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Cidade, História e Patrimônio - 1

Organizadoras

Renata Cardoso Magagnin


Norma Regina Truppel Constantino
Sandra Medina Benini

CIDADE, HISTÓRIA
E PATRIMÔNIO

1ª Edição

ANAP
Tupã/SP
2019
2

EDITORA ANAP
Associação Amigos da Natureza da Alta Paulista
Pessoa de Direito Privado Sem Fins Lucrativos, fundada em 14 de setembro de 2003.
Rua Bolívia, nº 88, Jardim América, Cidade de Tupã, São Paulo. CEP 17.605-310.
Contato: (14) 99808-5947 e 99102-2522
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Editoração e Diagramação da Obra - Sandra Medina Benini


Revisão Ortográfica - Joselilian Miralha e Smirna Cavalheiro

Ficha Catalográfica

M188c Cidade, história e patrimônio / Renata Cardoso Magagnin, Norma


Regina Truppel Constantino e Sandra Medina Benini (orgs). 1 ed. –
Tupã: ANAP, 2019.
204 p; il.; 14.8 x 21cm

Requisitos do Sistema: Adobe Acrobat Reader


ISBN 978-65-81469-03-0

1. Cidade 2. Planejamento 3. Paisagem


I. Título.

CDD: 710
CDU: 710/49

Índice para catálogo sistemático


Brasil: Planejamento Urbano e Paisagismo
Cidade, História e Patrimônio - 3

CONSELHO DE EDITORIAL

Prof. Dr. Adeir Archanjo da Mota - UFGD


Profa. Dra. Alba Regina Azevedo Arana - UNOESTE
Prof. Dr. Alexandre Carneiro da Silva
Prof. Dr. Alexandre França Tetto - UFPR
Prof. Dr. Alexandre Sylvio Vieira da Costa - UFVJM
Prof. Dr. Alfredo Zenen Dominguez González - UNEMAT
Profa. Dra. Alina Gonçalves Santiago - UFSC
Profa. Dra. Aline Werneck Barbosa de Carvalho - UFV
Prof. Dr. Alyson Bueno Francisco - CEETEPS
Profa. Dra. Ana Klaudia de Almeida Viana Perdigão - UFPA
Profa. Dra. Ana Lúcia de Jesus Almeida - UNESP
Profa. Dra. Ana Lúcia Reis Melo Fernandes da Costa - IFAC
Profa. Dra. Ana Paula Branco do Nascimento – UNINOVE
Profa. Dra. Ana Paula Fracalanza – USP
Profa. Dra. Ana Paula Novais Pires
Profa. Dra. Ana Paula Santos de Melo Fiori - IFAL
Prof. Dr. André de Souza Silva - UNISINOS
Profa. Dra. Andrea Aparecida Zacharias – UNESP
Profa. Dra. Andrea Holz Pfutzenreuter - UFSC
Prof. Dr. Antonio Fábio Sabbá Guimarães Vieira - UFAM
Prof. Dr. Antonio Marcos dos Santos - UPE
Profa. Dra. Arlete Maria Francisco - FCT/UNP
Profa. Dra. Beatriz Ribeiro Soares - UFU
Profa. Dra. Carla Rodrigues Santos - Faculdade FASIPE
Prof. Dr. Carlos Andrés Hernández Arriagada
Profa. Dra. Carmem Silvia Maluf - Uniube
Profa. Dra. Célia Regina Moretti Meirelles - UPM
Prof. Dr. Cesar Fabiano Fioriti - FCT/UNESP
Prof. Dr. Cledimar Rogério Lourenzi - UFSC
Profa. Dra. Cristiane Miranda Martins - IFTO
Profa. Dra. Daniela de Souza Onça - FAED/UESC
Prof. Dr. Darllan Collins da Cunha e Silva - UNESP
Profa. Dra. Denise Antonucci - UPM
Profa. Dra. Diana da Cruz Fagundes Bueno - UNITAU
Prof. Dr. Edson Leite Ribeiro - Unieuro - Brasília / Ministério das Cidades
Prof. Dr. Eduardo Salinas Chávez - Universidade de La Habana, PPGG, UFGD-MS
Prof. Dr. Edvaldo Cesar Moretti - UFGD
Profa. Dra. Eliana Corrêa Aguirre de Mattos - UNICAMP
Profa. Dra. Eloisa Carvalho de Araujo - UFF
Profa. Dra. Eneida de Almeida - USJT
Prof. Dr. Erich Kellner - UFSCar
Prof. Dr. Eros Salinas Chàvez - UFMS /Aquidauana Post doctorado
Profa. Dra. Fátima Aparecida da SIlva Iocca - UNEMAT
Prof. Dr. Felippe Pessoa de Melo - Centro Universitário AGES
Prof. Dr. Fernanda Silva Graciani - UFGD
Prof. Dr. Fernando Sérgio Okimoto – UNESP
Profa. Dra. Flávia Akemi Ikuta - UFMS
4

Profa. Dra. Flávia Maria de Moura Santos - UFMT


Profa. Dra. Flávia Rebelo Mochel - UFMA
Prof. Dr. Flavio Rodrigues do Nascimento - UFC
Prof. Dr. Francisco Marques Cardozo Júnior - UESPI
Prof. Dr. Frederico Braida Rodrigues de Paula - UFJF
Prof. Dr. Frederico Canuto - UFMG
Prof. Dr. Frederico Yuri Hanai - UFSCar
Prof. Dr. Gabriel Luis Bonora Vidrih Ferreira - UEMS
Profa. Dra. Gelze Serrat de Souza Campos Rodrigues - UFU
Prof. Dr. Generoso De Angelis Neto - UEM
Prof. Dr. Geraldino Carneiro de Araújo - UFMS
Profa. Dra. Gianna Melo Barbirato - UFAL
Prof. Dr. Glauco de Paula Cocozza - UFU
Profa. Dra. Isabel Crisitna Moroz Caccia Gouveia - FCT/UNESP
Profa. Dra. Jakeline Aparecida Semechechem - UENP
Prof. Dr. João Cândido André da Silva Neto - UEA
Prof. Dr. João Carlos Nucci - UFPR
Prof. Dr. João Paulo Peres Bezerra - UFFS
Prof. Dr. João Roberto Gomes de Faria - FAAC/UNESP
Prof. Dr. José Aparecido dos Santos - FAI
Prof. Dr. José Queiroz de Miranda Neto – UFPA
Prof. Dr. José Seguinot - Universidad de Puerto Rico
Prof. Dr. Josep Muntañola Thornberg - UPC -Barcelona, Espanha
Prof. Dr. Josinês Barbosa Rabelo - UFPE
Profa. Dra. Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia - UFPB
Profa. Dra. Juliana Heloisa Pinê Américo-Pinheiro - FEA
Prof. Dr. Junior Ruiz Garcia - UFPR
Profa. Dra. Karin Schwabe Meneguetti – UEM
Profa. Dra. Katia Sakihama Ventura - UFSCar
Prof. Dr. Leandro Gaffo - UFSB
Profa. Dra. Leda Correia Pedro Miyazaki - UFU
Profa. Dra. Leonice Seolin Dias - ANAP
Profa. Dra. Lidia Maria de Almeida Plicas - IBILCE/UNESP
Profa. Dra. Lisiane Ilha Librelotto - UFS
Profa. Dra. Luciana Ferreira Leal - FACCAT
Profa. Dra. Luciana Márcia Gonçalves – UFSCar
Prof. Dr. Luiz Fernando Gouvêa e Silva - UFG
Prof. Dr. Marcelo Campos - FCE/UNESP
Prof. Dr. Marcelo Real Prado - UTFPR
Profa. Dra. Marcia Eliane Silva Carvalho - UFS
Prof. Dr. Márcio Rogério Pontes - EQUOIA Engenharia Ambiental LTDA
Profa. Dra. Margareth de Castro Afeche Pimenta - UFSC
Profa. Dra. Maria Ângela Dias - UFRJ
Profa. Dra. Maria Ângela Pereira de Castro e Silva Bortolucci - IAU
Profa. Dra. Maria Augusta Justi Pisani - UPM
Profa. Dra. María Gloria Fabregat Rodríguez - UNESP
Profa. Dra. Maria Helena Pereira Mirante – UNOESTE
Profa. Dra. Maria José Neto - UFMS
Profa. Dra. Maristela Gonçalves Giassi - UNESC
Profa. Dra. Marta Cristina de Jesus Albuquerque Nogueira - UFMT
Cidade, História e Patrimônio - 5

Profa. Dra. Martha Priscila Bezerra Pereira - UFCG


Prof. Dr. Maurício Lamano Ferreira - UNINOVE
Prof. Dr. Miguel Ernesto González Castañeda - Universidad de Guadalajara - México
Profa. Dra. Natacha Cíntia Regina Aleixo - UEA
Profa. Dra. Natália Cristina Alves
Prof. Dr. Natalino Perovano Filho - UESB
Prof. Dr. Nilton Ricoy Torres - FAU/USP
Profa. Dra. Olivia de Campos Maia Pereira - EESC - USP
Profa. Dra. Onilda Gomes Bezerra - UFPE
Prof. Dr. Oscar Buitrago - Universidad Del Valle - Cali, Colombia
Prof. Dr. Paulo Alves de Melo – UFPA
Prof. Dr. Paulo Cesar Rocha - FCT/UNESP
Prof. Dr. Paulo Cesar Vieira Archanjo
Profa. Dra. Priscila Varges da Silva - UFMS
Profa. Dra. Regina Célia de Castro Fereira - UEMA
Prof. Dr. Renan Antônio da Silva - UNESP - IBRC
Prof. Dr. Ricardo de Sampaio Dagnino - UNICAMP
Prof. Dr. Ricardo Toshio Fujihara - UFSCar
Profa. Dra. Risete Maria Queiroz Leao Braga - UFPA
Prof. Dr. Rodrigo Barchi - UNISO
Prof. Dr. Rodrigo Cezar Criado - TOLEDO Prudente Centro Universitário
Prof. Dr. Rodrigo Gonçalves dos Santos - UFSC
Prof. Dr. Rodrigo José Pisani - UNIFAL-MG
Prof. Dr. Rodrigo Simão Camacho - UFGD
Prof. Dr. Ronaldo Rodrigues Araujo - UFMA
Profa. Dra. Roselene Maria Schneider - UFMT
Prof. Dr. Salvador Carpi Junior - UNICAMP
Profa. Dra. Sandra Mara Alves da Silva Neves - UNEMAT
Prof. Dr. Sérgio Augusto Mello da Silva - FEIS/UNESP
Prof. Dr. Sergio Luis de Carvalho - FEIS/UNES
Profa. Dra. Sílvia Carla da Silva André - UFSCar
Profa. Dra. Silvia Mikami G. Pina - Unicamp
Profa. Dra. Simone Valaski - UFPR
Profa. Dra. Sueli Angelo Furlan - USP
Profa. Dra. Tânia Paula da Silva – UNEMAT
Profa. Dra. Tatiane Bonametti Veiga - UNICENTRO
Profa. Dra. Vera Lucia Freitas Marinho – UEMS
Prof. Dr. Vilmar Alves Pereira - FURG
Prof. Dr. Vitor Corrêa de Mattos Barretto - FCAE/UNESP
Prof. Dr. Xisto Serafim de Santana de Souza Júnior - UFCG
Prof. Dr. Wagner de Souza Rezende - UFG
Profa. Dra. Yanayne Benetti Barbosa
6

ORGANIZADORAS DA OBRA

Renata Cardoso Magagnin


Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (1993), Mestrado em Engenharia Urbana pela Universidade Federal de São
Carlos (1999) e Doutorado em Engenharia de Transportes pela Universidade de São Paulo
(2008). Atualmente é professora assistente doutora (ms3) do Curso de Graduação em de
Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho. Atualmente é Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo da UNESP. Foi Coordenadora do Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo
no período de dez/2011-dez/2015 e Chefe do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e
Paisagismo no período de dez/2009-dez/2011. Tem experiência na área de Planejamento
Urbano, com ênfase em Planejamento da Mobilidade Urbana, atuando principalmente nos
seguintes temas: planejamento urbano, mobilidade urbana, planejamento de transporte,
acessibilidade espacial, modos motorizados e não motorizados e métodos e técnicas de
avaliação da acessibilidade no espaço urbano e no edifício.

Norma Regina Truppel Constantino


Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Paraná (1979),
mestrado em Planejamento Urbano e Regional Assentamentos Humanos pela Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (1994) e doutorado em Arquitetura e Urbanismo
pela Universidade de São Paulo (2005). Professor assistente doutor da Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho no Curso de Arquitetura e Urbanismo e no Mestrado Acadêmico
em Arquitetura e Urbanismo. Aposentada (2019) mantém atuação como professor voluntário
na mesma instituição. Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em
Projetos de Espaços Livres Urbanos, atuando principalmente nos seguintes temas: paisagem
urbana, paisagismo, espaços livres urbanos e história da cidade e do território.

Sandra Medina Benini


Possui Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela UNIMAR (1995), Graduação em Direito
pela FADAP (2005), Graduação em Geografia pelo Claretiano (2014), Especialização em
Administração Ambiental pela FACCAT (2005), Especialização em Engenharia de Segurança do
Trabalho pela UNILINS (2008), Especialização em Direito Público com ênfase em Gestão Pública
pela Faculdade IBMEC-SP (2019). Mestrado em Geografia pela FCT/UNESP (2009), Doutorado
em Geografia pela FCT/CUNESP (2015), Doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie, bolsista CAPES/Prosup (2016) e Pós-doutorado
Arquitetura e Urbanismo pela FAAC/UNESP, bolsista PNPD/Capes (2017). Atualmente é
professora da Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UNIVAG e do Mestrado Acadêmico
em Arquitetura e Urbanismo Centro Universitário de Várzea Grande - UNIVAG em associação
com a Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUC-Campinas. Tem experiência na área
de Planejamento Urbano e Regional, Planejamento Ambiental e Direito Urbanístico, atuando
principalmente nos seguintes temas: políticas públicas, política urbana, gerenciamento de
cidades e gestão ambiental.
Cidade, História e Patrimônio - 7

SUMÁRIO

PREFÁCIO 11
Vladimir Benincasa

Capítulo 1
EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO PRESERVACIONISTA 15
ATRAVÉS DAS CARTAS PATRIMONIAIS INTERNACIONAIS
Rosio Fernández Baca Salcedo

Capítulo 2
A CONSTRUÇÃO DA CIDADE DE SÃO PAULO NA PRIMEIRA 41
REPÚBLICA ATRAVÉS DA ATUAÇÃO DO CONSELHEIRO
ANTÔNIO PRADO E DE VICTOR DA SILVA FREIRE: OS
PRIMÓRDIOS DO URBANISMO PAULISTA
Luiz Augusto Maia Costa; Alessandra Salvador Alexandre Strassa

Capítulo 3
OS PRIMEIROS ANOS DE IMPLANTAÇÃO DO HORTO 59
BOTÂNICO DO MUSEU PAULISTA (1898 A 1917)
Rafaella Neves Goes; Marta Enokibara

Capítulo 4
OS BAIRROS RURAIS E A ECONOMIA MISTA NA REDE 79
URBANA POLARIZADA PELA VILA DE NOVA BRAGANÇA NA
PROVÍNCIA DE SÃO PAULO
Carolina Gonçalves Nunes; Ivone Salgado
8

Capítulo 5
O PROJETO DA COLÔNIA MILITAR DO AVANHANDAVA 105
NO ENSAIO DA OCUPAÇÃO TERRITORIAL PAULISTA
(1858-1878)
Nilson Ghirardello; Daniel Candeloro Ferrari

Capítulo 6
CIDADE COMO PEÇA-CHAVE PARA O DESENVOLVIMENTO 123
REGIONAL: O PLANEJAMENTO PARANAENSE NOS
ANOS 1960
Gislaine Elizete Beloto

Capítulo 7
CONSTRUÇÃO DA IGREJA MATRIZ NOSSA SENHORA DAS 143
DORES E DA CAPELA NOSSA SENHORA DA
BOA MORTE DE LIMEIRA
Renan Alex Treft; Ivone Salgado

Capítulo 8
METODOLOGIA DE ANÁLISE ESPACIAL PARA REABILITAÇÃO 163
DE EDIFÍCIOS DO PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO
Samir Hernandes Tenório Gomes

Capítulo 9
CIDADE E FERROVIA: 179
DESENVOLVIMENTO E MEMÓRIA URBANA
Antonio Busnardo Filho; Antonio Soukef Júnior
Cidade, História e Patrimônio - 9

Capítulo 10
PATRIMÔNIO, MARGINALDADE E GENTRIFICAÇÃO AO 189
LONGO DO ANTIGO LEITO FÉRREO DE BAURU-SP:
A VILA ANTÁRTICA
Evandro Fiorin; Lucas do Nascimento Souza

ÍNDICE REMISSIVO 203


10
Cidade, História e Patrimônio - 11

PREFÁCIO

Há cerca de dez mil anos, no neolítico, as primeiras aldeias surgiram


num longo processo que inicia ao final da última grande era glacial. A partir
desse importante episódio, os homens tomaram contato mais profundo
com a natureza. Domesticaram animais, aprenderam a cultivar vegetais, a
trabalhar materiais como barro, madeira, metais, ampliaram as
possibilidades de uso do fogo e, com tudo isso, e muito mais, conseguiram
fixar-se em um lugar.
Desde então, uma longa história foi escrita, as aldeias tornaram-se
cidades, desenvolveram-se os campos de conhecimento humano,
produzindo um vasto patrimônio que vem sendo trabalhado, desenvolvido,
incrementado e alterado pelas sucessivas gerações... A história é escrita e
reescrita sem cessar nesse imenso palimpsesto que é a trajetória humana
sobre a Terra.
Entender as diversas formas de cidades, suas gêneses e seus legados
culturais é importante para a compreensão do que somos hoje e, mais
ainda, para que tenhamos a consciência do que o “nosso” legado pode
ocasionar às gerações futuras.
O entendimento atual de patrimônio cultural ampliou-se, envolvendo
não apenas o monumento físico, mas tudo o que a ele esteja ligado, como o
patrimônio imaterial e a paisagem cultural, numa relação intrínseca. O
próprio significado de “paisagem” se ampliou, recentemente, para suas
diversas escalas territoriais, o que cria uma série de novos desafios à
salvaguarda patrimonial, desde sua conservação até sua gestão.
Nessa nova definição de Paisagem Cultural, a expressão agrega à
paisagem natural as ações humanas sobre determinado território, e tudo o
que disso decorre, incluindo as alterações sofridas ao longo do tempo,
provocadas por fatores como mudanças socioeconômicas, naturais, etc.
Enfim, o entendimento de Paisagem Cultural agrega uma vasta gama
de ciências, que não só a geografia, mas também história, arqueologia, arte,
arquitetura, urbanismo, sociologia, antropologia, etnografia, ecologia,
biologia, turismo, economia, entre outras, e suas correspondências sobre o
território urbano, rural ou natural.
12

Dessa maneira, os textos aqui apresentados perpassam essas


diversas temáticas, dando uma ideia da vastidão e da complexidade do
assunto.
Abrindo esta coletânea, Evolução do pensamento preservacionista
através das Cartas Patrimoniais internacionais, de Rosío Fernández Baca
Salcedo, propõe percorrer as muitas nuanças e alterações, ao longo da
história, do entendimento do que é “patrimônio” e das maneiras de atuação
para sua salvaguarda, a partir de uma vasta análise das Cartas Patrimoniais.
O segundo texto, A construção da cidade de São Paulo na Primeira
Republica através da atuação do Conselheiro Antônio Prado e de Victor da
Silva Freire: os primórdios do urbanismo paulista, de Luiz Augusto Maia
Costa e Alessandra Salvador Alexandre Strassa, trata mais objetivamente do
período inicial do surpreendente crescimento da cidade de São Paulo que,
em menos de um século, deixaria de ser o “burgo estudantil” para se tornar
a grande megalópole atual. O texto destaca a atuação de dois personagens
nesse processo: o Conselheiro Antônio Prado e o engenheiro civil português
Victor da Silva Freire.
O texto seguinte, Os primeiros anos de implantação do Horto
Botânico do Museu Paulista (1898 a 1917), de Rafaella Neves Goes e Marta
Enokibara nos conta sobre a formação do antigo Horto Botânico do Museu
Paulista, entre 1898 e 1917, idealizado com a intenção de ser “uma coleção
viva de exemplares da flora brasileira”. Se o horto enquanto uma instituição
dentro do Museu Paulista já não mais existe, sobraram algumas das espécies
ali plantadas, que hoje constituem uma das importantes áreas verdes do
Conjunto do Ipiranga.
Os bairros rurais e a economia mista na rede urbana polarizada pela
Vila de Nova Bragança na Província de São Paulo, das autoras Carolina
Gonçalves Nunes e Ivone Salgado, têm como tema a ocupação do território
paulista por posseiros e a consequente criação de bairros rurais, muitos dos
quais acabaram se consolidando e se transformando em importantes
cidades no panorama atual; como objeto de estudo, a atual cidade de
Bragança Paulista.
No quinto trabalho, O projeto da Colônia Militar do Avanhandava no
ensaio da ocupação territorial paulista (1858-1878), de Nilson Ghirardello e
Daniel Candeloro Ferrari, a questão da ocupação territorial também está
Cidade, História e Patrimônio - 13

presente. No entanto, aqui se trata da preocupação imperial com a


ampliação, a vigilância e a proteção das fronteiras através da construção de
uma colônia militar no interior do Estado de São Paulo, junto ao Salto do
Avanhandava, no rio Tietê.
Em Cidade como peça-chave para o desenvolvimento regional: o
planejamento paranaense nos anos 1960, de Gislaine Elizete Beloto, emerge
a análise dos modelos de planejamento territorial adotados para o norte
paranaense e suas consequências. Aqui fica claro o processo de construção
de uma paisagem cultural específica.
O trabalho seguinte, Construção da Igreja Matriz Nossa Senhora das
Dores e da Capela Nossa Senhora da Boa Morte de Limeira, de Renan Alex
Treft e Ivone Salgado, busca elucidar a problemática da construção da
imagem de um novo centro populacional através da construção de dois dos
mais importantes templos da cidade de Limeira – sendo os edifícios mais
significativos, as igrejas sinalizavam a pujança de uma cidade, e sua
construção envolvia interesses de várias camadas de sua população.
O trabalho de Samir Hernandes Tenório Gomes, Metodologia de
análise espacial para reabilitação de edifícios do patrimônio ferroviário,
apresenta uma metodologia para “levantamento e avaliação do patrimônio
ferroviário paulista”, objetivando avaliar o potencial de reabilitação dos
inúmeros edifícios abandonados no processo de desmonte do modal no
território brasileiro.
O penúltimo texto, Cidade e ferrovia: desenvolvimento e memória
urbana, de Antonio Busnardo Filho e Antonio Soukef Júnior, trata do
importante papel da ferrovia, e principalmente das estações ferroviárias, na
construção de um imaginário afetivo nas cidades brasileiras, parte
integrante das memórias coletivas e individuais não apenas daqueles
cidadãos que conviveram com esse tipo de transporte, mas dos habitantes
das cidades que ainda ostentam as edificações criadas por ele.
Finalmente, o último trabalho, Patrimônio, marginalidade e
gentrificação ao longo do antigo leito férreo de Bauru-SP: a Vila Antártica,
de Evandro Fiorin e Lucas do Nascimento Souza, faz uma análise do trecho
urbano do antigo leito férreo de Bauru, enfocando o patrimônio industrial
remanescente da Vila Antártica, pioneiro na cidade. O abandono em que se
encontra e os novos usos que a iniciativa privada vem lhe dando, segundo os
14

autores, acabaram por dar novos usos, gerando descaracterizações e perda


da identidade local.
Enfim, os textos aqui apresentados trazem temas bastante atuais,
que merecem e devem ser debatidos, estudados com carinho, para que
projetos e ações sejam gerados e implantados, contribuindo para a
construção de locais qualitativamente mais adequados à convivência
humana.

1
Vladimir Benincasa

1
Graduado em Arquitetura e Urbanismo pelo Departamento de Arquitetura e Planejamento da
Escola de Engenharia de São Carlos, da Universidade de São Paulo (1989), fez mestrado (1998)
e doutorado (2008) em Arquitetura e Urbanismo no Departamento de Arquitetura e Urbanismo
da Escola de Engenharia de São Carlos, pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor
na Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da UNESP. Tem experiência na área de
projetos e docência, com ênfase em Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo.
Cidade, História e Patrimônio - 15

Capítulo 1

EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO PRESERVACIONISTA ATRAVÉS DAS


CARTAS PATRIMONIAIS INTERNACIONAIS

2
Rosio Fernández Baca Salcedo

1 INTRODUÇÃO

A prática de intervir em edificações de épocas anteriores é muito


antiga. Antes do século XVIII, as intervenções em edifícios estavam voltadas
apenas para adaptação às necessidades da época, segundo as orientações
do arquiteto (muitas vezes em detrimento do próprio bem), não sendo uma
restauração.
A noção de história, como entendida hoje, começa a se formar a
partir do século XVIII, intensificando o interesse de artistas, arquitetos,
arqueólogos e historiadores por edifícios de épocas passadas.
Desde o século XVIII, as teorias iluministas na Europa, embasadas na
razão e no método científico, alteraram as relações entre arquitetura, suas
teorias e aplicações.
Na França, a Revolução (final do século XVIII – início do século XIX)
marca uma época de destruições, vandalismos e saques praticados contra as
obras de arte e a arquitetura para destruir os símbolos da classe dominante.
Por isso, o Estado formula a primeira legislação sobre preservação.
A Revolução Industrial começa na Inglaterra (século XVIII), sendo um
processo de transformações econômicas e sociais na Europa. Na estrutura
socioeconômica, fez-se a separação entre o capital (representado pelos
donos dos meios de produção) e o trabalho (representado pelos

2
Professora doutora, UNESP, Brasil. E-mail: rosio.fb.salcedo@unesp.br
16

trabalhadores assalariados), eliminando o modo de produção usado pelos


artesãos.
Os planificadores, administradores, arquitetos e urbanistas usaram a
renovação urbana para resolver os problemas nas cidades. A Inglaterra
implanta uma rigorosa legislação de planejamento nacional e municipal.
“Restringe a suburbanização, demole as habitações miseráveis,
substituindo-as pelo desenvolvimento planejado de alta densidade, com a
construção de habitações populares, escolas, hospitais, fábricas, entre
outros” (SALCEDO, 2013, p. 26).
No século XX, o crescimento caótico das cidades se manifesta nos
países industrializados. A população mais abastada migra em direção aos
subúrbios. Nos países em desenvolvimento, este processo se caracteriza
pela maciça migração rural, sendo que os migrantes se instalaram em
bairros marginais que eram carentes de serviços e saneamento básico, e nas
edificações deterioradas no centro consolidado das cidades.
Ainda a especulação imobiliária que atua na descaraterização,
demolição dos monumentos históricos, somadas as ações dos governos com
o descaso e abandono das estruturas físicas dos monumentos levam à perda
dos testemunhos da história, da cultura e da identidade dos povos.
É no contexto dessas grandes transformações urbanas, sociais e
econômicas, da descaraterização e mesmo destruição dos monumentos
históricos pela ação do tempo, do homem e da natureza, que são
elaboradas as Cartas Patrimoniais Internacionais com conceitos, normas,
medidas e recomendações para a salvaguarda do patrimônio cultural. O
objetivo de este artigo é abordar a evolução do pensamento
preservacionista ao longo do tempo através dessas cartas.

2 EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO SOBRE A SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO


CULTURAL
A Carta de Atenas (SOCIEDADE DAS NAÇÕES, 1931, p. 13), promovida
pela Sociedade das Nações, recomenda o uso do monumento, "que se
mantenha uma utilização dos monumentos que assegure a continuidade de
suas vidas, destinando-os sempre a finalidades que respeitem seu caráter
histórico ou artístico”. Portanto, essa recomendação ressalta a importância
do uso compatível com o monumento para fins de conservação. Ruskin
Cidade, História e Patrimônio - 17

(2008) expressa a manutenção da arquitetura para preservar a idade do


edifício, pois "a glória do edifício não está no seu ouro, está na sua idade".
Com relação à restauração, a Carta de Atenas (SOCIEDADE DAS
NAÇÕES, 1931, p. 13) também recomenda que “se respeite a obra histórica
e artística do passado, sem prejudicar o estilo de qualquer época, nos casos
em que uma restauração pareça indispensável devido à deterioração ou
destruição”. Segundo Brandi (2004), há duas instâncias a serem obedecidas
na restauração do patrimônio: a instância histórica e a instância artística.
Pela instância histórica, todos acréscimos ao edifício têm o mesmo direito à
preservação. Pela instância artística, a restauração do edifício deverá ser
realizada dentro de um estilo.
Sobre as ruínas, a Carta de Atenas (SOCIEDADE DAS NAÇÕES, 1931, p.
16) ressalta "a conservação das ruínas [...]. Quando for impossível conservar
as ruínas descobertas durante uma escavação, é aconselhável sepultá-las de
novo depois de fazer um estudo minucioso”.
Dado o adensamento das cidades causado pela industrialização, a
existência de cortiços insalubres, habitações geralmente distantes do
trabalho, etc., o Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, através
da Carta de Atenas, de 1933, e considerando a influência de Le Corbusier
sobre os princípios do urbanismo moderno (circular, trabalhar, lazer,
habitar), mais especificamente sobre o Patrimônio histórico das cidades,
exige que “os valores arquitetônicos sejam salvaguardados [...] constituindo
a expressão de uma cultura anterior” (CIAM, 1933, p. 52). Esta
recomendação levou à descaraterização e mesmo à perda dos monumentos
históricos do século XX.
O mesmo Congresso também ressalta que “o emprego de estilos do
passado sob pretextos estéticos, nas construções novas erigidas nas zonas
históricas, tem consequências nefastas” (CIAM, 1933, p. 54). Isto é, o
projeto de novas construções deve configurar o estilo de sua época sem
necessariamente imitar os estilos do passado.
A Carta de Atenas traz uma contribuição interessante sobre a seleção
do patrimônio na cidade: “Nem tudo que é passado tem, por definição,
direito à perenidade; convêm escolher com sabedoria o que deve ser
respeitado” (CIAM, 1933, p. 52). A cidade não está engessada; nem tudo que
foi construído antes tem valor histórico, arquitetônico e cultural. Portanto,
18

uma seleção (entre os edifícios listados para o tombamento) permitirá que


as edificações na ambiência do patrimônio possam ser substituídas por
outras edificações contemporâneas em harmonia com as existentes. Em
relação às casas, o documento ressalta que elas são o “núcleo inicial do
urbanismo. Elas protegem o crescimento do homem, abrigam as alegrias e
as dores de sua vida cotidiana [...] prolongando-se também no exterior nas
diversas instalações comunitárias” (CIAM, 1933, p. 62).
A Unesco (através da Recomendação relativa à salvaguarda de
paisagens e sítios, em 1962) entende “por salvaguarda da beleza e do
caráter das paisagens e sítios, a preservação e, quando possível, a
restituição do aspecto das paisagens e sítios naturais, rurais ou urbanos,
devido à natureza ou obra do homem, que apresentem interesse cultural ou
estético ou que constituam meios naturais característicos” (UNESCO, 1962,
p. 83). Além disso, tendo em vista protegê-los dos perigos que os ameaçam,
são recomendadas importantes medidas preventivas sobre:

Construção de edifícios públicos e privados de qualquer natureza.


Seus projetos devem ser concebidos de modo a respeitar
determinadas exigências estéticas relativas ao próprio edifício e,
evitando cair na imitação gratuita de certas formas tradicionais e
pinturescas, devem estar em harmonia com a ambiência que se
deseja salvaguardar;
Construção de estradas;
Linhas de eletricidade de alta ou baixa tensão, instalações de
produção e transporte de energia, aeródromos, estações de rádio e
televisão, etc.;
Construção de postos de serviços para distribuição de combustíveis;
Cartazes publicitários e anúncios luminosos;
Desmatamento, inclusive destruição de arvores que contribuem para
a estética da paisagem, particularmente aquelas que margeiam as
vias de comunicação ou as avenidas;
Poluição do ar e da água;
Exploração de minas e pedreiras, bem como a evacuação de seus
resíduos;
Captação de nascentes, trabalhos de irrigação, barragens, canais,
aquedutos, regularização dos cursos de água, etc.;
Campismo;
Depósito de material e matérias usadas, assim como detritos e
dejetos domésticos, comerciais ou industriais. (UNESCO, 1962, p. 84).

Essas medidas preventivas recomendam o uso adequado do solo e


evitam a poluição e desmatamento nas paisagens. Além disso, elas
Cidade, História e Patrimônio - 19

recomendam a proteção legal por zonas deveria abranger o controle dos


loteamentos e a observância de algumas prescrições gerais de caráter
estético sobre o uso de materiais e sua cor, normas relativas à altura,
precauções a serem tomadas para dissimular escavações resultantes da
construção de barragens, ou exploração de pedreiras, regulamentação da
derrubada de árvores (UNESCO, 1962, p. 86).
O Icomos (através da Carta de Veneza, de 1964) define os conceitos
de monumento histórico e restauração. O monumento histórico
compreende:

A criação arquitetônica isolada, bem como o sítio urbano ou rural


que testemunha uma civilização particular, uma evolução
significativa ou um acontecimento histórico. Entende-se não só as
grandes criações, mas também as obras modestas que adquiriram
uma significação cultural com o tempo. (ICOMOS, 1964, p. 92).

Portanto, as construções singelas representativas de uma cultura são


valorizadas e reconhecidos como monumento histórico.
Também a Carta de Veneza ressalta que a conservação dos
monumentos “é sempre favorecida por sua destinação a uma função útil à
sociedade; tal destinação é, portanto, desejável, mas não pode nem deve
alterar a disposição ou a decoração dos edifícios” (ICOMOS, 1964, p. 92).
Sobre a conservação dos monumentos, Ruskin (2008, p. 56) salienta que “se
os homens vivessem de fato como homens, suas casas seriam templos–
templos que nós nunca nos atreveríamos a violar, e que nos fariam sagrados
se nos fosse permitido morar neles”. Portanto, a conservação do
monumento está no uso e manutenção permanente, como ação que
desacelera o processo de degradação do monumento.
Em relação à restauração, ela é definida como sendo

uma operação que deve ter caráter excepcional. Seu objetivo é


conservar e revelar os valores estéticos e históricos do monumento,
fundamentando-se no respeito ao material original e aos
documentos autênticos. Ela termina onde começa a hipótese, no
plano das reconstituições conjeturais; todo trabalho complementar
reconhecido como indispensável (por razões estéticas ou técnicas)
deve se destacar da composição arquitetônica, tendo a marca de
nosso tempo. A restauração sempre será precedida e acompanhada
de um estudo arqueológico e histórico do monumento. (ICOMOS,
1964, p. 93).
20

A restauração deve preservar as características originais do edifício.


Se for necessário reconstituir as partes faltantes ou restaurar elementos do
edifício, deverão evidenciar a leitura entre a intervenção e o elemento
original. Boito e Brandi destacam a importância de evidenciar a leitura entre
a intervenção no monumento e a material original. Boito (2003, p. 26), na
restauração enuncia como princípio a diferença de estilo entre o novo e o
velho, já Brandi (2004, p. 47) destaca que “a integração deverá ser sempre e
facilmente reconhecível, mas sem que por isso se venha a infringir a própria
unidade que se visa a reconstruir”.
A Unesco (através da Recomendação sobre medidas destinadas a
proibir e impedir a exportação, importação e transferência de propriedades
ilícitas de bens culturais, em 1964) define os bens culturais como “os bens
móveis e imóveis de grande importância para o patrimônio cultural de cada
país, tais como obras de arte e de arquitetura, manuscritos, livros e outros
bens de interesse artístico, histórico ou arqueológico” (UNESCO, 1964, p.
98). Cada Estado deve proteger o patrimônio construído pelos bens culturais
existentes em seu território decorrentes da importação, exportação e da
transferência ilícita.
A Organização dos Estados Americanos (OEA) (através das Normas de
Quito, em 1967) estende o conceito de monumento para as manifestações
próprias da cultura dos séculos XIX e XX. Portanto, as arquiteturas
expressivas do art-deco, art-noveau, bem como a arquitetura e o urbanismo
modernos são patrimônios. A expansão do conceito de monumento permite
que as manifestações da cultura desses séculos fossem também preservadas
(OEA, 1967, p. 92).
Outra contribuição importante das Normas de Quito (1967) é a
legislação de proteção do espaço urbano ocupado pelos núcleos ou
conjuntos monumentais e de interesse ambiental: "Zona de proteção
rigorosa, que corresponde à zona de maior densidade monumental ou de
ambiente; Zona de proteção ou respeito, com uma maior tolerância; Zona
de proteção da paisagem urbana, para procurar integrá-la com a natureza
circundante" (OEA, 1967, p. 120).
A legislação, para proteção dos conjuntos monumentais e centros
históricos por zonas de proteção rigorosa, proteção ou respeito com uma
Cidade, História e Patrimônio - 21

maior tolerância e da paisagem, é importante para preservar os


monumentos e a ambiência dos mesmos, além da regulamentação
específica dessas zonas tanto para as edificações como para os espaços
livres. Além disso, a seleção dos monumentos para a zona de proteção
rigorosa deve corresponder à concentração das edificações com
tombamento integral.
A Unesco (através da Recomendação sobre a conservação de bens
culturais ameaçados pela execução de obras públicas ou privadas (Paris,
19/11/1968) estende o conceito de “bens culturais” (já definidos pela
Unesco em 1964) como:

Bens imóveis, tais como sítios arqueológicos, históricos ou científicos,


edificações ou outros elementos de valor histórico, científico,
artístico ou arquitetônico, religiosos ou seculares, incluindo os
conjuntos tradicionais, bairros históricos em zonas urbanas e rurais,
bem como os vestígios de civilizações anteriores com valor
etnológico. Este conceito será aplicado tanto aos imóveis do mesmo
caráter, que constituam ruínas ao nível do solo, como aos vestígios
arqueológicos ou históricos descobertos sob a superfície da terra. A
expressão “bens culturais” se estende também ao ambiente em
torno desses bens;
bens móveis de importância cultural, incluindo os que existem ou
tenham sido encontrados dentro dos bens imóveis, bem como
aqueles que estão enterrados e possam vir a ser descobertos, seja
em sítios arqueológicos ou históricos seja em quaisquer outros
lugares. (UNESCO, 1968, p. 125-126).

Portanto, os bens culturais compreendem os bens imóveis e móveis


de valor histórico, científico, artístico e religioso. Outra contribuição
importante dessa Carta são as medidas para preservação e salvamento de
bens culturais: "legislação; financiamento; medidas administrativas;
métodos para preservação e salvamento de bens culturais; sanções;
reparações; recompensas; assessoramento; programas educativos"
(UNESCO, 1968, p. 128).
Muitas das medidas acima fazem parte da legislação do Conselho de
Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado
de São Paulo (CONDEPHAAT), tais como: legislação, medidas
administrativas, sanções e reparações. Entretanto, as políticas e os
programas para o financiamento da restauração e reabilitação, bem como
22

os programas educativos necessários à salvaguarda dos bens culturais ainda


não foram implementados.
O Ministério da Educação e Cultura (MEC) e o IPHAN aderiram ao
Compromisso de Salvador (realizado em outubro de 1971), que recomenda
a criação do Ministério de Cultura e de secretarias ou fundações de cultura
no âmbito estadual, bem como a realização de convênios entre o IPHAN e as
universidades, com o objetivo de fazer o inventário sistemático dos bens
móveis de valor cultural, inclusive de arquivos notariais (MEC, 1971, p. 145).
Recomendaram pedir a o Conselho Nacional de Pesquisas e a CAPES
para financiar projetos de pesquisa e formação de pessoal especializado
para o estudo e proteção dos acervos naturais e de valor cultural. Tais
recomendações incentivaram a realização de pesquisas sobre o inventário e
a organização de Cursos de Especialização, Mestrado e Doutorado em
“Restauração, Conservação e Gestão de Bens Patrimoniais” na Universidade
Federal da Bahia.
O governo da Itália (através da Carta de Restauro, de 06/04/1972)
entende “por restauração qualquer intervenção para manter em
funcionamento, facilitar a leitura e transmitir integralmente ao futuro” as
obras de arte (monumentos arquitetônicos, pintura e escultura), além dos
conjuntos de edifícios de interesse monumental, histórico e ambiental,
centros históricos, coleções artísticas, jardins e parques (GOVERNO DA
ITÁLIA, 1972, p. 148), deixando em evidência, na intervenção, que a leitura
entre o novo e o velho foram princípios de restauração definidos por Boito e
Brandi. O governo da Itália também considera que: "a restauração não se
limita a operações destinadas a conservar só os caracteres formais de
arquitetura ou de ambientes isolados, estendendo-se também à
conservação substancial das características conjunturais do organismo
urbanístico completo e de todos elementos que concorrem para definir tais
características" (GOVERNO DA ITÁLIA, 1972, p. 166).
O enfoque da restauração, não só como intervenção no edifício, mas
também no contexto urbano foi abordado por Giovannoni (2013, p. 20)
quando estabelece as relações entre o urbanismo, arquitetura e
preservação do patrimônio. Portanto, podemos ver sua influência na Carta
de Restauro de 1972.
Cidade, História e Patrimônio - 23

Além disso, esta Carta recomenda a tutela dos centros históricos,


identificando-os como

não apenas os antigos centros urbanos, assim tradicionalmente


entendidos, mas também em geral todos assentamentos humanos
cujas estruturas unitárias ou fragmentárias, embora se tenham
transformado ao longo do tempo, tenham constituído no passado ou,
entre muitos, os que eventualmente adquiriram um valor especial
como testemunho histórico, seja por características urbanísticas ou
arquitetônicas particulares. (GOVERNO DA ITÁLIA, 1972, p. 166).

Os centros históricos “representam principalmente o traçado inicial


da cidade, são estruturas urbanas e arquitetônicas que expressam as
manifestações políticas, econômicas, sociais, culturais e tecnológicas, das
formações sociais dos diferentes períodos históricos por meio dos quais
evoluiu” (SALCEDO, 2007, p. 15). Remetem às categorias administrativas,
históricas, urbanas, arquitetônica social e ambiental.
A Carta de Restauro de 1972 (GOVERNO DA ITÁLIA, 1972, p. 168-169)
também estabelece que o saneamento de conservação deve ser entendido
principalmente como a manutenção das estruturas viárias e edilícias
(manutenção do traçado, conservação da rede viária no perímetro das
edificações), ressaltando os principais tipos de intervenção em nível
urbanístico (reestruturação viária, reordenamento viário e revisão dos
equipamentos urbanos) e em nível edilício (saneamento estático e higiênico
nos edifícios e renovação funcional dos elementos internos). Além disso, os
usos compatíveis, a supressão da rede elétrica aérea, outdoors, a
preservação dos espaços públicos e seus mobiliários, a regulamentação para
os novos edifícios integrados com os existentes, são medidas necessárias
para a reabilitação dos centros históricos.
Diante da degradação, destruição, desaparecimento e ameaça ao
patrimônio cultural e natural, causado não só pelas causas naturais, mas
também pelas mudanças na vida social e econômica, a Unesco (através da
Convenção sobre a salvaguarda do patrimônio mundial, cultural e natural;
Paris, 1972) define o patrimônio cultural como sendo:

Os monumentos: obras arquitetônicas, de escultura ou pintura


monumentais, elementos ou estruturas de natureza arqueológica,
24

inscrições, cavernas e grupos de elementos com valor universal


excepcional do ponto de vista da história, arte ou ciência;
os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas;
os lugares: obras do homem ou obras conjugadas (homem e
natureza), bem como as áreas que incluam sítios arqueológicos, de
valor universal excepcional do ponto de vista da história, arte ou
ciência. (UNESCO, 1972, p. 178-179).

Além disso, foi criado o Comitê Intergovernamental de proteção ao


patrimônio mundial, cultural e natural, conforme expressa o Art. 8°:

1 Fica criado, junto à Organização das Nações Unidas para Educação,


Ciência e Cultura, um comitê intergovernamental, denominado
Comitê do Patrimônio Mundial, para proteção ao patrimônio cultural
e natural de valor universal excepcional. (UNESCO, 1972, p. 181).

Portanto, o Comitê do Patrimônio Mundial pode deliberar sobre as


solicitações de um país em relação ao reconhecimento do patrimônio
cultural ou natural como patrimônio mundial, sendo a sua decisão divulgada
dentro da “Lista do Patrimônio Mundial” depois da aprovação. Além disso,
com a criação do Fundo para proteção do patrimônio mundial, cultural e
natural (mantido por contribuições obrigatórias e voluntárias dos Estados
presentes à convenção, doações, etc.), foram criadas condições e
modalidades para assistência internacional em favor dos bens do patrimônio
mundial (incluindo proteção, conservação, valorização e reabilitação)
(UNESCO, 1972, p. 186-188).
A Resolução de São Domingos, elaborada durante o I Seminário
Interamericano sobre Experiências na Conservação e Restauração do
Patrimônio Monumental dos períodos Colonial e Republicano, em dezembro
de 1974, organizado pela OEA, recomenda:

A salvação dos centros históricos é um compromisso social além de


cultural e deve fazer parte da política de habitação, para que nela se
levem em conta os recursos potenciais que tais centros possam
oferecer. Todos os programas de intervenção e resgate dos centros
históricos devem, portanto, trazer soluções de saneamento integral
que permitam a permanência e melhoramento da estrutura social
existente. (OEA, 1974, p. 195-196).

