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Sobre Projeto Urbano:

Entre_ como estratégia para


construção de um
vistas itinerário de pesquisa
Christiane Crasemann Collins _ Jean-Louis Cohen _ Bernardo Secchi
Marco Biraghi _ Yannis Tsiomis _ Otilia Arantes _ José Cláudio Gomes
Benamy Turkienicz _ Rômulo Krafta _ Donatella Calabi _ Guido Zucconi
Projeto Gráfico Jeferson Rocha Chiarini

Ficha Catalográfica

R439s Retto Júnior, Adalberto da Silva, 2022


Sobre Projeto Urbano: Entrevistas como estratégia para construção de um
itinerário de pesquisa / Adalberto da Silva Retto Júnior– Tupã: ANAP, 2022.

300 p; 14,8x21 cm

Requisitos do Sistema: Adobe Acrobat Reader


ISBN 978-65-86753-54-7

1. Projeto urbano. 2. Desenho urbano. 3. Escola de Veneza. 4. Italophilie.


I. Título.
CDD: 710
CDU: 710/49

Índice para catálogo sistemático


Brasil: Planejamento urbano e paisagismo
Sobre Projeto Urbano:
Entre_vistas como estratégia para
construção de um itinerário de pesquisa

Prof. Dr. Adalberto da Silva Retto Júnior


CONSELHO DE PARECERISTAS

Profª Drª Alba Regina Azevedo Arana – UNOESTE


Prof. Dr. Alexandre Carneiro da Silva
Prof. Dr. Alexandre França Tetto – UFPR
Prof. Dr. Alexandre Sylvio Vieira da Costa – UFVJM
Prof. Dr. Alfredo Zenen Dominguez González – UNEMAT
Profª Drª Alina Gonçalves Santiago – UFSC
Profª Drª Aline Werneck Barbosa de Carvalho – UFV
Profª Drª Ana Klaudia de Almeida Viana Perdigão – UFPA
Profª Drª Ana Lúcia Reis Melo Fernandes da Costa – IFAC
Profª Drª Ana Paula Santos de Melo Fiori – IFAL
Prof. Dr. André de Souza Silva – UNISINOS
Profª Drª Andrea Holz Pfutzenreuter – UFSC
Prof. Dr. Antonio Fábio Sabbá Guimarães Vieira – UFAM
Prof. Dr. Antonio Marcos dos Santos – UPE
Profª Drª Arlete Maria Francisco – FCT/UNP
Profª Drª Beatriz Ribeiro Soares – UFU
Prof. Dr. Carlos Andrés Hernández Arriagada
Profª Drª Carmem Silvia Maluf – Uniube
Profª Drª Célia Regina Moretti Meirelles – UPM
Prof. Dr. Cesar Fabiano Fioriti – FCT/UNESP
Prof. Dr. Cledimar Rogério Lourenzi – UFSC
Profª Drª Cristiane Miranda Martins – IFTO
Profª Drª Daniela de Souza Onça – FAED/UESC
Profª Drª Denise Antonucci – UPM
Profª Drª Diana da Cruz Fagundes Bueno – UNITAU
Prof. Dr. Edson Leite Ribeiro – Unieuro – Brasília / Ministério das Cidades
Profª Drª Eliana Corrêa Aguirre de Mattos – UNICAMP
Profª Drª Eloisa Carvalho de Araujo – UFF
Profª Drª Eneida de Almeida – USJT
Prof. Dr. Erich Kellner – UFSCar
Profª Drª Fátima Aparecida da SIlva Iocca – UNEMAT
Prof. Dr. Felippe Pessoa de Melo – Centro Universitário AGES
Profª Drª Fernanda Silva Graciani – UFGD
Profª Drª Flávia Akemi Ikuta – UMS
Profª Drª Flávia Maria de Moura Santos – UFMT
Prof. Dr. Francisco Marques Cardozo Júnior – UESPI
Prof. Dr. Frederico Braida Rodrigues de Paula – UFJF
Prof. Dr. Frederico Canuto – UFMG
Prof. Dr. Frederico Yuri Hanai – UFSCar
Prof. Dr. Gabriel Luis Bonora Vidrih Ferreira – UEMS
Profª Drª Gelze Serrat de Souza Campos Rodrigues – UFU
Prof. Dr. Generoso De Angelis Neto – UEM
Prof. Dr. Geraldino Carneiro de Araújo – UFMS
Profª Drª Gianna Melo Barbirato – UFAL
Prof. Dr. Glauco de Paula Cocozza – UFU
Profª Drª Isabel Cristina Moroz Caccia Gouveia – FCT/UNESP
Prof. Dr. João Cândido André da Silva Neto – UEA
Prof. Dr. João Carlos Nucci – UFPR
Prof. Dr. João Roberto Gomes de Faria – FAAC/UNESP
Prof. Dr. José Aparecido dos Santos – FAI
Prof. Dr. José Manuel Mateo Rodriguez – Universidade de Havana – Cuba
Prof. Dr. Josep Muntañola Thornberg – UPC – Barcelona, Espanha
Profª Drª Josinês Barbosa Rabelo – UFPE
Profª Drª Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia – UFPB
Profª Drª Juliana Heloisa Pinê Américo-Pinheiro – FEA
Prof. Dr. Júnior Ruiz Garcia – UFPR
Profª Drª Karin Schwabe Meneguetti – UEM
Profª Drª Leda Correia Pedro Miyazaki – UFU
Profª Drª Lidia Maria de Almeida Plicas – IBILCE/UNESP
Profª Drª Lisiane Ilha Librelotto – UFS
Profª Drª Luciana Ferreira Leal – FACCAT
Profª Drª Luciana Márcia Gonçalves – UFSCar
Prof. Dr. Marcelo Campos – FCE/UNESP
Prof. Dr. Marcelo Real Prado – UTFPR
Profª Drª Márcia Eliane Silva Carvalho – UFS
Profª Drª Margareth de Castro Afeche Pimenta – UFSC
Profª Drª Maria Ângela Dias – UFRJ
Profª Drª Maria Ângela Pereira de Castro e Silva Bortolucci – IAU
Profª Drª Maria Augusta Justi Pisani – UPM
Profª Drª Maria Betânia Moreira Amador – UPE – Campus Garanhuns
Profª Drª Maria Helena Pereira Mirante – UNOESTE
Profª Drª Maria José Neto – UFMS
Profª Drª Maristela Gonçalves Giassi – UNESC
Profª Drª Marta Cristina de Jesus Albuquerque Nogueira – UFMT
Profª Drª Martha Priscila Bezerra Pereira – UFCG
Profª Drª Martha Priscila Bezerra Pereira – UFCG
Prof. Dr. Maurício Lamano Ferreira – UNINOVE
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Prof. Dr. Natalino Perovano Filho – UESB
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Profª Drª Onilda Gomes Bezerra – UFPE
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Prof. Dr. Ricardo Toshio Fujihara – UFSCar
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Prof. Dr. Rodrigo Gonçalves dos Santos – UFSC
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Prof. Dr. Ronaldo Rodrigues Araujo – UFMA
Prof. Dr. Salvador Carpi Júnior – UNICAMP
Prof. Dr. Sérgio Augusto Mello da Silva – FEIS/UNESP
Prof. Dr. Sergio Luis de Carvalho – FEIS/UNESP
Profª Drª Sílvia Carla da Silva André – UFSCar
Profª Drª Silvia Mikami G. Pina – Unicamp
Profª Drª Simone Valaski – UFPR
Profª Drª Tânia Paula da Silva – UNEMAT
Prof. Dr. Vilmar Alves Pereira – FURG
Prof. Dr. Vitor Corrêa de Mattos Barretto – FCAE/UNESP
Prof. Dr. Xisto Serafim de Santana de Souza Júnior – UFCG
Sumário

Introdução.................................................................9
Entre_vista com Christiane Crasemann Collins............17
Entre_vista com Jean-Louis Cohen..............................37
Entre_vista com Bernardo Secchi.................................55
Entre_vista com Marco Biraghi....................................81
Entre_vista com Yannis Tsiomis....................................113
Entre_vista com Otília Beatriz.....................................131
Entre_vista com José Cláudio Gomes..........................165
Entre_vista com Benamy Turkienicz ............................185
Entre_vista com Rômulo Krafta...................................221
Entre_vista com Donatella Calabi...............................241
Entre_vista com Guido Zucconi...................................281
Sobre o autor.............................................................297
8
Sobre Projeto Urbano: Entre_vistas
como estratégia para construção de
um itinerário de pesquisa

Prof. Dr. Adalberto da Silva Retto Júnior


O presente volume destaca a importância de entrevistas para
construir um itinerário de pesquisa no campo da historiografia e
do projeto urbano em escala internacional, explorando a troca de
informações entre profissionais, temas e problemáticas. Cada
entrevistado é parte do objeto investigado e participa ativamente
da construção dessa prática. Assim, a pesquisa assumiu um caráter
de evento relacional prioritário nesse campo, uma vez que a
interrogação direta dos sujeitos é usada para detectar informações
que têm relação direta com seu objeto de estudo.
Ainda em construção, a série insere-se nesse contexto e o atual
volume ilustra um quadro sinóptico de dez entrevistas realizadas a
partir de 2003. Com elas, montou-se um mosaico cujos personagens,
temas e problemas foram surgindo e sendo expostos pela observação
e reflexão sobre trechos isolados, escolhas, ambiguidades. Algumas
questões foram deixadas em aberto, mas sem abrir mão de discutir
dúvidas e questões mais contundentes.
As entrevistas não configuram uma espécie de “conversa guiada”,
mas as perguntas foram previamente apresentadas e lapidadas, em
conjunto, tendo por base um plano de pesquisa predeterminado,
cujo objetivo primordial era fornecer uma estrutura para que os
entrevistados expressassem seus pontos de vista, a partir de uma
abordagem centrada nas variáveis da
​​ pesquisa e nas características
do fenômeno estudado. Em síntese, as entrevistas foram pensadas
como estratégia de coleta de dados primários ou em combinação
com observações e análises de outros tipos de documentos.
9
Adalberto RETTO JR.

Vale ressaltar que o caminho da investigação não foi linear,


uma vez que cada entrevista descortinava um amplo cenário de
possibilidades. Algumas aconteceram de forma sobreposta e outras
correram em paralelo. A ideia de pesquisa como uma série de fases
previstas de antemão, mas invariavelmente sujeitas a uma revisão
com base na situação específica contingente, está na base do método
científico ao qual aderimos. Não um conjunto de regras a serem
seguidas de forma rígida em todas as situações e, sim, uma sucessão
de passos a partir de uma pergunta cognitiva inicial até uma tentativa
de resposta ainda que provisória, cravejada de escolhas.
Com certeza não se pode proceder às cegas, tanto porque uma
busca exige sistematicidade. Portanto, foi útil elaborar um projeto-
rascunho que serviu, e está servindo de guia, para planejar o trabalho,
mesmo que seja preciso rever as escolhas iniciais.
Entre outras coisas, a elaboração do projeto, juntamente com a
tomada de notas passo a passo, facilitou a reconstrução e a descrição
do caminho percorrido. Tudo isso permitirá aos leitores conhecer o
procedimento, as escolhas e também suas razões, para que também
eles possam julgar a confiabilidade dos resultados, sobretudo, com
base nessas informações.
A seguir, considerando a premissa sobre a não rigidez do
método científico, ilustro um hipotético caminho de pesquisa – o
complexo resultado da referência a vários estudos sobre o assunto
e a experiência na área – como forma de deixar o campo aberto a
inovações que comportem decisões mais adequadas à cada situação
específica de pesquisa.
Qualquer investigação começa com uma pergunta, uma
curiosidade científica. É o desejo de responder a uma questão
cognitiva que nos leva a iniciar uma busca. No entanto, dificilmente
essa questão se delineia de forma clara logo de início. Parte-se
antes de uma situação problemática “opaca” e a própria delimitação

10
Introdução

do problema específico já é o primeiro produto do trabalho do


pesquisador, que faz um recorte, uma escolha dentre outras tantas
possíveis. Decide-se privilegiar alguns aspectos e não outros, para
focalizar questões específicas e não outras. Essa é uma primeira
operação de esclarecimento, necessária para não proceder às cegas.
A introdução do livro O Diálogo Desenhado: Planos Diretores e
a Nova Agenda Urbana, do qual faz parte a entrevista com o prof.
Benamy Turkienicz, destaca que
[...]uma série de perguntas foram propostas e debatidas: a
transmissão de um processo ou de uma abordagem; a interação entre
teoria e prática, a relação com a pesquisa; a interdisciplinaridade
na complementaridade que se apoia no reconhecimento de uma
especificidade arquitetônica do projeto urbano; o reforço de laços
entre profissionais; a relação com os protagonistas do projeto
urbano e as coletividades; a valorização da profissão de arquiteto-
urbanista; a integração de competências de profissões próximas
(paisagistas, engenheiros etc.); e, enfim, a questão dos profissionais
práticos e dos pesquisadores em arquitetura que não se situam no
setor operacional das universidades, nem são relacionados aos
saberes “puros” (da sociologia, da história urbana etc.), mas em
relação aos saberes híbridos, constituindo-se na interseção entre
as teorias, as doutrinas e as práticas. (RETTO JR, A.S., 2021, p.11)

Questionou-se ainda quais são as imagens norteadoras


(realizações e/ou episódios do projeto) emergentes em cada país e
que autores/escolas podem ter sido um ponto de referência.
Inevitavelmente, as referências são múltiplas e, muitas vezes,
pertencem a campos disciplinares diferentes, sobretudo quando
a investigação assume uma ampla gama objetivando explorar os
diversos contextos em que tais teorias se sedimentam, pois
[...] Parte-se do pressuposto que questões teóricas formuladas
em determinado lugar, em circunstâncias específicas e com
determinadas raízes culturais, podem ter intérpretes em todos
os lugares como sinal não somente da circulação das informações
características de nosso tempo, mas também de que a própria

11
Adalberto RETTO JR.

disciplina possa encontrar elementos fundantes autônomos


em diferentes nacionalidades. (RETTO JR, A.S., 2021, p.9)

Entretanto, não podemos negligenciar o fato de que partimos de


referências importantes. Algumas relacionadas ao debate acontecido
no Simpósio Camillo Sitte, realizado em Viena, em novembro
de 2003, para celebrar o centenário e a difusão da retomada dos
princípios de Sitte no início dos anos 2000. Outras apontam que as
origens da questão estão nas análises morfotipológicas da cidade,
realizadas na Itália no início da década de 1960. As duas referências
não são excludentes, mas seguiram linhas diferentes na pesquisa.
Assim como não se excluem as observações relevantes cotejadas
no livro O Lugar da Arquitetura Após os Modernos de Otília Beatriz
Fiori Arantes (São Paulo: Edusp/Stúdio Nobel/FAPESP, 1993) e
a pesquisa dedicada aos ensinamentos da L’italophilie (1984), do
arquiteto e historiador francês Jean-Louis Cohen.
Publicados em 1984, os resultados da pesquisa de Cohen mostram
uma multiplicidade de métodos que vão da análise clássica de textos
à de entrevistas realizadas com os protagonistas dos fenômenos
abordados e que, em certa medida, nortearam a série em construção.
Vale enumerar os principais temas desenvolvidos pelo autor,
pois apresentam um fio condutor que pode servir de referência,
resguardando as particularidades da linha francesa da italofilia dos
anos 1970. Dentre os temas expostos, destacam-se:
- O papel central do Estado na produção e ensino de arquitetura
e urbanismo na França (sob a forma de iniciativas, pressões e
intervenções ocorridas desde o século XVII);
- A identificação de uma nova imagem do arquiteto como
intelectual que entra em cena na Itália do pós-guerra (com o
esclarecimento prévio da relação ambígua entre arquitetura e
política durante o período fascista);
- A reavaliação de um modelo urbano Italiano, já analisado por

12
Introdução

várias teorias urbanas do início do século XX e em obras como A


Construção das cidades segundo seus princípios artísticos (Der
Städtebau nach Seinen Künstlerischen Grundsätzen (1889), de
Camillo Sitte ou em Platz und Monument (1908), de Albrecht Erich
Brinckmann;
- E, claro, o aparecimento e importância do conceito de progetto
storico, como exposto por Manfredo Tafuri na linha traçada por
temas e conhecimentos fundadores da chamada escola de Veneza.
Mais recentemente, duas atividades complementares às
entrevistas foram desenvolvidas e provaram ser importantes etapas
de revisão, sedimentação e abertura de novos horizontes:
1- O curso L’Italophilie: arquitetura e cidade, organizado no âmbito
do Curso internacional de Especialização em Planejamento
Urbano e Políticas Públicas: Urbanismo, Paisagem, Território,
realizado no segundo semestre de 2021, com a participação
de especialistas e protagonistas estrangeiros e brasileiros.
A palestra de abertura, pelo próprio Jean-Louis Cohen,
intitulava-se: L’italofilia del post-68: riflessioni retrospettive1.
1 Programa do Curso L’Italophilie: arquitetura e cidade:
L’italofilia del post-68: riflessioni retrospettive, palestra de abertura por Jean-Louis Cohen;
La tradizione italiana dell’analisi urbana e le città di oggi, por Alberto Ferlenga reitor do IUAV
de Veneza;
La Tendenza: une avant-garde architecturale, por Cristiana Mazzoni, prof. da ENSA Paris - Bel-
leville. Mediadora: Profa. Dra. Regina Meyer, da FAUUSP, São Paulo;
La città scritta: Carlo Aymonino, Vittorio Gregotti, Aldo Rossi, Bernardo Secchi, Giancarlo de
Carlo; por Stefano Boeri, do Politecnico de Milão. Mediador: Prof. Dr. Jorge Figueira, da Uni-
versidade de Coimbra;
Ceci tuera cela: l’architettura raccontata nei libri, por Marco De Michelis, da Universidade
Bocconi. Mediadora: Profa. Dra. Aline Sanches, IAU USP, São Carlos;
L’architetto come intellettuale, por Marco Biraghi, do Politécnico de Milão. Mediador: Prof. Dr.
José Luis Chacon, da Universidad dos Andes, Colômbia;
Manfredo Tafuri e Aldo Rossi in the United States por Diana Agrest, da Escola de Arquitetura
da Universidade de Princeton. Mediador: Prof. Dr. Vicente Del Rio, da Universidade de San Luis
Obispo, Califórnia.
Planos Diretores e Estudos Morfológicos no Brasil : o persistente desencontro entre a prática
e a teoria - palestra de encerramento com prof. Benamy Turkienicz.

13
Adalberto RETTO JR.

2- Aulas ministradas em formato remoto na disciplina “Urbanismo


VI: Requalificação Urbana” (Unesp – 1o. semestre 2020),
intituladas “Os espaços de diálogo entre a Requalificação
Urbana e o Desenho Urbano”, explorando a relação entre
projeto urbano e a cidade existente2.
As entrevistas foram, portanto, e estão sendo, o principal
instrumento de coleta de dados visando um método qualitativo,
amplamente utilizado nas ciências humanas e sociais, e distinto do
quantitativo pela natureza do objeto de estudo e pelos propósitos
da própria pesquisa. Ambos determinam fortes diferenças entre as
duas abordagens quanto ao tipo de dados examinados, campo de

2 Programa do curso: Entre a Requalificação Urbana e o Desenho Urbano.


Entre a Requalificação Urbana e o Desenho Urbano. DER STÄDTBAU e a Redescoberta da
Urbanidade. Prof. Dr. Adalberto da Silva Retto Junior (UNESP - Bauru);
As Terminologias nas Intervenções Urbanas. Diálogos e Rupturas no Centro de São Paulo. Prof.
Dra. Geise Brizotti Pasquotto (UNESP - Bauru);
O Diálogo Desenhado: Planos Diretores e a Nova Agenda Urbana. Prof. Dr. Benamy Turkienicz
(UFRGS);
Algumas Relações entre Ciência da Cidade e o Desenho Urbano. Prof.Dr. Rômulo Krafta
(UFRGS);
Novas Funções para o Parque Dom Pedro II. Prof. Dra. Regina Meyer (FAU - USP), Pablo Hereñú
(H + F) e Fernanda Bárbara (UNA);
Manobras. Paulo Mendes da Rocha e a Preexistência. Prof. Dr. Daniele Pisani (Politécnico de
Milão);
Diálogos e Rupturas no Centro de São Paulo: O Complexo Cultural Teatro da Dança. Prof. Dra.
Geise Brizotti Pasquotto (Unesp Bauru);
Lina Bo Bardi e a Busca por um Humanismo no Pós-Guerra: Primeiros Ecos dos Encontros do
CIAM no Brasil. Prof. Dra. Anat Falbel (PROURB/UFRJ);
Reinventando o Vazio: Lina Bo Bardi e o MASP. Prof. Dr. Zeuler de Lima (Universidade de
Washington em St. Louis;
Arquitetura Conversável. Arquiteto Marcelo Ferraz;
Diálogos entre Desenvolvimento Urbano e Patrimônio: Projetos como Reflexão. Prof. Dr.
Silvio Oksman (Escola da Cidade – Mackenzie);
Patrimônio Cultural Urbano e a Antropologia da Cidade. Prof. Dr. Heitor Frugoli Jr. (FFLCH-
USP)
Além das palestras dos professores Frederico de Holanda e Maria Elaine Kolsdorf, ambos da
UnB.

14
Introdução

investigação, conceito de representatividade da amostra, métodos


de condução do processo de conhecimento, técnicas de coleta de
dados e posterior análise dos resultados.
O importante é continuamente analisar se o problema está
definido, se os conceitos relevantes foram e estão sendo identificados,
e verificar se outros pesquisadores, antes de nós ou ao mesmo tempo,
estão investigando o mesmo problema e/ou coletando as informações
(talvez até no mesmo contexto), para checarmos se nossas escolhas
são adequadas ou não quanto à construção da amostra e à forma de
contato com os sujeitos, ou à formulação das questões e ao tipo de
aplicação do instrumento.
Nesse sentido, esta é uma série em construção, uma série
atenta à observação do espaço urbano e sua relação com a cidade
existente, e dos modos de vida, para absorver o debate em torno do
património da cidade e que será inserido em novas configurações
que inevitavelmente terão novos valores e significados.

15
16
Entre_vista com Christiane Crasemann
Collins

1. Introdução

Der Städtebau nach seinen Künslerische Grundsätzen


Camillo Sitte

Christiane Crasemann Collins e trajetórias transatlânticas


Adalberto da Silva Retto Júnior
Christiane Crasemann Collins desembarca pela primeira vez
no Brasil para participar do I Congresso Internacional de História
Urbana “Camillo Sitte e a circulação das idéias em estética urbana:
Europa e América Latina, 1880-1930”, apresentando “Notable
highlights in the transfer of Camillo Sitte’s ideas to Latin America”.
Sua curiosidade, acompanhada de seu entusiasmo e generosidade
durante a realização do Symposium Camillo Sitte, em Viena (nov.
2003), fundamentaram a empreitada que acabamos de realizar: um
verdadeiro debate de história comparada entre especialistas sobre
estética urbana discutindo algumas “trajetórias transatlânticas”,
circulação de idéias, modelos e suas declinações.

17
Adalberto RETTO JR.

Collins é uma referência importante para historiadores da cidade


e para urbanistas, arquitetos e paisagistas. Os primeiros a conhecem
pela tradução fiel e integral para a língua inglesa, e sofisticada crítica
filológica, da obra do austríaco Camillo Sitte (Der Städtebau nach
seinen Künslerische Grundsätzen, 1965), elaborada juntamente com
seu marido George Collins. Para os segundos, a tradução do Der
Städtebau na década de 1960 se transformou no símbolo de “retorno
à cidade” e, ao mesmo tempo, a sustentação de uma nova corrente da
arquitetura e do urbanismo contemporâneos.
A perspectiva aberta a partir destes dois eixos pode ser guiada
e sustentada, ao mesmo tempo, com aportes iluminadores se
confrontarmos com publicações da época: Town design, 1953, de
Frederick Gibberd; L’urbanistica e l’avvenire delle città, 1959, de
Giuseppe Samonà; The image of the city, 1960, de Kevin Lynch1,
Studi per uma operante storia di Venezia, 1960, de Saverio Muratori,
The death and life of great american cities, 1961, de Jane Jacobs2;
Towscape, 1961, de Gordon Cullen3; The city in history, 1961, de Lewis
Munford4; Le origini dell’urbanistica moderna, 1963, de Leonardo
Benevolo5; Notes on the synthesis of form, 1964, de Christopher
Alexander; Questioni di architettura e urbanística, 1964, de Giancarlo
De Carlo; Origini e sviluppo della città moderna, 1965, de Carlo
Aymonino; Urbanistica, 1966, de Giovanni Astengo; L’ architettura
della città, 1966, de Aldo Rossi6; Il território dell’architettura, 1966, de
Vittorio Gregotti7; Immagine di Roma, 1969, de Ludovico Quaroni, La
città di Padova: saggio di analisi urbana, 1969, de Carlo Aymonino et

1 LYNCH, Kevin. Imagem da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1980.


2 JACOBS, Jane. Morte e vida de grande cidades. São Paulo, Martins Fontes, 2000.
3 CULLEN, Gordon. Paisagem urbana. São Paulo, Martins Fontes, 1983.
4 MUNFORD, Lewis. A cidade na história. São Paulo, Martins Fontes, 1991.
5 BENEVOLO, Leonardo. Origens da urbanistica moderna. Lisboa, Presença, 1981.
6 ROSSI, Aldo. Arquitectura da cidade. Lisboa, Cosmos, 1977. São Paulo, Martins Fontes,
1995.
7 GREGOTTI, Vittorio. Território da arquitetura. São Paulo, Perspectiva, 1975.

18
Entre_vista com Christiane Crasemann Collins

all; Design with nature, 1969, de Ian McHarg.


Esta visão amplificada nos faz pensar na formação de dois
processos, com matizes, que se afirmaram no curso desses últimos
anos: a afirmação do âmbito disciplinar do town design, em resposta à
crise de identidade da cidade ocidental, e a valorização do fragmento,
que em muitos casos reflete-se no culto do Patrimônio Histórico.
No campo dos estudos urbanísticos, a tradução deDer Städtebau
pelos Collins participa de um momento de reavaliação do movimento
moderno dos CIAM, que desmontaria, inclusive, afirmações de Le
Corbusier e de Gideon sobre o texto de Sitte, visto como símbolo de
um convencionalismo retrógrado e de passadismo, e que exprimia a
nostalgia de um homem incapaz de compreender o próprio tempo
e de reconhecer a revolução técnica e social que se colocava diante
dos seus olhos.
Do ponto de vista projetual coloca-se em crise o ideal de totalidade
e universalidade do Plano que, em certa medida, alimentaria o debate
da consolidação de um “salto de escala” na resolução da cidade.
Neste cenário, e com algumas décadas de distância, re-emerge
outro personagem também estudado por Collins: Werner Hegemann
(1881-1936), através da re-edição (1988) do texto com Albert Peets,
The american Vitruvius: an archietect’s handbook of civic art (1ª ed.,
1922) e, mais recentemente, através do seu livro intitulado “Werner
Hegemann and the search for universal urbanism” (2005).
Assim como os manuais de Stübben e Unwin, o texto de Hegemann
e Peets definido pelos autores como um thesaurus, tem como
principal referência Camilo Sitte. O próprio Hegemann distinguira,
os adeptos de Sitte em dois grupos: a maioria que assimilou somente
o lado pitoresco de suas obras e os, como Unwin, Abercrombie,
Brinkmann e Gurlitt, que assimilaram os aspectos mais importantes.
Em tempos recentes, a interpretação medievalista de Sitte obteve
um certo crédito como, por exemplo, no livro Storia dell’urbanistica,

19
Adalberto RETTO JR.

il novecento (1985) de Paolo de Sica, que estabelece associação entre


informal-natural-democrático-medieval, ou ainda, no debate sobre
o denominado “New Urbanism”, como acena o estudo de Andrés
Duany e Elizabeth Plater-Zyberk’s, “The new civic art: elements of
town planning”8.
É justamente aqui que a tradução do Der Städtebau e a re-
edição do The american Vitruvius assumem uma trajetória comum
demonstrando um elo de interação, de reflexão e objetivos com
os manuais de perspectiva elementarista, especialmente aqueles
redigidos no clima positivista da segunda metade até o final do
século XIX, quando a relação entre o todo e as partes da cidade era
vista em termos menos problemáticos. Mais do que enfatizar o clima
positivista, estes manuais assumem um papel chave na construção
do imaginário científico e social.
Neste ponto, a explicação de André Chastel sobre tratados e
manuais adquire certa importância, pois os manuais operam uma
espécie de total contradição da experiência para a sincronia e a
identidade pressupondo uma ordem estável das coisas e extrapolam
“os materiais sob a forma de exemplos” e descontextualizam no
tempo e no espaço seus objetos, criando “um repertório sistemático
de ilustrações sobre a arte de construir por elementos e por tipos”9.
Por um lado, a aproximação pode ser notada na idéia de instituir
uma série de relações entre os elementos dentro de esquemas
funcionais relativamente autônomos e um conjunto dos mesmos,
a fim de garantir o funcionamento do organismo urbano e de uma
composição urbana unitária. A pesquisa de elementos unitários e
também a metáfora orgânica estabelecem uma continuidade, um
percurso sem fraturas, que une os manuais dos últimos anos do

8 DUANY, Andes; PLATER-ZYBERK, Elizabeth; ALMINANA, Robert. The new civic art -
elements of town planning. Nova York, Rizzoli, 2003.
9 CHASTEL, André. Architettura e cultura nella Francia del cinquecento. Torino, Ei-
naudi, 1991.

20
Entre_vista com Christiane Crasemann Collins

século XIX aos do pós Segunda Guerra. Os elementos de ruptura


com a tradição arquitetônica urbana introduzida pelo Movimento
Moderno não chegam a colocar em discussão, de modo radical, os
princípios compositivos do town design.
Por outro, na presença constante de alguns temas: no final do
séc. XIX, o centro temático da Civic art era o projeto das novas
expansões, em especial, de estabelecimentos com densidades
diferentes daquelas da cidade compactada. Os exemplos contidos
nos manuais de Stübben, antes, de Unwin, Hegemann, e depois, de
Gibberd e Lynch, mostram quanto foi refletido sobre a possibilidade
de inovação da forma da cidade a partir dos seus elementos.
Seguindo um movimento contrário, o debate arquitetônico no
seio do CIAM, com a formação, sobretudo do Team X e de seus
desdobramentos, não se remeterá fundamentalmente em causa desta
“deslocação”: as estruturas dos vários tecidos propostos manterão os
seus valores universais, mas também vêm à tona adaptabilidades aos
terrenos concretos garantindo a riqueza potencial dos dispositivos
combinados exibidos na materialidade das paisagens.
O que é colocado em evidência, quando remontamos ao elenco
de publicações lançadas na época, não é o objeto singular para
ser assumido como modelo, ao contrário, cada imagem singular
reporta a um elenco de requisitos do espaço urbano que não nascem
autonomamente de uma bagagem técnica ideal organizada pelo
projetista e contido, por exemplo, na Carta de Atenas, mas das
observações empíricas, da colheita de dados mesmo mínimos sobre
a experiência do visível.
Será no livro de Gordon Cullen que emergirá a centralidade
do conceito de townscape, que além de individualizar o léxico
e a sintaxe para a descrição e valorização do contexto, enuncia
claramente critérios para a ação projetual. Logo, o townscape se
baseia nos princípios relacionais das diferenças significativas, um

21
Adalberto RETTO JR.

contextualismo urbano que pesquisa o caráter, a identidade do sítio


e, no limite, os lugares heterogêneos.
Isso pode ajudar a compreender a atenção que na Itália, entre a
metade e fim dos de 1950, o desenvolvimento de um momento peculiar
do debate disciplinar voltado para categorias de interpretação do
townscape, dando lugar a interpretações particulares. De um lado
o universo italiano e francês, de outro, o universo norte-americano
que encontra na figura de Janes Jacobs um personagem chave. Mas,
será o aporte inglês aquele em que a nova disciplina encontraria
sua plenitude. Foi das páginas da Architectural Review que Gordon
Cullen, De Wolfe, Nairn, Richard, Browne, Crowe, De Maré e outros,
exprimem os desejos de urbanidade, de complexidade urbana, em
contraposição à expansão da cidade sem qualidade e contra a baixa
densidade das New Towns, realizadas com uma linguagem urbana
pobre.
O manual de Frederick Gibberd, dentro deste contexto, ganha
significação particular por duas razões. Em primeiro lugar, porque
se trata de um manual de town design que, em tempos modernos,
se insere com clareza nas tradições dos manuais de Sitte, Unwin,
Hegemann e que, com esses, estabelece um posicionamento não
banal de continuidade, propondo a conciliação da tradição do civic
design com as posições do Movimento Moderno. Em segundo lugar,
por que Gibberd definirá de modo amplo os princípios do town
design, evitando parar, como muitos textos de civic design, diante
dos problemas contemporâneos. Os elementos urbanos são materiais
para organizar dentro de uma idéia geral de cidade e “O town design
compreende arquitetura, landscape e desenho das estradas, que
perdem a sua individualidade para transformar-se em uma coisa
nova: a cena urbana”.
É evidente a semelhança das posições de Gibberd e Gordon
Cullen. Na introdução de Townscape, Cullen estende à cidade inteira
e aos seus habitantes, a faculdade que Gibberd atribui a um conjunto

22
Entre_vista com Christiane Crasemann Collins

de edifícios e de elementos urbanos, ratificando a afirmação de que


“a representação do plano da cidade é o primeiro degrau do town
design, mas é freqüentemente o último desenho do town planning”.
Entender o conceito de townscape como uma arte implica em uma
leitura do ambiente urbano evidenciando suas conotações estéticas.
Definição que caracterizaria o modelo chamado por Françoise Choay
de “culturalista”10 e que permeia os escritos de Camillo Sitte.
Apesar do termo townscape remontar quase uma década antes
da publicação do livro homônimo, encontra suas origens culturais
no fim do segundo conflito mundial e tem como principal porta voz
a revista inglesa “Architectural Review”, que não só chamava atenção
para necessidade de retorno aos valores perceptivos da forma urbana,
mas também, se torna o berço e canal de divulgação das temáticas
que embasariam a formação do corpus disciplinar daquilo que hoje
definimos como urban design.
Cada um dos manuais citados teve sucesso alternado. Entretanto,
a arte de que todos eles enunciam, é uma arte que constrói o
problema, não diretamente as soluções. As pesquisas e estudos
progridem e desvelam novos conceitos relativos à “arquitetura
urbana”, à “composição urbana” e ao “projeto urbano”. A palavra
“urbano”, que adjetiva estes substantivos, exprime nada mais que a
tensão dos pesquisadores e urbanistas em indicar novos âmbitos que
põem em crise àquela que parece ser a não-cidade nascida depois
dos modernos.

10 CHOAY, Françoise. Urbanismo: utopias e realidades. São Paulo, Perspectiva, 1979.

23
Adalberto RETTO JR.

2. Der Städtebau

Capa do livro Der Städtebau nach seinen Künslerische


Grundsätzen, de Camillo Sitte, lançado durante o
Symposium Camillo Sitte, em Viena 2003. Organizado
por Christiane Crasemann Collins, Klaus Semroth,
Michael Mönninger

Adalberto da Silva Retto Júnior: Por ocasião do I Congresso


Internacional de História Urbana foi abordada de forma muito
elucidativa a circulação das idéias, dos saberes, dos modelos, de
livros, tratados e de profissionais. Pode-se constatar, dentro de uma
perspectiva comparada, que o sucesso internacional da obra do de
Camillo Sitte Der Städtebau nach seinen Künslerische Grundsätzen,
publicado pela primeira vez em Viena em 1889, atingiu um repentino
sucesso entre um público de especialistas ou semi-especialistas
de planificação urbana assumindo diferentes contextualizações.
A tradução elaborada por Camille Martin (1902) publicada quase
concomitante à referida obra assume um papel importante nesses

24
Entre_vista com Christiane Crasemann Collins

primeiros anos de difusão. Mas é a partir do fim dos anos sessenta,


com a desmistificação dos CIAM – Congressos Internacionais de
Arquitetura Moderna e com o mundo submerso pelo crescimento
de uma urbanização incontrolada, que se pode pensar em uma nova
trajetória para o Der Städtebau, graças à tradução fiel e integral e a
uma crítica filológica elaborada pela senhora e seu marido George
Collins (1965). Quais as diferenças de maior relevância da tradução
feita por vocês e àquela de Camille Martin?
Christiane Crasemann Collins: A tradução de Camille Martin do
livro de Camillo Sitte Der Städte-Bau nach seinen künstlerischen
Grundstitzen (1889) foi publicada em 1902 e novamente em 1918. Ao
invés de apresentar uma tradução cuidadosa do texto original de
Sitte, Martin produziu um livro totalmente diferente. As alterações
de Martin envolveram o significado da mensagem de Sitte assim
como a substituição das ilustrações. G.R. e C.C. Collins, Camillo Sitte:
the birth of modern city planning (1986) dedicam nove páginas (p. 78-
86) a uma detalhada análise das alterações de Martin ao trabalho de
Sitte. Eles também discutem o dano que esta tradução (de C. Martin)
causou ao legado de Sitte.
Quando a primeira edição da tradução dos Collins foi publicada
em 1965 (em dois volumes), junto com uma discussão crítica de
Der Städte-Bau de Camillo Sitte e da sua difusão, sua recepção
foi condicionada pela reação emergente de arquitetos contra o
Movimento Moderno e os princípios do CIAM. O descontentamento
em celebrar edifícios como objetos artísticos destacados do próprio
tempo e espaço, ignorando seu contexto cultural e físico começava
a ser visto como anti-humanístico e indiferente às necessidades
sociais. Estas realizações alteraram a atenção relativa à cidade e
ao projeto urbano exigindo uma efetiva entrada de arquitetos no
debate. Camillo Sitte tornou-se o espírito guardião da redescoberta
da urbanidade na cidade e da validez dos seus princípios artísticos
para o urbanismo contemporâneo. O despertar dos arquitetos, ao ver

25
Adalberto RETTO JR.

seus edifícios neste contexto mais amplo, levou a uma transformação


da profissão que perdura até nossos dias. Como resultado deste
processo, a disciplina urbanismo evoluiu num processo reflexivo
dando forma física ao ambiente construído, respondendo às
aspirações das pessoas.

3. Declinações locais

Camillo Sitte and the birth of modern city planning.


George R. Collins e Christiane Crasemann Collins.
Columbia University / Random

Adalberto da Silva Retto Júnior: Por ocasião do I Congresso


Internacional de História Urbana foi abordada de forma muito
elucidativa a circulação das idéias, dos saberes, dos modelos, de
livros, tratados e de profissionais. Pode-se constatar, dentro de uma
perspectiva comparada, que o sucesso internacional da obra do de
Camillo Sitte Der Städtebau nach seinen Künslerische Grundsätzen,
publicado pela primeira vez em Viena em 1889, atingiu um repentino

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Entre_vista com Christiane Crasemann Collins

sucesso entre um público de especialistas ou semi-especialistas


de planificação urbana assumindo diferentes contextualizações.
A tradução elaborada por Camille Martin (1902) publicada quase
concomitante à referida obra assume um papel importante nesses
primeiros anos de difusão. Mas é a partir do fim dos anos sessenta,
com a desmistificação dos CIAM – Congressos Internacionais de
Arquitetura Moderna e com o mundo submerso pelo crescimento
de uma urbanização incontrolada, que se pode pensar em uma nova
trajetória para o Der Städtebau, graças à tradução fiel e integral e a
uma crítica filológica elaborada pela senhora e seu marido George
Collins (1965). Quais as diferenças de maior relevância da tradução
feita por vocês e àquela de Camille Martin?
Christiane Crasemann Collins: A tradução de Camille Martin do
livro de Camillo Sitte Der Städte-Bau nach seinen künstlerischen
Grundstitzen (1889) foi publicada em 1902 e novamente em 1918. Ao
invés de apresentar uma tradução cuidadosa do texto original de
Sitte, Martin produziu um livro totalmente diferente. As alterações
de Martin envolveram o significado da mensagem de Sitte assim
como a substituição das ilustrações. G.R. e C.C. Collins, Camillo Sitte:
the birth of modern city planning (1986) dedicam nove páginas (p. 78-
86) a uma detalhada análise das alterações de Martin ao trabalho de
Sitte. Eles também discutem o dano que esta tradução (de C. Martin)
causou ao legado de Sitte.
Quando a primeira edição da tradução dos Collins foi publicada
em 1965 (em dois volumes), junto com uma discussão crítica de
Der Städte-Bau de Camillo Sitte e da sua difusão, sua recepção
foi condicionada pela reação emergente de arquitetos contra o
Movimento Moderno e os princípios do CIAM. O descontentamento
em celebrar edifícios como objetos artísticos destacados do próprio
tempo e espaço, ignorando seu contexto cultural e físico começava
a ser visto como anti-humanístico e indiferente às necessidades
sociais. Estas realizações alteraram a atenção relativa à cidade e

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Adalberto RETTO JR.

ao projeto urbano exigindo uma efetiva entrada de arquitetos no


debate. Camillo Sitte tornou-se o espírito guardião da redescoberta
da urbanidade na cidade e da validez dos seus princípios artísticos
para o urbanismo contemporâneo. O despertar dos arquitetos, ao ver
seus edifícios neste contexto mais amplo, levou a uma transformação
da profissão que perdura até nossos dias. Como resultado deste
processo, a disciplina urbanismo evoluiu num processo reflexivo
dando forma física ao ambiente construído, respondendo às
aspirações das pessoas.

