Sur les
épaules de Darwin..
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