Portanto, a preservação do uso residencial e as políticas de


habitação, a permanência e melhoria da qualidade de vida da estrutura
Cidade, História e Patrimônio - 25

social são ações para a salvação dos centros históricos. A função residencial
tem uso 24 horas, mantém o edifício, além dos moradores serem os olhos
na rua como fator de segurança.
O Conselho da Europa (através da Declaração de Amsterdã, 1975),
que considera o “patrimônio arquitetônico da Europa como parte
integrante do patrimônio cultural do mundo inteiro”, também considera
que:

[...]
b) Esse patrimônio compreende não só as construções isoladas de
um valor excepcional e seu entorno, mas também os conjuntos e
bairros de cidades e aldeias com interesse histórico e cultural.
[...]
d) A conservação do patrimônio arquitetônico deve ser considerada
não como um problema marginal, mas dentro de um objetivo maior
de planejamento das áreas urbanas e de planejamento físico-
territorial. (CONSELHO DA EUROPA, 1975, p. 200).

Os poderes locais, aos quais compete a maioria das decisões


importantes em matéria de planejamento, são todos particularmente
responsáveis pela proteção ao patrimônio arquitetônico, devendo ajudar-se
mutuamente através da troca de ideias e informações.
O Conselho da Europa traz uma contribuição importante ao
considerar o patrimônio arquitetônico não como um elemento isolado, mas
como parte de um conjunto ou bairro com valores histórico e cultural (como
já foi colocado por Giovannoni), quando ressalta que o monumento
arquitetônico está inserido em um contexto e este contexto deve fazer
parte do conjunto. Ao considerar que o patrimônio arquitetônico deve fazer
parte do planejamento das áreas urbanas, o Conselho também está
ressaltando a valorização e proteção do patrimônio arquitetônico e sua
ambiência (através do uso compatível do solo, materiais de acabamento,
gabaritos de altura, etc.), os quais devem constar no plano diretor da
cidade.
A reabilitação de bairros antigos deve ser concedida e realizada,
tanto quanto possível, sem modificações importantes na composição social
dos habitantes e de maneira tal que todas camadas da sociedade se
beneficiem de uma operação financiada por fundos públicos (CONSELHO DA
26

EUROPA, 1975, p. 200). Isto é, a reabilitação dos bairros, que beneficia a


população que nela vive, deve ser financiada por fundos públicos.
O Conselho da Europa (1975, p. 203) ainda recomenda:

É conveniente organizar um inventário das construções, conjuntos


arquitetônicos e sítios, o que compreende a delimitação das zonas
periféricas de proteção [...]. Tal inventário deve fornecer uma base
realista para a conservação, quanto ao elemento qualitativo
fundamental para gestão dos espaços.

Portanto, o inventário das construções, conjuntos arquitetônicos e


sítios é indispensável à proteção do patrimônio e sua ambiência. Além disso,
a delimitação das zonas de proteção (já recomendadas pelas Normas de
Quito, 1967) deve constar no plano diretor da cidade.
O Manifesto de Amsterdã (Carta europeia do patrimônio
arquitetônico, 1975) define o conceito de patrimônio arquitetônico como
sendo “capital espiritual, cultural, econômica e social cujos valores são
insubstituíveis” (COMITÊ DE MINISTROS DO CONSELHO DA EUROPA, 1975,
p. 213).
A Unesco (Recomendação relativa à salvaguarda dos conjuntos
históricos e sua função na vida contemporânea; Nairobi, 1976) define
conjunto histórico ou tradicional como:

Todo agrupamento de construções e espaços, inclusive sítios


arqueológicos e paleontológicos que constituem um assentamento
humano, tanto no meio urbano quanto no rural, e cuja coesão e valor
são reconhecidos do ponto de vista arqueológico, arquitetônico, pré-
histórico, histórico, estético ou sócio-cultural.
Entre esses conjuntos, que são muito variados, podem se distinguir
especialmente os sítios pré-históricos, as cidades históricas, os
bairros urbanos antigos, as aldeias e lugarejos, bem como os
conjuntos monumentais homogêneos, ficando entendido que estes
últimos deverão, em regra, ser conservados em sua integridade.
(UNESCO, 1976, p. 219).

A Unesco (1976, p. 220) também define os conceitos de ambiência e


salvaguarda: "Ambiência dos conjuntos históricos ou tradicionais, é o
quadro natural ou construído que influi na percepção estática ou dinâmica
desses conjuntos, ou a eles se vincula imediatamente no espaço ou por
laços sociais, econômicos ou culturais". E salvaguarda como a "identificação,
Cidade, História e Patrimônio - 27

proteção, conservação, restauração, reabilitação, manutenção e


revitalização dos conjuntos históricos ou tradicionais e de seu entorno”.
Considerar a ambiência dos conjuntos históricos é importante para a
proteção, valorização e visibilidade que são necessárias ao conjunto urbano.
Além disso, é ressaltado o desenvolvimento de “habitações
subsidiadas e edifícios públicos através da reabilitação de construções
antigas” (UNESCO, 1976, p. 224). A reabilitação torna-se um método
importante para a preservação e adequação de uma função contemporânea
no edifício, respeitando a tipologia e o caráter da construção.
A reabilitação deve ser entendida como “uma ação que preserva, o
mais possível, o ambiente construído existente (pequenas propriedades,
fragmentação no parcelamento do solo, edificações antigas) e dessa forma
também respeita os usos e a população moradora” (MARICATO, 2001, p.
126).
O Icomos (através da Carta de Burra; Austrália, 1980) define os
conceitos de bem, significação cultural, substância, conservação,
manutenção, preservação, reconstrução e adaptação:

– O termo bem designará um local, zona, edifício ou outra obra


construída, ou um conjunto de edificações o u outras obras que
possuam uma significação cultural, compreendidos, em cada caso, o
conteúdo e o entorno a que pertence;
– A expressão significação cultural designará o valor estético,
histórico, científico ou social de um bem para as gerações passadas,
presentes ou futuras;
– Sustância será o conjunto de materiais que fisicamente constituem
o bem;
– O termo de conservação designará os cuidados a serem
dispensados a um bem para preservar-lhe as características que
apresentem uma significação cultural. De acordo com as
circunstâncias, a conservação implicará ou não na preservação ou
restauração, além da manutenção, conforme as circunstâncias;
igualmente; ela poderá, igualmente, compreender obras mínimas de
reconstrução ou adaptação que atendam às necessidades e
exigências práticas;
– O termo manutenção designará a proteção contínua da substância,
do conteúdo e do entorno de um bem, não devendo ser confundido
com o termo reparação. A reparação implica na restauração e
reconstrução, e assim ela será considerada;
– Preservação será a manutenção no estado da substância de um
bem e a desaceleração do processo pelo qual ele se degrada;
28

– Restauração será o restabelecimento da substância de um bem em


um estado anterior conhecido;
– Reconstrução será o restabelecimento de um estado anterior
conhecido com o máximo de exatidão. Ela se distingue pela
introdução de materiais diferentes, novos ou antigos, na substância
existente. A reconstrução não deve ser confundida com criação nem
com a reconstrução hipotética, ambas excluídas do domínio
regulamentado pelas presentes orientações;
– Adaptação será o agenciamento de um bem a uma nova
destinação, sem a destruição de seu significado cultural;
– A expressão uso compatível designará uma utilização que não
implique na mudança do significado cultural da substância,
introduzindo modificações que sejam substancialmente reversíveis
ou requeiram um impacto mínimo. (ICOMOS, 1980, p. 247-248).

A definição de esses conceitos orienta as ações preservacionistas. A


Carta de Florença, elaborada pelo Icomos e o Comitê Internacional de
Jardins e Sítios Históricos (ICOMOS/IFLA), em maio de 1981, traz a definição
de jardim histórico como sendo “uma composição pública. Como tal é
considerado ‘monumento’”. Na composição do jardim histórico se
destacam:

seu plano e os diferentes perfis do seu terreno;


suas massas vegetais, suas essências, seus volumes, seu jogo de cor,
seus espaçamentos, suas alturas respectivas;
seus elementos construídos ou decorativos;
as águas moventes ou dormentes, reflexo do céu. (ICOMOS, 1981, p.
254).

Até a década de 1980, em geral, os jardins não eram conservados,


muito menos restaurados, o que levou à perda em grande parte desse
patrimônio. Para a salvaguarda dos jardins históricos são recomendadas as
ações de manutenção, conservação, restauração e reconstituição de um
jardim histórico ou de uma de suas partes, além dos inventários.
O Icomos na Declaração de Tlaxcala, México (1982, p. 267)
recomenda:

que qualquer ação visando a conservação e revitalização das


pequenas localidades seja inserida em um programa que leve em
conta os aspectos históricos, antropológicos, sociais e econômicos da
região, bem como as possibilidades de revitalizá-la; sem o que a
referida ação será condenada à superficialidade e à ineficácia.
Cidade, História e Patrimônio - 29

Portanto, para conservar e revitalizar os conjuntos históricos, deve-se


partir de um exaustivo levantamento e interpretação dos aspectos
históricos, urbanos, sociais, econômicos e culturais da região.
Diante dos avanços da ciência e da tecnologia, os quais têm
modificado o lugar do homem no mundo e a natureza de suas relações
sociais, o Icomos (na Declaração de México, 1985), considera importante
criar políticas culturais para assegurar e preservar a cultura dos povos.
“Cada cultura representa um conjunto de valores, que é único e
insubstituível, pois as tradições e formas de expressão de cada povo
constituem sua maneira mais acabada de estar presente no mundo”
(ICOMOS, 1985, p. 272). Além disso, o Icomos ressalta que o patrimônio
cultural de um povo compreende

as obras de seus artistas, arquitetos, músicos, escritores e sábios,


bem como as criações anônimas surgidas da alma popular e o
conjunto de valores que dão sentido à vida. Ou seja, compreende as
obras materiais e não materiais que expressam a criatividade desse
povo: a língua, ritos, crenças, lugares e monumentos históricos,
cultura, obras de arte, incluindo arquivos e bibliotecas. (ICOMOS,
1985, p. 275).

É importante ressaltar que a Declaração de México traz uma


contribuição importante em relação à cultura e à democracia, além de
incluir como patrimônio cultural às obras imateriais, tão presentes na
cultura.
O Icomos (através da Carta de Washington, 1986) ressalta a
importância e o compromisso de participação da população para tomar
decisões sobre a salvaguarda da cidade e dos bairros históricos:

A participação e o comprometimento dos habitantes da cidade são


indispensáveis ao êxito da salvaguarda e devem ser estimulados.
Estas atitudes devem ser buscadas em todas circunstâncias e
favorecidas pela necessidade de todas gerações tomarem
consciência. Não se deve jamais esquecer que a salvaguarda das
cidades e bairros históricos diz respeito primeiramente a seus
habitantes. (ICOMOS, 1986, 2004, p. 283).

A participação da população nas ações preservacionistas cria a


legitimidade e compromisso para a salvaguarda da cidade e dos bairros
históricos.
30

O Icomos (na Carta de Washington, 1986), diante da ameaça de


degradação, deterioração e até mesmo destruição pela urbanização (que
nasce na era industrial e causa perdas irreversíveis de caráter cultural, social
e mesmo econômico), define os princípios, métodos e instrumentos
necessários à salvaguarda e qualidade das cidades históricas.
Para que a salvaguarda das cidades e bairros seja eficaz, ela deve ser
parte integrante de uma política coerente de desenvolvimento econômico,
social, sendo considerada no planejamento físico-territorial e nos planos
urbanos em todos seus níveis.

Os valores a preservar são o caráter histórico da cidade e do conjunto


de elementos materiais e espirituais que expressam sua imagem,
particularmente:
– a forma urbana definida pelo traçado e parcelamento;
– as relações entre os diversos espaços urbanos (construídos, abertos
e verdes);
– a forma e o aspecto interior e exterior das edificações, tais como
são definidos por sua estrutura, volume, estilo, escala, materiais, cor
e decoração;
– as relações da cidade com seu entorno natural ou criado pelo
homem;
– as diversas vocações da cidade, adquiridas ao longo de sua história.
Qualquer ameaça a esses valores compromete a autenticidade da
cidade histórica. (ICOMOS, 1986, p. 282).

A conservação das cidades históricas implica em manutenção


permanente das áreas edificadas, regulamentação do tráfego e das novas
construções (em harmonia com aquelas existentes), melhoria na qualidade
de vida, bem como medidas preventivas contra catástrofes naturais. O
Icomos também ressalta que a “melhoria do habitat deve ser um dos
objetivos fundamentais da salvaguarda”.
O 1º Seminário brasileiro para preservação e revitalização de centros
históricos (Carta de Petrópolis, 1987) traz a definição de sítio histórico:

O sítio histórico urbano (SHU) é parte integrante de um contexto


amplo, que comporta as paisagens natural e construída, bem como a
vivência de seus habitantes em um espaço de valores produzidos no
passado e no presente, em um processo dinâmico de transformação.
Os novos espaços urbanos devem ser entendidos na sua dimensão de
testemunhos ambientais em formação. (CARTA DE PETRÓPOLIS,
1987, p. 285).
Cidade, História e Patrimônio - 31

A proteção legal do SHU será feita através de “diferentes tipos de


instrumentos, tais como tombamento, inventário, normas urbanísticas,
isenções e incentivos, declaração de interesse cultural e desapropriação”
(PETRÓPOLIS, 1987, p. 286-287).
O Icomos (através da Declaração de São Paulo, 1989) ressalta que as
populações marginalizadas, ocupantes dos centros históricos urbanos em
todas nações, devem poder alcançar melhoria real na qualidade de vida de
seu cotidiano através de projetos de restauração e reciclagem, que também
considerem sistemas habitacionais de padrão condizente com a dignidade e
cidadania da população.
Portanto, cabe aos governos implementar políticas, programas e
projetos de habitação social em centros históricos através de projetos de
reabilitação ou projetos novos, ofertando habitações de qualidade para a
população que mora nos cortiços dessa área.
A Unesco (a partir da Recomendação sobre a salvaguarda das
culturas tradicional e popular, 1989) define:

A cultura tradicional e popular é o conjunto de criações que emanam


de uma comunidade cultural, sendo fundadas na tradição e expressas
por um grupo ou indivíduos que reconhecidamente respondem às
expectativas da comunidade enquanto expressão de sua identidade
cultural e social; as normas e os valores são transmitidos oralmente,
seja por imitação ou de outras maneiras. Suas formas compreendem
a língua, a literatura, a música, a dança, os jogos, a mitologia, rituais,
costumes, artesanato e arquitetura, entre outras artes. (UNESCO,
1989, p. 294-295).

A expressão cultural de um povo se manifesta na arquitetura, artes,


ritos, costumes e outras formas de fazer, que representam o patrimônio
cultural, material e imaterial, que deve ser preservado e transmitido como
herança das gerações.
A Carta de Brasília (Documento regional do Cone Sul sobre
autenticidade; Brasília, 1995) define dois conceitos importantes:
autenticidade e identidade:

O significado da palavra autenticidade está intimamente ligado à


ideia de verdade: autêntico é aquilo que é verdadeiro, dado como
certo, sobre o qual não há dúvida. Os edifícios e lugares são objetos
materiais, portadores de uma mensagem ou argumento, cuja
32

validade, compreensão e aceitação (pela comunidade, no quadro de


um determinado contexto social e cultural) os converte em
patrimônio. Com base neste princípio, poderíamos dizer que estamos
diante de um bem autêntico quando há correspondência entre o
objeto material e seu significado. (BRASÍLIA, 1995, p. 325-326).

Por outro lado, identidade "é uma forma de pertencer e participar.


Por isso somos capazes de encontrar nosso lugar, nome ou personalidade,
não por oposição, mas porque descobrimos vínculos verdadeiros que nos
ligam ao destino das pessoas com as quais compartilhamos a mesma
cultura" (BRASÍLIA, 1995, p. 324-325). Os valores de autenticidade e
identidade se manifestam na veracidade dos patrimônios que recebemos e
transmitimos ao futuro.
O Conselho da Europa (Sobre a conservação integrada das áreas de
paisagens culturais como integrantes das políticas paisagísticas, em 1995)
define:

Paisagem: expressão formal dos numerosos relacionamentos


existentes em determinado período entre o indivíduo ou uma
sociedade e um território topograficamente definidos, cuja aparência
é resultado de ação ou cuidados especiais, fatores naturais e
humanos ou de uma combinação de ambos.
Paisagem é considerada em um triplo significado cultural, pois é
definida e caracterizada da maneira pela qual um determinado
território é percebido por um indivíduo ou pela comunidade; dá
testemunho, ao passado e ao presente, do relacionamento existente
entre os indivíduos e seu meio ambiente; ajuda a especificar culturas
locais, sensibilidades, práticas, crenças e tradições. (CONSELHO DA
EUROPA, 1995, p. 331-332).

Recomenda-se que para a conservação cultural e evolução


controlada das áreas de paisagens, as políticas considerem e harmonizem os
interesses cultuais, sociais, ecológicos, estéticos e econômicos.
O Conselho da Europa também define poluição visual como sendo “a
degradação ofensiva à visão, resultante do acumulo de instalações ou
equipamentos técnicos (torres, cartazes de propaganda, anúncios ou
qualquer outro material publicitário) ou presença de plantação de árvores,
zona florestal ou projetos construtivos inadequados ou mal localizados”
(CONSELHO DA EUROPA, 1995, p. 332).
Diante do avassalador processo de globalização que o patrimônio
intangível eventualmente possa sofrer, o Centro Internacional para a
Cidade, História e Patrimônio - 33

Conservação do Patrimônio da Argentina (CICOP), que organiza as Primeiras


Jornadas do Mercosul e elabora a Carta del Mar del Plata sobre o
patrimônio intangível (junho de 1997), recomenda:

Promover, em caráter urgente, o registro documental e a catalogação


das expressões do patrimônio cultural intangível;
Criar um banco de dados com todas publicações da região referentes
ao patrimônio intangível e com informações sobre as manifestações
culturais próprias de nossos respectivos países, com a consequente
publicação de Cadernos sobre as distintas expressões culturais;
[...]
3. Estimular os governos a incorporar os conteúdos do Patrimônio
Cultural Intangível nos currículos escolares e propiciar a realização de
oficinas nas disciplinas afins. (CICOP Argentina, 1997, p. 361).

A importância de preservar o patrimônio intangível está em evitar


que o processo de globalização transforme as expressões culturais
representativas da sociedade das quais a cultura emana. Portanto, a
documentação e o inventário desse patrimônio intangível são importantes,
assim como a inclusão de seu conteúdo nas disciplinas afins dos currículos
escolares para que os alunos aprendam e valorizem esse conteúdo.
A Recomendação de Paris elaborada pela Unesco (através da
Convenção para salvaguarda do patrimônio cultural imaterial (Paris, outubro
de 2003) ressalta a importância do patrimônio cultural imaterial como fonte
de diversidade cultural e desenvolvimento sustentável. Diante do processo
de globalização e transformação social, que pode levar à ameaça e
destruição do patrimônio cultural imaterial, a Unesco recomenda sua
salvaguarda e conscientização das gerações.
Nessa convenção, foi definido que patrimônio cultural imaterial
compreende:

As práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas


(junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares associados)
que as comunidades, grupos e indivíduos reconhecem como parte
integrante de seu patrimônio cultural. Esse patrimônio cultural
imaterial, que se transmite de geração em geração, é
constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de
seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história. Isso
gera um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo para
promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.
(UNESCO, 2003, p. 373).
34

Além disso, a Unesco (2003, p. 378) recomenda que “para assegurar


a identificação, com fins de salvaguarda, cada Estado Parte deve estabelecer
um ou mais inventários do patrimônio cultural imaterial presente em seu
território, conforme o seu próprio sistema de salvaguarda do patrimônio”. O
inventário como documentação e registro do patrimônio imaterial é
necessário para sua salvaguarda e para subsidiar as ações políticas,
programas e projetos de preservação.
The International Committee for the Conservation of the Industrial
Heritage (TICCIH), em julho de 2003, na cidade de Tagil, elabora a Carta de
Nizhny sobre o patrimônio industrial, que compreende:

Os vestígios da cultura industrial que possuem valor histórico,


tecnológico, social, arquitetônico ou científico. Estes vestígios
englobam edifícios e maquinaria, oficinas, fábricas, minas e locais de
processamento e de refinação, entrepostos e armazéns, centros de
produção, transmissão e utilização de energia, meios de transporte e
todas as suas estruturas e infra-estruturas, assim como os locais onde
se desenvolveram atividades sociais relacionadas com a indústria,
tais como habitações, locais de culto ou de educação. (TICCIH, 2003).

A Revolução Industrial marcou mudanças sociais, econômicas,


arquitetônicas e urbanas, que se prolongam até nossos dias. Os edifícios,
estruturas, maquinarias e demais utensílios para as atividades industriais,
configuram as paisagens com um valor universal, portanto sua conservação
é relevante.
A recomendação relativa à preservação do patrimônio documental,
compreendido o patrimônio digital e o acesso ao mesmo, foi elaborado pela
Unesco, em Paris, em novembro de 2015, em função da importância do
patrimônio documental como registro do desenvolvimento do pensamento
e os acontecimentos humanos, a evolução das línguas, a cultura, entre
outros.
Definições de documento e patrimônio documental. Entenda-se por
documento um objeto com conteúdo informativo analógico ou digital e o
suporte no qual se consigne. Um documento é um bem móvel, seu
conteúdo pode ser signos, códigos, imagens e sons. E o patrimônio
documental compreende os documentos ou grupo de documentos de valor
significativo e duradouro para uma comunidade, uma cultura, um país ou
Cidade, História e Patrimônio - 35

para a humanidade em geral, cuja deterioração ou perda suporiam um


empobrecimento prejudicial.
O patrimônio documental é relevante para entender a história social,
política e coletiva, reflete a identidade e memória, além de contribuir para
determinar o lugar da comunidade no mundo.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A evolução do pensamento preservacionista através das Cartas


Patrimoniais Internacionais abrange a valorização dos monumentos
históricos, as medidas de preservação dos bens culturais, as instruções para
os critérios das restaurações arquitetônicas e para a tutela dos centros
históricos, o patrimônio cultural e a criação do Comitê intergovernamental
de proteção ao Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, os conjuntos
históricos e arquitetônicos, a reabilitação das construções antigas e dos
bairros sem modificação da composição social, a salvaguarda dos jardins
históricos, as recomendações para a salvaguarda e qualidade de vida das
cidades históricas e da população marginalizada em centros históricos, o
planejamento e planos urbanos, a proteção legal do sítio histórico urbano.
Além da valorização da identidade, autenticidade, da paisagem cultural, do
patrimônio intangível, do patrimônio industrial, imaterial e da
documentação.
Até a década de 1960 a preocupação era com a valorização,
utilização, conservação, restauração, inventário e proteção por zonas dos
monumentos históricos, as novas construções em harmonia com sua
ambiência (Carta de Atenas, 1931; Recomendação de Paris, Paisagens e
Sítios, 1962; Carta de Veneza, 1964; Normas de Quito, 1967) e as medidas
de preservação dos bens culturais compreendidos pelos bens móveis e
imóveis de relevada significação para o patrimônio cultural de cada país
(Carta sobre a Recomendação de medidas destinadas a proibir a exportação
e importação de bens culturais, 1964; Recomendação sobre a conservação
dos bens culturais ameaçados pela execução de obras públicas ou privadas,
1968). Também nessa década salienta-se a casa como o núcleo inicial do
urbanismo e deve prolongar-se no exterior em diversos equipamentos
coletivos (Carta de Atenas, 1933).
36

Na década de 1970 são definidos os conceitos de salvaguarda e


restauração, as instruções para os critérios das restaurações arquitetônicas
e para a tutela dos centros históricos (Carta de Restauro, 1972), é definido o
conceito de patrimônio cultural e cria-se o Comitê intergovernamental de
proteção ao Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, além da Lista do
Patrimônio Mundial (Convenção sobre a salvaguarda do Patrimônio
Mundial, Cultural e Natural, 1972). Também são definidos os conceitos de
conjuntos históricos, ambiência e salvaguarda. Ainda, recomenda-se o
inventário das construções dos conjuntos arquitetônicos, ressalta-se a
importância da reabilitação dos bairros sem modificação da composição
social e que as habitações sejam subsidiadas através da reabilitação de
construções antigas (Declaração de Amsterdã, 1975; Recomendação relativa
à salvaguarda dos conjuntos históricos e sua função na vida contemporânea,
1976).
Na década de 1980, com o propósito de orientar as ações de
preservação são definidos vários conceitos como sustância, conservação,
manutenção, preservação, restauração, reconstrução, adaptação e uso
compatível (Carta de Burra, 1980). O interesse preservacionista foi com a
manutenção, conservação, restauração e reconstituição dos jardins
históricos (Carta de Florença, 1981) e a conservação e restauração das
pequenas localidades (Declaração de Tlaxcala, 1982). Também foram
importantes a valorização da identidade cultural e o patrimônio cultural de
um povo (Declaração de México, 1985). Além disso, foram realizadas
recomendações para a salvaguarda e qualidade de vida das cidades
históricas e da população marginalizada em centros históricos, o
planejamento e planos urbanos, a proteção legal do sítio histórico urbano, e
a salvaguarda da cultura tradicional e popular (Carta de Washington, 1986;
Carta de Petrópolis, 1987; Declaração de São Paulo, 1987; Recomendação
sobre a cultura tradicional e popular, 1989).
Mais tarde, na década de 1990, foram valorizados e definidos os
conceitos sobre autenticidade, ligados à ideia de verdade, identidade,
paisagem cultural, poluição visual e o patrimônio intangível (Carta de
Brasília, 1995; Sobre a conservação integral das áreas de paisagens culturais
como integrantes das políticas culturais, 1995; Carta del Mar del Plata,
1997).
Cidade, História e Patrimônio - 37

No século XXI, na primeira década, é ressaltada a importância do


patrimônio cultural imaterial como fator da diversidade cultural e garantia
do desenvolvimento sustentável (Convenção para a salvaguarda do
patrimônio cultural imaterial, 2003), do patrimônio industrial compreendido
pelos vestígios da cultura industrial que possuem valores históricos, social,
tecnológico, científico e arquitetônico (Carta de Nizhny, 2003). Na segunda
década, foi ressaltada a importância do patrimônio documental como
registro do desenvolvimento do pensamento e os acontecimentos humanos
(Recomendação relativa à preservação do patrimônio documental, 2015).
Até os dias de hoje, as normas, medidas e recomendações para a
salvaguarda do patrimônio constantes nas Cartas Patrimoniais
Internacionais orientam as ações preservacionistas das instituições públicas,
não governamentais e profissionais.

REFERÊNCIAS

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Editorial, 2003.
BRANDI, C. Teoria da restauração. Trad. Beatriz Mugayar Kühl. Cotia: Atêlie Editorial, 2004.
BRASÍLIA. Carta de Brasília: Documento regional do Cone Sul sobre autenticidade, 1995. In:
CURY, I. (Org.). Cartas patrimoniais. 3. ed. rev. aum. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004. p. 323-
328.
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(Org.). Cartas patrimoniais. 3. ed. rev. aum. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004. p. 21-68.
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38

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Cidade, História e Patrimônio - 39

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obras públicas ou privadas, 1968. In: CURY, I. (Org.). Cartas patrimoniais. 3. ed. rev. aum.
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contemporânea, 1976. In: CURY, I. (Org.). Cartas patrimoniais. 3. ed. rev. aum. Rio de
Janeiro: IPHAN, 2004. p. 217-234.
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______. Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, 2003. In: CURY, I.
(Org.). Cartas patrimoniais. 3. ed. rev. aum. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004. p. 371-390.
______. Recomendação relativa a preservação do patrimônio documental, 2015.
40
Cidade, História e Patrimônio - 41

Capítulo 2

A CONSTRUÇÃO DA CIDADE DE SÃO PAULO NA PRIMEIRA


REPÚBLICA ATRAVÉS DA ATUAÇÃO DO CONSELHEIRO ANTÔNIO
PRADO E DE VICTOR DA SILVA FREIRE: OS PRIMÓRDIOS DO
URBANISMO PAULISTA

3
Luiz Augusto Maia Costa
4
Alessandra Salvador Alexandre Strassa

1 INTRODUÇÃO

A São Paulo dos fins do século XIX e início do século XX é a


manifestação mais visível de um complexo processo que mimetizava a
sociedade que a construíra. Em um período de cinco décadas São Paulo
passou de um “mero” burgo estudantil, periférico no panorama nacional
para a posição de uma metrópole com um vultoso papel nacional e
internacional. Isto não se deu a esmo, não se deu às margens de um
processo que, sob muitos aspectos, foi feio, cruel e impiedoso, mas, ao
mesmo tempo, fascinante pela coragem, pelo poder de articulação e
organização, pelo esforço empreendedor de sua sociedade e pela
capacidade de criação e superação. A cidade de São Paulo torna-se, assim, a
manifestação mais bem acabada, no Brasil, da modernidade vinculada ao
capitalismo egresso da Segunda Revolução Industrial. A capital paulista
então se configurava como uma cidade ambígua, fragmentada, transitória e
caótica ao mesmo tempo, muito próxima a New York ou a Chicago. Para
compreendê-las, parece-nos necessário buscar entendê-las em seus
próprios termos, antes de qualquer coisa, como cidades tipicamente
americanas, opondo-a às cidades europeias.

3
Professor doutor, PUC-Campinas, Brasil. E-mail: luiz.augusto@puc-campinas.edu.br
4
Professora mestre, Unimogi, Brasil. Doutoranda, PUC-Campinas, Brasil. E-mail:
alestrassa@gmail.com
42

Por volta do final da década de 1910, a sociedade paulista, em


particular, e a brasileira, de uma forma geral, ainda não havia sepultado o
passado escravista. Como bem nota Sevcenko (1992, p. 31), isso ficava
evidente nos “tratos sociais e na atitude discriminatória, peremptória, brutal
das autoridades, conferindo às relações hierárquicas um acento lancinante,
quando não atroz”. A vergonha e o desejo de escamotear, ao mesmo
tempo, tanto o passado escravista quanto o passado colonial, ambos
recentemente suprimidos, em muito favoreceram a construção ideológica
da cidade de São Paulo como uma cidade “europeia”, embranquecida.
A cidade e o Estado de São Paulo, no período em tela, passavam a ser
objeto de um projeto – não só político como econômico. Este ancorou um
amplo planejamento territorial e urbano guiado pelos interesses dos
capitalistas nacionais e internacionais. Sua elite entendeu e abraçou de
imediato essa proposta, não claro, sem ambiguidades e contradições. Foram
essas as forças que produziram o espaço construído do Estado e da capital,
moldando sua forma e função. Isto é, no meio do turbilhão de
transformações ininterruptas, que a sociedade como um todo se havia
lançado, descobrir um lugar para si no panorama nacional e internacional
era uma necessidade. Forjar para si uma identidade era imprescindível.
Nesta busca, a fim de melhor se legitimar e se impor, irônica e
contraditoriamente, muitos acreditavam que se negassem sua real natureza
e se brancos e europeus se tornassem (ainda que apenas no plano
ideológico), respeito e autoestima conseguiriam. O certo é que, para muitos,
São Paulo era assim como uma pequena Paris nos trópicos. Acreditavam
então na ilusão de viverem a Belle Époque.
É ainda Sevcenko (1992, p. 118-119) que, ao se referir à parafernália
de estilos arquitetônicos que assolava a cidade e que dominava a sua
paisagem urbana no final da década de 1910, observa que esta parafernália
buscava mais que esclarecer sua real identidade, escondê-la. Nesse sentido,
parece que “todos” concordam: “nossas cidades foram construídas para
serem destruídas”. Aqui está claramente posta tanto nossa “natureza”
quanto a nossa busca por forjar uma identidade. É impossível de não ver
repercutindo nesse contexto a Chicago da Feira Mundial: a cidade
espetáculo, a cidade simulacro, a cidade do capital.
Cidade, História e Patrimônio - 43

Certamente, de todos os traços que ligam a capital do Estado de São


Paulo à capital do Estado de Illinois, o mais significativo para nós é o fato de
ambas terem sido palco de espetaculares disputas de interesses vinculados
à produção e reprodução do capital, de terem sido seus solos urbanos
objeto de forte e contumaz especulação imobiliária, a qual expandiu seus
limites muito além do que o bom senso e a necessidade ditavam,
condicionando assim a forma da cidade à função que estas exerciam na rede
à qual estavam ligadas. Cidades, nó concentrador e centralizador das
principais funções urbanas e sociais de toda uma região, destinavam-se,
antes de qualquer coisa, a serem, elas mesmas, mercadoria. Em Chicago
grandes empresas também moldaram a forma da metrópole, com uma
grande diferença, que mudou todo o resultado, a sociedade norte-
americana não só parece ter compreendido mais profunda e amplamente os
mecanismos e engrenagens capitalistas que ela mesma pusera em
movimento, como os abraçou mais arraigadamente. Essa sociedade
compreenderá desde o início que para acumular o capital (e exercer a
exclusão) que o sistema capitalista pressupõe, de alguma forma, é
necessário que se faça alguma inclusão, nem que essa seja feita (de forma
cruel) pelo mercado consumidor. A cidade deveria ser aprazível para dar
lucro sim! Sua beleza, seu pleno funcionamento, sua função social deveriam
ocorrer, não para o bem do indivíduo ou dos particulares, mas para que o
sistema como um todo crescesse e se desenvolvesse. As melhorias para a
comunidade, o “bem comum” não eram uma questão de justiça social (seja
lá que conteúdo ideológico a expressão adquira), mas sim porque isso era
bom para o Estado; e não se tinha dúvidas, o Estado era o Estado burguês –
capitalista, voltado para a consolidação de um mercado de massas (COSTA,
2005).
No Brasil, a indefinição foi o lema. Oscilando entre a culpa e a
avassaladora sanha capitalista, esta elite não chegou a cumprir plenamente
os intuitos para os quais acenava, paralisando-se e deixando que um “fluxo
capitalista” sem foco bem claro, definido e delimitado conduzisse à
produção do espaço construído. O que nos espanta neste contexto, não é a
brutal exclusão social expressa na forma urbana, mas a incapacidade de esta
elite criar quaisquer mecanismos de inclusão social que, em última análise,
estariam a serviço do desenvolvimento e consolidação dos seus próprios
44

interesses. Esta opção mostra que esta burguesia cafeicultora não quis forjar
um modelo de sociedade e de cidade que expressasse sua verdadeira face e
consolidasse a sua, nem melhor nem pior, real identidade. Aqui não emergiu
uma “Escola” urbanística amplamente aceita e respeitada como poderia ter
ocorrido, se uma “vontade” política tivesse sido construída. Não que com
isso queiramos negar as ações que existiram nesse sentido. Muito menos
negligenciar o muito que foi feito. Contudo, no período em tela, isso foi
insuficiente (COSTA, 2005).
Foi nessas circunstâncias que uma série de bairros novos foram
criados, e que núcleos coloniais cada vez mais distantes do centro da cidade
surgiram sem que isso impedisse que os bairros já existentes se adensassem
ainda mais. A Light exercia papel preponderante nesta expansão urbana, a
qual, obviamente, era movida por interesses capitalistas quase nunca
declarados. Assim sendo, a franja da cidade era empurrada para áreas cada
vez mais distantes. Contudo, é inegável houvesse sim um planejamento em
curso. Planejamento esse que nos EUA recebeu o nome de corporate
planning, o qual era empreendido e movia-se segundo os interesses dos
grandes empresários e destinava-se à reprodução e acúmulo do capital ao
longo do processo de produção do espaço construído.
Acreditamos ser desnecessário frisar que nada fora feito para,
efetivamente, resolver a questão da habitação do proletariado, a despeito
das leis promulgadas durante a gestão de Antônio Prado. Nem seria
possível, visto a visão limitada dos “capitalistas” paulistas de então, que não
viam nesta questão uma forma rápida e direta de perceberem lucros. Mais
uma vez, parece-nos que aqui o problema era a falta de compreensão mais
ampla das engrenagens que a sociedade estava a pôr em movimento.
Facilmente depreende-se que desde a década de 1880 são empresas
privadas com seus interesses voltados para o capital que, em sua maioria,
estão a produzir o espaço construído da capital e começando a moldar a sua
futura forma. Obviamente que aqui não está em movimento ainda, com
aquela opulência e voracidade, a especulação da década de 1910, que será
comentada a seguir. Entretanto, é inegável que o germe daquela dinâmica já
se manifestava e contribuía marcadamente para a produção do espaço
construído da cidade de São Paulo. Partindo dessas observações,
constatamos que, entre as décadas de 1880 e 1910, deu-se um
Cidade, História e Patrimônio - 45

recrudescimento desta prática especulativa, mas, sobretudo, que São Paulo


neste período deixou de ser um “burgo estudantil” e tornou-se uma
“metrópole”.

2 O CONSELHEIRO ANTÔNIO PRADO E O “SEGUNDO SURTO URBANÍSTICO


DA CAPITAL”

Por volta da década de 1890, segundo Campos Neto (1999, p. 83):

A esfera municipal paulista configurava um espaço onde podiam se


expressar setores da classe dominante que não se identificavam
plenamente com as estruturas de poder vitoriosas da Primeira
República, as quais se concentraram, de início, nos planos estadual e
federal.

Isto é, o Partido Republicano Paulista (PRP) ainda não havia


conquistado a hegemonia no plano municipal ficando esta apenas na esfera
estadual. É neste contexto, que em 1899 o Conselheiro Antônio da Silva
Prado é eleito o primeiro prefeito de São Paulo ficando no cargo até 1910.
Antônio Prado teve ao longo do período anterior uma longa carreira política,
foi senador, conselheiro e ministro imperial. Antigo monarquista, já no
período republicano era adversário e desafeto de muitos membros do PRP,
não obstante possuía a imagem de homem público isento, honrado, íntegro,
respeitado pelos setores dominantes da opinião pública. Em 1926, fundaria
o Partido Democrático (PD).
Os empreendimentos dos Prado se estendiam pela agricultura, pelo
ramo empresarial, industrial, comercial e financeiro. Indubitavelmente,
estavam no epicentro do que vem sendo chamado de Complexo Cafeeiro.
Antônio Prado era ainda proprietário da vidraria Santa Maria e do frigorífico
de Barretos; era fazendeiro de café e possuía investimentos em estradas de
ferro (acionista e presidente da Companhia Paulista), na maior casa
comissionária e exportadora nacional (a Prado & Chaves), no Banco de
Comércio e Indústria de São Paulo (fundador e presidente), tornando-se
assim personagem-chave em todo o processo de produção do café em São
Paulo desde seu financiamento, passando pelo seu transporte até sua
exportação para os mercados de massa internacionais.
46

A família Prado talvez tenha mimetizado os maiores e mais profundos


conflitos entre forças modernas e tradicionais ao longo da Primeira
República, sendo também a expressão de um conflito vivido no Brasil do
século XIX. As percepções de Antônio Prado sobre a variedade da cultura
europeia na década de 1860 e a adoção inicial, e rejeição posterior, por
parte de Martinico, dos modelos europeus, foram exemplos importantes da
influência recíproca do moderno e do tradicional, de experiências brasileiras
e estrangeiras antes de 1889, como bem observa Levi (1977, p. 220). Sendo
assim, enquanto Antônio permanecia como chefe político e econômico da
família, seu irmão mais novo, Eduardo, e seu filho mais velho, Paulo,
tentavam reavaliar as influências culturais estrangeiras no Brasil. Por fim,
ambos terminaram atacando a limitação de modelos e a distorção do que
viam como a “realidade brasileira”. Essa situação das coisas pode ser bem
percebida na questão escravista:

Como proprietários de escravos até 1888 e cidadãos cosmopolitas do


mundo, os Prados eram ambígua sobre o problema de raça, uma
angústia comum às classes educadas do Brasil. Os Prados viam a
escravidão - no seu auge - como uma “tragédia necessária”, e
estavam plenamente conscientes da sua injustiça. [...] Os Prados
mantiveram amizades com vários mulatos talentosos: o abolicionista
José do Patrocínio, o brilhante escritor Machado de Assis e o
historiador-etnólogo [...] Theodoro Sampaio. (LEVI, 1977).