4. Circulação dos saberes

Werner Hegemann and the search for universal


urbanism, de Christiane Crasemann Collins, 2005

Adalberto da Silva Retto Júnior: Por ocasião do I Congresso


Internacional de História Urbana foi abordada de forma muito
elucidativa a circulação das idéias, dos saberes, dos modelos, de
livros, tratados e de profissionais. Pode-se constatar, dentro de uma
perspectiva comparada, que o sucesso internacional da obra do de

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Entre_vista com Christiane Crasemann Collins

Camillo Sitte Der Städtebau nach seinen Künslerische Grundsätzen,


publicado pela primeira vez em Viena em 1889, atingiu um repentino
sucesso entre um público de especialistas ou semi-especialistas
de planificação urbana assumindo diferentes contextualizações.
A tradução elaborada por Camille Martin (1902) publicada quase
concomitante à referida obra assume um papel importante nesses
primeiros anos de difusão. Mas é a partir do fim dos anos sessenta,
com a desmistificação dos CIAM – Congressos Internacionais de
Arquitetura Moderna e com o mundo submerso pelo crescimento
de uma urbanização incontrolada, que se pode pensar em uma nova
trajetória para o Der Städtebau, graças à tradução fiel e integral e a
uma crítica filológica elaborada pela senhora e seu marido George
Collins (1965). Quais as diferenças de maior relevância da tradução
feita por vocês e àquela de Camille Martin?
Christiane Crasemann Collins: A tradução de Camille Martin do
livro de Camillo Sitte Der Städte-Bau nach seinen künstlerischen
Grundstitzen (1889) foi publicada em 1902 e novamente em 1918. Ao
invés de apresentar uma tradução cuidadosa do texto original de
Sitte, Martin produziu um livro totalmente diferente. As alterações
de Martin envolveram o significado da mensagem de Sitte assim
como a substituição das ilustrações. G.R. e C.C. Collins, Camillo Sitte:
the birth of modern city planning (1986) dedicam nove páginas (p. 78-
86) a uma detalhada análise das alterações de Martin ao trabalho de
Sitte. Eles também discutem o dano que esta tradução (de C. Martin)
causou ao legado de Sitte.
Quando a primeira edição da tradução dos Collins foi publicada
em 1965 (em dois volumes), junto com uma discussão crítica de
Der Städte-Bau de Camillo Sitte e da sua difusão, sua recepção
foi condicionada pela reação emergente de arquitetos contra o
Movimento Moderno e os princípios do CIAM. O descontentamento
em celebrar edifícios como objetos artísticos destacados do próprio
tempo e espaço, ignorando seu contexto cultural e físico começava

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Adalberto RETTO JR.

a ser visto como anti-humanístico e indiferente às necessidades


sociais. Estas realizações alteraram a atenção relativa à cidade e
ao projeto urbano exigindo uma efetiva entrada de arquitetos no
debate. Camillo Sitte tornou-se o espírito guardião da redescoberta
da urbanidade na cidade e da validez dos seus princípios artísticos
para o urbanismo contemporâneo. O despertar dos arquitetos, ao ver
seus edifícios neste contexto mais amplo, levou a uma transformação
da profissão que perdura até nossos dias. Como resultado deste
processo, a disciplina urbanismo evoluiu num processo reflexivo
dando forma física ao ambiente construído, respondendo às
aspirações das pessoas.

5. Werner Hegemann

Werner Hegemann no atelier de Luckhardt. Coleção


CCCC

Adalberto da Silva Retto Júnior: Sabe-se que para quem quiser


conhecer a trajetória de Heggeman, convém esclarecer, que a revisão
de sua obra na historiografia do urbanismo começa em meados dos
anos setenta, com a republicação na Itália de dois de seus textos

30
Entre_vista com Christiane Crasemann Collins

principais: os catálogos das exposições de 1910 e 1911 (Werner


Hegemann, Catalogo delle esposizioni internazinali di urbanística.
Berlino 1910 e Düsseldorf 1911-12, Milano, Il Saggiatore, 1975). A esses,
pode-se agregar o seu aporte que foi fundamental para complementar
o perfil de uma figura tão complexa como se nota no seu ensaio
“Hegemann and Peets: cartographers of an imaginary atlas”, sobre
seu trabalho nos Estados Unidos e sua colaboração com Albert Peets
publicado na introdução da reedição do The american Vitruvius:
an architects’ handbook of civic art, 1988. Qual a contribuição de
Hegemann para a cultura urbanística latino americana?
Christiane Crasemann Collins: Indubitavelmente, a publicação
italiana (1975) de trabalho de Werner Hegemann sobre as exposições
de 1910 em Berlim e Düsseldorf contribuiu a sua descoberta em muitos
países, e também, até certo ponto na Alemanha. Surpreendentemente,
o nome de Hegemann ainda hoje está na Alemanha, está ligado
principalmente a Das steinerne Berlin. Nos EUA ele é conhecido por
seu The American Vitruvius: Civic Art (1922), especialmente desde
que foi re-publicado em 1988, que contribuiu para a re-descoberta
de Hegemann pelo New Urbanism Movement.
O meu próprio conhecimento da importância de Hegemann na
América Latina é limitado à Argentina e é discutido em meu artigo
(1995), “Urban Interchange in the Southern Cone: Le Corbusier (1929)
and Werner Hegemann (1931) in Argentina”. O artigo foi traduzido em
espanhol e publicado em ARQ 31,1995 (Santiago, Chile), e serviu como
um alerta aos arquitetos Chilenos da importância de Hegemann.

31
Adalberto RETTO JR.

6. The New Urbanism

The american Vitruvius: an architects’ handbook, de


Werner Hedgemann e Elbert Peets. Hardcover, 1989

Adalberto da Silva Retto Júnior: Sabe-se que para quem quiser


conhecer a trajetória de Heggeman, convém esclarecer, que a revisão
de sua obra na historiografia do urbanismo começa em meados dos
anos setenta, com a republicação na Itália de dois de seus textos
principais: os catálogos das exposições de 1910 e 1911 (Werner
Hegemann, Catalogo delle esposizioni internazinali di urbanística.
Berlino 1910 e Düsseldorf 1911-12, Milano, Il Saggiatore, 1975). A esses,
pode-se agregar o seu aporte que foi fundamental para complementar
o perfil de uma figura tão complexa como se nota no seu ensaio
“Hegemann and Peets: cartographers of an imaginary atlas”, sobre
seu trabalho nos Estados Unidos e sua colaboração com Albert Peets
publicado na introdução da reedição do The american Vitruvius:
an architects’ handbook of civic art, 1988. Qual a contribuição de
Hegemann para a cultura urbanística latino americana?
Christiane Crasemann Collins: Indubitavelmente, a publicação

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Entre_vista com Christiane Crasemann Collins

italiana (1975) de trabalho de Werner Hegemann sobre as exposições


de 1910 em Berlim e Düsseldorf contribuiu a sua descoberta em muitos
países, e também, até certo ponto na Alemanha. Surpreendentemente,
o nome de Hegemann ainda hoje está na Alemanha, está ligado
principalmente a Das steinerne Berlin. Nos EUA ele é conhecido por
seu The American Vitruvius: Civic Art (1922), especialmente desde
que foi re-publicado em 1988, que contribuiu para a re-descoberta
de Hegemann pelo New Urbanism Movement.
O meu próprio conhecimento da importância de Hegemann na
América Latina é limitado à Argentina e é discutido em meu artigo
(1995), “Urban Interchange in the Southern Cone: Le Corbusier (1929)
and Werner Hegemann (1931) in Argentina”. O artigo foi traduzido em
espanhol e publicado em ARQ 31,1995 (Santiago, Chile), e serviu como
um alerta aos arquitetos Chilenos da importância de Hegemann.

7. Créditos

Christiane Crasemann Collins Foto Amy Rader, 2003

Christiane Crasemann Collins

33
Adalberto RETTO JR.

Professora de História do Urbanismo e História Contemporânea


na Cornell University, Columbia University, e do curso de graduação
na School of Design da Universidade de Havard. É consultora
do Arquivo Camillo Sitte, e recebeu os prêmios Fulbrigth e RIBA
Research Awards. É tradutora, junto com seu marido George Collins,
da mais importante versão para o inglês da obra de Camillo Sitte, Der
Städtebau nach seinen Künslerische Grundsätzen.
Adalberto da Silva Retto Júnior
Doutor pela FAU USP/ Dipartimento di Storia dell’architettura
do Istituto Universitário di Architettura di Veneza, professor
de História Urbana e de Projeto Urbano do Departamento de
Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo, da Unesp – Bauru; Coordenou
o I Congresso Internacional de História Urbana “Camillo Sitte e a
circulação das idéias em estética urbana: Europa e América Latina:
1880-1930”. É coordenador do Grupo de Pesquisa SITU (Sistemas
Integrados Territoriais e Urbanos), que organizou o workshop
internacional Conhecimento Histórico–Ambiental Integrado na
Planificação Territorial e Urbana: um contributo de Bernardo Secchi
e, que atualmente desenvolve o Plano Urbanístico do Município de
Agudos, em parceria com o Doutorado de Urbanismo do Istituto
Universitário di Architettura de Veneza.
Entrevista
A entrevista foi realizada por ocasião do I Congresso Internacional
de História Urbana “Camillo Sitte e a circulação das idéias em estética
urbana: Europa e América Latina: 1880-1930”, realizado no Seminário
Seráfico de Santo Antônio, na cidade de Agudos, de 7 a 10 de outubro
de 2004. A entrevista foi disponibilizada em Vitruvius em junho de
2005.
Tradução
Christian Traficante

34
Entre_vista com Christiane Crasemann Collins

Revisão

Marta Enokibara e Norma Truppel

35
36
Entre_vista com Jean-Louis Cohen

1. Introdução

Capa da Revista In Extenso – Italophilie, 1984

Adalberto da Silva Retto Júnior: Jean–Pierre Gaudin durante o


Congresso “Camillo Sitte e i suoi interpreti (1990)” afirma que “não
foram tanto as teorias sobre arte de Camillo Sitte a terem um eco
no debate metodológico francês, mas muito mais as considerações
que derivam relativas à impostação do plano”. Por outro lado, o
senhor publicou há pouco mais de vinte anos um livro dedicado
aos ensinamentos da L’italophilie (1984) que relata os resultados de
uma longa pesquisa sobre as relações entre a arquitetura italiana
e a francesa no período anterior e posterior à guerra. Com isso, o
senhor ilumina os elementos “fortes” da arquitetura italiana dos anos
sessenta e setenta: os estudos sobre arquitetura urbana ligados à
história e ao projeto; a capacidade de reconstruir a “fratura” entre o

37
Adalberto RETTO JR.

arquiteto e os intelectuais, através de uma discussão comum sobre


linguagem, forma e sobre o significado da cidade contemporânea.
Qual é a verdadeira contribuição de Sitte para o debate urbano
francês?
Jean-Louis Cohen: Creio ser difícil passar desapercebido sobre
o impacto do Städtebau de Sitte nas várias gerações de arquitetos
e urbanistas franceses. Sem dúvida a versão original alemã de 1889
foi pouco lida. Não se pode dizer o mesmo da tradução francesa
de Camille Martin de quem se sabe, graças aos estudos de Carlos
Roberto Monteiro de Andrade publicados na Genèses em 1996,
quanto ela difere do texto publicado em Viena, visto que um capítulo
lhe é adicionado e, que o conjunto da ilustração, tão importante nos
conceitos de Sitte, foi modificado. O livro de Martin cujo alcance é bem
mais geral, visto que estende a reflexão à cidade “dans son vêtement
quotidien”, e ao espaço da rua, tem sido lido por várias gerações de
arquitetos e historiadores do começo de século ao segundo pós-
guerra. Na opinião dos práticos, ele é uma das fontes implícitas dos
projetos de reconstrução das regiões “devastadas” durante a guerra
de 1914-18, de certas planos de cidades coloniais e de muitos planos
de “aménagement”, de extensão e de embelezamento advindos da lei
de 1919.
Quanto ao aspecto metodológico, embora a referência direta
seja às vezes, um pouco dissimulada pelo antigermanismo comum
após 1918, o discurso de Sitte transparece nas reflexões sobre a
articulação dos espaços públicos ora diretamente ora indiretamente,
por exemplo, através da versão francesa (de tradução livre) de
Raymond Unwin Town-Planing in Practice, cujo prefácio é escrito
por Leon Jaussely. O curso ministrado por ele no Institut d’Urbanisme
de l’Université de Paris e o de seu sucessor Jacques Gréber tomam
idéias de Sitte de uma forma muito pouco dissimulada. O mesmo
acontece para a Histoire de l’urbanisme de Pierre Lavedan. No
Qu’est ce que l’urbanisme?, Lavedan evoca em 1926 Sitte, “arquiteto

38
Entre_vista com Jean-Louis Cohen

apaixonado pela arte da Idade Média”, como uma das referências


para os urbanistas que “reagindo contra o americanismo” proporiam
“traçados sinuosos para todas as vias que não são artérias de grande
tráfego”. Adiante, no mesmo livro, e de alcance explicitamente
metodológico que fundamenta sua História como forma de explicitar
seus pressupostos, vê em Sitte um “escritor preocupado acima de
tudo com estética” o que não o impedirá de ter um comportamento
comparativo semelhante ao seu. Historiador da Arte, Lavedan define
antes de tudo a cidade como uma obra de arte, à maneira de Sitte,
como revelam as pesquisas de Isabelle Grudet.
Deixo de lado evidentemente os escritos de Le Corbusier de
quem o manuscrito “La construction des villes”, elaborado a partir
de 1910 apóia-se essencialmente nas posições de Sitte, a ponto de
copiar figuras do Städtebau e no capítulo conclusivo intitulado
“moyens utiles”, é um eco da “réforme à introduire” que fecha o livro
do vienense. Mas ele renegará o “chemin des ânes” nos seus artigos
do l’Esprit Nouveau publicados em 1925 no Urbanisme. O grande
crítico de Le Corbusier que é Gaston Bardet toma, ele também
posições diferentes a respeito de Sitte, mas com uma figura inversa.
No seu primeiro artigo “Naissance de l’urbanisme” publicado em 1934,
Bardet nota que o estudo das cidades da Idade-Média “não podia
conduzir, como pensou Camilo Sitte e sua escola, à realizações vivas”.
Ele julga o Städtebau como um livro “muito penetrante em si, mas
muito perigoso nas tentativas de aplicação”. Tornando a publicar em
1946 este texto precoce no Pierre sur pierre, ele observa seu “erro”
e escreve daí em diante que “Camilo Sitte via corretamente e que foi
sua escola que caiu no pastiche”.
Vê-se, pois o quanto Sitte mobilizou a atenção dos historiadores e
dos arquitetos aderindo às mais opostas posições durante a primeira
metade do século vinte.

39
Adalberto RETTO JR.

2. “La redécouverte de l’urbanité”

Ernest Hébrard, Palais de Dioclétien, Split, em


L’architettura della città de Aldo Rossi, 1966

Adalberto da Silva Retto Júnior: Como pensar “a redescoberta da


urbanidade” na França?
Jean-Louis Cohen: A redescoberta do urbanismo entre os
arquitetos e urbanistas franceses dos anos 1970 é um fenômeno
bastante complexo. Este tem como pano de fundo a crise do
urbanismo do pós-guerra que eu caracterizaria esquematicamente
como o reencontro da composição acadêmica e de uma leitura
simplista da “Carta de Atenas” da qual, entretanto, não deveríamos
exagerar a importância. O primeiro lugar de elaboração crítica é
o atelier e o seminário Tony Garnier, criado conjuntamente para a
École des Beaux-Arts e o Institut d’Urbanisme de Paris, onde há uma
aproximação entre ciências sociais, história e composição urbana.
A hipótese que eu elaborei em 1984 era que na ocasião principal
desta redescoberta, que passa também aos arquitetos pela leitura

40
Entre_vista com Jean-Louis Cohen

dos sociólogos e dos críticos franceses, corresponde à importação


no oeste dos Alpes dos conceitos elaborados por Aldo Rossi e
Carlo Aymonino, e à observação atenta das políticas dirigidas pelas
coletividades territoriais como a cidade de Bolonha. Não deixa de
ser interessante, aliás, realçar tudo o que as propostas de Rossi em
Architettura della città, deveu aos autores franceses, de Maurice
Halbwachs a Pierre Georges e Georges Chabot, autores que eram
desconhecidos dos arquitetos em seus países de origem.
O interesse renovado pela dimensão urbana da arquitetura terá
efeitos na prática e conduzirá precisamente à reedição do livro de
Raymond Unwin e à do livro de Sitte, traduzido esta vez fielmente do
original. Estas duas obras são publicadas pela éditions de l’Équerre
cujos conselheiros eram Bernard Huet, Antoine Grumbach e eu
mesmo…

3. Projeto Urbano: História e Contexto

Pierluigi Cervellati, Projeto de restauração do bairro


San Leonardo, Bolonha, 1973

Adalberto da Silva Retto Júnior: A questão da história e do contexto


assumiu grande interesse na França, sobretudo, porque a grande
parte das intervenções foi implantada em espaços já urbanizados,
em áreas abandonadas, em proximidade aos centros urbanos ou,

41
Adalberto RETTO JR.

finalmente, nas periferias desestruturadas. Nestas situações <de


confronto obrigatório entre antigo e verdadeiramente antigo e o
novo pela força do novo> o projeto urbano encontra a especificidade
do seu papel como instrumento capaz de prefigurar uma cidade nova
(ou um pedaço novo de cidade) que se confronte com a realidade
urbana e social.
Quais foram, se verdadeiramente existiram, as novidades do
projeto urbano na França?
Jean-Louis Cohen: A temática do “projeto urbano”, que aparece na
França em torno de 1980, se não me engano, tem por objeto vários
aspectos da teoria e da prática do “aménagement” do urbano e da
arquitetura.
Ela se aplica efetivamente a novos territórios. Enquanto que
o essencial da reflexão dos organizadores tinha como objeto as
extensões virgens das periferias e, que o trabalho nos centros
antigos que se tornou possível pela lei Malraux de 1962 instituindo
os “secteurs sauvegardés”, apenas começava, os mantenedores do
“projeto urbano” dirigiram sua atenção desde os anos 80 às zonas
externas das grandes cidades ou às periferias nas quais os desafios
eram particularmente complexos por causa da existência de terrenos
industriais em crise e de infra-estruturas.
Ela implica uma nova configuração dos atores e especialmente
do domínio da produção e do domínio da criação da obra. Não há
“projeto urbano” se não há interação entre as coletividades territoriais
e os especialistas, ao mesmo tempo através de formas específicas de
trabalho permitindo a emergência de um comando local e o controle
deste no terreno através de uma outra configuração do trabalho de
projeto.
Ela se fundamenta em uma maior atenção às particularidades dos
territórios e dos grupos sociais concernidos. Não se trata mais de
“aplicar” a um território uma abordagem standart, mas de partir do

42
Entre_vista com Jean-Louis Cohen

estudo aprofundado das particularidades geográficas e simbólicas


e da escuta das expectativas locais para formar um projeto único
que revele as especificidades tornando-se assim construtor de
identidades coletivas no interior das grandes cidades.
ASRJ: Seguindo esta linha de pensamento o senhor pode construir
a contribuição francesa à definição de projeto urbano.
JLC: Eu não sei se a originalidade da contribuição “francesa” se
põe em termos de definição. Eu tenho a impressão que se trata de
uma abordagem interessante em matéria prática. Creio que uma
das particularidades francesas foi a qualidade de interação entre
candidatos eleitos e projetistas, e que uma outra particularidade
reside no compromisso muito eficaz dos profissionais da paisagem
em todas as reflexões sobre “aménagement”. O meio criado ao redor
de Jacques Simon, depois, Michel Corajoud e Alexandre Chemetoff e
que continua equipes mais jovens foi muito ativo e provocaram um
grande impacto em todo o resto da Europa.

43
Adalberto RETTO JR.

4. Urbanismo x Desenho Urbano

Casablanca, mythes et figures d’une aventure urbaine,


Jean-Louis Cohen e Monique Eleb, 1998

Adalberto da Silva Retto Júnior: O urbanismo “de projeto” existiu


entre as duas guerras até à reconstrução. A nova questão não era mais
expandir as cidades, mas de dirigir seu crescimento, de requalificar
as áreas abandonadas, os grandes ensembles, espaços peri-urbanos
e também os centros antigos. A demanda do “projeto urbano” resulta
em uma falência do Urbanismo?
Jean-Louis Cohen: Não há dúvida que a França conseguiu
depois de 1945 realizar muitas operações de reconstrução e de
extensão urbana. Essas operações eram relativamente simples e
foram conduzidas pelo desenvolvimento de grandes investimentos
públicos sob o controle dos engenheiros da Ponts & Chaussées.
O problema não é, somente o do fracasso do urbanismo como
disciplina mas de todo o dispositivo público de “aménagement” que
havia sido constituído para responder aos problemas de maneira
quase puramente quantitativa como se tratasse do prolongamento
direto do desenvolvimento dos tempos de guerra visando construir
as obras de fortificações do Atlântico.

44
Entre_vista com Jean-Louis Cohen

A demanda de projeto urbano resulta, portanto, da constatação da


inadequação dos processos jurídicos, dos métodos de composição,
das técnicas de direção de projetos, das formas de consulta das
populações e, sobretudo, da evidência que uma espécie de revolução
cultural era necessária para compreender esta cidade que não era
mais a das grandes periferias abertas, mas a das interações complexas
entre usos e percepções. Uma cidade também, na qual um urbanismo
privilegiando a intervenção pública devia encontrar novas formas de
negociação entre a coletividade e os investidores. Uma cidade enfim,
e também um pensamento urbanístico, capazes de permanecer mais
tempo do que o das campanhas rápidas de “aménagement” do pós-
guerra.

5. “Forme urbaine et discontinuité”

Scènes de la vie future; les architectes européens et


la tentation de l’Amérique 1893-1960 (1995, prix du
Livre d’architecture de l’Académie d’architecture, 1996,
Architecture Book Award de l’American Institute of
Architects, 1997)

Adalberto da Silva Retto Júnior: Em um texto de 1987 “Forme


urbaine et discontinuité” o senhor elenca pontos salientes que nos

45
Adalberto RETTO JR.

faz pensar que o projeto da cidade contemporânea requer colocar à


baila regras parcialmente diferentes daquelas do passado. As técnicas
da composição, escreve o senhor, devem ser “remises au jour” e não
podem não tomar conta dos avanços, das mudanças de uma cultura
mais ampla do que aquela arquitetônica. “La culture présente s’est
recomposée à la fois autour de nouveaux thèmes issus dela physique,
de la biologie, de la théorie des systèmes, autour de nouvelles théories
d’ensemble et autour de nouvelles pratiques comme le cinéma ou la
psychanalyse. Dans tous ses champs, cette culture est autant celle
du discontinu que celle de la mise à jour d’ordres et de logiques
complexes et surprenents“.
Do ponto de vista das fontes de pesquisa, o que significa esta
afirmação?
Jean-Louis Cohen: Esta afirmação deve ser recolocada em seu
contexto polêmico, o da época, que é o dos anos do triunfo do
discurso nostálgico do “pós-modernismo”, totalmente baseado
numa expressão histórica muito sectária. Essa, mais relacionada
à abordagem dos arquitetos e urbanistas protagonistas da
“redescoberta da urbanidade”, evocada acima é a que virava as costas
a uma série de disciplinas contemporâneas.
Se pudesse melhorar meu discurso de há mais de vinte anos, eu
o faria simultaneamente, na perspectiva da história e na do projeto
com risco de formular banalidades. Para o que é da história, creio
que é impossível elaborar interpretações sólidas centrando-se em
desafios internos à arquitetura ou permanecendo nas determinações
produzidas pela economia ou pela política. Como as pesquisas mais
estimulantes dirigidas há vinte anos mostram que a arquitetura
deve ser pensada na História das idéias. As formas de projeto do
século XX, por exemplo, devem muito às ciências e à filosofia de sua
época. Além disso, no campo da história do urbanismo está claro
que o estudo da morfologia e da tipologia – é exatamente o que
tinha em mente – não é suficiente para compreender a formação e

46
Entre_vista com Jean-Louis Cohen

a transformação das cidades. A dimensão narrativa, mítica, o jogo de


representações que os habitantes têm deles mesmos e de sua cidade
face às outras cidades, representam um papel que não podemos
omitir no aparecimento ou desaparecimento das formas urbanas ou
das formas arquitetônicas.
No que concerne ao projeto, tratava-se de um apelo para sair do
mundo fechado de uma arquitetura auto-referencial, o qual era de
duas maneiras totalmente opostas. Por um lado, os historiadores
pós-modernos apegavam-se ao reemprego da sintaxe e do léxico
do classicismo, nas versões científicas ou vernaculares. Por outro
lado, os neo-modernos tendiam a limitar o campo das referências
arquiteturais legítimas às do “Movimento moderno”, quer se tratasse
de Le Corbusier, de Mies ou de Terragni. Penso, nesse aspecto, que a
arquitetura contemporânea pode se encontrar quando ela se libertar
do narcisismo e reformular suas estratégias enriquecendo-as pelo
diálogo com as ciências e as disciplinas artísticas. Para o historiador,
torna-se útil dominar, ele também, esses conhecimentos exteriores.

47
Adalberto RETTO JR.

6. Manfredo Tafuri

Massimo Cacciari, Franco Rella, Manfredo Tafuri,


Georges Teissot, Il dispositivo Foucault, 1977

Adalberto da Silva Retto Júnior: O senhor seguiu atentamente


o percurso de Manfredo Tafuri (“Dall’affermazione ideologica alla
storia professionale del 1999”, “Ceci n’est pas une histoire”), elencando
algumas figuras que lhe serviram como referências: Giulio Carlo
Argan, principalmente na sua fase romana; em negativo, o perfil
de Bruno Zevi; ou ainda, a figura do intelectual crítico marginal de
Walter Benjamin, pronto para revelar o sentido político dos processos
artísticos, sem por isso profetizar uma estética do conteúdo.
Enquanto, o senhor coloca na pessoa de Roland Barthes e na sua
batalha contra a direita e a esquerda do pensamento acadêmico
francês o papel decisivo no seu novo comportamento em direção à
relação entre discurso histórico e critico de um lado, e arquitetura
do outro. Foucault foi a referência mais evidente quando a história
das “conquistas” dos Modernos estava para ser substituída pelas

48
Entre_vista com Jean-Louis Cohen

operações de pesquisa genealógica, que tentavam individualizar as


linhas de conexões entre arquitetura dos séculos XVIII e XIX e as
problemáticas contemporâneas.
No centro do seu discurso tem de qualquer forma “um ponto
focal” da teoria arquitetônica italiana, assim como vem encarnada da
escola de Veneza e do departamento dirigido por Manfredo Tafuri. O
trabalho dos estudiosos venezianos é visto como um agente essencial
para o desenvolvimento do fato arquitetônico contemporâneo,
capaz de dar nova luz aos ensinamentos da história e de investigar
a fundo o significado do presente que, usando as suas palavras,
supera a questão da operatividade da história, e consegue passar do
estudo da conjuntura àquele da estrutura, posta como fundamento
da historiografia dos ‘Annales’”:
“Tafuri in effetti compie nel campo dell’ architettura il passaggio
dallo studio delle congiunture a quello delle strutture, poste come
fondamento della storiografia delle ‘Annales’”.
O senhor pode discorrer sobre esta afirmação?
Jean-Louis Cohen: Eu não mudei de opinião quanto à produtividade
da obra de Tafuri, mas eu não a considero também como um texto
sagrado onde todas as passagens seriam igualmente incontornáveis
e fico, às vezes, admirado pelas glosas que esta ainda hoje provoca.
É uma obra rica por suas contradições e transformações conhecidas
no decorrer de aproximadamente três décadas as quais descreve.
Onde seu trabalho, às vezes, encontra seus limites é justamente
na investigação sobre o sentido da situação presente. Tafuri não
encontrava, senão em algumas raras expressões, na arquitetura do
século XX este “plaisir du texte” que ele sentia analisando os edifícios
da Renascença.
O sentido desta frase é simplesmente para avançar na idéia
de que Tafuri substitui uma história “événementielle”, centrada
nos momentos ou ações heróicas e eventualmente re-situadas

49
Adalberto RETTO JR.

cuidadosamente no que se convencionou chamar seu “contexto”,


por uma investigação sobre as determinações estruturais que é
possível ver na obra em objetos isolados ou em grupos de objetos.
A construção erudita de “caso” de análise a qual ele se atém, não
há outra finalidade que a de permitir ao leitor ver em um elemento
de construção, um desenho ou um fragmento de texto, o efeito de
forças inscritas em uma estrutura diacrônica. Nesse sentido, ele se
salva da tentação monográfica e de uma certa tentação narrativa,
propondo uma descoberta orquestrada por uma história que vai bem
além do fato arquitetural.

7. Créditos

Le Corbusier et la mystique de l’URSS, théories et


projets pour Moscou 1928-1936 (1987)

Jean-Louis Cohen
Arquiteto e historiador. Professor do Institute of Fine Art de

50
Entre_vista com Jean-Louis Cohen

New York University, diretor do Institut français d’architecture e


coordenador do projeto da Cité de l’architecture et du patrimoine à
Chaillot dentre outros cargos.
Autor de diversos livros: Le Corbusier et la mystique de l’URSS,
théories et projets pour Moscou 1928-1936 (1987), Paris, la ville et ses
projets (1988), Des fortifs au périf, Paris, les seuils de la ville (en coll.,
1992), Mies van der Rohe (1994), Scènes de la vie future; les architectes
européens et la tentation de l’Amérique 1893-1960 (1995, prix du
Livre d’architecture de l’Académie d’architecture, 1996, Architecture
Book Award de l’American Institute of Architects, 1997), Casablanca,
mythes et figures d’une aventure urbaine (en coll., 1998), Perret, une
encyclopédie (en coll., 2002), Alger,paysage urbain et architecture
(en coll., 2003).
Curador de diversas exposições: Responsável pela seção de
arquitetura Paris-Moscou (Centre Georges Pompidou, 1979) e les
Années 20, l’âge des métropoles (Musée des beaux-arts, Montréal),
expositions Paris, la ville et ses projets (Pavillon de l’Arsenal, em
coll., 1988), les Seuils de la ville, Paris, des fortifs au Périf (Pavillon
de l’Arsenal, em coll., 1992), Scènes de la vie future, les architectes
européens et la tentation de l’Amérique 1893-1960 (Montréal, 1995),
les Années 30, l’architecture et les arts de l’espace entre industrie et
nostalgie (Musée national des monuments français, 1997).
Adalberto da Silva Retto Júnior
Doutor pela FAU USP/ Dipartimento di Storia dell’architettura do
Istituto Universitário di Architettura di Veneza, professor de História
Urbana e de Projeto Urbano do Departamento de Arquitetura,
Urbanismo e Paisagismo, da Unesp – Bauru; Coordenou o I Congresso
Internacional de História Urbana: Camillo Sitte e a circulação das
idéias em estética urbana: Europa e América Latina: 1880-1930.
Entrevista
A entrevista foi disponibilizada em Vitruvius em outubro de 2005.

51
Adalberto RETTO JR.

Tradução
Zeila Oppermann Sampaio – Alliance Française – Centre
Correspondant Bauru
Revisão
Adalberto da Silva Retto Júnior
Imagens
As imagens dos módulos 2, 3 e 7 foram retiradas da pesquisa
«Italophilie» publicada na Revista IN Extenso, 1984

52
Entre_vista com Jean-Louis Cohen

53
54
Entre_vista com Bernardo Secchi

1. Introdução

Plano Diretor da cidade de Prato, Itália. Coordenação de


Bernardo Sacchi [fonte: Université de Lausanne]

Adalberto Retto Júnior e Christian Traficante: Alguns teóricos


afirmam que é possível falar de uma verdadeira e nova tendência do
urbanismo italiano nos anos oitenta, definida por Giuseppe Campos
Venuti dos “planos da terceira geração”. O senhor pode brevemente
delinear quais são as conotações desta “terceira geração”?
Bernardo Secchi: Talvez seja preciso fazer algumas distinções e
algumas premissas. A frase “planos da terceira geração” foi proposta
por Campos e que com estes termos, pretendia dizer que muitas
cidades italianas preparavam-se para estudar e redigir pela terceira
vez depois do conflito mundial o plano urbanístico. Se o centro
temático do primeiro plano (isto é do plano da primeira geração) era
a reconstrução e o do segundo a grande expansão da cidade devido
aos movimentos migratórios que tinham invadido o país, o centro

55
Adalberto RETTO JR.

temático do terceiro plano e, portanto, da terceira geração era o


da qualidade do espaço habitável e do espaço urbano. Em um certo
sentido construía-se neste modo uma “narrativa” de progressiva
conquista do welfare individual e coletivo no qual, mais uma vez, o
urbanista se revestia do papel do herói.
A mim, o termo geração não agradou muito, mesmo porque
constrói uma idéia linear da história. Mas estas são talvez distinções
pouco importantes. O que distingue a minha posição daquela de
Campos é que nos planos que construí a partir dos anos 80 (mas
podem-se seguir o rastro das raízes também nos meus planos
precedentes) o projeto urbanístico vem explicitamente entendido
como projeto de “arquitetura da cidade”. A citação de Tafuri em
seu livro demonstra que ele havia compreendido o sentido de meu
movimento. Por outro lado foi nas longas discussões com Tafuri, nos
estudos sobre renovatio urbis venætiarum que ele conduziu no início
dos anos 80 em conjunto com Foscari, que amadureceu para mim,
de um lado, a recusa de um urbanismo que conceitualize a cidade
como “zonas homogêneas” e, do outro, a proposta de um urbanismo
que confie muito mais a uma complexa estratégia de renovatio urbis,
de projetos pontuais que dê sentido e papel novo em partes inteiras
da cidade, do que a uma inteira estrutura urbana. Um movimento
que alcança a completa maturidade com o plano de Jesi (1987) e de
Siena (1990) e com os sucessivos planos que construí junto com Paola
Viganò (Ascoli Piceno, Prato, Pesaro e Brescia).

56
Entre_vista com Bernardo Secchi

Mostra New Territories, organização de Paola Viganò


[fonte: revista Architettura]

2. Il Racconto Urbanistico

Il Racconto Urbanistico, Bernardo Sacchi


[fonte: Torno, Einaudi, 1984]

Adalberto Retto Júnior e Christian Traficante: No capítulo


“transformações estruturais e novas experiências de plano” Tafuri
insere o seu livro “Il Racconto Urbanistico” (1984) como sinal de uma

57
Adalberto RETTO JR.

maturidade dos anos 80 na Itália e insiste que o mesmo assumiu uma


importância histórica que deve ser ressaltada. Cito: “O texto de Secchi
é tudo menos moralista; pelo contrário, a sua narração é fria e analítica.
Ele reconhece todavia que o êxito da planificação urbanística - nunca
chamada a justificar-se a si própria com os próprios resultados -
incidiu sobre a <estruturação do sistema político, principalmente no
nível local, e assim serviu para fornecer identidade a atores e agente
sociais>. Não oferece soluções, e nisto está um dos seus valores. Ele
constitui antes a expressão de exigências ouvidas por mais partes:
<tomar tempo>, deslocar sobre novos eixos a reflexão, redesenhar o
mapa dos problemas, aceitar as novas hipóteses experimentalmente,
julgando-as pelo seu nível de realismo, além disso, e não pelas
narrações que eles fazem de si mesmos. E é com tal espírito que
é necessário considerar duas experiências de <nova planificação
urbanística>, concretizadas nos projetos preliminares por Florença e
Bologna”. Segundo o Senhor quais foram os resultados produzidos e
os novos eixos de pesquisa desencadeados a partir desta nova forma
de planificação do território, que exatamente com seu livro foram
dados os primeiros passos?
Bernardo Secchi: O que propus com os planos que citei foi
inicialmente muito criticado na Itália e como costumeiramente
ocorre, por muitos colegas que procuraram em seguida imitá-lo sem
tê-lo talvez realmente compreendido. Em um certo sentido posso
talvez dizer que o urbanismo italiano e europeu mudou também
na seqüência destes trabalhos que, contudo, colhiam algo que há
tempos estava no ar. Satisfação e pessimismo se mesclam na minha
reflexão sobre a história recente do urbanismo europeu e italiano em
particular.
A mim parece não ter sido compreendido a característica de
fundo das minhas propostas, o “tomar tempo”, o deslocar sobre novos
eixos a reflexão, o redesenhar o mapa dos problemas aceitando
as novas hipóteses experimentalmente, julgando-as pelo seu nível

58
Entre_vista com Bernardo Secchi

de realismo e não pelas narrações que eles fazem de si mesmas.


Muito freqüentemente as minhas propostas foram banalizadas
e vulgarizadas assumindo-as como um modo diverso de indicar
funções e limites de edificabilidade ou de indicar oportunidades
profissionais para outros arquitetos.
Ou foram interpretadas, sobretudo na Itália, como um manifesto
da “morte do plano”, enquanto seguiam a direção contrária, isto é, na
direção de afirmar a necessidade de uma reflexão que, atravessando
as escalas, se fizesse ao mesmo tempo o geral e, comprehensive e
especificamente, o local. Sempre pensei que subdividir o urbanismo
da arquitetura confiando a cada uma algumas escalas de intervenção,
fosse profundamente errado. O que me fascina é a contínua passagem
de uma escala à outra nas duas direções; raciocinar sobre desenho
de um pequeno degrau em um espaço público e sobre a ordem de
posse de um território inteiro; manter unidas estas coisas como
estão unidas na nossa experiência cotidiana.

Prima Lezione di Urbanistica, Bernardo Sacchi


[fonte: Bari, Laterza, 2000]

59
Adalberto RETTO JR.

3. Projeto da cidade comtemporânea

Cartaz da mostra Territori della nuova modernità,


curadoria de Paola Viganò

Adalberto Retto Júnior e Christian Traficante: O senhor enfatiza


em uma recente entrevista que a partir dos anos 80, o urbanismo
italiano teve novamente contato com o mundo real, o que se move
com as práticas sociais e com os modos nos quais elas se desenvolvem,
descobrindo novos indivíduos e sua insuspeitada articulação.
Podemos adiantar algumas hipóteses em termos de construção de
uma política para a cidade e o território?
Bernardo Secchi: Um dos movimentos de pesquisa que, a partir
dos primeiros anos 80 eu propus, foi a de voltar a caminhar nos
territórios que estávamos projetando, fazendo levantamentos e
escutando as pessoas que ali habitavam ou freqüentavam. A partir
daqueles anos e através destas movimentações, o urbanismo italiano
e europeu retomou contato, como dizia Husserl, com as “coisas
mesmas”, abandonando a fácil retórica de decênios precedentes.
Despida de uma ideologia de baixo nível, o urbanismo tornou-se
novamente prática do projeto antes que “missão” ou “militância”.
O Laboratório Prato Prg, no início dos anos 90, foi uma grande

60
Entre_vista com Bernardo Secchi

experiência neste sentido: de nosso envolvimento na vida e na


consistência material da cidade e de envolvimento da cidade na
construção de uma nova imagem para o seu futuro. Bem distantes
das formas de organização da “participação” popular mais em
voga, construímos em Prato um lugar de discussão e de trabalho.
Conferências, exposições, seminários e workshops, excursões e
visitas, campanhas fotográficas... sempre convidando os cidadãos
ou as partes que o desejassem a unir-se a nós, envolvendo artistas,
músicos, escritores, e naturalmente arquitetos prateses ou não.
Pessoalmente tinha muitas respostas a dar a Manfredo Tafuri; o
projeto preliminar do plano de Prato foi apresentado ao público no
dia da morte de Manfredo e a ele, com grande emoção para mim,
foi dedicado. Sobretudo com ele eu gostaria de tê-lo discutido.
Pessoalmente tinha muitas respostas a dar a Manfredo Tafuri;
Prato foi a revelação da diferença: entre as pessoas, as situações, os
artefatos, suas histórias. Mas foi também a revelação do fato que,
como dizia A. Miller, quando julgamos caótica uma situação é porque
não entendemos as regras da ordem. Prato foi a descoberta e a
proposição de novas possíveis regras, diferentes daquelas dominantes
na “cidade moderna”: regras de aproximação e de definição de uma
“justa distância”. Depois de Prato a aproximação “paratattica” e o
fragmentar-se do espaço urbano, pelo menos para nós, não são mais
considerados demônios: fazem parte de nossa cultura e de nossa
sociedade; podem tornar-se importantes ocasiões projetuais - só
que se reflita a fundo sobre a “justa distância” entre as coisas, as
atividades e as pessoas; só que se reflita, com as palavras de Roland
Barthes, no comment vivre ensemble.

61
Adalberto RETTO JR.

Tre piani, Bernardo Sacchi


[fonte: Milão, Franco Angeli, 1994]

4. Laboratório Prato PRG

Plano Diretor da cidade de Prato, Itália. Coordenação de


Bernardo Sacchi
[fonte: Université de Lausanne]

Adalberto Retto Júnior e Christian Traficante: No laboratório


Prato PRG (1996), territórios da nova modernidade - província de
Lecce (2001) e em alguns outros trabalhos de planificação urbana
e territorial onde o Senhor é consultor científico é evidenciado
que imaginar e pensar a cidade e o território como compostos de
62
Entre_vista com Bernardo Secchi

diferentes “sistemas” leva também a um conceito de integração,


que em larga medida nasce exatamente da crítica ao zoneamento
como tradicionalmente entendido. “Pensar a cidade por sistemas
quer dizer imaginar cada parte como habitada por funções
diferentes, conforme composições mutáveis no tempo; imaginar
assim a transformabilidade”. Em seus planos o Senhor propõe
portanto que sejam reconhecidas as características ambientais
específicas das diferentes partes do território, que seja restabelecida
a continuidade do sistema ambiental, que os espaços internos da
cidade e os externos, sejam coligados entre si e que isto aconteça
principalmente construindo uma série de elementos de conexão?
Esta aproximação constitui uma nova forma de conceber o projeto
da cidade contemporânea?
Bernardo Secchi: Cada um de nós está imerso em sistemas de
relações que se constroem em diferentes planos: eu me ocupo com a
minha escola em Veneza, pensando e propondo aos meus alunos
reflexões que concernem às cidades e territórios situados
freqüentemente em outros países e pensando em meus colegas, em
livros em projetos que se situam em longo espaço de tempo. A
imagem do network que é constantemente proposto não é fértil,
nem correto. É antes a interação entre os diferentes planos que conta
como quando observo alguma coisa sobre um fundo escuro ou muito
luminoso e sou induzido a poder colher dele ou não, alguns aspectos.
A mesma coisa, se me perdoar a brevidade da resposta, vem com o
projeto da cidade; cada movimentação nossa assume significado
diferente conforme os diferentes planos espaciais e temporais nos
quais vem colocar-se. Estamos acostumados a colher estes aspectos
no teatro quando atores e ações são colocados entre ou sobre o
fundo de diferentes véus que na hora certa se movem mudando,
freqüentemente de modo radical, a cena. Uma imagem que propus
no “Racconto urbanistico” e a que no meu modo de ver ilustra bem a
posição do projeto urbanístico e de arquitetura dentro da cidade e
do fluir de sua história. Os elementos de conexão que através de

63
Adalberto RETTO JR.

meus projetos procuro construir, entre as diferentes partes da cidade


e do território, entre o interior e o exterior, entre o antigo e o recente,
não devem ser pensados e reduzidos a percursos de pedestres e de
veículos ou a corredores ecológicos. Estes constituem o nível mais
elementar da conexão. Mais complexo é construir conexões de
sentido. O que fascina no livro de Tafuri e Foscari “L’armonia e i
conflitti” que, como eu disse, está na origem de minhas propostas a
partir dos anos 80, é seguir os diferentes planos nos quais se instaura
o debate sobre a cidade de Veneza na época do Doge Gritti: dos
planos mais abstratos, aparentemente separados da ação concreta
urbanística e arquitetônica, nos quais assume identidade a cultura
de uma época, aos mais detalhados de definição das competências e
das relações de poder. Construir o projeto de uma cidade quer dizer
procurar movimentar todos estes níveis de reflexão. Para isto é
preciso voltar em primeiro lugar a propor com generosidade imagens
compreensivas da cidade e do território, de suas identidades e de
suas possibilidades; é preciso trabalhar enfim, com extremo cuidado
sobre os dispositivos espaciais através dos quais as conexões entre
os diferentes planos, entre os diferentes véus, assumem consistência
material, tornam-se assim arquitetura da cidade e é preciso
submeter-se continuamente à verificação e à falsificação.

Plano Diretor da cidade de Prato, Itália. Coordenação de


Bernardo Sacchi [fonte: Université de Lausanne]

64
Entre_vista com Bernardo Secchi

5. O papel do urbanista

Un progetto per l’urbanistica, Bernardo Secchi


[fonte: Torino, Einaudi, 1989]

Adalberto Retto Júnior e Christian Traficante: No “Diary of a


planner” (2002) o Senhor enfatizou, citando Pierre Bourdieu, que
a construção do projeto e das políticas da cidade tornou-se em
anos recentes um campo aberto, onde diferentes indivíduos com
diferentes competências e experiências, com diferentes histórias
e background culturais, interesses e poderes, ligações e relações
com o resto da sociedade são legitimados a expressar as próprias
interpretações e as próprias propostas. Por outro lado, hoje se fala
também do declínio ou morte do urbanismo, ou mesmo do seu fim.
O que o Senhor pensa destas afirmações e qual é o verdadeiro papel
do urbanista nos dias de hoje?
Bernardo Secchi: Amo muito o teatro e amo muito a música;

65
Adalberto RETTO JR.

não pode surpreender portanto que freqüentemente eu me refira a


imagens teatrais ou musicais.
O canteiro de obras da cidade me aparece como um local onde
indivíduos com diferentes papéis, poderes e competências, que
falam línguas específicas e entre eles alguns se encontram em um
difícil diálogo; um local onde se formam assonâncias ou dissonâncias,
ligações e pausas. Cada um neste diálogo traz a sua própria história,
as próprias experiências e o próprio imaginário. A idéia modernista
de poder reconstruir esta tumultuada conversa com um único
critério de racionalidade é hoje impraticável, assim como seria a idéia
de podê-lo reconduzir à observância de uma única autoridade real
ou papal. Os planos construídos sobre esta idéia e sobre as retóricas
que a sustentavam precisamente devem ser considerados planos do
passado. Na ingenuidade deles desenvolveram contudo um papel
importante e seria tolo e inculto não reconhecer quanto devemos á
eles.
Tudo isso não decreta a morte do urbanismo, assim como
a passagem do renascimento ao maneirismo, ao barroco e ao
neoclássico não decretou a morte da arquitetura ou de outras formas
artísticas. Os necrófilos prontos a declarar a cada dia a morte de
alguma coisa, talvez tenham apenas matado a curiosidade do novo.
O que aconteceu foi simplesmente que, dentro de uma nova e
mais ampla constelação de indivíduos, o urbanismo orientou sobre
novos eixos a própria reflexão, redesenhou o mapa dos problemas,
aceitando experimentalmente novas hipóteses.
Mas também este movimento não deve ser enfatizado mais do
que o devido. O canteiro da cidade sempre foi um lugar onde se
depositam objetos, técnicas, afirmações e imagens dotadas de
diferente inércia e quem praticar hoje o urbanismo italiano, mas
também a de diferentes países ocidentais, sabe que as ligações com
os modos de fazer passados, os quais se consolidaram dentro de

66
Entre_vista com Bernardo Secchi

instituições, leis e imaginários, são muito mais fortes do que


normalmente são considerados. Inovar não é destruir, fazer “tabula
rasa”, deve significar alguma coisa que se acrescente, modificando-a,
àquilo que pré-existe.

Cemitério Hoog Kortrijk, arquitetos Bernardo Secchi e


Paola Viganó
[fonte: revista Archis]

67
Adalberto RETTO JR.

6. Renovatio urbis

Plano Diretor da cidade de Prato, Itália. Coordenação de


Bernardo Sacchi. Análise morfológica das quadras
[fonte: Université de Lausanne]

Adalberto Retto Júnior e Christian Traficante: “O urbanismo não


pode resolver problemas maiores do que o ser, mas nem por isto
deve tornar-se conivente com tendências sustentadas por retóricas
privadas de fundamentação e que se declara de não dividir”. O Senhor
assim nos convidou a refletir sobre alguns aspectos e méritos do
período passado para dar-lhes uma nova interpretação dentro das
novas condições. Quais são as novas condições dentro dos quais se
possa assim falar de renovatio urbis?
Bernardo Secchi: A primeira importante questão é a de quem
sustenta a morte do urbanismo normalmente afirma também, pelo
menos implicitamente, a necessidade de confiar no “mercado”. O
pensamento único e as retóricas modernas do mercado propõem
porém, uma imagem privada de fundamento; uma imagem que

68
Entre_vista com Bernardo Secchi

nenhum teórico liberal teria considerado própria; esquece-se em


particular de dizer que nos mercados concretos e tipicamente nos
mercados com os quais o urbanismo se confronta, o poder não é
distribuído de modo igual e uniforme. Adequar-se ao mercado
aceitando esta iníqua e falsa idéia, quer dizer fazer-se conivente
com os poderes que o dominam. O urbanista não pode renunciar
em refletir sobre o interesse geral e coletivo porque a cidade, em
seu conjunto, é bem público no sentido de bem-estar, conforme os
primeiros economistas. Ao longo de todo o século 20, arquitetos e
urbanistas, em uma pesquisa paciente, tentaram dar dimensões
concretas, físicas, a uma idéia do interesse geral e coletivo,
freqüentemente antecipando o que foi depois afirmado por outros
estudiosos.
As sociedades ocidentais contemporâneas têm muitas vezes a
tendência de esquecer o quanto as formas concretas do atual bem-
estar devem a elas.
Uma política de ‘renovatio urbis’ não nega este passado, mas
o reelabora procurando reescrever o sentido dos lugares que, na
prática banalizante da modernidade, havia se perdido. Uma política
de “renovatio urbis” redesenha a geografia funcional e simbólica
da cidade e do território levando-a a ficar mais próxima do mapa
mental da sociedade contemporânea, não ao mapa de valores
monetários pretendido por diversos grupos de poder. Uma política
de “rennovatio urbis” desloca diversamente do passado os valores
posicionais e assim opõe resistência ao mercado, não o segue
totalmente. Acrescenta ao palimpsesto urbano um novo “layer” que
lhe permite uma nova interpretação.

69
Adalberto RETTO JR.

Plano Diretor da cidade de Prato, Itália. Coordenação de


Bernardo Sacchi. Análise morfológica das quadras
[fonte: Université de Lausanne]

7. Cidade / palimpsesto

Vista aérea da cidade industrial de Prato


[fonte: Université de Lausanne]

Adalberto Retto Júnior e Christian Traficante: O Senhor, usando


as palavras de André Corboz, fala da cidade como palimpsesto e
afirma que “neste imenso arquivo de sinais possamos colher um
vasto conjunto de intenções, de projetos e ações concretas de
pessoas simples, de grupos restritos ou de inteiras sociedades..”

70
Entre_vista com Bernardo Secchi

Por outro lado temos conhecimento da importância dos trabalhos


pacientes que se desenvolveram em Veneza, em termos de novas
relações entre a arquitetura, a cidade e a história: a obra de Saverio
Muratori e a sua “história operante”, Aymonino, Aldo Rossi. Com a
mostra New Territories o Senhor nos mostra um outro instrumento
de amostragem: a pesquisa feita por indícios, através de “carotaggi”
no território. O Senhor pode falar da relação entre pesquisa e projeto
na história do urbanismo italiano?
Bernardo Secchi: Uma das características proeminentes do
melhor urbanismo e arquitetura italiana, até tempos recentes, foi
o seu contínuo confrontar-se com questões teóricas de grande
relevância e densidade.
As pessoas que você cita, às quais deveriam unir-se outras,
construíram uma indissolúvel ligação entre pesquisa e projeto. Neste
sentido foram mestres, que construíram um “campo” de reflexão, ao
modo de Bordieu, dentro do qual o melhor urbanismo e a melhor
arquitetura italiana têm constantemente trabalhado e continuarão
a trabalhar.
Os fenômenos que invadiram a sociedade e a cidade européia
nos últimos decênios ampliaram enormemente este campo. A cidade
hoje tornou-se termo metafórico; com ela aludimos à uma situação à
qual não corresponde um único estado de coisas.
Desde que começamos, no início dos anos 80 a percorrer o
território italiano e europeu fazendo levantamentos e escutando as
pessoas que o habitam, começamos a colher o fazer-se sob nossos
olhos de uma nova relação entre cidadãos, entre indivíduos dotados
de direitos de cidadania e território; o fazer-se de uma nova ecologia,
onde ao termo ecologia se deve dar o significado etimológico e
antigo. Nestes novos relacionamentos exprime-se confusamente
uma idéia, freqüentemente ingênua, de liberdade, de igualdade e de
fraternidade, palavras que na cultura européia moderna tiveram e

71
Adalberto RETTO JR.

continuam a ter um papel absolutamente central. New Territories é


uma exploração nesta nova ecologia, um conjunto de ensaios e de
tentativas de conceito das diferentes situações às quais dá lugar aos
problemas que ela sustenta.

Geno(v)a. Developing and rebooting a waterfront city.


Giovanna Carnevali, Giacomo Delbene, Veronique
Patteeuw (Eds.), NAi Publishers. Livro sobre o Plano
Diretor para Gênova, dos arq. Rem Koolhaas, Manuel de
Solà-Morales, Marcel Smetsand e Bernardo Secchi

72
Entre_vista com Bernardo Secchi

8. New Territories

Mostra New Territories, organização de Paola Viganò


[fonte: revista Architettura]

Adalberto Retto Júnior e Christian Traficante: Gostaria de


terminar a entrevista perguntando sobre o conteúdo da Mostra New
Territories.
Bernardo Secchi: New Territories é uma mostra organizada por
Paola Viganò dois anos atrás em Veneza que sucessivamente circulou
em algumas sedes universitárias na Itália e na Europa enriquecendo-
se à medida que as nossas pesquisas prosseguiam. Está em fase de
publicação, sempre aos cuidados de Paola Viganò, um livro-catálogo
que lhe explica o embasamento teórico e de pesquisa de campo.
New Territories é uma mostra feita para quem estuda, e onde
se pode ir para estudar. Grande parte da mostra é confiada a
instrumentos informáticos: uma dezena de equipamentos digitais
projeta sobre paredes diversos materiais de pesquisa, em particular
os resultados de uma pesquisa que investigou territórios europeus
diversamente localizados e com dimensão de 50km X 50km.
Mapas, esquemas conceituais, fotografias, textos. Em uma dezena
de computadores colocados sobre mesas, o visitante pode percorrer

73
Adalberto RETTO JR.

todos os materiais de cada pesquisa: conduzida no sul da Itália, como


no Algarve, na Suíça, em FLandres, no Vêneto, em Pescara, nas ilhas
Baleares, na Randstad holandesa...
Estes territórios não são somente mostrados, mas submetidos
à uma série de análises que iluminam aspectos conceitualmente
relevantes permitindo construir alguns cenários: estreme Europe,
risk Europe, slow territories, Europe playground, future fossil. Todo
cenário nos convida a refletir sobre “o que sucederia se...”. Algumas
das tendências que podem concretamente ser observadas nos novos
territórios urbanos tornaria dominante.
Sobre as mesmas mesas as relações de pesquisa permitem ao
visitante aprofundar métodos, hipóteses e resultados de pesquisa.
Visitar a mostra requer que o visitante saiba “tomar tempo”; a mostra
não procura o espetáculo, mesmo sendo bastante bela; procura
alguém que tenha curiosidade e queira prosseguir uma pesquisa que
pretende estar aberta a ulteriores contribuições. De fato a mostra
tem já alimentado novos programas de pesquisa junto a diversos
doutorados europeus.

Mostra New Territories, organização de Paola Viganò

74
Entre_vista com Bernardo Secchi

9. Créditos

Caricatura de Bernardo Secchi


[fonte: Diary of a planner, Bernardo Secchi]

Bernardo Secchi

Bernardo Secchi é formado no Politécnico de Milão com o


professor Giovanni Muzio, do qual foi assistente desde 1960. No
mesmo período desenvolveu atividades de pesquisa, como diretor
do Instituto Lombardo de Estudos Econômicos e Sociais (Ilses).
Desde 1966 é professor e livre docente de Economia do
território, inicialmente junto à Faculdade de Economia de Ancona
e, sucessivamente, junto ao curso de graduação em Urbanismo do
Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza.
Colaborou com o professor Giuseppe Samonà no estudo e
formulação do Plano da Província de Trento e com Paolo Ceccarelli,
no plano para o Valle d’Aosta.

75
Adalberto RETTO JR.

Desde 1974 é professor titular de Urbanismo: junto à Faculdade


de Arquitetura de Milão (até 1984), onde foi Diretor de 1976 a 1982 e
desde 1984 junto ao Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza,
no curso de graduação em arquitetura. Desde 1986 ensina também
junto à Ecole d’Architecture de Genebra, Universidade de Leuven,
Politécnico Federal de Zurique, o Institut d’Urbanisme de Paris e a
Ecole d’Architecture de Bretagne (Rennes).
Redigiu numerosos planos reguladores e planos territoriais: Jesi
(1984-1987), Siena (1986-1990), Centro Histórico de Ascoli Pisceno
(1989-1993), Bergamo (1994), Prato (1996), Brescia (1998), Pesaro
(1998), Civitanova Marche (1999), La Spezia e o Val di Magra (1989-
1993) e para a Província de Pescara (1994-1997).
Participou como consultor do plano territorial para a Província
de Lecce (1999); projetou os bairros de edificações públicas
compreendidos no Plano para a Construção Econômica e popular
de Vicenza, foi encarregado pelo estudo da recuperação da área
industrial Sécheron em Genebra (1989), e pelo plano particularizado
da área IP em La Spezia.
Com Paola Viganò fundou em 1990 um Studio, vencendo em 1990
o concurso para o projeto de Hoog Kortriik (Bélgica); desenvolveu
o plano da cidade de Kortriik (1991) e os projetos da Grande Place,
do novo Cemitério e da Place du Théatre (1990). Venceu o concurso
Ecopolis para o projeto de uma cidade nova na Ucrânia (grupo
dirigido por Vittorio Gregotti, 1993).
Em colaboração, venceu o concurso “Roma cidade do Tevere”
(1993); o concurso para o projeto da zona aeroportuária (Rectangle
d’or) de Genebra (1996).
Ainda com Paola Viganò ganhou o concurso para o projeto dos
espaços públicos de Mechelen (2000), para o projeto de Hoge Rielen
(2001, Bélgica) do parque Spoomoond (Anversa, 2002) para a Ville-
Port e Petit Maroc em Saint Nazaire (França, 2003) e para a zona de

76
Entre_vista com Bernardo Secchi

Courrouze (Rennes, França, 2003).


É “urbaniste conseil” (desde 1996) do Estabelecimento público
Euro mediterranée para a projeção da parte central e portuária
de Marselha. É consultor (desde 1996) da Autoridade portuária de
Genova para o projeto do plano regulador do porto.
Faz parte do grupo fundador do Arquivo de Estudos Urbanos e
Regionais; de 1982 a 1996 colabora com a revista Casabella e de 1984
a 1990 dirigiu a revista Urbanistica.
Organizou numerosos concursos de projeto entre os quais
“Projeto Bicocca”, Milão; “Edifícios do Mundo”, Salerno e fez parte de
numerosos júris para concursos de arquitetura e urbanismo (Milão,
Bicocca; Anversa, Staad aan de Stroom; Bologna: Estação Central;
Como: área Ticosa; Roma: Borghetto Flamínio; Genebra: Palais
des Nations; Lyon: Grand prix des formation; Paris: Grand Prix d’
urbanisme e de L’Art Urbaine, Nice: Nouvelle Marie).
Entre suas principais publicações:
Prima lezione di urbanistica, Laterza, Bari 2000
Tre piani, Franco Angeli, Milan, 1994
Un progetto per l’urbanistica, Einaudi, Torino 1989
Il racconto urbanistico, Einaudi, Torino 1984
Squilibri territoriali e sviluppo economico, Marsilio, Venezia 1974
Analisi economica dei problemi territoriali, Giuffrè, Milano 1965
Analisi delle strutture territoriali, Angeli, Milano 1965
Adalberto da Silva Retto Júnior
Professor de História Urbana/ Projeto Urbano no Departamento
de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo da FAAC – Unesp Bauru, e
coordenador do grupo de pesquisa SITU.
Christian Traficante

77
Adalberto RETTO JR.

Engenheiro Ambiental formado na Università degli Studi di


Trento, pós-graduando da Unesp – Campus de Botucatu e Membro
Colaborador do Grupo Situ.
Entrevista
A entrevista faz parte de uma série organizada pelo Grupo de
Pesquisa em Sistemas Integrados Territoriais e Urbanos (SITU),
que é responsável pela organização do Workshop “Conhecimento
histórico–ambiental integrado na Planificação Territorial e Urbana”,
com a participação do urbanista italiano Bernardo Secchi, e
contribuições dos convidados especiais, os Professores Doutores
Aziz Ab’ Saber – (IEB USP), Jürgen Richard Langenbuch (Unesp-
Rio Claro), José Cláudio Gomes (Unesp/FAU USP), Sylvio Barros
Sawaya (FAU USP) e Witold Zmitrowicz (POLI USP). A entrevista foi
disponibilizada em Vitruvius em maio de 2004.
Tradução
A versão em português é de Ilda Rugai Delicato. Revisão de
Adalberto Retto Júnior e Norma Constantino.
Imagens
Fernanda Turini
Website
Para maiores informações:
Mostra New Territories: www.newterritories.it
workshop: www.faac.unesp.br/acontece/secchi
Grupo Situ: www.faac.unesp.br

78
Entre_vista com Bernardo Secchi

79
80
Entre_vista com Marco Biraghi

1. Introdução

Francesco Dal Co e Manfredo Tafuri na Bienal de


Veneza, 1991 Fotografia de Elio Montanari
[fonte: TAFURI, Manfredo. Progetto di crisi, p. 12]

Entrevista com Marco Biraghi


Adalberto da Silva Retto Júnior
Em 27 de março de 1994, durante o ciclo organizado pelo Reial
Cercle Artistitc de Barcelona1,o teórico espanhol Josep Quetglas
assim começou a sua palestra intitulada “Un cadáver. Palabras para
Manfredo Tafuri”:
“Anatole France morreu em 12 de outubro de 1924, em meio a uma
grande agonia, seguida com emocionada apreensão em toda França,
que lhe preparava os funerais nacionais. O grupo do que viria se
constituir desde então o movimento surrealista – antigos dadaístas
– aproveitou aquela ocasião para dar um primeiro golpe público.
Tinha preparado a edição de um panfleto, à imagem de um periódico,

1 Ciclo intitulado Per a Manfredo Tafuri, organizado pelo Col-legi Oficial d’Arquitectes
de Catalunya. As outras intervenções no mesmo ciclo foram de Josep Maria Rovira, Ignasi So-
la-Morales, Victor Pérez Escolano, Carlos Sambricio e Fernando Marias.

81
Adalberto RETTO JR.

que deveria ser distribuído no mesmo dia da morte. Com o título ‘Um
cadáver’, reunia escritores importantes e declarações tomadas da
imprensa, juntamente com textos ásperos e insultantes de Soupault,
Éluard, Breton, Aragon e outros companheiros ocasionais”2.
A imagem construída por Quetglas ilustra em negativo sua
manifestação. Em suas palavras: “Primeiro, porque careço da solene
alegria, da qualidade intelectual, do rigor vital daqueles homens de
1924. Segundo, porque Manfredo Tafuri não foi Anatole France. Não
foi mais do que o autor de alguns livros conhecidos em círculos de
aficionados e especialistas em história da arquitetura”.
Durante o mesmo ciclo Josep Maria Rovira, citado por Quetglas,
declara que Tafuri não conheceu, em toda sua trajetória intelectual,
nenhuma modificação, pois desde fins dos anos sessenta até seu
colapso, uma mesma e única Razão o seguiu, segura e intocável,
sempre igual e atenta a si mesma, denunciando primeiro a grande
cumplicidade entre Arquitetura – entendida como trabalho
intelectual, como ideologia disciplinar, como prática operativa
concreta – e Capital, em seu desenvolvimento, estratégia e astúcia.
Desvelando logo, minuciosamente, os nós críticos do pacto URSS e
USA, as distintas Vienas, Weimar, até chegar a descobrir e identificar,
por meio de uma análise histórica paciente e minuciosa, as origens
do moderno localizadas no mundo do “Renascimento” italiano.
Em 1969, Paolo Portoghesi, que naquele intervalo tinha
conduzido os estudos sobre Guarini e Borromini, publica um artigo
na Constrospazio, de título emblemático: “Autopsia o vivisezione
dell’architettura?”3, no qual sustenta a posição de estranheza da
crítica e da historiografia moderna em relação à crise que tinha
atingido a arquitetura daquele período. Ele denuncia a “dificuldade
dos críticos mais qualificados de destacarem-se dos seus esquemas e
do caráter puramente reacionário e regressivo das raras alternativas
2 QUETGLAS. Josep. Un cadáver. Palabras para Manfredo Tafuri. Quaderns d’arquitec-
tura i urbanisme, nº 210. Barcelona, 1995.
3 Tradução: Autopsia e dissecação da arquitetura.

82
Entre_vista com Marco Biraghi

opostas a tais esquemas”4. Ainda no mesmo texto Portoghesi cita


que o artigo de Manfredo Tafuri na Contrapiano estava “dentre
as contribuições mais significativas para uma revisão radical dos
modelos de desenvolvimento da arquitetura moderna, [...] pois para
uma crítica da ideologia arquitetônica, é o que apresenta uma análise
correta e convincente das ideologias arquitetônicas burguesas da
metade dos Setecentos em diante, e desemboca em uma conclusão
pessimista sobre a qual é oportuno abrir o debate”.
Rafael Moneo assim descreve esse momento:
“Vemos o Tafuri de Teorie e storia imerso nas problemáticas que
foram objeto dos discursos dos seus contemporâneos no fim
dos anos Sessenta. O jovem Tafuri está preocupado com o fato
que os arquitetos que se autodefinem modernos, desprezem a
história e do fato de que a prática da arquitetura se esforce para
tomar distância do passado. Como antídoto a esta preocupação
ele abraça a história universal da disciplina apresentando-a
panoramicamente, como se se tratasse de um monumental afresco
do passado. Brunelleschi, Alberti, Bramante, Borromini...ganham
a cena como protagonistas, até que apareça a figura de Piranesi,
com o qual se abrem as portas daquilo que será o mundo moderno.
Em Piranesi, Tafuri encontra o início da ‘crise dell’oggetto’
que parece caracterizar a discussão crítica da arquitetura
na segunda metade do século XX. O esquecimento do
passado garantia a destruição da aura, a tão desejada não
sacralidade da obra de arte e, assim, da arquitetura”5.
Os primeiros que se levantaram contra Tafuri foram os “arquitetos
profissionais” como o italiano Aldo Rossi, ao dedicar-lhe um croqui
intitulado L’architecture assassinée. A Manfredo Tafuri e, na Espanha,
segundo Rovira, o primeiro personagem a tomar tal atitude foi Oriol
Bohigas.
Em suma, aqueles que nos anos 1960 buscavam uma “história

4 PORTOGHESI, Paolo. Leggere l’architettura. Roma, 1981, p. 46.


5 MONEO, José Rafael. La ricerca come lascito. Casabella, nº 619/620. Milão, 1995, p.
132.

83
Adalberto RETTO JR.

operativa”, que utilizavam uma gama de conhecimentos sobre a


prancheta, como instrumento de projeto ou como afirmação cultural
para a profissão.
Os segundos se levantaram receosos contra Tafuri. Esses, nas
palavras irônicas de Quetglas, eram “os de uma tribo inominada,
caracterizada por sua tendência a trabalhar pouco”, pois “para
escrever sobre o Renascimento teria que se ler e trabalhar muito, ao
contrário que para escrever acerca da arte moderna”. E continua, são
“aqueles adeptos ao marxismo vulgar (que dizem que a superestrutura
ideológica depende da estrutura econômica) e encadeados à
ignorância (esses que supõem que o moderno começa em 1900 são
uns ignorantes), já que a característica da arquitetura moderna é a
destruição da caixa, a pluridisciplinaridade e a assimetria, e isso já se
dava com Giulio Romano, Alberti e Palladio”.
Vale ressaltar que, a posição do historiador e a do projetista,
na Europa do pós segunda guerra, e principalmente na Itália,
freqüentemente se confundia ou eram muito próximas, pois os
arquitetos ativos profissionalmente se empenhavam na história e na
crítica, transformando-se em autênticos intelectuais “orgânicos”, na
expressão de Antonio Gramsci6.
A partir de 1977 o debate arquitetônico submerge em uma profunda
crise que atinge, sobretudo, a dimensão urbana. Nas palavras de
Puglisi, “Declina o mito do espaço não contaminado”7 morrendo o mito
da autenticidade ligado ao neo-realismo, e o Pós-moderno se difunde
em várias correntes (neo-racionalismo, Tendenza, Historicismo),
mas todas apontando para uma problemática metropolitana.
Nos anos 1980, no momento em que Tafuri escreve o livro La sfera
e il Labirinto, a nova concessão urbana pós-modernista aparece de

6 Sobre o assunto ver: COHEN, Jean-Louis. Dall’affermazione ideologica alla storia


professionale, 1999.
7 PUGLISI, L. Prestinenza. Silenziose Avanguardie. Una storia dell’arcchitettura 1976-
2001. Torino, 2001, p. 86.

84
Entre_vista com Marco Biraghi

forma “espetacular” na 1ª Mostra Internacional de Arquitetura, junto


à Bienal de Veneza, a “Strada Novissima”. Solà Morales pontua que
esse momento para Tafuri representa uma inflexão, a partir do qual
se produz uma retirada melancólica dos estudos contemporâneos,
levando-o a um retorno ao Renascimento. Nos anos seguintes nosso
personagem lança com Antonio Foscari, L’armonia e i conflitti. La
chiesa di San Francesco della Vigna nella Venezia del ‘500 (Torino,
Einaudi, 1983), Venezia e il Rinascimento (Milão, Einaudi, 1985),
e Ricerca del Rinascimento (Torino, Einaudi, 1993), que segundo
Cacciari é um exercício de filologia viva8.

8 Cacciari ressalta que o próprio título de Ricerca del Rinascimento: principi, città,
architetti, de Manfredo Tafuri, já é um exercício de filologia viva, pois deixa de ser uma pes-
quisa sobre o Renascimento para incorporar a “própria visão do Renascimento como pesqui-
sa”. No sentido lato, segundo uma idéia oitocentesca, o objeto da filologia é o conhecimento
daquilo que foi produzido pelo espírito humano, isto é, do conhecido. Muitos teorizaram e
também praticaram análises do mundo figurativo e material com intenções filológicas, mas
vale recordar que cabe à escola Les Annales uma redefinição recente no sentido teorético e
metodológico do papel das fontes na pesquisa histórica, por meio de inovações no que diz
respeito às modalidades e às técnicas de interpretação dos dados, assim como ao alargamento
dos horizontes analíticos. Nessa redefinição, coloca-se, por exemplo, aquele modo de cons-
truir conhecimento histórico por meio da análise estatística de um grande número de dados,
injustamente deixados de lado pela filologia tradicional. Fernand Braudel nos mostra com uma
história quantitativa que dá relevância documental à multidão de fatos diminutos, externos à
sacralidade do evento, como os nascimentos e as mortes, habitações e vestuário, etc. É nesse
contexto que se tem uma dilatação do campo de investigação do histórico: A história – nos
diz Lucien Febvre – “se faz com os documentos escritos, certamente. Quando estes existem.
Mas pode-se fazer também, quando os documentos escritos não existem [...]. Logo, com as
palavras. Com os signos. Com a paisagem e as telhas. Com os eclipses da lua e as rédeas dos
cavalos de carga. Com as perícias das pedras feitas pelos geólogos e com as análises de metais
feitas pelos químicos. Em suma, com tudo aquilo que, pertencendo ao homem, depende do
homem, serve ao homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e
modos de ser dos homens”. Se o objeto da filologia é o estudo com o fito de compreender e
explicar um mundo de signos e sentidos por meio da obra, se é o estudo a fim de reconhecer os
traços genéticos e estruturais de uma obra, e se além de tudo tem o fim de um trabalho sobre a
obra – saturar lacunas ou produzir integração apropriadas –, então o procedimento filológico
percorre a linha da construção.

85
Adalberto RETTO JR.

Mas se o “projeto histórico” de Veneza foi tão envolvente, levando


a reações inusitadas por parte de intelectuais renomados, isso se
deve ao fato de que, na crítica à história “operativa” - prática dos
arautos dos Modernos -, propunha-se uma outra prática com a qual
os jovens históricos europeus se empenharam, pondo em discussão
as teorias precedentes, como se fosse tratada ali uma nova “causa”,
capaz de rediscutir uma série de inversões conceituais que tocaram
toda a história da arquitetura e que erradicaram os fundamentos
das histórias até aquele momento consideradas canônicas. Assim,
à história das “conquistas” dos Modernos foi substituída por
operações de pesquisa genealógica, das quais Foucault é a referência
mais evidente, que miravam individualizar as linhas de ligação
entre a arquitetura dos séculos XVIII e XIX e as problemáticas
contemporâneas. Assim, “atrás da figura de Mies se desenhava aquela
de Behrens, e mais ainda, aquela de Schinkel; atrás de Le Corbusier
se delineavam de um lado a continuidade do racionalismo francês e
do outro a importância da experiência alemã; e atrás de Loos colhia-
se a amplidão das propostas de Otto Wagner”9.
Dentre as muitas inversões que então vinham sendo conduzidas,
figurava, também, as análises das periferias das grandes cidades, lugar
onde se encontravam as políticas de reforma social e de invenção
arquitetônica – o verdadeiro centro da modernidade européia.
Um conjunto de fatos construído, a partir do exame minucioso
e aprofundado dos edifícios, e dos arquivos, alimentou a formação
dessa outra história, que ao olhar mais os “vencidos” do que os
“vencedores” da história oficial, reabilitava aos olhos da história
arquitetos injustamente “condenados”.
Subverter a hierarquia e propor novas linhas históricas
comportou, naqueles anos, um trabalho sem paralelo levado pelo
departamento coordenado por Tafuri. Deveria não somente fazer
9 Sobre isso ver CIUCCI, G. Gli anni della formazione. Casabella, nº 619-620. Milão,
1995.

86
Entre_vista com Marco Biraghi

emergir novas imagens, mas, sobretudo, dar fundamento, através


de uma documentação histórica rigorosa, às interpretações
subversivas propostas. A consulta aos arquivos se transformou numa
necessidade e uma estratégia departamental através de concessões
de bolsas que financiassem tais deslocamentos. Jean-Louis Cohen10
esclarece que, com isso, nasceu um outro modo de fazer história,
baseado “não no uso dos desenhos publicados, mas no confronto das
variantes que ficaram secretas e de arrependimentos, para descobrir
os verdadeiros saltos conceituais nas estratégias de projeto”. Esta
história recusou, também, as “hagiografias” do passado, para buscar,
na correspondência dos protagonistas, aqueles contatos anódinos e
aquelas relações privadas que pudessem iluminar os acontecimentos
biográficos e as escolhas arquitetônicas.
No dia 25 de fevereiro de 1994 no pátio dos Tolentini, sede do
Istituto Universitario di Architettura di Venezia, Massimo Cacciari
expressa em palavras o espírito que envolvia a perda de Manfredo em
“Quid tum. Orazione funebre per Manfredo Tafuri”:
“Saberemos nós também fazer do tempo que nos foi dado obra,
construção, pintura, traços e medida. É difícil hoje pensar que
conseguiremos, sem a sua presença, sem o seu exemplo”. E
continua: “É fácil pensar, ao contrário, que acabaremos submersos
no dilúvio de conversas, e rumores, de dogmatismos hoje em moda,
dos mais opostos a cada convicção e a cada responsabilidade. E
mesmo assim temos que nos permitir, aqui, em torno a Manfredo:
procuraremos ‘com todas as mãos e com os pés, com todos os
nervos, com todos os esforços’ de ser lhe fiéis, de escutá-lo”11

Depois de um período de relativo eclipse o confronto com


Manfredo Tafuri está sendo re-proposto como algo iniludível para
10 COHEN, Jean-Luois. La coupure entre architectes et intellectuels, ou les enseigne-
ments de l’italophilie, nº 1. In Extenso. Paris, École d’Architecture Paris-Villemin, 1984.
11 Durante minha permanência em Veneza solicitei ao prof. Massimo Cacciari uma en-
trevista no qual exploraria os anos de Manfredo Tafuri à frente do departamento. Ele, gentil-
mente, disse não gostaria de falar de argumento que o fazia sofrer e que já tinha conseguido
distanciar-se depois de muito tempo.

87
Adalberto RETTO JR.

a cultura contemporânea, porém de forma muito diferente daquela


imagem encenada pelo teórico espanhol.
O lançamento do livro “Progetto di Crise. Manfreso Tafuri e
l’architettura contemporânea” do prof. Marco Biraghi e o Congresso
The Critical Legacies of Manfredo Tafuri, que aconteceu na Columbia
University em 20 e 21 de abril de 2006, organizado por Daniel Sherer12,
mostram um grupo muito seleto de intelectuais reunidos em torno
ao legado tafuriano.
Gregotti assim se pronuncia sobre o livro do prof. Marco Biraghi:
“Um grande mérito do livro é certamente aquele de ter dedicado um
trabalho de trezentas páginas ao mais intrigante e genial historiador
italiano da arquitetura do último meio século: Manfredo Tafuri”13.
Se de um lado está, todavia, em curso uma remoção sutil e talvez
superficial daquilo que atribuía ao historiador a responsabilidade
de todos os erros da arquitetura atual, principalmente por parte
dos arquitetos, de outro, alguns ações pontuais dentro do seu
departamento e da sua universidade, começam a delinear uma
tentativa inicial de rompimento do silêncio pós-morte, que pouco
a pouco denotam uma lenta retirada de véu do personagem que se
transformou em tabu dentro do departamento de história, por ele
fundado.
Desde então, iniciou-se um ciclo de conferências anuais com
renomados intelectuais que são chamados a prestar homenagem, ou
ainda, conversar com Tafuri, em uma sessão especial no auditório
que leva seu nome. Se em um primeiro momento aconteceu em data

12 In www.arch.columbia.edu/gsap/59939. Participantes do Congresso: Diana Agrest,


Andrew Leach, Reinhold Martin, Peter Eisenman, Kenneth Frampton, Anthony Vidler, Joan
Ockman, Mark Rakatansky, Carla Keyvanian, Anthony Vidler, Guido Zuliani, James Ackerman,
Deborah Howard, Daniel Sherer, Jean-Louis Cohen, Marco Biraghi, Diane Lewis, Alessandra
Ponte, Antoine Picon, Reinhold Martin, Beatriz Colomina, Alessandra Ponte. Somente Bernar-
do Secchi e Marco De Michelis aparecem como representantes do Instituto de Veneza.
13 La Repubblica, 10 jun. 2005.

88
Entre_vista com Marco Biraghi

próxima ao seu aniversário, 20/10/1994 com Carlo Ginzburg falando


sobre Straniamento: preistoria di un procedimento narrativo, nos
anos sucessivos deslocou-se em torno ao dia de sua morte14.
James Akerman15, convidado no ano de 2001, assim se referiu a
Tafuri na sessão pública:
“Depois de ter começado a ensinar, e ter entendido o quanto
era difícil integrar a minha reação à individualidade e à presença
física do objeto com uma interpretação penetrante, fiquei mais
consciente da necessidade de estudar os assuntos ideológicos que
estão submetidos à escolha de um sujeito, e à sua abordagem, e esta
percepção se reforçou em fins dos tulmutuosos anos ‘60. Isto veio
à tona por um outro professor, Manfredo Tafuri, vinte anos mais
jovem que eu, o qual, único entre os mais inovadores e filosóficos

14 23 fev. 1996 – Raymond Klibansky, Niccolò da Cusa e il pensiero dell’uomo; 23 fev.


1997 – Rafael Moneo, Critica e architettura; 23 fev. 1998 – Massimo Cacciari, Costruire – pen-
sare; 23 fev. 1999 – Paul Zanker, Le apoteosi imperiali nel campo Marzio. Rituale e cornice
urbana; 23 fev. 2000 – Salvatore Settis, Un’Adultera, Giorgione e Tiziano; 23 fev. 2001 – James
Ackerman, Sulle origini della fotografia di architettura; 23 fev. 2002 – Mario Tronti, Pensare la
politica dopo il ‘900?; 23 fev. 2003 – Franco Cordero, I tanti modi d’avere ragione: retoriche
del secolo incipiente; 21 mar. 2005 – Pierre Gros, Le fondazioni urbane sotto l’Impero. Ombre
e luci della ‘praxis’ ordinaria. Na última das “Lezione Manfredo Tafuri” (2006) houve “Tre con-
versazione con la musica. La vocazione artistica”, com curadoria de Paolo Cossado.
15 Ressalto a figura de James Ackerman dado sua importância frente ao Centro Inter-
nazionale Andrea Palladio. Instituição que de certa forma faz parte ainda hoje como comple-
mento ao projeto pedagógico do departamento de história, principalmente no que se refere
ao debate filológico. Manfredo Tafuri, em entrevista concedida a Pietro Corsi, ressalta tal im-
portância na medida em que o Centro reúne historiadores com uma sólida cultura filológica.
O CISA foi fundado em 1958 e congrega desde então grandes teóricos ocupados em Renasci-
mento, como James Ackerman e Howard Burns, que tiveram grande contato com Tafuri. Até
recentemente (2002) Howard Burns foi presidente do Conselho Científico e também coorde-
nador do doutorado do DSA – Veneza. Os membros do Conselho Científico atual são: James S.
Ackerman, Franco Barbieri, Arnaldo Bruschi, Renato Cevese, Giorgio Ciucci, Joseph Connors,
Kurt W. Forster, Christoph L. Frommel, Luisa Giordano, Pierre Gros, Jean Guillaume, Dou-
glas Lewis, Fernando Marias, Paola Marini, Werner Oechslin, Pier Nicola Pagliara, Jean-Marie
Pérouse de Montclos, Mario piana, Lionello Puppi, Fernando Rigon, Juergen Schulz, Christof
Thoenes, Wolfgang Wolters.

89
Adalberto RETTO JR.

historiadores da arquitetura do século passado, unia uma grande


capacidade de penetrar as motivações ideológicas dos comitentes
e dos artistas com uma rigorosa integridade de método, e com um
estupefaciente empenho na busca das fontes, enriquecendo a análise
de cada construção através da articulação das suas experiências
visível e a sensibilidade à criatividade individual do artista”16.

Em 12 de dezembro de 2002 foi iniciada a primeira versão do


evento anual “Fare storia”17 junto ao Doutorado de Excelência da
Fondazione Scuola Studi Avanzati in Venezia, criado alguns anos
após Tafuri, em San Servolo.
Francesco Dal Co assim se manifestou:
“Hoje nos jornais lemos sobre “fazer história”. Mas alguém
“faz história”? O que significa exatamente? É possível fazer
história? É possível escrever textos objetivos sobre o passado?
História é o que encanta por que desencanta. Mas a história
não exprime jamais as palavras definitivas porque jamais dá
certezas. “Fazer história” então significa agir à luz deste desafio.
Significa se ocupar com aquilo que não é nosso, com o que já
perdemos, com aquilo que nos escapa. Não possuímos a história,
não a compreendemos. Não há a última palavra na história”18

Em 2005, como programa do mesmo doutorado se iniciou o


Seminário Internacional de Estudos 2004-2005 “Rileggere Tafuri”,
nascido da “simples vontade de re-ler e re-discutir livros que foram,
ou deveriam ser, a base da nossa formação de historiadores e críticos
da arquitetura. Nesses vêm delineadas as razões e as metodologias
de pesquisa histórica e teórica que desenvolvemos cotidianamente,
as origens dos ciclos e dos fenômenos que são objetos do nosso

16 Anotação feita durante a palestra.


17 O título é uma referência ao livro Faire de l’histoire, publicado pelos historiadores
franceses Jacques Le Goff e Pierre Nora em 1974. Em uma entrevista Tafuri explicita a ligação
com os historiadores da Annales citando o livro Le problème de l’incroyance au XVIe siècle: la
religion de Rabelais (1974-42) ou seu recente livro Un destin, Martin Luther, un destin (1928).
18 Fare storia, 12-14 dez. 2002.

90
Entre_vista com Marco Biraghi

estudo”19. No seminário, teóricos de relevo são chamados a re-lerem


as obras de Tafuri individualmente. Aquele organizado por Marco De
Michelis e L. Skansi renomeado “Riscrivere Tafuri” foi apresentado o
livro de Marco Biraghi, tendo como debatedor, além do organizador,
Bernardo Secchi.
Mas, se a chegada dos textos de Tafuri no cenário europeu e
americano, mais ainda, naquele espanhol, como adverte Quetglas,
teve tantas conseqüências, “como el uso bélico de la pólvora em los
trazados de las murallas renacentistas” enterrando “Giedion, Zevi,
incluso el viejo Argan”, aqui no Brasil sua obra ainda permanece
pouco conhecida, como constataram intelectuais de Veneza que aqui
estiveram nos últimos anos.
“Um cadáver por Tafuri” e, antes da precoce mitificação que
esse ato de possa assumir, ou das freqüentes interrogações se seus
ensinamentos ainda são agora operantes, se existe um paradigma
alternativo, o percurso aqui proposto do qual essa entrevista
faz parte, é em função de indagações a partir de sua obra e na
tentativa inicial, não de re-ler Tafuri, mas de lê-lo em um rito de
cumplicidade gradativa a fim de encontrar traços, retirar véus na
difícil arte do “desincanto”20. Em cada véu retirado, como salienta
o próprio Tafuri, o que resta é estudar, conhecer e representar os
mecanismos reais, e por isso convém usar na maneira mais refinada
possível os instrumentos de uma investigação (dentro de certos
limites, obviamente) objetiva. É o “total desencanto que faz o grande
historiador”.