De certo que quando se organizou o gabinete imperial de João


Alfredo e Antônio Prado ocupava o cargo de Ministro da Agricultura, este,
conjuntamente com o geógrafo norte-americano Orville Derby e Theodoro
Sampaio, esboçou um modelo alternativo ao projeto para a abolição da
escravidão no Brasil, os quais intentavam apresentar como substituto do
promulgado. Imediatamente após os acontecimentos de 1889, os Prado
agiram com típica flexibilidade para tirar vantagens do clima econômico
criado pelo advento da República. Em 1890, Antônio Prado abriu o Banco do
Comércio e Indústria em São Paulo, que dirigiu até 1920, e que se tornou a
arma fiscal do conglomerado familiar. O banco logo se transformou na
principal instituição privada de crédito em São Paulo, com um ativo médio
de 100 mil contos – de um quarto a um terço dos ativos dos bancos privados
registrados no Estado, durante o período de 1900 a 1910. A criação do
Cidade, História e Patrimônio - 47

banco representou a institucionalização de fundos antes preservados em


mãos da família. Uma média da força que o banco deu aos Prado pode ser
tirada do fato de que, até 1887, o total de ativos de oito bancos, que
operavam nas cidades de São Paulo, Campinas e Santos era de 91 mil
contos. Indiscutivelmente, o fato de Antônio Prado ter se tornado Prefeito
da cidade, a despeito de sua reputação proba, contribuiu para o sucesso e
“hegemonia” que o banco gozava.
A casa de exportação de café dos Prado tornou-se a mais importante
casa de exportação de café de propriedade brasileira em Santos. Os Prado
lucraram muito com a desgraça dos outros fazendeiros comprando muitas
das fazendas falidas (1909). Os mesmos queriam incentivar/promover a
agricultura de pequenas fazendas. Já o crescimento da Prado & Chaves
coincide com seu privilegiado relacionamento com o governo, e seu declínio
resultou da perda deste status, assim como da recuperação das firmas
estrangeiras depois da Primeira Grande Guerra. Outra linha de comércio
seguida pelos Prado na Primeira República foi a de gado. Em 1895, Antônio
fundou um curtume perto de São Paulo. O curtume Água Branca.
Combinado a seus interesses na ferrovia e nas exportações, o curtume levou
ao estabelecimento, em 1910, da primeira instalação brasileira de uma firma
de acondicionamento de carne refrigerada, o Frigorífico Barretos. A
atividade de carne refrigerada foi movida pelos Prado, sobretudo por
Antônio, com forte caráter especulativo. Do exposto, nota-se que a
separação das esferas públicas e privadas não eram claras no período e os
Prado, como nenhuma outra família do período, soube tirar proveito desta
situação.
Inicialmente, o conselheiro Antônio Prado foi eleito como prefeito
para o triênio 1899-1901. Contudo, devido à unanimidade que gozava junto
à opinião pública, foi reconduzido ao cargo por mais três mandatos. Seus
doze anos à frente do Executivo municipal ficou marcado por um forte
caráter de modernização alicerçado, segundo consta, em preocupações com
o progresso social e material que se consubstanciou em uma remodelação
física dos espaços e equipamentos urbanos.
É assim que, em 1899, Antônio Prado transforma a Intendência de
Obras para em seguida após ampliá-la e dar origem à Diretoria de Obras
Municipais, conferindo a Victor da Silva Freire o cargo de diretor da mesma.
48

Ele então tinha menos de 30 anos e há dois lecionava na Escola Politécnica


de São Paulo. Diferentemente do modus operandi do governo estadual de
caráter setorial, Freire imprimiu à Diretoria de Obras um caráter urbanístico
o qual, gradualmente, passou de propostas de intervenção pontual na
cidade para propostas mais ambiciosas de transformação urbana.
No período em que Victor da Silva Freire esteve à frente da Diretoria
de Obras do município, as propostas e iniciativas gestadas no âmbito desta
repartição compartilharam espaço com programas diversos provenientes de
diversas instâncias: a iniciativa privada, o governo do Estado, a Câmara
Municipal, todas concorrendo no âmbito das intervenções urbanísticas
municipais. Esse estado das coisas não se dava sem arraigadas disputas,
onde a superação das divergências era alcançada pela negociação e acordos
entre as várias esferas públicas e privadas envolvidas no debate urbanístico
de então, bem como no processo de produção do espaço construído. A sua
gestão no período, que compreendeu a administração de Antônio Prado,
possuía essa tônica.
Por sua vez, Antônio Prado, não dispondo dos mesmos recursos que
Pereira Passos dispunha no poder, por consequência, não foi possível
realizar remodelações radicais como as operadas no Distrito Federal. A
dupla Prado e Freire buscou coordenar transformações decisivas do espaço
da capital paulista (ainda que de amplitude menor), sobretudo na área
central que, como de resto, foi o foco de intervenções em quase todas as
cidades brasileiras do período.
Uma boa visão do que então foi empreendido na gestão de Antônio
Prado pode ser notada pelo conjunto de leis então promulgadas ao longo
dos doze anos de sua Administração. É assim que analisando as leis
promulgadas no ano de 1899, torna-se curioso notar que enquanto a
Câmara isentava de impostos ruas abertas nas áreas nobres da cidade, a
exemplo da Lei 391, de 15 de abril de 1899, que “torna extensiva a isenção
de impostos às ruas abertas pela Baronesa da Limeira, situadas no
prolongamento da atual rua S. João”, a Lei 398, de 20 de maio de 1899,
“autoriza o prefeito a rever os impostos sobre cortiços, não pagos em anos
atrasados”. Apontando claramente para uma política excludente a qual
privilegiava as classes mais favorecidas e coibia os cortiços, moradia dos
menos favorecidos sem elaborar uma real medida para suprir o déficit
Cidade, História e Patrimônio - 49

habitacional. Neste mesmo ano destacam-se ainda as Leis: 396, de 15 de


abril de 1899 – que autoriza o prefeito a lavrar novo contrato com a
Companhia Viação Paulista; Lei 400, de 20 de maio de 1899 – que aprova o
contrato que, nos termos da Lei 396, de 15 de abril último, celebrou o
prefeito com a companhia viação paulista; Lei 403, de 12 de junho de 1899 –
autoriza o prefeito a mandar nivelar a Rua Ribeiro de Lima, assim como
colocar guias e abrir sarjetas na mesma rua; Lei 407, de 21 de julho de 1899
– que regula o serviço da distribuição de força e luz pela eletricidade. A tirar
pelas leis promulgadas nesse ano, uma das grandes preocupações do
prefeito era: isentar de impostos aqueles que abriam ruas ou que eram de
famílias abastadas, promover a limpeza e o calçamento de ruas e de certa
forma organizar o poder público.
Ao longo do ano de 1900 destacam-se as Leis em que as
preocupações continuam sendo isenção de impostos, limpeza, alinhamento
de ruas, embelezamento. Preocupa-se ainda com pequenas obras e seus
custos. Mas talvez o mais significativo seja a elaboração de uma legislação
destinada à questão da casa operária, um dos pontos nevrálgicos do
urbanismo moderno, mesmo que os desdobramentos deste decreto não
tenham exercido impacto algum sobre a paisagem urbana, porém a mera
aprovação do mesmo aponta para o fato de a Câmara, Prefeito e Diretor de
Obras do município estarem atentos a tal demanda.
Já no ano de 1901 destacam-se as Leis: 503, de 15 de janeiro de 1901
– que faz a Fried & Ekman concessão, por vinte anos, para a construção, uso
e gozo de um viaduto ligando o largo de S. Bento ao de Santa Efigênia; Lei
521, de 11 de junho de 1901 – que adota o plano de alinhamento da Rua 15
de novembro, organizado pela extinta comissão de melhoramentos da
municipalidade; Lei 526, de 11 de junho de 1901 – que autoriza a
organização das bases para os editais de concorrência do novo contrato de
limpeza pública e particular; Lei 528, de 6 de julho de 1901 – que aprova as
bases de unificação dos contratos da The São Paulo Tramway Light and
Power Company Limited; Lei 535, de 9 de setembro de 1901 – que autoriza
o prefeito a entrar em acordo com o governo do Estado para o
estabelecimento de serviços de água e esgoto nos edifícios da Penha de
França, Água Branca e Santana; Lei 548, de 19 de outubro de 1901 –
autoriza o prefeito a entrar em acordo com o governo do Estado para
50

contatar parte da iluminação pública da cidade e arrabaldes por


eletricidade; Lei 533, de 14 de novembro de 1901 – autorizando o prefeito a
contratar a construção de casas, vilas operárias e núcleos coloniais. Nesse
ano, o prefeito continua a isentar o imposto de uns enquanto revê os
lançamentos de impostos não pagos de cortiços dos anos atrasados. Esse
ano foi como os outros: de isenção de impostos, embelezamentos,
alargamento e calçadas. Note-se que mais uma vez está colocada a questão
da habitação proletariada via construção de vilas operárias.
No ano de 1902 destacam-se as Leis: 567, de 11 de março de 1902 –
autorizando o prefeito a prorrogar o atual contrato da empresa de limpeza
pública e particular; Lei 604, de 13 de setembro de 1902 – que autoriza o
prefeito a contratar a construção de casas, vilas operárias e núcleos
coloniais. Nesse ano as isenções são menores. As preocupações maiores são
com o calçamento, a limpeza e o embelezamento e alargamento das vias.
Por sua vez, o ano de 1903 tem como principais leis: a Lei 621, de 12 de
janeiro de 1903 – autorizando o prefeito a continuar a execução dos
melhoramentos da Avenida Tiradentes até a praça José Roberto; Lei 622, de
12 de janeiro de 1903 – que autoriza o prefeito prosseguir nos
melhoramentos da avenida Tiradentes até o rio Tietê; Lei 626, de 7 de
fevereiro de 1903 – que regula o funcionamento de estabelecimentos
comerciais na avenida paulista; Lei 661, de 1 de agosto de 1903 – que isenta
a “empresa de bondes de Santana” de impostos e contribuições; Lei 655, de
4 de setembro de 1903 – que autoriza o prefeito a mandar executar os
melhoramentos do mercado da rua 25 de Março e da várzea do Carmo.
Nesse ano há muitas desapropriações e declarações de prédios como de
utilidade pública, o embelezamento e alargamento das calçadas continuam
sendo uma marca, melhoramentos em vários pontos da cidade são feitos,
alguns com verba pública. A questão sanitária aparece. A prefeitura cede
terreno para a construção do teatro municipal (Lei 643, de 25 de abril de
1903 – que autoriza o prefeito a mandar construir o Teatro Municipal).
No ano de 1904 promulgaram-se as leis de desapropriações, os
alargamentos, a limpeza pública e os calçamentos, aquisição de terrenos,
declaração de prédio como de utilidade pública.
Cidade, História e Patrimônio - 51

No ano de 1906 destacam-se as leis que, em geral, são muitos os


“melhoramentos” introduzidos, esses não são especificados, declaram de
utilidade pública prédios da cidade, e promovem o alargamento de vias.
O ano de 1907 é um ano em que se preocupa com as
desapropriações, mas, sobretudo, a novidade é a preocupação com as águas
pluviais. De uma forma geral, as leis falam muito de calçamentos em partes
distintas da cidade. Acreditamos que sempre circunscrito à sua área central.
O ano de 1908 é um ano de muitos acordos acerca de isenções,
desapropriações. Melhoramentos, calçamentos. Desde o ano anterior, o
prefeito renomeia muitas ruas. Os acordos firmados são, sobretudo, com
particulares. Há ainda leis sobre aumento de concessões e arrendamentos
de prédios para utilidade pública. Note-se que depois de um intervalo de
anos, voltam a aparecer leis destinadas à construção de casas operárias e
menciona-se uma via circular. Qual seria seu desenho e intenção?
A novidade no ano de 1909 é a abertura de novas ruas e, finalmente,
do ano de 1910, destacamos as Leis: 1.292, de 25 de fevereiro de 1910 –
que suspende o lançamento da taxa sanitária até ulterior deliberação da
Câmara; Lei 1.299, de 12 de março de 1910 – que aprova o acordo com os
proprietários dos terrenos da Rua Anhangabaú; Lei 1.331, de junho de 1910
– que aprova o plano de melhoramentos da zona denominada Viaduto do
Chá; Lei 1.335, de 21 de julho de 1910 – autoriza a prorrogação do antigo
contrato de limpeza pública e particular pelo prazo de dois anos; Lei 1.339,
de 27 de julho de 1910 – autoriza o prefeito a adquirir o domínio direito da
rua Anhangabaú, de propriedade do Dr. Antônio Melchert; Lei 1.340, de 27
de julho de 1910 – que dispõe sobre agenciadores de hotéis; Lei 1.345, de
26 de agosto de 1910 – que autoriza a construção do Paço Municipal; Lei
1.353, de 13 de setembro de 1910 – que concede isenção dos emolumentos
de construção e de impostos ao primeiro grande hotel que se construir
nesta capital; Lei 1.355, de 7 de outubro de 1910 – que dispõe sobre a
continuação da planta cadastral da cidade; Lei 1.361, de 27 de outubro de
1910 – que determina o alargamento da rua Líbero Badaró.
A despeito de certa “unanimidade” que cercava a figura de Antônio
Prado, de forma alguma ela era hegemônica nem dominante. O que implica
dizer que sua administração se deu a conflitos partidários e de interesse de
grupos privados envolvidos no projeto de modernização e europeização da
52

capital paulista. Exemplo disso é o embate que teve lugar em 1909 entre o
prefeito e as pretensões da Light, então concessionária dos serviços públicos
de transporte por bonde. A empresa pretendia garantir o monopólio do
fornecimento de energia da cidade, ao que o prefeito se contrapunha.
Antônio Prado sai vencido desse embate, tendo a municipalidade de aceitar
os termos impostos pela Light, cujos interesses alcançavam grande
influência na esfera do município de São Paulo. Nas eleições do ano
seguinte, Antônio Prado não se candidata e após doze anos à frente das
profundas transformações porque a cidade passou, transfere (via eleição na
Câmara Municipal) o cargo para Raymundo Duprat, dedicando-se desde
então às suas atividades empresariais.

3 VICTOR DA SILVA FREIRE – O PRIMEIRO TEÓRICO DA CIDADE


PAULISTANA

5
É neste contexto que Victor da Silva Freire escreveu seu O futuro
regime das concessões municipais na cidade de São Paulo, o qual foi
publicado na Revista Politécnica, em 1919. Deste longo e importante texto,
faremos aqui apenas os comentários necessários aos nossos intuitos
imediatos. O autor ao publicar tal texto visa a discutir a questão das
“futuras” renovações das concessões de serviços a empresas pela
municipalidade de São Paulo à época, como visto, gestão central para a
Administração Pública e objeto de infindas leis. Freire cita, unicamente,
exemplos norte-americanos para expressar suas ideias. É assim que, ao
discutir o item “Da liberdade de concorrência à intervenção” e, após
mencionar uma sentença proferida pela “U. S. Supreme Court” que versa
sobre o tema em tela, afirma: “não nos achamos nos Estados Unidos, nem
somos feitoria norte-americana. Por isso mesmo é que não devemos olhar
para a sentença em si, mas voltarmo-nos agora para os seus fundamentos”
(p. 265). O interessante e relevante desta passagem é que aqui fica claro
como Freire está se apropriando das experiências norte-americanas. Ele não

5
Engenheiro civil português, formado na Civil na Politécnica de Lisboa e completou sua
formação na École National des Ponts et Chaussées, de Paris. Chegou a São Paulo em 1895,
indo trabalhar na Superintendência de Obras Públicas. A referida Superintendência foi criada
em 1889 a partir da Repartição de Obras Públicas.
Cidade, História e Patrimônio - 53

pretende “copiar” a forma, mas sim a essência do que lá foi feito. É nítida a
intenção de adaptar, transformar o que lá foi feito para aqui aplicar.
Nesse sentido, com esse texto e cotejando-o com os demais textos
de Freire, temos o entendimento das experiências realizadas nos EUA
apresentadas, no pensamento de nosso engenheiro, como “modelo”, de
uma forma ou de outra, a ser adaptado. No seu pensamento, “modelo” é
uma abstração (geralmente construída a posteriori) que se presta à reflexão,
mas não à aplicação, à reprodução imediata. Esta se dá mediada por uma
reconstrução intelectiva que incorpora as idiossincrasias da cultura –
civilização em que busca intervir. Em suma, Freire está desempenhando o
papel do teórico, do intelectual que faz sua síntese e cria algo novo e
próprio. Essa teoria que ele elabora tem fim claro: a prática! A atuação do
Poder Público frente às necessidades e exigências tanto do privado quanto
do bem comum.
É procedendo assim que Freire, pouco a pouco, vai construindo um
repertório de ideias, soluções e práticas singulares que contribuíram de
forma indelével para a constituição do que veio a ser conhecido como o
“urbanismo moderno paulista”. Note-se que isso se dá ainda nas duas
primeiras décadas do século passado. Logo, o que ele está produzindo não
só é único como inovador e, de certa forma, revolucionário (se tomado o
campo técnico – acadêmico), para a sociedade paulistana de então.
Nesse contexto, outro aspecto da questão urbana paulista de então é
introduzido, trata-se da relação sempre conflituosa entre a esfera pública e
a esfera privada. Freire busca com seu artigo construir um modelo teórico-
legal que geste os conflitos inerentes a tal relação. Aqui são os aspectos
referentes à Administração municipal que é posto no centro do debate. Em
outra perspectiva, é a questão da relação: público X privado, a qual é
indissolúvel de sua vida pessoal e profissional. Exemplar disso é a sua
relação com Barry Parker. Ambos mantiveram uma relação próxima, tendo
este influenciado aquele. Andrade (1998) afirma que Parker chegou a
influenciar a legislação paulistana da época. Do que nos foi possível apurar,
sabemos que nos documentos de Barry Parker arquivados na Cia. City existe
uma lei, em inglês, que versa sobre São Paulo. De início lê-se:
54

O prefeito da municipalidade de São Paulo por virtude do poder


atribuído a ele pela lei estadual número 1038, datada de 19
dezembro de 1906, ordena as seguintes melhorias nas
regulamentações das leis número 2119 datada de 16 de fevereiro de
1918 relativa a construções aprovação de plantas, alinhamentos e
alturas. (Manuscrito de Barry Parker6).

Nesta lei somos informados no seu primeiro parágrafo que a cidade


de São Paulo era então dividida em quatro zonas, a saber: a primeira ou
zona central; a segunda ou zona urbana; a terceira ou zona suburbana; e a
quarta ou zona rural. Isto é, a cidade a essa época já possuía um zonning, e
era formada por uma parte urbana e outra rural, sugere-se que essa
conformação fosse radiocêntrica. Por tal carta, somos informados ainda que
as plantas de edifícios a serem construídos dentro da primeira zona ou
dentro da segunda zona deveriam ser aprovadas pelo prefeito antes de o
trabalho começar, uma vez que estes seriam negociados. O prefeito só
concederia a permissão para a construção quando as plantas respeitassem
as leis municipais pertinentes, e quando o pagamento do requerido tivesse
sido realizado. Já para a terceira zona, edifícios não eram permitidos até que
a terra tivesse sido loteada, com ruas em acordo com a Lei 1.666, datada de
1913. Na quarta zona, os edifícios que estivessem a pelo menos seis metros
da “rodovia” ou três metros do limite do fundo do terreno poderiam ser
edificados sem nenhuma aprovação de plano ou permissão de construção
ou de pagamentos. Isto implica dizer que a cidade possuía já a época um
aparato legal que estabelecia o modo como a cidade deveria crescer.
Obviamente essa lei era fruto do trabalho de Freire, visto que por várias
vezes ao longo da lei é citado o “Diretor de Obras Públicas”. Para, além
disso, vemos nessa lei a intenção de o Poder Público normatizar a
construção da cidade pondo limites nas intenções da iniciativa privada.

6
Documento pertencente ao acervo do Prof. Dr. Carlos Roberto Monteiro de Andrade a quem
agradecemos a cessão do mesmo.
Cidade, História e Patrimônio - 55

4 CONCLUSÃO

Em um período em que o país buscava construir uma identidade e


quando o público e o privado ainda não possuíam caráteres bem firmados, a
capital paulista é construída bebendo de suas potencialidades econômicas,
topográficas e com contribuições técnicas que contradiziam seus discursos
pautados em “modelos internacionais”. A dinâmica frequentemente
utilizada como base de análise não correspondia à problemática local. “A
cidade que entendemos ser São Paulo foi (e é) fruto de um amplo e intenso
processo de planejamento: planejamento político, planejamento
estratégico, planejamento territorial e planejamento urbano”. Tanto nos
Estados Unidos da América quanto aqui a cidade foi produzida como
mercadoria, com o diferencial que no Brasil não houve uma compreensão
mais ampla do Sistema mundo capitalista. Esse estudo trouxe novos
subsídios para se pensar os conflitos políticos e o papel do Estado no
período da Primeira República. A ideia de construção de um poder
mantendo alianças entre público e privado foi engendrado de forma
excludente e desnuda contornos próprios da sociedade paulista desde
então.

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58
Cidade, História e Patrimônio - 59

Capítulo 3

OS PRIMEIROS ANOS DE IMPLANTAÇÃO DO HORTO BOTÂNICO DO


MUSEU PAULISTA (1898 A 1917)

7
Rafaella Neves Goes
8
Marta Enokibara

1 INTRODUÇÃO

O edifício construído para celebrar a independência do Brasil – o


Monumento do Ipiranga – foi implantado em uma esplanada próxima ao
córrego do Ipiranga e concluído em 1890. Em 1893, passou a abrigar o
Museu do Estado e teve seu nome efetivamente alterado para Museu
Paulista.
O Museu Paulista se originou de uma coleção particular pertencente
ao Coronel Joaquim Sertório. Esta coleção se encontrava em sua própria
residência, no Largo Municipal (posteriormente Praça João Mendes), na
cidade de São Paulo (GUARALDO, 2002). Não é datado o início desta
coleção, porém, sabe-se que em 1883 Sertório contratou o naturalista sueco
9
Alberto Löfgren (1854-1918) para organizá-la, devido ao aumento da
quantidade dos objetos presentes no Museu. Após esta organização, a
coleção foi transferida para um prédio no Largo da Assembleia e aberto ao

7
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UNESP-Campus
Bauru. E-mail: rafaellanevesg@gmail.com
8
Pós-doutorado em História das Ciências e da Saúde na Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz-RJ).
Doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).
Docente do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UNESP-campus Bauru.
E-mail: marta.enokibara@unesp.br
9
Sobre Alberto Löfgren (1854-1918) ver ENOKIBARA, M.; ROMERO, L. B. Alberto Löfgren e o
estudo sobre os nomes populares das plantas "indígenas" do estado de São Paulo (1894). In:
CONSTANTINO, N.R.T.; ROSIN, J.A.R.G.; BENINI, S.M. (Org.). Paisagem: natureza, cultura e o
imaginário. Tupã: ANAP, 2017, v. 1, p. 89-112.
60

público. Em 1890, o Conselheiro Francisco de Paula Mayrink comprou a


coleção do Museu Sertório e o doou para o Governo do Estado de São Paulo
(FIOCRUZ, 2004).
O acervo ficou sob os cuidados da Comissão Geográfica e Geológica
do Estado de São Paulo (CGG), criada em 1886, até 1891 quando Américo
Brasiliense de Almeida Mello, presidente da Província de São Paulo,
determinou a criação do Museu do Estado, independente da CGG, e
encarregou Löfgren a dirigir esta instituição (FIOCRUZ, 2004). Sendo assim,
nesta época, Löfgren acumulava duas funções distintas: diretor do Museu
do Estado e responsável pela Seção Botânica e Meteorológica da CGG,
desde sua fundação.
O Museu funcionou desta forma até o início de 1893, quando volta a
fazer parte da CGG e fica sob a coordenação de seu diretor, o geólogo e
geógrafo americano Orville Adelbert Derby (1851-1915). Desta maneira, o
Museu e a CGG passaram a ocupar um prédio na Rua da Consolação. No
mesmo ano, o Governo Estadual, desvincula o Museu do Estado da CGG,
transformando-o em um órgão independente e transferindo-o ao
Monumento do Ipiranga, o qual havia sido finalizado em 1890 (FIOCRUZ,
2004).
Em 1893, segundo a Lei 200, de 28 de agosto de 1893, o Museu do
Estado teve o seu nome alterado para Museu Paulista (FIOCRUZ, 2004 apud
AMARAL, 1990, p. 327), e apenas no ano seguinte são iniciados os trabalhos
de transferência do acervo para o Museu Paulista. Somente em 7 de
setembro de 1895 o Museu abre suas portas ao público (GUARALDO, 2002;
LOPES, 2009; FIOCRUZ, 2004).
Seu primeiro diretor, o zoólogo alemão Hermann Friedrich
Albrecht von Ihering (1850-1930), procurou aproximá-lo de um Museu de
10
Ciências Naturais , caracterizado por sua vinculação aos projetos científicos
de coleta, pesquisa e classificação da natureza, exibindo as coleções de

10
Os Museus de Ciências Naturais são caracterizados por sua vinculação aos projetos científicos
de coleta, pesquisa e classificação da natureza, exibindo as coleções de ciências naturais e
possuindo, fundamentalmente, as seguintes Divisões Técnico-Científicas: Antropologia,
Geologia e Mineralogia, Botânica, Zoologia e Extensão Cultural ou Educação, com seus
respectivos anexos: Biblioteca, Taxidermia, Desenho, Fotografia, Horto botânico isolado ou
associado com animais vivos, áreas de campo para pesquisa e experimentação (CARVALHO,
1988; LOUREIRO, 2007).
Cidade, História e Patrimônio - 61

ciências naturais e possuindo, fundamentalmente, um horto botânico


isolado ou associado com animais vivos (CARVALHO, 1988; LOUREIRO,
11
2007). Neste contexto, em sua gestão (1894 a 1916) , Ihering tinha a
intenção de criar um horto botânico aos fundos do Museu, para ser “uma
coleção viva de exemplares da flora brasileira” (GUARALDO, 2002, p. 86 e
87). Em 1906 foram iniciados os trabalhos mais efetivos, como a abertura de
caminhos, que desde então ficou sob os cuidados de Hermann Luederwaldt
(1865-1934), assistente de zoologia do Museu. Em 1917, durante a gestão
de Afonso d’Escragnolle Taunay (1876-1958), o horto botânico foi ampliado,
mas já em 1928 foi desativado e atualmente é utilizado como parque
público (GUARALDO, 2002), compondo um dos setores do Conjunto do
12
Ipiranga .
O Conjunto do Ipiranga abrange uma área de 161.300 m², que
engloba o Museu, o Monumento à Independência, a Casa do Grito, e o
Parque da Independência (que inclui o Jardim, o Bosque e o eixo cercado de
áreas verdes que segue até o Monumento) (Figura 1).

11
Apesar de inaugurado em 1895, a direção do primeiro diretor teve início no ano anterior,
quando é aprovado o Regulamento do Museu pelo Decreto nº 249, de 26 de julho de 1894.
Neste ano, Ihering já passa a compor o corpo administrativo do Museu, auxiliando em sua
organização.
12
O Conjunto do Ipiranga encontra-se tombado pelos três níveis de proteção: municipal,
estadual e federal. Sendo primeiramente tombado a nível estadual, em 1971, pelo Conselho de
Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico (CONDEPHAAT) e
denominado “Parque da Independência – Ipiranga”. Do mesmo modo ocorreu a nível
municipal, 1991, pelo Conselho do Patrimônio da Cidade de São Paulo (CONPRESP), seguindo
assim o mesmo nome atribuído pelo CONDEPHAAT. E por último foi tombado a nível federal,
em 1998, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), com a
denominação de “Conjunto do Ipiranga”, compreendendo o Museu Paulista, o Monumento à
Independência, a Casa do Grito e o Parque da Independência (que inclui o Jardim, o Bosque e o
eixo que segue até o Monumento).
62

Figura 1: Delimitação do perímetro do Conjunto do Ipiranga

Fonte: Disponível em: http://www.mp.usp.br/como-chegar/mapa-do-parque. Acesso em: 19


out. 2018. Adaptado por Rafaella Neves Goes (2019).

Localizado no bairro do Ipiranga, na cidade de São Paulo, este


conjunto constitui uma das áreas verdes mais significativas do bairro em que
está inserido, e é muito visitado pela população. Além de servir como palco
para eventos da cidade, é utilizado como passagem, devido à sua localização
entre duas vias arteriais – a avenida Nazaré e a rua Bom Pastor, e é
seccionado pela rua dos Patriotas. A área também possui pista de corrida,
playground, área de descanso e pista de skate, fato este que contribui para
que muitas pessoas o utilizem diariamente.
Entretanto, embora esteja tombado nos três níveis de proteção e
seja muito visitado, pouco se conhece sobre este Conjunto e os elementos
que o compõem. Os documentos de tombamento se debruçam sobre o
caráter e a importância histórica do Conjunto, que remete à Independência
do Brasil, e algumas informações esparsas sobre os elementos que o
compõem, dentre eles, o antigo Horto (atual Bosque), localizado atrás do
Museu Paulista.

2 OBJETIVO

Neste contexto, o presente artigo tem como objetivo resgatar os


primeiros anos de implantação do antigo Horto Botânico do Museu Paulista.
O recorte temporal se inicia em 1898, quando há o registro dos primeiros
plantios de espécies arbóreas, até 1917, já sob nova administração do
Cidade, História e Patrimônio - 63

Museu. O objetivo específico é resgatar as dificuldades de implantação do


Horto, os problemas enfrentados quanto à localização, como eram feitas as
coletas e cultivos das plantas, e a setorização feita para criar diferentes
ambientes.
Espera-se, assim, contribuir para a história e a memória deste
importante espaço público que foi pensado desde o início como parte
integrante do Museu.

3 MATERIAIS E MÉTODOS

Infelizmente, não há uma planta que retrate o Horto neste período


analisado (1898 a 1917). Entretanto, há um artigo escrito em 1917,
publicado em 1918, por Hermann Luederwaldt, o auxiliar de zoologia do
Museu e também responsável pela implantação e zelo do Horto, que
descreve, em detalhes, os problemas enfrentados para a implantação do
mesmo, bem como as primeiras espécies plantadas. É baseado
fundamentalmente neste artigo que o presente texto está estruturado.
Com o objetivo de melhor aferir a sequência dos fatos, os mesmos
serão abordados cronologicamente ao longo do presente texto.

4 A PRIMEIRA GESTÃO DO MUSEU PAULISTA E AS DIFICULDADES DE


IMPLANTAÇÃO DE UM HORTO BOTÂNICO

4.1 O PROBLEMA DA LOCALIZAÇÃO TOPOGRÁFICA, DOS SOLOS, DA ÁGUA E


DA AUSÊNCIA DE CHUVAS

Pouco tempo depois da fundação do Museu Paulista (1894), seu


primeiro diretor, o zoólogo alemão Hermann Friedrich Albrecht von Ihering
(gestão de 1894 a 1916), teve a intenção de criar uma Seção Botânica e um
Horto Botânico aliado ao Museu, uma vez que queria assemelhá-lo a um
Museu de Ciências Naturais, tal qual os congêneres europeus (LOPES, 2009).
64

Pareceu-me sempre que a exposição de objectos, tão vantajosa para


o reino animal e mineral, não o é de mesmo modo para o reino
vegetal, sendo o modo mais próprio de expôr este ao publico o
jardim botânico. Sabendo, porém, que na Europa existem Museus
botânicos e desejando o Governo do Estado completar a organização
do Museu Paulista também neste sentido dirigi-me ao III. Sr. Dr. P.
Tauiert, ajudante do Museu Botânico de Berlim, pedindo
informações, que elle teve a bondade de fornecer-me [...]. (IHERING,
1895, p. 161).

Não se sabe o porquê o projeto de Ihering deixou de concretizar-se


em 1895, quando o Museu é aberto ao público. Porém, segundo
Luederwaldt (1918), possivelmente a existência da Seção Botânica
pertencente à CGG-SP, a qual possuía um Horto Botânico na Cantareira
(criado em 1896), contribuiu para este ocorrido.
Além disto, tem-se o fato da localização do bairro do Ipiranga, onde estava
inserida a área do Museu. Este ficava distante aproximadamente 5,5 km do
centro da cidade de São Paulo (Figura 4) e apesar de possuir desde 1892
13
uma linha de bonde a vapor (Figura 2), poucas pessoas o visitavam (REIS
FILHO, 1982).

13
Logo no início do próximo século, esta foi substituída pela linha de bonde elétrica da Light.
Cidade, História e Patrimônio - 65

Figura 2 (esquerda acima): Linha de bonde próxima ao Museu Paulista (ao fundo)
Figura 3 (esquerda abaixo): Vista do Horto Botânico aos fundos do Museu Paulista
Figura 4 (direita): Recorte do mapa da cidade de São Paulo (1905), identificando o trajeto da
linha de bonde da área central ao Museu Paulista

Fonte da figura 2: Acervo do Estadão. Acesso em: 10 set. 2019.


Fonte da figura 3: Acervo do Museu Paulista, s/d.
Fonte: da figura 4: Acervo Cartográfico do Arquivo do Estado de São Paulo (intervenção dos
autores).

Localizado atrás do Museu (Figura 3), Luederwaldt relata que


inicialmente o Horto era cercado por arame farpado e possuía cerca de 4
14
hectares , porém o terreno não apresentava condições para a implantação
de um horto botânico, por estar em terreno elevado, plano e sem água:

Por motivo da sua situação alta, descoberta, quase plana e por falta
completa de aguas naturaes, bem como de logares húmidos, o
terreno não está bem appropriado a um horto botânico, que exige
campo, matta, prados, lagoas, vales e collinas pedregosas. Taes

14
4 hectares de área equivalem a 40.000 metros quadrados.
66

condições são indispensáveis para estabelecimentos dessa natureza.


(LUEDERWALDT, 1918, p. 291).

Essas dificuldades descritas por Luederwaldt podiam ser resolvidas,


segundo o mesmo, “de maneira artificial”, mas nesses primeiros anos o
Museu não possuía nem mesmo verba suficiente para sua manutenção. Pelo
15
mesmo motivo trabalhava apenas um jardineiro no local e não era possível
finalizar sua organização para abri-lo ao público, como tinham a intenção de
fazê-lo (LUEDERWALDT, 1918). Com essas condições, o Horto estava muito
aquém da intenção de seu diretor, cujos fins seriam:

1º expor typos selecionados da flora de S. Paulo; 2º formar um ponto


para pesquisas scientificas; 3º cultivar as plantas indígenas uteis e
decorativas; 4º criar um meio esthetico e alegre, em que o estudo se
tornasse attrahente e agradável e não insipido e enfadonho.
(IHERING apud HOEHNE, 1925, p. 128)16.

Além da escassez de verba, o solo deste campo contava com uma


“superfície extraordinariamente permeável, arenosa, pouco profunda e
infértil em consequência de queimadas contínuas” (LUEDERWALDT, 1918, p.
294). O autor relata que até algumas plantas provenientes dos campos
primitivos, como a Araucaria brasiliana não se adaptaram ao local com a
pobreza do solo existente, e sim apenas “gramineas duras, como ‘Aristida
pallens’ vegetam, como também herbáceas exíguas e modestas, bem como
diversas árvores baixas e arbustos despretensiosos – todas plantas,
adaptadas, desde muito, ao pobre solo”. Embora com adubação e rega
diária fosse possível “melhorar o solo”, optou-se por cultivar ali “plantas
brasileiras [...], plantas úteis e as no Brasil, em maior extensão cultivadas”
(LUEDERWALDT, 1918, p. 292; 294).
Apesar de as plantas escolhidas para serem cultivadas fossem plantas
nativas, muitas vinham de regiões úmidas, não se reproduziam por semente,

15
Em casos excepcional urgência, segundo Luederwaldt, o Governo concedia um auxiliar
(LUEDERWALDT, 1918).
16
IHERING, Hermann von apud HOEHNE, Frederico C. Album da Secção de Botânica do Museu
Paulista e suas Dependências, etc. Contendo 218 Photogravuras e Zincographias e 5
Trichromias. S. Paulo: Imprensa Methodista, 1925. p. 128.
Cidade, História e Patrimônio - 67

não brotavam em terras secas e dessa maneira precisavam de cuidados


específicos (LUEDERWALDT, 1918).
Outro problema enfrentado para a implantação do Horto era a falta
de chuva e os ventos fortes, razão pela qual foram plantados bambus em
todo o perímetro do Horto, estando alguns presentes no local até os dias
atuais (LUEDERWALDT, 1918). Luederwaldt explica por que na região do
Ipiranga chovia muito menos que na cidade de São Paulo:

Isto é consequência da quasi completa falta de arvores nesta região,


ao passo que São Paulo está situado mais perto das serras silvestres
da Cantareira. As chuvas de trovoadas, vindo no verão quasi
diariamente d'oeste, separam-se geralmente de maneira que, uma
parte se dirige a São Bernardo, outra á Cantareira, sem regar o
Ypiranga. (LUEDERWALDT, 1918, p. 295).

Além disto, outra desvantagem deste lugar eram as geadas noturnas


durante o inverno, onde os termômetros chegavam a marcar, muitas vezes,
abaixo de zero (LUEDERWALDT, 1918). Nessa estação o horto encontrava-se
com “um triste aspecto”, sendo necessário regá-lo ininterruptamente. “As
folhas de todas as plantas sucosas ficam murchas [...]. As copas das árvores
aclaram-se, curvando-se as folhas ou cahindo completamente”
(LUEDERWALDT, 1918, p. 295). Além disso “diferentes fétos epiphyticos do
genero Polypodium encurvam as folhas, para ‘dormir’ durante este período
desolador”. Já com a chegada do verão e a chuva que atinge toda capital
Paulista, o Horto consegue se reestabelecer (LUEDERWALDT, 1918, p. 295,
296).

4.2 OS PRIMEIROS PLANTIOS (1898) E A FORMA COMO ERAM COLETADAS E


CULTIVADAS AS PLANTAS

Data-se de 1898 o primeiro plantio, quando Ihering plantou as


primeiras árvores, “especialmente Embahubas para estudar a formiga
Azteca mülleri, que nestas árvores mora”. Mais tarde plantaram-se
“Canellas, Cedros, Ficus luschnatiana, Schizolobium excelsum etc. [...]”
(LUEDERWALDT, 1918, p. 291). Luederwaldt lembra que provavelmente em
68

1900 “effectuou-se uma plantação maior a de ‘Pinheiros’, com um total de


300 pés, mais ou menos” (LUEDERWALDT, 1918, p. 291).
O cultivo das plantas, segundo o autor, era feito “em vasos ou latas,
por sementes ou mudas, conforme as respectivas espécies”. Estas, muitas
vezes, eram colhidas diretamente “no mato”, o que exigia “um tratamento,
sob a sombra, ao menos de um anno”. Não era recomendável, segundo
Luederwaldt, “a transplantação diretamente do matto, por terem somente
raizame exíguo, necessitando por este motivo de um tratamento duradouro,
para enraizar-se novamente”. Apenas em circunstâncias excepcionais eram
transplantas árvores e arbustos diretamente no solo, sendo, nestes casos, o
inverno (junho e julho) o período mais adequado para fazê-lo, pois é “mais
reduzida a circulação da seiva e diminuída a força do sol” (LUEDERWALDT,
1918, p. 298-299).
Dentre as espécies que suportavam bem o transplante direto, o autor
cita a palmeira Jerivá (Cocos romanzoffiana). Outras que aceitaram bem o
transplante direto no solo, mas em área protegida à meia-sombra, foram
algumas espécies de Araceas e Bromeliaceas; além de Sambaia-assus “que
eram plantados bem altos, por crescerem neste clima secco apenas
vagarosamente” (LUEDERWALDT, 1918, p. 299).
Para resolver o problema do solo seco, Luederwaldt cita que várias
plantas “permanecem em latas de folha, enterradas até o bordo, sem que
restem visíveis”. A grande vantagem desse processo, segundo o autor, era a
capacidade de reter a umidade por mais tempo (LUEDERWALDT, 1918, p.
299).

4.3 OS PRIMEIROS TRAÇADOS E A CRIAÇÃO DO HERBÁRIO (1906)

Segundo Luederwaldt, apenas em 1906 tiveram início os trabalhos


mais intensivos para a implantação do Horto, com o traçado de caminhos.
Estes, segundo o autor, “não correspondiam a um projecto, de ante mão,
esboçado, porque, para isso, não dispunha o Museu de verba sufficiente”.
Para resolver o problema das regas, colocaram alguns barris e
“paulatinamente foram plantadas diferentes plantas indígenas, ao longo dos
caminhos num pequeno matto, situado a este do horto botânico”
(LUEDERWALDT, 1918, p. 291-292).
Cidade, História e Patrimônio - 69

O Relatório de atividades do Museu referente ao ano de 1907, escrito


por Rodolpho von Ihering (filho de Ihering) e então vice-diretor do Museu
Paulista no período de 1901 a 1911, atesta o andamento dos trabalhos
dedicados ao horto, os cuidados de Luederwaldt e também da futura
implantação de um jardim na área frontal do Museu, a ser elaborado pelo
17
paisagista belga Arsène Puttemans :

Cuidado especial têm merecido os terrenos anexos ao Monumento.


Enquamto que a grande area da frente, hoje uma praça deserta e
desoladora, espera ainda o seu ajardinamento imprecindivel,
(acabam de ser entregues pela Secretaria da Agricultura ao Sr. Arsène
Puttemans, de comprovada competência), têm-se cuidado, com os
próprios recursos do Museu, de preparar os terrenos dos fundos do
Monumento para um futuro Horto Botânico, onde se achem
representados, e exclusivamente, os principaes typos da nossa flora.
Para isto foi iniciado o trabalho do preparo do terreno e fez-se já o
plantio de numerosas mudas de arvores e arbustos. Ao Sr. H.
Luederwaldt devemos agradecer em especial a dedicação com que
tem cuidado deste serviço. (IHERING, 1907, p. 11).

Juntamente ao início dos primeiros trabalhos para a implantação do


Horto Botânico, também houve a organização do Herbário do Museu
Paulista. Segundo Luederwaldt, começou com cerca de 200 espécies que
haviam sido coletadas nos Campos de Itatiaya. Em 1908, o Museu adquiriu
“o herbário de fetos do sr. Wacket, no Alto da Serra; cedeu o Dr. H. von
Ihering uma collecção de plantas do Rio Grande do Sul e o sr. Rodolpho von
Ihering uma pequena collecção de gramíneas” (LUEDERWALDT, 1918, p.
288). Em 1914 são incorporadas duas importantes coleções: as organizadas
pelo professor de botânica da Escola Politécnica, o botânico suíço Alfred
Usteri; assim como o herbário da CGG-SP, iniciado em 1887, “o qual tinha
sido reunido pelos srs. Alberto Löfgren, Gustavo Edwall e outros”
(LUEDERWALDT, 1918, p. 288). Luederwaldt cita que ele também doou uma

17
O jardim foi concluído em 1909 e precede ao que será executado em 1922 por ocasião do
centenário da Independência, com projeto de E. F. Cochet e ajardinamento de Reynaldo
Dierberger. Arsène Puttemans (1873-1937), na época, era responsável pelos Campos de Cultura
do Curso de Engenharia Agronômica da Escola Politécnica (SIGUEMOTO, 2012) e da Escola
Agrícola Prática Luiz de Queiroz (MORYAMA, 2012).
70

coleção de plantas, “colhidas durante anos anteriores no Estado de Santa


Catharina, inclusive 100 espécies de fétos. Além disto, dedicou-se sempre a
aumentar o material, colleccionando, especialmente na vizinhança desta
capital” (LUEDERWALDT, 1918, p. 288).
O Herbário ficava instalado no andar superior, no lado oeste do
Museu, ocupando seis salas, sendo que uma delas dispunha de uma
biblioteca de botânica. No ano de 1918, o Museu recebeu verdadeiras
raridades da antiga seção botânica da Secretaria da Agricultura, como “a
‘Flora’ completa de Martius, do ‘Pflanzenfamilien de Engler e Pranthel’ do
‘Pflanzenreich’ do Sertum ‘Palmarum’ de Barbosa Rodrigues etc.”
(LUEDERWALDT, 1918, p. 289). Dispunham, portanto, de livros que, na
época, e até hoje, são referência na área de botânica quanto à identificação
da flora brasileira.

4.4 A GEADA DE 1910 E AS QUE FLORESCERAM EM 1914-1915

Em 1918, Luederwaldt discorre a respeito da geada mais forte


ocorrida no Ipiranga, datada da noite do dia 19 para 20 de julho de 1910,
onde os termômetros marcaram “2°, 2,7° até 3° de frio e ainda pela manhã,
geava bastante” (LUEDERWALDT, 1918, p. 297). Porém, muitas espécies
encontravam-se “cobertas pelo capão do horto botânico e nada sofreram
naturalmente” (LUEDERWALDT, 1918, p. 297). O mesmo não ocorreu com
algumas plantas que se encontravam em lugares abertos e que “sofreram”
(2) ou “nada sofreram” (1) (Quadro 1).
Cidade, História e Patrimônio - 71

Quadro 1: Plantas citadas na Geada de 1910

Nº Espécie 1 2 Nº Espécie 1 2
01 Aegiphila sellowiana X 13 Genipa americana X
02 Araucaria braziliana X 14 Gynerium argenteum X
03 Bauhinia pruinosa X 15 Gynerium sagittatum X
04 Cactaceas aquosas 16 Lantana camara X
05 Calliandra axillaris X 17 Lantana sellowiana X
06 Calliandra santipauli X 18 Mimosa paludosa X
07 Cecropia adenopus X 19 Mimosa sepiaria X
08 Cedrela fissilis X 20 Psidium guayava
09 Cocos eriospatha X 21 Schinus terebinthifolius X
10 Cocos romanzoffiana X 22 Schizolobium excelsum X
11 Euterpe edulis X 23 Solanum auricalatum X
12 Fourcroia gigantea X 24 Trema micrantha X
1 – Espécies que não foram afetadas pela geada.
2 – Espécies que foram afetadas pela geada.
Fonte: Luederwaldt (1918). Elaborado pelas autoras (2019).

Com exceção da Trema micrantha e da Cedrela fissilis que,


respectivamente, “sofreram nas folhas e nos galhos novos”, todas as plantas
que “sofreram”, citadas no Quadro 1 acima, se despiram completamente
das folhas no terceiro dia frio (LUEDERWALDT, 1918, p. 298).
Além dessas, algumas plantas lenhosas não tiveram problemas com o
ocorrido, porém “ficaram mais ralas”, assim como “as folhas de Psidium
guayava que se tornaram pardo-vermelhas” (LUEDERWALDT, 1918, p. 298).
O autor comenta que estranhou o fato das “Cactaceas aquosas”,
muitas provenientes da Bahia, não terem sofrido nenhuma consequência
com a geada, pois encontravam-se completamente descobertas e todo o
seu entorno encontrava-se totalmente queimado (LUEDERWALDT, 1918).
Embora muitas plantas tenham sofrido totalmente ou em parte com a geada
de 1910, as plantas que necessitavam de mais cuidado eram protegidas em
lugares cobertos (LUEDERWALDT, 1918).
Luederwaldt apresenta uma relação de plantas que estavam
florescendo no final de julho dos anos de 1914 e 1915 (LUEDERWALDT,
1918, p. 307, 308 e 310). Destas, apenas cinco espécies que sofreram com a
geada de 1910 estavam florescendo: a Cecropia adenopus Mart., a Genipa
72

americana L., Cedrela fissilis Vell.; Lantana sellowiana L. e a Lantana camara


L. (LUEDERWALDT, 1918).
Embora o Horto Botânico estivesse mais desenvolvido neste período
e muitas plantas estivessem sendo cultivadas, em função das condições
existentes ainda era muito difícil manter um Horto Botânico no local.
Segundo Luederwaldt, seria muito mais fácil “organizar um parque
moderno” (LUEDERWALDT, 1918, p. 292) na colina do Ipiranga, uma vez que
“póde adquirir pela horticultura todas as plantas acclimadas e affeitas ás
composições do solo” (LUEDERWALDT, 1918, p. 292), enquanto para o
Horto Botânico – que era limitado à flora indígena – fazia-se necessário
“colher experiências” sobre estas plantas, pois muitas vezes seu
desenvolvimento não dependia apenas da situação natural em que se
encontravam (LUEDERWALDT, 1918, p. 292).

Muitas plantas, por exemplo certas do campo, preferem o solo


natural, sem adubação alguma, outras acceitam-na com muito
proveito. Assim se podia relatar ainda muitas circumstancias, que
ainda exigem observações mais exactas. Lembro isto pelo motivo de
corrigir a ignorância de muita gente, accreditando, que plantas
selvagens não exigem tratamento algum, crescendo por si mesmas ".
Teriam razão caso se pudesse cultivar todas as plantas sob as suas
condições naturaes. Assim, porém, no terreno limitado d'um jardim
botânico, já não é isto possível. (LUEDERWALDT, 1918, p. 293).

Para elucidar o trecho acima, Luederwaldt cita o caso de algumas


plantas que vivem em climas quentes como o da cidade de Santos, mas na
área do Horto preferem a meia-sombra ou casos que se adaptaram bem,
independentemente das condições encontradas. Esses foram os casos, por
exemplo, de algumas plantas dos mangues, como a Crinum americanum,
que se desenvolveram bem ao sol no Horto. Bem como a Cecropia
lyratiloba, proveniente dos pântanos, mas que cresceu em solo mais seco;
assim como a Gynerium sacaroides, que são plantas ribeirinhas e, no Horto,
cresceram até seis metros, sem água (LUEDERWALDT, 1918).
Cidade, História e Patrimônio - 73

5 A SEGUNDA GESTÃO DO MUSEU PAULISTA: o Herbário e o Horto em


1917

5.1 O HERBÁRIO E A COLEÇÃO EXPOSTA EM 1917

Em 1916, o antigo diretor e idealizador do Horto Botânico, Hermann


Friedrich Albrecht von Ihering deixa a instituição e o Museu passa a ser
dirigido por Armando Prado até 1917. Nesse momento, o Presidente do
Estado de São Paulo, Altino Arantes, frente à aproximação das
comemorações ao Centenário da Independência do Brasil (1922), propõe
uma nova organização administrativa para o Museu Paulista, de forma que
pudesse desempenhar de forma mais incisiva sua missão histórica e
educativa (FIOCRUZ, 2002).
Com isto, é nomeado como diretor, em 1917, o historiador Afonso
d’Escragnolle Taunay (1876-1958), que reorienta o perfil da instituição,
voltando-a especialmente à história de São Paulo. Também é incorporado à
18
nova administração o botânico brasileiro Frederico Carlos Hoehne (1882-
1959), ficando responsável pela Seção Botânica (GUARALDO, 2002).
No dia 7 de setembro desse mesmo ano, a coleção botânica é aberta
ao público com vários armários expondo, entre outros, “350 espécies de
plantas, em sua maioria, brasileiras” (LUEDERWALDT, 1918, p. 290). Esta era
uma parcela muito pequena do Herbário do Museu, cujo inventário feito em
1917 registrava mais de 4.100 espécies brasileiras de espécies da família
Phanerogamae; 4.500 espécies brasileiras de Cryptogamae; cerca de 500
espécies de “plantas cultivadas, medicinaes, decorativas etc., brasileiras”; e
cerca de 4.450 espécies de plantas exóticas (LUEDERWALDT, 1918, p. 290).