19 In www.documenti.ve.it.
20 Cacciari reforça que Tafuri como “homem póstumo, ensinava a coisa mais difícil: a
arte do desencanto junto à esperança e a fé”. CACCIARI, Massimo. Quid tum. Casabella, nº 619-
620. Milão, Elemond Periodici, jan./fev. 1995, p. 168.

91
Adalberto RETTO JR.

Desenho de Aldo Rossi intitulado “L’architecture


assassinée. A Manfredo Tafuri”, de 1974

2. Projeto de crise

Cartaz do evento Manfredo Tafuri e la ricerca storica,


Politécnica de Milão, maio de 2005

92
Entre_vista com Marco Biraghi

Adalberto Retto: Depois de um período de relativo eclipse o


confronto com Tafuri está sendo re-proposto como algo iniludível
para a cultura contemporânea: The Critical Legacies of Manfredo
Tafuri (2006) na Columbia University, Seminário Internacional de
Estudo 2004-2005 Rileggere Tafuri, junto ao Doutorado de Excelência
da Fondazione Scuola Studi Avanzati in Venezia, etc. Exceto o volume
duplo de Casabella, nº 619-620, 1995, dirigida por Gregotti, o seu
livro é o primeiro dedicado integralmente a Manfredo Tafuri. A sua
interpretação do trabalho histórico-crítico de Tafuri se concentra
na idéia de “Projeto de Crise” como diz o próprio título do livro. O
senhor pode discorrer sobre o tema do livro?
Marco Biraghi: Isso que você chama de eclipse do pensamento
tafuriano – a que efetivamente corresponde de algum tempo uma
re-emergência de interesse – é, mesmo que seja implicitamente,
um tema, ou para melhor dizer a “causa”, do meu livro. Por isso, se
também o seu objetivo fosse somente aquele de contribuir para fazer
voltar a re-discutir Tafuri, estarei já plenamente satisfeito. Isto dito,
o fio condutor do livro é a tentativa de re-percorrer aquilo que Tafuri
chamava de “projeto histórico”, que posteriormente é um “projeto de
crise”, como ele mesmo sublinhava, e procurar compreender como
tal projeto fosse de qualquer modo necessariamente destinado a
concluir-se com um “xeque mate”.
Neste sentido o projeto tafuriano é um projeto radicalmente
moderno. Isso pertence a uma visão profundamente trágica da
realidade, dentro da qual a aceitação e também a análise profunda
das contradições não permite, todavia de superar-lhes, e assim de
se liberar delas. Eu tentei seguir, passo a passo, o projeto histórico
de Tafuri relativo à arquitetura contemporânea, tentando recolocá-
lo juntamente com os fios esparsos aqui e ali, nos seus livros, não
seguindo a ordem cronológica, mas procurando trazer à tona o seu
juízo sobre alguns autores.
Por exemplo, vieram a tona interessantes oscilações relacionadas

93
Adalberto RETTO JR.

a Louis Kahn, que antes foi visto como um “salvador”, e depois, como
uma espécie de “início do fim” da arquitetura moderna, nos ombros
do qual recaiu a as culpas de qualquer falência... Em geral, a sua
abordagem sempre foi muito crítica em relação a toda arquitetura
que teve a ilusão de poder evitar prestar as contas com a realidade.
Uma abordagem histórica-crítica baseada na crítica da ideologia (e
da utopia, como seu necessário correlato) não podia menos que por
de frente a um aut aut21 de uma inteira cultura arquitetônica – e de
conseqüência por um aut aut a si mesmo. O projeto de Tafuri foi, no
meu ponto de vista, um dos grandes produtos da modernidade (e
também um dos últimos, provavelmente). O problema para nós hoje
é compreendermos em que medida este projeto seja verdadeiramente
“histórico”, e por isso pertença à sua época, ou mesmo possa ser útil
também para nós.

“The assassin. The critical legacies of Manfredo Tafuri,


Columbia University, New York, 20-21 April 2006“,
artigo de Jon Goodbunpara a revista Radical Philosophy,
nº 138, jul./ago. 2006

21 Expressão latina que significa “ou sim ou não”, “de um modo ou de outro”.

94
Entre_vista com Marco Biraghi

3. O objeto da história

Carceri, Piranesi. Fonte: TAFURI, Manfredo. La La sfera


e il labirinto. Avanguardie e architettura da Piranesi agli
anni ‘70 [fonte: Torino, Einaudi, 1980]

Adalberto Retto: Como nos diz Manfredo Tafuri, “objeto da história


é a análise do ‘embate’ entre ‘as muitas linguagens’ (e os muitos
dialetos) que compõem o real”. O senhor nos recorda que aquilo que
regula o processo histórico é a luta constante entre a análise e os
seus objetos, e que isto, não deve deixar escapar o horizonte geral
de referências sobre as quais a noção de crise era colocada naqueles
anos: Projeto e destino de Argan, Husserl da Crise das ciências
européias e outros. O senhor pode iluminar este percurso?
Marco Biraghi: Diria que o pensamento da crise faz um todo com
o pensamento ocidental dos últimos séculos. Por esta razão um dos
autores a que se refere constantemente Tafuri é Nietzsche.
Para avaliar na totalidade a influência que o pensamento de
Nietzsche – mas também de Benjamin, de Heidegger e de Husserl da

95
Adalberto RETTO JR.

Krisis – tem sobre Tafuri, precisa inseri-lo no contexto italiano dos


anos sessenta; de um lado os pais históricos da filosofia italiana do
período – sobretudo Enzo Paci, de outro o ambiente veneziano com
que Tafuri entra em contato a partir de 1968, e que tem em Massimo
Cacciari o seu maior expoente. Eu creio que muitíssimo do que Tafuri
escreveu deva ser relido à luz destas figuras, próximas e distantes.
Em particular a questão da crise (mas atenção: da produtividade da
crise, da sua “positividade” por mais paradoxal que possa parecer)
não pode ser lida nesta chave, profundamente nietzschiana.
Mesmo que para a formação do projeto histórico tafuriano
concorrem outros componentes, como por exemplo, o discurso
psicanalítico de Freud, ou as diversas críticas da linguagem de
Wittgenstein e de Karl Kraus. Todos os componentes de qualquer
maneira que têm como alvo comum a Europa dos primeiros trinta-
quarenta anos do Novecentos, ou mesmo um lugar e um período
assinalados por uma crise insolúvel, da Viena do finis Austriae à
Alemanha alle prese con il nazismo.

Carceri, Piranesi. Fonte: TAFURI, Manfredo. La La sfera


e il labirinto. Avanguardie e architettura da Piranesi agli
anni ‘70 [fonte: Torino, Einaudi, 1980]

96
Entre_vista com Marco Biraghi

4. A crítica operativa

Ludwig Hilberseimer, da Grosstadtarchitektur,


Stuttgart, 1927 [fonte: Progetto di crisi, p. 80]

Adalberto Retto: Em “O mestiere do historiador. Entrevista a


Manfredo Tafuri” (Domus, nº 605, 1980), Tafuri diz: “O modo com que
olho os fenômenos históricos pode ser ‘projetual’, mesmo se continuo
a rejeitar qualquer categoria de tipo operativo”. O senhor afirma
que “A crítica a crítica operativa fornece um essencial elemento
para analisar ainda in nuce o ‘projeto histórico’ de Tafuri”. O senhor
poderia desenvolver essa afirmação?
Marco Biraghi: Parece que há em Tafuri uma extraordinária
lucidez, desde as páginas de Teorias e histórias da arquitetura, em
que ele tinha impostado o discurso sobre crítica operativa.
Naquelas páginas ele consegue se manter “destacado” de uma
crítica operativa fácil, que tinha como objetivo evidente Bruno Zevi,
com que foi consumada uma ruptura insanável. Este “destaque”
corresponde ao esforço de não fazer uma crítica ideológica, mas sim
uma crítica da ideologia. No projeto histórico o tema do destaque
retornará, mesmo que seja em uma perspectiva diferente. A questão
da distância, da não identificação do historiador com o objeto dos
seus estudos, com a época estudada, aqui assume um caráter,

97
Adalberto RETTO JR.

sobretudo metodológico. Mas transforma-se também em uma crítica


da cultura do Einfühlung, que teve o seu reverso na profunda
“simpatia” que Tafuri tinha por Aby Warburg, um historiador que na
sua vida sentiu com extraordinária intensidade o pathos, o
chamamento sedutor das imagens que estudava, mas que sentia com
a mesma intensidade o pathos da distância.

Ludwig Hilberseimer, da Grosstadtarchitektur,


Stuttgart, 1927

98
Entre_vista com Marco Biraghi

5. Cidade Território

Ático para o apartamento de Charles Béistegui, Paris. Le


Corbusier, 1930

Adalberto Retto: No texto “La città territorio, verso una nuova


dimensione” (revista Casabella continuità, 1962), Manfredo Tafuri,
com Vieri Quilici e Giorgio Piccinato, enfrenta, pela primeira vez,
o tema da crítica da cidade, perguntando-se qual poderia ser a
“dimensão fundamental a se fazer referência nas hipóteses de
desenvolvimento urbanístico”.
O artigo fala da superação “da sistemática origem racionalista
preocupada em subdividir cada complexa problemática em problemas
particulares, cada um dos quais passíveis de serem resolvidos
separadamente [...] para atingir diretamente a complexidade e a
contrariedade de uma realidade em que operar” (p. 24). Deste modo,
para os autores, o chamado “modello operativo” em urbanismo
entra em declínio. Vinte anos mais tarde, no ensaio Machine et
mémoire – la città nell’opera di Le Corbusier, ele enfrenta mais uma
vez o tema procurando fazê-lo através da arquitetura, da pintura e
urbanismo, analisando os métodos projetuais, as ideologias políticas,
as referências culturais e formais do mestre do movimento moderno.
“O attico Béistegui não faz parte de algum programa

99
Adalberto RETTO JR.

urbanístico: pelo contrário, é um baú precioso para uma elite


mundana, bem diferente, nas suas conotações sociológicas e
culturais, daquela que Le Corbusier gostaria de ter confiado as
próprias soluções para a reforma do universo moderno. Mas,
justamente deste emergem muitos elementos da abordagem
lecorbusiana em relação às temáticas urbanas sobre a qual os
seus escritos teóricos – não casualmente – se calam” (p. 44).

O senhor pode esclarecer melhor a relação de Tafuri e a cidade?


Marco Biraghi: Naturalmente a relação é muito complexa, e
mereceria um outro momento para efetivo aprofundamento. Todavia
creio que a cidade representasse para Tafuri o último horizonte ao
qual olhar; não no sentido estritamente disciplinar, entendido como
urbanismo, obviamente, muito mais no sentido que a cidade aos seus
olhos encarnava aquela efervescente estratificação de contradições
convivendo, o que ele considerava a própria natureza da história.
Poderia talvez ser dito que para ele a imagem da história era
verdadeiramente a imagem da cidade e, com isso os seus tempos
e modos diversos. Veneza, neste sentido, encarna provavelmente
uma das “figuras” que mais se aproximou à sua idéia de história.
Não somente em Venezia e il Rinascimento e nas partes de Ricerca
del Rinascimento dedicadas à Veneza, mas também no belíssimo
diálogo à três com Massimo Cacciari e Francesco Dal Co, O mito de
Veneza, emerge esta imagem concreta de Veneza como cidade das
contradições, como concretude histórica vital, jamais morta, sempre
em porvir.
Le Corbusier, deste ponto de vista, se constitui uma referência
imprescindível para Tafuri, que nele vê um dos grandíssimos homens
do moderno, e assim a encarnação do trágico, mais uma vez. E é
significativo que de Le Corbusier lhe interessasse mais a fase
intermediária e a final, em que arquitetura e cidade se misturam de
modo mais “insustentável”, por assim dizer: isto é, Le Corbusier do
Plan Voisin, e mais ainda do Plan Obus ou de Chadigarh, que procura

100
Entre_vista com Marco Biraghi

confrontar-se com a realidade sem poder mais confiar (ou crer de


confiar) no grande mito da racionalidade. É este Le Corbusier “surreal,
ou “irracional”, ou justamente por isso “trágico”,que interessa a Tafuri.
E a cidade lhe tem o mesmo valor. Levando em conta de qualquer
forma do profundo destaque que, a partir da segunda metade dos
anos sessenta, Tafuri demonstrou para todos os discursos do tipo
“cidade território”...

Capa de TAFURI, Manfredo. Ricerca del Rinascimento


[fonte: Torino, Einaudi, 1993]

101
Adalberto RETTO JR.

6. L’architecture dans le boudoir

Peter Eisenman, Axonometrica da Casa II (Casa Falk),


Harwick, 1969-70 [fonte: TAFURI, Manfredo. Progetto di
crisi, p. 150]

Adalberto Retto: No capítulo “L’architecture dans le boudoir”


Tafuri adverte: “não temos nenhuma intenção de examinar
atentamente as recentes tendências arquitetônicas. Preferimos,
mais do que isso, concentrar a atenção sobre algumas atitudes
particularmente significativas, interrogando-nos sobre papéis que,
de vez em quando, a crítica deve assumir com relação a eles”. Toma
em análise James Stirling (um que revelou a possibilidade de uma
manipulação sem fim de uma gramática e de uma sintaxe dos signos
arquitetônicos, usando com coerência extrema a lei formalista do
contraste e da oposição: a rotação dos eixos, o uso de estruturas
antitéticas, as distorções tecnológicas” (p. 326), passa a Aldo Rossi (“a
especificidade da arquitetura se insere em um universo dos signos
rigorosamente selecionados, em que domina a lei da exclusão”, p.
331), Vittorio De Feo (um oscilar “entre criação de espaços virtuais e
refinadas pesquisas tipológicas. A experimentação sobre deformação

102
Entre_vista com Marco Biraghi

dos materiais geométricos é para ele dominante”, p. 340), Franco


Purini e Vittorio Gregotti (“a forma não é um absoluto. [...] um
arquiteto com excessiva vontade de síntese”, p. 341). Outros exemplos
analisados são Graves e Hejduk.
Estes exemplos vêm utilizados por Tafuri para demonstrar que
cada uma das linguagens examinadas requer instrumentos diversos
de abordagem? É oportuno assim, no âmbito da crítica mais eficaz,
partir da obra?
Marco Biraghi: Seria muito fácil dizer: obviamente sim, e afirmar
que isso foi sempre o que fez Tafuri. Na realidade, parece que relendo
hoje os livros de Tafuri (penso em Arquitetura Contemporânea,
escrita com Dal Co) a sensação seja exatamente oposta.
Mesmo que não nos pareça hoje aceitável e também ao que
pode ser aceito por aqueles que afirmavam a necessidade de evitar
sobreposições operativas ou ideológicas ao trabalho do historiador
e o indispensável retorno às fontes, aos documentos, a uma sapiente
filologia, as obras parecem cair num dramático vazio substituídas
por afirmações que as “fotografam” de maneira freqüentemente
fulminante, mas não exaustiva ou satisfatória.
Isto naturalmente mudou nos últimos 12-15 anos da sua atividade.
Mas em muitos livros de Tafuri (e em muitos dentre aqueles que
tiveram grande repercussão, como A esfera e o labirinto, por você
citado), as obras são negligenciadas totalmente.
Ou então, se tornam grandes metáforas de questões mais gerais
que não conseguem, enquanto obras particulares, sustentá-las. Em
certos casos a abordagem funciona muito bem, como no caso de
Piranesi. Noutros autores talvez menos. Assim como também a
diversidade das abordagens, se é verdade observando o horizonte
mais geral da pesquisa, parece ter menos correspondência no âmbito
de um livro como A esfera e o labirinto. No meu livro tentei seguir,
por exemplo, a chave interpretativa da “nostalgia” usada por Tafuri, e

103
Adalberto RETTO JR.

essa foi utilizada indiferentemente para experiências arquitetônicas


diversas, de Kahn a Venturi, a Eisenman, ao próprio Rossi.

Louis Kahn, Vista superior do


Centro Cívico, Filadélfia, 1956-57
[fonte: TAFURI, Manfredo. Progetto di Crisi, p. 108]

7. Tafuri e Koolhass

Rem Koolhass, Elia Zenghelis, Exodus or the Voluntary


Prisoners of Architecture, 1972
[fonte: Progetto di Crisi, p. 244]

Adalberto Retto: Pode se dizer que Koolhass e Tafuri são dois


personagens trabalhados em primeira pessoa pelo senhor. O senhor

104
Entre_vista com Marco Biraghi

curou a tradução de Delirious New York na Itália e no capítulo do


livro sobre Tafuri, Giochi, Scherzi e Balli, o senhor põe em confronto
os dois personagens. Delirious New York é uma porta que se abre
para um futuro diferente daquele linguaggio da battaglia de que
Tafuri decreta o fim no ensaio para o livro dos Five architects?
Marco Biraghi: Dei-me conta perfeitamente que a associação dos
nomes de Tafuri e Koolhass pode resultar indevido e forçado. Se tentei
este perigoso exercício foi porque estou convencido que a história
volta antes de tudo – como o mesmo Tafuri aspirava e praticava – a
ser construtiva e não simplesmente re-construtiva. A história deve
construir cenários críticos, não somente refleti-los. Isto não seria
possível, todavia se não houvessem os “fundamentos” sobre as quais
os edificar. No meu ponto de vista, parece que a figura de Koolhass
constitua de qualquer modo a imagem especular daquela de Tafuri:
têm muito em comum, mesmo se no avesso um com relação ao outro.
Antes de tudo a valorização da crise. O projeto de crise de Tafuri
fica assim como a exploração da crise de Koolhass. Mas isto não
seria possível senão a partir de uma sensibilidade comum, de uma
compreensão comum do que é essencial na contemporaneidade.
No meu livro me servi das categorias de moderno e pós-moderno,
entendidas de um ponto de vista cultural, não estilístico ou
cronológica.
Parece essencial pôr em confronto estes dois pontos de vista
diferentes, justamente para lhes poder compreender melhor na sua
relativização. Com Koolhass se reabrem todas (ou quase) as instâncias
que Tafuri mantinha fechadas. O problema é que quem encontra em
Koolhass uma das poucas referências intelectuais vitais do panorama
arquitetônico atual, ignora totalmente, na grande parte dos casos,
que aquelas questões, aquela “criticidade”, aquela sensibilidade para
a crise, provém, diretamente ou indiretamente, de Tafuri.

105
Adalberto RETTO JR.

Baile dos arquitetos, Hotel Astoria, New York, 23 de


janeiro de 1931
[fonte: BIRAGHI, Marco. Progetto di crisi, p. 250]

8. Crítica contemporânea

Capa, com desenho L’architecture assassinée de Aldo


Rossi, do livro BIRAGHI, Marco. Progetto di crisi.
Manfredo Tafuri e l’architettura contemporanea. Milão,
Marinotti, 2005

106
Entre_vista com Marco Biraghi

Adalberto Retto: Qual é o verdadeiro papel de Manfredo Tafuri na


crítica contemporânea?
Marco Biraghi: Penso que Tafuri tenha pelo menos um duplo
papel. Em primeiro lugar um papel “histórico”, no sentido que foi
uma das maiores e mais influentes figuras da crítica arquitetônica
da segunda metade do século passado. A sua atual “eclipse”, total ou
parcial, não significa que este papel não tenha havido e que não os
viria reconhecido. A sua importância é “objetiva”, e creio vá além de
cada avaliação de parte.
Alguns de seus livros são fundamentos da cultura arquitetônica,
muito além (ou, quase sempre além) da sua atualidade. É justamente
por serem profundamente radicados na sua época, em tê-la
assinalada, que demonstram a sua importância; mesmo se hoje
podem resultar – e por certos artigos tomara que sejem – superados
ou parciais.
Depois ele tem um papel que diria “potencial”. Com meu livro
procurei olhar este papel, e de indicar lhe o sentido. Tafuri nos convida
a uma profunda, radical inquietude: a inquietude do historiador, não
aquela do filósofo ou do homem comum. A inquietude do historiador
é aquela que não dá por passado o passado, que não lhe permite
passar, mantendo-lhe aberto, interrogando-lhe continuamente, e
assim fazendo modificando-lhe. Eu creio que o mesmo deveria ser
feito com Tafuri e com sua obra. Continuar a interrogá-la significa
não somente mantê-la viva, mas também manter aberta aquela
produtividade da crise que está no centro do seu projeto histórico.
Retenho que a compreensão profunda do significado da crise seja
muito importante para nós hoje, e não só para os historiadores. No
sentido banal, que hoje a crise é mais atual, no sentido que a crise é
sempre atual, e assim enquanto tal escapa aos olhos desatentos, aos
olhos que não querem ver. A crise é objeto de uma contínua, perpétua
remoção, social e cultural. E eu penso que o fato de fazer nos tomar
atenção à crise, à constituição da crise, faça do pensamento de Tafuri

107
Adalberto RETTO JR.

um dos fundamentos do Novecentos, de que não precisa ter muita


pressa de descartar-se.

Man Ray, Portrait imaginaire de D.-A.-F. de Sade, 1940


[fonte: TAFURI, Manfredo. Progetto di crisi, p. 292]

108
Entre_vista com Marco Biraghi

9. Crédito

Capa do livro TAFURI, Manfredo. Venezia e il


Rinascimento. Milão, Einaudi, 1985

Marco Biraghi
Nascido em Milão, em 1959, é professor de História da Arquitetura
Contemporânea na Facoltà di Architettura Civile del Politecnico de
Milão. Faz parte do comitê de redação da revista Casabella. Entre
as suas publicações: Porta multifrons. Forma, immagine, simbolo
(Sellerio, Palermo 1992), Hans Poelzig. Architectura, Ars Magna
(Arsenale, Venezia, 1992), Béla Lajta. Ornamento e modernità
(Electa, Milano 1999). Além disso foi curador da edição italiana do
livro Delirious New York de Rem Koolhaas (Electa, Milano, 2001), da
coleção de textos de Ezio Bonfanti (Nuovo e moderno in architettura,

109
Adalberto RETTO JR.

Bruno Mondadori, Milano, 2001) e de Reyner Banham (Architettura


della seconda età della macchina, Electa, Milano 2004). O seu último
livro intitulado Progetto di crisi. Manfredo Tafuri e l’architettura
contemporanea, foi publicado por editore Marinotti de Milão.
Adalberto da Silva Retto Júnior
Arquiteto e urbanista, professor de História do Urbanismo e de
Projeto Urbano na Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação
– Unesp Campus de Bauru. Organizador, juntamente com Donatella
Calabi e Heleni Profyriou, do I Congresso de História Urbana e dos
Anais do mesmo intitulado Camillo Sitte e a circulação da idéias de
estética urbana. Europa e América Latina: 1880 – 1930. Bauru, Cultura
Acadêmica Editora / Fapesp, 2006.
Com Donatella Calabi e Heliana Angotti Salgueiro, é idealizador
da Coleção Território e Cidade, que possui um duplo objetivo: o
primeiro, resgatar obras de autores significativos e consagrados no
cenário nacional e internacional e textos raros à espera de uma re
(avaliação), como Prestes Maia, Victor da Silva Freire, Saturnino de
Brito, Alexandre Albuquerque, ou arquitetos-urbanistas renomados
na Europa como Gaston Bardet, Jean Claude Nicholas Forestier,
Raymond Unwin e álbuns de arquitetura ilustrados, como o de
Luiz Olivieri, todos com introduções esclarecedoras de seu lugar
na história. O segundo, publicar trabalhos resultantes de eventos
científicos ou de pesquisas originais, que podem ser considerados
marcos na evolução das disciplinas em que território e cidade
constituam áreas centrais de reflexão. É o caso do primeiro livro
lançado intitulado Pierre Monbeig e a Geografia Humana Brasileira.
A dinâmica da transformação.
Entrevista
Esta entrevista nasce das indagações e da curiosidade colocadas
pelo personagem tratado no livro Progetto di Crise. Manfredo Tafuri
e l’architettura contemporânea. A entrevista foi disponibilizada em

110
Entre_vista com Marco Biraghi

Vitruvius em outubro de 2006.


Tradução
Adalberto da Silva Retto Júnior e Christian Traficante
Revisão
Nilson Ghirardello, Marta Enokibara, Marília Caetano e Sheila
Kajiwara
Imagens
As imagens do livro Progetto di crisi foram copiadas com
autorização do autor, na tentativa de mostrar o percurso do próprio
livro.
Publicação
Disponibilizado na editoria Entrevista do Portal Vitruvius em
outubro de 2006.

Capa, com desenho L’architecture assassinée de Aldo


Rossi, do livro TAFURI, Manfredo. Progetto e utopia.
Roma/Bari, Laterza, 1972

111
112
Entre_vista com Yannis Tsiomis

1. Introdução

Yannis Tsiomis Foto divulgação

A entrevista do prof. Arquiteto e Urbanista Yannis Tsiomis faz parte


do material didático de apoio ao Curso de Extensão Universitária
A dimensão paisagística no projeto da cidade contemporânea,
oferecido pela Unesp de Bauru.
O programa do curso foi pensado como um itinerário de pesquisa
e reflexão sobre as transformações da cidade contemporânea e seu
projeto, nas três últimas décadas do século XXI. Nesse sentido, parte-
se da chave de leitura intitulada “A paisagem dentro da cidade”, que
aborda a reconfiguração de partes da cidade como paisagem, a partir
dos projetos de reestruturações de áreas ferroviárias, tramas urbanas,
centros históricos e partes de cidades, que começaram a delinear
um percurso gradual que coloca o projeto de espaços abertos como
conectores de estruturas urbanas e territoriais.
A investigação estrutura-se em um módulo teórico e viagens de
estudos, construídas como forma de ampliar o escopo analítico dos

113
Adalberto RETTO JR.

casos de estudos brasileiros individualizados por região.


Em cada cidade do exterior teremos a participação de especialistas
de universidades de renome, que nos seguirão durante o itinerário
da investigação. O primeiro percurso será nas cidades de Paris, Roma
e Veneza e o segundo nas cidades de Viena, Paris e Barcelona.

2. Questões de escala

“Le Corbusier: conférences de Rio”, capa do livro

Adalberto da Silva Retto Júnior: No livro Échelles et Temporalités


du Projet Urbain, Paris, J.M. Place, 2007, sob sua coordenação, o
termo “Projet urbain” é um instrumento capaz de articular as diversas
escalas e diversos tempos tanto nos aspectos espaciais, figurativos
e formais, como naqueles sociais. Isto é, a intervenção urbanística
mediante um “eixo morfológico” e um “eixo de processo”: o primeiro
referente à organização do espaço, e o segundo, à capacidade de
transformação ao longo do tempo. No que se refere à temporalidade,

114
Entre_vista com Yannis Tsiomis

a mesma deve ser equacionada não apenas no tempo necessário


para a realização do projeto, mas também naquele dos dispositivos
práticos, postos à disposição dos projetos, como acordos públicos-
privados, financiamentos e também a consulta aos atores envolvidos.
É possível falar, sobretudo no âmbito da tradição francesa, em uma
“cultura do projeto urbano”. Onde esses dois aspectos emergem com
eficiência?
Yannis Tsiomis: Há de fato uma “especificidade francesa”, que
consiste na passagem do urbanismo regulamentar (o urbanismo que
correspondia a uma época onde tudo era regulamentado por leis),
ao do projeto urbano. Se existe uma “cultura de projeto urbano”
na França é esta: considerar o projeto como um trâmite, como
um processo que se reinventa a cada vez . Esta visão do projeto
urbanístico foi mesmo teorizada por sociólogos urbanos e arquitetos
urbanistas (entre outros os sociólogos François Ascher, Alain
Bourdin, os arquitetos Christian Devillers, Antoine Grumbach etc.).
Dito isto, quando pensamos nos projetos urbanos de Barcelona ou da
Alemanha atualmente, nos damos conta que vários países europeus
têm essa “cultura do processo do projeto” ou “cultura do projeto como
processo”. Como pude desenvolver em meus livros (Anatomies des
projets urbains-Editions de la Villette,2007- Echelles et temporalités
des projets urbains –Ed. J.M.Place 2006-, Matières de villes- Editions
de la Villette,2008) - o projeto é uma negociação constante, um
desafio e um revelador das estratégias, por vezes contraditórias,
dos atores: políticos, técnicos, administrações, serviços técnicos dos
municípios, promotores privados e públicos, etc Cada ator tem sua
lógica, sua estratégia, sua própria temporalidade O projeto atende,
então, a um terreno de conflitos e negociações para chegar a um
compromisso, a uma estratégia comum.
ASRJ: Os novos termos da questão urbana e o tema da gestão da
cidade contemporânea constituiem-se um verdadeiro problema,
um problema comum e evidente. Vários autores apontaram que a

115
Adalberto RETTO JR.

instrumentalização em meio urbano demonstrou-se inadequada para


governar, estruturar e prever as formas para as periferias da cidade, ou
ainda, as formas suburbanas, onde as forças do mercado sem regras
ou programas pré-establecidos, determinam os assentamentos
morfológicos do território. Como pensar no campo da pesquisa e
do projeto essa nova dimensão, à luz das problemáticas ambientais
e preocupaçoes ecológicas, se os instrumentos conceituais são
previstos ou eficazes somente na escala reduzida?
YT: Território é como um mosaico. É constituída por uma
infinidade de entidades com sua própria história e estratificação, e
ao mesmo tempo essas entidades estão interligadas e dependentes
uma da outra. Até há pouco tempo podia-se distinguir a cidade
consolidada, a cidade histórica, os subúrbios como se não tivessem
história. O exemplo mais evidente é Paris. Até os anos de 1990, Paris
intra-muros (no interior do anel viário) era considerada “histórica” e,
portanto, vários bairros eram submetidos à regulamentações
próprias de salvaguarda, etc. Por outro lado, a periferia de Paris era
- e em grande medida ainda é, como um terreno de extensão sem
história, e por isso, em parte, sem regras. Um exemplo gritante é a
infra-estrutura - rodovias, ferrovias etc – que transtornaram a
estrutura urbana das periferias. Porém, basta estudar a cartografia
dos séculos 19 e 20 para perceber que os subúrbios têm de um lado
uma estrutura urbana muito antiga e do outro uma evolução
certamente caótica devido à industrialização e desindustrialização ,
mas da qual a estratigrafia ainda é legível. Até aqui procedemos no
sentido Paris-periferia, mas agora devemos avançar na direção
oposta: dos subúrbios à Paris.

116
Entre_vista com Yannis Tsiomis

“Anatomie de projets urbains”, capa do livro

Resultado, volto-me à segunda questão, é preciso mudar


efetivamente de lógica e de instrumentos e ferramentas para a
ação. A mudança de escala obriga a observar o território como um
todo, a tratá-lo como um conjunto constituído de multidões de
micro-territórios, mas que se encaixam uns nos outros. Além disso,
até recentemente, as questões ambientais e ecológicas estavam
ausentes das problemáticas tanto dos pesquisadores quanto dos
agentes públicos ou privados. A mudança de escala por um lado
e as questões ambientais por outro lado, conduzem a mudar os
métodos de análise - multiplicação de disciplinas a respeito, e
métodos de ação – multiplicação de agentes. A intermunicipalidade
– a cooperação dos municípios entre si - tornou-se um imperativo
difícil de se implementar. Mas sem isso, é impossível pensar na
metrópole. Por um lado, é necessário mudar os métodos, por parte
dos arquitetos e urbanistas e outras disciplinas, por outro lado é
necessária uma ação política e regras que combinam a centralização
do Estado e a descentralização. Esta combinação é obviamente difícil
pois o liberalismo de mercado e os interesses privados se tornam
117
Adalberto RETTO JR.

um obstáculo para uma visão racional de grande escala. De qualquer


forma, métodos de intervenção em pequena escala são absolutamente
ineficazes para a grande escala. As lógicas do projeto metropolitano
diferem daquelas do projeto urbano.
ASRJ: O senhor escreve que “(...) o arquiteto situa-se no cruzamento
de distintos saberes e savoir-faire; que a natureza dos projetos e
programas difere e que conceber um edifício e conceber o território,
cidade ou paisagem, não é a mesma coisa; que os agentes implicados
não são os mesmos; que as técnicas aplicadas são múltiplas; que as
escalas são extensíveis e que a cada escala corresponde a posturas
diferentes de concepção; que os métodos, as formas e a substância,
os critérios estéticos, tudo é diferente (...)”.
Diante dessa declaração, na qual o projeto passa por uma
abordagem de elaboração multi-escalar, como podería-se pensar
os métodos de ensino nos projetos pedagógicos das escolas de
arquitetura?
YT: Em parte eu já respondi a esta questão no módulo anterior.
Dito isto, para o ensino, o grande problema é como permitir ao aluno
que ele compreenda a complexidade trazida pela mudança de escalas
e, portanto, a mudança e a multiplicação de agentes, mas também a
mudança das representações. Como foi dito, o projeto não é uma
imagem de moda - que os alunos imitam olhando revistas! Por trás do
desenho há um significado, conceitos, estratégias. Eu penso que uma
maneira de proceder seria através de um trabalho de análise in-loco,
formas que estruturam a paisagem urbana de grande escala: infra-
estruturas, elementos dominantes da paisagem, topografia histórica,
permanências e fragilidades, disfunções, etc. Nem trabalhando em
cima do mapa – indispensável apesar de tudo – e ainda a utilização do
Google Earth não bastam para alcançar as realidades geográficas e
antropológicas. Apenas o trabalho de campo, ao longo dos territórios,
a nota que atrai cada estudante, a leitura da história e das abordagens
de outras disciplinas podem ajudar a absorver o território. Da mesma

118
Entre_vista com Yannis Tsiomis

forma, devemos encontrar as oportunidades para proporcionar o


encontro dos alunos com os agentes políticos, técnicos, habitantes,
etc. para que eles falem de suas estratégias. Através de tudo isso o
aluno escreverá por meio do desenho uma nova história, formulando
conceitos de intervenção. Um método interessante também é o de
escrever “cenários”. Ñão há nunca apenas uma solução, mas várias
soluções, em função das estratégias que se quer privilegiar.
Uma última coisa: o TEMPO. Todo projeto real se desenrola no
tempo. Leva tempo para conceber e realizar o projeto do território.
Como podemos ensinar o tempo do projeto ao estudante, futuro
arquiteto-urbanista? Além de falar teoricamente e por meio de
exemplos de projetos realizados? É uma pergunta muito difícil.

3. Arqueologia e espaço público

Projeto Agora Athenes divulgação

Adalberto da Silva Retto Júnior: No seu projeto para a sistematização


da área arqueológica de Atenas, assim como nas discussões em

119
Adalberto RETTO JR.

torno do Congresso organizado pelo senhor e intitulato Le site


archéologique et la ville. Transgresser les limites (Il sito archeologico
e la città. Paris, Palais de Chaillot, 27 a 28 de março de 2000), emerge
uma estreita relação entre arqueologia e urbanismo: “Qualquer
projeto de intervenção em um sítio arqueológico no centro de uma
cidade é um potencial projeto arqueológico, e qualquer campo
arqueológico é um projeto urbano, do momento em que, cedo ou
tarde, será colocada a questão de integração do sítio no âmbito da
cidade e do modo de como se trata os seus diversos limites, isto é, a
questão da relação do próprio sítio com a cidade.”
Nesta abordagem a definição do projeto é o de assumir as
características cognitivas da especificidade e das diferenças
históricas, geográficas e morfológicas do território como elementos
onde se deve apoiar a concepção dos espaços urbanos. Um trabalho
que não tem a pretensão de ser uma simples intervenção urbana com
justaposição de superfícies, materiais, quase sempre autônomos ou
indiferentes do contexto, mas ao contrário, que articulem espaços,
definindo a hierarquia, separações, conjunções, diferenças. Um
verdadeiro e próprio projeto de arquitetura do solo onde história,
morfologia e corpos existentes participam de modo ativo para definir
a identidade, as relações entre os espaços abertos da cidade e do
território.
Como essas questões levantadas pelo senhor foram desenvolvidas
no projeto Pour le réaménagement du site archéologique et le projet
urbain du quartier environnant l’Agora à Athènes”?
Yannis Tsiomis: pergunta que requer uma resposta muito longa ...
Apenas algumas dicas de resposta portanto.
1) O sítio arqueológico na cidade européia (principalmente na
Grécia e na Itália, mas também na França, na Espanha e em parte ainda
nos vastos territórios da Tunísia), o sítio arqueológico, portanto, não
é um buraco na cidade. É parte da cidade, e é necessário saber tratar

120
Entre_vista com Yannis Tsiomis

os limites entre sítio e cidade e tendo em conta a estrutura urbana.


2) O projeto arqueológico é um projeto urbano na medida em que
incentiva o trabalho sobre os limites e a refletir a estrutura urbana
que se formou na diacronia. A estratificação - o estudo da evolução
no tempo das formas urbanas - é um conceito chave.
3) Tendo dito isto, há uma especificidade do sítio – o respeito com
as escavações e sua valorização – que somente um trabalho conjunto
entre arquiteto e arqueólogo pode conseguir. Trata-se também
de uma negociação entre várias disciplinas. Em todos os casos, as
intervenções em sítios arqueológicos devem ser minimalistas e
reversíveis porque a pesquisa nunca cessa. O trabalho do arquiteto
deve ser modesto, quase invisível.
4) A cidade é feita de formas e usos. É necessário que o arquiteto
responsável pelo projeto arqueológico e urbano – o que era o caso
da Ágora de Atenas - leve em conta o patrimônio incalculável que
constitui os usos na cidade em torno do sítio arqueológico.
5) Neste sentido, o trabalho para o sítio arqueológico e para o
trecho da cidade que o rodeia é um trabalho sobre o espaço público.
6) Muitas outras respostas poderiam ser adicionadas a estas... o
que ficará para uma outra oportunidade!

Projeto Agora Athenes divulgação

121
Adalberto RETTO JR.

ASRJ: No vídeo Brasília, na série “Un architecte, une ville”, TV5


éducation. Réalisation C. Ouanounou. (2005), o senhor começa o seu
percurso na nossa capital a partir do Catetinho. Qual a importância
do Catetinho para entendimento do processo de construção de
Brasília?
YT: Para mim Catetinho tem principalmente um valor simbólico e
emblemático. É quase uma “cabana” na “terra de ninguém” que fora o
território de Brasília na época. Catetinho é o símbolo da contradição
do Brasil: uma capital construída e acessível por via aérea - o sinal
da modernidade - e uma cabana modesta de madeira para construir
o grande sonho da verdadeira cidade - capital do Estado da nação.
Há algo de tocante neste pequeno edifício. Ele é simples, bonito,
como uma casa de família que reúne a família brasileira em torno de
Juscelino Kubitschec. Mito ou realidade, a noite após a jornada de
trabalho exaustiva, vejo reunidos Costa, Niemeyer, os engenheiros,
os administradores, os trabalhadores comuns tocando violão para
ganhar força para o dia seguinte. Toda fundação ex nihilo de cidade-
capital do Estado nação é uma aventura extraordinária: Washington,
Atenas, Ancara, etc.
Mas Brasília, com o espaço, é a fundação da respeitabilidade
do Brasil. Eu amo a beleza do Rio de Janeiro e a arrogância de São
Paulo. Mas Brasília destrói para sempre, para o resto do mundo, esta
imagem-clichê folclórica do Brasil – Copacabana, mulheres nuas,
samba, as favelas coloridas – que eu amo também, aliás! Brasília faz o
Brasil ter acesso à categoria das potências mundiais - para melhor ou
para pior aliás. Mas inicialmente é o símbolo de orgulho conquistado
pelo povo. É bom evidentemente este aspecto, mas não se deve
esquecer o outro: como no resto do mundo, isso não apaga a injustiça
e a desigualdade bruta. Brasília tira o Brasil desta imagem de país
latifundiário, mesmo se ainda hoje há algum caminho a percorrer,
isso é visível! Mas eu me refiro à época e impacto que essa obra teve
em todos os países do mundo. Na minha Grécia distante eu aprendi

122
Entre_vista com Yannis Tsiomis

a respeitar o Brasil a partir de Brasília.


Para mim, o Catetinho permite enxergar e imaginar ao mesmo
tempo o problema, o investimento humano, a alegria de viver uma
aventura única menos individual que coletiva: aventura estratégica,
política, intelectual, artística ... Não se trata somente de arquitetura
e planejamento urbano, mas de um conjunto de coisas que fazem
enxergar um país de outra forma. O Catetinho é o sinal dessa
mudança de olhar.

4. A pesquisa e o projeto urbano

Géode D’Athenes divulgação

Adalberto da Silva Retto Júnior: Se as hipóteses projetuais


tornam-se uma tentativa de desconstruir a sedimentação dos signos
presentes no território e na cidade a fim de inserir no tecido outros
signos, outras características do homem de hoje que são, por vezes,
receptivas e abertas a possibilidades futuras, como pode-se pensar a
relaçao entre analise e projeto, frequentemente consideradas como
etapas independentes e temporalmente divididas?
Yannis Tsiomis: Para os urbanistas-arquitetos não existe a
análise de um lado e a concepção projetual do outro . É isso que

123
Adalberto RETTO JR.

eu tento transmitir aos meus alunos. Toda análise é também um ato


de projeto, uma vez que é impossível analisar o espaço de maneira
exaustiva. Foi o erro do Movimento Moderno e dos CIAM, da Carta
de Atenas sobretudo, acreditar nisso. A cidade, o território nos
escapam. Existem, portanto, milhares de critérios de análise. Mas ao
selecionar alguns desses critérios já se faz um ato de projeto, já se
prefigura algumas soluções de concepção. Estas soluções poderiam
ser diferentes se tivessem sido escolhidos outros critérios de análise.
É por isso que eu falei de cenários anteriormente. Eu não acho que
a distinção “sinais presentes” e “sinais futuros” é relevante. Não deve
estar à procura, à qualquer custo, de “sinais futuros”, mas à procura
de uma nova racionalidade. Segundo o sociólogo Alain Touraine, eu
diria que a modernidade é isso: a busca de uma nova racionalidade.
ASRJ: Alguns encontros de grandes mestres constituem-se
verdadeiros episódios historiográficos a partir do qual pode-se
compreender os conflitos das idéias, conceitos de cidade e um
verdadeiro debate disciplinar da época. O encontro de Le Corbusier
e Agache, no Rio de Janeiro, é um exemplo disto. Como o senhor
lê esse encontro do ponto de vista do projeto da cidade do Rio de
Janeiro, já que em dois livros de sua autoria Le Corbusier, Rio de
Janeiro 1929, 1936, Rio de Janeiro, IAURJ, 1999, (em português) e Le
Corbusier. Conférences de Rio tratam de um dos protagonistas ?
YT: Vasta questão! Com poucas palavras, eu diria, o que eu explico
nestes dois livros, que Agache e Le Corbusier têm duas estratégias
diferentes. Agache, cujo talento não é contestável, trabalha no
sentido da cidade capital. Organiza a capital com os seus famosos
monumentos, a criação das cidades-jardim, etc. Ao mesmo tempo,
ele leva em conta, absolutamente, a geografia, a hidrografia, etc., de
uma certa maneira ele é um ecologista prefigurado (como todos os
que apoiavam a “cidade jardim” da época). Agache quer fundir-se
com a paisagem sublime do Rio e ela se desfaz diante dele. Não se
deve esquecer também que Agache é um “municipalista socialista”.