5.2 O HORTO E O AGRUPAMENTO DAS PLANTAS POR AMBIENTES (1917)

Uma vez que a ideia era que as plantas cultivadas no Horto Botânico
fossem uma representação viva daquelas exsicatas presente no Herbário, o
Horto continuou sob os cuidados de Luederwaldt e sob a supervisão de

18
Sobre Frederico Carlos Hoehne (1882-1959) ver CARVALHO; ENOKIBARA (2018).
74

Hoehne. Neste período, o Horto já se caracterizava como uma amostra da


flora paulista, com os agrupamentos feitos não mais por ordem sistemática,
mas tentando reproduzir os ambientes em que eram encontrados
(GUARALDO, 2002).
Para imitar a natureza, “as folhas e galhos miúdos” eram deixados no
“pequeno matto, afastando apenas tudo quanto é feio, como por exemplo
ramos fortes quebrados e arvores tortas etc.” (LUEDERWALDT, 1918, p.
300). As folhas deixadas no chão eram utilizadas como “adubo” e, nessas
condições, “dada a secura de nossa região isto representa uma vantagem
relevante” (LUEDERWALDT, 1918, p. 300).
Pode-se ter uma ideia de como era organizado o Horto em 1917
através do relato de Luederwaldt, quando faz um percurso pelo mesmo e
descreve, primeiramente, sua estrutura geral de organização:

A planta deste horto botânico, é como segue: Três arterias


principaes, ligadas entre si por caminhos transversaes, atravessam o
terreno longitudinalmente. As partes á esquerda, direita e no fundo
foram traçadas como bosques, o meio como região do campo. No
lado septentrional desta zona está projectada uma pequena lagoa,
em parte já excavada e bordada com plantas adequadas e gramas.
Entre a lagoa e o campo extende-se uma pequena várzea artificial
com plantas pantanosas e aquáticas, aquellas em latas de folha [..].
(LUEDERWALDT, 1917, p. 300-301).

A Figura 5, apresentada na sequência, identifica os setores citados


por Luederwaldt ao longo do percurso feito em 1917, sobrepondo-os à
19
planta do Horto que foi elaborada a pedido de Hoehne . Foi feita esta
sobreposição porque o Horto ainda não constava representado na
cartografia da época (Figura 6).

19
Hoehne ingressa como responsável pela Seção Botânica do Museu Paulista em 1917, mas
não sabemos dizer, até o momento, se foi neste ano que mandou executar a planta do Horto
Botânico. Esta consta no Álbum do Museu Paulista, publicada por Hoehne em 1925.
Cidade, História e Patrimônio - 75

Figura 5 (esquerda): Setores identificados no percurso feito por Luederwaldt em 1917,


sobreposto à planta do Horto Botânico, mandada executar na gestão de Hoehne (1917-1928)
Figura 6 (direita): Recorte do Mapa da cidade de São Paulo de 1916, demonstrando a área do
Horto.

Fonte (Fig 5): Hoehne (1925) com


intervenção das autoras.

Fonte (Fig 6): Acervo Cartográfico do Arquivo


do Estado de Sâo Paulo (intervenção das
autoras).

Ao todo, segundo o autor, neste ano, havia cerca de 300 plantas e 50


diferentes espécies que se cultivam aqui no Brasil (LUEDERWALDT, 1918, p.
303). Havia basicamente seis setores, além dos “bambus exóticos” que
fechavam todo o perímetro do Horto:
Setor 1: “Colleção de plantas uteis, mais cultivadas no Sul do Brazil” –
localizada no lado esquerdo do Museu” (LUEDERWALDT, 1918, p.
301);
Setor 2: “Região das mattas”, ou o “Mattinho” – ocupando um terço,
mais ou menos, da área do Horto e no lado esquerdo, caracterizado
76

por “árvores baixas e geralmente pouco duradouras”, além de


arbustos e plantas ornamentais (LUEDERWALDT, 1918, p. 301);
Setor 3: “Região dos campos” – contendo “as plantas de campo mais
decorativas da nossa região” (LUEDERWALDT, 1918, p. 301);
Setor 4: “Pinhal e plantação de madeiras legítimas” – o pinhal
possuía cerca de 2.500 m² (LUEDERWALDT, 1918, p. 301);
Setor 5: “Várzea artificial” ou “Prado”, onde, segundo o autor,
“encontra-se actualmente meia centena, mais ou menos, de plantas
aquáticas e pantanosas, achando-se entre ellas as mais bonitas
plantas do nosso jardim” (LUEDERWALDT, 1918, p. 305);
Setor 6: “Lagoa artificial”;
Setor 7: “Bambus exóticos” que fechavam todo o perímetro do
Horto, visando sua proteção dos ventos.

Na região dos Campos encontravam-se as Cecropias “Imbaúbas”, que


haviam sido plantadas em 1898 por Ihering, o primeiro diretor do Museu.
Além das “Imbaúbas”, nessa região encontravam-se também os três butiás
(Cocos eriospatha), que haviam sido transplantados também pelo antigo
diretor nos anos de 1913 e 1914, sem “nada sofrerem; ao contrario dando-
nos vários frutos” (LUEDERWALDT, 1918, p. 303).

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No ano de 1917, o Horto Botânico se encontrava mais estruturado


que em anos anteriores, mas por dispor de apenas um jardineiro,
continuava progredindo muito devagar. Para abri-lo definitivamente ao
público, Luederwaldt menciona que havia a necessidade de pelo menos um
segundo jardineiro e, assim mesmo, decorrido um ano, para que todas as
áreas pudessem estar bem cuidadas. Ademais, o Horto “já era visitado por
cientistas”. Na visão do autor, “a entrada devia ser permittida apenas a
crianças e rapazes, que estejam em companhia dos paes ou tutores”, pois
um “horto botânico não é um logar de divertimento, e sim, um campo de
instrucção e de estudo” (LUEDERWALDT, 1918, p. 310 e 311).
Apesar de todo esforço, zelo e dedicação de Luederwaldt, o Horto
parece não ter despertado o interesse da população. Hoehne comenta que
Cidade, História e Patrimônio - 77

o Museu Paulista era muito visitado, ao contrário do Horto: “tão esquecido


tem sido pelos paulistas, a ponto de muitos nem ao menos terem
conhecimento de sua existência” (HOEHNE, 1925 apud ROCHA;
CAVALHEIRO, 2001, p. 581). Em 1928, a Seção Botânica e o Horto foram
transferidos para o Instituto Biológico de Defesa Agrícola e Animal (idem). O
horto foi perdendo suas características e atualmente é um pequeno bosque
que teve sua área diminuída com a implantação, posteriormente, do Corpo
de Bombeiros e do Museu de Zoologia. Mas alguns testemunhos desta
época ainda resistem na área, como alguns bambus, que originalmente
cercavam o perímetro do Horto para protegê-lo dos ventos, agora cercado
por avenidas e edificações.

REFERÊNCIAS

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Brasileira de Zoologia, Rio de Janeiro, vol.5 (4), 1988.
CONSELHO DE DEFESA DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO, ARQUEOLOGICO, ARTÍSTICO E TURÍSTICO
(CONDEPHAAT). Parque da Independência – Ipiranga.
Processo 08486/69, inscrição nº 95, p. 12, 04/04/1975.
FIOCRUZ, Casa de Oswaldo Cruz. Museu do Estado. In: Dicionário Histórico-Biográfico das
Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930). Rio de Janeiro, 2004. Disponível em:
http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br. Acesso em: 14 mar. 2018.
GUARALDO, E. Repertório e identidade. Espaços públicos em São Paulo, 1890-1930. 2002. Tese
(doutorado) – FAU-USP, São Paulo, SP, 2002.
HOEHNE, F. C. Álbum da seção botânica do Museu Paulista e suas dependências, etc. São Paulo:
Imprensa Methodista, 1925.
IHERING, H. v. O fim e a disposição de um Museu Botanico pelo Dr. P. Taubert. Revista do
Museu Paulista, São Paulo, p. 161-164, 1895.
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NATURAL (IPHAN). Conjunto do Ipiranga:
Museu Paulista, Monumento à Independência, Casa do Grito e Parque da Independência.
Processo 1348-T-95, v. 01, ofício 349/94, de 18 de novembro de 1994.
LOPES, M. M. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século
XIX. São Paulo: Hucitec, 2009.
LOUREIRO, José Mauro Matheus. Entre “natureza morta” e cultura viva: os museus de história
natural. Revista da SBHC, Rio de Janeiro, v. 5, n 2, p.159-172, jul, dez 2007.
LUEDERWALDT, h. O Herbario e o Horto Botanico do Museu Paulista. Revista do Museu
Paulista, São Paulo, p. 285 a 312, 1918.
78

MORYAMA, C. O curso profissionalizante de agricultura da Escola Prática Luiz de Queiroz –


Ensaio de Catalogação. Relatório Final de Iniciação Científica FAPESP, 2012. Processo
FAPESP nº 2010/16871-2.
REIS FILHO, N. G. Urbanização no Brasil: séculos XVI-XVIII. In: ALOMAR, Gabriel (Org.). De
Teotihuacán a Brasília. Estudios de historia urbana iberoamericana y filipina. Madrid:
Instituto de Estudios de Administración Local, 1987. p. 351-360.
ROCHA, Y. T.; CAVALHEIRO, F. Aspectos históricos do Jardim Botânico de São Paulo. Revista
brasileira Botânica, São Paulo, v. 24, n. 4 (suplemento), p. 577-586, dez. 2001.
SIGUEMOTO, L. O curso de engenheiros agrônomos da Escola Politécnica de São Paulo – Ensaio
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2010/16870-6.
TAUNAY, A. E. Advertência. Revista do Museu Paulista, Tomo X, 1918, p. I a IX.
Cidade, História e Patrimônio - 79

Capítulo 4

OS BAIRROS RURAIS E A ECONOMIA MISTA NA REDE URBANA


POLARIZADA PELA VILA DE NOVA BRAGANÇA NA
PROVÍNCIA DE SÃO PAULO.

20
Carolina Gonçalves Nunes
21
Ivone Salgado

1 DE BAIRRO RURAL DO JAGUARI A VILA DE NOVA BRAGANÇA.

Na Capitania de São Paulo, torna-se estratégico para o domínio do


território no século XVIII construir capelas, elevar freguesias e fundar vilas.
Dois aspectos importantes no processo de elevação das capelas à condição
de freguesias são fundamentais para a consolidação do povoado. O primeiro
consistia no papel da Igreja na freguesia, pois essa passa a administrar os
registros civis de nascimentos, casamentos e óbitos dos seus fregueses,
embora a freguesia se mantivesse subordinada ao conselho da vila. A
segunda mudança está relacionada ao território, que passava a ser
delimitado pela demarcação do seu termo.
Em 1765, a prioridade no discurso de posse do novo governador de
São Paulo Luiz Antônio Botelho de Morão, o Morgado de Mateus, era fundar
cidades como estratégia de ocupação e domínio. Para Beatriz Picolotto
Siqueira Bueno, na documentação oficial, “não por acaso, os termos
“conquista” e “domínio” aparecem como sinônimos de “colônia” e sempre
vinculados à ação humana” (BUENO, 2009, p 252).
Neste contexto de conflitos de fronteira e de uma intensa política de
urbanização do sertão paulista, em 1765, deu-se a elevação da Capela do
Jaguari, que havia sido construída em 1763, à condição de Freguesia de

20
Mestre em Urbanismo; doutoranda no POSURB-ARQ da Pontifícia Universidade Católica de
Campinas. arq.carolina@carolinanunes.com.br
21
Doutora em Urbanismo; Professora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
salgadoivone@puc-campinas.edu.br
80

Nossa Senhora da Conceição do Jaguari, no território da Cidade de São


22
Paulo. Portanto, em 1763 a população do bairro rural do Jaguari passa a
ter uma capela e um território em seu entorno, fruto da doação do
patrimônio religioso feita por Antônio Pires Pimentel para a construção
dessa capela e posterior construção de casas que iriam gerar renda para o
sustento do pároco. Inicia-se, assim, o núcleo urbano de Jaguari,
subordinado inicialmente à Cidade de São Paulo, e posteriormente ao
território da Freguesia de São João do Atibaia.
Com a capela elevada à condição de freguesia, era necessário
delimitar o território (termo) da nova freguesia. As populações dos bairros
rurais do termo delimitado passavam a fregueses da nova freguesia,
cabendo ao pároco o registro, no "livro tombo", dos nascimentos, óbitos e
casamentos da população moradora no termo da freguesia. A freguesia
tinha, portanto, além da função religiosa, uma função civil, diferentemente
da capela, que cuidava apenas dos paramentos religiosos.
Baseando-nos em recenseamento populacional dos Maços de
População da Vila de São João do Atibaia, período 1767 a 1797, construímos
a hipótese de formação do termo da Freguesia do Jaguari, em 1767: o termo
abrangeria o território equivalente às atuais cidades de Pedreira, Amparo,
Socorro, Monte Alegre do Sul, Tuiutí, Pedra Bela, Pinhalzinho, Vargem,
Joanópolis e Bragança Paulista (Figura 1).

22
Bairro é a forma que encontramos na nomenclatura nos “maços de população”, documento
primário usado como fonte estruturadora da análise da população, documento censitário que
vigorou na Capitania de São Paulo entre 1765 e 1850. O termo rural é nomenclatura nossa, para
diferenciar o núcleo urbano dos outros bairros que se formavam.
Cidade, História e Patrimônio - 81

Figura 1: Hipótese de delimitação do termo da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do


Jaguari em 1765. Onde em amarelo o município de Amparo, formado em 1859, incluindo os
termos de dois municípios posteriormente desmembrados: Pedreira (1896) e Monte Alegre do
Sul (1948). Em rosa Socorro (1871), em laranja Tuiutí (1902), roxo Pinhalzinho (1964), em cinza
Pedra Bela (1964), Vargem em verde (1964). Em violeta Joanópolis, desmembrado com a
criação da Freguesia de Santo Antônio da Cachoeira. (1859) Parte do município mineiro de
Extrema pertencia ao termo desta Freguesia, em azul atual município mineiro de Toledo. Em
vermelho atual Bragança Paulista. Tracejado verde, fronteira atual com Minas Gerais.

Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo, imagem desenvolvida pela autora.

A Freguesia do Jaguari esteve nessa condição durante 32 anos, com


uma economia que inicialmente era de subsistência e posteriormente mista.
Apesar de existir momentos de crescimento mais acentuado, de uma forma
geral, o território da Freguesia do Jaguari foi ocupando-se de forma lenta,
no sentido norte do atual estado paulista, em direção ao estado de Minas
Gerais. (NUNES, 2016 p. 77) (Figura 2). Os bairros rurais que aparecem nos
Maços de População até 1796, último ano que Jaguari se encontra na
condição de freguesia, são: Bairro da Freguesia ou Capela, Canivete, Campo
Novo, Jaguari (de cima e de baixo), Guaripocaba, Jacareí, Anhumas, Araras,
Lopo e Curralinho.
82

Figura 2: Os Bairros Rurais da Freguesia do Jaguari na cartografia de 1909. Onde há uma


interpretação das informações recolhidas nos Maços de População de 1767, 1775, 1785 e 1796
em relação aos bairros existentes na época. Em vermelho, assinalamos os bairros que constam
nos “Maços de População” de 1767, sendo “1” hipótese de localização do Bairro Jaguari; os
demais Bairros da Capela, Canivete, Campo Novo, Guaripocaba e Jacareí; em verde, “2”, o
bairro Anhumas, em 1785. Finalmente, em amarelo, os novos bairros recenseados em 1796,
Araraz, Lopo e Curralinho.

Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Com o levantamento quantitativo dos bairros, fogos e números de


habitantes (Tabela 1) é possível analisar o crescimento e surgimento dos
primeiros bairros rurais no período que Conceição do Jaguari era freguesia,
tornando-se Vila em 1797.

Tabela 1: Relação de fogos e habitantes (brancos e negros) da Freguesia do Jaguari nos anos de
1767, 1775, 1785 e 1796.

Fonte: “Maços de População”. Atibaia e Nazaré. Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Cidade, História e Patrimônio - 83

2 VILA DE NOVA BRAGANÇA E A ECONOMIA MISTA.

A cidade de São Paulo, que não tinha terras muito férteis e seus
vizinhos diretos estavam todos dedicados à monocultura do açúcar,
necessitava de abastecimento de gêneros diferenciados para a
sobrevivência. A população estava aumentando e os grandes engenhos
tinham elevados números de escravos trabalhando nas plantações de cana.
Nesse contexto, a Freguesia do Jaguari se insere na economia mista que
envolve a criação de porcos e o cultivo de feijão e milho. A economia mista
ganha força, regida por ordens da coroa. A passagem de economia de
subsistência, para economia mista, é lenta e faz parte de um conjunto de
interesses da coroa e de uma pequena elite produtora local.
Segundo esclarece Diogo Borsoi:

As vilas do norte e oeste23 estavam em posição estratégica para o


desenvolvimento desses gêneros, elas estavam situadas nos limites
da capitania, eram paragem para viajantes e tinham contato
frequentes com os tropeiros. Constituía, portanto, uma importante
fonte de alimento para aqueles que estavam de passagem e, ao
mesmo tempo garantia mercado para aqueles que plantavam.
(BORSOI, 2013, p.106).

A criação de porcos e a produção de toucinho rapidamente se


tornam importante ferramenta econômica para a Vila de Nova Bragança,
desde os tempos de sua condição de Freguesia, firmando seu comércio com
a Cidade de São Paulo e região mineradora, o que futuramente abriria as
portas para o comércio externo também.
Há, portanto, o vínculo da criação de porcos da Vila de Nova
Bragança desde os tempos de Freguesia, tanto para o abastecimento das
regiões mineradoras, com o auxílio dos tropeiros e bandeirantes de
passagem pela Freguesia seguindo o sentido norte da Capitania de São
Paulo, quanto para o abastecimento da Cidade de São Paulo, seguindo
sentido sul da capitania, para o qual era de extrema importância a chegada
desse gênero para a alimentação da população.

23
Entende-se aqui vilas do oeste, não como oeste do estado de São Paulo atual e sim, a região
oeste ao porto de Paraty, oeste colonial.
84

A criação de porcos exigia pouco espaço e esforços, ficando muitas


vezes em áreas de quintais cuidados pela própria família, exigindo pouca
mão de obra escrava para o desenvolvimento e engorda dos animais.
O alimento dos porcos era principalmente o milho, o que também
justificava sua forte presença na freguesia e principalmente na Vila de Nova
Bragança. No entanto, o cultivo do milho exigia mais espaço e mão de obra
se comparado à criação de porcos. Fato esse que explica a criação de porcos
em vários fogos com pouco ou nenhum escravo e já a atividade de cultivo de
milho é exclusiva para fogos que detém espaço e mão de obra escrava
O feijão se complementa ao milho, assim como o milho se
complementa à criação de porcos. O cultivo de feijão tinha a função de
proteger a muda do milho. Era semeado entre o milho plantado, e isso era
feito com a intenção de sombrear e impedir o crescimento de ervas
daninhas. Assim, a colheita do feijão se fazia em três meses. Tanto o feijão
quanto o milho se colhiam duas vezes ao ano, com variações de
produtividade entre uma colheita e outra. Ambos os gêneros deveriam ser
estocados em paióis, próximos a residências.
O transporte desses gêneros era feito no lombo dos burros. O
transporte de muares, em direção principalmente à Cidade de São Paulo,
seguindo também para a Capitania de Minas Gerais, além do abastecimento
interno da Vila.

3 VILA DE NOVA BRAGANÇA COMO CABEÇA DE UMA MICRORREDE DE


CIDADES.

Murilo Marx esclarece que na elevação de uma freguesia à vila é


fundamental a delimitação do rossio e do seu termo. Estes irão delimitar o
espaço urbano e a área rural, assim como também é imprescindível a
instalação da Casa de Câmara e Cadeia e a fixação do pelourinho (MARX,
1991, p. 46).
A marcação dos limites da área do rossio era fundamental para se
estabelecer a ocupação no espaço urbano, que apresentaria configurações
diferentes do espaço ocupado no meio rural, alterando assim a relação
entre espaço urbano e rural e também modificando a relação da nova vila
na rede de cidades local (MARX, 1991, p.53).
Cidade, História e Patrimônio - 85

É possível notar que todos os desmembramentos referentes à Vila de


Nova Bragança aconteceram quando a mesma já se encontrava na condição
de cidade, quando passa a ser denominada Bragança (1856). No ano de
1964, teve uma grande transformação nos limites, diminuição do seu
território, quando passa a ser denominada Cidade de Bragança Paulista
(Figura 3).

Figura 3: Esquema de desmembramentos ocorridos no território da atual cidade de Bragança


Paulista, onde as indicações em vermelho são desmembramentos e aquela em azul diz respeito
ao território anexado a Bragança Paulista.

Fonte: SEADE Tabelas, Quadros e Figurativos. São Paulo, 2014.

Após o fortalecimento da economia mista e início da inserção na


cultura do café em meados do século XIX, a Vila de Nova Bragança se torna
cabeça da microrrede de cidades formada por freguesias e povoados que
dariam origem a futuros municípios, (Amparo, Socorro, Tuiutí, Pedra Bela,
Pinhalzinho e Vargem), além de toda área de conflito de fronteira do sul de
Minas Gerais. (Figura 4). Nesse momento, Joanópolis passa a fazer parte da
rede de cidades da Vila de São João do Atibaia (atual Atibaia), enfatizando
que existia, ali, na mesma região, uma rede de cidades “macro” com dois
importantes nós: as Vilas de Nova Bragança e São João do Atibaia que
estiveram inseridas de forma ativa na consolidação do território.
86

Figura 4: Cópia do mapa original encontrado no Centro de Apoio a Pesquisa em História- USF
Campus Bragança.

Fonte: Centro de Apoio a Pesquisa em História (CDPH) USF Bragança Paulista

Adriano Bittencourt de Andrade observa que:

Na configuração de rede urbana, o elemento da conexão é o


caminho. Os nós são as formações urbanas e a malha que os liga
constituem a base física, onde a rede se processa. A sua existência
simplesmente não redunda na rede, visto que esta só se realiza
mediante o estabelecimento de fluxos, mas também não é possível
pensar em uma rede sem linhas de conexão. (ANDRADE, 2013, p.
124).

Podemos interpretar que o núcleo urbano da Vila de Nova Bragança


é um nó que interliga os acessos para outras vilas e freguesias, distribuindo
no decorrer desses caminhos, bairros, capelas e toda uma vida social
interdependente (Figura 5).
Cidade, História e Patrimônio - 87

Figura 5: Recorte do mapa de 1909, elaborado e publicado pela Secção Cartográfica da


Companhia Lith- Hartmann – Reichenbach, São Paulo e Rio. Destaque para o núcleo urbano de
Bragança e seus diversos caminhos que saíam para conectar-se com ocupações no território.

Fonte: Arquivo Público do estado de São Paulo.

4 LOCALIZAÇÃO DOS BAIRROS RURAIS NA VILA DE NOVA BRAGANÇA.

Na Capitania de São Paulo, no período colonial, o bairro rural era


formado, em geral, por uma população pequena, de mesma natureza,
família e interesses que passava a ser identificado por um nome. A princípio,
as características físicas do local eram referência para denominar os bairros,
como morros ou rios. Assim, localização e nomenclatura serviam para um
controle administrativo da coroa portuguesa, que no século XVIII estava
engajada em desvendar o sertão e dominar o território. Logo, ter o
conhecimento e registro desses bairros rurais (e não somente desprender
esforços para o núcleo urbano) era uma forma de controle do território.
A compreensão da formação do território passa pelo entendimento
do papel dos bairros rurais na formação de uma rede de caminhos, capelas,
povoados, estruturas ferroviárias que guardam entre si uma lógica própria,
uma interdependência e uma hierarquia particular de cada formação
territorial específica.
Embora não tivesse muito valor em si, para Claudia Damasceno
Fonseca, era a propriedade de terra que classificava a sociedade no Brasil
88

colonial. “Dava-se prestígio e valor a um sesmeiro, enquanto um posseiro


era considerado como pertencente a uma classe inferior. Ligados aos
sesmeiros e aos posseiros encontravam-se agregados, escravos, mascates e
aventureiros que não eram donos de terras e, portanto, encontravam-se à
margem da sociedade. A terra, mesmo com pouco valor de mercado, era o
elemento que conferia prestígio ao colono” (FONSECA, 2003, p. 102).
Muitos sesmeiros preferiram arrendar suas terras a pequenos
lavradores. Isto dificultava o controle de verificação do cumprimento da
exigência de demarcação e do cultivo, e, ainda, dificultava o controle da
Coroa sobre esse sistema de distribuição de terras, consequentemente
estimulou o crescimento da figura do posseiro.
Devido a tais fatores, muitos problemas se alastraram ao longo do
tempo, pois formou-se uma camada de colonos que lavravam a terra,
preenchendo assim um requisito básico da colonização: o cultivo. Mas esses
colonos não possuíam determinações régias referentes às sesmarias, ou
seja, adquiriram a terra de forma “ilegal”, muitas vezes pagando por ela, o
que não era permitido durante o sistema de doações de sesmarias, seja de
aluguel ou venda.
Um novo olhar para a terra no Brasil surgiu em uma época de
intensas transformações sociais e políticas do Império. Naquele mesmo ano,
duas semanas antes da aprovação da Lei de Terras, o governo imperial
criminalizou o tráfico negreiro no Brasil por meio da aprovação da Lei
Euzébio de Queiroz. Para Nelson Nozoe, essas duas leis estavam
intimamente ligadas, pois o fim da importação de escravos seria substituído
por ações que incentivavam a utilização da mão de obra assalariada dos
imigrantes europeus. (NOZOE, 2005 p. 22).
Nesse novo contexto do regime de demarcação de terras, foi feita a
análise das solicitações de registros de terras, entre 1854 e 1856, no termo
da Vila de Nova Bragança permitindo compreender como esses posseiros
procuraram registrar suas pequenas posses de terras e a contínua formação
de inúmeros bairros rurais neste território. Estas solicitações foram
registradas no documento “Registro de Terras da Província de São Paulo”,
hoje, arquivados em microfilme no Arquivo Público do Estado de São Paulo,
em que consta uma relação das pessoas que solicitaram os registros de suas
terras a partir da Lei de Terras de 1850, com a descrição dos seus lotes e as
Cidade, História e Patrimônio - 89

localizações, mesmo que imprecisas. Pressupõe-se, portanto, que essas


pessoas já eram moradoras do local e estavam, a partir de Lei de terras,
confirmando suas posses.
No período desses registros de terras constam no termo da Vila de
Nova Bragança 53 bairros, mais 26 solicitações sem precisão do bairro. As
solicitações de confirmação de registro de terra nesses bairros são muito
variáveis. Encontramos alguns bairros com muitas demandas, como Araras
com 88, Anhumas com 63, Rio Abaixo 69 e até mesmo Campo Novo com 63
solicitações. Já outros 14 bairros aparecem com apenas uma solicitação, são
os casos dos bairros Alto da Santa Cruz, Beira do Campo, Camonducaia,
Campo da Ponte, Campo da Servidão, Godoys, Lucas, Morro Grande, Morro
Vermelho, Pedrozo, Philipão, Rego, Ribeirão e Sítio Monte Alegre.
Os bairros da Fazenda Velha e Curralinho tiveram somente duas
solicitações no período; os bairro do Sertãozinho e Biriça 3 solicitações; o
bairro da Ponte 4; aquele de Roza Mendes 5; os Mostardas e Uberaba 6
solicitações; Boa Vista, Cachoeirinha e Posse tiveram sete solicitações cada;
o bairro do Mato Dentro teve 8 solicitações, Água Cumprida, Boca da Mata e
Campanha do Toledo tiveram 10 solicitações cada, Couto e Forão 11
solicitações cada; o bairro do Pinhal teve 12 solicitações; Caetê e Ponte Alta
13 solicitações; Itapechinga 14; Campestre 15; Canivete 16; Pitangueiras e
Rio Acima 17 solicitações cada; Campanha 19; Estiva 20 e Passa Trêz 21; o
bairro do Arraial solicitou 25 posses de terras. Para lotes que não tinham
bairros como referencial foram 26 solicitações, o bairro Vargem Grande teve
36 solicitações, Lopo 42, Guaripocaba 43, Jacareí 45, e Pântano 47
solicitações. 26 solicitações, o bairro Vargem Grande teve 36 solicitações,
Lopo 42, Guaripocaba 43, Jacareí 45, e Pântano 47 solicitações (Gráfico 1).
Usando os mesmos dados do registro de terras, procuramos localizar
no território de Vila de Nova Bragança estes bairros (Tabela 2 e Figura 6). Em
vermelho, são bairros localizados no mapa de 1909; em branco, bairros não
localizados; em amarelo hipótese de localização e em verde bairros
localizados em 2 lugares distintos.
90

Gráfico 1: Relação de Bairros da Vila de Nova Bragança, ente 1854 e 1856, a partir das solicitações de terras.

Fonte: Arquivo Público de São Paulo. Registro Paroquial de Terras.


Cidade, História e Patrimônio - 91

Tabela 2: Relação de Bairros e número de moradores que declararam sua propriedade na Vila
de Nova Bragança entre os anos de 1854 a 1856.

N° BAIRROS 1854 a 1856 QUANT. SOLIC.


1 Água Cumprida 10
2 Alto da Santa Cruz 1
3 Anhumas 73
4 Araras 88
5 Arraial 25
6 Beira do Campo 1
7 Bibiriçá 3
8 Boca da Matta 10
9 Boa Vista 7
10 Cachoeirinha 7
11 Caeté 13
12 Camonducaia 1
13 Campanha 19
14 Campanha do Toledo 10
15 Campestre 15
16 Campo da Ponte 1
17 Campo da Servidão 1
18 Campo Novo 63
19 Canivete 16
20 Couto 11
21 Curralinho 2
22 Das Mostardas 6
23 Dos Pedrozo
24 Estiva 20
25 Fazenda Velha 2
26 Forão 11
27 Godoys 1
28 Guaripocaba 43
29 Itapechinga 14
30 Jacarehy 45
31 Lopo 42
92

N° BAIRROS 1854 a 1856 QUANT. SOLIC.


32 Lucas 1
33 Mato Dentro 8
34 Morro Grande 1
35 Morro Vermelho 1
36 Pântano 47
37 Passa Trêz 21
38 Pedrozo 1
39 Philipão 1
40 Pinhal 12
41 Pitangueiras 17
42 Ponte 4
43 Ponte Alta 13
44 Posse 7
45 Rego 1
46 Ribeirão 1
47 Rio Abaixo 69
48 Rio Acima 17
49 Rosa Mendes 5
50 Sertãozinho 3
51 Síto Monte Alegre 1
52 Uberaba 6
53 Vargem Grande 36
54 Fora dos bairros 26
Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Cidade, História e Patrimônio - 93

Figura 6: Mapa Elaborado e Publicado pela Secção Cartográfica da Companhia Lith- Hartmann –
Reichenbach, São Paulo e Rio com hipótese de localização dos bairros existentes no território

da Vila de Nova Bragança entre 1854 e 1856.


Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Pudemos observar que no núcleo urbano não existiu registro de


terras nesse documento analisado, as quais seriam as chamadas “datas
urbanas”, que possivelmente se encontram em algum registro eclesiástico
ainda não localizado. Esse documento apresenta os registros que os
posseiros/proprietários encaminhavam a um responsável e descreviam o
94

tamanho, os vizinhos e a localização do bairro de suas terras. Para o caso de


Bragança essas terras, em sua maioria, não eram de grandes extensões.
Localizamos posseiros/proprietários que chegaram a fazer registro em até 4
bairros diferentes. No entanto, considerando que a população da Vila de
Nova Bragança, em 1850, era de aproximadamente 16 mil pessoas (2.100 na
zona urbana), (NUNES, 2016 p. 143) e que o livro de registro de terras de
1854 a 1856 revela os primeiros registros depois da referida lei, o número
de solicitação, 860 registros de posses de terra, é um número pequeno para
todo o território que já vinha sendo ocupado desde 1763. Neste sentido é
provável que tenha havido continuidade dos registros de terra, todavia
esses não foram encontrados no Arquivo Público do Estado de São Paulo.

5 ALGUNS BAIRROS RURAIS DE BRAGANÇA.

No Bairro Rural do Canivete, a Capela foi construída no atual Bairro


do Taboão anteriormente chamado de Canivete, bairro tão antigo quanto o
núcleo urbano. O bairro do Taboão abrigou uma das duas estações de trem
da Ferrovia Bragantina que passava dentro do núcleo urbano. A primeira
capela construída, inicialmente chamada de Santa Cruz e posteriormente
passa a ser em devoção a São José, é uma capela centenária existe a
hipótese que foi construída no património doado por Arthur Siqueira,
grande produtor de café na região encontra-se parcialmente conservada
(Figuras 7 e 8).
Cidade, História e Patrimônio - 95

Figura 7: Foto do bairro do Taboão, antigo Canivete, onde aparece a Estação de Trem- Taboão e
ao fundo a Capela de Santa Cruz – São José. Data: início do século XX.

Fonte: Museu Municipal Oswaldo Russomano.

Figura 8: Recorte do mapa de 1909 núcleo urbano de Bragança, elaborado e publicado pela
Secção Cartográfica da Companhia Lith-Hartmann – Reichenbach, São Paulo e Rio, onde em
vermelho está demarcando o Bairro Rural do Canivete.

Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Na formação do bairro Caetê, o responsável pelo desenvolvimento da


parte sudeste da cidade foi a Fazenda Caetê, que hoje dá nome ao bairro.
Esta fazenda tinha como atividade a lida com bovinos que se alimentavam
das pastagens naturais, com a chegada da Ferrovia Bragantina que
entrecortava suas terras, o proprietário Arthur Siqueira e sua esposa Teresa
Cintra (filha do Coronel Cintra, proprietário da vizinha Fazenda do Trigo)
investem e tornam a Fazenda Caetê uma das maiores produtoras de café da
Região, em suas terras encontrava-se o atual bairro do Caetê, que passa por
processo de loteamento hoje, fizeram parte de suas terras os já loteados
96

bairros Jardim Primavera, Euroville I e II e parte do Taboão (Figuras 9, 10 e


11). Hoje a sede da Fazenda Caetê está em processo de tombamento.

Figura 9: Recorte do mapa de 1909 núcleo urbano de Bragança, elaborado e publicado pela
Secção Cartográfica da Companhia Lith-Hartmann – Reichenbach, São Paulo e Rio, onde em
vermelho está demarcando a fazenda Caetê.

Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Figura 10 e 11: Fazenda Caetê, Casa Sede da Fazenda, foto do início do século XX e 2019.

Fonte: Barletta (2002. p.48) e Autora 2019.

A formação do município de Joanópolis SP se deu a partir do bairro


rural do Curralinho. Seus primeiros moradores ficavam na região
compreendida entre o alto curso dos rios Jaguari e Cachoeira, reuniam-se no
local onde hoje se encontra a Igreja Matriz de Joanópolis, para festejar São
João Batista, no dia 24 de junho de cada ano. Nos Maços de População de
1796, referentes a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Jaguari, o
bairro rural aparece pela primeira vez, apresentando 75 fogos, 393
moradores brancos e 16 escravos, se manteve subordinado a Freguesia de
Nossa Senhora da Conceição do Jaguari até a elevação da Freguesia de
Santo Antônio da Cachoeira, atual cidade de Piracaia no ano de 1859
desmembrar-se da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Nazaré.
Cidade, História e Patrimônio - 97

O bairro rural de Nazareth teve sua primeira capela sem registro de


data, sobre as terras doadas para o patrimônio religioso por Mathias
Lopes, considerado o fundador do povoado. Foi elevada a Freguesia
de Nossa Senhora da Conceição do Nazareth em 1676 e foi
subordinada à Vila de São Paulo até 1769, quando a Vila de São João
do Atibaia se desmembra de São Paulo e a Freguesia de Nossa
Senhora da Conceição de Nazareth lhe é anexada. Somente em 1850
é que a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Nazareth se
torna a Vila de Nazareth e, em 1944, Cidade de Nazaré Paulista.
(NUNES, 2017 p. 34)

Em 1878 João José Batista Nogueira e Luiz Antônio Figueiredo


doaram 4,5 alqueires de terra para formação de um patrimônio, onde foi
erguida a capela, recebendo a povoação o nome São João do Curralinho, nos
primeiros contrafortes da Serra da Mantiqueira, Em março de 1892 foi o
povoado elevado a Distrito de Paz, cancelado em agosto de 1892 e
restaurado em agosto de 1893. A denominação original, no entanto, foi
alterada para “Joanópolis”, cujo significado é “cidade de João”, em virtude
de seu padroeiro, São João Batista (Figuras 12 e 13).

Distrito criado com a denominação de São João do Curralinho, por


Decreto-lei Estadual nº 135, de 13 de março de 1891; suprimido por
Lei Estadual nº 54, de 09 de agosto de 1892, sendo restaurado pela
de nº 207, de 30 de agosto de 1893, no Município de Santo Antônio
da Cachoeira. Elevada à categoria de vila com a denominação de São
João do Curralinho, por Lei Estadual nº 348, de 17 de agosto de 1895,
desmembrado de Santo Antônio da Cachoeira (depois Piracaia).
Constituído do Distrito Sede. Sua instalação verificou-se no dia 21 de
agosto de 1896. Cidade por Lei Estadual nº 1038, de 19 de dezembro
de 1906.24

24
Fonte: IBGE- CIDADES- site visitado em 28 de setembro de 2018.
98

Figura 12: Imagem da primeira Capela do bairro Rural de Curralinho.

Fonte: IBGE cidades.

Usando como referência o mapa de 1909, elaborado e publicado pela


Secção Cartográfica da Companhia Lith- Hartmann – Reichenbach,
encontramos a representação de São João do Curralinho de forma
ordenada, com uma capela no centro.

Figura 13: Recorte do mapa de 1909 (São João do Curralinho), elaborado e publicado pela
Secção Cartográfica da Companhia Lith-Hartmann – Reichenbach, São Paulo e Rio.

Fonte: Arquivo Público do estado de São Paulo.

O Bairro rural do Pântano, Arraial e Passa Três está relacionado à


formação do município de Tuiutí SP. O bairro Pântano e Arraial aparecem
pela primeira vez nos Maços de População analisados no ano de 1818. Era
um bairro rural dentro do território da Vila de Nova Bragança No ano de
1818 o bairro do Pântano tem como responsável o Capitão João da Roxa
Lima e apresenta 128 fogos. (Figuras 14 e 15)
Cidade, História e Patrimônio - 99

Em 20 de Janeiro de 1890, por terreno de 120.000 m² doado pelo Sr.


Januário Pinto e sua esposa, para a construção de uma capela dedicada à
São Sebastião, iniciando assim o núcleo urbano da atual cidade de Tuiutí.
Distante dos 3 primeiros bairros rurais que já existia, Pântano, Arraial e
Passa três. Alguns anos depois, nova doação feita pelo Sr. Joaquim de Lima
Bueno, permitiu também a construção da Praça Major Felício.
Em 1902, foi construída uma igreja em taipa no centro da Praça
Major Felício, existindo já nesta época um pequeno povoado. Neste mesmo
ano, seus moradores liderados pelo Major Felício, conseguiram a elevação
do povoado a distrito. Na ocasião o nome atribuído ao povoado foi Tuiutí,
em homenagem a batalha ocorrida na Guerra do Paraguai.
A tradução da toponímia Tuiutí, do Tupi-Guarani, quer dizer Brejo
Branco. Em 8 de Junho de 1903 foram eleitos os primeiros juízes de paz, Srs.
Basílio V. da Silva, José Paranhos de Almeida e José Antônio de Lima. A 13 de
Julho de 1903, efetivou-se a instalação do Distrito de Tuiutí, se tornando o
primeiro Distrito de Bragança Paulista.
Em 24 de abril de 1990 após movimento liderado pelo Sr. Natal
Franco Machado, é dado entrada de requerimento ao Presidente da
Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, assinado pelo Deputado
Milton Baldochi, solicitando a marcação de plebiscito para emancipar Tuiutí.
Em 19 de Maio de 1991 é realizado o plebiscito onde votaram 1.387
eleitores sendo que 1227 (88,4%) optaram pelo SIM e 166 (11,9%) votaram
pelo NÃO, sendo assim é nessa data que Tuiutí desmembra-se de Bragança.
O Bairro do Arraial é atualmente um bairro do município de Tuiutí,
próximo de onde foi construída a Capela de São Sebastião. No mapa de
1909, usando como referência, elaborado e publicado pela Secção
Cartográfica da Companhia Lith- Hartmann – Reichenbach, encontramos a
representação do bairro do Arraial, e não do Pântano, mesmo ele tendo sido
identificado nos maços de população de 1818, como podemos notar, não é
delimitado um núcleo urbano, mas é perceptível a ocupação nas margens do
rio afluente do Ribeirão do Pinhal, sendo possível identificar também dois
templos religiosos.
100

Figura 14: Recorte do mapa de 1909 (Atual território de Tuiutí).

Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Figura 15: Doação feita pelo Sr. Joaquim de Lima Bueno permitiu a construção da Praça Major
Felício. Praça Major Felício, Tuiutí- SP

Fonte: Prefeitura de Tuiutí.

No bairro rural do Pinhal tem-se que seu nome foi derivado das
matas de pinheiros que cobriam a região, (fonte IBGE- Cidade) foi fundada
em 1840 pelas famílias de João Domingues Siqueira e Generoso de Godoi
Bueno. O povoamento de Pinhalzinho deu-se principalmente por imigrantes
italianos, entre eles Antônio Fornari e filhos, que fundaram a primeira casa
comercial.
Cidade, História e Patrimônio - 101

O povoado, em 1900, contava com vinte habitações dispersas. A


partir de 1910 o crescimento foi acelerado em função da criação de uma
escola particular, mantida por moradores e o aumento da população
causada pelo anúncio de oferta de terrenos gratuitos, divulgado pelo Jornal
Cidade de Bragança. (Figuras 16, 17 e 18)
Em 23 de dezembro de 1936 foi criado o distrito de Pinhal, no
município de Bragança. Em 30 de novembro de 1938, o distrito passou a
denominar-se Pinhalzinho.
Em 28 de Fevereiro de 1964, Pinhalzinho foi elevada à categoria de
Município, sendo desmembrado de Bragança Paulista.
A primeira Capela de Pinhalzinho é construída em devoção a Nossa
Senhora de Copacabana, hoje sede lugar a outra Catedral que foi construída
no século XX.

Figura 16 e 17: Primeira Capela construída em devoção a Nossa Senhora de Copacabana. Em


destaque a Capela aparece em vista geral.

Fonte: Prefeitura de Pinhalzinho.

Pinhalzinho é cortada pelo Ribeirão do Pinhal, que desagua no Rio


Camanducaia, na figura 18, vemos o bairro rural do Pinhal, Cachoerinha e
Rosa Mendes, cortados pelo Ribeirão do Pinhal, hoje, Rosa Mendes e
Cachoeirinha são bairros do Município de Pinhalzinho, e como podemos
observar em 1909, não havia um núcleo urbano e sim uma ocupação
dispersa.
102

Figura 18: Recorte do mapa de 1909 (Atual território de Pinhalzinho.), elaborado e publicado
pela Secção Cartográfica da Companhia Lith- Hartmann – Reichenbach, São Paulo e Rio

Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo.

6 CONCLUSÃO.

Buscamos traçar um panorama do objeto de estudo: o município de


Bragança Paulista, desde a sua condição de bairro rural até sua condição de
cabeça de rede urbana. No processo histórico, pudemos observar a
importância dos bairros rurais nesse território, ainda que em seu primórdio
o número fosse pequeno. Foi possível compreender que o processo de
estruturação urbana neste território está diretamente ligado à economia
mista, que impulsiona o desenvolvimento do território economicamente e
gera reflexos no registro das propriedades de terra, em que encontramos
860 registros divididos em 53 bairros somente para o período entre 1854 e
1856. Esses registros em sua maioria são de pequenas propriedades,
denominadas sítios, revelando o perfil da economia mista no território,
ainda que nessa data o café já ganhava força na região.
Além do simbólico tamanho das propriedades registradas, é um
território conflituoso devido à fronteira com Minas Gerais em que a
ocupação, em sua maioria, foi feita de forma ilegal/posseiros. Observamos,
então, que poucos registros de sesmarias são encontrados nessa região.
Cidade, História e Patrimônio - 103

Podemos concluir que o fortalecimento dos bairros rurais acontecia


pela força de trabalho dos posseiros, da produção dos gêneros mistos, sob a
conectividade dos caminhos da região.
Esse movimento constante é o que estimula o desenvolvimento
urbano, criando um traçado que explica e dá continuidade aos feitos
políticos, econômicos e sociais que permeiam a cidade em diferentes
temporalidades e espacialidades.

REFERENCIAL

ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Maços de População da Vila de São João do
Atibaia. São Paulo.
________. Folha de Bragança Paulista; Comissão Geográfica e Geológica do Estado de S. Paulo;
Cidades, vilas, distritos de paz, bairros, fronteiras do Estado (Acordo de 6 de Outubro de
1909) e fazendas da região. Edição provisória 1909. Impresso cor. Tamanho 60x66, escala:
1:100000.
________. Registro de Terras da Província de São Paulo, volume 28, Bragança. Organizado em
1985. Fonte arquivo Público do Estado de São Paulo.
ANDRADE, Adriano Bittencourt. O outro lado da Baia: a gênese de uma Rede Urbana Colonial.
Ed. UFBA. Salvador, 2013.
BORSOI, Diogo Fonseca. Nos traços do Cotidiano: Cunha entre Vilas de Serra Acima e os
Portos da Marinha (1776 – 1817). Dissertação de Mestrado em Urbanismo de Faculdade de
Urbanismo de São Paulo – FAU USP. São Paulo, 2013.
BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. “Dilatação dos confins: caminhos, vilas e cidades na
formação da Capitania de São Paulo (1532-1822)”, Anais do Museu Paulista, vol.17, n.2,
São Paulo, 2009.
FONSECA, Claudia Damasceno, Arraiais e Villas d’el Rei. Espaço e poder nas Minas setentistas.
Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2011.
FUNDAÇÃO SEADE. Tabelas, Quadros e Figurativos. São Paulo, 2014. End. Disponível em:
<www.cidades.ibge.gov.br/painel/historico> Acesso em 26 nov. de 2019.
NOZOE, Nelson. Sesmarias e Apossamento de Terras no Brasil Colônia. ANPEC. 2005.
MARX, Murillo (1991). Cidade no Brasil Terra de Quem? Campinas: Ed. Unicamp, 1989.
NUNES, Carolina Gonçalves. Formação do Território e Espaço Urbano de Bragança Paulista: dos
Primórdios a 1830. Dissertação de mestrado em Urbanismo da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas, FAU – PUCAMP, Campinas, 2017.
104
Cidade, História e Patrimônio - 105

Capítulo 5

O PROJETO DA COLÔNIA MILITAR DO AVANHANDAVA NO ENSAIO


DA OCUPAÇÃO TERRITORIAL PAULISTA (1858-1878).25

26
Nilson Ghirardello
27
Daniel Candeloro Ferrari

1 A QUESTÃO TERRITORIAL NO BRASIL-IMPÉRIO.

O Império herda, da antiga metrópole, um território de certa maneira


fragmentado, com a ausência de uma verdadeira unidade nacional, marcado
por fortes identidades locais e regionais. Além disso, o período imperial
enfrentara inúmeros conflitos. Externos e internos. Foram muitos os
esforços para garantir as linhas fronteiriças, sejam eles por guerras,
arbitramentos ou negociações. Somente a título de exemplo: têm-se os
principais conflitos externos pela posse da Província Cisplatina (1825-1828),
Guerra contra Oribe e Rosas (1851-1852) e a Guerra contra o Paraguai
(Guerra da Tríplice Aliança, 1864-1870), esta última considerada o maior
confronto armado ocorrido na América do Sul. Como exemplos de revoltas
internas: Confederação do Equador (1823-1824), Sabinada (1837-1838),

25
Este trabalho foi apresentado preliminarmente no IV Simpósio Nacional de História Militar,
promovido através do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Estadual
de Londrina, entre 27 e 30 de agosto de 2019, em Londrina-PR; e será publicado nos anais do
respectivo evento.
26
Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP; Docente do Programa de Pós-Graduação
em Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (FAAC),
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Campus de Bauru. E-mail:
nilson.ghirardello@unesp.br
27
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação (FAAC), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” – UNESP, Campus de Bauru. E-mail: dcanferrari@gmail.com
106

Balaiada (1838-1841), Cabanagem (1835-1840), Revolução Farroupilha


(1835-1845), entre inúmeras outras.
A realidade é que, no começo do século XIX, as fronteiras eram
parcamente definidas; internamente entre as próprias províncias, e
externamente entre o Brasil e os países Platinos: a fronteira Brasil-Argentina
só irá ser definida no final do século XIX; fronteira Brasil-Paraguai definida
somente em 1872; fronteira Paraguai-Argentina definida em 1876; a única
fronteira que fora definida nas primeiras décadas do XIX era a Brasil-
Uruguai, justamente pelo processo de independência do Uruguai. Segundo
Sousa Neto;

[...] a ocupação e controle do território passou a ser capital para as


elites políticas que, até a segunda metade do século XIX, ou mais
precisamente, após o fim da Guerra contra o Paraguai, sequer
contavam com um Estado consolidado. Assim, é possível que,
embora não raro houvesse por parte das elites o desejo de integrar
todo o território, faltava-lhes em efetivo os meios que iam desde o
seu mais completo esquadrinhamento cartográfico às condições
materiais para executar políticas com esse fito. 28

A composição do Brasil nos moldes de uma nação moderna,


sobretudo no que se refere à elaboração de uma identidade nacional,
remete à necessidade que seus habitantes deveriam reconhecer-se como
partes de um todo coeso. Ora, era preciso que, nesse momento, os “homens
livres” do Império tanto se reconhecessem, quanto se fizessem reconhecer
como membros de uma “nova sociedade”: o “mundo civilizado”, que era
movido pelo então ideal de “progresso”. Os novos cidadãos não deveriam
perder de vista as nações europeias e seu poderio industrial. Além disso, de
múltiplas transições entre um regime senhorial e a formação de uma
burguesia nacional, entre o trabalho escravizado, trabalho servil, e o
trabalho livre, entre um território marcadamente de tempos lentos e um
29
território que alternaria temporalidades diferenciadas. Talvez, fosse “A Era

28
SOUSA NETO, Manoel Fernandes de. Planos para o Império: Os planos de viação do Segundo
Reinado (1869-1889). São Paulo: Alameda, 2012, p. 24.
29
Idem.
Cidade, História e Patrimônio - 107

30
do Capital” que apenas se iniciava: a expansão da economia capitalista
pelo mundo anunciando profundas modificações.
Ao se afastarem da pretensão de que o Império do Brasil deveria
possuir domínios territoriais ilimitados, os dirigentes imperiais exerceram
outro tipo de expansão: uma expansão para o interior, em direção aos seus
imensos fundos territoriais, considerados não explorados pelo homem
branco. Expandir-se sobre os sertões era fundamental no processo de
negociação dos limites do império com as repúblicas vizinhas, garantindo
31
assim a soberania do Estado imperial. É através da apropriação física e
política que os dirigentes imperiais tentavam superar os obstáculos que se
32
apresentavam para a formação da nação. Nas palavras de Mattos, “O
Estado imperial deveria empreender uma expansão para dentro, de modo
33
permanente e constante, indo ao encontro dos brasileiros que forjava.” E
era em tal expansão que residia o traço mais significativo na construção de
uma unidade. Com base nestas reflexões, propõe-se posicionar os planos de
colonização militar dentro deste panorama, tendo como foco a consolidação
do Estado territorial a partir de meados dos Oitocentos, além da busca
constante de inserção no mundo capitalista global.

2 ANTECEDENTES, ORIGENS E FUNÇÕES DAS COLÔNIAS MILITARES.

É interessante recordar que a maioria das antigas nações cogitou em


povoar seu território de elementos nativos, para que, dessa maneira, seus
habitantes estivessem penetrados com o sentimento de pátria, apego ao
solo, ocupação continuada, e as suas tradições. Além disso, sabe-se, pois,
que tais nações serviam-se, umas mais, outras menos, conforme as
exigências de segurança, em suas fronteiras, de postos de guarda para a
proteção do seu território. Entretanto, não bastava para isso um aparato
somente militar, porque tais entrepostos passariam a viver muitas vezes de

30
HOBSBAWM, Eric J. A Era do Capital, 1848-1875. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.
31
Cf. JANKE, Leandro Macedo. Território, Nação e Soberania no Império do Brasil. In: Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011.
32
Idem.
33
MATTOS, Ilmar Rohloff de. Do Império do Brasil ao Império do Brasil. In: Faculdade de Letras
da Universidade do Porto. (Org.). Porto: Universidade do Porto, 2004, v. 2.
108

recursos locais, onde instáveis e incertos eram os meios de subsistência. Foi


a partir daí, que se tornou necessidade associar àqueles pontos ou guardas
territoriais a elementos civis, nacionais, de procedência militar, para
34
trabalhos agrícolas e a exploração de produtos naturais. Segundo Silveira
35
de Mello, no Brasil colonial, a expansão foi balizada de forma semelhante
ao norte, ao oeste e ao sul, por destacamentos militares em torno dos quais
se fizeram ensaios de povoamento. Graças a estes postos de guardas,
tornou-se possível por aqueles extremos, desenhar, de certa maneira, os
contornos territoriais da época.
Com isso em mente, pode-se afirmar que uma, das diversas origens
da colonização militar brasileira, fora inspirada no império mais poderoso da
antiguidade clássica: o romano. Alguns planejadores buscaram na prática
romana de, após a conquista por guerra, formar acampamentos militares e
daí colônias militares. Essas ainda eram bases de futuras cidades, como se
deu com inúmeras delas, entre os anos 300 AC e 150 DC. Ora, sendo nosso
exército do século XIX de certa maneira ultrapassado, nada mais natural em
escolher aquele sistema que tipificava a colonização militar:

Assim procederam os romanos na fronteira do Reno face às nações


bárbaras do norte. As terras, eles as repartiam em glebas e as
distribuíam aos soldados ao completarem o tempo de serviço, sob a
dupla condição de ali se estabelecerem com suas famílias e levarem
seus filhos, na idade propícia, às juntas de alistamento militar. Estes,
por seu lado, depois de cumprido o serviço das armas, deviam voltar
ao teto paterno ou receber as glebas que lhes coubessem.36

Machado D’Oliveira escreve em seu “Plano de uma Colônia Militar no


37
Brasil” de 1846, sobre as colônias militares nos Governos da Rússia e
Áustria. Tais sistemas eram de uma organização metódica, e que beiravam o

34
MELLO, Raul Silveira de. A Epopéia de Antônio João. Aos 100 anos da epopéia militar dos
Dourados. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1969 (Coleção General Benício, v. 71, publ.
393).
35
Idem.
36
Idem, ibidem, p. 70, grifo nosso.
37
D’OLIVEIRA, José Joaquim Machado. Plano de uma Colonia Militar no Brasil. In: Revista
Trimensal de Historia e Geographia ou Jornal do IHGB. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I.
P. da Costa. Tomo sétimo. nº 26, julho de 1846, p. 239-255.
Cidade, História e Patrimônio - 109

despotismo militar. Continua explicando que os estabelecimentos se


aproximavam de acantonamentos militares, onde os corpos eram
completamente organizados, com todo aparato militar disponível, e que não
se relacionava com a intenção brasileira de criar colônias objetivando a
posse e o cultivo a terra. Dessa forma, não serviria ao Brasil como modo de
colonização. Os planos do inglês M. Gladstone também foram consultados:
o plano consistia no emprego de um corpo de soldados sujeito à direção de
38
um engenheiro geral. Já de acordo com Vasconcellos, em “Colônias
39
Militares – Memória”, publicado em 1867, entre todos os sistemas, o que
pareceu mais regular no caso de ser adotado, foi o proposto para a Argélia
no ano de 1841 por Landemann. Este sistema, que conforme o autor seria o
mais apropriado às nossas circunstâncias, teria mais relação com os nossos
usos e costumes, com muitos mais pontos de semelhanças e de contato do
que outro qualquer; resume-se em criar colônias agrícolas, religiosas e
militares na Argélia para defesa de suas fronteiras e catequese dos
indígenas.
As colônias militares propostas para o país tinham como uma das
finalidades ocupar e garantir que as terras nas quais estavam inseridas
compusessem, irreversivelmente, o território nacional. Pode-se afirmar,
ainda, que algumas delas foram utilizadas como medidas estratégicas do
império brasileiro para que as nações vizinhas não reclamassem a posse das
terras em questão, além de impedir possíveis invasões. Os problemas
relacionados às demarcações fronteiriças, a partir de 1850, cresciam
intensamente no Brasil, como também aumentava a necessidade de se
nacionalizar essas regiões que, na prática, ainda não estavam inseridas no
contexto brasileiro. Em suma, a colonização na perspectiva militar esteve
vinculada às diversas funções:

38
OURIQUE, Jacques. Colônias e Estradas militares. In: Revista do Exército Brasileiro. Anno
Quarto. Rio de Janeiro: Typ. da Revista do Exercito Brasileiro, 1885, p. 97-101.
39
VASCONCELLOS, José R. R.. Colônias Militares – Memoria. In: BRASIL. Relatório apresentado à
Assembleia Geral Legislativa pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Guerra. Rio
de Janeiro: Typographia Nacional, 1867.
110

 Domínio dos povos indígenas considerados perigosos e amparo à


40
catequização dos respectivos aldeamentos;
41
 Apoio aos projetos de algumas novas cidades;
 A intensa preocupação com as fronteiras – a negociação com as
repúblicas vizinhas era delicada, ameaças vindas da Bolívia,
embates com os paraguaios com recorrentes invasões;
 Funções estratégicas de posicionamento em lugares para a
colonização (já mencionado anteriormente);
 Postos de proteção em áreas para informações e comunicações
(estafetas, correio), policiamento,
 Função naval;
 E até mesmo planos desenvolvimentistas de futuros centros
agrícolas e comerciais.

3 DUAS COLÔNIAS MILITARES NA PROVÍNCIA DE SÃO PAULO – ITAPURA E


AVANHANDAVA

A preocupação de colonizar, no sentido de ocupação produtiva


capitalista e fixação do homem branco ao solo, era tão importante naquele
momento histórico (meados do XIX), que se cuidava de propor incentivos
aos povoadores para estes imigrarem com suas famílias. Era patente a
necessidade de assegurar o domínio português na região ocidental do Brasil.
Portanto, devido possuir um caminho natural para adentrar-se ao interior
do país, o rio Tietê foi alvo de esforços e planos oficiais de povoações,
elaborados desde o século XVIII. Em carta escrita pelo conde de Azambuja
em 1767, percebe-se tal interesse quando afirma que “me parece que serão
notórias as utilidades que podem resultar [...] que depende de se povoar o
42
Rio Tietê e se fazer permanente hum estabelecimento naquelas partes.”

40
No Paraná, por exemplo, a colônia de Jatahy foi promovida por um sistema de colonização do
oeste paranaense juntamente com apoio a um aldeamento maior e quatro menores. Cf.
OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de.,2015, p. 2.
41
Em Minas Gerais a colônia daria apoio aos aldeamentos e à nova cidade de Philadelphia,
parte do ambicioso projeto de Teófilo Ottoni. Cf. OLIVEIRA, 2015, opus cit.
42
MARTINS, Romário – Documentos comprobatórios dos direitos do Paraná – na questão de
limites com Santa Catarina collecionados por ordem do Governo do Estado do Paraná. SC,
Cidade, História e Patrimônio - 111

O rio Tietê teve um papel essencial para o processo de ocupação


territorial do interior brasileiro paulista. Seu percurso, de rumo contrário à
costa, propício à navegação a favor da corrente, foi o principal meio de
acesso, as chamadas monções e incursões científicas aos sertões paulistas, e
permitiu a expansão territorial e humana, além da descoberta de riquezas
minerais durante os séculos XVII e XVIII. Assim, o império brasileiro
considerava que o principal acesso, que partia de São Paulo, em direção ao
Mato Grosso, era o Rio Tietê (antigo Anhembi). Desta maneira, iria definir
em suas margens duas colônias militares: Itapura e Avanhandava, que foram
criadas na província de São Paulo e herdaram o homônimo de seus locais
estratégicos de implantação – os saltos no rio Tietê.

Figura 1: Mappa Chorographico da Provincia de São Paulo, 1841, por Daniel Pedro Müller.
Observar expressão “Sertão Desconhecido” em destaque; e círculos vermelhos com a
localização das futuras colônias militares - 1: Salto do Itapura e 2: Salto do Avanhandava.

Fonte: BEIER, 201343 – Arquivo Público do Estado de São Paulo, editado pelo autor, 2019.

Jornal do Commércio, 1915, p.82 In: SILVA, M. A., Itapura – Estabelecimento Naval e Colônia
Militar (1858-1870). Tese de Doutoramento apresentada ao Departamento de História da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. São Paulo, 1972, p. 3.
43
BEIER, José Rogério. Biografia de um mapa: A trajetória do primeiro mapa impresso da
província de São Paulo (1835-1842). In: Anais do V Simpósio Luso-Brasileiro de cartografia
histórica. Petrópolis, RJ, nov./2013.
112

O relevante é destacar que, antes da formação dos povoados,


transformados posteriormente em cidades, antes inclusive dos planos
“desbravadores” da construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil
(EFNOB), precursora na região, existiram algumas tentativas de abertura e
ocupação do território no “Sertão Desconhecido” (ver figura 1), chamado
também genericamente de oeste paulista. Essas tentativas marcaram um
capítulo na história do império brasileiro. A colonização militar pode ser
apontada como parte deste capítulo, muito pouco estudada e considerada
pela historiografia da expansão territorial paulista, demonstrando as
primeiras experiências concretas de povoação e colonização destas regiões
pelo homem branco.
É assim que, em meados do século XIX, o plano de larga visão de
colonização militar do império foi posto em prática. E no caso de São Paulo,
o rio Tietê era considerado o principal acesso em direção a Mato Grosso,
portanto deveria ser resguardado, evitando-se com isso invasões, e a
implantação de postos avançados de comando e policiamento. Nessa
conjuntura resolveu o governo – mais especificamente, a ordem foi do
então Ministro da Marinha, José Antônio Saraiva, já com intenções de criar
um estabelecimento naval na foz do rio Tietê – enviar para a Província de
São Paulo, Antônio Mariano de Azevedo, jovem oficial da marinha, que faz
uma incursão ao rio Tietê até o sertão de Itapura em 1857, para averiguar as
possibilidades de criação de centros povoadores, além de reconhecer locais
estratégicos para sediar o estabelecimento naval. O Relatório elaborado
pelo oficial da marinha foi, dessa maneira, extremamente importante para
determinar a localização das futuras colônias militares – que posteriormente
44
serão criadas, por decretos de leis, no ano de 1858. O texto é uma fonte
histórica que nos fornece subsídios para compreender as ações do
Ministério da Marinha, investindo na criação de um estabelecimento naval
próximo à foz do rio Tietê, e atribuindo diretrizes de localizações para se
criarem outras colônias agrícolas-militares.

44
AZEVEDO, Antonio Mariano de. Relatório do primeiro tenente d’armada sobre os exames de
que foi incumbido no interior da província de S. Paulo. Rio de Janeiro: Typografia Peixoto, 1858.
Cidade, História e Patrimônio - 113

4 PRIMEIRA PLANTA PARA A COLÔNIA MILITAR DO AVANHANDAVA

Figura 01: “Planta Topographica do Arraial da Colonia militar Avanhandava”, 5 de julho de 1861

Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo, fotografia do autor.

A Colônia Militar do Avanhandava foi criada pelo Decreto Imperial nº


45
2126 de 23 de Março de 1858. A figura 1 corresponde à primeira planta
elaborada para a Colônia em 5 de julho de 1861. Localizada próximo ao Salto
do Avanhandava, no rio Tietê, o local escolhido para implantação do Arraial
foi ao lado do Ribeirão Ferreira. Como não há menção de autoria no
documento, supõe-se que o desenho tenha sido feito pelo diretor da colônia
Manoel Giraldo do Carmo Barros, pois este assina os diversos ofícios
anexados. Lê-se no lado direito o plano do diretor:

As ruas tem 100 palmos de largura. As quadras para casas tem 400
palmos em cada face. O Ribeirão Ferreira que mais ou menos corre
de Norte a Sul, e a Estrada da Cidade da Constituição ao Itapura e
porto do Taboado no Rio Paraná que leva a direção de [Leste] a

45
BRASIL. Collecção das Leis do Imperio do Brasil de 1858. Tomo XIX. Parte II. Rio de Janeiro:
Typographia Nacional, 1858, p. 161.
114

[Oeste] devidem o Arraial em quatro bairros. Os dois que ficão a L.


estão sendo discortinados para poderem ser habitados.46

Com um desenho quadrilátero e regular, o plano para a colônia


ansiava algo efetivamente racional, que pudesse transmitir não só ordem e
disciplina militar, mas também a ideia de uma civilização que vinha para
demarcar e proteger a região. Ora, o que seria delimitar uma região senão
distinguir dois ou vários lugares, atribuindo-lhes qualidades diferentes: o
meu, e aquele outro – o espaço de habitat, de segurança, de ordem,
enquanto o outro seria “perigoso”, “não humano”, “bárbaro”, “selvagem”.
Fundar é sempre atribuir qualidades a um espaço: é estabelecer uma
relação de parte da extensão com o mundo, tecendo vínculos simbólicos. Tal
relação é interativa na medida em que, uma vez fundado, o próprio lugar é,
47
ao mesmo tempo, produto e produtor de simbologia e de sociabilidade.
Tem-se a hipótese, portanto, que tal plano e ação de fundar, talvez
possam se aproximar ao modelo de castrum romano (figura 2) –
acampamentos militares, que posteriormente, se transformavam em
cidades. Muitas vezes eram fundados com o objetivo de ocupação territorial
e garantia de domínio, ou apenas para interiorização do povoamento. O
traçado em xadrez era definido por duas ruas, norte-sul chamada cardo, e
leste-oeste chamada decumanos. Em seu cruzamento estabelecia-se o
forum, onde os soldados se reuniam todos os dias para receber as ordens, e
este local tornava-se o centro da futura cidade. Ao redor do futuro núcleo
citadino, mas ainda dentro dos muros, delimitava-se o pomerium, uma faixa
de terra que representava a fronteira sagrada da cidade. O terreno interno
era considerado inviolável, ungido pelos deuses, tal rito fazia o espaço
passar de um status para outro. Aos poucos o acampamento recebia
48
calçamento, água encanada, mercados, escolas, anfiteatros, termas, etc.
Não se tratava somente de um ritual de fundação ou de elaboração de um
traçado, mas de um conjunto de operações deliberadas: legitimando a

46
AVANHANDAVA, Officios Diversos. C0820, 1861, (manuscrito), Arquivo Público do Estado de
S.P.
47
SEGAUD, Marion. Antropologia do espaço: habitar, fundar, distribuir, transformar. São Paulo:
Edições Sesc São Paulo, 2016, p. 138-141.
48
MACAULAY, David. Construção de uma cidade romana.São Paulo: Martins Fontes. 1989, p.
10-15.
Cidade, História e Patrimônio - 115

produção de vínculos simbólicos por um grupo de indivíduos entre seu


território e o ambiente construído. Podemos considerar que, assim como
ocorre na planta da Colônia militar, o ato de delimitar é uma maneira de
tornar um espaço seu, de apropriar-se dele ao distingui-lo dos outros
espaços e de outrem.

Figura 2: Esquerda – Planta fictícia de Verbonia49, em vermelho o cardo e decumanos. Direita –


Acampamento militar, castrum romano.

Fonte: MACAULAY, 1989, p.10-13.

Para Mumford, as cidades militares de colonização romana,


implantadas para servir de pontos de apoio ao grande império, eram
permanentemente guarnecidas de legionários e muitas vezes se
desenvolviam como cidades manufatureiras especializadas e centros
comerciais. Roma deixou suas marcas características numa série de novas
colônias – essas cidades eram talhadas segundo o modelo descrito: tipo
axial, modesto em dimensões, simples no traçado, com suas duas ruas
50
principais que se cruzavam em ângulo reto perto do centro.

Ter estabelecido essas novas cidades foi um feito social mais valioso
do que quaisquer benefícios conferidos por Roma a si mesma por
seus rapaces monopólios. O que faltava em tamanho às cidades

49
Verbonia é uma cidade fictícia: típica cidade romana formada a partir da colonização militar;
foi criada pelo autor (Macaulay) para descrever tal processo.
50
MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, desenvolvimento e perspectivas. São
Paulo: Martins Fontes, 2ª ed., 1982, p. 229-230.
116

novas, ganhavam elas em qualidade e, de passagem, em


autossuficiência, pois em tempos normais [...], aquelas cidades
poderiam tirar a maior parte dos seus alimentos da região
circunvizinha: assim, mantinham o equilíbrio rural-urbano que
lugares maiores, por causa do seu próprio crescimento, desfaziam.51

Na planta da Colônia Avanhandava (figura 1), pode-se dizer que o


Ribeirão Ferreira faz o papel de cardo e a “Estrada que vai da cidade da
Constituição ao Itapura [...]” como decumanos, dividindo o arraial em quatro
bairros, os dois da direita “descortinados” (ou seja, estavam realizando o
processo de desmatar o local, provendo um campo aberto). Ao centro
localiza-se o quartel e na região superior direita o cemitério. Em conjunto à
figura 1, o diretor anexa plantas de edifícios a se construir, que segundo ele
são de urgente necessidade:

Para facilitar a prosperidade da povoação desta Colonia; regularizar a


moradia de seus empregados, que ate o presente tem estado mal
acomodados, e firmar o seu Arraial, que por ora heprovisorio e
distante do lugar designado para esse fim duas legoas e meia pelo
menos proponho a V. Exª, na forma do artigo 7º § 1º do Regulamento
deste estabelecimento, a construcção de dois edificios que a meu ver
são de urgente necessidade, tanto para estabelecer a base da futura
villa, como para recurço dos que por este certão se estão
domiciliando no caso de qualquer agressão; cujos edificiosconstão
das duas plantas inclusas e são os seguintes: Primeiro um quartel [...]
Segundo = Dois Cemiterios [...] e capella na parte que for designada
para os catholicos.52

51
Id., ibid., p.231.
52
AVANHANDAVA. Officios Diversos. Caixa C0820, 1859-64, manuscrito, Arquivo Público do
Estado de São Paulo, 5 de julho de 1861.
Cidade, História e Patrimônio - 117

Figura 3: Planta do Quartel da Colônia Militar Avanhandava, 5 de julho de 1861.

Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo, fotografia do autor.

O primeiro edifício a ser mencionado pelo diretor é o quartel, que


seria implantado no centro da colônia ao lado do Ribeirão Ferreira.
Novamente vê-se um desenho simples e regular, porém muito bem
detalhado e com clara inspiração nos forums romanos: ocupando uma
quadra inteira, o quartel tem 400 palmos em cada face por 40 palmos de
53
largura, deveria ser construído com madeira de lei “que facilita mais sua
promptificação e offereça duração maior de 50 annos; cuja construcção é
54
orçada em 16:000$000 réis em seis annos de serviço”. Com duas portas, a
entrada principal possivelmente volta-se para a rua/eixo (decumanos) ao
sul, e a outra para o norte. Apresenta em seu perímetro interno um pátio
avarandado “que facilita poder se percorrer todo o quadro sem expor se ao
55
tempo”.

53
Caso utilizarmos a medida linear de 0,22m ou 22cm equivalente a 1 palmo: o quartel teria
88x88m (medida inteira da quadra) por 8,8m de largura. A rua (100 palmos) teria
aproximadamente 22m.
54
AVANHANDAVA, Officios Diversos, opus cit. - Planta do Quartel, 5 de julho de 1861.
55
Idem.
118

O quartel teria acomodação para: residência do diretor, ajudante do


diretor, capelão, cirurgião, escrivão, agência de correio, secretaria, doze
colonos de 1ª classe, duas enfermarias, um laboratório farmacêutico, duas
as
escolas de 1 letras, um armazém, duas prisões (para homens e mulheres),
oficinas, latrinas e cozinha. Indicado para posicionar-se no centro da colônia,
o quartel, por razões militares e sociais, era considerado o lugar mais
importante da colônia até então.

Figura 4: Planta da Capela e cemitérios da Colônia militar Avanhandava, 5 de julho de 1861.

Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo, fotografia do autor.

A segunda planta a ser anexada é exposta na figura 4 – dois


cemitérios e uma capela ocupando uma quadra de 400 por 400 palmos. É
interessante notarmos três aspectos principais. O primeiro é atentar para a
localização do cemitério na figura 1 – longe do centro, na região mais
afastada possível, mas ainda assim dentro do perímetro delimitado pelo
plano. Isso acontece devido estar em voga diretrizes de um urbanismo
sanitário, que teve início na Europa no final do século XVIII, baseado
principalmente em teorias provenientes das áreas médicas como a teoria
dos miasmas, ou miasmática. Para Mastromauro, tais conceitos
compreendem, de forma básica, em limpar o espaço urbano – a ideia de
desinfetar, praticar uma higiene desodorizante, pretendendo proteger o ar
Cidade, História e Patrimônio - 119

das emanações e ‘miasmas’, fedores, que provêm dos corpos pútridos


(também multidões, hospitais, pessoas doentes, solos úmidos, pântanos,
habitações mal construídas, etc).

Na referida teoria, quando um solo era denunciado como insalubre


(perigoso) ele devia logo ser drenado a fim de torná-lo inofensivo
para os seus arredores. As ruas deveriam ser pavimentadas para
isolar a sujeira e para que a lavagem do solo fosse facilitada. Limpar
significa muito mais do que simplesmente lavar, drenar. O ideal era
assegurar o escoamento, a evacuação, a eliminação da imundice.56

O segundo aspecto a se destacar é a divisão em duas partes do


cemitério: um protestante ao norte, e outro católico ao sul. Lembremos
então do conjunto de cemitérios na cidade de São Paulo, vizinhos entre si:
Cemitério da Consolação (1858), dos Protestantes (aprox. 1862) e da Ordem
Terceira do Carmo (1868) – que tiveram seus locais de implantação
57
definidos pelo engenheiro alemão, protestante, Carlos Rath . Ora, percebe-
se aqui, portanto, a contemporaneidade das ideias expressas na planta e
pretendidas pelo diretor da Colônia Avanhandava – esta que ficava
aproximadamente a 12 dias de viagem saindo de Piracicaba, por meio de
58
canoas, através do rio Tietê (imaginemos assim, a distância até a capital).
Dessa forma, frisamos a excelência e contemporaneidade na elaboração do
desenho em que já havia a intenção de se construir um cemitério dividido
entre os católicos e os acatólicos, ou protestantes.
O terceiro aspecto a ser apontado é a necessidade da construção da
capela: época em que o Estado imperial e Igreja eram um ente só. A religião
católica estava presente na cultura dos brasileiros, e numa região, que era
preconceituosamente considerada “selvagem”, acreditava-se no conceito

56
MASTROMAURO, Giovana C. Surtos epidêmicos, teoria miasmática e teoria bacteriológica. In:
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História, São Paulo, jul. 2011, p. 3.
57
MATRAGNOLO, Breno H. S. Formas de morrer bem em São Paulo. Dissertação (Mestrado) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) São
Paulo, 2013.
58
Este é o tempo que leva o diretor e seu comboio, “que tendo sahido da Cidade da
Constituição na tarde de 8 do corrente mes cheguei a este lugar na manhã de hoje, tendo sido a
viagem mais longa do que do costume por causa [das chuvas].” In: AVANHANDAVA, Officios
Diversos, opus cit., 20/02/1860.
120

que a Igreja, juntamente com o trabalho dos militares, traria os povos


indígenas para a “civilização”. A figura do padre, ou do capelão-alferes como
é no caso de uma colônia militar, se identificava com a população e seu
meio, incluindo atividades políticas e propriedade de bens. Ficava o capelão
responsável por, além de suas funções paroquiais, ensinar o catolicismo às
crianças da colônia, promover as famílias com dedicação sincera, aconselhar
a moral pública e privada, a exatidão dos deveres religiosos aos colonos, o
respeito e a obediência legal e a sociabilidade.
Devido a isso, o segundo edifício a ser indicado pelo diretor da
colônia é uma capela com planta retangular divida em: corpo central (nave
única), corredores laterais, duas sacristias e capela mor. As dimensões
indicadas na planta são de 80 palmos de comprimento e 60 palmos de
largura, com “altura das beiras” de 20 palmos. Além dos pontos descritos,
caso atentarmos para a região à frente da capela percebe-se um espaço em
branco e o símbolo da cruz. A partir disso podemos estabelecer o seguinte
pressuposto: apesar de descrever o cemitério com 400x400 palmos
(dimensão da quadrícula), o diretor ao desenhá-lo faz com que um dos lados
seja menor em comprimento. Dessa forma, talvez, tivesse a intenção de
levantar um cruzeiro defronte à capela (notar o símbolo da cruz na figura 4),
criando assim um adro, ou mesmo um pequeno largo.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Raras são as informações disponíveis sobre a Colônia Militar do


Avanhandava. A maior fonte são os relatórios de seus diretores,
encaminhados à tesouraria, à assembleia legislativa e ao presidente da
província de São Paulo – precioso material textual e cartográfico presente
no Arquivo Público do Estado de São Paulo, e circunscrito ao período de
1858 a 1878. Assim, o trabalho aqui apresentado pode ser considerado
pioneiro em sua área do conhecimento, trazendo luz a esta documentação.
As plantas aqui analisadas fazem parte do primeiro conjunto de projetos
realizados para a colônia militar em questão. Há muito a desvendar-se sobre
a história da Colônia Avanhandava e das colônias militares de um modo
geral. Porém, já se percebe a grande influência de ideais ‘modernos’ na sua
concepção – desde a distribuição de terras, pequenas propriedades para
Cidade, História e Patrimônio - 121

cultivo agrícola, até a tentativa de estabelecer-se como um ponto mercantil,


de apoio às comunicações, entre as capitais das províncias vizinhas (São
Paulo e Mato Grosso).
Portanto, o objetivo é demonstrar que havia um ideal que estava
além de ocupar, demarcar, vigiar e proteger o território; mas principalmente
tendo como meta implantar estabelecimentos sob um projeto racional,
cujas bases parecem vir de colônias militares romanas. Desde a escolha do
local, estrategicamente posicionado, até a elaboração de mapas e plantas,
verifica-se tal desejo. Os documentos brevemente analisados explicitam o
intuito claro de ocupar – não de qualquer maneira – um espaço que era
“desconhecido” para o homem branco; e que, para sua criação,
concorreriam os poderes civis e religiosos, parte de uma mesma estrutura
de poder. A ideia era, então, construir no interior paulista uma cidade
planejada, inicialmente de caráter militar e agrícola, que seria a semente de
futuro núcleo civil.

REFERENCIAL

AVANHANDAVA, Officios Diversos. C0820, Annos 1859-1864 (Manuscrito), Arquivo Público


Estado de São Paulo.
AZEVEDO, Antonio M. Relatório do primeiro tenente d’armada sobre os exames de que foi
incumbido no interior da província de S. Paulo. Rio de Janeiro: Typ. Peixoto, 1858.
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São Paulo. In: Anais do V Simpósio Luso-Brasileiro de cartografia histórica. RJ, nov./2013
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Geographia ou Jornal do IHGB. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I. P. da Costa. Tomo
VII. nº 26, julho de 1846, p. 239-255.
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MATTOS, Ilmar Rohloff de. Do Império do Brasil ao Império do Brasil. In: Faculdade de Letras da
Universidade do Porto. (Org.). Porto: Universidade do Porto, 2004, v. 2.
122

MELLO, Raul Silveira de. A Epopéia de Antônio João. Aos 100 anos da epopéia militar dos
Dourados. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1969.
MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, desenvolvimento e perspectivas. São
Paulo: Martins Fontes, 2ª ed., 1982.
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Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, Minas Gerais, G17, 2015.
OURIQUE, Jacques. Colônias e Estradas militares. In: Revista do Exército Brasileiro. Anno
Quarto. Rio de Janeiro: Typ. da Revista do Exercito Brasileiro, 1885.
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Edições Sesc São Paulo, 2016.
SILVA, M. A., Itapura – Estabelecimento Naval e Colônia Militar (1858-1870). Tese de
Doutoramento, FFLCH-USP. São Paulo, 1972.
SOUSA NETO, Manoel F. Planos para o Império: Os planos de viação do Segundo Reinado (1869-
1889). São Paulo: Alameda, 2012.
VASCONCELLOS, José R. Colônias Militares – Memoria. In: BRASIL. Relatório de Estado dos
Negócios da Guerra – João L.C. Paranaguá. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1867.
Cidade, História e Patrimônio - 123

Capítulo 6

CIDADE COMO PEÇA-CHAVE PARA O DESENVOLVIMENTO


REGIONAL: O PLANEJAMENTO PARANAENSE NOS ANOS 1960

59
Gislaine Elizete Beloto

60
1 INTRODUÇÃO

O economista Francisco Magalhães Filho durante o Seminário de


Planejamento Estadual, realizado pelo Centro de Desenvolvimento CEPAL-
BNDE, em Petrópolis, mencionou as ações incipientes do planejamento do
estado do Paraná até aquele momento. Afirma que “o Paraná, antes de
1960, não aplicou o planejamento global à execução de sua política
econômica ou à programação de seus investimentos públicos” (MAGALHÃES
FILHO, 1967, p.09). Referia-se à comissão de coordenação do Plano de
Desenvolvimento Econômico do Paraná (PLADEP), criada em 1955, e dentro
da qual se efetivaram as primeiras experiências de planejamento (GOMES,
2010). Anterior a PLADEP, o governo do Paraná não tinha,
reconhecidamente, uma equipe técnica destinada a pensar o planejamento
e desenvolvimento do estado.
Os membros de tal comissão frequentaram cursos promovidos pela
Comissão Econômica para América Latina (CEPAL), tanto no escritório do Rio
de Janeiro quanto na sede da instituição em Santiago do Chile, com o apoio
do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE). O principal
relatório dessa comissão foi intitulado Análise da Economia Paranaense:
Estudo Número 40 onde esboçava um plano de desenvolvimento para o
estado. Com uma percepção mais elaborada dos problemas regionais, tal

59
Professora Doutora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual
de Maringá. E-mail: gebeloto@uem.br
60
Texto originalmente apresentado no XIV Seminário de História da Cidade e do Urbanismo
(2016).
124

estudo defendia a industrialização ao mesmo tempo em que demonstrava


preocupação com uma economia baseada meramente na agricultura. Nele
estava implícita a conversão do território estadual em um conjunto de
regiões polarizadas, cujos polos eram as cidades que receberiam, com a
ajuda do estado, as indústrias motrizes do desenvolvimento.
Mesmo tendo se tornado uma comissão permanente em 1963, a
partir de então vinculada à Companhia de Desenvolvimento Econômico do
Paraná (CODEPAR), a PLADEP manteve o corpo técnico e, portanto, a
mesma concepção de desenvolvimento promovida pela CEPAL. Assim como
o economista Celso Furtado (1920-2004) adaptaria a teoria cepalina de
relação centro-periferia entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos para
a relação entre a Região Centro-Sul do Brasil e a Região Nordeste (DINIZ,
2009:238), os técnicos da PLADEP, sob uma influência peculiar devido à
transposição de escala, fizeram o mesmo com relação aos estados de São
Paulo e Paraná. Onde os autores cepalinos mencionavam “países
desenvolvidos” e “América Latina”, os membros da PLADEP/CODEPAR liam
“São Paulo” e “Paraná”, respectivamente (DUDEQUE, 2005, p.56; GOMES,
2010, p.133).
Claramente, o planejamento do estado do Paraná nasceu sob o viés
da “organização econômica do território” e ratificou o pensamento do grupo
brasileiro CEPAL-BNDE. Como um dos “pilares teóricos do Brasil”, o grupo
contribuiu para a inserção da matriz francesa de desenvolvimento baseada
nos estudos de polarização do território e para a inserção dos pensamentos
dos economistas François Perroux (1903-1987) e Raúl Prebisch (1901-1986)
no planejamento brasileiro (TAVARES, 2010).
O novo caminho teórico afastou o referencial norte-americano de
bacias hidrográficas como matriz de desenvolvimento. Esta era derivada da
abrangente repercussão do programa Tennessee Valley Authority (TVA) a
partir dos anos de 1933 nos Estados Unidos. Assim, o Brasil do final da
década de 1940 conheceu o planejamento territorial a partir da região
natural como seu objeto de análise e proposta, sendo pioneiros os trabalhos
desenvolvidos pela Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), criada em
1948, e pela Comissão Interestadual da Bacia Paraná-Uruguai (CIBPU),
instituída em 1951 (CHIQUITO, 2012).
Cidade, História e Patrimônio - 125

A ideia de colocar as cidades no centro do desenvolvimento


econômico também abandonou planos em que estas eram as responsáveis
pelo ordenamento da região. São exemplos os trabalhos denominados Plano
Regional de Santos, escrito pelo engenheiro-arquiteto Francisco Prestes
Maia, e Diretrizes de um Plano Regional para o Recife do engenheiro
Antônio de Bezerra Baltar, ambos publicados no início da década de 1950. O
primeiro tomava a cidade de Santos como a extensão da urbanização de São
Paulo viabilizada pela estrutura viária de conexão, num alinhamento aos
sistemas de parkway e de recreação implantados pelo engenheiro Robert
Moses em Nova York; o segundo propunha a expansão da cidade de Recife
dentro de um modelo de descentralização composto pela cidade existente e
cidades satélites de crescimento limitado e autossuficientes, combinado
com áreas verdes agricultáveis e de recreação, tudo isso muito próximo à
Regional City defendida pelos regionalistas norte-americanos e ingleses no
início do século passado.
Também fizeram parte dos primeiros anos do planejamento
paranaense as ideias do grupo francês Economie et Urbanisme por
intermédio da contratação, via CODEPAR, da Sociedade de Análise Gráfica e
Mecanográfica Aplicada aos Complexos Sociais (SAGMACS) para elaborar o
Plano de Desenvolvimento do Paraná. Este foi o mais amplo estudo
elaborado para o estado durante a década de 1960, e onde a ideia de
polarização do território já estava colocada.
Nesse plano do Paraná é possível identificar a região como “uma
porção do território sob a dominação de uma grande cidade” (LEBRET, 1955
61
apud PELLETIER, 1996, p.355) . O documento faz referências explícitas ao
economista François Perroux e aos polos de desenvolvimento, assim como
ao geógrafo Jean Labasse, para quem não se constroem regiões desprovidas
de grandes polos urbanos.
Com isso pode-se dizer que, num primeiro olhar, havia duas leituras
diferentes sobre o desenvolvimento regional baseado na polarização do
território que coexistiam no planejamento do estado do Paraná. Uma
derivada das proposições da CEPAL onde o desenvolvimento, ou melhor

61
LEBRET, L J. Pesquisa sobre os níveis de vida das zonas rurais do estado do Paraná. Curitiba:
Fundação de Assistência ao Trabalhador Rural, 1955.
126

dizendo, o subdesenvolvimento é uma condição que apenas se altera


através de mudanças estruturais; e a outra em que este é visto como uma
etapa do processo de desenvolvimento, seguindo os escritos do padre
Lebret.
Sob esses referenciais teóricos, este capítulo trata da cidade como
peça-chave do planejamento regional durante os anos de 1960, sendo ela
própria o componente definidor da região e ponto central do
desenvolvimento regional, a partir do referido Plano de Desenvolvimento do
Paraná e seu rebatimento conceitual e propositivo nos Planos Diretores de
Desenvolvimento das principais cidades do norte paranaense - Londrina e
Maringá. Com isso, ainda se coloca a questão da conjugação das escalas de
planejamento - urbana e regional - necessária para a efetivação das
diretrizes econômicas e de organização territorial.
Além de serem definidas como polos regionais de desenvolvimento
pelo Plano de Desenvolvimento do Paraná e cujos planos diretores foram
elaborados ainda na mesma década, as cidades de Londrina e Maringá
fazem parte da região norte do estado, uma porção do território que é um
verdadeiro laboratório de experimentos para o planejamento regional
desde a década de 1930, quando se iniciou o processo de implantação das
cidades e ocupação do território pela subsidiária brasileira da empresa
inglesa Companhia de Terras Norte do Paraná, apresentando modelos de
estruturação regional vinculados aos conceitos e modelos em voga
internacionalmente.