124
Entre_vista com Yannis Tsiomis

Para Le Corbusier, a abordagem é diferente: ele trabalha em


confrontação com a paisagem, em uma ligação de força de atração
e de oposição. O edifício-ponte exprime isso. Mas expressa também
uma outra coisa: Le Corbusier pensa o Rio como uma metrópole em
vez de uma cidade capital (ele sabe que o Rio mais cedo ou mais tarde
vai ser rebaixado, o que aconteceu vinte e cinco anos mais tarde).
O fato que Le Corbusier coloca sobre o aeroporto, onde Agache
construía o Capitólio é sintomático. Isto mostra que o projeto de Le
Corbusier é um manifesto, diferente do de Agache, que aplica uma
abordagem realista. É uma grande diferença.

Projeto Agora Athenes divulgação

ASRJ: Nos últimos anos o doutorado e a pesquisa arquitetônica,


urbana e paisagística tornaram-se parte central de vários debates
nas grandes escolas européias e americanas: de um lado, situar o
ensino da arquitetura no caminho da harmonização dos cursos de
formação e da mobilidade dos estudantes e professores, de outro
lado, reforçar a identidade da formação dos arquitetos no ensino
superior e na pesquisa. Neste sentido, o seu livro Matières de la Ville,
traz uma enorme contribuição.
Diante de vossa experiência como professor em várias
universidades do mundo, inclusive no Brasil, quais as estratégias dos
125
Adalberto RETTO JR.

cursos de doutorado para responder efetivamente às problemáticas


dessa nova dimensão temporal e especial da cidade contemporânea?
YT: Eu dirigi o primeiro curso doutorado em Arquitetura na França
durante 16 anos. Nós fundamos com outros colegas, como Jean-
Louis Cohen, Bernard Huet, Philippe Panerai e todos aqueles - não
tão numerosos - que fundaram a pesquisa arquitetônica na França.
Nós dirigimos um número impressionante de memórias de mestrado
e alguns dentre nós, teses. E através dos temas e métodos utilizados
pelos estudantes de doutorado nos demos conta de que, entre 1990 e
hoje muitas coisas mudaram. Os problemas se estenderam, os temas
multiplicaram-se, etc.
Por quê? Porque a pesquisa arquitetônica e urbana não é
impermeável aos fenômenos sociais, culturais e às evoluções
das técnicas. É um lugar comum, mas que é sempre bom repetir:
arquitetura e urbanismo não são uma arte, mas uma ação - como
observado por Françoise Chaoy - mas uma ação híbrida, entre o
conhecimento e know-how. Apenas se abrindo para aprender a
trabalhar com outras disciplinas, acaba se fornecendo à pesquisa
arquitetônica e urbanística outros métodos para a ação. Por sua vez
essa ação alimenta as outras disciplinas.
Eu não acho que existam as mesmas leis que possam se aplicar em
toda parte na pesquisa arquitetônica e urbana. Apesar da globalização
e da mobilidade das idéias - mas era o caso na Europa por um longo
tempo - cada país, cada escola e faculdade têm suas abordagens,
suas histórias e seus contextos. Minha experiência viajando um
pouco pelo mundo tem me ensinado que não se compara imagens e
projetos metropolitanos ou urbanos, de pequena ou grande escalas,
mas o processo. Somente as maneiras de fazer são interessantes
para comparar, senão se continuará a trabalhar com modelos
da moda. O que é importante para a pesquisa – já que falamos de
doutorado – é como cada um constrói seu objeto de pesquisa e como
se operam as transferências culturais. O que o cinema tem muito

126
Entre_vista com Yannis Tsiomis

bem compreendido e conseguido, a arquitetura tem mais dificuldade


em realizar, pois ainda hoje opera com modelos, ela imita obras de
“grandes arquitetos” sem raciocinar...
A grande escala brasileira não é a grande escala francesa e assim
por diante. Os novos objetos de pesquisa devem se construir tendo
conhecimento do que os outros estão fazendo - que é fácil, dado a
grande circulação das revistas, internet, conferências internacionais
etc, mas também os intercâmbios de estudantes - e de sua própria
cultura . Conclusão: Nem “nacionalismo” e autosuficiência – o
isolamento é temível - nem “internacionalismo” e mimetismo.

5. Créditos
Yannis Tsiomis
Arquiteto, Urbanista e Doutor em Letras greco-francês. Diretor
de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales e na
Universidade de Paris VIII e professor na Escola de Arquitetura de
Paris La Villette. Foi nomeado “Chevalier des Palmes académiques”
(Cavaleiro das Palmas Acadêmicas), Ordem de Cavalaria para
acadêmicos e figuras culturais e educacionais, pelo Ministério da
Educação Nacional da França
Adalberto da Silva Retto Júnior
Professor de Desenho Urbano e História do Urbanismo na
Universidade Estadual Paulista - Unesp, Professor Visitante da
Universite Sorbonne Paris I (Visiting Scholar) do Master Erasmus
Mundus Techiniques, Patrimoine, Terrotoires de l’industrie. Possui
pós-doutorado no Doutorado de Excelencia do Istituto Universitario
de Arquitetura de Veneza - Italia. Doutor pela Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo da Universidade de Sao Paulo e Instituto Universitario
de Arquitetura de Veneza. Atua na linha de pesquisa “Conhecimento
Histórico Ambiental Integrado na Planificação Territorial e Urbana”
alimentado por duas sub-linhas: História da Cidade e do Territorio e

127
Adalberto RETTO JR.

Planejamento e Projeto da Cidade, do Território e da Paisagem.


Entrevista
A presente entrevista foi feita por email em abril de 2012, para
compor o Curso de extensão da Unesp Bauru com viagem de estudo
nas cidades de Paris, Roma e Veneza, e tem como finalidade debater
as transformações da cidade contemporânea nas ultimas décadas do
século XXI.

128
Entre_vista com Yannis Tsiomis

129
130
Entre_vista com Otília Beatriz

1. Introdução

Otília Arantes Foto Claus Lehmann

A entrevista com a professora filósofa Otília Beatriz Fiori Arantes


(FFLCH USP), baseada no seu recente livro sobre Berlim e Barcelona,
fornece chaves de leituras e instrumentos para se discutir o papel do
urbanismo e dos novos atores, a crise da forma urbana e as grandes
transformações nas cidades a partir dos grandes eventos.
Os temas abordados elucidam as modalidades de transformações
em curso, a natureza dos processos e as novas formas do espaço
físico.
Apesar desta entrevista com exclusividade para o Portal Vitruvius
se deter ao seu livro mais recente que trata de Berlim e Barcelona1,
sua produção tem gravitado em torno de temas que dão suporte
reflexivo para pensarmos o projeto da cidade contemporânea.

1 ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Berlim e Barcelona. Duas imagens estratégicas.


São Paulo, Annablume, 2012. Ver no guia de livros do portal Vitruvius: www.vitruvius.com.
br/pesquisa/bookshelf/book/1365.

131
Adalberto RETTO JR.

A estrutura da conversa foi elaborada visando se tornar subsídio


didático para o curso internacional de extensão universitária
denominado “A dimensão paisagística no projeto da cidade
contemporânea: um itinerário de estudo nas cidades de Berlim,
Barcelona e Atenas”.

2. Cidades “ocasionais”

Hotel Arts (com escultura em forma de peixe de Frank


Gehry) e Torre MAPFRE entre a Cidade Olímpica e o
Porto Olímpico, 1992 Foto Francisco Marques

Adalberto da Silva Retto Jr: Em seu último livro, sobre Berlim


e Barcelona, ambas as cidades emergem como duas “imagens
estratégicas” para a compreensão das transformações urbanas
ocorridas nas últimas décadas do século 20. Nas capitais em
consideração, como em outras, experimentou-se nos anos de
1980 novas modalidades de intervenção pública, com variadas
formas de colaboração entre administradores e entes privados. Um
confronto, entre as mesmas, evidencia peculiaridades no “governo
das transformações”: a lógica do processo e os tipos de atores da
transformação. A Sra. pode precisar alguns destes pontos comuns
ou diferenças, nos casos específicos analisados no livro? Acrescento
a pergunta: são “as ocasiões” (grandes eventos, apud Indovina, citado
em vários momentos pela Sra.), que determinam as mudanças das e
132
Entre_vista com Otília Beatriz

nas cidades? Ou as oportunidades de partes da cidade, que definem


como e onde deve ser mudado? Como isto se deu nestas duas
cidades?
Otilia Arantes: Na verdade, o que há de certo é que ambas as
cidades saíram de décadas de opressão, quando as transformações
que analisei ocorreram, e o objetivo destas, tanto numa como
na outra, foi, em grande parte, restaurar a autoestima de seus
habitantes, que lhes seria devolvida pela superfície refletora dos
Grandes Projetos, mesmo que às custas de um redesenho sócio-
econômico de efeitos bastante contraditórios. São tais contradições
que tento trazer à tona no livro que você menciona, e que se devem
sobretudo a uma lógica semelhante de empresariamento das cidades
ou de adoção de uma estratégia que visava a transformação de ambas
em cidades globais, em atrair grandes investimentos da iniciativa
privada, em especial no sentido de transformar sua imagem numa
“marca” competitiva em plano internacional, inclusive fazendo da
cultura – grandes eventos ou equipamentos culturais, mas também
a própria arquitetura a ser exibida – um fator essencial para ativar
suas respectivas “máquinas de crescimento”, nas quais o turismo
seria igualmente um dos motores importantes. Para tanto Barcelona
adotava, já no período pré-olímpico, o Planejamento Estratégico (em
1989 – casualmente no mesmo ano da Queda do Muro); em Berlim,
de seu lado, mesmo que não houvesse um tal Plano (ao menos no
sentido estrito em que vinha sendo empregado pelos urbanistas), no
entanto a fórmula adotada era muito semelhante: não faltava nenhum
dos ingredientes do Planejamento Estratégico, ou daquele modo de
“fazer cidade”. É claro que na escala gigantesca de uma capital com
ambições bem mais do que européias: “megaprojetos emblemáticos;
urbanismo acintosamente corporativo, nenhuma marca global
ausente; gentrificações se alastrando por todo o canto; exibicionismo
arquitetônico em grande estilo; parques museográficos; salas de
espetáculos agrupadas em complexos multiservice de aparato
– e muita, muita ‘animação cultural’ disponível para 24 horas de

133
Adalberto RETTO JR.

consumo” (como já havia escrito num ensaio anterior). Evidentemente


as Grandes Obras são distintas no caso de uma Olimpíada ou de
uma cidade reunificada após anos murada e semeada por vazios
deixados pela Guerra, enquanto na primeira, as áreas degradadas
se deviam em grande parte ao processo de desindustrialização e,
consequentemente, desativação parcial da área portuária, lembrando
que Barcelona é uma cidade marítima e a urbanização da orla não
é evidentemente da mesma natureza de um Mitte deteriorado pela
cisão que o inviabilizava. Em contrapartida, ambas convergiam na
necessidade de preservar os assim chamados valores culturais e o
patrimônio arquitetônico, e ao mesmo tempo, fazê-los conviver com
o novo. Ou seja, com uma arquitetura que rompesse com padrões e
gabaritos pré-fixados – no caso de Barcelona, ao menos no início,
com menos “ousadia” e em grande parte com projetos de arquitetos
catalães, já Berlim estreou com mais de 300 escritórios em ação,
especialmente de estrangeiros, e com uma arquitetura “de ponta”
– o primeiro e mais chamativo exemplo foi justamente Potsdamer
Platz, que analiso. Ambas as cidades, no entanto, proclamando
uma mistura arquitetônica e social que, no entanto, cedeu lugar
aos interesses rentistas e onde a especulação imobiliária, desde o
início, foi determinante em relação ao redesenho sócio-espacial,
gerando igualmente, nas duas, processos de nítida gentrificação.
Portanto, diferenças à parte, especialmente o fato único de uma
cidade candidata à capital, depois de anos de isolamento, tanto em
Barcelona, quanto em Berlim, as grandes empresas e os grandes
negócios parece-me terem dominado a cena, sendo utilizadas
também, de forma muito explícita, nas duas cidades, iscas culturais,
do patrimônio preservado ou restaurado, como acabei de mencionar,
aos novos equipamentos culturais.
Passo então ao seu segundo ponto: se as mudanças são
consequência das ocasiões – ou seja, produzidas pelos grandes
eventos – ou ao contrário, é o potencial de partes destas cidades que
determinam as mudanças. Creio que ocorrem as duas coisas e, em

134
Entre_vista com Otília Beatriz

muitos casos, são até interdependentes, ou seja: buscam-se pretextos


(ocasiões), para se “desenvolver”, nas cidades-sedes, mudanças (nas
suas configurações urbanas ou sociais) em pontos estratégicos – em
geral áreas ou degradadas fisicamente ou extremamente pobres
(características no mais das vezes coincidentes), e, portanto, propícias
às famigeradas “requalificações”.

Potsdamer Platz, projeto urbano de Renzo Piano em


construção, Berlim, anos 1990 Foto Maria de Betânia
Uchoa Cavalcanti

135
Adalberto RETTO JR.

3. Arquitetos e consultorias internacionais

Edifício infraestrutural, Rio de Janeiro, 1929. Arquiteto


Le Corbusier Fundação Le Corbusier
[SEGRE, Roberto. “Ministério da Educação e Saúde”,
Romano Guerra, 2013]

Adalberto da Silva Retto Jr: No início do século 20 temos uma


intensa circulação de ideias, modelos e profissionais, do mesmo
modo, a partir dos anos 1980, afirma-se outro fluxo de arquitetos
e urbanistas que trabalharam como consultores, tomando como
referência cidades como Barcelona, entre outras. Do ponto de vista
profissional, do Urbanismo Moderno ao Planejamento Estratégico, o
que foi alterado?
Otilia Arantes: Acho que não podemos generalizar o que ocorreu
especificamente com Le Corbusier, a partir dos anos 1920, chamado
por vários governos para realizar projetos arquitetônicos ou
urbanísticos, ou mesmo assessorar arquitetos locais, como foi o caso,
no Brasil, na década de 1930. Arquiteto de projeção internacional,
com muitos textos-manifestos publicados e figura de proa dos
CIAMs, teve, realmente, um papel muito importante na difusão da
arquitetura moderna, tendo sido um dos autores da plataforma da
cidade funcional (ou das suas versões, sendo a mais difundida a de
1933). Além disto, a política de tabula rasa que propunha e de modelos

136
Entre_vista com Otília Beatriz

urbanos padronizados (como no Plan Voisin) só podiam ser cogitados


por governos fortes, em geral do terceiro mundo, por assim dizer
predispostas a correr os riscos de tais intervenções drásticas, ou, em
pleno auge de expansão capitalista, como os Estados Unidos. Poucos
deles aliás executados, mas que deixaram discípulos pelo caminho
– a nossa AM certamente não teria sido o que foi se não fossem
as passagens do arquiteto franco-suíço por aqui. De outro lado, é
preciso pensar nas lições dos mestres da Bauhaus. Muitos deles, e
a própria escola, com a ascensão do nazismo, acabaram migrando
para os Estados Unidos. Ali construíram e deixaram um padrão de
arquitetura que logo se tornaria o chamado Estilo Internacional,
mais adiante exportado por seus anfitriões como se fosse expressão
americana genuína, sendo o exemplo máximo Mies Van der Rohe,
não por acaso com o famoso Seagram’s. Foi quando a arquitetura
de aço e vidro passou a dominar os grandes centros empresarias
mundo afora. No que tange o urbanismo, intervenções a la Robert
Moses, também fizeram escola –, mas aí, a responsabilidade não será
mais tão diretamente dos mestres ou das lições dos CIAMs. Dos anos
1920 aos 1950 tivemos um período indiscutivelmente dominado,
no plano das ideias arquitetônicas e urbanísticas, pelos Modernos.
Creio ser desnecessário recapitular a pauta de uma arquitetura
que se pretendia maximamente racional e cujo ideal construtivo
estava totalmente sintonizado com o seu tempo – o de uma utopia
técnica do trabalho, e que, uma vez destroçada, foi dando lugar a um
formalismo extremado que logo se exauriu, sendo substituído por
outras expectativas mais adequadas às novas formas de produção
capitalista do espaço, na origem de novas concepções de arquitetura
e de urbanismo.
Deixando de lado o período de transição, especialmente nos anos
1960/1970, pulo para o Planejamento Estratégico, resultado de uma
concepção de cidade-empresa, ou ainda, de cidade como “máquina
de crescimento”. Em primeiro lugar, nada a ver com a circulação dos
Modernos e de suas ideias – a convite ou forçados –, com os escritórios

137
Adalberto RETTO JR.

de consultoria criados a partir do momento em que as cidades


começaram a ser concebidas como empresas a serem otimizadas.
Utilizando minha comparação no texto de abertura do livro citado no
início por você sobre Berlim e Barcelona – “Gentrificação estratégica”
–, se nos reportarmos à cidade-máquina moderna, a mudança de
postura dos gestores urbanos e dos próprios urbanistas não deixa de
ser espantosa: quando um moderno propunha uma cidade segundo
o modelo de linha de montagem fordista, tinha em mente antes de
tudo a presumida racionalidade construtiva de tal processo e ficaria
sinceramente chocado se lhes fosse exposta a dura verdade de sua
funcionalidade sistêmica por assim dizer de nascença. Hoje, o que
poderia ter sido motivo de escândalo – a revelação da mercadorização
integral de um valor de uso civilizatório como a cidade – tornou-
se razão legitimadora ostensivamente invocada. Atualmente o
urbanismo não vem mais para corrigir, mas para incrementar a
proliferação urbana, para otimizar a competitividade das cidades,
todo o vocabulário aliás é nitidamente empresarial. E se trata não
apenas de gestão urbana like business, mas for business. Na origem
desta virada, “as cidades-empresas” americanas dos anos 1970 (na
denominação de Peter Hall, em Cidades do amanhã, de 1988), ou
seja, os processos urbanísticos adotados de início por James Rouse
em Baltimore, de cuja cidade era prefeito, e logo em outras muitas
cidades americanas – não esqueçamos que é também o exemplo
adotado por Harvey para diagnosticar esta inflexão em Condição
pós-moderna, só que pondo a ênfase na espetacularização urbana,
essencial aliás, neste processo de valorização das cidades. Lembro
também que a prefeitura de Barcelona – que nos concerne mais de
perto – mantinha intercâmbio com Rouse desde ao menos 1982 e o
chamou como assessor na fase pré-olímpica, em 1989, especialmente
para a transformação de seu maior projeto e vitrine à época – o Moll
de la Fusta (o porto antigo) –, chegando a contratar a sua empresa
para levá-la a efeito.
Em síntese, nas palavras de Hall, o que vemos acontecer é uma

138
Entre_vista com Otília Beatriz

nova elite financeira tomando efetivamente posse das cidades,


liderando uma coalizão pró-crescimento que habilmente manipula o
apoio público e combina fundos públicos e privados com a finalidade
de promover uma urbanização comercial em grande escala. Ou ainda,
como definiram John Logan e Harvey Molotch (já em 1976 e exposto
por extenso em 1987) a cidade, enquanto growth machine, resulta da
coalizão da elite, centrada na propriedade imobiliária e seus derivados,
mais uma legião de profissionais caudatários de um amplo arco de
negócios decorrentes das possibilidades econômicas dos lugares,
com o intuito de expandir a economia local e aumentar a riqueza.
O apoio da população, no afã de se projetar e consequentemente
competir pelos investimentos em plano internacional, é um elemento
importantíssimo e bastante reivindicado pelos catalães ao dar forma
ao “planejamento estratégico” de exportação (apresentado no Habitat
de 1996). A fabricação de consensos em torno do crescimento a
qualquer preço – a essência mesmo de toda “localização” – torna-se a
peça chave de uma situação de mobilização competitiva permanente
para a batalha de soma zero com as cidades concorrentes. Uma
fábrica por excelência de ideologias, portanto: do território, da
comunidade, do civismo, etc. No coração dessas coalizões, a classe
rentista de sempre, hoje novamente na vanguarda dos “movimentos
urbanos”: incorporadores, corretores, banqueiros etc., escorados por
um séquito de coadjuvantes igualmente interessados e poderosos,
como a mídia, os políticos, os promotores culturais, as empresas
esportivas, etc. sem deixar de mencionar, claro, os próprios arquitetos
e planejadores urbanos (que “de guarda caça se transformavam em
caçadores furtivos” – Peter Hall – ou nem tão furtivos..., podemos
dizer, passados mais de 20 anos).

139
Adalberto RETTO JR.

Operação Urbana Eixo Tamanduatehy, Santo André,


2007 Divulgação [Prefeitura de Santo André]

4. Entre tradição e modernidade

Edifício em Kreutzberg para o IBA 1987 ao lado de


prédios restaurados. Arquiteto Álvaro Siza Foto Otília
Arantes

Adalberto da Silva Retto Jr: O interesse particular nas intervenções


urbanas realizadas em Berlim, nas últimas duas décadas do século
XX, além dos resultados particulares obtidos, fundou-se, parece-me,
na investigação teórico-disciplinar, que coloca dentro da discussão o
problema da forma como uma questão de arquitetura, e da memória
140
Entre_vista com Otília Beatriz

histórica, como instrumento para sua definição. A questão central


do debate arquitetônico torna-se, assim, o tema da memória como
ferramenta de projeto: entre nostalgia do passado e homenagem ao
moderno, entre continuidade e renovação e da pesquisa das raízes
históricas à ambiciosa busca por uma “Nova Berlim”. Nesse cenário,
quais são as diferenças das transformações, findadas em Barcelona e
Berlim, quanto a este quesito particular?
Otilia Arantes: Comecemos pelo exemplo de Berlim, visto que é
nele que você se detém. Em primeiro lugar, temos que recuar um
pouco no tempo. Se no pós-guerra a reconstrução de Berlim se deu
a toque de caixa e sob a ação dos bulldozers, que mais destruíram
do que na própria guerra, e por empreiteiros estimulados pelos
incentivos estatais, sem nenhuma preocupação arquitetônica muito
menos de preservação ou restauração, embora tenham restado
alguns nichos de construções mais antigas (como Kreuzberg, no
lado ocidental, e vários outros no lado oriental), várias iniciativas
posteriores procuraram corrigir esta imagem de uma Berlim tão
feia quanto cinzenta, trazendo uma arquitetura mais up to date e
digna deste nome, como a criação do bairro Hansa na Interbau de
1957, do qual participaram arquitetos do mundo inteiro (entre eles,
o nosso Oscar Niemeyer), ou a construção de algo como um centro
de high culture, que passaria a ser um símbolo da Berlim ocidental: a
Galeria Nacional, projetada por Mies Van der Rohe, compondo com
o conjunto, formado pela Sala da Filarmônica e a Biblioteca – obra de
outro alemão, Hans Sharoun –, algo assim como um Mix-Event-Mall
(todas, iniciativas dos anos 60). Novamente um surto de renovação
vai ocorrer com a Interbau (IBA) de 1987, que trouxe, desde o final
dos anos 1970, inúmeros arquitetos de projeção internacional (já em
plena voga pós-moderna: Vittorio Gregotti, Aldo Rossi, Hans Hollein,
Léon Krier, Peter Eisenman, Carlo Aymonino, Paolo Portoghese,
Rem Koolhaas e vários outros) para projetar edifícios, especialmente
residenciais, em vazios mais ou menos centrais da cidade. Mas, ao
mesmo tempo, seguindo as novas palavras de ordem preservacionistas

141
Adalberto RETTO JR.

e contextualistas, e cedendo a pressões sociais e políticas, visto que


a cidade se dualizava de uma maneira muito evidente (e aqui estou
me referindo obviamente à Berlim ocidental, objeto das iniciativas
do IBA), fez parte deste grande projeto de aggiornamento berlinense
a restauração de uma bairro caído no esquecimento, totalmente
deteriorado, squaterizado por parte de imigrantes, artistas e
estudantes, Kreuzberg. Esta grande recuperação step by step, com
interiorização dos quarteirões, disponibilizando serviços para os que
aí habitariam, eventualmente reconstruindo partes demolidas, seja
com a participação dos moradores, muitos deles artistas, seja de
arquitetos convidados, mas que se submetiam ao entorno e discutiam
com usuários, que formaram um conselho local, transformou-se
num modelo para muitas outras cidades, mas especialmente para a
recuperação do resto de Berlim após a queda do muro. Talvez menos
democrática, semelhante apenas na forma, é o que se pode ver hoje:
uma postura bastante preservacionista, como no velho Mitte, por
exemplo Hakesche Höfe, ou no bairro de Prenzlauerberg, e noutros
mais (os efeitos gentrificadores são inegáveis, apesar da propalada
mistura social daí decorrente, mas não vou discuti-los aqui). Ao
mesmo tempo, após a unificação, com vistas a voltar a ser a capital
da Alemanha, muitíssimas novas construções foram realizadas, como
já mencionei, mais de 300 grandes escritórios de arquitetura aí se
instalaram, só que agora, à diferença do IBA, para realizar grandes
projetos, como Potsdamer Platz (Renzo Piano, Richard Rogers,
Helmut Jahn, Hans Kollhoff, Rafael Moneo etc.), Grandes Magazines,
como a Galeria Lafayette (Jean Nouvel), restauração de prédios
monumentais (por vezes com intervenção também de arquitetos do
star system, como Norman Foster no Bundestag), museus antigos e
novos, e assim por diante. Enfim, toda uma arquitetura vistosa que
desse a Berlim a imagem e correspondente status de capital e, quem
sabe, de mais uma World City, possivelmente de uma capital cultural
da Europa.

142
Entre_vista com Otília Beatriz

Hackescher Markt, no velho Mitte de Berlim,


restaurado por Götz Bellmann e Walter Böhm, 1996-98
Foto divulgação
[Anuário Bauwer Berlin / Prefeitura de Berlim]

A história de Barcelona é de outra ordem, embora uma grande


empreitada de recuperação urbana tenha se iniciado quase
contemporaneamente, após o fim da ditadura, coincidindo também
com um processo muito rápido de desindustrialização, com enormes
áreas degradadas ou esvaziadas. Era necessário transformar a velha
Manchester européia num grande centro de “serviços”, com especial
enfoque no turismo. Iniciou-se com intervenções pretensamente
“modestas” e dentro do espírito que comandou a restauração
de Kreuzberg, mas, “alavancada” pelas Olimpíadas de 1992, logo
áreas inteiras foram reconstruídas, de forma já não tão modesta...:
reurbanização da orla, com uma progressiva privatização da mesma,
grandes hotéis, a Vila Olímpica (embora projetada por catalães, de
arquitetura diferenciada), museus (com destaque para o MACBA de
Richard Meyer em pleno bairro antigo do Raval), teatros, e assim por
diante. Se a área urbana desenhada por Idelfonso Cerdá e as amostras
de arquitetura “modernista” (Gaudí acima de tudo) ficaram quase
intactas, o mesmo não ocorreu com os bairros antigos e com as áreas
mais populares, de velhas fábricas e residências de operários, como
Poble Nou (onde foi construída a Vila Olímpica e, mais recentemente

143
Adalberto RETTO JR.

o distrito 22@, um cluster que se pretende de alta tecnologia, na


verdade povoado de torres no estilo mais up to date dos grandes
centros empresariais). Embora abrigasse o maior conjunto urbano
medieval até então preservado e muitas destas edificações fossem
mantidas e restauradas neste período de reconstrução pós-Franco,
muitas foram destruídas para dar lugar a Ramblas, praças, Centros
Culturais, Universidade etc. Tais intervenções representaram por
vezes interferências de grande porte, com a alegação de “humanizar”
áreas extremamente adensadas. Onde não havia lugar para o convívio,
criaram-se “respiradores” à custa de eliminação de moradias, muitas
vezes de quarteirões inteiros e isto num crescendo, como ocorrerá
alguns anos mais tarde com a abertura da Rambla no coração do Raval,
com seus 18.300 m2, resultante da demolição de 62 edifícios, sem
contar os outros 50, contíguos à Rambla, demolidos para dar origem
a um plateau que deve reunir um hotel 4 estrelas, projeto de Per
Puig (já concluído), associado a um conjunto múltiplo, de habitação,
comércio, garagens subterrâneas e, como não poderia deixar de ser,
uma instalação cultural, a Filmoteca Nacional – região que até hoje
está provocando deslocamentos ou troca de populações e atividades,
num redesenho físico e social da região. É verdade que o festival de
arquitetura do star system, seguindo o modelo das Cyties mundo
afora, se deu especialmente a partir do final do século passado, mas
sem a monumentalidade dos prédios que compõem a capital alemã.
Se há diferenças na busca das raízes históricas, entre Barcelona e
Berlim, ou mesmo na pretensão desta última de ser um grande
centro mundial carregado de tradições (por vezes sombrias, diga-
se de passagem), não esqueçamos que, guardadas as proporções, a
Catalunha também procura afirmar sua identidade diante do mundo
e a salvo do domínio espanhol!

144
Entre_vista com Otília Beatriz

Distrito 22@, Barcelona. O bairro fabril de Poble Nou


vai se transformando em bairro empresarial Foto Mirela
Fiori

5. Arquitetura da cidade

Edifício residencial em Kochstrasse/Friedrichstrasse


para o IBA 1987, Berlim. Arquiteto Aldo Rossi Foto Otília
Arantes

Adalberto da Silva Retto Jr: Aldo Rossi, com o livro Arquitetura da


cidade (1966, ed. Alemã, 1973), coloca as bases de uma teoria urbana
que entende a cidade como arquitetura, uma estrutura espacial
no seu conjunto, no qual a divisão do solo, com os seus “lugares”

145
Adalberto RETTO JR.

ou “fatos primários” em sua origem e determinando sua evolução


e configuração, representa a imagem da longa história da forma
urbana. As posições de Rossi, as planimetrias de Colin Rowe e Fred
Koetter (além das análises de Jane Jacobs, Kevin Lynch e Robert
Venturi), foram discutidas em Barcelona, assim como em Berlim. Em
Berlim, por razões históricas e políticas, essa discussão chegou com
quase vinte anos de atraso e somente no final dos anos de 1970, que
os arquitetos tornaram-se sensíveis ao contexto histórico da cidade,
à sua história e à sua conservação. Como analisar esse descompasso
interno na Europa?
Otilia Arantes: É verdade que em quase toda a Europa as teorias
do Rossi, aliás, de todo o grupo ligado a Giuseppe Samoná e à Escola
de Veneza, tiveram muita repercussão, e que Bolonha dos anos 1960
foi a Meca dos arquitetos e urbanistas em busca de alternativas
para a tabula rasa dos modernos. Assim, a revalorização da
arquitetura tradicional, preservação dos monumentos, etc. (os vários
contextualismos: dos italianos citados, de Bernard Huet na França,
de Oriol Bohigas e seu grupo na Espanha – que aliás chegam a se
constituir num grupo denominado Tendenza), a concepção de cidade
como uma superposição arqueológica de fases históricas (Rowe &
Koetter), o urbanismo na escala humana (Jacobs) ou a valorização da
arquitetura “comum” (Venturi), é o que dá o tom ao debate daquele
período: anos 1960-1980. Aos poucos o pós-modernismo vai trazendo
a arquitetura para um primeiro plano, marcando a revanche dos
arquitetos sobre os urbanistas e, banindo do seu receituário o lema
da “modéstia” (Huet), dará espaço a obras singulares, devidamente
assinadas, e cada vez mais extravagantes sobrepondo-se assim a uma
visão mais geral da cidade, e, especialmente, de sua história, suas
tipologias arquitetônicas, morfologias urbanas, etc. (tão presentes
no debate anterior) – em vez de “criar no “criado”, simplesmente
“criar”, ou melhor, “inventar” – é o triunfo da “diferença exacerbada”
(Koolhaas), do raro, do espetacular, das imagens feéricas, que por sua
vez vão servir ao marketing urbano, e assim por diante.

146
Entre_vista com Otília Beatriz

Pode-se dizer que Berlim e Barcelona passaram por ambas as


fases, ou combinaram as duas, como se pode deduzir do exposto nas
respostas anteriores. Se o debate começou antes em Barcelona, não
posso assegurar, mas as lições só foram tiradas a partir dos anos
1980, de forma que não se pode dizer que Berlim, com sua política de
preservação de Kreuzberg, tenha chegado com atraso. Aliás, a
combinação das duas estratégias talvez se dê até hoje em ambas e a
bem dizer foi adotada concomitantemente. Volto a um ponto
nevrálgico de um antigo argumento, a saber, a convergência de fundo
entre duas tendências que se pretendiam contrapostas: a dos
contextualistas e dos empreendedores – convergência objetiva que
se expressa na cidade-empresa-cultural, da qual Barcelona e Berlim
são bons exemplos.

Sonycenter em Potsdamer Platz, Berlim, 2000.


Arquiteto Helmut Jahn Foto Otília Arantes

147
Adalberto RETTO JR.

6. Museus, exposições universais e congressos


internacionais

Altes Museum, Berlim, 1928. Arquiteto Karl Friedrich


Schinkel Foto Leandro Neumann Ciuffo
[Wikimedia Commons]

Adalberto da Silva Retto Jr: Três fenômenos de grande amplitude,


intimamente ligados, marcaram a afirmação e expansão da sociedade
industrial, do século 19 ao início do século 20: a proliferação de
museus, as exposições universais e os congressos internacionais. É
plausível, portanto, fazer uma comparação com os acontecimentos
atuais incluindo a área do urbanismo, apesar de uma clara diferença
na escala e problemática das intervenções. Quais são as permanências
e rupturas mais evidentes nesse paralelo?
Otilia Arantes: Talvez possamos dizer que estava de um certo
modo tudo lá, desde o início, pois tais iniciativas, no campo da
cultura, do entretenimento e do turismo, estão ligados, como você
mesmo lembra, à expansão da sociedade industrial e acompanham
suas diferentes etapas, tanto quanto a concomitante formação de
uma sociedade de mercado.
Como se pode comprovar, no que concerne o primeiro caso de

148
Entre_vista com Otília Beatriz

proliferação citado por você: os museus. Se a arte não é uma


mercadoria, ela é entretanto algo que se pode expor no mercado e
ser avaliada em função da demanda, como qualquer mercadoria. E
não é por acaso que o aparecimento dos primeiros museus públicos
no século 18 – o British Museum (1754) e o Louvre, como Museu da
República (1793), deu-se simultaneamente ao das primeiras casas de
leilão na Inglaterra e dos Salões de Arte na França. É quando começa
a ascensão de uma burguesia que não só passa a ter acesso à cultura,
como se constitui numa classe que a reivindica como proprietária,
que a vê portanto como um bem de consumo, dando origem aos
ditos collectors ou amateurs, sem esquecer dos “intermediários
culturais” avant la lettre, os críticos de arte (um exemplo clássico são
os “Salões” de Diderot, seguido, no século 19, por Baudelaire e uma
sucessão de salonniers). Dito isso, não se pode desconhecer o fato de
que a expansão dos museus pela Europa (e posteriormente pelos
Estados Unidos) se deve também a um genuíno impulso político
“democratizante”, oriundo da Revolução Francesa. Ao que logo se
acrescentou, no entanto, associado ao empenho de afirmação
cultural local, um concomitante gesto imperial de exibir como um
triunfo cultural os despojos da acelerada expansão colonial
subsequente. O conjunto embalado no mesmo pacote de celebração
da Grande Arte. Mais para o último quarto de século (19), surgem os
primeiros grandes marchands – não custa mencionar o mais
conhecido de todos, Durand Ruel, responsável pela valorização dos
Impressionistas, abarrotando com suas telas os museus e as coleções
americanas. Igualmente, e não menos decisivos, os “curadores”. Uns
e outros tiveram um papel importante na definição dos parâmetros
da história moderna da arte, lembro, a título de exemplo, Alois Riegl,
curador de tapeçarias no Museu de Viena que forjou o polêmico
conceito de Kunstwollen, ou “vontade das formas” de um determinado
período histórico, atribuindo portanto, a mesma importância, por
assim dizer, aos objetos considerados artísticos quanto àqueles da
vida quotidiana, desconsiderados de um ponto vista pretensamente

149
Adalberto RETTO JR.

estético. Mas fui me afastando do foco de sua pergunta. Na verdade


– voltando e reforçando meu argumento – a relação arte-mercado
tem muito a ver com os museus, são eles os grandes “avalistas”, eles
é que fazem ou desfazem reputações. Há mais de dois séculos que a
nossa relação com as obras de arte é indiscutivelmente “filtrada”
pelos museus. Não por acaso as vanguardas, no início do século 20,
como acontecerá novamente com as neo-vanguardas dos anos 60,
vão sistematicamente questionar a Instituição Museu, rompendo,
por vezes ruidosamente, com os padrões estéticos estabelecidos.
Embora boa parte delas, mesmo em suas manifestações mais
irreverentes, acabem sendo recuperadas pelos museus, como mais
um “botim”, e, portanto, igualmente incluídas no rol das mostras
oficiais e das obras cotados em bolsa.

Museu de Arte Contemporânea, Barcelona. Arquiteto


Richard Meier Foto Otília Arantes

Já os Novos Museus, ditos Pós-Modernos (dando um salto no


tempo), se transformaram numa das manifestações mais visíveis da
lógica cultural capitalista em regime de acumulação flexível - cenários
de uma vida pública inexistente porém alimentando uma sorte de
estilo (altamente “produzido” aliás) estético-hedonista de consumo
da vida ideológica e material nestes últimos trinta anos. “Estética
pós-moderna que celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo,

150
Entre_vista com Otília Beatriz

a moda e a mercantilização de todas as formas culturais” (David


Harvey) – lugar privilegiado de convívio das diferenças, segundo
pretendem autores os mais díspares. Na verdade, um processo de
mão dupla, em que à desestetização crescente da arte corresponde
uma estetização da vida, sendo a nova “cultura dos museus”, como
bem constatou Christa Bürger, uma das expressões mais enfáticas
desse processo de estetização. Ao contrário dos Museus Modernos,
ainda projetados com intenções didáticas, ou mesmo, já nos 1970
(como o Beaubourg), vindo responder em parte às demandas pós
maio de 1968 por democratização da cultura, a partir dos anos 1980,
os museus optarão claramente por represar e desviar esse didatismo
em favor de uma atitude crescentemente hedonista, a seu ver,
requerida pela sociedade de consumo. Estetização aliás presente,
em primeiro lugar, onde é mais escancaradamente visível, na própria
arquitetura dos museus, arquitetura que cada vez mais se apresenta
como um valor em si mesmo, como uma obra de arte, como algo a ser
apreciado como tal e não apenas como uma construção destinada a
abrigar obras de arte.
Em consequência, reina atualmente uma grande animação
no domínio tradicionalmente austero e introvertido dos museus.
Entramos neles como num show-room de variedades com cenários
espetaculares, sem falar nas demais atrações: atualmente, quem visita
os museus dispõe de amplos espaços para a mais desenvolta flânerie,
abrigando jardins, passarelas, terraços e janelas que trazem a cidade
para dentro do museu – ao mesmo tempo ponto de vista privilegiado
sobre o mundo exterior e vida pública em circuito fechado, que conta
também com cafeterias, restaurantes, ao lado de ateliês, salas de
projeção ou de concertos, livrarias etc. As longas filas que se formam
à entrada dessas novas “casas de cultura” nem sempre se devem ao
antigo amor à arte, concentrada no acervo do museu, mas a essas
múltiplas atrações. Sem contar o sucesso de marketing das Grandes
Exposições itinerantes. Portanto: de abrigo das obras a cenários de
atividades mundanas – até o mundo fashion invadindo os próprios

151
Adalberto RETTO JR.

museus: eventos oficiais, grandes Mostras, desfiles de moda, bailes de


máscara, etc. –, é a própria arquitetura que se altera, transformando-
se num atrativo a mais, senão o principal. Como já se disse à
exaustão: não é mais tão óbvia a diferença entre museus, antes vistos
como templos da cultura (as catedrais do século 20, como ainda as
designava André Malraux, há meio século atrás) e shopping-centers.
Como declara aliás, sem meias palavras James Stirling – o arquiteto
responsável pelas ampliações da Neue Staatsgalerie de Stuttgart e da
antiga Tate Gallery de Londres: se os museus são hoje em dia lugares
de recreação, e as exposições apresentam uma inegável dimensão
mercantil, por que tanto escrúpulo, por que economizar no projeto
os elementos que podem evocar centros comerciais?
Não por acaso, os Estados nacionais do capitalismo central,
mobilizaram o atual star system da arquitetura internacional, no
intuito de criar grandes monumentos que sirvam ao mesmo tempo
como suporte e lugar de criação da cultura e reanimação da vida
pública. Enquanto vão atendendo às demandas de bens não materiais
nas sociedades afluentes também vão disseminando imagens mais
persuasivas do que convincentes de uma identidade cultural e
política, e política porque cultural, da nação ou das cidades,
utilizando-os por isto mesmo como “imagens de marca” a atrair
atenções e investimentos. Alguns governos, acossados pela crise e
pela voga neoliberal, não temeram em ao mesmo tempo restringir o
orçamento do sistema previdenciário e investir no campo do culturel
em expansão (de retorno seguro e rápido), fundindo publicidade e
animação cultural. É o que tem feito deles, como já dissemos aqui,
peças importantes da engrenagem das máquinas de crescimento,
como passaram a ser vistas as cidades, servindo de isca para os
grandes negócios imobiliários, nos processos ditos de “requalificação”
urbana. O exemplo extremo foi sem dúvida o Guggenheim de Bilbao.