2 DESENVOLVIMENTO E POLARIZAÇÃO DO TERRITÓRIO: A CIDADE EM


DESTAQUE

Sobretudo a partir da década de 1960, a cidade figurava com a


unidade a ser planejada para o desenvolvimento regional. Ela destaca-se
como a principal peça do planejamento por ser considerada, em conjunto
com a indústria, catalisadora do desenvolvimento de uma dada região. Ao
fazer parte dos planos econômicos de desenvolvimento as cidades
receberam o título de polos de desenvolvimento, tal qual sua importância
perante a formulação de estratégias para a superação da desigualdade
regional. Coube ao denominado “planejamento territorial” ordenar o
Cidade, História e Patrimônio - 127

território conforme as diretrizes econômicas e, por vezes, sociais, que eram


intrínsecas aos tais planos de desenvolvimento.
“O ideário de planejamento, escreve Feldman (2009, s/p), se torna
indissociável das estratégias de desenvolvimento.” Mas, se o
desenvolvimento era onde se almejava chegar via planejamento, torna-se
importante, portanto, destacar duas concepções divergentes que se
instauraram entre os planejadores e que também estiveram presentes entre
os profissionais que atuaram nos primeiros anos de planejamento do estado
do Paraná. A primeira, presente nos planos da SAGMACS e nos textos de
Lebret, era subsidiada pela ideia de desenvolvimento como um processo,
sendo o subdesenvolvimento uma de suas fases; a segunda, baseada no
pensamento cepalino e do economista Celso Furtado, via o
subdesenvolvimento como uma condição histórico-estrutural da economia e
da sociedade.
O conceito de desenvolvimento no contexto dos países do Terceiro
Mundo era considerado complexo para Lebret, não devendo ser restrito
apenas ao conceito de crescimento econômico. Para ele, o desenvolvimento
de um território corresponde à conjugação dos diversos aspectos da vida, e
o conhecimento da realidade, ou seja, a compreensão de qual fase do
desenvolvimento se encontra o país ou a região era condição sine qua non
para atingir o desenvolvimento harmônico. Tido como um processo, o
conceito de desenvolvimento empregado por Lebret é evidenciado na
própria definição de economia humana como “a ciência e a arte da
passagem de uma fase de desenvolvimento técnico e humano
legitimamente considerado como inferior para uma fase do
desenvolvimento legitimamente considerado como superior” (LEBRET, 1955,
p. 533).
O padre dominicano admite dois tipos de articulação entre
crescimento e desenvolvimento: o “crescimento ordenado análogo aos dos
seres vivos”, uma vez que na natureza existe um equilíbrio interno contínuo
ao crescimento das espécies; e o crescimento progressivo, derivado da
economia progressiva descrita por Perroux, cujo avanço ocorre com os
passos dados por uma economia em direção ao objetivo desejável, sendo
que índices e marcadores operacionais não bastam à definição de uma
sociedade economicamente progressiva (LEBRET, 1966, p.45-6). “Uma
128

economia diz-se progressiva quando os efeitos da inovação nela se


propagam o mais rapidamente possível e pelo menor custo social, no
âmbito duma rede de instituições cujo sentido se universaliza” (PERROUX,
1967, p.540).
A segunda concepção diz respeito à Teoria do Subdesenvolvimento
ou Teoria Cepalina. A influência sobre a questão do subdesenvolvimento
que as teses da CEPAL tiveram no Brasil reforçou ainda mais a concepção
dos polos, no entanto, sem a crença de que o desenvolvimento ocorresse
por fases. Apenas uma mudança estrutural no âmbito econômico e social
daria a condição necessária para que os países do Terceiro Mundo
atingissem o desenvolvimento.
Para os estudiosos da CEPAL, a industrialização era tida como o fator
de desenvolvimento e de resolução das disparidades regionais, o que
colocava a cidade como um lugar privilegiado no planejamento. (CHIQUITO,
2011) A questão do desenvolvimento era, acima de tudo, uma questão
econômica. Esse posicionamento fez com que Lebret refutasse o
direcionamento da CEPAL, mesmo que houvesse pontos em comum entre
os estudos elaborados pela SAGMACS e pela CEPAL naquilo que se referia à
associação entre industrialização, polarização e desenvolvimento regional
(PELLETIER, 1996).
Ao lado de Raúl Prebish, o economista Celso Furtado foi um dos
grandes nomes da CEPAL. Ele transpôs para a escala da região,
especificamente o Nordeste brasileiro, as relações entre países centrais e
periféricos. Demonstrou que “a relação comercial entre o Nordeste e o
Centro-Sul do Brasil tinha um duplo efeito de transferência de renda da
primeira para a segunda e de impedimento do processo de industrialização
do Nordeste” (DINIZ, 2009, p.238). Dessa forma, acreditava que o
subdesenvolvimento não era apenas um atraso ou uma etapa do
desenvolvimento, mas o resultado de uma formação histórico-estrutural e,
como tal, só poderia ser superado por transformações estruturais que
rompessem com a subordinação política da periferia ao centro (BRESSER-
PEREIRA, 2010; DINIZ, 2009). Mesmo se referindo às estruturas econômicas
e sociais, C. Furtado não deixou de olhar para a “estrutura espacial”, dentro
da qual enfatiza a importância dos polos e reconhece o papel da cidade na
estruturação e no comando do território (FURTADO, 1967).
Cidade, História e Patrimônio - 129

Mesmo divergentes, ambas as concepções tinham em comum o


entendimento de que os polos de desenvolvimento e sua consequente
polarização do território eram o caminho para o crescimento econômico e
possível desenvolvimento. A partir da Theorie de Póles de Croissance (1955)
e da subsequente aplicação do conceito de polo de desenvolvimento nos
escritos do economista François Perroux, a “cidade” é evidenciada como o
objeto de planejamento catalisador do desenvolvimento regional. Trata-se,
em termos de Brasil, de trazer para a ordem territorial uma teoria
construída dentro do espaço econômico e, com isso, observar a
naturalidade com que o conceito de polarização adentrou o discurso de
urbanistas envolvidos com o planejamento regional.

3 A INTEGRAÇÃO DO PARANÁ EM UMA PROPOSTA DA SAGMACS

A cidade e a indústria como as peças-chave do desenvolvimento


juntamente com o modelo de polarização do território constituíram a base
da proposta da SAGMACS para o Plano de Desenvolvimento do Paraná. O
volume foi denominado de “documento preliminar”, pois tinha como
objetivo apenas estruturar os elementos de um plano de desenvolvimento,
o que ocorreria em conjunto com a equipe técnica da PLADEP, e, na
sequência, auxiliar o governo do estado na elaboração dos programas de
governo.
O Plano foi dividido em quatro áreas de trabalho: econômico, social,
administrativo/financeiro e territorial, sendo coordenado pelo sociólogo
Antonio Amilcar de Oliveira Lima, pelos arquitetos Antônio Cláudio Moreira
Lima e Moreira, Celso Monteiro Lamparelli, Francisco Whitaker Ferreira, Luiz
Carlos Costa, e pelo Frei Benevenuto de Santa Cruz. Trazia um diferencial em
relação aos trabalhos anteriores da SAGMACS que focavam na pesquisa e
conhecimento da realidade. No caso do Paraná, assim como a experiência
que parte da equipe técnica tivera com o Plano de Ação do Governo do
Estado de São Paulo anos antes, a questão era um passo à frente em direção
130

à elaboração de um “plano” que deveria conter propostas para o


62
desenvolvimento .
O texto do Plano esclarece o entendimento conceitual sobre o
desenvolvimento. O tom humanista do trabalho se explicita nas Notas
Prévias onde se lê que o plano foi baseado na “doutrina de que o
desenvolvimento deve visar a ‘todo o homem e todos os homens’”
(PARANÁ, 1963a, s/p). A expressão de François Perroux também pode ser
lida em seu artigo O conceito de desenvolvimento, parte integrante do livro
L’économie du XXe siècle, publicado em 1964, onde ressalta que a
construção do homem pelo homem é essencial, mesmo numa economia
capitalista (PERROUX, 1967, p.181-2). Tal expressão resume a ideia da
“economia humana” em oposição ao desenvolvimento mecanicista da
economia que “tem valor em si mesma” e se encontra na ordem
quantitativa do crescimento da produção e expansão econômica (LEBRET,
1966).
Assim, no plano para o Paraná, o desenvolvimento foi tomado como
“processo contínuo de elevação dos níveis de vida da população”, cujas
etapas são concatenadas com o todo, da mesma forma que os componentes
do desenvolvimento não podem ser tratados separadamente, mas inter-
relacionados. O desenvolvimento integral tem como objetivo “a plena
realização das potencialidades de cada homem e de todos os homens” e é
dependente do progresso econômico e do progresso social mutuamente
(PARANÁ, 1963a, p. 1).
Se por um lado as descrições dos fundamentos teóricos e
metodológicos seguem os preconizados pelo Mouvement Économie et
Humanisme e seu representante mais notável, por outro é possível
identificar nas “diretrizes do desenvolvimento” a ideia de “industrialização
em substituição às importações” (PARANÁ, 1963a, p. 29), uma proposta que
remete à teoria cepalina que, entretanto, estava muito presente no discurso
econômico brasileiro. Mesmo ressaltando que o setor social apresenta
primazia sobre os demais e que estes não são um fim em si, mas um meio

62
Cf. entrevista concedida pelo arquiteto Francisco Whitaker Ferreira em Cestaro, L.
Urbanismo e Humanismo: a SAGMACS e o estudo da “Estrutura Urbana da Aglomeração
Paulistana”. São Carlos: Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo), Escola de
Engenharia de São Carlos/USP, 2009.
Cidade, História e Patrimônio - 131

de promover a elevação dos níveis de vida da população para se chegar ao


desenvolvimento, é reconhecido que o setor social depende do setor
econômico (PARANÁ, 1963a, p.14).
A presença de ambas as vertentes no trabalho elaborado pela
SAGMACS, reflete, primeiramente, a forte influência que as ideias da CEPAL
tiveram no âmbito do planejamento regional devido ao fácil entendimento
estrutural de suas teorias, o que as tornaram bastante convincentes.
Contudo, não daria para dizer que há um ponto consensual nos conceitos de
desenvolvimento de tais vertentes. Isso seria equivalente à afirmação de
que “o desenvolvimento é tido como um processo, ao mesmo tempo em
que depende de mudanças estruturais quando se refere à industrialização
em substituição às importações”. O antagonismo conceitual se deve ao fato
de que a quebra da subordinação histórica entre a periferia e seu centro não
ocorre em etapas sucessivas e passivas conforme a ideia de um processo
linear rumo ao desenvolvimento que estava sendo colocado por Lebret e
sua equipe. Ou seja, à redefinição da condição de periferia não caberia o
princípio de processo referente à identificação da realidade e sua posterior
“classificação” em uma das etapas de desenvolvimento.
Observa-se a coexistência de princípios. Ao mesmo tempo, a
proposta para o desenvolvimento do Paraná também reflete uma certa
autonomia da equipe da SAGMACS com relação ao padre Lebret. O fato de
existir uma penetração do pensamento da CEPAL no incipiente grupo de
planejamento do estado do Paraná, e o posterior aceite e contratação da
SAGMACS para um trabalho que, em tese, deveria ser desenvolvido em
conjunto, demonstra uma flexibilização conceitual entre ambos os grupos.
Especificamente sobre a SAGMACS, os anos que se seguiram à
intensa presença do padre dominicano no Brasil, período entre 1952 e 1958,
foram marcados por uma redução na equipe técnica, diferenciação nas
temáticas e escalas dos trabalhos desenvolvidos, simplificação da
metodologia e inserção de novos termos e conceitos, além do afastamento
de profissionais, sobretudo aqueles que faziam parte da equipe carioca, a
qual apresentava menor vínculo com Lebret. Tudo isso somado vislumbra
uma autonomia da equipe da SAGMACS (ANGELO, 2010), o que, em parte,
pode justificar a aceitação de novos princípios e conceitos adotados no
plano para o Paraná.
132

Esse compasso de mudanças se via também na própria definição de


região presente nos trabalhos da SAGMACS que, após os anos de 1961,
passa a ser definida como um espaço polarizado por centros urbanos, sendo
reconhecido o desequilíbrio interno de cada porção do território, ficando
para trás as zonas homogêneas dos trabalhos desenvolvidos anteriormente.
Ao encontro da polarização do território, a SAGMACS propunha para
o estado a implantação de indústrias motrizes ou indústrias propulsoras do
desenvolvimento. No caso do Paraná, seriam as agroindústrias, o que
surtiria efeito também na agricultura com um possível incremento na
produção.
Mesmo marcando o vínculo com a agricultura do estado, de fato, foi
na implantação da indústria motriz que se desenhou a principal estratégia
para o desenvolvimento. As cidades onde as indústrias se localizariam
seriam pontos catalisadores do desenvolvimento de toda uma região; no
Plano tais cidades foram denominadas de “polos complexos de
desenvolvimento” e naquilo que tange às diretrizes territoriais de caráter
global, constituiriam o foco do planejamento. Os “polos complexos de
desenvolvimento” são capazes de completar o elenco de atividade
econômica da região e, assim, induzir seu desenvolvimento (COSTA, 1966b).
A indicação dos polos de desenvolvimento foi conduzida pela leitura
do território sob o viés da polarização existente. As equipes vinculadas ao
Movimento Economia e Humanismo vinham trabalhando, há muitos anos a
ideia da polarização da vida coletiva em termos territoriais. De fato,
conforme explica Costa (1966a, p.35), “a vida das populações em uma
determinada área é sempre polarizada por núcleos de vida coletiva
definidos em diferentes escalões”.
De modo especial, L. C. Costa destaca o polo urbano (cidade-polo)
como centro de vida coletiva. Devido à capacidade de polarização de
territórios, a cidade-polo é o centro potencial de inovações e
transformações sociais e econômicas, podendo ser aproveitada em sua
influência cultural e econômica para a propagação do desenvolvimento.
“Não se trata de saber se um centro ‘é’ ou ‘não é’ um polo de
desenvolvimento, mas saber como a polarização urbana que exerce pode
ser aproveitada para os objetivos de dinamização do desenvolvimento”
(COSTA, 1966b, p.25-6).
Cidade, História e Patrimônio - 133

A estratégia do plano da SAGMACS para o Paraná se completa com as


linhas de conexão a partir do princípio escrito por Perroux (1967, p.175) de
que “quando dois destes polos entram em comunicação graças a vias de
transporte material e intelectual, extensas transformações se desenham no
horizonte econômico e nos planos de produtores e consumidores”.
O sistema principal do modelo de organização territorial foi definido
por três eixos paralelos no sentido leste-oeste e outro eixo transversal no
sentido norte-sudeste, além das cidades-polos. Os eixos paralelos foram
assim definidos: Jacarezinho-Cianorte, incorporando a densa rede urbana
linear do norte do estado; Ponta Grossa-Cascavel, aproximando o extremo
oeste da dinâmica da região sudeste do estado; e Curitiba-Pato Branco,
construindo uma estrutura na borda dos limites entre Paraná e Santa
Catarina. Cada eixo seria polarizado, respectivamente, por Londrina, Ponta
Grossa e Curitiba, sendo que os limites da área de influência de tais eixos
fracionariam o estado em três grandes porções no sentido norte-sul.
O eixo transversal seria primordial para a integração econômica e
cultural do estado, por promover a amarração entre os eixos paralelos e
destes com a capital. Sua função seria apenas de interligar os polos
principais de cada eixo, Londrina-Ponta Grossa-Curitiba, uma vez que não
constituía uma área de influência da mesma ordem que os eixos paralelos.
As cidades-polos também eram componentes desse sistema principal
do modelo de organização territorial, uma vez que eram responsáveis pela
polarização regional. Vistas como componentes principais da estrutura
territorial paranaense, às cidades de Maringá, Londrina, Ponta Grossa e
Curitiba caberia acumular a função de polos industriais, sendo a primeira um
polo industrial de importância regional e as demais, polos industriais de
relevância estadual (Figura 1).
134

Figura 1: Estrutura territorial proposta para o Paraná, SAGMCAS, 1963

Fonte: Costa (1966a).

Para concretizar esse sistema, o plano previa três intervenções


prioritárias: melhorar as ligações rodoviárias, componente físico de
constituição dos eixos; promover o planejamento nas quatro cidades-polos
focando nas questões eminentemente urbanas e nas funções regionais dos
polos; orientar o desenvolvimento das novas funções do escalão estadual.
De forma complementar, integraria o modelo um sistema de eixos e
polos secundários, articulado ao sistema principal supracitado e constituindo
uma trama mais fina para facilitar a penetração dos fluxos significativos do
crescimento econômico e social por todo o estado: fluxo de pessoas, de
mercadorias, de capitais e de comandos administrativos; e um sistema de
áreas de integração escalonadas, cujo foco era a execução harmoniosa e
organizada em termos territoriais de uma extensa série de programas
econômicos e sociais (COSTA, 1966a, p.37). Também denominado de rede
orgânica de comunidades territoriais (PARANÁ, 1963b, p.1), as áreas de
integração, compostas pelos escalões sub-regional, supralocal e local em
conjunto com as regiões de planejamento, perfaziam uma estrutura
territorial para a implementação do plano e de todo o processo de
planejamento. O escalonamento permitiria uma mobilização social completa
e maior acuidade na aplicação dos programas elencados pelo plano.
Em linhas gerais, a polarização do arranjo espacial presente no plano
do Paraná marca a condição da região como território sob a dominação de
uma cidade, como aquela que “forja sua própria região” (LABASSE apud
Cidade, História e Patrimônio - 135

KAYSER, 1980). Propunha-se uma estrutura territorial para o Paraná


composta por polos de desenvolvimento e linhas de conexão, a qual daria
forma à integração do estado desde o nível estadual até a proposta de
nucleação rural, ao mesmo tempo em que desenhava a descentralização
administrativa e do próprio processo de planejamento em planos
conjugados. Tudo isso partindo do pressuposto de que o plano elaborado
pela SAGMACS considerava o planejamento territorial como suporte para o
planejamento econômico e social, os quais deveriam estar internalizados
nos diversos níveis territoriais para a sua efetivação.

4 DIRETRIZES URBANAS EM CONSONÂNCIA COM O PLANO ESTADUAL

A internalização do planejamento pode ser observada na possível


conjugação entre as escalas dos planos estadual e local, seja de forma direta
ou indireta, como, por exemplo, os planos diretores para as cidades-polos
regionais e a criação de um sistema estadual de financiamento de planos
urbanos respectivamente. O Plano da SAGMACS, por várias vezes, foi
mencionado em planos posteriores, porém pouco lembrado na
historiografia do planejamento paranaense. Suas propostas repercutiram
em ações futuras, nem sempre lhe atribuindo os créditos.
Se as cidades como polos de desenvolvimento eram o destaque do
Plano ao lado da industrialização, foi, portanto, sobre elas que se voltaram
às atenções do planejamento para a implementação do plano estadual. A
partir do Fundo de Desenvolvimento Econômico (FDE/CODEPAR), vários
planos diretores de cidades estratégicas foram financiados. O Plano
Preliminar de Urbanismo de Curitiba (1966), que ficou conhecido
simplesmente como Plano Wilheim, estava entre estes. Além de Curitiba,
foram financiados também os planos das demais cidades-polos industriais
de nível estadual - Londrina e Ponta Grossa - e de nível regional - Maringá -
conforme o Plano de Desenvolvimento do Paraná propunha.
Os planos diretores foram organizados pela Comissão de
Desenvolvimento Municipal (CODEM), criada em 1966 por meio de convênio
entre a CODEPAR e o Departamento de Assistência Técnica aos Municípios
(DATM). As equipes de elaboração dos documentos eram formadas por
técnicos da área de planejamento do estado e a execução do trabalho
136

centralizada na capital Curitiba. Dentre os planos para as cidades do norte


paranaense, o Plano Diretor de Desenvolvimento - Maringá (1967) foi
coordenado pelo economista Carlos Artur Krüger Passos e desenvolvido pelo
arquiteto José Vicente Alves do Soccorro com o apoio de uma equipe técnica
multidisciplinar. Excepcionalmente, o plano diretor de Londrina abordou um
método diferente, próximo ao adotado pela CODEPAR para a elaboração do
plano diretor de Curitiba. A primeira fase do trabalho referente à pesquisa
socioeconômica e urbanística foi realizada por uma equipe contratada pela
CODEM e coordenada pelo arquiteto Jaime Lerner. O documento Londrina:
a situação 66, derivado dessa fase, subsidiou o concurso para um Plano
Preliminar que, em seguida, seria desenvolvido pela empresa vencedora
Asplan - Assessoria em Planejamento, em conjunto com uma equipe de
técnicos locais. Digno de nota, a Asplan era uma empresa especializada em
assessoria, pesquisa e planejamento formada por técnicos que atuavam na
SAGMACS até o final dos anos de 1950.
Para demonstrar a conjugação entre as escalas de planejamento e,
por consequência, a significativa importância atribuída às cidades como
centros propulsores do desenvolvimento no planejamento regional, dois
aspectos conduziram uma breve leitura dos planos diretores de Londrina e
Maringá: o conceitual e o propositivo.
Em seu aspecto conceitual, o plano elaborado pela equipe da CODEM
para Maringá trouxe à tona a questão da polarização do território. O texto
do documento reconhece a estrutura de polarizações urbanas sintetizada
pela SAGMACS no plano do estado e a estrutura territorial proposta no
mesmo plano, conforme descreve a estratégia do desenvolvimento para a
cidade: “sua consolidação urbana progressiva e sua efetiva afirmação como
capital polarizadora da região noroeste do Estado, [conforme] estabelecidas
pela SAGMACS em 1963” (PARANÁ, 1967, p.n251).
A ideia do território polarizado e a identificação de núcleos de vida
coletiva, também foram transpostas do Plano de Desenvolvimento do
Paraná para a escala urbana. O plano de Maringá identificou pontos na
cidade onde se concentrava o comércio de bairro e os denominou de polos
sociais, ou seja, “aqueles espaços físicos que congregam uma série de
serviços de uma parte da comunidade geral, que é a cidade” (PARANÁ,
Cidade, História e Patrimônio - 137

1967, p.128), identificando, inclusive, as áreas por eles polarizadas [(Figura


2).

Figura 2: Polarização da cidade de Maringá, CODEM, 1967

Fonte: Paraná (1967).

A implantação e melhoria de equipamentos urbanos nos polos sociais


os transformariam em polos comunitários, compondo a base física do
processo de desenvolvimento comunitário. Tais descrições estão muito
próximas do conceito de comunidades locais desenvolvido para o Paraná
pela SAGMACS, as quais são classificadas como uma pequena cidade ou um
núcleo rural, ou ainda bairros no caso de cidades maiores, podem ser
considerados comunidades (PARANÁ, 1963b).
A relação entre plano estadual e local é muito mais explícita no caso
de Maringá do que no plano elaborado pela Asplan para Londrina. Dentro
do aspecto conceitual, apenas foi possível identificar o “polo de
desenvolvimento” e, mesmo assim, nas entrelinhas dos objetivos e das
propostas do plano urbano. Contudo, sobre o aspecto propositivo, o plano
da Asplan responde positivamente à função de polo industrial de relevância
estadual delegada à Londrina pelo plano da SAGMACS.
Diante dos objetivos de consolidar Londrina como centro regional de
comércio e cultura para todo o norte do Paraná e de promovê-la como polo
industrial, as diretrizes elencadas foram a implantação de equipamentos em
escala adequada e de fácil acesso para servir à população regional e a
definição da estrutura urbana de Londrina, tendo em vista suas funções e a
138

paisagem regional (Prefeitura Municipal de Londrina, 1968). Fazia parte


também da estrutura urbana uma proposta de zoneamento, mas que não
prefigurava como o item mais importante entre as propostas (Figura 3).

Figura 3: Proposta de uma paisagem regional para Londrina, Asplan, 1968

Fonte: Prefeitura Municipal de Londrina (1968).

Do ponto de vista propositivo, o plano diretor de Maringá, em


consonância com o Plano de Desenvolvimento do Paraná, cujo objetivo era
firmar a cidade como capital polarizadora, considera de particular interesse
as propostas de cunho físico-territorial por serem suportes urbanos ao
crescimento do setor industrial. Diferentemente do aspecto propositivo
contido no plano de Asplan, os itens zoneamento e sistema viário são os de
maior destaque no plano da CODEM para Maringá.
O planejamento territorial foi tido como suporte ao planejamento
econômico e social; o ordenamento do território fazia parte do seu escopo.
Sozinho, o planejamento territorial não subsistiria, a menos que estivesse
integrado ao planejamento socioeconômico da região, isto é, àquele que
condiciona o desenvolvimento funcional da área (COSTA, 1969). Para os
planos urbanos do Paraná, o ordenamento do território estadual se mostrou
de grande relevância no direcionamento das propostas físico-espaciais. O
estabelecimento de funções específicas para determinados núcleos urbanos
dentro do Plano da SAGMACS, sobretudo para as cidades-polos, serviu como
uma espécie de “partido urbanístico” para os planos diretores.
Cidade, História e Patrimônio - 139

5 CONCLUSÃO: CONTRAPONTOS E CONVERGÊNCIAS

A década de 1960 assinalou o início do planejamento estatal


paranaense, cujos fundamentos podem ser caracterizados por contrapontos
e convergências. Os contrapontos são marcados a partir da coexistência de
dois conceitos de desenvolvimento: o desenvolvimento que ocorre por
etapas conformando um processo linear; e o (sub)desenvolvimento como
uma condição histórico-estrutural. Por sua vez, as convergências são
pontuadas pelo modelo de polarização do território e pela industrialização,
que, em conjunto, realçam a cidade como centro propulsor do
desenvolvimento e, por isso, elemento primordial do planejamento.
Os contrapontos são vislumbrados a partir do próprio texto do Plano
de Desenvolvimento do Paraná, mas também a partir da formação das
equipes técnicas da SAGMACS e da PLADEP. No primeiro caso, a
coexistência entre os dois conceitos de desenvolvimento, por vezes derivada
de certa autonomia da SAGMACS com relação ao movimento francês e ao
próprio padre Lebret, não excluiu o pensamento humanista do texto, o qual
se relaciona com a proposta de uma nova estruturação econômica para
alcançar o desenvolvimento, própria dos autores cepalinos.
As convergências culminam na consonância do supracitado Plano de
Desenvolvimento do Paraná e dos Planos Diretores de Desenvolvimento de
Londrina e Maringá; coloca em evidência a importância do planejamento
para o estado na década de 1960 derivada da crença depositada em um
processo técnico que deveria conduzir ao desenvolvimento.
O rebatimento da estratégia estadual nas propostas urbanas para
Londrina e Maringá reafirma o tripé industrialização-polarização-
desenvolvimento e, em menor proporção, da ideia de comunidades locais.
Enquanto a polarização do arranjo espacial era o modelo conceitual adotado
pelo Plano de Desenvolvimento Estadual, a industrialização era a chave para
o desenvolvimento econômico e social. Nessa proposta, a cidade é o
elemento central para o desenvolvimento regional. Ora, se o
desenvolvimento era o objetivo a ser atingido, a cidade era a unidade a ser
planejada para se tornar o centro propulsor desse desenvolvimento. Então,
sob uma perspectiva cartesiana, nada mais racional do que “planejar” e
“desenhar” tais cidades conforme o papel para elas designado pela sua
140

instância superior, numa conjugação hierárquica de escalas de


planejamento.

REFERENCIAL

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142
Cidade, História e Patrimônio - 143

Capítulo 7

CONSTRUÇÃO DA IGREJA MATRIZ NOSSA SENHORA DAS DORES E


DA CAPELA NOSSA SENHORA DA BOA MORTE DE LIMEIRA63
64
Renan Alex Treft
65
Ivone Salgado

1 GÊNESE DA CONSTRUÇÃO DA MATRIZ DE NOSSA SENHORA DAS DORES

A gênese da construção da capela de Nossa Senhora das Dores


situada no sertão do Tatuibi está ligada a presença dos senhores de
engenho, dos moradores locais e da Igreja. Dados da Cúria Metropolitana de
São Paulo apontam que a Igreja concedeu em 1826 a autorização para a
edificação de uma capela sob a invocação de Nossa Senhora das Dores na
região do Sertão do Tatuibi (CARITÁ, 1999, p. 17). O processo para a
edificação desta capela iniciou com o pedido dos moradores do local ao
Capitão Manoel da Cunha Bastos, proprietário da sesmaria do Engenho do
Tatu. Para a edificação desta primeira Capela, em taipa de mão e madeira, o
Senhor Bento Manoel de Barros, o Barão de Campinas, que acabara de se
mudar da cidade de Itu para a cidade da Limeira doou quantias generosas
que se somaram aos donativos da população. Segundo Wilson Caritá, Bento
Manoel de Barros foi um importante benfeitor das obras das Igrejas de
Limeira (CARITÁ, 1999, p. 18).
Com a elevação da Capela da Nossa Senhora das Dores à Freguesia
de Nossa Senhora das Dores do Sertão de Tatuibi, em 1832, por Dom
Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade, Bispo de São Paulo, a pequena
capela passou a abrigar a sede da paróquia ali criada, sendo empossado

63
Trabalho apresentado e publicado nos anais do III Simpósio Científico do ICOMOS Brasil com
o título: De Capela a Catedral: As transformações da Igreja Nossa Senhora das Dores de Limeira,
revisto e adaptado para esta publicação.
64
Arquiteto pela FAU PUC Campinas, Mestrando da FAUUSP. E-mail: renan.treft@usp.br
65
Doutor, Professora Titular da PUC Campinas. E-mail: salgadoivone@puc-campinas.edu.br
144

como primeiro pároco o Padre Antônio Martinho Barreto. A capela primitiva


foi construída em 1826 e quando se transformou em matriz da freguesia,
em 1832, não recebeu reformas substanciais. O edifício se localizava no
Largo da Matriz e foi demolido em 1872. A nova Matriz foi construída entre
1872 e 1876, na mesma praça da antiga matriz, ocupando a área acima da
antiga edificação. Todavia, manteve a orientação com sua fachada voltada
para o norte (CARITÁ, 1998, p. 19).
A partir de 1844, quando a freguesia de Nossa Senhora das Dores do
Sertão do Tatuibi fora elevada a Vila de Limeira, a Câmara empreende
esforços junto ao governo provincial para obter recursos para a construção
da nova matriz. Em 17 de janeiro de 1845, a Câmara envia um ofício ao
governo provincial justificando a necessidade do pleito. Nesta solicitação é
destacado o parecer do chefe da terceira sessão dos engenheiros da
Província, José Porfirio, (CARITÁ, 1998, p. 78) indicando que a construção
estava propicia a “cahir....” e condenando a sua reforma. O pedido que fora
encaminhado relatando a pequena proporção e frágil estrutura da
construção foi negado pelo governo provincial. Durante anos, a Câmara
Municipal de Limeira, juntamente com a Fábrica da Matriz realizou uma
captação de recursos para as obras. Em 10 de janeiro de 1848, a Lei
provincial nº 14 regulamenta a cobrança da capitação de recursos para a
construção da Matriz de Limeira. Os moradores deveriam contribuir com
este tributo com o risco de serem intimados judicialmente caso não o
pagassem. Mesmo assim, o vigário José Gomes Pereira da Silva procurava
levantar recursos junto aos cidadãos abastados e inicia a discussão sobre a
demarcação do terreno. Todavia, como não se conseguia as condições
necessárias para a nova empreitada, em 1852, o padre José Joaquim Pereira
da Silva arrecadou importante valor junto aos moradores e ao governo
provincial decidindo por executar melhorias no antigo edifício. Conforme
Busch, o reverendo providenciou a substituição do madeiramento
deteriorado, utilizando madeira de lei, além de forrar a capela mor e
assoalhar o corpo da Igreja, após aumentá-la 70 palmos de comprimento,
colocar novos sinos e consertar os antigos (BUSCH, 2007, p. 237; CARITA,
1998, p. 101).
Cidade, História e Patrimônio - 145

2 A NOVA IGREJA DA NOSSA SENHORA DA BOA MORTE

No ano de 1856, um grupo de senhores de engenho e importantes


figuras públicas da vila passaram a se reunir na Igreja Matriz e criaram a
Irmandade Nossa Senhora da Boa Morte e Assumpção. Dentre eles notórios
senhores de engenho e da elite cafeeira local, como José Ferraz de Campos,
o Barão de Cascalho e o Bento Manoel de Barros, o Barão de Campinas, o
mesmo que ajudara a construir a primitiva capela de Nossa Senhora das
Dores, em 1826 (CARITÁ, 1999, p. 106).
Em 1858, Bento Manoel de Barros, o Barão de Campinas, comprou
um terreno distante da matriz para que a Irmandade pudesse construir sua
igreja e, devido à grande influência dos membros da Irmandade, obtiveram
o aval da Diocese de São Paulo para a edificação da nova igreja de Nossa
Senhora da Boa Morte e Assumpção. Esta igreja seria construída duas
quadras acima da Matriz e a construção da sua capela mor começou no
mesmo ano de 1858. A construção foi financiada pelos membros da
irmandade que cederam seus escravos para dedicação integral à edificação
do templo. A técnica empregada foi a da taipa de pilão. As paredes de 90 cm
de diâmetro já causavam um estranhamento na cidade, uma vez que a
Igreja Matriz possuía pequenas paredes de taipa de mão. (ROSADA, 2010, p.
131)

Figura 1: Fachada da Igreja da Boa Morte no desenho de Júlio Arouche para a Revista Archivo
Pittoresco sobre a versão do projeto de Aurélio Civatti

Fonte: Acervo da Igreja Boa Morte


146

O projeto inicial foi concebido pelo vereador da cidade e possível


membro da Irmandade, Francisco José de Araújo Lima. Quando a capela mor
já estava coberta e as paredes do corpo da igreja estavam em andamento,
Bento Manoel de Barros, Barão de Campinas, contrata o arquiteto florentino
Aurélio Civatti para a continuidade do projeto e execução dos entalhes e
altares da Igreja.
Em 1867, a Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte é finalmente
inaugurada. Nesta ocasião, o Barão de Campinas, maior empreendedor na
edificação do templo, lavra em cartório uma ata doando o terreno da Igreja
a Irmandade, além de alfaias e imagens. Quanto ao projeto de arquitetura
pode-se dizer que ele possuía eximia beleza, com duas torres laterais, um
grande frontispício triangular e uma porta central, além de largos beirais
característicos da arquitetura em taipa.
Com a grande notoriedade dos membros da Irmandade, dois anos
após a inauguração da sua igreja, a Nunciatura Apostólica, no papado de Pio
IX, eleva a irmandade ao grau de Confraria, o que lhes conferiam diversos
direitos. Neste momento, devido a situação precária em que se encontrava
a Igreja Matriz, foi feito um pedido junto ao governo diocesano para
transferir a Matriz de Limeira para a Capela de Nossa Senhora da Boa Morte,
pedido este que foi negado pela diocese (ROSADA, 2010, p. 134)

3 UMA NOVA MATRIZ PARA LIMEIRA

Com o passar do tempo e o crescimento da cidade, o edifício da


Igreja Matriz Nossa Senhora das Dores continuou a gerar mal-estar na
cidade devido a sua tosca arquitetura que contrastava com a suntuosa nova
Capela de Nossa Senhora da Boa Morte. Conforme consta nos relatos do
Livro Tombo, ela... “era uma igreja tosca e de madeira barroteada. Era
chocante então ver a Igreja Matriz, a que deveria ser a primeira em arte e
beleza, muito inferior a filial” (CARITÁ, 1999, p. 106). Iniciam-se neste
momento, discussões na câmara dos edis para a construção de uma nova
Igreja Matriz, uma vez que esta era o símbolo da vila e da elite local e
deveria portar boa arquitetura para mostrar a pujança das terras
limeirenses.
Cidade, História e Patrimônio - 147

Em 26 de novembro de 1871, após pequenos reparos na já


desgastada Matriz, Bento Manoel de Barros, o Barão de Campinas,
novamente intervém em favor da Igreja, oferecendo à câmara municipal os
recursos necessários para reconstruir a Matriz da cidade.

[...] e ameaçando grande ruina a mesma Matriz, vem


respeitosamente o suppe oferecer reconstruir com toda a solidez e
aceio as espenças suas e não podendo fazer sem consentimento para
esse fim [...]. (LIVRO DE ATAS DA CAMARA, 1880, 56v).

Com a aprovação da câmara da proposta de Bento Manoel de Barros,


a sede paroquial passou para a Igreja da Boa Morte, em 1871, para que se
fossem dados os devidos procedimentos para as obras da nova matriz. Em
28 de janeiro de 1872, a câmara manda a comissão de obras da nova matriz
marcar o terreno onde ela deveria ser edificada, atrás da primitiva, fazendo
costas com a rua do Comércio (atual Rua Doutor Trajano). Com a idade
avançada e bastante doente, o Barão de Campinas entrega a missão de
edificar e concluir a igreja a seu filho, Pedro Antônio Barros e ao arquiteto
italiano Aurélio Civatti, cujo contrato foi assinado na Câmara Municipal de
Limeira em 3 de março de 1872.
A pedra fundamental da Nova Matriz Nossa Senhora das Dores, sob a
qual deveria repousar o novo e suntuoso templo foi colocada no dia 7 de
abril de 1872. No final do mesmo mês iniciou-se a construção da nova Igreja
Matriz, em tijolo, argamassa e cal, um edifício de grandes proporções, com
28 metros na sua fachada e 45 metros na sua lateral. Em 7 de dezembro do
mesmo ano, quando a construção estava pela metade, falece o grande
benfeitor, o Barão de Campinas, deixando em testamento cem contos de
réis a seu filho para a conclusão da edificação do templo.
O projeto de Aurélio Civatti apresentava grande beleza e ousadia,
possuía duas torres em sua fachada, assim como a Capela da Boa Morte e
um frontão triangular sobre um galilé marcado por três grandes arcos que
convidam a entrada pelas três grandes portas. Em sua planta é possível
notar a presença de um transepto lateral, formado pela presença de uma
colunata. A Capela Mor e seu presbitério são ladeados por duas capelas
destinadas a devoções populares.
148

Figura 2: Igreja Matriz no final do séc. XIX.

Fonte: Arquivo Catedral Nossa Senhora das Dores

A conclusão da construção da nova Igreja se deu no ano de 1876. Na


época, Limeira contava com 14.283 habitantes, sendo 3.059 escravos, 293
fogos e 33 eleitores, segundo dados do censo provincial. Neste mesmo ano,
a Paróquia Nossa Senhora das Dores, antes mesmo de ser inaugurada,
recebeu no mês de janeiro a visita pastoral do então bispo de São Paulo,
Dom Lino Deodato Rodrigues de Carvalho que em seu relatório da visita,
relata a suntuosidade e a beleza do novo templo que deveria servir a Matriz
paroquial (CARITÁ, 1998, p. 129).
O novo edifício construído na parte superior do largo da Matriz gerou
uma via de circulação que cortava o antigo largo, a atual Rua Barão de
Campinas. Neste mesmo ano, a Cúria de São Paulo autorizou a benção da
nova igreja matriz e a sua inauguração, que graças à presença da Cia Paulista
de Estrada de Ferro contou com cerca de 4000 pessoas vindas de Rio Claro e
Campinas. A cidade foi ornamentada para o acontecimento, mandou-se
abrir a rua que ligava o largo da Matriz com a estação e as casas foram
enfeitadas pelos moradores para o acontecimento que foi destacado no
Jornal “A Província de São Paulo”, de 13 de junho de 1876:

[...] diz o Limeirense que deve inaugurar-se dia 8 de setembro


próximo futuro a Igreja Matriz desta cidade, feita as expensas do
Barão de Campinas e cujas obras tem sido dirigidas por seu filho, o Sr.
Pedro de Barros. O novo edifício destinado ao culto da sublime
Cidade, História e Patrimônio - 149

religião, é vasto, espaçoso e talvez o mais elegante da província


atualmente. (A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, apud: CARITÁ, 1998;
129).

Segundo relatos da época, o edifício era marcante, os púlpitos em


forma de concha, o trono, o altar mor, seus entalhes e florões executados
em madeira de cedro foram destacados com grande qualidade pelo
Jornalista Candido José Soares, em seu histórico sobre a Igreja Matriz,
(CARITÁ, 1998; 131) além de sua maravilhosa estrutura de largas paredes de
tijolos, cimento e cal, que impressionava a todos.

3 REFORMAS PARA A MATRIZ DE LIMEIRA E PARA A IGREJA DE NOSSA


SENHORA DO BOA MORTE

Em 1876, a Capela da Boa Morte, que fora construída com técnica


avançada e materiais nobres, começou a apresentar problemas apenas 12
anos depois de sua conclusão. O edifício começou a dar sinais de recalque
em sua fundação, principalmente na sua fachada principal, onde o
frontispício e as duas torres ameaçavam ruir. No ano de 1880, o arquiteto
Francisco de Paula Ramos de Azevedo elabora dois projetos de frontispício.
Um para a Igreja da Boa Morte e um para a Igreja Matriz (figuras 3 e 4),
ambos previam o encamisamento de tijolos e a construção de uma torre
central, tal como o arquiteto realizara nas Matrizes de Campinas e Itu, além
de acrescentar uma série de ornatos e elementos que reconfigurariam a
fachada principal das mesmas, transformando-as em edifícios de estilo
eclético. Os projetos, porém, não foram executados.
A confraria da Boa Morte contrata neste período uma comissão
técnica, comandada por I. H. Girard que constatou inúmeros problemas na
estrutura da Capela. Os problemas de fundação foram resolvidos com o
enxerto de pedras e tijolos, porém os demais problemas, como o do peso
das torres e do frontispício, cuja solução dada pela equipe, a demolição, não
foi realizado. Em 1882, a Câmara Municipal deliberou um pedido
oficializando a Confraria sobre o estado do frontispício e exigindo seus
reparos: “exigindo que dê providencias para evitar qualquer desastre
proveniente do estado de ruinas .... no frontispício e a parede lateral direita
do Templo da Confraria! ” (LIMEIRA, 1880-1884:77). Novamente, em 1885, a
150

Câmara Municipal volta a notificar a confraria exigindo reparos no templo


que ameaçava ruir sobre os que ali passavam (ROSADA, 2010, p 139).

Figura 3: Projeto de Ramos de Azevedo Figura 4: Projeto de Ramos de Azevedo para


para a Igreja da Boa Morte a Igreja Matriz de Limeira

Fonte: Biblioteca FAU USP - Setor de Plantas Fonte: Biblioteca FAU USP - Setor de Plantas

O problema, porém, só é resolvido em 1893, quando o fazendeiro


Ernesto Mugnani, encarregou-se de financiar dois terços do novo
frontispício de tijolos (ROSADA, 2010, p. 141). Neste mesmo ano, o
frontispício foi totalmente demolido e um novo foi construído. O
encamisamento de tijolos da nova fachada respeita o corpo e o desenho do
antigo projeto, quanto à posição da porta central e das janelas, porém muda
totalmente ao assumir um frontão semicircular em forma de coroa, modelo
inusitado que faz a Igreja da Boa Morte um exemplar único. O antigo,
projetado por Aurélio Civatti, se aproxima da linguagem neoclássica,
enquanto a nova versão assume características do ecletismo.
É possível que junto a essa grande reforma a Confraria realizou
outras intervenções e adaptações no templo, como a remoção dos antigos e
largos beirais e a colocação de platibandas, alterações substanciais que não
Cidade, História e Patrimônio - 151

estão documentadas. Os beirais eram essenciais para as construções de


taipa, uma vez que a água é sua maior inimiga (ROCHA, 1988: 7), tais
medidas devem ter sido adotadas devido ao código de posturas e as
medidas sanitaristas que proibiam o despejo de águas de chuva diretamente
nas vidas públicas (ROSADA, 2010; 146)
Depois da construção da Igreja Matriz, a mesma passou bom tempo
sem exigir grandes intervenções. Documentos paroquiais confirmam que,
neste período, apenas foram feitas as manutenções corriqueiras, como
pintura e substituição de partes danificadas pelas intempéries climáticas. O
Pe. Humberto dos Santos realiza em 1906 um levantamento de fundos para
o ladrilhamento da capela do Santíssimo e reforma exterior da Matriz. No
ano seguinte, o então pároco, Cônego Araújo Marcondes, celebra um
contrato com o artista piracicabano Joaquim Miguel Dutra para realizar
pinturas de embelezamento no interior da Matriz e também no interior da
Capela da Boa Morte. A conclusão das pinturas foi no ano de 1908, dois
anos antes das Igrejas receberem a instalação de energia elétrica (1910).
CARITA,1998; 171)
Em 1925, a Igreja da Boa Morte passa por obras de melhorias e
adequação, inicia-se a substituição do antigo assoalho de madeira por
modernos pisos hidráulicos. No altar principal, faz se uso de mármore e a
antiga grade de comunhão de madeira é substituída por uma de mármore
(CARITÁ, 1998; 23). Novamente em questão, a decoração pictórica passa a
ser alterada no ano de 1927, quando o artista Ângelo Perillo realiza pinturas
de estêncil na parede, bastante utilizadas na época, além de desenhar a
imagem de Nossa Senhora da Assunção no teto da capela mor (ROSADA,
2010; 147).
Ainda preocupado com a questão do edifício da Igreja Matriz, o
pároco, Pe. Elias Fadul, em 1928, chama então o arquiteto Agostinho Balmes
Odisio (ROSADA, 2010; 234) para estudar uma melhoria para o edifício que
completava 52 anos de inauguração. O novo projeto propõe conservar
apenas as linhas gerais das paredes e o resto desaparecia por completo. Em
1 de julho de 1929 as plantas são aprovadas e a reforma e expansão da
Igreja Matriz são viabilizadas (CARITÁ, 1998, p. 173).
152

Figura 5: Projeto de Agostino Balmes Odisio para a Matriz de Limeira de 1928, que não fora
executado totalmente, apenas a parte das capelas e sacristia. Desenho do Roberto Capri,
publicado na Revista São Paulo de 1928.