152
Entre_vista com Otília Beatriz

Abertura oficial da Grande Exposição, Palácio de Cristal,


Londres, 1851 Litografia de Louis Haghe [Wikipedia for
Schools]

Passando para as Grandes Exposições Internacionais: elas mais


ou menos reproduzem o mesmo movimento, pelo menos desde a
Grande Exposição de 1851, em Londres – que vai se transformar
no modelo por excelência das exposições subsequentes –, tendo
como tema central a Indústria. Associada, evidentemente, às demais
manifestações culturais, dos países centrais aí representados e de
seus Impérios (no Palácio de Cristal havia, por exemplo, uma Indian
Court, que expunha dos chás às sedas da Índia). A França, inicia 4
anos depois uma série de exposições adotando o mesmo modelo,
mas acrescido de um tempero local: a afirmação dos valores
republicanos, especialmente na relação capital-trabalho (talvez
tenham razão os autores que vêem nestes eventos antes de tudo uma
forma extremamente sofisticada de controle social). Impossível aqui
detalhar todas elas e seus conteúdos, nem eu teria meios de fazê-
lo. A verdade, no entanto, é que tais exposições, que passam a se
multiplicar, tem uma função primordialmente econômica explícita
(à diferença dos museus), embora sem dúvida também política, não
só de afirmação dos valores (e do poderio!) locais frente aos demais
países, mas internamente também, ao lançarem mão de todo tipo
de atrações e de entretenimento (da arte aos esportes, que logo vão

153
Adalberto RETTO JR.

passar a ter os seus eventos exclusivos, especialmente, no caso destes


últimos, as Olimpíadas – volto a elas logo adiante) para reforçar o
sentimento de nacionalidade. Esses traços nacionalistas vão se
acentuar no entre guerras, num primeiro momento, associados ao
esforço de reconstrução dos países atingidos pela Primeira Grande
Guerra, logo a seguir, como afirmação autoritária e xenófoba dos
países totalitários, com a ascensão do nazi-fascismo, ou mesmo
do stalinismo (a Exposição Internacional de Paris de 1937, em pleno
Trocadero, terá, ladeando o Palais de Chaillot, construído no lugar
do antigo Palais du Trocadero expressamente para o evento, e face a
face enquadrando a Tour Eiffel – resquício, como se sabe, da grande
Exposição de 1889, centenário da Revolução – os dois pavilhões
monumentais: o pavilhão nazista, projetado por Albert Speer,
encimado por uma “vistosa” águia alemã, e, em frente, o da URSS,
com uma escultura, não menos monumental, de dois trabalhadores
do campo, empunhando uma foice).
Depois da Segunda Guerra Mundial tais exposições mudam
a forma, sem perder evidentemente a dimensão política, mas se
voltando cada vez mais para o mercado, em geral elegendo “temas”
ligados aos avanços da ciência e da tecnologia de produção, ainda
povoadas de pavilhões de diferentes países, mas agora numa
competição interna, seja quanto às especificidades e virtualidades
locais, seja na demonstração de maior competência nas áreas-tema
– da tecnologia de ponta aos usos da natureza, meio ambiente e
sustentabilidade (que aliás vem sendo a tônica, ao menos desde Lisboa
1998, sobre Os Oceanos, ou Hannover 2000, Humanidade, natureza e
tecnologia - origem de um novo mundo; e, mais recentemente, Xangai
2010, Better city, better life) –, ao mesmo tempo que pretendem
estar propiciando, às cidades-sedes “ocasionais” (para voltarmos ao
início desta entrevista), a possibilidade de entrarem no circuito das
“cidades à venda”. Mais um ingrediente portanto nas estratégias de
desenvolvimento urbano.

154
Entre_vista com Otília Beatriz

Não saberia o que dizer dos Congressos, embora, em parte,


associados a esses mesmos eventos a que nos referimos. Sabemos
que existem todos os tipos de Congresso, e que aqueles que nos
dizem respeito mais de perto, ou seja, os acadêmicos, também
sofreram a mesma inflexão mercantil, expressa aliás na contabilidade
dos currículos... Mas paro por aí.

Parque do Fórum das Culturas, Barcelona, 2004 Foto


Amadalvarez [Wikimedia Commons]

155
Adalberto RETTO JR.

7. Olimpíadas e Copa do Mundo no Brasil

Palácio dos Esportes San Jordi, Olimpíadas de 1992.


Arquiteto Irata Isosaki Foto Abilio Guerra

Adalberto da Silva Retto Jr: Na sequência, o que a Sra. teria a


dizer sobre as Olimpíadas, visto que foi um evento importante no
processo descrito sobre Barcelona? E, como no Brasil, grandes
eventos estão ocorrendo e outros serão realizados, como a Copa
do Mundo e as Olimpíadas, quais são as consequências possíveis,
positivas e negativas, que podem ocorrer nas cidades brasileiras,
quando comparadas a exemplos já existentes?
Otilia Arantes: Como disse, as Olimpíadas, retomadas em Atenas,
em 1896, tanto quanto a Copa do Mundo, no início do século 20,
estarão, durante quase 50 anos, associadas às Grandes Exposições,
talvez, segundo John MacAloon , como fruto natural dos novos
símbolos e rituais inaugurados por estes festivais/espetáculos de
eventos internacionais, devotados ao progresso da ciência, arte
e indústria, e portanto à “inventividade”, da qual os jogos atléticos
se apresentariam como expressões privilegiadas – algo como o
“espírito esportivo” da modernidade (num paralelo com a religião
enquanto “espírito do capitalismo”, na interpretação de Weber). Com
a ascensão dos regimes totalitários de entre-guerras, no entanto, as

156
Entre_vista com Otília Beatriz

Olimpíadas vão se transformando num espetáculo político de massa,


revivendo sua origem ancestral: a exibição coreografada do aparato
militar de dominação (como não hesita em afirmar Maurice Roche,
antes de evocar o reencantamento bastardo do mundo como uma
das características primordiais destes mega-eventos performáticos).
O que vai culminar na Olimpíada de Berlim, em 1936. Se, depois da
Guerra, estes espetáculos vão ganhando cada vez mais autonomia,
não deixam de ser a expressão maior do poderio e da performance
dos países ou cidades-sedes, no fundo replicando a espetacularidade,
associada à disciplina de origem militar destes eventos. Portanto,
permanência da matriz de 1936, mas agora combinada ao “espírito
dos negócios”, pelo menos a partir da gestão do COI por Samaranch
(de 1980 a 2001), figura de destaque do franquismo, responsável por
transformar as Olimpíadas, de evento em geral deficitário (como
ocorreu com Tóquio, Montreal, Munich, Moscou e Los Angeles),
num empreendimento altamente lucrativo, através do recurso aos
patrocínios e à mídia encarregada da transmissão dos jogos. Já então “o
espírito esportivo”, de que falávamos, passa a funcionar cada vez mais
na alavancagem da reprodução do capital, e, os eventos esportivos,
como verdadeiros meganegócios, especialmente os ligados à FIFA
e ao COI. A marca Olimpíadas vai assim ser explorada tanto pelas
empresas (de natureza as mais variadas, mas especialmente as da
mídia), quanto pelas cidades, que, obedecendo ao standard fixado
pelo Comitê para uma cidade Olímpica (na verdade, sua transformção
num grande Parque temático) com seus equipamentos, arquitetura,
infraestrutura viária e turística, etc., pretendem atrair capitais e
competir internacionalmente como um centro urbano capaz de
oferecer vantagens especiais aos investidores, transformando-se
portanto num importante ingrediente nas políticas de city marketing.

157
Adalberto RETTO JR.

Estádio Olímpico de Pequim, o “Ninho de pássaro”, com


tocha olímpica ao fundo. Arquitetos Jacques Herzog e
Pierre De Meuron Foto de Mylena Fiori

As Olimpíadas passariam assim, após esse remanejamento


empresarial de Samaranch, a ser vistas também, e de forma
privilegiada, como uma “alavanca” fundamental às máquinas de
crescimento urbano (ainda uma vez), ou seja, se transformam em
instrumento importante para ativar os grandes negócios urbanos –
não por acaso Barcelona adota o Planejamento estratégico, de matriz
empresarial, às vésperas das Olimpíadas. O que, na verdade, não
redunda obrigatoriamente em benefícios, inclusive financeiros, para
a cidade-sede, nem mesmo no caso tido como o mais bem sucedido
de todos, Barcelona 1992 (como tento mostrar nesse meu último
livro). Independentemente das intenções dos que, na prefeitura,
apostavam num urbanismo “cidadão” e advogavam uma gestão que
contemplasse as verdadeiras necessidades de seus habitantes, o que
vimos acontecer, em parte pela urgência de obedecer às exigências
impostas pelo Comitê Olímpico (afinal foi Samaranch que conseguiu
a vitória de Barcelona na competição por sediar os jogos) e a
necessidade de fazer da cidade tanto um grande centro esportivo,
quanto atraente aos investidores e turistas, obrigou-os a mudar na
mesma escala o diálogo urbano, passando a negociar diretamente
com os grandes operadores: “operações urgentes que deveriam

158
Entre_vista com Otília Beatriz

eludir as mais lentas e conflitivas, com os pequenos operadores e


com as reivindicações sociais”, como observa Josep Maria Montaner.
Logo, as parcerias público-privadas foram assumindo um papel
preponderante, nos moldes que se sabe: fundos públicos e ganhos
privados; a tal ponto que, acabadas as Olimpíadas, o déficit público
da cidade era superior ao total que ela poderia arrecadar em um ano
(de acordo com historiadores do período) e muitas das obras sequer
tinham sido concluídas, arrastando-se até quase o final da década.
Um novo evento foi imaginado para novamente gerar investimentos
e atrair mais turistas, o Fórum das Culturas, de 2004, cujo sucesso foi
ainda menos significativo do que o do anterior – os tempos afinal já
eram outros, nada tinham a ver com o boom econômico resultante da
entrada no Mercado Comum Europeu, na década de 80, e que ajudou a
patrocinar as Olimpíadas e outras tantas iniciativas similares, naquele
mesmo ano de 1992, como a Feira industrial de Sevilha, Madri Capital
Cultural da Europa, dentre as comemorações do Quinto Centenário
do descobrimento das Américas. De qualquer modo, os investidores
não deixaram de comparecer, Hines à frente, cercando a praça do
Fórum, com shoppings, Hotéis e outros empreendimentos rentáveis.
Nada diferente está acontecendo ou vai ocorrer no Brasil, apenas
com consequências mais desastrosas, dadas as condições sociais e
econômicas do país, ou a total inexistência de infra-estruturas para
por em funcionamento uma máquina como esta, tanto que já
recebemos vários pitos e ameaças de retirar do Brasil seja a Copa,
seja a Olimpíada. Só os gastos com os Estádios para a Copa já são um
despropósito sem paralelo – nem a catástrofe que foi a da África do
Sul teve a intensidade da que está ocorrendo entre nós. Desnecessário
comentar, nestas alturas, fatos cuja aberração já esteve na pauta dos
protestos durante as jornadas de junho, e que, com certeza, devem
se intensificar até as Olimpíadas do Rio de Janeiro. A respeito de tudo
isso há grupos de estudos em toda parte, para não falar dos comitês
populares, igualmente estudiosos e combativos, especialmente no
Rio de Janeiro, com dados precisos e de que não disponho. Confesso

159
Adalberto RETTO JR.

que já não tenho mais idade e ânimo para uma pesquisa detalhada
que possa acrescentar algo ao que já vem sendo dito, até nas ruas...

Arena Mineirão para a Copa do Mundo de 2014, Belo


Horizonte, 2012. BCMF Arquitetos / Bruno Campos,
Marcelo Fontes e Silvio Todeschi Foto Joana França

8. Ficha técnica

Otilia Arantes em Seminário sobre Arte/cidade, com os


atores da Cia. São Jorge de Variedades, 2010
Foto Mariana Senne

Otília Beatriz Fiori Arantes

160
Entre_vista com Otília Beatriz

Possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal do


Rio Grande do Sul (1961), mestrado em Filosofia pela Universidade
de São Paulo (1968), doutorado em Filosofia - Universite de Paris I
(Pantheon-Sorbonne) (1972) e Livre docência pela USP (1992)
Atualmente é professora aposentada da Universidade de São
Paulo, onde ministrou cursos, especialmente na área de Estética, no
Departamento de Filosofia e na FAU (graduação e Pós-graduação).
Presidiu o Centro de Estudos de Arte Contemporânea (1979 a 1992).
Publicou vários ensaios, livros e capítulos de livros, dentre os quais,
pela Edusp: O lugar da arquitetura depois dos modernos (1993),
Urbanismo em fim de linha (1998), Chai-na (2011); em colaboração
com Carlos Vainer e Ermínia Maricato, A cidade do pensamento único
(ed. Vozes, 2000). Seu último livro publicado foi Berlim e Barcelona,
duas imagens estratégicas (Annablume, 2012).
Adalberto da Silva Retto Júnior
Atua como Professor de Desenho Urbano e História do Urbanismo
na Universidade Estadual Paulista Unesp e como Professor Visitante
no Master Erasmus Mundus TPTI (Techiniques, Patrimoine, Territoire
de l Industrie: Histoire, Valorisation, Didactique) da Universitè
Panthéon-Sorbonne Paris I, na Universidade de Évora; Possui Pós-
doutorado no Doutorado de Excelência do Istituto Universitario
de Arquitetura de Veneza Italia (2007); Doutor pela Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pelo
Departamento de História da Arquitetura e Urbanismo do Instituto
Universitario de Arquitetura de Veneza (2003).
Geise Brizotti Pasquotto
Colaborou na entrevista, tanto na discussão que estabeleceu o
enfoque da entrevista, como na revisão final do texto publicado. Atua
como professora nos cursos de Arquitetura e Urbanismo e Desenho
Industrial na Universidade Paulista - Unip em Campinas. Formada
em Arquitetura e Urbanismo pela Unesp Bauru (2006), mestre na

161
Adalberto RETTO JR.

área de Arquitetura e Construção pela Unicamp (Edifícios culturais


e a reabilitação de áreas centrais: o Complexo Cultural Teatro da
Dança de São Paulo, 2011); e Doutoranda em Planejamento Urbano e
Regional pela Usp São Paulo.
Sobre a entrevista
Embora destinada ao portal Vitruvius, foi realizada como parte
do material didático do curso “A dimensão paisagística no projeto
da cidade contemporânea: um itinerário de estudo nas cidades de
Berlim, Barcelona e Atenas”.

162
Entre_vista com Otília Beatriz

163
164
Entre_vista com José Cláudio Gomes

1. Introdução

Foto da Maquete do projeto “Bauru Centro Novo”

Entrevista com o arquiteto e urbanista José Cláudio Gomes


Por Adalberto da Silva Retto Júnior, Norma Regina Truppel
Constantino e Marta Enokibara
Esta entrevista com o arquiteto e urbanista José Cláudio Gomes,
juntamente com as entrevistas de Jean-Louis Cohen (França),
Christiane Crasemann Collins (Estados Unidos), Bernardo Secchi
e Paola Viganò (Itália), Andreas Hofer (Áustria) e outras que virão,
tencionam compor um importante mosaico sobre o corpus disciplinar
do Desenho Urbano.
A idéia de realizá-las surgiu a partir de discussões levadas pelo
Grupo de Pesquisa em Sistemas Integrados Territoriais e Urbanos –
SITU, da Unesp de Bauru, e de ilustres convidados que, gentilmente,
colaboram na construção de um itinerário de pesquisa.
Neste percurso, temos a declarada ambição de individualizar

165
Adalberto RETTO JR.

elementos úteis à construção da autonomia disciplinar com a


convicção que a verdadeira interdisciplinaridade é possível somente
quando uma disciplina goza de uma plena consciência de si.
A pesquisa parte de uma leitura simultânea das reflexões teóricas
e das práticas de Planos Urbanísticos tendo por base a hipótese de
que questões teóricas formuladas em um lugar, em determinadas
circunstâncias e com determinadas raízes culturais, podem ter
intérpretes em todos os lugares como sinal não somente de uma
circulação das informações característica de nosso tempo, mas
de que a própria disciplina possa encontrar elementos fundantes
autônomos em diferentes nacionalidades.
A parte nodal da nossa reflexão está relacionada ao recente
debate sobre a autonomia e a identidade do urbanismo, onde emerge
o uso das mesmas locuções da arquitetura urbana ou projeto urbano,
que testemunha não somente a substancial incompreensão das
experiências internacionais vistas na sua amplitude, mas também
a dificuldade de construir um claro quadro teórico e de encontrar
novos instrumentos de planificação.

166
Entre_vista com José Cláudio Gomes

2. Urbanismo do pós-guerra

Projeto “Bauru Centro Novo

Adalberto Retto Jr, Norma Constantino e Marta Enokibara: Para


alguns teóricos, os anos do pós-guerra inauguraram uma escala
diferenciada no tratamento à cidade. Gideon, por exemplo, reconhece
três estágios na arquitetura, num percurso reflexivo sobre arte e
coletividade iniciada em Bridgewater (CIAM 1947) e Bérgamo (CIAM
1949): um primeiro, no qual a atenção se volta à organização da célula
e os arquitetos experimentam uma nova espacialidade em projetos
de conjuntos isolados; um segundo, em que o tema se relaciona com
a necessidade de uma maior articulação do projeto e das agregações
de casas e de blocos de habitação, com um renovado interesse para
a planificação; e um terceiro, que levaria os arquitetos a repensar o
tema do centro comunitário, do centro cívico, questões centrais na
reflexão dos anos de 1950. Dentro deste contexto, quais os projetos
no Brasil, que seriam representativos desta alteração de escala na
resolução da cidade?
José Cláudio Gomes: Em primeiro lugar, a célula individual:
projetos de habitação monofamiliar geralmente para classe média
elaborados pela primeira geração dos modernos (Artigas, Niemeyer,
Lúcio Costa, etc). Como exemplo, poderíamos citar: agregação de

167
Adalberto RETTO JR.

blocos construídos – planificação; projetos elaborados no período


SERFHAU – Serviço Federal de Habitação e Urbanismo – a partir
de 1967, período inicial dos Planos Diretores; política habitacional
do governo federal, com empresas habitacionais como COHAB,
INCOOPs, etc; projetos diversos de Affonso Eduardo Reidy; M. M.
Roberto, etc. Em segundo lugar, o centro cívico ou comunitário.
Podemos citar Brasília e os projetos apresentados no Concurso de
1957; projetos de Prestes Maia para o Centro de São Paulo, de 1930;
planos para o Rio de Janeiro, como a Cidade Universitária de Lúcio
Costa e o Plano Agache, de 1926-1930; alguns projetos elaborados
no quadro dos Planos Diretores por mim para Valparaíso, Garça,
Guarujá, Ilhéus, Matão, etc.
A, N e M: A partir da leitura de textos de Saverio Muratori,
Carlo Aymonino, Aldo Rossi e Gianfracesco Caniggia, emergem em
diversos países nuances e implicações operativas baseadas na teoria
tipo-morfológica. Na França, por exemplo, embasou o nascimento
de um espaço específico da análise urbana capaz de dar uma nova
vitalidade à prática da arquitetura e do urbanismo. Nesta retomada
às pesquisas sobre tipologia edilícia e a morfologia urbana, alguns
franceses apresentam contribuições originais atinentes à relação
da cidade com o ambiente natural e o lugar recuperando a sólida
tradição nacional de estudos de geografia urbana (P. George, G.
Etienne, etc). Por outro lado, surgem numerosas polêmicas sobre a
validade científica da teoria tipo-morfológica, abrindo-se para novos
conceitos relativos à “arquitetura urbana”, à “composição urbana”, ao
“projeto urbano”. Qual a contribuição brasileira sobre o debate do
projeto urbano?
JCG: Desconheço “debate” sobre este tema. Talvez tenha havido
algum debate “intramuros” na Academia. Eu mesmo conduzi, no
âmbito da Pós-Graduação, na FAU USP, na década de 1980, disciplina
e seminários com este nome e conteúdo (Projetos Urbanos).
Entretanto, trata-se de iniciativa isolada que não teve desdobramentos.

168
Entre_vista com José Cláudio Gomes

Planta geral do projeto “Bauru Centro Novo”

3. Projeto urbano

Planta geral do projeto “Bauru Centro Novo”

Adalberto Retto Jr, Norma Constantino e Marta Enokibara: Alguns


especialistas colocam o congresso internacional organizado pelo
DAU, do Ministère de l’Équipement, du Logement et dês Transports,
em Strasburgo em setembro de 1992, intitulado, Projet Urbain’92 –
de l’intention à réalisation, como prova daquilo que aconteceu no
primeiro qüinqüênio dos anos 90 e dos equívocos engendrados pelo
uso maciço da expressão “projeto urbano”.
O Projeto Urbano, conforme escrito na brochura de apresentação

169
Adalberto RETTO JR.

do congresso, “se transforma no meio para lutar contra a cidade


explodida preparando-a para acolher progressivamente programas
e arquiteturas”. O projeto urbano é também uma maneira de lutar
contra a cidade que exclui, a cidade do “zoneamento”. “É a tentativa
de obter a complexidade urbana, trabalhando sobre a totalidade do
território urbano com a mesma profundidade, ou com uma maior
complexidade, para os bairros e as populações em dificuldade. É um
outro modo de fazer a cidade ou de não deixar que se desfaça sob
pequenas operações esparsas ou incoerentes”.
Na França, na primeira metade dos anos 90, se desenvolve um
debate que, de qualquer modo, retoma aquele sobre plano/projeto
que aconteceu no decênio precedente na Itália, com diversos
questionamentos: para que serve a noção de projeto urbano? Trata-
se de arquitetura da cidade ou de arquitetura na cidade? De um
projeto de plano urbano, de um plano de controle morfológico da
arquitetura na cidade, da interface cidade-arquitetura? De projeto de
arquitetura urbana, de mega-estrutura urbana ou de mega-projeto
arquitetônico?
E no seu ponto de vista?
José Cláudio Gomes: O modo como é apresentada a formulação
da pergunta vincula a noção à problemática de países centrais que
não é a mesma de países periféricos. Só recentemente o Brasil vem
se constituindo em país urbano, mas de extraordinária desigualdade
social que todos conhecem. Neste sentido, qualquer que seja a noção
de “projeto urbano” deve, obrigatoriamente, ser entendida dentro
daquelas condições históricas que nos são próprias. Isto é, devemos
na verdade indagar qual a noção de projeto urbano que nos convém
e não a que França, Espanha Itália, etc buscam.
Creio que “projeto urbano” no Brasil será qualquer projeto que leve
em conta condições básicas e elementares de cidadania e civilidade
a começar pelo mais elementar nível de equipamentação material e

170
Entre_vista com José Cláudio Gomes

estruturação do espaço de um país que se constrói.


Projeto Urbano, aqui, não terá a conotação estetizante de
linguagem formal dos países centrais, mas o significado mais básico
de projeto de espaço dotado de uma “qualidade” urbana onde a
população se reconheça e se aproprie. Neste sentido, creio que o
projeto urbano tem a ver antes com uma certa “qualidade” do espaço
da cidade do que com a simples funcionalidade material.

4. Grands Projets

Croquis

Adalberto Retto Jr, Norma Constantino e Marta Enokibara: O


senhor fez parte da equipe que ganhou o segundo lugar no concurso do
Museu George Pompidou (coordenação de Paulo Mendes da Rocha).
Vale ressaltar que, o referido concurso tornou-se paradigmático
na história da arquitetura e do urbanismo no tratamento relativo à
cidade, mas também pelo fato de deslocar o centro do debate do
âmbito disciplinar àquele político:
1 – Após um qüinqüênio de sombra, tem-se uma mudança
na política urbanística com conseqüente descentralização que é
operada na França a partir de 1985. O projeto urbano na sua expressão
“mediatizada” é transformado, em um dos principais recursos

171
Adalberto RETTO JR.

políticos com os quais se mediaram e se confrontaram a esquerda


e a direita de Mitterand e Chirac, a todos os administradores das
cidades francesas. Esta nova situação política-administrativa aponta
a necessidade de que os novos instrumentos de intervenção na
cidade e no território apresentem características diversas com
respeito àquelas produzidas nas décadas precedentes.
2 – A questão não se relaciona somente aos instrumentos, mas a
todo aparato teórico que está a montante: isto é, a necessidade de dar
frente à nova situação, de criar uma cultura do projeto urbano entre
os técnicos, mas também entre os políticos e os administradores,
que levaria seu aprofundamento epistemológico.
Essa nova situação, que leva em conta a experiência dos
Grands Projets, também se baseia na afirmação de uma prática de
intervenções sobre a cidade respaldadas nas suas características
contextuais.
Concomitantemente, explodiu uma grande polêmica: Bernard
Huet e Antoine Grumbach naquela ocasião alardearam: “Nos
encontramos em uma época de arquitetura-espetáculo com
finalidade eleitoreira”, afirmava o primeiro. “As cidade e o Estado levam
adiante uma política feita por colecionadores de belos objetos. Ora, o
projeto urbano é exatamente o oposto”. O projeto urbano “não é um
projeto de design”, – argumentava o segundo – “não tem implicações
somente pontuais, mas é urbanismo, deve se inserir em um quadro
de definições da cidade no seu complexo como espaço físico em
que vive uma comunidade”. Judith Rueff ressalta que “diferente de
uma obra de arquitetura, o projeto urbano não pode existir se não
produzir contexto ou, em outras palavras, se não produzir tecido
urbano. (...) O que é fundamental, é a ação de transformação e de
criação do espaço urbano”.
Qual a resposta dada pelo projeto da sua equipe e qual o diferencial
da equipe vencedora de Rogers & Piano?

172
Entre_vista com José Cláudio Gomes

José Cláudio Gomes: O projeto Rogers-Piano é uma grande


operação de marketing cultural que inaugura um novo ciclo da política
cultural nos países centrais (e periféricos...). Bilbao, Guggenheim
Rio, etc. O projeto de Paulo Mendes da Rocha pretendeu oferecer
à antiguíssima cidade de Paris a resposta de como uma jovem
nação de arquitetos constrói o espaço no centro do velho Marais.
Muito mais do que simplesmente responder aos óbvios requisitos
funcionais do programa do Concurso, o projeto cuidou de ensinar
à cidade de Paris como se constrói uma nova espacialidade de
congraçamento, civilidade e urbanidade usando, sem exibicionismos
nem malabarismos, da melhor tecnologia e sistema construtivo. A
análise cuidadosa do projeto PMRocha revela uma evidente carga
didática e pedagógica na maneira como, por exemplo, ensina a
redesenhar as ruas do Marais, cruzando por sobre os jardins da
biblioteca propostos 6 metros abaixo do chão de Paris, etc, etc.

5. “Bauru Centro Novo”

Estudos

Adalberto Retto Jr, Norma Constantino e Marta Enokibara: Em São


Paulo, no memorial do Concurso Público Nacional para Elaboração
de Plano de Reurbanização do Vale do Anhangabaú (1981), aparece
uma nova direção no tratamento do espaço público: o desenho

173
Adalberto RETTO JR.

do vazio, dos espaços abertos, cada um dos quais é tratado como


material específico da construção da cidade e do território e a cada
um é dada a tarefa de reabilitar o espaço da cidade contemporânea,
propondo inovações espaciais.
Algumas décadas depois, no seu projeto “Bauru Centro Novo”,
o senhor ao mesmo tempo que trabalha a escala do centro cívico,
propõe a Mixitè, isto é, um programa para o espaço aberto constando
de edifícios públicos, serviços e também a habitação: constrói o
tecido urbano numa esplanada árida articulando a cisão histórica
feita pela ferrovia. É verdade que suas proposições se inserem na
reabilitação dos centros, problemática que se alastra em muitas
cidades de porte médio do oeste paulista. Entretanto, no mesmo
período o senhor propõe o projeto para o Largo da Batata, em São
Paulo. Qual a diferença escalar ao trabalhar o centro da cidade de
porte médio e a metrópole congestionada? Qual a forma de tratar o
fragmento?
José Cláudio Gomes: Mais do que uma diferença escalar trata-
se de uma diferença de contexto ou situação. Bauru é um contexto
que se constrói: um centro monofuncional afogado pelo comércio
varejista, popular e escritórios, carente de habitação permanente,
enfim, um conjunto que requer intervenção de construção do centro
de uma cidade em expansão e crescimento: de uma cidade que já é
um centro regional.
Largo da bata em Pinheiros: contexto de uma área metropolitana
que se normaliza; saturação do espaço construído; estabilização
do crescimento demográfico; diferenciação funcional da base
econômica e industrial para serviços, etc.
Neste sentido, diferentes contextos problemáticos requerem
projetos diferenciados. No caso de Bauru trata-se de superar o
escândalo urbano de um enorme pátio ferroviário decadente,
degradado e obsoleto... Daí a proposta de atender à necessidade

174
Entre_vista com José Cláudio Gomes

de expandir as atividades centrais pelo adensamento do uso,


diversificação funcional e espacial incorporando a enorme área do
obsoleto pátio ferroviário a um novo desenho do centro da cidade.
Atenção para a generalidade deste problema, que ocorre em grande
número de cidades do oeste paulista (Agudos, inclusive...).
No caso do Largo da Batata (trabalho inacabado conduzido, há
muitos anos no quadro de modesta disciplina de pós-graduação
da FAU USP, tratava-se de investigar um fragmento urbano que, no
contexto metropolitano, não seria mais do que pontual. Aqui, à sua
natureza de novo centro de articulação viária, era no seu conjunto,
mero fragmento secundário no interior da imensidão metropolitana.
A intervenção, portanto, indicava a necessidade de abrir o espaço,
desadensando espacialmente e devolvendo o chão do Largo ao
pedestre.
Certamente os pressupostos mais gerais, em ambos os casos
são os mesmos: requalificar espaços degradados devolvendo-os ao
uso coletivo, construindo-os “ex-novo” em Bauru, reconstruindo-
os, no Largo da Batata. Desenhos, num e noutro caso, específicos
e diferenciados: processos históricos diferenciados, linguagens
formais específicas, etc.

175
Adalberto RETTO JR.

6. Análise e projeto

Mapa do Estado de São Paulo desenhado por Cláudio


Gomes

Adalberto Retto Jr, Norma Constantino e Marta Enokibara:


Relembrando suas palestras e aulas, o senhor insiste na experiência
do espaço cotidiano para a compreensão da forma e da dinâmica
urbana, relatando uma experiência empírica e, às vezes, corporal
com a cidade. Qual o limite entre análise e projeto? Conte-nos sobre
a pesquisa desenvolvida pelo senhor na cidade de Diamantina.
José Cláudio Gomes: Este é o nó cego das teorias do século
passado. Análises e discursos analíticos primorosos que conduzem a
propostas sinistras e aterradoras... É o caso dos pós-modernos, entre
outros, Rossi, Portoghesi, Jencks, Krier, Moore, Graves, Venturi, etc.
e etc., onde a miopia e grosseira falta de sensibilidade e delicadeza
no trato da articulação análise/projeto leva-os a verdadeiras
monstruosidades projetuais. No entanto... a teoria é insuperável...
Ora, a articulação análise-projeto nunca é linear e direta como
supõem os epígonos da tipo-morfologia, cujos seguidores na
academia sempre se encarregam de reduzir, instrumentalizar,
empobrecer e apequenar a teoria. É que a análise deve se dar

176
Entre_vista com José Cláudio Gomes

sempre por aproximações progressivas ao projeto. Na verdade, todo


projeto já se acha inscrito nas entrelinhas da análise. Esta se inicia
pela observação atenta e cuidadosa do “desenho” do espaço real
(contexto), passa, a seguir, a revelar a “forma” até chegar à síntese
da “estrutura” básica do ambiente onde se inserirá o projeto. Este é
o momento analítico: revelar a estrutura histórica de uma situação
existente.
Ai começa o projeto: revelar a futura estrutura de uma situação
desejável. Entre o momento da análise e o momento do projeto, que
é o movimento que vai do existente ao desejável, situa-se a gênese
do projeto, instante mágico e raro, sempre delicado e problemático.
A, N e M: Sobre Diamantina?
JCG: O objetivo da pesquisa, em andamento, em Diamantina
(MG) é investigar a arquitetura de uma cidade setecentista do ciclo
do ouro em Minas gerais adotando como estudo de caso o antigo
Arraial do Tejuco, atual cidade Diamantina (MG). Para tanto, algumas
providências preliminares foram necessárias: um mergulho na
história e cultura do século XVIII do ciclo do ouro e do diamante
nas Minas gerais, concomitantemente com o corpo a corpo com o
espaço real da cidade.
O caso do Tejuco foi escolhido devido à sua excepcionalidade
histórica no quadro do ciclo do ouro em Minas Gerais mas,
“metodologicamente” poderia ter sido qualquer outro núcleo urbano
adotado para análise.
O objetivo do ensaio é verificar como se deu a constituição da
forma urbana, o vocabulário, a gramática e a sintaxe num contexto
de grande significado histórico e estético ainda milagrosamente
preservado. Enfim, trata-se de desvendar “da arquitetura da
cidade”: nem a arquitetura do edifício isolado nem a totalidade da
problemática urbana dos “urbanistas”.
Considerando o fato do espaço urbano do antigo Tejuco ainda se

177
Adalberto RETTO JR.

encontrar bastante bem preservado fisicamente mas, principalmente,


considerando a “qualidade” específica deste espaço urbano – mais
para o Rococó que para o Barroco Clássico – escolheu-se o Arraial
do Tejuco para análise.
Finalmente, o ensaio trata, especificamente, da arquitetura “da”
cidade através de uma leitura direta e sem intermediários do espaço,
como um “texto” urbano. Nem a história urbana, nem a arqueologia
urbana. Arquitetura, simplesmente.

Mapa de Bauru desenhado por Cláudio Gomes

178
Entre_vista com José Cláudio Gomes

7. Cidades do Oeste Paulista

Croquis do projeto “Bauru Centro Novo”

Adalberto Retto Jr, Norma Constantino e Marta Enokibara: Em


sua recente conferência no workshop organizado pelo grupo SITU
com a participação do urbanista italiano Bernardo Secchi, o senhor
propôs algumas chaves de leituras para as cidades “em traçado
hipodâmico“, que proliferaram com o avanço do cultivo do café
no oeste paulista e que foram alvo de estudos aprofundados do
geógrafo Pierre Monbeig (1984). Manfredo Tafuri (1998), analisando
a formação das cidades americanas, afirma que a própria natureza
da indústria ferroviária propicia, no entorno de cada estação,
um acelerado esquema de valorização das terras assegurando
excepcionais dividendos para o assentamento do “inteiro sistema”,
que se estenderia à escala regional. Assim, cada estação que se
transforma no núcleo de um colossal processo de usufruto de áreas
estabelece uma outra dinâmica na cidade por meio de um rígido
esquema espacial que, sem variação, é destinado a ser reproduzido,
tendo por base os parâmetros econômicos. Seguindo tal lógica, sua
forma de análise parte do esquema original de formação, ou melhor,
do sistema ferroviário, e estabelece alguns critérios que apesar de
ressaltar os pontos de homogeneidade não perde as particularidades

179
Adalberto RETTO JR.

de cada ponto. O senhor poderia discorrer sobre seus estudos sobre


estas cidades?
José Cláudio Gomes: A análise da cidade – de qualquer cidade
– Agudos, Diamantina, etc, ou fragmento de cidade, Largo da
batata, Bauru Centro Novo, etc, busca sempre, preliminarmente,
compreender o processo histórico do contexto regional mais amplo.
Neste momento comparecem as disciplinas da história regional; do
âmbito paisagístico mais amplo; das redes urbanas; da mobilidade e
infraestrutura do território. Neste momento há que se compreender
o processo histórico na sua formação territorial.
Este primeiro momento de análise é balizado por dois âmbitos
problemáticos: a) pela dimensão histórica; e b) pela dimensão
estrutural onde o objeto de análise é sempre matrizado pelo “espaço”.
Somente após esta abordagem histórica-estrutural à escala
territorial será possível compreender as escalas menores da cidade
(ou do fragmento em estudo) onde então comparecem as disciplinas
da história da cidade; a paisagem natural ou construída (o sítio); as
tipologias edificadas; os tecidos urbanos; os pontos fixos e as áreas
homogêneas; as permanências e transformações, etc.
Finalmente, operativamente a análise procede da dimensão mais
objetiva e concreta, que é o “desenho” do contexto em questão,
para o desvelamento da sua “forma” e revelação da sua “estrutura”
conceitual básica. Em resumo:
2 âmbitos problemáticos = história e estrutura
3 âmbitos escalares = região – o urbano – o fragmento
3 âmbitos operativos= o desenho – a forma- a estrutura.

180
Entre_vista com José Cláudio Gomes

8. Créditos

Foto de José Cláudio Gomes com Maquete de um


prédio do projeto “Bauru Centro Novo”

José Cláudio Gomes


Arquiteto pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo
e Urbanista pelo curso de Pós Graduação da Faculdade Nacional de
Arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em
Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP); foi professor do Departamento
de Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
de São Paulo, Professor do programa de Pós-Graduação no Curso de
Arquitetura da Escola de Engenharia de São Carlos USP, Professor do
Curso de Arquitetura e Urbanismo e Coordenador do Laboratório de
Desenho Urbano na Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação
– FAAC – UNESP – Campus de Bauru. Orienta projeto de pesquisa ao
nível de mestrado e doutorado. Trabalhou com o arquiteto Oswaldo
Bratke em 1955 e com o Arquiteto Paulo Mendes da Rocha em 1971,
nos projetos de renovação do Plateau Beauborg (Paris) Concurso
Internacional e na Grota do Bexiga. Relacionado ao urbanismo foi
o responsável, dentre outros trabalhos, pelo plano urbanístico de
Matão (estado de São Paulo) em 1964, Plano de Desenvolvimento Local
Integrado do Município de Garça, SP em 1971. Em 1972, fez o estudo de
181
Adalberto RETTO JR.

viabilidade técnica e econômica para a implantação de Comunidade


de Serviços e Turismo, em colaboração com a INTERCONSULT, SP.
Elaborou o Projeto do Novo Centro de Bauru entre os anos 1995 e
1996.
Adalberto da Silva Retto Júnior
Engenheiro agrônomo (1986) e arquiteto formado pela FAU-PUC-
Campinas (1991), doutor pela FAUUSP / Istituto Universitario di
Architettura di Venezia, professor da UNESP – Campus de Bauru e
coordenador do grupo de pesquisa SITU.
Norma Regina Truppel Constantino
Arquiteta e urbanista, formada pela Universidade Federal do
Paraná (1980). Trabalhou como arquiteta em Prefeituras municipais,
participando das discussões e desenvolvimento dos Planos Diretores
de Porto Velho-RO, Cuiabá-MT e Bauru-SP. Desde 1996, é professora
de Paisagismo no Curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade
de Arquitetura, Artes e Comunicações da UNESP, campus de Bauru.
Fez o Mestrado na UNESP (1995), onde apresentou a dissertação
“Sistema de Áreas Verdes para Bauru-SP”. É doutoranda pela FAUUSP
– Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo, em Estruturas Ambientais Urbanas, desenvolvendo a tese “A
Construção da Paisagem de Fundos de Vale: o caso de Bauru”.
Marta Enokibara
Arquiteta formada pela FAU-PUC-Campinas em 1991 e doutora
em Estruturas Ambientais Urbanas pela FAU-USP em 2003. Leciona
Paisagismo desde 1995 na Unesp/Campus de Bauru onde também é
membro de dois Grupos de Pesquisa: Grupo SITU (Grupo de Pesquisa
em Sistemas Integrados Territoriais e Urbanos) e GEAC (Grupo de
Estudos em Alagados Construídos). É membro da CIRA (Comissão
Interna de Uso Racional de Água) e coordenadora da sub-área de
Paisagismo no Grupo de Gestão Ambiental do Campus da Unesp-
Bauru.

182
Entre_vista com José Cláudio Gomes

Entrevista
A entrevista foi disponibilizada em Vitruvius em julho de 2005.