Fonte: Arquivo Catedral Nossa Senhora das Dores

A reforma - cuja pedra fora abençoada por Dom Barreto - Bispo


Diocesano, iniciou-se com a demolição das velhas sacristias, da capela mor e
da capela do santíssimo. Devido a aderência da população local a
empreitada e o grande potencial financeiro da cidade - o maior centro
citrícola do país na época - em 1930, o primeiro trecho da reforma da Igreja
Matriz de Limeira encontrava-se pronto.
Porém, os massivos investimentos na primeira fase do projeto
fizeram com que o mesmo sofresse com a ausência de recursos para sua
conclusão, sendo assim abandonado. Os antigos altares entalhados de
Civatti foram removidos e foram construídos novos de cimento no lugar -
sem ornamentação alguma - o que gerou desconforto na população local, e
que liderada por um grupo de zeladoras do Apostolado da Oração lançaram
uma campanha para arrecadação de fundos para o embelezamento e
conclusão das obras da Matriz, ao menos no trecho em que havia sido
executado. Em 25 de junho de 1933 o então bispo diocesano Dom Barreto
Leme, abençoa e consagra o novo altar ainda em obras. (CARITÁ, 1998,
p.176)
Cidade, História e Patrimônio - 153

O trecho construído passou a ser chamado de Santuário do Coração


de Jesus e do Santíssimo Sacramento. Conforme iam-se colocando os novos
entalhes em mármore e bronze e as pinturas iam sendo executadas, o local
foi se tornando de eximia beleza arquitetônica e sacra. A riqueza de detalhes
conquistou a população local, principalmente a capela do santíssimo que
fornecia uma verdadeira catequese eucarística em esculturas e pinturas
(CARITA, 1998, 177).
No ano de 1936, o templo parcialmente reformado é entregue à
população com grande festividade e celebrações juntamente com a visita
pastoral do bispo diocesano.

4 OS PROJETOS DE MARIO PENTEADO PARA A MATRIZ DE LIMEIRA: ENTRE


O NEOGÓTICO E O NEOCOLONIAL

A estrutura da parte da Igreja Matriz que não fora reformada


anteriormente era motivo de preocupação para o novo pároco, Cônego
66
Manoel Alves, que em 1940 contrata o arquiteto Mario Penteado para a
elaboração de um projeto para a nave e a fachada principal, que deveria
aproveitar-se da parte que já havia sido remodelada. Em carta endereçada
do bispo de Campinas, Dom Paulo de Tarso Campos, 8 anos depois, Mario
Penteado relata que o primeiro projeto que fora concebido apenas para a
manutenção do templo e seu embelezamento, respeitando a área primitiva
construída não foi executado em parte alguma. (PENTEADO, 1948, p.1)
O projeto que assumia linhas do neogótico, foi concebido em um
período onde uma série de edifícios religiosos eram reformados ou
reconstruídos neste estilo.

66
Mario de Camargo Penteado (Campinas, 1905 – 1984). Possuía dupla formação (engenheiro-
arquiteto) pela ENBA (Escola Nacional de Belas Artes), quando Lúcio Costa era o diretor. Após
se formar em 1931, fixa escritório em 1934 na cidade de Campinas, onde realiza diversas obras
do segmento moderno, art deco e especialmente neocolonial. Construiu inúmeras residências
para a elite no Bairro Cambuí e inúmeros edifícios públicos na região.
154

Figura 6: Fachada do primeiro projeto

Fonte: Acervo Mario Penteado - CAD PUC Campinas

Em 1948, o arquiteto é novamente chamado a Limeira, pelo agora


então pároco Pe. Rafael Roldan para analisar o templo e remodelar o
projeto anteriormente produzido. Penteado, mantem o estilo neogótico
como no primeiro projeto, porem sugere uma expansão do templo. O
projeto passa agora a ter mais ornamentos e maiores proporções, assume
de fato as características da arquitetura neogótica, portando duas
grandiosas torres com pináculos, além de inúmeras agulhas e rendilhados.
As portas passam a ter em sua ornamentação esculturas esguias de figuras
bíblicas e uma grande rosácea é colocada na fachada principal, além disso as
paredes do presbitério são ancoradas por grandes arcos botantes e seus
contrafortes. É valido lembrar que por se tratar de um revival, tais
elementos são puramente estéticos, não assumiam funções estruturais,
principalmente por serem construídos na parte das capelas, esta deveria ser
mantida da reforma 1930.
Quando se iniciaram as obras de reforma da Matriz, o arquiteto
Mario Penteado observa que até mesmo a parte que havia sido reformada
encontrava-se comprometida estruturalmente e explana a situação a
comissão de obras da Matriz, que juntamente com o pároco avalia as
informações. Com a expansão da cidade de Limeira, o poder eclesiástico
estudava um possível desmembramento territorial na região, criando assim
Cidade, História e Patrimônio - 155

uma diocese. Sendo assim, o pároco e a população resolvem demolir toda a


antiga Matriz para edificar templo maior. Na carta ao bispo diocesano, de 28
de março 1952, Penteado afirma que não se encontra na igreja nenhum
bem de valor arquitetônico e artístico e que prevendo futuros usos, decidiu
executar um terceiro projeto, abandonando os antigos neogótico e partindo
para outro - o neocolonial - estilo difundido por ideais preservacionistas do
início do século cujo intuito era de reproduzir uma arquitetura
exclusivamente brasileira. (PENTEADO, 1948, p.1) O novo projeto passa a ter
um porte maior, além de abrigar um centro pastoral e administrativo. A
nova matriz começou a ser construída no ano de 1952, após a total
demolição do antigo edifício. Novamente a Igreja da Boa Morte passa ser
Matriz provisória.

Figura 7: Fachada do segundo projeto

Fonte: Acervo Mario Penteado - CAD PUC Campinas

O projeto neocolonial de Penteado agradou a população local e ao


novo pároco, uma vez que a nova igreja apresentava estrutura para
concorrer futuramente para ser a sede de uma igreja catedral. Seu formato,
suas aberturas e entalhes, a presença de largos beirais e de falsos balcões
no andar superior com balaústres e as cores escolhidas, revelam o cuidado e
o estudo do arquiteto na reprodução desta arquitetura e que, segundo
Atique, se enquadra no estilo neocolonial missões ostentando uma fusão de
estilemas luso-brasileiras e hispano-americanos (ATIQUE, 2010, p.266).
156

Figura 8: Fachada do 3 projeto Figura 9: Fachada lateral do terceiro projeto


desenvolvido - Neocolonial

Fonte: Acervo Mario Penteado - CAD Fonte: Acervo Mario Penteado - CAD PUC Campinas
PUC Campinas

A Igreja Matriz foi inaugurada em 1970 sem os acabamentos


externos (ROSADA, 2010, p.238) e em 1976 foi instalada a Diocese de
Limeira. Os demais ornamentos externos foram colocados na Igreja no ano
de 1990, porém nem tudo foi executado conforme o projeto original. Devido
ao Concilio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), mudanças são realizadas no
espaço litúrgico, principalmente no altar principal de acordo com a nova
liturgia. O altar assume a posição central e descolado da parede, a grade de
comunhão deixa de existir, e concomitante a isso, os altares laterais não são
executados.

Figura 10: Planta do terceiro projeto

Fonte: Acervo Mario Penteado - CAD PUC Campinas


Cidade, História e Patrimônio - 157

Já a Capela da Boa morte, enfrentou diversos problemas técnicos e


estruturais, alguns muito difíceis de serem corrigidos. A confraria, que se
mantem até hoje, teve de combater inúmeras infestações de insetos
xilófagos, além do desprendimento de rebocos e o problema do peso das
torres, que tiveram de ser atirantadas para se sustentarem. Em 1988, parte
da parede lateral da Igreja ruiu devido à infiltração de água das calhas
instaladas com a colocação da platibanda, além de toda a fundação da igreja
estar comprometida devido ao recalque do movimento dos carros das ruas
ao redor, na região central de Limeira. O seu tombamento foi promulgado 9
67
de dezembro de 2016 pelo Condephali

Figura 11: Catedral Nossa Senhora das Dores em 2015.

Fonte: Acervo do Autor

67
Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico e Arquitetônico de Limeira
158

Figura 12: Igreja da Boa Morte em 2015

Fonte: Acervo do Autor

A atual Catedral, recebeu ainda inúmeras intervenções, como a


instalação de tapumes no campanário, novas pinturas e principalmente a
reforma do presbitério e a construção da cripta na Capela São José (2005-
2006), reformas realizadas para adequação do templo a elementos
característicos de uma Igreja Catedral. Tais reformas desfiguraram em parte
o projeto original e o estilo arquitetônico. Em 2017 são realizadas novas
intervenções no interior e no exterior do edifício, completando-se partes do
projeto que não foram realizadas e criando elementos e decorações. A
Catedral Diocesana não foi até os dias atuais objeto de nenhuma ação de
tombamento junto aos órgãos competentes e segue sendo modificada,
recebendo camadas de intervenções que desfiguram o edifício neocolonial
da década de 50.

5 CONCLUSÃO

O estudo das construções religiosas de uma cidade do interior


paulista permite entender aspectos significativos da gênese e formação de
muitas cidades brasileiras. Desde o Brasil Colônia, a intrínseca ligação entre
a Igreja e a Coroa criou um sistema onde o edifício da Igreja assumia uma
Cidade, História e Patrimônio - 159

característica pública e extremamente necessária para uma nova formação


urbana.
No caso de Limeira, uma cidade criada no Império, a Igreja Matriz,
entregue a devoção de Nossa Senhora das Dores na sua origem, acaba
sendo desprestigiada por uma nova Capela, em devoção à Nossa Senhora da
Boa Morte, de eximia beleza e qualidade, um importante exemplar de
arquitetura religiosa barroca construída em técnica de taipa de pilão e
edificada sob encargos de importantes senhores locais, que não queriam
partilhar o mesmo espaço sagrado com os escravos e planejaram uma
segregação sócio espacial dos espaços religiosos de Limeira.
Porém, a Igreja local não quis abrir mão do status de Matriz do seu
primeiro oráculo, dedicado à Nossa Senhora das Dores, pois não queriam
desvalorizar o território do patrimônio religioso pertencente à Igreja no
entorno da matriz. Portanto, a Igreja não aceitou colocar em xeque a
condição de matriz deste edifício, como queriam os grandes senhores
latifundiários de Limeira. Esta disputa fez com que a Matriz de Limeira
passasse por diversas reformas e obras de melhoria para seu
embelezamento e ampliação, para que pudesse acompanhar o crescimento
e o desenvolvimento da cidade. Neste processo, é importante salientar a
presença de grandes nomes da arquitetura paulista dando sua contribuição
para Limeira, como o notório Engenheiro-Arquiteto Ramos de Azevedo,
responsável por inúmeras obras ecléticas nas cidades paulistas, que
executou um projeto de fachada para as duas Igrejas, muito similar aos seus
demais projetos religiosos, como a Catedral Metropolitana de Campinas, a
Matriz de Itu e a Catedral de Lorena.
Neste contexto de obras realizadas para a Igreja Nossa Senhora das
Dores, destaca-se também os projetos realizados por Mario Penteado,
importante arquiteto campineiro formado pela ENBA (Escola Nacional de
Belas Artes) que abrem margem para a discussão do cenário arquitetônico
do momento, uma vez que o mesmo propõe em primeira estância dois
projetos neogóticos, alinhados com a produção difundida pela modernidade
arquitetônica, evidenciados no ecletismo. Por fim, o projeto que fora
construído, grande templo de caráter neocolonial, abre uma discussão com
os valores ensinados em sala de aula na época, incluindo a presença de
referências a outros países, como o caso do estilo missões que fora por ele
160

empregado em Limeira. Outro debate que estes projetos geraram é aquele


relativo à preservação do patrimônio colonial brasileiro, através da criação
de uma arquitetura neocolonial, supostamente genuinamente brasileira,
movimento no qual se envolveram grandes nomes da arquitetura como
Ricardo Severo e Lúcio Costa, além do escritor Mário de Andrade.
Considera-se, portanto, o estudo do edifício da Igreja Matriz de
Limeira como objeto de significativa relevância por revelar características
sobre a formação urbana e guardar a memória local. O estudo colabora para
o entendimento da historiografia da arquitetura, uma vez que a construção
e reconstrução do edifício, assim como a construção de seu concorrente,
revelam a história social de uma cidade do interior paulista mimetizada num
debate sobre a arquitetura.

REFERENCIAL

AROUCHE, Júlio de. A Igreja Nossa Senhora da Boa Morte, na cidade de Limeira, Provincia de
São Paulo, In. Archivo Pitoresco, Semanario ilustrado.9º anno. V.9, Lisboa: Editores Castro
Irmãos e Cª, 1866, p. 207-8.
ATIQUE, Fernando. Arquitetando “A boa vizinhaça”: arquitetura, cidade e cultura nas relações
Brasil-Estados Unidos – 1876-1945. Pontes Editora, Fapesp, São Paulo, 2010.
BUSCH, Reynaldo Kuntz. (2007). História de Limeira. 3 ed. Limeira: Sociedade Pró-Memória
CARITÁ, Wilson José. (1998ª). A Igreja Nossa Senhora das Dores de Limeira. Limeira: Sociedade
Pró Memoria de Limeira
CARITÁ, Wilson José. (1998ª). Breve histórico da Confraria de Nossa Senhora da Boa Morte de
Limeira. Limeira: Sociedade Pró Memoria de Limeira
LIMEIRA, Câmara Municipal de. Livro de Vendas de Terras da Câmara. (1875). Limeira: Câmara
Municipal
PARÓQUIA, Nossa Senhora das Dores. Livro Tombo II (1870-1903), Livro Tombo III (1905 –
1914), Livro Tombo IV (1914 -1921), Livro Tombo V (1921 – 1949), Livro Tombo VI (1949 -).
Limeira
PENTEADO, Mario. Carta ao Bispo Diocesano de Campinas. Cúria de Campinas, Campinas, 1952.
ROSADA, Mateus. Igrejas paulistas da colônia e do império – arquitetura e ornamentação. Tese
de Doutorado, Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São
Carlos, 2016.
ROSADA, Mateus. Sob o signo da cruz: Igreja, Estado e secularização (Campinas e Limeira 1774
– 1939). Dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo, Escola de Engenharia de
São Carlos, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2010, 293 p.
Cidade, História e Patrimônio - 161

ROSADA, Mateus. A taipa, o templo o tempo: A Igreja da Boa Morte de Limeira.


https://www.academia.edu/7587802/A_Taipa_o_Tempo_o_Templo_A_Igreja_da_Boa_Mo
rte_de_Limeira_SP. Acessado em: 05 de fevereiro de 2017.
ZAKIA, Silvia Amaral Palazzi. Mario Penteado: Arquiteto e Obra. Dissertação de Mestrado em
Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, Pontifícia
Universidade Católica de Campinas, Campinas, 2004.
162
Cidade, História e Patrimônio - 163

Capítulo 8

METODOLOGIA DE ANÁLISE ESPACIAL PARA REABILITAÇÃO DE


EDIFÍCIOS DO PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO
68
Samir Hernandes Tenório Gomes

1 INTRODUÇÃO

Em relação aos processos de análises e reutilizações de edifícios


ferroviários paulistas, em primeiro lugar, geralmente apresentam soluções
projetuais desconectadas do contexto territorial-urbano existente. São
propostas desfragmentadas e descontextualizadas da lógica funcional de
rede, levando a uma percepção reducionista dos conjuntos de bens
constituintes deste patrimônio relevante. Tais iniciativas têm provocado
distorções capazes de desconsiderar os sistemas de paisagens industriais, as
estruturas urbanas mais relevantes e as conexões entre cidades e conjuntos
construídos. Tais intervenções permitem uma série de impactos negativos
no espaço urbano existente, erros nas transferências de posse de edifícios,
projetos arquitetônicos inadequados, dentre outros. Observamos neste
contexto, tais desarticulações desqualificam a discussão urbanística contida
nas questões de preservação e anulam uma análise interescalar dos
processos de reabilitação como parte da discussão mais ampla sobre os
planos, projetos e políticas urbanas. Quanto a esse tema, Kühl (2010), em
seu estudo a respeito dos processos de intervenções projetuais desses bens
culturais destaca: (a) – na maioria dos casos, as intervenções, protegidas ou
não por lei, ignoram a ideia de conjunto construído e operam ações
isoladas; (b) – com frequência, pelo desconhecimento relacionado às
informações que caracterizam os edifícios, as propostas arquitetônicas
operam sistemas fragmentados, usos indevidos em espaços abertos,
descontinuidade espacial e obstruções nas configurações das edificações; (c)

68
Professor Assistente Doutor, Unesp Bauru. samir.hernandes@unesp.br
164

– com o foco primordial no interesse cultural, objetivando a valorização da


imagem das instituições envolvidas no resgate patrimonial, as intervenções
têm deixado de lado os aspectos simbólicos, formais, documentais e
testemunhais.
É importante destacar que nos quesitos vinculados aos aspectos
arquitetônicos das intervenções do patrimônio ferroviário existentes,
convivem divergências entre o programa inicial e o projeto finalizado, usos
imprevistos dos espaços, má planificação, projetos obsoletos pelo tempo
transcorrido, deficiências na execução dos projetos ou dos programas,
espaços com problemas funcionais relacionados à iluminação, conforto,
mobiliário e problemas de acessibilidade. Muitos dos problemas
enfrentados hoje estão relacionados ao uso equivocado de instrumentos de
análise, transformando projetos de reabilitação em ambientes ineficientes,
como por exemplo, áreas reduzidas nas áreas administrativas, má
distribuição do mobiliário e pouco espaço de circulação, demonstrando
tanto o desequilíbrio na organização dos tipos de usos, quanto dificuldades
de prover acesso à todos os edifícios reconvertidos. Por outro lado, a
percepção do usuário no tocante aos espaços que lhe são ofertados é
extremamente deficitária, reforçando que a adoção de sistemas de análises
confiáveis e coerentes, poderiam representar uma das principais
prerrogativas a serem utilizadas.
Fato complicador são as questões dos levantamentos e inventários
dos edifícios ferroviários paulistas. Os poucos levantamentos existentes do
patrimônio ferroviário dispensam análises territoriais coerentes, deixando
de fora informações valiosas quanto ao entorno imediato, tecido da cidade
e trama urbana. Além disso, os levantamentos ignoram dados relativos à
infraestrutura existente das edificações, representados pelos elementos de
abastecimento de água, telefonia, rede elétrica, redes de gás, internet, bem
como informações vinculadas do edifício frente à municipalidade, a
qualidade de vida e as demandas dos usuários. Os levantamentos
patrimoniais formatados desta forma impedem uma avaliação correta
desses ambientes na realidade atual, além de problemas vinculados aos
principais impactos em termos de usos, satisfação de usuários e eventuais
demandas existentes. As investigações desenvolvidas no contexto das
informações existentes do patrimônio ferroviário paulista, expõem um
Cidade, História e Patrimônio - 165

quadro preocupante: a documentação das empresas ferroviárias é escassa,


de difícil localização ou, se encontrada, está pouco organizada. Não é
demais afirmar que, as principais bibliotecas e centros de memória que
trabalham com o tema de inventários lutam com enormes dificuldades,
sobretudo com relação à falta de pessoal qualificado, instalações físicas
inadequadas e descaso dos organismos governamentais. Além disso,
problemas estruturais têm sido enfrentados em termos de falta recursos
materiais e financeiros e planos ineficazes para disseminação da informação
da preservação do patrimônio ferroviário paulista.
Finalmente, é possível notar grandes desafios de gestão enfrentados
pelas prefeituras envolvidas nos processos de preservação dos edifícios
ferroviários paulistas. Desde a dissolução da RFFSA – Rede Ferroviária
Federal S/A, entre os anos de 1999 e 2007, tornou-se precária a gestão,
fiscalização e manutenção de vários bens imóveis, além dos acervos das
empresas férreas. Assim como há muitas edificações que não são utilizadas
pelas empresas concessionárias e estão abandonadas, como prédios de
estações e oficinas. As iniciativas de preservação deram-se no âmbito local,
no contexto das prefeituras. Mais do que uma política consistente e
continuada de preservação, realizou-se uma simples transferência dos bens
ferroviários inativos da União ou do Estado de São Paulo para a
responsabilidade municipal. Ao assumir a responsabilidade do patrimônio
construído, as prefeituras apenas os incorporaram dentro da estrutura
administrativa já existente, junto com outros edifícios locais. Os problemas
elencados não são apenas de caráter técnico ou construtivo, nem mesmo
específicos do patrimônio ferroviário, mas muito mais relativos às questões
de política pública cultural. Além disso, a instabilidade política existente na
maioria das prefeituras paulistas que gerenciam projetos de intervenções
tem desencadeado problemas não só na gestão de reutilização dos edifícios,
mas também na falta de ações duradouras e consistentes. Para muitas
prefeituras, o atual estado de endividamento, as restrições legislativas sobre
os gastos e a falta de técnicos para desenvolver os estudos, são fortes
empecilhos no desenvolvimento coerente de projetos de análises e
intervenções do patrimônio ferroviário.
Em estudos no contexto do património ferroviário paulista, colocou-
nos frente a duas outras questões pouco estudadas e debatidas: a primeira,
166

a carência de estudos sistemáticos voltados ao acompanhamento de


projetos e processos direcionados à reabilitação arquitetônica de edifícios
ferroviários no interior de São Paulo. Ainda que o ponto de partida em nossa
pesquisa nos anos anteriores tenha sido demonstrar os vetores ativos do
patrimônio industrial no desdobramento do espaço, sendo a ferrovia um
elemento histórico-articulador entre as cidades no interior de São Paulo,
identificamos poucas pesquisas em termos qualitativos, sobre intervenções
arquitetônicas de reabilitação do patrimônio ferroviário paulista. A segunda
questão encontrada foi a escassez de estudos voltados às metodologias de
identificação do patrimônio ferroviário por meio do uso das tecnologias
digitais. Percebemos ao longo destes anos que, os trabalhos de identificação
relacionados aos conjuntos patrimoniais edificados, com o foco no
inventário, demarcação geográfica, avaliação de infraestrutura presente,
com o objetivo de compreender a condição e a capacidade de resposta do
espaço arquitetônico frente às novas solicitações, começa a construir
somente agora seu próprio caminho. De modo que não reconhecemos
projetos no gênero, particularmente aqueles que contam com
procedimentos metodológicos claros e consistentes, voltados para o
estabelecimento de indicadores de valorização e gestão do patrimônio
ferroviário, a respeito dos bens tombados ou não, e sua atualização, a partir
dos usos de sistemas digitais.
Dessa maneira, este capítulo visa apresentar uma proposta
metodológica no âmbito de projetos arquitetônicos de reabilitação do
patrimônio ferroviário no contexto paulista, objetivando oferecer uma
ferramenta útil no trabalho de profissionais envolvidos, principalmente, nas
etapas de planejamento/programação, projeto e construção.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

A partir da problemática apresentada e pelo que já foi descrito, cabe


aqui um breve panorama da bibliografia e enfoques de investigação que
identificamos em nossas últimas pesquisas sobre a questão do patrimônio
industrial ferroviário no Estado de São Paulo, o tema da reutilização e
reabilitação do patrimônio e a avaliação de desempenho de conjuntos
patrimoniais.
Cidade, História e Patrimônio - 167

2.1 A REABILITAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO INDUSTRIAL


FERROVIÁRIO

Apesar de ter sofrido uma profunda evolução desde os anos 1960 até
aos nossos dias, no que refere à suas intenções e metodologia, o conceito
de reabilitação tem como base noções de utilidade ou função, que emerge
da política de conservação do patrimônio arquitetônico, em reposta a novos
desafios de natureza social, econômica, ambiental e cultural. Tais estímulos,
conforme a visão Mascaró (2010), estão vinculados ao desejo de produzir
espaços de qualidade e com menor custo que com a construção nova. Nesse
sentido, a reabilitação do patrimônio parte da ideia de intervenção em
edifícios subutilizados ou abandonados com o objetivo de estabelecer uma
adequada qualidade construtiva, especialmente na organização dos espaços
existentes e na melhoria do desempenho funcional.
As discussões relacionadas ao tema da preservação dos monumentos
históricos no contexto da reabilitação são tratadas de forma particular por
Jesus (2011). O autor observa que o edifício, enquanto monumento
histórico é um bem que deve ser conservado como testemunho de uma
determinada época. Por tudo isso, o processo de reabilitação visa
necessariamente resgatar importantes valores para a cidade, além de
conservar a memória de um povo ou nação. Trata-se de produzir projetos de
reabilitação do edificado, baseados em uma abordagem que procura lidar
com a passagem do tempo e com as transformações daí decorrentes,
aceitando os desafios de caráter público, social e multifuncional.
Procurando elucidar questões relacionadas ao tema, Fragner (2012,
p. 113) pondera que, a atuação da reabilitação do patrimônio industrial,
incluso o ferroviário, não deve ser executada de forma radical, de forma que
o valor histórico e a atração do lugar se mantenham e cresçam ao longo dos
anos. O autor relata que, quando um lugar se submete a uma transformação
estrutural radical, a memória do mesmo torna-se um lembrete isolado ou
mesmo fragmentado da extinta atividade humana. Nesta possibilidade, o
patrimônio ferroviário reconvertido continua, assim, a existir como um
símbolo ou uma referência, apesar da informação que transmitem já estar
desligada do seu contexto histórico.
168

Tratando-se da reutilização de edificações do patrimônio ferroviário,


questões de identidade, escala e experiência urbana ganham,
principalmente, importância vital na preservação da memória coletiva e
identidade de um lugar. Esta experiência de identidade começa no espaço
físico e se desenvolve nos sistemas espaciais, permeados principalmente
pelos elementos da paisagem, pessoas e acontecimentos. Visto sob esta
ótica, a memória e os lugares ajudam a definir a identidade dos espaços que
se relacionam à reutilização e reconversão. Sendo assim, Pereira (2007)
destaca que, as questões relacionadas à identidade e reutilização de um
edifício e sobre os valores atribuídos a ele são a base necessária para uma
intervenção num patrimônio edificado. Esses elementos característicos têm
grande importância na atribuição, principalmente dos valores de identidade
sobre os quais se baseiam as diretrizes e critérios a serem adotados no
projeto de reabilitação. Portanto, a adequação de uso implica em um
trabalho de reintegração à identidade espacial por meio da adaptação
desses edifícios, considerados patrimônio arquitetônico, às necessidades do
novo uso.
Entretanto, Pereira (2007) pondera que, em muitos casos, os projetos
de intervenções do patrimônio industrial ferroviário atuais têm apresentado
interpretações errôneas em suas diversas formas de atuação, como por
exemplo, dicotomia projetual entre forma/função, desqualificação da
relação do edifício com o lugar e não respeito a maioria dos valores
materiais, técnicos e culturais do edificado. Tais intervenções renegam os
estudos de identidade cultural, bem como a permanência dos valores
atribuídos aos edifícios inseridos nos novos programas. Em muitos casos,
inexiste a preocupação do correto uso da adaptabilidade, do estudo de
requisitos e do real entendimento das necessidades funcionais da nova
utilização. Nestas situações, a falta de indicadores das capacidades
construtivas de tais edificações, tem retirado o verdadeiro significado
cultural, cujo potencial poderia permitir ganhos socioculturais e econômicos
previsíveis; a começar pela ação de impedir o avanço da condição
degradante.
Cidade, História e Patrimônio - 169

2.2 AVALIAÇÕES E ANÁLISES EM EDIFÍCIOS DO PATRIMÔNIO INDUSTRIAL


FERROVIÁRIOS

Nos últimos anos, pesquisas tem procurado aplicar metodologias de


análise espacial-funcional em edifícios do patrimônio, avaliando alterações
espaciais e funcionais ocorridas após a sua ocupação, principalmente
analisando fatores de adaptabilidade, compatibilidade/incompatibilidade,
reformas e alterações, convertibilidade, reutilização espacial, versatilidade e
satisfação do usuário. A adoção constante de técnicas metodológicas
relacionadas à avaliação de edifícios do patrimônio, por meio da aplicação
comparativa em diversas pesquisas e estudos de casos semelhantes ou em
um dado estudo de caso, de forma sequencial e constante no tempo, parece
ser o procedimento mais eficiente na busca para o melhor desenvolvimento
de projetos futuros ou utilizados como instrumento de interesse na
avaliação desses espaços edificados.
A partir da verificação de erros e acertos do ambiente em uso,
permite conhecer, diagnosticar e formular diretrizes para produção (projeto
e construção) e consumo (uso, operação e manutenção). Sua aplicação e
importância encontram-se essencialmente baseados nos relatos daqueles
que usam os espaços edificados (PREISER, 1988; BECKER, 1989; REIS & LAY,
1994). Para isso, a tomada de decisões quanto a alternativas de projeto,
bem como a aplicação de procedimentos metodológicos rigorosos, aferindo
ambientes construídos, trabalhando não só com teorias projetuais, mas
efetivamente atuando junto às populações usuárias, integram pesquisas
cujos resultados se voltam à melhoria do ambiente construído (SANOFF,
1991; PREISER, 2001).
Nessa vertente, destaca-se o trabalho de Hillier (2002), na qual tem
desenvolvido estudos de casos baseados em seleções amostrais rigorosas,
análise comparativa de dados, além de atitudes e comportamento humanos
relativamente fáceis de serem mensurados em edifícios reconvertidos. Em
estudos de adaptabilidade em edifícios, o autor destaca a correspondência
entre a configuração espacial da edificação e um dado padrão de atividade
social. Nessa visão, determinado edifício é entendido como um conjunto de
sistemas técnicos inserido em um contexto de sistemas sociais, quando
ativado o processo de reabilitação, sustenta a possibilidade de sobrevivência
170

desse sistema porque a adaptabilidade não depende, exclusivamente, da


espacialidade edificada.
Apesar dos esforços e pesquisas aplicadas em análises espaciais em
edifícios reabilitados do patrimônio ferroviário, poucos exemplos têm se
produzido na área da arquitetura que, efetivamente, do ponto de vista
metodológico, contribuam com recomendações sobre seus problemas
funcionais e as anomalias construtivas, ambientais e funcionais. No contexto
paulista, inexiste avaliações que explorem a potencialidade de reabilitação
de edifícios paulistas do patrimônio ferroviário, a fim de identificar
parâmetros de melhoria de qualidade no processo projetual e elaboração de
diretrizes para futuros projetos de reabilitação. A adoção constante de
técnicas metodológicas relacionadas à avaliação pós-ocupação, por meio da
aplicação comparativa em diversas pesquisas e estudos de casos
semelhantes ou em um dado estudo de caso, de forma sequencial e
constante no tempo, parece ser o procedimento mais eficiente na busca
para o melhor desenvolvimento de projetos futuros de reabilitação desses
espaços edificados.

3 A METODOLOGIA

Para pensar uma orientação metodológica, combinada de acordo


com o objetivo de avaliar a potencialidade de reabilitação de edifícios
paulistas do patrimônio ferroviário, buscando parâmetros e elaboração de
diretrizes para futuros projetos de reabilitação, propomos um conjunto de
métodos e técnicas a serem aplicados a cada caso. Tal metodologia permite
ampliar o conhecimento dos usos de identificação relacionadas aos
conjuntos industriais ferroviários, tendo como foco a compreensão da
condição dos edifícios ferroviários paulistas e conhecimento da capacidade
de resposta do espaço arquitetônico às solicitações decorrentes das
atividades implementadas ou não.
Em primeiro lugar, a metodologia estabelece o critério quanto a (1)
Escolha das Cidades. Neste caso, estamos levando em conta o
entendimento de Finger (2009), que aprofunda análises do patrimônio
ferroviário brasileiro e paulista produzido entre 1852 e 1957, avaliando as
origens das companhias ferroviárias, as escolhas de traçado, a identificação
Cidade, História e Patrimônio - 171

dos “elementos-chave” de pátios, edifícios, obras de arte e equipamentos


complementares. Por conta disso, a estruturação de nossa proposta
estabelece três tipologias de cidades que abrigavam edifícios e operações
ferroviárias mais significativas:
 Cidades em Linhas Intermediárias: o critério de análise está baseado
a partir das relações existentes entre as dinâmicas presentes em
estruturas urbanas de cidades de pequeno e médio porte,
considerando o traçado urbano, expansões do núcleo histórico de
formação inicial e as escalas da própria edificação ferroviária;
 Cidades em Linhas Entroncamento: entendemos que o conceito de
preservação e reabilitação, passa necessariamente pela ideia de rede
e nodalidade, dotado de alto nível de operacionalidade e associado a
espaços de fluxos, áreas de influência e nós territoriais;
 Cidades de Linhas Terminais: Torna-se parte de nosso estudo
metodológico observar e empreender o aprofundamento em torno
das cidades localizadas em faixas fronteiriças capazes de desvendar
funções essenciais e analisar as estruturas mais importantes para a
operação ferroviária e sua relação que o tema reabilitação de
edifícios paulistas.

Em segundo lugar, por uma questão de delimitação na (2) Escolha


dos Edifícios Ferroviários, propomos como parâmetro metodológico o
Conceito de Centralidade. Esse conceito diz respeito em compreender essas
estruturas sob o ponto de vista da capacidade de polarização, de atração e
controle de fluxos. Utilizamos o conceito de centralidade desenvolvido por
Sposito (1991), entendido como algo que se expressa a partir dos lugares
centrais, com a capacidade de concentrar e atrair pessoas e atividades, de
influenciar uma determinada área por sua capacidade de atração e de
organizar e controlar a quantidade de fluxos que a perpassam.
Do ponto vista estratégico, elegemos os edifícios das (a) Estações
Ferroviárias, tipologia singular e pertinente do patrimônio ferroviário; em
segundo lugar, as análises estarão concentradas nas (b) Oficinas e Galpões
Ferroviários, caracterizadas como base do funcionamento de todo o
material rodante e de tração do sistema ferroviário; o terceiro foco de
investigação são as (c) Residências, analisando as características
172

arquitetônicas, técnicas construtivas, tipos de implantação e descrição dos


ambientes.
No terceiro grupo de atividades relacionado aos procedimentos
metodológicos, propomos a (3) Pesquisa de Campo. Nesta etapa, busca-se a
informação diretamente nas cidades pesquisadas, estabelecendo um
encontro direto tanto no âmbito das escalas do ambiente físico do edifício,
quanto dos sujeitos envolvidos na pesquisa (FONSECA, 2005; GIL, 2008).
Inclui procedimentos metodológicos e as técnicas relacionadas à relevância
das informações a serem levantadas e as observações privilegiadas sobre as
vivências dos edifícios e dos territórios investigados. Nesta fase inclui: (a)
Análise Físico/Construtiva – identificação dos componentes construtivos,
caracterização dos sistemas estruturais, nível de complexidade construtiva
do edifício, estudo das transformações arquitetônicas do edifício, eficiência
das instalações, condições de conforto, condições de segurança e problemas
relativos ao estado de conservação do edifício; (b) Análise do
Espaço/Funcional – análise do partido arquitetônico, tipos de atividades em
curso e tipos de ocupação dos layouts, reconversões, aumentos, reformas e
alterações espaciais, verificação dos elementos de contenção espacial,
contiguidade, relações de acessibilidade física e visual, permeabilidade,
conversibilidade, compatibilidade/incompatibilidade e habitabilidade; (c)
Análise Comportamental - apropriação espacial, características dos usuários
existentes, análises de utilização dos espaços internos, análises de
caminhos, análise da versatilidade espacial e usabilidade; (d) Análise do
Contexto Urbano – enquadramento geográfico e urbano, facilidade de
acessos, forma e dimensão do terreno, elementos do entorno, respeito ao
patrimônio natural ou construído existente, traçados urbanos e limites
espaciais. Para a Pesquisa de Campo utiliza-se a técnica denominada Vistoria
Técnica (Walkthrough) e tem a função de realizar visitas exploratórias nos
edifícios analisados, levando em conta os aspectos dimensionais, funcionais
e subjetivos. Paralelamente à fase das visitas exploratórias, efetua-se os
Registros Fotográficos. Além disso, utiliza-se a Entrevista Narrativa, tendo
como proposta estabelecer uma conversa amigável e interativa, buscando
levantar dados úteis na análise qualitativa (CRUZ NETO, 2002).
Cumpridas as etapas descritas anteriormente, a proposta
metodológica propõe a (4) Tabulação dos Dados e Análise, feitas a partir da
Cidade, História e Patrimônio - 173

sistematização das informações recolhidas, relacionadas em avaliar a


potencialidade de reabilitação de edifícios paulistas do patrimônio
ferroviário. Os resultados da Tabulação dos Dados devem ser consolidados
por meio da análise de todo o conjunto de informações coletadas, fruto do
levantamento dos elementos descritos, como as entrevistas, vistorias,
levantamentos e informações de campo. Os procedimentos procuram
atingir dois objetivos: primeiro, a possibilidade de vislumbrar um processo
de análise criterioso e multidisciplinar, graças ao levantamento
arquitetônico dos edifícios, das técnicas construtivas e dos materiais, da
estrutura e das patologias, da análise tipológica e formal. Para dar conta do
conjunto de procedimentos de análises, estamos propondo o uso de dois
instrumentos analíticos. O primeiro, a metodologia denominada Shearing
Layers, conceito de Francis Duffy (1990) que tem como princípio
estruturador, a percepção do edifício através de distintas camadas
sobrepostas com diferentes ciclos de vida e de interdependência. As
camadas são: (a) “Shell” – Correspondente ao sistema construtivo e suas
soluções; (b) “Sevices” – Infraestruturas e sistemas hidráulicos/elétricos,
aquecimento e Ar-condicionado; (c) “Scenary” – Configuração espacial
interna do prédio, e como se dá a distribuição de divisões; (d) “Set” –
Relativo ao layout de mobiliários do ambiente; (e) “Site” – O envolvente, o
contexto onde o edifício está inserido; (f) “Structure”. O segundo
instrumento é o Mapa de Descobertas, método que identifica questões de
inadequações e adequações às situações existentes e outras variáveis, por
meio de comentários e esquemas figurativos anotados na planta dos
estudos de caso.
O quinto grupo de atividades está inserido nas propostas e
ferramentas relacionadas à absorção dos novos (5) Recursos Digitais.
Procedimentos que procuram utilizar um sistema web com as seguintes
ações: levantamento dos requisitos funcionais e não funcionais da base de
dados; criação das interfaces para disponibilização de informação; operação
com dados pré-existentes e alimentação do repositório documental e dos
conjuntos de edifícios ferroviários; e implementação de visor de mapas, com
uso do SIG e Geoserver (visor de mapas). A proposta é introduzir a
compreensão de métodos de georreferenciamento com o uso do SIG, por
meio do Google Earth, que permite a demarcação geográfica de conjuntos
174

ferroviários e auxilia na identificação de infraestruturas presentes no


entorno desses edifícios. Por meio de uma interface web, esta metodologia
permitirá que os usuários visualizem várias informações (camadas),
independentemente do local onde os dados são armazenados ou
formatados. Podemos incluir elementos como marcadores do Bem Edificado
e descobrir informações sobre os objetos do repositório, sistemas ativos,
vestígios dos sistemas inativos e os descritores. Tais procedimentos
permitem a definição de representações virtuais dos objetos cadastrados,
visualização das informações produzidas, como também entregar conteúdo
dinâmico, como por exemplo, a localização, identificação, constituição, bens
associados, gestão, descritores e proteção.
Um sexto grupo de atividades é a elaboração de (6) Diretrizes para
futuros projetos de reabilitação no contexto do patrimônio ferroviário
paulista, reintroduzindo a questão do reaproveitamento do acervo
arquitetônico protegido ou não. A partir dos elementos apresentados
anteriormente, a lista de diretrizes estará baseada na hipótese de que, por
meio da avaliação e análise dos conjuntos de edifícios e instalações
ferroviárias pesquisadas é possível determinar prováveis caminhos aos
projetos arquitetônicos de reabilitação destes edifícios no contexto paulista.
Para a confecção das diretrizes, o objetivo é adotar uma sequência
utilizada na análise das etapas anteriores, estabelecendo parâmetros,
orientações e sistematizações indispensáveis à sua compreensão e a eficácia
nas intervenções de reabilitação, elencando os seguintes itens:
a) Diretrizes quanto ao contexto urbano buscam definir: a
caracterização geográfica e urbana; as escalas do espaço público no
contexto de reabilitação; as integrações espaciais; as características
de envolventes urbanas; os condicionantes naturais e tecido urbano;
as identidades urbanas; os limites espaciais; a legislação urbanística;
as informações espaciais em diferentes escalas; os atributos
ambientais da paisagem urbana; a morfologia urbana existente;
b) Diretrizes quanto ao projeto arquitetônico do patrimônio edificado
procuram estipular: a análise do partido arquitetônico com vistas à
reabilitação; os tipos de atividades em curso e tipos de ocupação dos
layouts; dos sistemas espaciais de reconversões; dos aumentos; das
reformas e das alterações espaciais; da verificação dos elementos de
Cidade, História e Patrimônio - 175

contenção espacial; contiguidade; relações de acessibilidade física e


visual; da compreensão da distribuição e extensão dos setores
funcionais; da permeabilidade (interior e interior/exterior); dos
fatores de compatibilidade/incompatibilidade no espaço em uso;
análise de funcionalidade e versatilidade; segurança patrimonial;
análise de exigências de habitabilidade.
c) Diretrizes quanto ao contexto turístico objetivam traçar: estratégias
de reativação turística pautada na disseminação cultural;
perpetuação e resgate do patrimônio histórico ferroviário; escopos
de pesquisas e estudos sobre arquitetura, história, modos de vida e
organização geográfica; a reintegração à identidade espacial-turística
por meio da adaptação desses edifícios, considerados patrimônio
arquitetônico; às necessidades do novo uso; itinerários pré-existentes
com recursos para planejamento turístico, que inclui programas
interpretativos e participação da comunidade anfitriã; análise de
conjuntos ferroviários e identificação da condição de adaptabilidade
turística.
d) Diretrizes quanto aos financiamentos e gestão procuram direcionar:
planos de investimento de recursos públicos destinados à
reabilitação do patrimônio ferroviário; projetos de parcerias com
empresas privadas buscando maior flexibilidade na gestão e
investimento; possibilidades obtenção de recursos por meio de
Operações Urbanas (Planos Diretores) e isenções tributárias nos
contextos municipais; sugestões de melhorias na forma de
implementação de ações financiamentos de imóveis de interesse do
patrimônio ferroviário; a reprogramação de ferramentas de execução
de políticas públicas voltadas à reabilitação do patrimônio ferroviário;
a gestão de acordo com as necessidades sociais, econômicas,
culturais e ambientais.
e) Diretrizes quanto à gestão da informação patrimonial almejam
estabelecer: políticas de divulgação e transferência de conhecimento
gerado na área do patrimônio industrial e ferroviário; estratégias de
fornecimento de informação rápida, confiável e eficaz ao público-alvo
(mecanismos de bases de dados); restabelecer o potencial
estratégico dos serviços informacionais para a área do patrimônio
176

ferroviário; fomentar o resgate, a recuperação, a organização de


fontes documentais e os inventários na área de bens patrimoniais da
ferrovia;
f) Diretrizes quanto à sustentabilidade visam fixar: ações de
planejamento, programação e desenho de projetos de reabilitação,
baseadas numa visão global de sustentabilidade; compreensão do
território sobre a ótica da equidade socioeconômica no contexto da
reabilitação; aplicar princípios e soluções de promoção da
sustentabilidade no âmbito dos conjuntos de edifícios do patrimônio
ferroviário destinados à reabilitação; a integração consciente e com
base científica de princípios de sustentabilidade, passivos e ativos,
nos processos de reabilitação do patrimônio ferroviário paulista;
rever a aptidão das tipologias arquitetônicas ferroviárias para se
adaptarem às novas funções e parâmetros da sustentabilidade; numa
abordagem arquitetônica, construtiva e ambiental de reabilitação
sustentável dos edifícios ferroviários paulistas.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A metodologia tem como foco a forma com que a arquitetura tem se


relacionado com a questão da reabilitação de edifícios patrimônio
ferroviário paulista, utilizando os processos de avaliação do ambiente
construído a fim de identificar parâmetros de melhoria de qualidade no
processo projetual e elaboração de diretrizes para futuros projetos de
reabilitação. Ao mesmo tempo, busca uma melhor compreensão da
aplicação de metodologias de identificação do patrimônio ferroviário, a
partir do uso do Sistema de Informações Geoespaciais (SIG), contribuindo
para a compreensão da condição de reabilitação de edifícios ferroviários
paulistas e conhecimento da capacidade de resposta do espaço
arquitetônico às novas solicitações.
Os procedimentos metodológicos demostram que dar respostas às
novas perspectivas de projetos de reabilitação do patrimônio ferroviário
engloba diretrizes não só no campo da arquitetura, como estudos
comportamentais do ambiente construído, fatores do espaço arquitetônico
e análises dos planos urbanísticos destas edificações, mas envolve aspectos
Cidade, História e Patrimônio - 177

ligados à área da tecnologia da informação, como por exemplo,


implementar uma ferramenta digital de análises territoriais coerentes,
incluindo informações valiosas quanto ao entorno imediato, tecido da
cidade e trama urbana. Assim, pensar a produção arquitetônica de
reabilitação de edifícios do património ferroviário de bibliotecas no âmbito
universitário brasileiro exige outros olhares metodológicos sobre as
questões que envolvem o espaço contemporâneo.
Este processo de mudança, porém, não exime a participação direta
tanto de projetistas quanto de profissionais ligados à área da arquitetura e
áreas correlatas evidenciando as ideias e os objetivos que se desejam
alcançar. Além disso, a realização de futuros estudos metodológicos, a partir
do conhecimento produzido desses ambientes e com a participação direta
dos usuários nas decisões, pode ser um instrumento, ainda que preliminar,
de mudança de paradigma. Fomentar a discussão entre as diversas
instituições paulistas e brasileiras, tanto em âmbito estadual, nas áreas de
interesses do patrimônio cultural do Estado de São Paulo, quanto contexto
federal do IPHAN/MinC, parece ser a estratégia mais adequada para que
instituições cumpram sua missão de preservação, conservação e acesso ao
público.