183
184
Entre_vista com Professor Turkienicz

1. Seminário sobre desenho urbano no Brasil -


SEDUR
Na introdução dos Anais do II SEDUR – Seminário sobre Desenho
Urbano no Brasil, realizado em 1986, o senhor afirma que
[...] os três volumes (dos seminários) transformaram-se em
precioso material didático utilizado nas escolas de arquitetura do
Brasil e têm servido de apoio técnico a arquitetos e planejadores
urbanos em tarefas nas mais diferentes instituições ligadas às
administrações municipal, estadual e federal. (TURKIENICZ, 1986,
p.5)
Desses encontros participaram docentes de muitas escolas
brasileiras, dando uma mostra da riqueza da produção bibliográfica
brasileira sobre a natureza dos espaços urbanos.
Qual a importância dos seminários SEDUR na consolidação do
Desenho Urbano no Brasil?
BT: Um dos principais objetivos das edições do SEDUR foi o de
aumentar a percepção sobre a importância do Projeto Urbano: ao
rastrear trabalhos, localizar seus autores e convidá-los, pessoalmente,
procuramos oportunizar que arquitetos de diferentes prefeituras
(muitas vezes de cidades de pequeno porte) pudessem expor projetos
urbanos com inequívoca qualidade. Na época, a ideia era estimular
também os arquitetos das prefeituras a vislumbrarem possibilidades
de projetos urbanos em meio às tarefas usuais de controle de
licenciamento. Mas não só isso: foi também a de demonstrar, para
estudantes de arquitetura e urbanismo, o potencial de qualificação do
espaço urbano que o trabalho técnico em prefeituras poderia ensejar.
Procuramos também o contato com professores e pesquisadores

185
Adalberto RETTO JR.

de diferentes faculdades e escolas de arquitetura e urbanismo,


rastreando-os não só pelos trabalhos publicados, mas também
pelas metodologias de ensino e aprendizagem do projeto urbano
e paisagismo disponíveis nas ementas e programas curriculares.
Dialogamos com escritórios de arquitetura que tinham projetos,
em seus acervos, inclusive de cidades novas, e solicitamos que os
descrevessem em seus conceitos principais e fundamentos teóricos.
Criamos articulações com seções regionais e locais do Instituto
de Arquitetos do Brasil – IAB e, através dessa rede de contatos,
conseguimos resgatar os projetos e convidar seus autores a
submeter trabalhos. Vale lembrar que, na época, não havia internet
disponível: os contatos eram feitos via telefone e correio. Várias
reuniões foram feitas nas sedes do IAB, em diferentes estados, para
divulgar o evento e debater suas pautas. Ao final do processo que
antecedeu o I SEDUR, tínhamos constituído uma verdadeira rede
de profissionais e acadêmicos voltada para a troca de informações
e conhecimentos sobre Desenho Urbano no Brasil. A edição do II
SEDUR foi consequência natural do sucesso da primeira edição: foram
650 participantes na primeira edição e 1350, na segunda. Mais do
que um Seminário para divulgação de ideias, os SEDUR constituíram
oportunidade pioneira de conscientização sobre possibilidades de
intervenção desenhada nas cidades brasileiras e latino-americanas.
Dentro do marco do I e II SEDUR, diversos profissionais e
pesquisadores contribuíram para a construção desses dois primeiros
eventos. Vários desses colegas continuaram suas exitosas trajetórias
e seus trabalhos inicialmente publicados em periódicos como
AU (Pini) e Revista Projeto e, mais recentemente, na Arquitextos
(Vitruvius), blogs, sites e outros meios de comunicação. Convém
nomear alguns dos principais colaboradores e incentivadores dos
primeiros SEDUR: Alfredo Gastal (CNPq), Maurício Nogueira Batista
(UnB/ CNPq ), Vicente Del Rio (UFRJ), Lélia Vasconcellos (UFRJ),
Staël Alvarenga (UFRJ), Silvio Soares Macedo (USP) e Carlos Nelson

186
Entre_vista com Professor Turkienicz

Ferreira dos Santos ( IBAM) . Nas Comissões Organizadoras, Suely


Mara Vaz Guimarães de Araújo, Maria Silvia Lorenzetti e Maurício
Malta (coeditor dos Anais do II SEDUR) trabalharam ombro a ombro,
desde a concepção até os últimos detalhes de logística e editoração.
Na FAU-UnB, valiosos colaboradores do I e do II SEDUR foram os
colegas Jaime G Almeida, Maria Elaine Kohlsdorf e Gunter Kohlsdorf.
Deve-se salientar o papel fundamental de duas editoras (Projeto/
Vicente Wissenbach e Pini/ Mário Pini), publicando os anais dos
dois primeiros eventos. Vicente e Mário, cada um a seu tempo,
acreditaram na importância do projeto e se constituíram em
entusiasmados apoiadores do evento. A seriedade e profissionalismo
desses dois editores brasileiros possibilitou que os anais das duas
edições do SEDUR fossem entregues, aos participantes dos dois
eventos, rigorosamente dentro do prazo previsto, ou seja, nos dias de
inauguração dos eventos. Considerando que, na década de 80, não
tínhamos as facilidades de comunicação hoje disponíveis (recebemos
os trabalhos e ilustrações impressos em papel, menos de 45 dias antes
do evento), o trabalho dessas duas editoras para entregar as duas
publicações, no prazo previsto, foi realmente notável. Nas suas duas
posteriores e derradeiras edições, III e IV SEDUR, de cuja comissão
organizadora não fiz parte, a articulação da rede acima descrita pode
ter-se rompido, talvez por isso, ocasionando a descontinuidade dos
seminários.
A importância dos SEDUR pode ser medida por algumas
evidências. Após o SEDUR de 1986, o CNPq passou a incorporar o
termo “Desenho Urbano” como subárea da Arquitetura e Urbanismo;
até então não existiam referências produzidas no país (e, quiçá, na
América Latina) sobre o tema; os anais dos SEDUR I e II passaram a
fazer parte de prateleiras de quase todas as bibliotecas de escolas de
arquitetura da América Latina e Caribe; em 1986, concebi, coordenei
e a Finep apoiou o projeto Dimensões Morfológicas do Processo de
Urbanização, com o equivalente, a US$100,000.00 (cem mil dólares),

187
Adalberto RETTO JR.

provavelmente a maior cifra até então investida em pesquisa sobre


impactos de fatores ambientais e antrópicos no meio intraurbano no
País.
O projeto, mais tarde conhecido pela sigla DIMPU, foi baseado
numa das ideias centrais dos SEDUR: reunir evidências sobre como
diferentes aspectos (sociais, econômicos, históricos, ambientais
entre outros) interagem no espaço urbano, em diferentes escalas,
produzindo diferentes tipos de impacto. O DIMPU continuou a
ser desenvolvido, depois de minha mudança para a Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, sob a coordenação de Frederico R. B.
Holanda e seus resultados foram documentados no “Ensaio sobre o
Desempenho Morfológico dos Lugares” (Kohlsdorf e Kohlsdorf, 2017).
Recentemente (34 anos depois do II SEDUR) a abordagem integrada
proposta pelo DIMPU se fez presente, conceitualmente, na oficina
“Quadra do Futuro”, coordenada pelos professores Gabriela Celani
(Unicamp) e Carlos Vaz (UFSC), numa clara sinalização de que novas
sementes procuram germinar em terreno até então pouco fértil.
Apesar das importantes iniciativas relatadas, não se pode afirmar
que o Desenho Urbano seja, no Brasil, área de conhecimento
e prática profissional consolidada: falta aumentar tanto sua
relevância na academia, com professores capacitados e diretrizes
curriculares específicas, quanto a percepção de sua importância por
administradores municipais e empreendedores urbanos. O aumento
da relevância e da percepção são proporcionais ao conhecimento da
sociedade sobre a natureza dos espaços urbanos, seu papel e suas
interações com os diferentes aspectos da vida urbana como saúde,
economia, cultura, segurança, saneamento e mobilidade. O Estado
brasileiro, nas dimensões federativa, estaduais e municipais, ainda
pode estar bastante distante de atingir tal percepção.

188
Entre_vista com Professor Turkienicz

2. Desenho Urbano, Morfologia Urbana,


Preservação, Assentamentos Espontãneos,
Cidades Novas
A estrutura dos anais dos seminários SEDUR demonstra que, nos
anos 1980, iniciava-se uma discussão sobre os novos paradigmas
e dimensões de conhecimento que deveriam fazer parte das
metodologias e conteúdos de ensino das escolas de arquitetura
do país. Atravessando os estudos reunidos nos livros, constata-se
uma profusão de temas, programas e diversas escalas. Os textos
apresentados não demonstram posições definitivas, mas apontam
orientações para futuros debates. O ensino do projeto urbano é
recente e antigo, ao mesmo tempo, e alguns recortes ainda não
se esgotaram nem mesmo com relação a conteúdos, tampouco a
abordagens de ensino.
Qual o percurso do “Desenho Urbano” no âmbito dos programas
das escolas de arquitetura e urbanismo?
BT: Hoje, o ensino e a aprendizagem do Projeto Urbano,
embora incipiente, é mais disseminado do que na década de 1980.
O documento da Área Arquitetura, Urbanismo e Design (AU+D)
da Capes, gestão 2007-2010, quando fui coordenador, descreve o
quadro da pesquisa em AU+D relacionando-o às linhas de pesquisa
e currículo dos cursos de graduação em Arquitetura e Urbanismo (e
Design). O quadro da graduação em arquitetura e urbanismo, sob o
ponto de vista do ensino e aprendizagem era (e ainda é) desolador:
menos de 12% do total dos conteúdos são voltados para o urbanismo
e, destes 12%, somente 2/3 dos conteúdos são voltados para o
ensino do projeto urbano. Falta, nas diretrizes de ensino emanadas
pelo MEC, previsão de carga horária para o ensino das tecnologias
e da representação da cidade (como existem para a edificação).
Nossos estudantes continuam saindo desses cursos de graduação
com o título de Arquiteto e Urbanista quando, na realidade, recebem

189
Adalberto RETTO JR.

educação voltada para o projeto da edificação, mas ainda insuficiente


para analisar e projetar cidades.
Hoje, ainda são raros os cursos de pós-graduação (especialização,
mestrado e doutorado) na área de urbanismo. As linhas de pesquisa e
áreas de concentração da maioria dos cursos de pós-graduação em
AU abordam, principalmente, temas relativos à História e Teoria da
Arquitetura e do Urbanismo. O espaço urbano, em sua complexidade,
é tratado pela área de Planejamento Urbano cujas áreas e linhas de
pesquisa são, predominantemente, focadas em aspectos políticos,
sociais e econômicos do planejamento urbano e, apenas, tangenciam
o Projeto Urbano e as tecnologias envolvidas nesse tipo de projeto.
Existem boas exceções entre as instituições do Brasil, mas o quadro
ainda parece ser este, passados mais de 10 anos da conclusão do
Documento de Área 2007-2010. Infelizmente, a CAPES deixou
de atualizar os dados nos documentos subsequentes, perdendo
as condições de monitorar a evolução de um quadro que poderia
ajudar a demonstrar a relativa distância que nos separa de integrar o
desenho dos espaços urbanos com as diferentes dimensões da vida
social, política e econômica no país.
Encaro, com desapontamento, a descontinuidade no provimento
de dados e informações sobre a pesquisa em urbanismo pela CAPES.
Tal desatualização faz com que não tenhamos adequadas condições
para agir com eficácia e rapidez sobre os fatores que limitam a
capacitação de profissionais em diferentes setores de planejamento
urbano e habitacional do Brasil. Sem dúvida, um grande desafio
para os atuais representantes de Área, na Capes e no CNPq, é o
de direcionar boa parte dos recursos investidos na educação de
arquitetos e urbanistas para melhorar, no curto e no médio prazos,
a qualidade do projeto e da gestão dos espaços urbanos brasileiros.
Deve partir, em primeiro lugar, da análise da correlação entre a
demanda determinada pelos problemas urgentes a serem resolvidos
no País, como o da habitação de interesse social e da expansão urbana.

190
Entre_vista com Professor Turkienicz

Se, na época dos SEDUR, vivíamos intensa migração do meio rural


para as cidades, hoje existe tendência de estabilização num patamar
ao redor de 85% de população urbana. Se, na época, as Cidades
Novas constituíram base para a expansão da fronteira agrícola e
exploração de recursos minerais e hídricos do país, hoje há uma
estrutura razoavelmente estruturada de cidades para dar alicerce
a essas atividades econômicas. Mesmo faltando infraestruturas de
apoio logístico, os assentamentos humanos já estão gravados no
território, ainda que muitos de forma precária. Essa precariedade
deve ser considerada, hoje, o tema principal a ser tratado pela ciência
urbanística em nosso continente.
Um dos fatores a receber aporte imediato é a expansão
desproporcional do perímetro urbano em relação ao aumento
demográfico: é mais “fácil” crescer para “fora” do que crescer
para “dentro”. Nossas cidades, cada vez mais dispersas, acabam
por desperdiçar a oferta de infraestruturas, aumentam distâncias
entre moradia e trabalho, comprometem áreas importantes para a
reprodução de serviços ecossistêmicos e, finalmente, não alcançam
densidades capazes de estimular atividades importantes para a
vitalidade da economia e da cultura local. Pode-se afirmar que a
morfologia da grande maioria das mais de 5.500 cidades brasileiras
é dispersa e, como consequência, onera as finanças municipais com
gastos de manutenção e operação além de encarecer o provimento
de infraestruturas necessárias para a vida comunitária.
O investimento em educação de planejadores urbanos para que
contribuam para o adensamento racional das estruturas urbanas
instaladas é, no meu entender, um dos principais desafios a serem
enfrentados pelo Estado brasileiro, talvez o principal desafio da
educação em arquitetura e urbanismo, hoje, no País. Nenhum outro
curso de graduação tem diretrizes curriculares tão próximas de
oferecer alternativas de capacitação profissional para a solução dos
problemas urbanos e habitacionais quanto os cursos de arquitetura e

191
Adalberto RETTO JR.

urbanismo. Seria um erro não explorar, estruturalmente, o potencial


das centenas de cursos de graduação distribuídos no território
nacional para contribuir, decisivamente, para a solução desses
problemas. Cursos de arquitetura do exterior já identificaram a
demanda do Brasil e apostam na educação a distância para supri-la.
Foi, recentemente, o caso da TU Delft, através do curso “Rethink the
City: New Approaches to Global and Local Urban Challenges.”

3. Desenho Urbano e Prática Profissional


O senhor conseguiria relembrar ações, personagens e projetos
que serviram para sedimentar o Desenho Urbano como prática
específica do arquiteto no Brasil?
BT: A prática do projeto urbano está na origem do urbanismo,
como disciplina. Os cursos de arquitetura exploraram a tradição
artística presente na história do urbanismo, porém deixaram de lado
sua herança técnica. Se revisarmos a documentação sobre as obras
realizadas por Pereira Passos no Rio de Janeiro e por Prestes Maia em
São Paulo veremos engenheiros associando arte e técnica. As escolas
de engenharia abandonaram há muito tempo a arte e as escolas de
arquitetura não investiram suficientemente no fundamento técnico
do urbanismo: inexistem disciplinas de representação gráfica voltadas
para a escala urbana como também são escassos os conhecimentos
técnicos sobre o funcionamento de estruturas e infraestruturas
urbanas, hoje ministrados em cursos de arquitetura e urbanismo.
O Desenho Urbano emerge, no Brasil, nesse vazio disciplinar,
onde é necessário associar a educação para o projeto da edificação
com a educação para o projeto da cidade, esta última exigindo
conhecimentos técnicos específicos diferentes dos exigidos para o
projeto do edifício. Em vários países, parte dos atributos artísticos do
projeto urbanístico haviam sido transferidos da área da engenharia
para a da arquitetura através dos cursos de Arquitetura Paisagística

192
Entre_vista com Professor Turkienicz

(Landscape Architecture). No Brasil, Miranda Magnoli, na FAUUSP,


estruturou um departamento voltado para a aprendizagem do
projeto de arquitetura na escala urbana. É, talvez, o primeiro passo
estruturado para a implantação de um currículo voltado para o projeto
urbano, associando estudos sobre a morfologia dos espaços urbanos,
botânica e geologia. Infelizmente a base curricular da Arquitetura
Paisagística não logrou interagir suficientemente com a área de
Projeto Arquitetônico, criando vetor para a difusão do Desenho
Urbano no Brasil. De qualquer maneira, no campo acadêmico, Miranda
Magnoli logrou fecundar uma área de intervenção urbana que tem
em Rosa Grena Kliass, no campo profissional, seu expoente máximo.
Contemporânea de Miranda, Rosa é responsável por significativos
projetos urbanísticos como, por exemplo, o do Vale do Anhangabaú,
em São Paulo. Outros personagens devem ser citados como: Índio da
Costa (Orla Rio de Janeiro), Sérgio Magalhães (Niterói), Paulo Chaves
Fernandes (Belém), Fausto Nilo Costa Jr (Dragão Fortaleza), Programa
Favela Bairro (Carlos Nelson/Sérgio Magalhães), Revitalização do
Centro Rio de Janeiro, Porto Maravilha, Corredor Cultural (Augusto
Ivan de Freitas Pinheiro), Hector Vigliecca (Pedra Branca) e diferentes
projetos em bairros e regiões de São Paulo/Operação Urbana
Consorciada (OUC).
Saliento o papel pioneiro de Vicente Del Rio e de Silvio Soares
Macedo como principais ativistas no papel de esclarecer a
importância do Desenho Urbano para a qualidade da vida nas
cidades brasileiras. Seus livros, cursos e publicações serviram de
inspiração e apoio técnico para que muitos arquitetos, trabalhando
em escritórios e prefeituras, pudessem projetar espaços mais
agradáveis em diferentes cidades brasileiras. Silvio Soares Macedo,
como líder do grupo Quapá, documentou exemplares importantes
de projetos urbanos (praças, parques e áreas urbanas) no Brasil. Foi
sucedido por Fabio Mariz Gonçalves, de notável contribuição ao atual
Plano Diretor da cidade de São Paulo. Mais recentemente, Renato T.
de Saboya (UFSC) e Carlos Leite (FAU Mackenzie) sistematicamente

193
Adalberto RETTO JR.

divulgam estratégias de intervenção urbana, no contexto de Planos


Diretores, em diferentes municípios brasileiros. O trabalho de Leite,
apoiado por sua experiência profissional, vem se constituindo em
importante referência para prefeituras de todo o Brasil.

4. Pesquisa e Desenho Urbano


Uma das premissas do Desenho Urbano é a pesquisa sobre a
cidade existente. Como pode-se notar na bibliografia da época, a
universidade teve um papel fundamental no desenvolvimento de
teorias e metodologias.
Desde quando o desenho urbano se consolidou como objeto de
pesquisa no Brasil, e qual é o papel dos laboratórios nesse contexto?
É possível ter um “olhar científico” sobre a cidade?
BT: Na realidade, os Anais do SEDUR converteram-se, na época,
num importante meio de divulgação da pesquisa e do olhar científico
sobre a cidade. Depois do advento dos SEDUR, bolsas e auxílios
para projetos de pesquisa oferecidos pelo CNPq, e a metodologia
de avaliação dos cursos brasileiros de pós-graduação pela CAPES,
acabaram por criar estímulos importantes não só para a produção de
conhecimento, mas, também para sua divulgação. Alguns cursos de
pós-graduação abriram espaço em periódicos e editoras passaram a
se interessar pelo tema.
Eu não diria que o Desenho Urbano tenha se consolidado como
objeto de pesquisa no Brasil. Como já comentado, em decorrência
do reduzido investimento em pesquisa sobre a cidade, existem
ainda relativamente poucos pesquisadores e bolsistas de iniciação
científica envolvidos com o tema, se compararmos com o total da
área de arquitetura e urbanismo. A Revista Morfologia Urbana marca
um passo importante para a divulgação da pesquisa sobre o desenho
urbano nos países lusófonos. Desde o ano passado, seu editorial
está nas mãos de três brasileiros, Renato T. de Saboya, Júlio C. B.

194
Entre_vista com Professor Turkienicz

Vargas (UFRGS) e Vinicius M. Netto (UFF). Seu último número aborda


temas importantes e atuais, como a relação entre o desenvolvimento
tecnológico e a pesquisa na área do urbanismo. Creio que a divulgação
digital da pesquisa ajudará a superar dificuldades financeiras que
acabam por constituir fator importante para retardar o surgimento
de periódicos especializados.

5. Desenho Urbano e Ensinamento


A bibliografia sobre Desenho Urbano demonstra que o que estava
em jogo era explorar a especificidade do ensino do projeto urbano
com o objetivo de reorganizá-lo e reabilitá-lo, ensino que, da mesma
forma que a cidade em si, estava em completa transformação e
não correspondia mais às disposições e pedagogias vigentes. Era
outra maneira de dizer que o projeto seria sempre um laço entre
conhecimentos híbridos e práticas para ultrapassar a falta de
conhecimento compartilhado entre as disciplinas, aproximar-se do
mundo profissional e recolocar-se em um contexto mais amplo.
Você acha que pode-se falar em diferentes escolas, como
metodologias, de Desenho Urbano no Brasil?
BT: Não creio que existam escolas ou metodologias consolidadas
de Desenho Urbano no Brasil, até porque o Projeto Urbano, tradução
mais adequada para o “Urban Design”, exige uma complexa interação
entre diferentes atributos do espaço urbano. Esses atributos vão
desde o conforto ambiental, consumo energético, drenagem urbana,
até sistemas de mobilidade, percepção e uso dos espaços. Existem,
sim, “descendentes” (ou “siblings”) de linhas de pesquisa voltadas
para cada um destes e de outros atributos específicos não nomeados
do espaço urbano.
Dentre linhas que, através de lideranças, geraram descendentes,
destaco a Sintaxe Espacial (Frederico Holanda (UnB), Rômulo Krafta
(UFRGS) e Luiz Eirado Amorim (UFPE); Conforto Ambiental (Fernando

195
Adalberto RETTO JR.

O Ruttkay Pereira (UFSC), Denise Duarte (FAUUSP), Eleonora


Saad de Assis (UFMG) e Leonardo Bittencourt (UFAL); Paisagem
Urbana (Silvio Soares Macedo, USP); Percepção Ambiental (Maria
Elaine Kohlsdorf) e Projeto Generativo (Gabriela Celani, Unicamp);
Tecnologias Geoespaciais (Ana Mourão, UFMG), Arivaldo Amorim e
Gilberto Corso (UFBA).
Boa parte dessas linhas utiliza a modelagem urbana como
estratégia para analisar o impacto de atributos específicos sobre o
objeto cidade. O projeto de pesquisa Dimensões Morfológicas do
Processo de Urbanização (op. cit.) acabou gerando um Grupo de
Pesquisa do CNPq (DIMPU-UnB), coordenado pelo Prof. Frederico
Holanda. Em sua origem, o grupo tinha a ambição de estruturar
metodologias de Projeto Urbano e capacitou, talvez, o maior número
de pesquisadores e produziu o maior número de estudos no Brasil
sobre a relação entre aspectos sociais e culturais e a forma da cidade.
Tenho confiança que os descendentes de Holanda, Kohlsdorf e
demais pesquisadores pioneiros citados entenderão a importância
de desenvolver formas de interação entre as linhas de pesquisa acima
arroladas (e tantas outras não arroladas), associação fundamental
para subsidiar o projeto urbano.

6. Desenho Urbano e Estratégias Políticas


O Projeto Urbano é, ao mesmo tempo, conhecimento prático,
assunto técnico, de desenho, de representação, de economia etc.
Como inserir a questão das estratégias políticas e seu tratamento no
ensino do projeto urbano?
BT: A questão passa, em primeiro lugar, por uma diretriz emanada
pelo MEC: inexiste, tanto quanto estou informado, qualquer
orientação do MEC nesse sentido. Acho que se trata de uma questão
estratégica no nível federal e envolve uma definição fundamental do
Estado com relação ao papel que as cidades desempenham, tanto na
dimensão econômica como na ambiental. Ao contrário de um projeto
196
Entre_vista com Professor Turkienicz

de edificação, que tem orçamento e uma equipe a construí-la num


prazo curto de tempo, a cidade se constrói em etapas.
O percurso de uma cidade testemunha (e, muitas vezes, sobrevive
a) diferentes cenários políticos. É o caso, por exemplo, das Cidades
Fascistas (criadas por Mussolini) da região do Agro Pontino, na
Itália, administradas por partidos comunistas, no pós-guerra. Essas
cidades demonstram que a vida no espaço urbano tem mais a ver
com as possibilidades oferecidas por sua configuração do que com
a ideologia dos seus criadores. Seus arquitetos buscaram enaltecer
a figura do Duce, oferecendo à praça principal dessas cidades os
discursos do ditador e, ao mesmo tempo, criaram um local que hoje
serve para o encontro e lazer de seus moradores.
Se, para simplificar, comparamos duas estratégias políticas: uma
que procura limitar encontros ao acaso entre cidadãos e outra que
procura estimular a interface sem controles, estudos demonstram
que a primeira estratégia favorece um controle vertical sobre os
indivíduos enquanto a outra dificulta tal controle. Existem cidades
(como Brasília, Milton Keynes na Inglaterra e Tensta, na periferia de
Estocolmo, Suécia) onde o projeto urbano, embora precedido pelo
discurso da integração social, uma vez construído, contribuiu para
separar grupos sociais ou setores da sociedade.
Assim como as cidades italianas do Agro Pontino, a configuração
da maioria das nossas cidades facilita a mistura de grupos sociais e
isso constitui um patrimônio cultural que, a exemplo do patrimônio
natural, deve ser preservado. A morfologia urbana da maioria dos
países europeus foi profundamente alterada depois da II Guerra
Mundial. A opção pelo desenho urbano atomizado gerou um “passivo
cultural” que impacta negativamente a coesão social. Muitos países
testemunharam violentos protestos, territorialmente localizados,
porque separaram demasiadamente seus grupos étnicos e sociais: os
casos de Brixton (1985), ao sul Londres, e dos subúrbios de Paris, em
2005, constituíram exemplos desse fenômeno.

197
Adalberto RETTO JR.

Preocupados com estas pequenas “insurreições”, muitos países


passaram a acelerar processos de rompimento da clivagem social
estimulada por segregação espacial isto é, procuraram desenvolver
áreas urbanas onde fosse mais difícil a criação de guetos sociais
apoiados por correspondências entre espaço e grupo étnico-social.
Nesse caso enquadram-se, por exemplo, Dinamarca, Holanda e
Suécia que instauraram políticas de Estado com o objetivo de tornar
suas grandes cidades socialmente mais coesas, atraindo famílias de
descendentes de imigrantes e imigrantes para suas áreas centrais,
habitadas predominantemente por classe média, população “nativa”
ou ainda, como é o caso da Dinamarca e da Inglaterra, instaurando
políticas de estímulo para que a classe média “nativa” viesse a se
instalar em áreas predominantemente habitadas por descendentes
de imigrantes e imigrantes.
Em ambos os casos, o Desenho Urbano foi protagonista na
oferta de uma estrutura espacial de organização do uso do solo,
apoiada por inequívoca qualidade arquitetônica das edificações,
que estimulasse a convivência no espaço público e a integração
não só com equipamentos de proximidade (centros comunitários,
bares, restaurantes, escolas, comércio) mas, também, com grandes
equipamentos que atraíssem a presença de moradores de outras
áreas da cidade e, inclusive de turistas.
O projeto urbano oferece, também, a oportunidade para desenhar
interfaces entre o ambiente construído e o ambiente natural que
favoreçam a preservação dos serviços ecossistêmicos oferecidos
pelo solo, mananciais hídricos, flora e fauna. Uma relação integrada
entre ambiente construído e ambiente natural pode trazer grandes
vantagens tanto para a diminuição dos impactos advindos da
ocupação antrópica como a poluição atmosférica, a contaminação
do solo e a produção de ilhas de calor. A combinação de tecnologias
e conhecimentos científicos recentes, “embarcados” no projeto
urbano, vem tendo como efeito a diminuição dos custos de operação

198
Entre_vista com Professor Turkienicz

e manutenção de infraestruturas urbanas, além de oferecer maior


sustentabilidade e resiliência para as diferentes cidades ao redor de
um planeta, demograficamente, cada vez mais urbano.
Preocupados com o impacto crescente da ocupação antrópica
sobre o ambiente natural, os países europeus também estabeleceram
metas para serem cumpridas ainda na presente década e que
envolvem não só a gradual substituição de combustíveis fosseis
nos diferentes modais de transporte, como também a utilização de
estratégias de conservação de energia apoiada por bonificações e
tecnologias sustentáveis de produção de eletricidade, de calor e de
resfriamento.
A gestão das cidades vem sendo facilitada pela crescente difusão
de tecnologias de informação que facilitam a comunicação entre
gestores de serviços urbanos e a comunidade (crowd sourcing) e
viabilizam o monitoramento, em tempo real, através de sensores
ubíquos e de redes neurais convolucionais (CNN/ Convolutional
Neural Networks), das variações de estado tanto das infraestruturas
como da qualidade atmosférica, sonora, hídrica e dos fluxos de
mobilidade urbana (Kominos, 2015).
A adoção recente de dados originados em sistemas de telefonia
para o monitoramento e controle da pandemia mostrou o enorme
potencial de interação das tecnologias da informação com o território
urbano, através da conexão entre o sinal telefônico e a geolocalização
desse sinal. Mais e mais projetos urbanos passaram a ser debatidos
e até mesmo financiados através de plataformas digitais dedicadas à
descrição, participação comunitária, ao incentivo e apoio a projetos
urbanos. Modelos digitais de desempenho ambiental, movidos por
sofisticadíssimos algoritmos, conseguem analisar dados obtidos no
espaço urbano e nas edificações e comunicar para leigos, de forma
bastante simplificada e visual, complexos mecanismos de alteração
do ambiente em que as pessoas vivem e circulam.

199
Adalberto RETTO JR.

Cada vez mais, dados ambientais que escapavam da percepção


dos indivíduos passam a ser capturados, analisados, traduzidos e
recebidos, numa linguagem simples e direta, em computadores
pessoais e dispositivos móveis de comunicação como os smartphones.
Mais do que nunca, a percepção ambiental dos indivíduos está sendo
educada pela informação instantânea oferecida por diferentes
aplicativos. (Peters; Peters, 2018), (Cairns;Tunas, 2017), (Offenhuber;
Ratti, 2014).
A oferta de “realidade ampliada”, somada à capacidade de
comunicação transespacial das redes sociais, aparentemente,
poderia diminuir o papel do território na sociedade contemporânea?
Acredito justamente no contrário: acredito que a intervenção sobre
o espaço urbano tem poderoso papel a desempenhar não só para
aumentar a qualidade ambiental das nossas cidades como também
para aumentar os níveis de coesão social entre diferentes indivíduos.
A autonomia individual para receber e enviar dados e informações
pode separar, por afinidade ideológica, membros de uma sociedade
e contribuir para gerar polarizações muitas vezes belicosas; por
outro lado, o território urbano potencializa a interface de diferentes
indivíduos e estimula a gentileza e as relações sem fronteiras
ideológicas previamente demarcadas.
Nesse sentido, entendo que o desenho do território pode
contribuir decisivamente para contrabalançar a tendência de
clivagem social estimulada pela telecomunicação. Usar o espaço
urbano como parte de estratégias de coesão social faz parte de
desígnio político. Visto que o controle social por sistemas autoritários
depende, fundamentalmente, do estabelecimento de relações
verticais de cima para baixo (a inteligência artificial vem permitindo
aumentar esse controle, por exemplo, através da identificação facial),
o tecido urbano pode constituir, de baixo para cima, excelente
suporte de ativação autônoma do tecido social. Tal ativação depende,
claramente, do desenho dos espaços urbanos. A inclusão do desenho

200
Entre_vista com Professor Turkienicz

dos espaços de uso público, na agenda de políticas de Estado voltadas


para a consolidação da democracia, torna-o poderoso coadjuvante
de temas que afetam o futuro da economia, do meio ambiente e da
liberdade de expressão.
A complexidade das relações sistêmicas que envolvem o tecido
urbano e o tecido social ultrapassam o currículo atual dos cursos
de Arquitetura e Urbanismo no país. Batty (2013) argumenta que
para compreender a natureza das cidades é necessário aprender a
modelar o espaço urbano e os sistemas que integram sua dinâmica
evolutiva. Essa percepção já faz parte das agendas de Estado de
países onde houve mudanças radicais com relação a políticas de
preservação do meio ambiente natural e de incentivo à interação
social entre diferentes estratos da população. Tal percepção, por
parte dos tomadores de decisão, foi fundamentada e sedimentada
décadas antes nas universidades e, principalmente, nos cursos de
arquitetura e urbanismo. Muitas das soluções adotadas em cidades
americanas e europeias, a partir do início do século, foram ensaiadas
nas pranchetas de estudantes de escolas de arquitetura duas décadas
antes, apoiadas por evidências e teorias sobre o meio ambiente
natural e sobre o uso social do espaço. Penso que nossos cursos de
arquitetura e urbanismo não acompanharam essa evolução.
Se quisermos inserir a política ambiental, a política social e a
política econômica no ensino do projeto urbano, faz-se necessário
estabelecer pontes da ciência ambiental, da ciência política e
da ciência econômica com a configuração das nossas cidades.
A modelagem da forma urbana vis-à-vis essas três dimensões é
possível quando se oferece educação adequada para que cientistas
e profissionais possam, de maneira criativa, colaborar para a solução
dos problemas básicos do país, como saúde, educação, economia
e segurança. Os tomadores de decisão, no nível federal, precisam
perceber que grande parte dos problemas do Brasil fazem parte de
contextos municipais. Quando se derem conta da importância do

201
Adalberto RETTO JR.

território urbano para o futuro da Nação, construiremos projetos


pedagógicos onde a educação do urbanista será consistente com as
demandas de desenvolvimento social, econômico e cultural do país.

7. Plano Diretor e Desenho Urbano


Ao ler os anais desses Seminários nota-se a introdução de
conhecimentos progressivos e a consolidação de laços entre pesquisa,
ação e desenvolvimento urbano, alimentando-se da experimentação,
da abordagem crítica e de pedagogias específicas.
Qual a relação entre Plano Diretor e Desenho Urbano no Brasil?
BT: Lentamente avançamos na percepção de que o projeto
urbano se estrutura a partir da escala intermediária entre o lote e a
cidade, escala que deveria estar ser inserida na legislação brasileira
no âmbito do Estatuto da Cidade.
A propósito, está em tramitação no Senado (atualmente,
na Comissão de Constituição e Justiça – CCJ, aguardando
encaminhamento para aprovação) o Projeto de Lei 5.680/2019. De
autoria do senador Antônio Anastasia (PSD -MG), o projeto corrige
a lacuna do Estatuto da Cidade e define quatro tipos de planos: o
Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUI), o Plano Diretor,
o Plano de Urbanização e o Plano de Pormenor. Mesmo não estando
disponível, na rede mundial de computadores, para escrutínio
público, é possível deduzir sua lógica: o PDUI terá abrangência
metropolitana, enquanto o Plano Diretor estabelecerá o modelo
territorial da cidade. O Plano de Urbanização deve abrigar as
regras de parcelamento do solo (Lei 6766), voltadas para as áreas de
expansão urbana, enquanto os Planos de Pormenor, denominação de
origem portuguesa, descreve o marco regulatório para intervenções
em áreas específicas da cidade.
A confirmar a dedução, com os Planos de Pormenor, sairemos da
exclusiva dependência das “manchas coloridas” dos Planos Diretores,

202
Entre_vista com Professor Turkienicz

como documento legal disponível para controlar o desenho do


espaço público intraurbano de nossas mais de 5.500 cidades. Em
1986, na introdução dos Anais do II SEDUR, sugeri que a estrutura de
planejamento urbano brasileira desse esse importante passo. Através
do Projeto de Lei do Senador Anastasia, podemos estar próximos de
alcançar tal objetivo.
Importante também é pontuar que o marco regulatório, em
tramitação no Senado Federal, vem sendo elaborado ao mesmo tempo
em que são divulgados, pela ONU, os 17 Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS), a Nova Agenda Urbana e o City Prosperity Index
(CPI), uma série de indicadores de qualidade urbana. Enquanto os
ODS (principalmente o ODS de número 11) e a Nova Agenda Urbana
caracterizam objetivos de qualificação urbanística, o CPI volta-se
para a mensuração desses objetivos. Considero o CPI um marco na
evolução do urbanismo na medida em que consolida a ideia de que
fatores da qualidade da vida urbana possam vir a ser mensuráveis ao
longo do processo de desenvolvimento urbano. Nossa tradição mais
recente é a da utilização de índices prescritivos (e não de indicadores)
de qualidade espacial urbana.
Nos últimos 40 anos talvez nenhum livro tenha sido mais utilizado
no país, na elaboração de Planos Diretores e no ensino do urbanismo
em cursos de graduação, do que o “Curso de Planejamento Municipal
Integrado” de Célson Ferrari (1977). Baseado na experiência anglo-
saxônica do pós-guerra, o autor compilou diferentes parâmetros
diretamente aplicáveis ao dimensionamento dos diferentes usos de
solo urbano. Ferrari elaborou um raro “compêndio” ou referência de
índices urbanísticos que acabaram por se tornar bastante úteis na
elaboração de Planos Diretores de Desenvolvimento Municipal no
Brasil.
Sempre me interroguei sobre como, no Brasil, elaboramos Planos
Diretores. Diferentes publicações oficiais, desde a NBR 12.267 a
Normas para elaboração de Plano Diretor, de 1992, procuraram

203
Adalberto RETTO JR.

descrever os conteúdos e procedimentos que devem acompanhar


a elaboração dos Planos Diretores. Depois da institucionalização
do Estatuto da Cidade e da criação do, hoje extinto, Ministério das
Cidades, houve mais preocupação do Estado em criar conteúdos
voltados para o processo de elaboração dos Planos Diretores (como
o da participação comunitária) do que em fundamentar os conteúdos
técnicos das fases de diagnóstico, propostas e monitoramento da
aplicação dos Planos. Os parâmetros e a metodologia para elaboração
de índices urbanísticos oferecidos por Ferrari, mais de quarenta
anos depois da publicação da sua primeira edição, ainda não foram
amplamente revisados ou estruturalmente discutidos na academia
ou nos órgãos de planejamento urbano.
No Brasil ainda não superamos o pressuposto básico de que,
para fazer um diagnóstico judicioso de uma cidade, é necessário
contar com um cadastro multifinalitário. Ou seja, ainda convivemos
com estruturas municipais que sequer recolhem, categorizam e
classificam dados necessários à fase de diagnóstico dos Planos
Diretores. Essa indigência administrativa tem sua origem na escassez
de recursos humanos capazes de selecionar os dados necessários
ao acompanhamento da evolução de uma cidade; essas origens
podem estar na tradição prescritiva de nossos Planos Diretores,
pois ao utilizarem “receitas” prontas e inflexíveis, nossos técnicos
municipais, na sua quase totalidade, tornam-se temerosos de
infringir regras cujo fundamento teórico desconhecem, tornando-se
impotentes para mudar o rumo de estratégias de planejamento mal
definidas. Citando a apresentação dos Anais II SEDUR:
[...] Tais dificuldades na formação profissional afetam diretamente
a qualidade e o tipo de controle escolhido pelos técnicos
das administrações municipais. Egressos de escolas onde a
arquitetura da cidade não é um segmento importante da matéria
a ser apreendida, estes técnicos veem-se confrontados com a
difícil tarefa de manter sob controle formas urbanas com a ajuda
de uma legislação não suficientemente discutida, analisada e

204
Entre_vista com Professor Turkienicz

testada em seus períodos de formação profissional. O resultado


deste processo não é alentador e tem um duplo efeito. Em
primeiro lugar resulta na burocratização dos arquitetos que
trabalham nas administrações municipais. Educados para criar,
estes arquitetos convertem-se, rapidamente, em profissionais
censores de outros profissionais. Tal fossilização se dá pela falta
de instrumental de conhecimentos básicos sobre a estrutura
física da cidade que estão controlando. Assim, estes técnicos
passam a proceder como meros aplicadores ou guardiães de leis
que desconhecem em suas origens e, o que talvez seja ainda mais
grave, em seus efeitos ou consequências. (TURKIENICZ, 1986, p.5)

Os fundamentos teóricos básicos existentes por trás dos índices


dos Planos Diretores brasileiros pressupõem, num exercício
teleológico, uma cidade idealizada e completa. Densidades, relações
de afastamento e proximidade entre edificações, alturas e usos do solo
acabam por constituir pressupostos que não se materializam: a falta
de correspondência à oferta de solo urbanizado e à efetiva demanda
demográfica torna as prescrições incapazes de preencher o modelo
idealizado. Planos Diretores esfarelam sua dimensão estratégica em
narrativas que não encontram, nos Planos Reguladores, formas de
implementação de diretrizes e objetivos. Limitam-se à expectativa
de que os edifícios construídos sobre os lotes privados construirão,
ao longo do tempo, o nexo das estratégias urbanas.
Entre as imprecisas narrativas dos Planos Estratégicos e
engessadas regras de conformidade das alturas, recuos, afastamentos
e potenciais construtivos dos lotes privados, evolui o tempo e a
cidade se configura sem controle sobre a qualidade dos seus espaços,
resultados episódicos da atividade assíncrona, verdadeira cacofonia
de formas construídas raramente harmônicas. Na falta de controle,
diferentes áreas urbanas se desenvolvem de forma desigual perante
importantes atributos como acesso ao comércio, a serviços e a
equipamentos básicos de lazer e cultura, à segurança dos espaços
públicos e à fruição da paisagem urbana.

205
Adalberto RETTO JR.

Berghauser Pont & Haupt (2010) mostram que o controle sobre o


desempenho das áreas urbanas depende de complexa combinação
entre espaços abertos e edificações em diferentes escalas (lote,
quadra, vizinhança imediata e bairro). A adição assíncrona de
edificações sobre lotes torna a configuração dos espaços urbanos,
tanto públicos quanto privados, imprevisível. Esta imprevisibilidade
poderia ser, minimamente, controlada através da utilização de
indicadores de qualidade ambiental envolvendo o ambiente natural
e o ambiente construído. A utilização de indicadores de qualidade
urbana nos Planos Diretores depende de modelos capazes de medir
a intensidade que se apresentam os diferentes fatores que conferem
qualidade à estrutura urbana.
Como dados urbanos não são sistematicamente coletados no
Brasil, indicadores de qualidades do crescimento constituem-se em
ferramentas de suporte ao planejamento urbano sem possibilidade
de implementação, tornando as correções de rumo difíceis de serem
executadas durante o curso de um Plano Diretor.
Planos prescritivos, como são os brasileiros, não utilizam
indicadores para apoiar correções de rumo, porém são “atualizados” a
cada dez anos. Geralmente, atualizações dos Planos Diretores tratam
de aspectos específicos como a ampliação do perímetro urbano e a
alteração de alturas e densidades previstas no Plano em vigor. Pouco
interferem na lógica estrutural da relação tempo/organização do
território e no controle sobre a densidade de ocupação dos espaços,
vital para o uso racional das infraestruturas e dos equipamentos
sociais. Raramente são utilizadas estratégias de intervenção urbana
concertadas como se constitui o projeto Porto Maravilha, no Rio de
Janeiro.
Embora previstas no Estatuto da Cidade, as Operações Urbanas
Consorciadas – OUC, são pouco utilizadas no Brasil, provavelmente,
devido ao seu intrincado tecido administrativo e jurídico. Em sua
lógica, as OUC constituem dinâmica síncrona bastante diferente

206
Entre_vista com Professor Turkienicz

da dos Planos Diretores. Programas e projetos de intervenção


urbana constituem o elo de ligação entre a dimensão estratégica e
a reguladora dos Planos Diretores, hoje praticamente inexistente.
Caminhamos em círculos porque nossos Planos Diretores não
estimulam nem conferem segurança jurídica para a intervenção
na escala intermediária, entre o lote e a cidade como um todo. Em
síntese, falta base técnica e legal para o Projeto Urbano o que, se
supõe, será superado com a aprovação da legislação dos Planos de
Pormenor.
Com a inserção dos Planos de Pormenor, esperamos que
atributos relativos à qualidade do espaço público sejam finalmente
incorporados ao vocabulário do sistema de planejamento urbano
brasileiro como atribuição de Estado. Indicadores de qualidade
de ocupação do espaço urbano, como o CPI, poderão, a partir daí,
ser utilizados para medir e comparar o crescimento diferencial
de áreas urbanas e oferecer clara descrição das desigualdades
entre os moradores de uma cidade perante diferentes variáveis
como coesão social, qualidade do ambiente natural e qualidade do
ambiente construído. Hoje, as desigualdades existentes nas cidades
brasileiras são medidas através de indicadores de renda e de acesso
a infraestruturas de saúde, educação e de mobilidade urbana. São
importantes, sem dúvida, mas limitados para avaliar a complexidade
da cidade e das relações entre seus moradores.
Na perspectiva do ODS 11 e da Nova Agenda Urbana, os
nossos próximos Planos Diretores devem caracterizar e valorar
adequadamente os serviços ecossistêmicos oferecidos pelo
ambiente natural e pela morfologia do ambiente construído. Em vez
de simples e exclusivamente garantir que o potencial construtivo de
uma região da cidade seja distribuído para cada lote de acordo com
suas dimensões, instrumentos urbanísticos deverão ser utilizados
para garantir que serviços ecossistêmicos e a utilização do espaço
público sejam considerados essenciais para o desenvolvimento social

207
Adalberto RETTO JR.

e econômico.
Para tanto será necessário aferir, constantemente, o desempenho
equilibrado dos diferentes territórios urbanos de uma mesma cidade.
Deveremos mudar de paradigma: em vez do planejamento urbano
baseado em regras de conformidade para os edifícios construídos
em lotes privados, deveremos migrar para um planejamento urbano
baseado no desempenho de vizinhanças e de bairros medidos por
indicadores internacionalmente reconhecidos.
Com essas aferições sistemáticas e a publicação de seus resultados,
para cada comunidade urbana, será finalmente possível fazer com
que a participação comunitária prevista pelo Estatuto da Cidade
possa ser mais informada. Com informação, poderiam debater,
com dados confiáveis, a qualidade dos seus espaços de convivência
e a contribuição de cada território para a qualificação ambiental
e o desenvolvimento econômico da cidade. Em lugar de somente
máximos, estabelecidos através de regras aplicadas à construção de
edifícios, deverão ser estabelecidos mínimos de desempenho para
cada região da cidade.
As regras de conformidade, hoje rigidamente aplicadas a edifícios
construídos em lotes privados, serão tão flexíveis quanto necessárias
para privilegiar as estratégias ambientais que correspondam ao
espaço entre os edifícios. Edifícios serão projetados para poupar
energia (diminuindo a pegada ecológica), oferecerem espaços para
atividades econômicas necessárias (contribuindo para aumentar as
oportunidades de emprego, renda e desenvolvimento econômico).
Tom Verebes (2014) postula que estamos diante de novos
paradigmas de planejamento urbano: devido a permanentes
incertezas e cenários econômicos instáveis é preciso planejar
não somente para o crescimento, mas também para a retração
demográfica. Transformações abruptas, como foi o caso de Detroit,
nos Estados Unidos, ensinam que alterações da ocupação de cidades

208
Entre_vista com Professor Turkienicz

requerem estratégias que ultrapassem a mera regulação do que


se pode ou não construir. Soluções para problemas complexos,
originados em mudanças urbanas, devem ser facilitadas e não
dificultadas por mecanismos de planejamento. Para Verebes (2014),
as cidades do século 21 vão se beneficiar ao adotarem a ideia de uma
complexidade inteligível, em vez de persistirem abraçadas à noção
de que regras inflexíveis de conformidade previnem o aparente caos
do crescimento urbano. A ideia de que basta regular a intervenção
sobre o lote individual para prevenir o caos pode ser responsável por
estimular o caos pela incapacidade de reagir ao imprevisível. Escalas
intermediárias de planejamento, entre o lote e a cidade, exigem
que o espaço público e as estratégias de contribuição ambiental
sejam caracterizadas em conjuntos urbanos. Compensações, trocas
e negociações só são possíveis quando as dimensões do projeto
abrangem um quarteirão ou vários quarteirões. A imprevisibilidade
da ocupação da grande escala urbana pode ser equilibrada pela
escala intermediária: Planos de Pormenor, se forem sabiamente
estruturados, poderão criar as condições jurídicas e legais para que
o Desenho Urbano saia do limbo e adquira força de instrumento de
qualificação do espaço urbano brasileiro.