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Cidade, História e Patrimônio - 179

Capítulo 9

CIDADE E FERROVIA:
DESENVOLVIMENTO E MEMÓRIA URBANA

69
Antonio Busnardo Filho
70
Antonio Soukef Júnior

1 MEMÓRIA URBANA

A configuração urbana é definida por um conjunto de traçados,


volumes, ruas e praças que possibilitam a leitura e interpretação de fatos
urbanos, tendo como resultado a formação histórica do território. Para as
cidades por onde a ferrovia passava, a estação adquiria uma importância
maior do que ser uma porta de saída dos habitantes que partiam para se
aventurar no mundo, em busca de novas oportunidades; era, antes, a porta
por onde chegavam as pessoas da “capital”, que abria uma possibilidade de
mobilidade e de trocas culturais entre os diferentes municípios. O mais
importante, é, que, via de regra, a estação se localizava em uma avenida,
que se transformaria em uma artéria importante para a cidade, pois ali
estariam localizados equipamentos culturais - cinemas e teatros, por
exemplo –, hotéis de viajantes – o que dava às cidades ares cosmopolitas; e,
para o cotidiano, concorrendo com o largo da matriz, era o lugar dos finais
de semanas, o lugar do footing. A possibilidade dos namoros e dos flertes.
As ferrovias foram fundamentais para o desenvolvimento urbano e
para a vida social dos lugares por onde passavam; eram traçados que
modernizavam as cidades com a transformação de ruas em avenidas ou com
a aberturas de avenidas, mas, também, transformavam essas vias expressas
em locais de socialidade (MAFESOLLI, 1988) - pelo relativismo da vida, pela

69
Professor Doutor, do Programa de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo do Centro
Universitário UNIVAG. E-mail: antonio.busnardo@univag.edu.br
70
Professor Doutor, do Programa de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo do Centro
Universitário UNIVAG. E-mail: antonio.soukef@univag.edu.br
180

grandeza e pelo trágico do cotidiano, como conjunto de práticas sociais que


escapam ao controle social, construindo a base da vida em sociedade; esses
locais propiciavam trocas simbólicas estruturantes da sociedade local,
ampliando a capacidade de sonhos e de projetos de vida dos jovens e dos
cidadãos. As estações e a ferrovia permitiam os sonhos transgressores que
se opunham aos sonhos e comportamentos de um imaginário formado pelas
sociedades aburguesadas e interioranas, possibilitando a troca de um
imaginário instituído, para um imaginário instituinte.
O que se fala é que as estações, em consequências das ferrovias,
tornaram-se, nas cidades, aquilo que Rossi (1995) denomina como “fatos
urbanos”; elementos que se destacam na massa construída das cidades, que
recebem vários significados com a passagem do tempo, sem, no entanto,
perder a sua imagem primeira, que se transforma, com as variações de usos,
em imagens simbólicas; por serem referências de memórias individuais e
coletivas. Memórias individuais que remetem às histórias de vidas dos
cidadãos e do lugar, enquanto palco de acontecimentos de fatos que dizem
respeito a uma pessoa; e memória coletiva de um grupo social, ao se
considerar as “lembranças dos eventos e das experiências que dizem
respeito à maioria de seus membros e que resultam de sua própria vida ou
de suas relações com os grupos mais próximos” (HALBWACHS, 2006, p.51).
Nesse sentido, as ferrovias presentearam as cidades com espaços de
construção de imaginários sociais e pessoais, que modificaram o uso do local
e dinamizaram áreas que, quase sempre, nem urbanizadas eram. Contudo, o
mais importante são os estratos de memória que esses “fatos urbanos”
construíram, dando espessura à memória das cidades.
A paisagem urbana é resultado de sentimentos de gerações, de
sucessivos acontecimentos públicos, de tragédias privadas e de fatos novos
e antigos. A cidade é um processo de construções e manifestações da vida
urbana. Esses aspectos deram origem às relações entre o indivíduo e o
espaço onde vive, resultando na identidade do lugar, e na memória dos
indivíduos (ROSSI, 1995), bem como na memória coletiva do lugar, e, na
identidade do indivíduo.
Sendo a memória elemento resultante da ordenação e das vivências
sociais, pode-se considerar que são esses elementos que servirão para
construir a realidade e a realizar os lugares urbanos, para que a cidade seja,
Cidade, História e Patrimônio - 181

de fato, o território de quem a habita. Memória e memórias implicam


histórias de vida e relacionamentos que farão a existência das cidades e
definirão a sua importância, que transformarão as cidades em palcos e em
ambiências para várias vidas. A ferrovia foi um marco profundo para essas
construções; intensificaram a memória coletiva e iluminaram as memórias
pessoais. Neste sentido, as paisagens urbanas são, também, paisagens do
imaginário - individual e social.
É por este motivo que se pode considerar com Debord (1998) a
cidade como espaço histórico pela concentração de poder social que
permite a consciência do passado. Em contraponto, e considerando o
imaginário urbano pode-se pensar com Schwarz (1977), a influência das
ideias europeias na produção social do Brasil, mesmo que de maneira
imprópria.
O fato de as linhas férreas deixarem de ser uma opção de transporte,
substituídas que foram pelo modal rodoviário, transformaram o legado
ferroviário em algo que possui características antagônicas dentro das
cidades: de um lado a memória individual vívida do desenvolvimento e a
importância do trem, como memória também coletiva. De outro, a cicatriz
deixada no território, barreiras físicas e ruínas de construções que um dia
representaram o progresso. Essa cicatriz marca o espaço urbano, criando a
denominação de “lado de cá” e “lado de lá”, como forma de indicar as
regiões separadas de um mesmo espaço, de uma mesma cidade. As
diferenças e o sentido de pertencimento geraram os clubes e suas disputas,
que ao mesmo tempo em que movimentavam as cidades, criavam rixas
entre os moradores, separando-os.
Uma coisa é fato, o lado que tinha o núcleo fundador, geralmente
onde estava a Igreja Matriz, a prefeitura e a delegacia de polícia, era o lado
mais desenvolvido. Depois, quando o transporte ferroviário perdeu sua
importância, os locais das estações foram se degradando e se tornaram um
foco de problemas sociais para as cidades. Se as estações não foram
tomadas por pessoas esquecidas pela sociedade; isto é, excluídas,
transformaram-se em espaços abandonados e sem uso apropriado. Para
Montaner,
182

[...] considerando-se o abandono destes espaços, “Um dos maiores


paradoxos, ambiguidades e dificuldades que a condição pós-moderna
apresentou são os processos de eliminação da memória real e a
invenção de memórias temáticas e estabelecidas […]” (2014, p. 161).

Desta forma o entendimento da construção da memória urbana


passa pela interferência direta dos operadores financeiros e imobiliários
resultando em uma memória urbana frágil, apagando sistematicamente as
culturas e recordações, deixando em seu lugar feridas físicas e psicológicas
na população, criando uma generalização e homogeneização dos espaços. A
exemplo disso, pode-se observar o uso, na maioria das vezes, inadequado
dado às estações ferroviárias desativadas; em alguns poucos casos, foram
dados usos nobres, como foi o caso da reconversão da antiga Estação Júlio
Prestes em sede da Orquestra Sinfônica do Estado, além de sede da
Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo. No entanto, este uso nobre
não foi o suficiente para a requalificação urbana do lugar e nem para uma
intervenção no desenho urbano.
Dentro deste contexto a identidade é concebida como forma de
partilhar o passado tornando-se falsa, pois em um modelo estável, de
expansão contínua da população há proporcionalmente cada vez menos o
que partilhar, fazendo com que a história tenha uma meia-vida – quanto
mais se abusa dela, menos significativa se torna, até chegar o momento em
que suas decrescentes dádivas se tornam insultuosas (KOOLHAAS, 2010).
Por outro lado, a expansão urbana se mantém ao longo dos eixos de
conexão de fluxos intensos, facilitando a necessidade do homem de se
comunicar e de exercer a atividade da troca e do comércio. Nas suas
origens, um dos fatores de desenvolvimento das cidades foram os caminhos
e os rios, que facilitavam o deslocamento dos cidadãos; hoje, resta uma
frágil memória deste momento. A ferrovia, que foi um dos elementos que
impulsionou o desenvolvimento do país, hoje está colocada em segundo
plano, nas propostas de mobilidade urbana. As estações que foram pontos
importantes nas cidades, atualmente, têm outras funções menos
representativas na história das cidades.
O que outrora permitia não somente o deslocamento do comércio e
supria a necessidade de comunicação e ainda o desenvolvimento pessoal
com o conhecimento do “outro”, do “estranho” que chegava trazendo
Cidade, História e Patrimônio - 183

novidades; hoje, é meramente uma forma de transporte subutilizado,


atendendo de maneira precária seus usuários e tratando as cidades por
onde passa como pontos ocasionais do trajeto, quando utilizado para o
transporte de comodities.
As ferrovias exerceram importante papel na dinâmica das cidades.
Em alguns casos, o desenho da estrutura urbana parte da organização em
forma de quadrícula e, com a inserção da linha férrea, vê seu desenho
urbano ser reorganizado a partir da estação ferroviária, que, a princípio,
definia uma das áreas importantes da cidade, e hoje, tornou-se um
obstáculo à expansão da mancha urbana. A área privilegiada, hoje é um
vazio urbano sem uso, ou subutilizado, que por várias questões políticas e
de estrutura urbana não pode ser reconsiderada - por requerer uma
preocupação e um tratamento de projeto urbano, de desenho urbano, que,
certamente, terá um custo elevado.
Observa-se que as cidades brasileiras estruturadas a partir de um
elemento como a Igreja Matriz, e nas quais foi implantada a ferrovia,
tiveram seu traçado modificado pela passagem da linha férrea, assim como
nas relações e configurações urbanas. O espaço físico formado a partir da
confluência da paisagem urbana ao longo da linha férrea, definido pelas
suas características naturais e artificiais, torna-se único para cada indivíduo
quando relacionado com os acontecimentos históricos.
Toda a história e memória da cidade é inerente à existência das
estações ferroviárias, pois muitas cidades tiveram o nascimento de sua
identidade urbana consubstanciado ao desenvolvimento da ferrovia.
Atualmente as estações ferroviárias, em sua maioria, ocupam um espaço
central, dado o fato de terem sido envolvidas pelo núcleo urbano,
justamente por conta da sua presença. Porém, com sua desativação, hoje
são vazios urbanos resultantes do desenvolvimento econômico e da
mudança da logística de transporte. As estações são resquícios de uma
cidade passada e esquecida em suas próprias ruínas.
A memória dos antigos moradores se perde no tempo, e a dos jovens
constrói-se sem considerar a importância da estrada de ferro em geral e da
estação em particular como fatores de desenvolvimento humano e
econômico da cidade, e da região. Sem dúvida, a nova história dessas
cidades será empobrecida, é notado este empobrecimento na fala dos
184

moradores mais antigos ao dizerem "no meu tempo, o trem...". Sem dúvida
as cidades retrocederam e perderam parte de um imaginário extremamente
positivo, para se constituir um imaginário negativo, que recai no
esquecimento, no desconhecimento ou, pior, na negação da importância da
ferrovia e da estação diante do que restou como "fato urbano".
Solà-Morales (2002) identifica esse terrain vague como parte de uma
cultura urbana, já que os vazios fazem parte da memória e da identidade da
cidade antiga, revelada não como ícone coletivo, mas como em uma série de
"indícios territoriais" que, ao serem descontextualizado, representam a
ausência desse mesmo coletivo; como uma "esquizoidia" urbana, tomando
o sentido grego da palavra (σχιζω – esquizo) – fender, separar - e não
considerando o seu conteúdo dado pela psicologia; talvez, em um recorte,
somente o sentido de tendência à solidão, autismo; para representar um
espaço esvaziado de uma vida mais dinâmica, um espaço fechado em seus
próprios acontecimentos; como se seu desenvolvimento fosse separado do
desenvolvimento da cidade, tornando-se um território à parte do contexto
urbano geral.
Uma das principais funções desses vazios urbanos é o fato de serem a
ligação entre as áreas adensadas da cidade, espaços que unem em vez de
separar. Nesses espaços deveriam acontecer eventos que unissem a
comunidade local, que propiciassem ações congratulatórias, enfim, que
permitissem rituais comunitários de sociabilidade com a finalidade de
formar um corpo social sólido que tivesse os interesses da comunidade
como princípio de cidadania. No entanto, os espaços livres que resultaram
do abandono das estações não são outra coisa senão áreas esquecidas da
cidade, por onde os cidadãos não querem nem se aproximar; tornam-se um
espaço proscrito na cidade. O que resultou de uma falha de política
desenvolvimentista, tornou-se um problema para o planejamento urbano.
A orla ferroviária, em consequência do seu desenvolvimento e
seguido de sua desestruturação, deixou marcas que comprovam a
esquizoidia urbana; do seu patrimônio latente – estações e galpões -, à
consolidação e edificações, no entorno da orla, como sinal de
desenvolvimento e crescimento das cidades; no seu desuso, tornou-se uma
barreira física e um marco de segregação – uma cisão urbana.
Cidade, História e Patrimônio - 185

A deterioração do sistema ferroviário brasileiro desvenda os limites


do programa modernizador que orientou sua implantação, e posterior
abandono, como resultado da transformação da economia guiada pelos
interesses dos setores socioeconômicos dominantes que sempre pautaram
as ações do Estado de acordo com as suas conveniências.
A ideia do conhecimento da identidade do território como
possibilidade para sua transformação, com base na decomposição
conceitual da forma urbana, permeia a discussão que estabelece uma
compreensão da cidade a partir de sua visão como uma “soma conflitiva de
fragmentos reais”, de uma cidade que se constrói e se consolida,
demonstrando uma visão disciplinante das cidades. Para Lamas (2004),

[…] A análise histórica revela existirem elementos em continua


transformação e elementos que não se modificam totalmente e
persistem. Estes últimos são principalmente os monumentos, os
traçados ou vias e também, em certa medida, a estrutura fundiária
[…] (p.114).

Lamas demonstra que a análise histórica aponta elementos de


“resistência” na constituição do território, que não são senão os “fatos
urbanos” citados por Rossi, que resistem por serem parte de uma memória
mais forte que o desenvolvimento econômico ou que um pensamento
progressista. São memórias coletivas que constroem o lugar, impregnando-o
com a sobreposição de imaginários das diferentes épocas, adensando as
camadas de vivências.
Borja (2005) compreende que historicamente o desenvolvimento das
cidades foram direcionados pelas infraestruturas de forma muito mais
efetiva do que quaisquer legislações urbanísticas. No entanto, Ascher (2010)
coloca que os centros urbanos tiveram seu crescimento correlacionado ao
desenvolvimento dos meios de transporte e armazenamento para abastecer
populações crescentes; sendo posteriormente impactado pela evolução das
tecnologias de estoque e deslocamento de informações e não mais de
pessoas e bens.
Diretamente relacionado ao tratado neste capítulo, é importante
ressaltar a solução dada nos casos de requalificação dos chamados
waterfronts urbanos, efetivamente marcada por dois fatos: da mudança da
186

condição industrial e comercial responsável pela permanência de eixos


logísticos – portuários, ferroviários, rodoviários, industriais e até
aeroportuários – interpostos entre os centros ou áreas históricas que se
pretendem revitalizar, e, por outro lado, a presença da água que se
pretende aproximar ou mesmo apropriar para a vida dos cidadãos.
A oportunidade econômica ou tecnológica do deslocamento dessas
barreiras, permitiu a muitas cidades ganhar extensas frentes para o espaço
coletivo, garantindo o aproveitamento do vazio logístico como uma
perspectiva de implantação de equipamentos urbanos voltados para o lazer
e para a cultura.
A recriação de espaço coletivo de qualidade e das acessibilidades
intraurbana e interurbana estruturam e suportam a variedade de funções,
tipologias e arquiteturas, constituindo o seu elemento imaginário mais
perene, aquele que legitima as diversidades, as precariedades e até os
excessos de protagonismos visuais, de densificação funcional dos novos
contentores que o mercado aproveita nessas novas externalidades (PORTAS,
2005).

2 CONCLUSÃO

Mesmo que as cidades e os bairros sofram transformações com os


diversos empreendimentos imobiliários que ocupam os antigos prédios
industriais, a área dos galpões ferroviários e demais espaços da própria
ferrovia ainda são vazios urbanos, numa região consolidada e com
infraestrutura. É possível encontrar nessas áreas edificações, que se
protegidas e valorizadas, preservarão a memória industrial e social da
região, reabilitando a paisagem urbana, hoje degradada.
Deste modo, a metáfora utilizada, valendo-se do termo empregado
pela psiquiatria – esquizoidia -, para demonstrar o que acontece com os
espaços urbanos quando da sua degradação - social, econômica e urbana -,
faz com que a memória se desvaneça; a passagem das gerações, serve para
mostrar que a cidade e os seus espaços vazios têm um significado muito
grande enquanto locais de diálogo entre áreas adensadas, um espaço que
deve ou deveria ser de ligação, muito mais do que de separação entre os
espaços da própria cidade e entre os espaços intermunicipais, estaduais, etc.
Cidade, História e Patrimônio - 187

É preciso entender os espaços vazios como estruturas sistêmicas que


refletem e repercutem as áreas construídas, Bernardo Secchi (2012, p. 165)
diz que “o projeto da cidade contemporânea confia ao desenho dos espaços
abertos [...] ser o lugar onde se experimentam e aperfeiçoam as novas
ideias”.

[...] atribuindo-lhes a função antes dada à malha viária na cidade


moderna, e demonstrando a importância desses espaços, que é o de
‘dar forma à cidade, mitigando-lhe a fragmentação e a aproximação
paratática’. (SECCHI, 2012, p. 165).

Os espaços livres subutilizados são numerosos, dada à desarticulação


do uso da linha férrea e ao desenvolvimento muito rápido de uma ideia de
progresso, o que destruiu o modo de vida dos habitantes de inúmeras
localidades; as cadeiras sumiram das calçadas, os bate-papos rarearam até
se reduzirem a conversas apressadas, cheias de medo do mundo urbano; os
habitantes das regiões onde se localizavam as estações ferroviárias
tornaram-se estranhos em consequência de um processo de degeneração
desses locais, mesmo que essas áreas tenham guardadas as conformações
descritas no começo desse texto: as avenidas, o footing, o lugar de passeio e
de flertes...

REFERÊNCIAS

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Cidade, História e Patrimônio - 189

Capítulo 10

PATRIMÔNIO, MARGINALDADE E GENTRIFICAÇÃO AO LONGO DO


ANTIGO LEITO FÉRREO DE BAURU-SP: A VILA ANTÁRTICA

71
Evandro Fiorin
72
Lucas do Nascimento Souza

1 INTRODUÇÃO

Este capítulo tem por objetivo um reconhecimento urbano do antigo


leito férreo de Bauru-SP, especificamente, o patrimônio industrial que ainda
se configura em um dos seus trechos, a saber: a Vila Antártica – lugar das
primeiras paisagens industriais dessa cidade do interior paulista. Assim, por
meio de uma leitura histórica de antigas imagens e da estratégia do
caminhar como prática estética, busca compreender a espacialidade dessa
ocupação nos dias atuais, onde a obsolescência e a marginalidade se faz
presente, bem como um acelerado processo de gentrificação, por conta da
demolição de antigos galpões de fábricas, para a construção de alguns
centros de consumo e shopping centers.
Hoje considerados como interstícios urbanos, os leitos férreos foram
os responsáveis pelo desenvolvimento de muitas cidades do interior paulista
e, no caso bauruense, seu principal motor. Exatamente por isso, guardam os
resquícios de um período áureo. Um patrimônio urbano que conta a história
da cidade pelos testemunhos das antigas esplanadas e pátios fabris, mas
que, com o processo de desmantelamento do transporte sobre trilhos,
agora são alvo de deterioração, mas também, de um recorrente desmonte,
diante do grande interesse do setor imobiliário, devido à centralidade das
localizações das áreas lindeiras à ferrovia.

71
Doutor em Arquitetura e Urbanismo, Docente do Programa de Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo FAAC-UNESP. E-mail: evandrofiorin@gmail.com
72
Mestrando em Arquitetura e Urbanismo, FAAC-UNESP. E-mail: lucas.nascimento-
souza@unesp.br
190

Desta maneira, este trabalho apresenta os primeiros resultados sobre


o levantamento histórico do patrimônio fabril da Vila Antártica, seu
processo de abandono e deterioração, bem como, o apontamento singular
dos trajetos que fizemos, para percepção ambiental da via férrea bauruense
dessa região. Essa preocupação visa apresentar o atual estado destes
espaços urbanos carregados de história, ora marginalizados, ora
gentrificados, para fazer-nos ver algumas transformações na cidade
contemporânea. Vale ressaltar que este capítulo faz parte de uma pesquisa
mais ampla e, portanto, é apenas uma parte de um processo de cognição
sobre o antigo leito férreo de Bauru.

2 O PATRIMÔNIO INDUSTRIAL E SUA OBSOLESCÊNCIA

Bauru (1896) faz parte da rede de cidades do noroeste paulista que


tiveram seu desenvolvimento urbano e econômico influenciado diretamente
pelo sistema do transporte ferroviário, mais especificamente, a partir da
prosperidade advinda da Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil –
CEFNOB (1906). É o berço dos primeiros quilômetros que seguem até o que
conhecemos hoje por Corumbá, no estado de Mato Grosso do Sul.
A CEFNOB foi responsável pelo surgimento de uma série de povoados
e, posteriormente, cidades que se estabeleceram a partir das estações, as
quais guardam, até hoje, características próprias em relação à sua origem e
à implantação dos traçados urbanos, conforme aponta Ghirardello (2002, p.
12-13).

A formação de cidades era de interesse da ferrovia, bem como dos


latifundiários da Zona Noroeste. O empenho da Companhia de
Estrada de Ferro Noroeste do Brasil estaria na transformação rápida
de estações em núcleos urbanos, gerando não só pólos de
escoamento para uma futura produção agrícola, particularmente
cafeeira, mas também movimentados centros de embarque e
desembarque de passageiros. (GHIRARDELLO, 2002, p. 12-13).

É importante salientar que os interesses da CEFNOB eram muito


semelhantes aos interesses dos latifundiários, caracterizados por um cenário
de liberalismo econômico e comando político da oligarquia cafeeira. Bauru,
em sua fase inicial, se beneficiou da pujança oriunda desse mercado do café,
Cidade, História e Patrimônio - 191

recebendo migrantes de várias partes do país e pessoas que vinham em


busca de terras e oportunidades, sendo, posteriormente, um núcleo
receptor do fluxo de imigrantes estrangeiros no Brasil, no final do séc. XIX e
início do séc. XX.
Marco zero da ferrovia, a vila de Bauru passa a ser vista como fonte
de prosperidade. Assim, as bases do crescimento econômico da cidade
estavam traçadas e sua fisionomia de vilarejo começa a ser alterada,
influenciada pela CEFNOB e ramais ferroviários estabelecidos pelas
companhias Sorocabana e Paulista (FONTES; GHIRARDELLO, 2008). Nesse
sentido, Toledo (2009, p. 70) destaca que “[...] a mudança econômica,
urbanística e demográfica ocorreu exatamente com a chegada das linhas
férreas”.
Deste modo, por sua posição geográfica privilegiada, Bauru se
revelou uma terra fértil para o escoamento da produção cafeeira e,
posteriormente, de outros produtos agrícolas do interior de São Paulo e
estados fronteiriços. Por conta disso, passou a atrair a implantação de
agroindústrias, as quais, se estabeleceriam em uma região adjacente à
esplanada da estação ferroviária, mas contígua ao leito férreo.
Ao longo da via férrea, algumas plantas industriais passam a pontuar
a paisagem urbana com suas chaminés e grandes edifícios fabris,
configurando assim, em seu trajeto, um reduto dos primeiros complexos de
industrias de Bauru. Serão instaladas famosas plantas de beneficiamento de
produtos agrícolas, tais como: as Indústrias Reunidas Fábricas (IRF)
Matarazzo. Não sendo um caso isolado, temos ainda os edifícios da
emblemática Companhia Antarctica Paulista, com seus imensos galpões que
marcaram a história do que conhecemos hoje como a Vila Antártica, além
da líder no segmento de papelaria, a Tilibra, que permanece ainda em
funcionamento, com a mesma função, até os dias de hoje.

Outra fábrica que aproveitou a mesma região de Bauru foi a fábrica


norte-americana Anderson Clayton, que produzia o óleo de algodão.
Esta região foi incrementada por um efetivo de trabalhadores e suas
famílias, além de formar uma nascente e vibrante atividade comercial
para abastecer as famílias. (TOLEDO, 2009, p. 116).
192

Tão grande é o peso das atividades industriais nesta zona, que a Vila
Antártica, recebe este nome por conta da instalação da fábrica da Cervejaria
Antártica que, em 1924, passa a produzir cerveja, guaraná e gelo. Em suas
adjacências, também se instalaram outras indústrias, tais como: a
algodoeira Sanbra, no Jd. Guadalajara e as Indústrias Anderson Clayton.

Figuras 01, 02 e 03: Indústria Anderson Clayton, Galpões da Matarazzo e Complexo da Sanbra.

Fonte: NUPHIS e Museu Ferroviário Regional de Bauru, respectivamente, 2019.

Todavia, essas paisagens industriais de Bauru vieram passando por


um processo de deterioração, desde as políticas nacionais da década de
1950, que incentivaram o transporte rodoviário e culminaram no
sucateamento da ferrovia. Em meados de 1960, os centros urbanos
passaram a ter problemas oriundos do crescimento demográfico, aumento
no tráfego de veículos e as consecutivas preocupações ambientais. Sendo
assim, as áreas que outrora foram palco do auge ferroviário e estopim do
processo de industrialização, se tornaram impróprias para os novos modelos
de planejamento.
Com os novos incentivos federais ao transporte rodoviário e a
redução dos investimentos na rede ferroviária, Bauru não suportou a
manutenção dos seus trilhos. Castro (2016) é categórica ao afirmar que
houve claras decisões políticas que influenciaram neste processo de
desativação e abandono da rede ferroviária como um todo, conforme
aponta:

Quando a situação atingiu o limite, por motivos variados, é


importante ressaltar que as consequências foram resultado de um
contexto, uma escolha essencialmente política de abertura para
substituição gradativa dos serviços ferroviários, com clara prioridade
que consolidou a indústria automobilística no país. (CASTRO, 2016, p.
114)
Cidade, História e Patrimônio - 193

A priorização do transporte rodoviário facilitou com que, em 1961,


fosse instituído o primeiro distrito industrial de Bauru, região especialmente
locada para receber empresas que objetivassem sair do eixo central da
cidade e, assim, também, passar a receber novos investimentos, conforme
aponta Bastos (2002). É interessante notar que o Distrito industrial I, apesar
de ladear o leito férreo, foi locado em função da Av. Rodrigues Alves,
importante via criada, ainda no auge da ferrovia, para servir ao escoamento
da produção da época, mas que passou a ter, cada vez mais, uma
importância rodoviária em detrimento da ferrovia.
Nas décadas seguintes, o transporte de passageiros sobre trilhos já
não era significativo, quando, em 1995, definitivamente foi encerrado pela
Cia Noroeste – neste período já agrupada à Rede Ferroviária Federal S/A
RFFSA e, em 1996, sob a concessão da linha à Novoeste – atualmente
chamada de América Latina Logísticas – ALL, fruto de sua fusão em 2006.
Mesmo assim, o último trem de passageiros data de 2001, operado pela
Companhia Paulista. Hoje em dia, o célebre edifício da Estação Ferroviária
de Bauru (1939) segue sendo mantido pelo município, que abriga alguns
projetos culturais e de incentivo à preservação da memória ferroviária.

Figura 04: Mapa das antigas indústrias da Vila Antártica. 1.Leito férreo, 2. Estação Ferroviária, 3.
Cia. Antarctica, 4. IRF Matarazzo, 5. Tilibra e 6. Complexo da Sanbra.

Fonte: Google Earth, modificado pelos autores, 2019.

Diante desse contexto, os primeiros espaços industriais da cidade de


Bauru se tornam obsoletos, o que fez com que fossem esvaziados e
entrassem num acelerado processo de degradação. Paulatinamente, foram
se tornando ruínas à mercê do mercado e da especulação imobiliária. O
descaso do poder público em relação ao patrimônio industrial, pode ser
194

revelado pelo caso singular do processo de destombamento do importante


complexo fabril das IRF Matarazzo.

Figuras 05, 06 e 07: Situação do prédio IRF Matarazzo, Área pós-demolição e vazio gerado.

Fonte: Museu Ferroviário Regional de Bauru, 2019.

As atividades da Matarazzo cessaram ainda nos anos 1960, quando a


soja passou a substituir o óleo vegetal vindo do algodão e a fábrica passou a
enfrentar problemas em sua adequação para uma nova demanda nacional e
mundial. Desde então, seu complexo permaneceu ocioso, quando, em 1996,
foi tombado pelo CODEPAC – Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de
Bauru-SP. Mesmo assim, não resistiu à espera por um projeto que lhe
fizesse jus ao passado e à publicização do seu uso. Assim, foi demolido em
2004. Outros edifícios tiveram o mesmo fim, tais como: os antigos edifícios
da Sanbra, da empresa norte-americana Anderson Clayton e, também, da
Companhia Antarctica Paulista, da qual apenas sobrou a chaminé.

3 MARGINALIDADE

A percepção ambiental do antigo leito férreo de Bauru, tal como ele


se encontra, nas imediações da Vila Antártica, pode ser uma maneira de
revelar os traços do seu passado e os processos ligados à renovação de suas
áreas lindeiras. O caminhar como prática estética descrito por Careri (2013)
nos ajuda a produzir interpretações singulares que estão expressas no
ambiente. Uma estratégia que admite, também, a experiência do espaço,
que busca na fenomenologia, maneiras de fazer-ver um lugar cercado de
histórias através das sensações que dele emanam.

Nós acreditamos saber bem o que é “ver”, “ouvir”, “sentir”, porque


há muito tempo a percepção nos deu objetos coloridos ou sonoros.
Quando queremos analisá-la, transportamos esses objetos para
consciência. Cometemos o que os psicólogos chamam de experience
Cidade, História e Patrimônio - 195

error, quer dizer, supomos de um só golpe em nossa consciência das


coisas aquilo que sabemos estar nas coisas. Construímos a percepção
com o percebido. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 25-26)

Por meio de uma deriva urbana sobre o antigo leito férreo contiguo à
área da Vila Antártica foi possível observar que esses espaços residuais são
muito bem delimitados por barreiras físicas, sociais e pelo domínio de
grupos, em uma espécie de comum acordo: produzir e comunicar o medo,
como um artifício para a segregação. Os sinais expressos pelos grafites nos
muros que separam os trilhos do restante da cidade, revelam um aparente
estado de abandono. Ao mesmo tempo, são produto da expressão marginal
que dita as regras dessas áreas, demarcando microterritorialidades. Essas
espacialidades não estão vazias, ao contrário, incitam uma outra ordem dos
espaços. Nelas habitam as subjetividades subalternas e os “outros” –
aqueles que não têm lugar na cidade formal.

Figuras 08, 09 e 10: Debaixo do pontilhão, muro depredado e pichado e Grafite.

Fonte: Acervo dos autores, 2019.

Ao percorrermos os trilhos próximos a um antigo depósito de grãos,


pessoas tentam nos avisar, de longe, para que não continuemos o percurso,
assegurando que “ali já viram muita coisa acontecer”. Nesse momento
somos tomados de assalto justamente pelo medo. Cabe assegurar à
experiência de reconhecimento urbano, apenas os registros fotográficos
distantes, por entre frestas, ou sobre os pontilhões da R. Treze de Maio,
Azarias Leite ou Araújo Leite, ainda que, em alguns trechos do leito férreo.
As marcas do consumo são evidentes. Nota-se ao longo do percurso
pela antiga linha férrea resquícios de embalagens de diversos produtos,
mais comumente sacos plásticos e copos descartáveis das redes vizinhas de
fast-food. É comum ainda, o descarte de embalagens de tamanho pequeno
como salgadinhos e bolachas, além de anéis de lacre de bebidas. O vidro
196

também está presente, como garrafas de cerveja sem valor comercial


agregado. Há, também, a ideia coletiva de que o leito dos trilhos do trem é
como um grande depósito de entulho para destinação dos restos de podas
de árvores e das limpezas de terrenos circunvizinhos.

“Eu já cansei de falar que aqui não é lugar pra jogar entulho. Eles (os
vizinhos) jogam de tudo aqui. Durante a noite que ninguém fica nas
ruas eles jogam lixo, toda a sujeira do quintal que eles tiram eles
jogam aqui, e a Prefeitura não faz nada. Quando eu vejo eu falo que
aqui não é depósito de lixo não. Já estou cansada disso”. (Informação
verbal).73

Figura 11, 12 e 13: Entulho, Subutilização e Descarte sobre o leito férreo.

Fonte: Acervo dos autores, 2019.

Quanto ao imaginário, percebe-se que esses espaços na cidade são


vistos como “terra de ninguém”, não só pelo esvaziamento que a derrocada
do transporte ferroviário causou, como também, pelas muitas apropriações
informais, uma vez que existem vagões desativados dispostos de forma
contígua, formando um cemitério de vagões.
Nos trechos em que os muros são destruídos é possível adentrar o
leito férreo, há vasilhas com água e ração para cães e gatos, mas não se sabe
quem toma partido dessa ação. Podem ser pessoas da cidade formal que
adentram o território, permeiam as barreiras espaciais que ali dividem o
leito férreo do restante da cidade e atuam de forma pontual em prol de uma
causa solidária. Para além disso, pudemos constatar que, em sua grande
parte, o antigo leito férreo hoje é tomado por traços da subutilização,
descarte e marginalidade – esta, por sinal, difícil de ser desvelada durante o
dia. Há, portanto, a tácita necessidade de averiguar seus usos noturnos.

73
Informação verbal obtida através de uma conversa informal iniciada com moradora residente
defronte ao cemitério de vagões. De acordo com sua fala, há 25 anos que acompanha o
processo de decadência do transporte ferroviário na cidade.
Cidade, História e Patrimônio - 197

Figura 14: Mapa do percurso realizado – deriva sobre o leito férreo de Bauru. Nela, cada
número corresponde a uma parada, em ordem crescente.

Fonte: Google Earth, modificados pelos autores, 2019.

4 GENTRIFICAÇÃO

Constatamos através de análise de imagens de satélite fornecidas


pelo software Google Earth, que o edifício da Cia. Antarctica, já se
encontrava destelhado no ano de 2010. Muito próximo a ele, já existia uma
estrutura provisória que, sabidamente, serviria para as obras do futuro
shopping center a ser construído. É no ano de 2012 que é erguido, no
perímetro que ladeia as antigas instalações da Cia. Antarctica, o Shopping
Boulevard. A inserção deste equipamento urbano passaria a ditar as novas
espacialidades da antiga vila, alterando de forma significativa o fluxo viário e
causando diversos impactos do ponto de vista arquitetônico e urbanístico,
mas, sobretudo, modificando os aspectos fundamentais dessa antiga
paisagem urbana.
Em números, o empreendimento representa 34.660 m² de área bruta
comercial, dividida em lojas, megalojas, lojas âncoras, lazer e praça de
alimentação, que, somadas, as áreas utilizáveis totalizam 69.866 m². Para
comportar o fluxo de pessoas e automóveis, 1.450 vagas de estacionamento
são disponibilizadas entre o pátio interno e externo, sendo este, a área que
abrigava as antigas instalações da IRF Matarazzo. Desde a derrubada dos
galpões fabris em 2004, a área permaneceu vazia e, em 2012, foi adquirida
pelo referido centro comercial.
Esse novo empreendimento, em nenhum momento se relaciona com
sua vizinhança. Não há, uma abertura qualquer do edifício voltada para a
chaminé que o ladeia. É tornada, assim, um resquício alegórico do passado,
198

bem ao lado do leito férreo deteriorado. Como um edifício ensimesmado, o


shopping center se revela como reduto que cria realidade própria, descolada
do contexto de obsolescência do leito férreo, de subutilização, descarte e de
marginalidade.
De acordo com levantamentos feitos por Souza e Carvalho (2018), o
empreendimento movimenta um total de aproximadamente 600.000
frequentadores/mês. Um espaço privado para o consumo e o lazer que
independe do que o rodeia, uma vez que se caracteriza por mesmo modelo
de implantação padrão, voltado para o interior. Nota-se, então, que a área
histórica que abrigou as primeiras indústrias de Bauru foi sendo, aos poucos,
colonizada, e o que deveria ser destinado ao bem comum, se restringiu
apenas a uma ação da especulação imobiliária.

Figura 15, 16 e 17: Chaminé e Shopping, Shopping e leito férreo e Paisagem Atual da Vila
Antártica.

Fonte: Acervo dos autores, 2019.

Atualmente, a Vila Antártica possui cerca de 255.000 m², dos quais,


aproximadamente, 80.000 m² estão ocupados pelo Shopping Boulevard,
dentre outros centros comerciais – empreendimentos que ladeiam ou fazem
uso do espaço que antes abrigou a Companhia Antarctica e as indústrias
Matarazzo. Cerca de 40.000 m² ainda pertencem à Tilibra S/A. Os 135.000
m² restantes são, em sua maioria, divididos entre residências, serviços e
outros usos diversos. Cabe ressaltar ainda, que não só a vinda do shopping
alterou a dinâmica da ocupação daquele espaço, como também, novas
edificações vizinhas à Vila Antártica, que seguem o mesmo caráter
construtivo do shopping, sendo estas, “lojas-armazém”, voltadas
estritamente ao consumo, tais como: C&C – Casa e Construção e o Grupo
Tenda Atacado.
Cidade, História e Patrimônio - 199

Figura 18: Mapa da configuração atual da Vila Antártica (2019).


Em preto (elementos remanescentes): 1. Leito férreo, 2. Estação ferroviária, 5. Tilibra. Em
vermelho (novos edifícios): 1. Assaí Atacadista, 2. Agrosolo, 3. Shopping Boulevard, 4.
Estacionamento do shopping, 5. Galeria comercial, 6. Residencial Vila Inglesa, 7. C&C Casa e
Construção, 8. Tenda Atacadista, 9 Chaminé.

Fonte: Google Earth, modificado pelos autores, 2019.

Souza e Carvalho (2018), destacam que devido a supervalorização


imobiliária ocorrida com a vinda do shopping, antigos moradores optaram
por vender seus imóveis pelo alto valor agregado que conseguiram com os
novos projetos comerciais e se deslocaram para áreas mais tranquilas da
cidade, já que esses empreendimentos causam grande impacto sonoro
proveniente do intenso fluxo automobilístico.
Assim, a história incrustada nesses espaços, uma vez responsável
pelo aceleramento do desenvolvimento urbano de Bauru, decorrente da
pujança econômica das plantas fabris, acaba por se esvair na memória
coletiva. A Vila Antártica torna-se, dia após dia, uma área cada vez mais
restrita ao sentido público do espaço, dinamizada sob o viés do consumo
conspícuo. É verdade que estas ações trazem um importante impulso
comercial para a cidade, mas ao preço, da destruição do patrimônio
industrial da Vila Antártica.
Antigos galpões abandonados, que poderiam servir a um projeto de
preservação da história, agora dão espaço a um processo de gentrificação.
Resta saber se, os arredores e o leito férreo do município, não acabarão,
também, seguindo o mesmo caminho, diante dos traços da subutilização,
200

descarte e marginalidade aqui detectado nas circunvizinhanças do Shopping


Center.

5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Muitos leitos férreos do interior paulista, de acordo com Fiorin


(2018) sofrem atualmente com o processo de deterioração. O importante
patrimônio industrial das cidades desenvolvidas com a chegada dos trilhos
do trem, comumente tem sido negligenciado e relegado apenas ao
abandono e à demolição. No caso de Bauru, a chaminé, como reminiscência
de tijolos vertical que sobreviveu ao debacle industrial pode nos dar uma
pista. Não está de pé porque foi tombada pelo órgão municipal, mas, talvez,
por fazer parte de uma roupagem fantasiosa que ilude o espectador, agora
requerida pelos novos empreendimentos comerciais ali construídos. Esta
nova face do consumo, que remete aos antigos galpões industriais divide
espaço com um cenário de degradação do leito férreo desativado. Um lugar
de obsolescência e deterioração que pode se revelar como uma forma de
resistência ao modelo de planejamento instituído no passado, quando do
privilégio rodoviário, bem como, diante do projeto de futuro, que visa agora
lotear suas adjacências para uma renovação voltada apenas para os
interesses do mercado.

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Cidade, História e Patrimônio - 203

ÍNDICE REMISSIVO

espaços livres, 7, 22, 189, 192


especulação imobiliária, 17, 46, 199, 204
A
estrutura urbana, 140, 187
ações preservacionistas, 30, 31, 39 etnografia, 13
ambiência, 19, 22, 27, 28, 38 expressão marginal, 200
ambiente construído, 29, 118, 173, 180
análise histórica, 189, 190 F
antagonismo, 134
ferrovia, 14, 50, 169, 179, 183, 184, 185,
187, 188, 191, 195, 196, 197, 198
B
forma contígua, 202
bairros rurais, 13, 83, 84, 85, 90, 91, 102, formação histórica do território, 183
105, 106
bens culturais, 21, 22, 23, 37, 38, 41, 166 G
galpões industriais, 206
C
gentrificados, 195
caminhar, 194, 200, 206
cidade-polo, 135 H
classificação da natureza, 63, 64
Companhia Estrada de Ferro Noroeste do habitação social, 33
Brasil, 195 história, 7, 12, 13, 16, 17, 25, 32, 36, 37,
conjuntos históricos, 28, 30, 37, 38, 41 60, 66, 76, 115, 118, 123, 125, 163,
conservação cultural, 34 178, 186, 187, 188, 194, 195, 196, 205,
206
Horto Botânico, 13, 65, 66, 67, 68, 72, 75,
D
76, 77, 78, 79
degradação, 21, 25, 31, 34, 191, 199, 206
desenho urbano, 186, 187 I
desenvolvimento econômico, 32, 128,
142, 188, 190 identidade, 15, 17, 33, 34, 36, 37, 39, 45,
desenvolvimento regional, 14, 128, 129, 47, 58, 80, 109, 171, 172, 178, 184,
131, 132, 143 186, 188, 189
desenvolvimento técnico, 130 imaginário, 14, 62, 184, 185, 188, 191,
diversos impactos, 203 202

E L
empreendimentos imobiliários, 191 leito férreo, 15, 194, 195, 196, 198, 200,
empresas férreas, 168 201, 202, 203, 204, 205, 206
espaço construído, 45, 46, 47, 51 lojas-armazém, 204
204

M planos urbanos, 32, 37, 39, 138, 141


preservação, 16, 18, 19, 23, 24, 25, 26, 28,
marginalizados, 195 29, 32, 36, 37, 38, 39, 41, 42, 163, 166,
memória, 14, 37, 41, 66, 163, 168, 170, 168, 170, 171, 174, 181, 198, 205
171, 184, 185, 186, 187, 188, 190, 191, processo projetual, 173, 180
198, 205 projeto neocolonial, 158
missões, 158, 162 projeto original, 159, 161
monumentos históricos, 17, 18, 31, 37, propostas urbanas, 142
38, 170
mundo urbano, 192
Q
Museu de Ciências Naturais, 63, 66
qualidade construtiva, 170
N
R
neolítico, 12
núcleo fundador, 185 reconversão, 171, 186
núcleo urbano, 83, 89, 90, 96, 97, 98, 99, recursos públicos, 179
102, 104, 188 rede de cidades, 87, 88, 195
núcleos coloniais, 47, 53 renovação, 17, 24, 200, 206
reutilização, 168, 170, 171, 172
O
S
orla ferroviária, 189, 193
socioeconômica, 16, 139, 179
P suburbanização, 17

paisagem natural, 12
T
patrimônio arquitetônico, 26, 27, 28, 171,
178 transformações urbanas, 17
patrimônio cultural, 12, 17, 21, 25, 26, 31, transporte rodoviário, 197, 198
33, 35, 36, 37, 38, 39, 42, 181
patrimônio cultural imaterial, 35, 36, 39
patrimônio digital, 36
U
patrimônio ferroviário, 14, 167, 168, 169, urbanismo, 13, 18, 19, 22, 24, 38, 41, 52,
171, 173, 174, 175, 176, 177, 179, 180 56, 59, 60, 121
patrimônio intangível, 34, 35, 38, 39, 40
patrimônio urbano, 194
pensamento preservacionista, 13, 17, 37
V
percepção ambiental, 195, 200 vilas operárias, 53
permanência, 26, 172, 190
planejamento territorial, 14, 45, 58, 59,
127, 130, 138, 141, 143
planos econômicos, 129

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