8. Cidade Compacta X Cidade Dispersa


Da cidade consolidada e da metrópole do século XX, passamos
à “cidade difusa”, “cidade-arquipélago”, “hipercidade” ou ainda à
“metápolis”. E todas essas novas denominações são acompanhadas
de novos modos de vida e condições. Da mesma forma, o ambiente –
a própria natureza – mudou e, pior ainda, fala-se mais de “sobrevida”
do que de vida. Assim sendo, não apenas abrem-se novos terrenos de
conhecimentos, mas também novos métodos de “projetos” que devem
ser aplicados para controlar os monstros urbanos e “construir” o
espaço. Essa mudança no relacionamento entre universo construído
e natureza renova fundamentalmente o projeto. Essa maneira

209
Adalberto RETTO JR.

de pensar e fazer arquitetura, mas também cidade, não é uma


simples contribuição tecnológica, mas aciona novos procedimentos
arquitetônicos, suscetíveis de fazer evoluir o ato arquitetônico e suas
convenções culturais.
Quais seriam então esses novos procedimentos e qual nova ética
a ser estabelecida em matéria de concepção? Como preencher o
hiato entre concepção e construção, e como o desenvolvimento
sustentável poderia concretizar-se na prática?
BT: Para Verebes (2014), enfrentamos quatro grandes revoluções:
- a do Neolítico, que resultou na abundância de alimentos
propiciada pela fixação demográfica em pequenos núcleos e utilização
de ferramentas que aumentaram a produtividade no campo;
- a Revolução Urbana que instrumentaliza o comércio através de
uma rede de caminhos e cria aglomerações nos cruzamentos desses
caminhos;
- a Revolução Industrial dos séculos 18 e 19 que amplia e acelera,
através dos sistemas de transporte, a transferência de produtos e
pessoas, aumentando exponencialmente a concentração de pessoas
e de tecnologias de produção em escala em grandes centros urbanos;
e, finalmente,
- a Revolução da Informação que transforma radicalmente a
percepção do espaço territorial como essencial para a economia e a
socialização.
O tempo, como intervalo necessário para a comunicação entre
grupos e indivíduos fisicamente distantes, colapsa e o espaço
encolhe; com as facilidades de transporte ao alcance de indivíduos,
aumenta a independência e a espontaneidade dos movimentos.
Na era da comunicação global se diluem as fronteiras territoriais
que caracterizam as nações e aumentam os fluxos transnacionais
entre cidades: a ubiquidade da informação, o desaparecimento das

210
Entre_vista com Professor Turkienicz

fronteiras físicas entre municípios separados administrativamente e


o policentrismo das estruturas urbanas vêm transformando o planeta
numa rede de espaços interconectados e urbanizados, sensivelmente
vulneráveis às macro transformações econômicas.
Para Verebes (2014), as recentes mudanças escapam à capacidade
preditiva das atuais técnicas de planejamento urbano. As novas forças
industriais, baseadas em redes de suprimento globais envolvendo
transporte, armazenamento e distribuição de mercadorias,
estabeleceram um fluxo de mercadorias aliado a um fluxo de
pessoas de cidades para cidades que tornam a rede de cidades mais
importantes que as nações, ou seja, acabam por desnacionalizar o
espaço urbano. Centralidades adquiridas ao longo de séculos ou
décadas podem ser rapidamente comprometidas pela alteração
desses fluxos transnacionais e infinita conectividade. As megalópoles
podem estar abrindo espaço a uma rede de lugares onde o equilíbrio
se aproxima do metabolismo dos processos naturais, ensejando uma
aproximação maior entre indústria e agricultura, entre ocupação
antrópica e adequada valoração dos serviços ecossistêmicos.
A instabilidade das estruturas territoriais deve envolver, cada vez
mais, a mudança nos procedimentos de planejamento: em vez de
conceber uma estrutura territorial fixa e criar estratégias para atingi-
la, trata-se de conceber uma estrutura generativa capaz de reproduzir
princípios de desempenho em espaços modulares, tanto agregáveis
quanto autônomos. O intervalo entre concepção e construção deve
ser gradualmente diluído, em que as transformações do projeto
constituam parte de sua estrutura generativa, simultaneidade
paralela à capacidade de adaptação da construção a demandas
emergentes. Ou seja, o projeto urbano ou mesmo da edificação “se
descobre” como parte da construção do edifício ou da cidade.
À aleatoriedade que pode surgir desses processos contrapõem-se
os critérios e indicadores a serem perseguidos, através de modelos
de desempenho utilizados individualmente ou correlacionados entre

211
Adalberto RETTO JR.

si. Estruturas generativas precisam ser estabelecidas através de


modelos de forma construída, como guias de “propósitos”, ou seja,
de desígnio sobre o comportamento esperado. Creio ser este um
caminho interessante a ser perseguido rumo ao desenvolvimento
urbano sustentável.
Estamos, há aproximadamente vinte anos, trabalhando nessa
direção: o projeto BEST ( Built Environment Simulation Tools),
financiado pela CAPES e pelo CNPq, criou a Plataforma Computacional
“CityZoom”, capaz de apoiar simulações de impacto de normativas
presentes em Planos Diretores, bem como oferecer suporte a Planos
e Projetos Urbanos baseados em critérios de desempenho. Através
do NTU – Núcleo de Tecnologia Urbana da UFRGSconseguimos
conjugar pesquisa e desenvolvimento com a aplicação de tecnologias
digitais em Planos Diretores, Planos Habitacionais e Masterplans.
CityZoom é uma plataforma computacional voltada para a
representação de formas urbanas e simulação de seus impactos
sobre o ambiente natural e antrópico. Como uma representação da
cidade, a Plataforma CityZoom é estruturada por objetos primários
que constituem os elementos básicos do modelo urbano: o solo
e seus acidentes topográficos, quadras, lotes, edifícios e vias de
circulação de pedestres e veículos. Completam a estrutura de
objetos primários cursos d’agua e áreas verdes. Esses objetos estão
hierarquicamente relacionados – quadras abrigam lotes que abrigam
edifícios internamente subdivididos em múltiplas células internas.
Agrupamentos de quadras, por sua vez, constituem tecidos que,
num conjunto, acabam por definir unidades urbanas geralmente
identificadas como bairros ou distritos.
Visto que cidades diariamente alteram sua forma, é ineficaz
representá-la como um edifício: se edifícios permanecem bastante
tempo inalterados, a adição, a subtração ou a alteração de edificações
no território urbano provocam substanciais efeitos sobre o meio
ambiente. A melhor maneira de abordar a representação de uma

212
Entre_vista com Professor Turkienicz

cidade parte do reconhecimento de que sua estrutura é mutável e


que sua representação deve envolver uma estrutura que capture a
natureza dessas modificações. Tal estrutura caracteriza-se por um
conjunto de objetos hierarquicamente relacionados, todos passíveis
de alterações.
CityZoom é um programa computacional orientado ao objeto:
a cada alteração da forma correspondem mudanças de estado que
afetam toda cadeia hierárquica de objetos que constituem o modelo da
cidade. Dentro dessas perspectivas, o modelo de cidade do CityZoom
pode dar suporte na avaliação de impactos ambientais, colaborando
na mensuração de recíproca influência entre infraestruturas,
ambiente construído e ambiente natural.
É enquadrada no paradigma CIM (City Information Modeling),
interagindo com outros modelos digitais de representação da cidade
cujas características envolvam cadeias hierárquicas de objetos,
permitindo a importação e a exportação de arquivos de e para esses
modelos. Voltada para a simulação de impactos, a City Zoom oferece
visualização intuitiva diretamente sobre o modelo de cidade: através
de diferentes modos de representação, associa dados quantitativos
a cores, tonalidades e texturas sobrepostas a este modelo. Pode ser
programada para, automaticamente, representar dinamicamente as
transformações da cidade. Dado que a programação está aberta para
receber dados, via web, de qualquer dispositivo móvel ou fixo (como
sensores ubíquos), é possível associar e representar dados originados
nesses dispositivos, em tempo real, ao modelo de cidade.
A Plataforma tem várias aplicações: no campo da Saúde Coletiva,
dada a notória influência do ambiente construído sobre o meio
antrópico, é possível oferecer dados que deem suporte a diferentes
análises epidemiológicas sobre problemas respiratórios, variações
hormonais como as que afetam o ciclo circadiano.
A plataforma CityZoom também oferece suporte na análise de

213
Adalberto RETTO JR.

fatores que contribuem para o aumento ou mitigação da pegada


ecológica. Tais fatores estão, principalmente, associados ao
potencial de geração autônoma (mapas solares) e de conservação de
energia das edificações, à disponibilidade de iluminação natural nos
interiores das edificações (relacionando-a ao consumo de energia
elétrica), à maior ou menor oferta de áreas de infiltração das águas
pluviais.
A Preservação do Patrimônio Histórico envolve a utilização
de modelos de visibilidade para a simulação de impactos visuais
de conjuntos de edificações em percursos urbanos. Análises de
Ambiência Urbana e de Valor de Mídias Externas apoiados pelo
modelo de Visibilidade dessa plataforma CityZoom podem ser feitas
em 3D e 4D.
Professores de projeto de arquitetura podem utilizar o software
para contextualizar as recíprocas influências ambientais entre
edifício e entorno imediato; professores de projeto urbano e de
planejamento urbano podem utilizar CityZoom no apoio aos estudos
da morfologia, densidade demográfica e construtiva, infraestrutura,
tipologias edilícias, insolação, iluminação natural, percepção espacial,
fatores de sustentabilidade e de resiliência urbana; alunos dos cursos
de arquitetura e urbanismo terão, ao alcance de suas pranchetas de
projeto, a possibilidade de teste de seus projetos de arquitetura e
urbanismo frente a diferentes condicionantes antrópicos e ambientais.
A partir dessas análises, o estudante poderá criar alterações dentro
do modelo do CityZoom ou, alternativamente, modelar alterações
noutro programa computacional (BIM, Rhinoceros/ Grasshoper)
e importar o objeto modelado externamente para o ambiente
CityZoom.
No âmbito técnico-institucional, CityZoom converte-se em
poderosa ferramenta para conceber e testar Normativas Urbanísticas
(regras de conformidade) presentes em Planos Reguladores de Planos
Diretores Municipais. Adicionalmente, pode ser utilizado na avaliação

214
Entre_vista com Professor Turkienicz

do desempenho de projetos arquitetônicos e/ou urbanísticos


submetidos a licenciamento em órgãos de planejamento municipais:
projetos podem ser, de forma automática, avaliados e sua aprovação
ponderada vis-à-vis diretrizes urbanísticas dadas.
Escritórios de arquitetura e de planejamento urbano podem utilizar
o software durante o processo de concepção e desenvolvimento
de projetos arquitetônicos. Arquitetos podem armazenar regras
de conformidade de diferentes cidades e aplicá-las em estudos de
viabilidade a serem submetidos em fases iniciais de projeto. Projetos
urbanísticos podem utilizar o CityZoom em paralelo a Sistemas de
Informações Geográficas para correlacionar dados demográficos,
socioeconômicos e ambientais com diferentes alternativas de
parcelamento do solo e de tipologias edilícias.
Além disso, CityZoom permite agregar e desagregar dados de
intensidade de uso do solo (coeficientes de aproveitamento), níveis
de ocupação do solo (coeficientes de ocupação ou taxas de ocupação)
em quadras, bairros e macrozonas urbanas. CityZoom gera gráficos
e histogramas do desempenho de diferentes alternativas tipo-
morfológicas simuladas em 3D sobre qualquer topografia de terreno.
Campos específicos do conhecimento, como Saúde Coletiva,
Engenharias (Hidrologia, Geotecnia, Tráfego e Transportes),
Economia Urbana, Administração Pública, Ecologia Urbana, entre
outros, poderão utilizar dados do modelo de cidade CityZoom na
análise do impacto que a variação do tecido urbano pode decretar
sobre o comportamento do meio antrópico e natural, bem como para
monitorar “ad-hoc” tal comportamento oferecendo, assim, proxies
para alternativas de soluções que dependam da oferta de dados
agregados ou desagregados do espaço construído, das diferentes
formas e da distribuição e intensidade de ocupação de espaços e
atividades.
Ferramentas computacionais como o CityZoom podem apoiar

215
Adalberto RETTO JR.

a necessária flexibilização das rígidas regras de conformidade dos


nossos Planos Diretores. Ao permitir avaliações de desempenho,
podem dar segurança aos técnicos municipais para abandonar a
simetria na aplicação dos índices urbanísticos, aumentar a ousadia
na elaboração de projetos urbanos e colaborar para a viabilização
de intervenções estratégicas e necessárias ao desenvolvimento
municipal.

9. Universidade e Produção de Conhecimento


Gostaria que o senhor respondesse à sua própria pergunta, feita
em 1986 ao final da apresentação dos Anais do II SEDUR:
Até quando um país de dimensões continentais como o nosso
poderá dar-se ao luxo de prescindir da universidade e dos profissionais
que trabalham nas autarquias e instituições, se quiser organizar o
conhecimento do espaço urbano e aplicar esse conhecimento no
planejamento e desenho de nossas cidades? (TURKIENICZ, 1986, p. 6)
BT: As limitações da grade curricular da graduação, no que diz
respeito à aprendizagem do urbanismo, e a indigência na capacitação
de recursos humanos na pós-graduação levam-nos a afirmar, com
razoável convicção, que o Brasil está mal preparado para enfrentar
os desafios impostos pela concentração urbana de sua população.
Já alcançamos os 85% de população urbana e não temos qualquer
estratégia de preparo profissional e científico para trabalhar no
controle e na qualificação do desenvolvimento de nossas cidades.
Instituições brasileiras responsáveis pela definição das prioridades
do País em ciência e Tecnologia não consideraram prioritária a
produção de conhecimento sobre edifícios e cidades nos dois últimos
Planos Nacionais de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico
do Brasil (PNDCT). Enquanto a importância do conhecimento
sobre arquitetura e urbanismo ficar relegada a um segundo plano,
nas estratégias de desenvolvimento social e econômico do País,

216
Entre_vista com Professor Turkienicz

dificilmente conseguiremos dar respostas adequadas para os


problemas complexos que advêm de conflitos como, por exemplo,
entre a concentração demográfica e a preservação ambiental.
Como atividade que envolve, necessariamente, a conjugação de
esforços públicos e privados, o Desenho Urbano pode contribuir
decisivamente para diminuir as deseconomias do estado brasileiro
como gastos com energia, tempo, infraestruturas de saneamento,
mobilidade, saúde e educação. Basta que para isso, o País decida
investir recursos na geração de conhecimento e educação de
profissionais na área do urbanismo. A ocupação descontrolada do
território urbano traz graves prejuízos no médio e no longo prazo.
Essa conta já está sendo cobrada dos munícipes na forma de oferta
deficitária de serviços e da falta de competitividade de nossas
cidades em relação a cidades do exterior: empresas preferem se
estabelecer em ambientes urbanos que favoreçam a produtividade e
criem vínculos duradouros com seus trabalhadores através da oferta
de serviços e ambientes seguros e agradáveis.
Tanto a qualificação das estruturas urbanas existentes quanto
a criação de novos bairros e cidades dependerão da atenção
dos tomadores de decisão para o conhecimento urbanístico já
desenvolvido, no Brasil, nas universidades e autarquias municipais,
estaduais e federais. Se na década de 1980 foi possível reunir um
rico acervo de conhecimentos e experiências dispersas e estruturá-
las com um nexo, passados 30 anos acredito que esse acervo tenha
sido sensivelmente ampliado. Na época, diligentemente coletado
e organizado em anais, o fruto de uma rede de profissionais e
acadêmicos precisava ser colhido como, de fato, o foi na sequência
entre o I e o II SEDUR.
O acervo de hoje é ainda maior: falta a atenção dada na década de
1980 para sua importância. Mesmo disperso, o acervo de inteligência
e conhecimento traduzido em diversas experiências, teóricas e
práticas, de e sobre o Desenho Urbano no Brasil é gigantesco se

217
Adalberto RETTO JR.

comparado ao uso que dele se faz. Não difundi-lo ou explorá-lo em


benefício da sociedade brasileira é um verdadeiro desperdício. Creio
que a pergunta feita em 1986 permanece, ainda, sem uma resposta.

218
Entre_vista com Professor Turkienicz

219
220
Entre_vista com Prof. Dr. Rômulo Krafta1
Adalberto da Silva Retto Júnior2

1. Dos planos globais ao fragmento


Contando com a situação de fragmentação e perda da unidade
da cidade, com a pluralidade social e a necessidade de
afirmação dos diversos segmentos sociais, os planos globais,
ou integrais, que procuram abranger toda a cidade dentro de
modelos teóricos unitários, perdem crédito, e abrem espaço
para considerações mais particularizadas à cidade, que levam
em conta o estado de consolidação dos tecidos urbanos, os
vínculos concretos dos tempos da sociedade, a narrativa
cultural, o lugar urbano e suas especialidades. (Krafta, 1986, p.19).

1 Possui graduação em Arquitetura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul


(1973), mestrado em Urban Design - Oxford Brookes University (1982) e doutorado em Urban
Science - University of Cambridge (1992). Realizou estágio de pós-doutorado no Centre for Ad-
vanced Spatial Analysis - CASA do University College London e na Universidade Federal do Rio
de Janeiro - Prourb. Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, pesquisador 1C do CNPq, membro do comitê científico da SBPC- Soc. Brasileira Progresso
Ciência, consultor ad hoc da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior,
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Tem experiência na área
de Planejamento Urbano e Regional, com ênfase em Técnicas de Análise e Avaliação Urbana e
Regional, atuando principalmente nos seguintes temas: análise espacial urbana, modelos con-
figuracionais urbanos, configuracao espacial urbana, simulação da dinâmica espacial e dese-
nho urbano.
2 Adalberto da Silva Retto Júnior é professor na Universidade Estadual Pau-
lista – Unesp, é doutor (FAU USP e Departamento de História da Arquitetura e Urba-
nismo do Istituto Universitario di Architettura di Venezia – IAUV, 2003) e pós-dou-
tor (IAUV, 2007). Atual coordenador do curso internacional de especialização lato
sensu “Planejamento urbano e políticas públicas: urbanismo, paisagem, território”,
foi professor-pesquisador visitante no Master Erasmus Mundus da Universitè Pan-
théon Sorbonne Paris I (2011-2013).

221
Adalberto RETTO JR.

Desde os anos de 1980, data da citação acima que está contida


texto “Desenho urbano e regulamentação urbanística”, nos Anais do
II SEDUR - 1986, a resolução do “fragmento” perseguiu a construção
de métodos onde o mesmo coloca-se como uma oportunidade de
reflexão teórica sobre o que é a cidade e o que ela pode se tornar.
Pode-se traçar uma trajetória entre projeto do Fragmento e a
afirmação do Projeto Urbano no Brasil?
Nada de errado com o trecho citado, desde que considerado à luz
do zeitgeist da época, um pós-modernismo urbano pouco definido.
O que isso queria dizer: de um lado criticava os planos globais e mais
particularmente os regulamentos urbanísticos, que prescreviam
(ainda prescrevem) um futuro baseado em padrões e parâmetros
do passado. De outro, contrapunha um tipo de abordagem local,
porém associada a um padrão urbanístico que evolui. A crítica aos
regulamentos e planos diretores ainda é válida, na verdade nos
últimos anos ela tem se intensificado. A proposta alternativa é que
parece ter evoluído, e não necessariamente na direção de uma ‘teoria
do fragmento’, como sugeres, mas na dos sistemas complexos.
Enquanto o Urbanismo permaneceu mais ou menos estacionado
desde o ponto de vista teórico (coisas do tipo ‘cidade para pessoas’,
‘cidade sustentável’, etc. parecem apenas versões contemporâneas
de formulações passadas) a visão do urbano oferecida pela ciência
se desenvolveu enormemente. Nos anos 80 vivia-se um período
de descrença nos ‘grandes relatos’, nas palavras do Lyotard (1979),
incluída aí a descrença no planejamento urbano global e integrado. O
‘desenho das partes’, ou fragmentos, parecia, então uma boa ideia. O
progresso da ciência, entretanto, propiciou uma nova visão de mundo,
uma espécie de hipermodernismo (definição de Portugali (1999)), na
qual a cidade surge como um caso (magnífico) de auto-organização.
Fenômenos de auto-organização são explicados como um sistema
‘bottom-up’, quer dizer, baseados numa dinâmica envolvendo
muitos agentes e relações locais que, não obstante, culminam num

222
Entre_vista com Prof. Dr. Rômulo Krafta

macroestado estruturado. O ‘fragmento’, então, pode ser visto como


resultado de um processo bottom-up, local – portanto algo próprio
e legítimo do fenômeno urbano, corroborando e incorporando as
propostas pós-modernas. Mas os sistemas complexos não param
aí, claro, já que auto-organização inclui macroestados, ou seja,
estruturas globais emergentes.
O estado da arte, por assim dizer, da ciência da cidade abriga a
arte do fragmento, como uma das possíveis instâncias de produção
de-baixo-para-cima, assim como abriga outras, como ações
individuais (menor escala) e mesmo o peso do estado na definição de
grandes elementos (maior escala), mas não exclui uma forma global
resultante, mesmo que instável e mutante. Em termos de projeto,
esse novo paradigma pode ser descrito como a descoberta (descrição)
e proposição (narrativa) de processos de mudança (ao invés de
descrição e proposição de formas estáticas, como o projeto costuma
ser entendido). Leis, ou princípios de transformação do tecido urbano
são agora o objeto da pesquisa (Batty, 2017) e, diria, o desafio para o
projeto urbano, este, então, visto como um procedimento adaptativo
voltado a propiciar a transição de um estado (atual, momento 0) a
outros (possíveis, momentos n-1, n).

2. Escolas e estudos de morfologia urbana


Nas últimas décadas duas escolas de pensamento no campo da
morfologia urbana internacional assumiram grande relevo: uma ligada
ao mundo da pesquisa arquitetônica italiana e a outra à geografia
britânica, que mostraram-se surpreendentemente relacionadas e
complementares. Ambas identificaram ciclos de mutação temporal
e sua dimensão espacial; ambas demonstraram profundo interesse
em edifícios comuns e anônimos, pois constituem a base evolutiva
de qualquer processo de replicação cultural; ambas acreditaram na
análise cartográfica e na coleta de dados históricos e prestaram muita
atenção às diferentes escalas geográficas nas quais as diferentes

223
Adalberto RETTO JR.

formas construídas exigem que sejam analisadas, desde o edifício


único até toda a área urbana em seu contexto regional.
Como os estudos de morfologia urbana se concretizaram no
Brasil? Que referências internacionais foram importantes?
Com efeito, os morfólogos gostam de pensar em termos de
escolas – a italiana, pioneira, a francesa, a britânica, a americana,
uma maneira de sintetizar numa frase a origem, a base territorial, e,
quem sabe, os conceitos e métodos; nos ISUFs essas denominações
são usualmente utilizadas. Também é fato que, entre elas, mas não
apenas, a italiana e a britânica buscaram descrever o processo de
formação e mudança da forma urbana, a primeira formulando a
partir de classificação e evolução tipológica da forma construída e
a segunda a partir de morfogênese. Ambas são fundamentalmente
empírico-indutivas, isto é, desenvolvem seus procedimentos
descritivos a partir do exame casos específicos, buscando eventuais
generalizações. Abordagens desse tipo têm sido repetidas no Brasil,
embora aparentemente não de forma a constituir uma ‘escola
brasileira’, isto é, têm ocorrido discretamente, em algumas poucas
universidades, como UFMG, UFF e UFRJ.
Outras abordagens, não reconhecidas como ‘escolas’ têm,
entretanto, ganho notoriedade internacional e tido desenvolvimentos
notáveis no Brasil. Refiro-me principalmente a duas, uma que explora
as propriedades geométricas da forma urbana, seja desde o ponto de
vista da densidade, seja da gramática das formas. A outra baseia-se
no estudo de redes, através de instrumentação matemática (teoria
de grafos, análise de redes e modelagem de dinâmica espacial). Esta
última tem tido enorme impacto na cultura urbanística brasileira
principalmente em decorrência do trabalho de B. Hillier, desde
início da década de 80, no University College London. Hillier (1985)
(recentemente falecido) perseguiu uma linha de pesquisa muito
interessante e inovadora, batizada por ele como Sintaxe Espacial;
seu laboratório recebeu e formou muitos pesquisadores brasileiros

224
Entre_vista com Prof. Dr. Rômulo Krafta

da área de arquitetura, os quais, em muitas universidades brasileiras


reproduziram seus métodos e divulgaram suas teorias, a ponto de ser,
hoje, de longe a abordagem mais comumente praticada em pesquisa
sobre forma urbana no País.
Resumidamente, essa abordagem se caracteriza por: a) considerar
o espaço urbano a base do processo de interação social e influenciá-
lo de forma relevante. Sua peculiaridade é considerar como ‘espaço
urbano’ apenas o espaço público, aquele delimitado pelas formas
construídas (edificações e outras barreiras ao livre movimento); b)
considerar basicamente dois tipos de interação: uma chamada local,
que se materializaria na convivência entre moradores, em espaços
públicos comuns e próximos, e outra, chamada global, envolvendo
esses frequentadores locais e outros, estranhos a esses espaços
públicos, porém levados a eles por força de percursos mais extensos
e determinados pela rede viária; c) o espaço público comportaria,
em consequência, duas descrições simultâneas: uma local, definida
pela geometria detalhada dos lugares públicos, e outra mais
genérica, definida pelos grandes percursos. A primeira descrição,
denominada de mapa convexo, não parece ter chegado muito longe,
já da segunda, o mapa axial, resultou quase a totalidade do método
analítico da SE, do qual o conceito de acessibilidade foi fundamental.
Como se sabe, acessibilidade é uma medida de distância relativa que,
aplicada a um sistema de localizações e suas conexões, produz um
ranking dessas localizações, de acordo com o somatório, ou média
das distâncias de cada uma a todas as demais – uma típica medida
de hierarquia espacial. Na teoria, espaços ranqueados no topo da
hierarquia definida pela acessibilidade seriam mais integrados, quer
dizer, deteriam maior potencial de promover interação social entre
‘locais’ (moradores dos lugares) e ‘estranhos’ (pessoas presentes
nesses lugares por força de deslocamentos canalizados na rede
viária segundo um padrão de distribuição consistente com a medida
de acessibilidade). Ex-estudantes e seguidores de Hillier estão hoje
na maioria das escolas de arquitetura de universidades brasileiras,

225
Adalberto RETTO JR.

fazendo com que essa abordagem seja, em consequência, a mais


influente no estudo recente de morfologia urbana no Brasil.
O estudo da dinâmica espacial baseado em redes não se resume,
entretanto, à sintaxe espacial; suportado pelo arcabouço teórico e
metodológico da área de sistemas complexos, tem tido significativo
desenvolvimento, também no País. Sua relação fundamental com a
ciência da complexidade tem se dado pela Física, e mais recentemente
pela ciência das redes. Sistemas complexos, como já foi referido,
estuda sistemas em transformação, ou seja, processos de mudança
no qual está presente a geração de ordem (auto-organização). Os
exemplos mais notáveis dessas transposições de teorias e métodos da
física para o urbano são os casos de teoria da dissipação de Prigogine,
feita por Peter Allen (1997), que atualizou a teoria do lugar central,
demonstrando que o enunciado proposto por Christaller seria, na
verdade, um caso específico de uma teoria que engloba justamente
o processo de transformação das regiões. Outro exemplo notável é a
adaptação da teoria da Sinergética de Haken, feita por Portugali (1999),
produzindo um enunciado teórico capaz de explicar a formação de
padrões urbanos. Há ainda outros exemplos importantes, tais como
a adaptação da teoria da Criticalidade Auto-organizada de Bak (1996)
para inúmeras aplicações na sintetização de aspectos da evolução
urbana, como crescimento, distribuição da densidade ao longo do
tempo, relação dinâmica entre zonas de moradia e de serviços, uso
de modelos matemáticos para simular mudança urbana (Batty 2007)
e mesmo para reposicionar o planejamento e o desenho urbano (De
Roo & Silva 2010, Portugali & Stolk 2016, Bettencourt 2013).
Física Social, como está sendo denominada, tem atraído interesse
de uma variedade de cientistas, de diversas áreas e propiciado terreno
comum para o progresso de uma ciência urbana multidisciplinar,
dentro da qual a Morfologia Urbana não apenas está integrada, como
ocupa posição-chave na integração de diferentes abordagens.

226
Entre_vista com Prof. Dr. Rômulo Krafta

3. O fragmento como material de projeto


Como explicita seu artigo:
Em seguida é preciso admitir o Desenho Urbano como parte
integrante do processo, não apenas verificável na sua instância de
projeto, mas em instâncias múltiplas, onde o projeto é apenas uma
eventualidade, muitas vezes superado no uso pelo estudo que origina
um determinado conjunto de regulações, ou apenas contribui
para a formação da consciência pública a respeito da condição
ambiental. Finalmente à conservação urbana cabe se desfazer de
seus conteúdos de excepcionalidades e extemporaneidade para se
incorporar ao dia-a-dia do manejo urbanístico. (Krafta, 1986, p.20).

No Brasil, quando o fragmento transformou-se em material de


projeto?
Entendo que o lugar do Desenho Urbano no contexto do
planejamento urbano mais genérico foi suficientemente explicado
pelo Vicente del Rio (1990) e eu não teria nada a acrescentar, exceto,
talvez, no que se refere a possíveis redefinições de ‘fragmento’,
mais uma vez propiciado pela nova ciência urbana, a ver a seguir.
Urbanismo local, quer dizer, projetos de partes de cidade, sejam
novos, sejam requalificados, não é nada novo nem excepcional na
prática do urbanismo; o que talvez tenha mudado um pouco é a
conexão entre projetos de planos urbanos de ordenamento territorial
(planos diretores). Veja que a noção básica de um suposto sistema
de planejamento tem sido a) um conjunto de regras gerais de uso e
ocupação do solo (zoneamento e regime urbanístico), b) um sistema
de controle, a ser acionado toda vez que uma mudança urbana é
proposta, que verifica a obediência da proposta particular às diretrizes
gerais, e c) a definição de uma forma urbana genérica conforme com
os padrões estabelecidos. Esse processo, resumidamente sugerido
acima, tem ganho extensões e nuances, tais como estudos de
viabilidade urbanística, de desempenho, de impacto, etc. que, na sua
verificação local, podem eventualmente justificar a adaptação do

227
Adalberto RETTO JR.

ordenamento territorial geral ao caso particular, e não o usual vice-


versa.
Não obstante, tanto quanto posso ver, esse processo é ad hoc, quer
dizer, ocorre de maneira não sistemática e tende a ser considerado
como uma concessão excepcional. Isso é assim, na minha opinião,
devido ao fato de que o ordenamento territorial praticado aqui
pretende sintetizar na sua formulação o reconhecimento da
necessidade, a identificação das alternativas, a solução mais adequada
e a forma final que melhor a materializa. Essa síntese é praticada
tanto em territórios urbanos já existentes e consolidados, em outros
ainda em formação e outros ainda que poderão vir a ser urbanos um
dia, ou seja, pretende reconhecer necessidade ainda não existentes e
soluções a problemas futuros, algo virtualmente impossível. Melhor
seria operar num arcabouço voltado a definir princípios e indicadores
de desempenho e qualidade e regular o processo decisório a ser
operado na prática (sobre isso veja Alfasi & Portugali 2004). Nessa
perspectiva, a forma urbana não seria determinada a priori, por meio
de regras abstratas de uso e ocupação do solo, mas sim sintetizada,
seguindo princípios de qualidade e desempenho, no momento e na
circunstância de cada demanda concreta dos agentes sociais. Esse
é claramente uma situação em que o projeto teria um papel mais
determinante na condução do processo urbano.
A referência que fiz à possível redefinição do significado de
‘fragmento’ está relacionada à concepção de cidade enquanto sistema
complexo, quando então teria sua ordem gerada e constantemente
modificada a partir de baixo, da ação dos agentes sociais em
interações locais simultâneas. Essa visão contradiz a noção corrente
segundo a qual à cidade falta planejamento, que a cidade descreve
um crescimento desordenado salvo quando devidamente atrelada a
um sistema de planejamento de cima-para-baixo. Física Social diz
outra coisa, diz que à cidade sobra planejamento, que todo agente
planeja e implementa planos, e que o resultado disso é, grosso modo,

228
Entre_vista com Prof. Dr. Rômulo Krafta

ordem e não desordem. Nessa perspectiva, fragmento pode ser a


porção mínima da mudança urbana, resultado da ação individual
de cada agente. Como pode, obviamente, ser a totalidade virtual da
cidade, quando um projeto de transporte público, por exemplo, é
empreendido por uma ou mais autoridades públicas.

4. Teoria do Fragmento
A fragmentação que hoje, sem distinção de partes, caracteriza o
contexto urbano, é um fato para o qual um projeto que opera e se
baseia nele não pode ignorá-lo. Mas a centralidade da questão não
consiste em reconhecer o fragmento em si, mas restituir a partir do
projeto do fragmento (do mesmo) a “inteireza” perdida da cidade.
Em meados da década de 1980, há uma retomada de conceitos
centrais como pertencimento, contexto, identidade, que poderiam
compor uma teoria do fragmento sob a égide de uma única senha
“modificação “.
É possível encontrar os traços de uma possível “teoria do
fragmento” na sedimentação do corpo da disciplina do Projeto
Urbano no Brasil?
Acho que aquela ideia do Rowe&Koetter de uma cidade tipo
patchwork, uma colagem de utopias em miniatura não poderia ir
muito longe, como não foi. Igualmente, supor que tenha havido, em
algum momento uma teoria do fragmento me parece fora de medida,
aparte a própria Collage City, que está longe de ser uma teoria
de projeto. Pode-se dizer que contra uma possível teoria geral do
fragmento há a realidade inexorável da mudança urbana, que ronda
qualquer permanência no tecido urbano e, mais cedo ou mais tarde,
destrói os fragmentos, apenas para recriá-los com novos limites e
novas configurações. Hoje se cogita a possibilidade de um desenho
adaptativo (Batty 2017), cujo nome sugere justamente a busca, mais
do que uma teoria pronta, de uma maneira de lidar com a mudança,
assim como com a pluralidade de agentes.
229
Adalberto RETTO JR.

5. Desenho urbano x Planejamento urbano


“Construir no construído” tornou-se não somente uma prática
determinada por uma necessidade objetiva, mas por um imperativo
ético para os envolvidos no debate sobre Projeto Urbano.
O Desenho Urbano conseguiu ser interiorizado no processo de
planejamento urbano no Brasil? Qual a importância da criação do
Ministério das Cidades/ Estatuto da Cidade na sedimentação desse
processo?
No Brasil, em se tratando de relação entre planejamento normativo
e desenho urbano, se encontra quase tudo, incluído aí desde a
ausência de planos normativos, os planos normativos de gaveta,
os planos normativos rígidos imperativos, os planos normativos
flexíveis. Só não há (na extensão do meu conhecimento) planos
normativos adaptativos, ou seja, planos que busquem combinar, em
proporções legítimas, normas fixas e princípios de desenho.
Recentemente eu e colegas do Propur formulamos um Plano
Diretor Municipal para uma cidade de porte médio do RS que
buscava isso. Sua estrutura continha um mínimo de regras fixas –
a rigor apenas o coeficiente de aproveitamento era estabelecido,
num território dividido não em zonas, como tradicionalmente, mas
em faixas de densidade edilícia decrescente a partir de pontos de
culminância de centralidade. Todos os demais regulamentos foram
abolidos e em seu lugar se propôs um sistema de avaliação de
impactos (uma ampliação do que hoje existe no EdaC), composto de
indicadores de desempenho e qualidade espacial, métodos gerais
de sua verificação e um sistema de tomada de decisão envolvendo
poder público, promotores e usuários.
O Ministério das Cidades (que, parece, não existe mais) fez uma
aposta impossível, a de conciliar participação dos usuários da cidade
e o sistema de normas derivado da tradição de planos diretores
existente no país e do EdaC. Digo impossível porque essas duas

230
Entre_vista com Prof. Dr. Rômulo Krafta

coisas são opostas, uma se refere à possibilidade de elevar o cidadão


comum a um protagonismo, enquanto a outra faz o contrário, quer
dizer, elimina a possibilidade de haver decisão coletiva. Prova disso
é a situação crítica em que se encontram os conselhos municipais
de planejamento, frustrando as demandas populares por real poder
decisão, dado o conjunto de regras e parâmetros que as impedem.

6. Christopher Alexander
O tema do projeto urbano está no centro das atenções de uma
nova teoria do escrita por Christopher Alexander.
O texto “Alexander’s Theories Applied to Urban Design”, do qual
o senhor é um dos autores, é um claro resgate das teorias do autor
para o debate na cidade contemporânea. Algumas das propostas
do conhecido autor, destinadas a dar vida a projetos “vivos,
morfogenéticos e incrementais”, são testadas em um estudo em
várias cidades como Roma.
Os procedimentos e interpretações alexanderianos, com as
necessárias adaptações e simplificações, também podem ser
pensadas na realidade brasileira?
As formulações do Alexander são sempre controversas e incluem
uma boa dose de obscuridade e ambiguidade. No artigo citado acima
exploramos um texto de Alexander chamado Harmony Seeking
Computations (2005), no qual ele parece tentar vir a termos com a
teoria geral da complexidade, à sua maneira. Como já foi sugerido
anteriormente aqui, as diversas teorias da complexidade existentes
partem do pressuposto de haver formação de macro-ordem a
partir da interação de uma grande quantidade de agentes, dada
em nível local, quer dizer, uma população enorme de agentes, cada
um interagindo com apenas alguns outros, segundo protocolos
conhecidos; a simultaneidade dessas interações formaria uma teia
de tal forma intrincada que seria impossível antever sua configuração

231
Adalberto RETTO JR.

a cada momento, embora em todo momento haja emergência de


macroestados ordenados. Isso é observável em física, em química,
em biologia e, de forma menos clara e automática em sistemas
sociais tais como a cidade. A diferença destes em relação àqueles
seria justamente o fato de que os agentes sociais são inteligentes,
aprendem e buscam, de diferentes maneiras, aperfeiçoar suas
interações, visando resultados. Aqui poderia estar o ponto de
partida de Alexander: a ordem macro dos sistemas urbanos não
seria resultado de interações cegas entre agentes estúpidos, mas de
interações .... projetadas.
O problema é que, como seria de se esperar, Alexander não se
contenta em entender um processo desse tipo no âmbito dos sistemas
artificiais, mas também na natureza.... Para isso supõe a existência
de ordem (wholeness) em tudo; essa inteireza teria alguns atributos
próprios, quinze para ser mais preciso, algo na linha da sua já tão
conhecida linguagem de padrões. Assim, inteireza se manifestaria
tanto na natureza quanto nas criações humanas, reconhecíveis
mediante a identificação de pelo menos alguns desses quinze
atributos. Bem, a hipótese segundo a qual agentes sociais agem
intencionalmente não é difícil de ser aceita, ao contrário; entretanto
essa possibilidade (realidade?) não elimina pelo menos dois outros
aspectos relevantes da dinâmica dos sistemas complexos: a) ações
locais intencionais simultâneas porém independentes, sempre
ocorrem, quebrando a inteireza do resultado, e b) ordem ocorre não
apenas como resultado das ações locais intencionais dos agentes,
mas também globalmente (não intencional). Como se vê, o alcance
de Alexander vai nitidamente além dos problemas de projeto.

7. Didática e pesquisa em projeto urbano


Muitos ensinamentos são construídos com a preocupação de
formar profissionais, mas existem abordagens distintas, que apontam
para outras competências profissionais ou porque se concebe o papel

232
Entre_vista com Prof. Dr. Rômulo Krafta

da pesquisa de maneira diferente.


Para alguns autores, o espaço pedagógico não tem como objeto
ser um espaço de pesquisas, mas ele deve se informar e se beneficiar
das mesmas.
Como construir um ensinamento em Projeto Urbano que seja
operante e crítico, resultando em uma análise crítica do operacional?
Pesquisa, em ciência, destina-se a prover explanações para a
realidade, descreve o mundo tal qual ele é; projeto, em contrapartida,
destina-se a corrigir supostas imperfeições do mundo, narra o
mundo tal como ele deveria ser. São dois campos completamente
diversos, ciência e urbanismo. Urbanismo é uma arte que articula
diferentes conhecimentos para produzir um artefato, ou manufatura
dotada de características específicas que, como obra de arte, inclui
materiais e técnicas mas não se define apenas por eles. Interessa
aqui observar a interseção entre projeto urbano e ciência urbana,
mais particularmente a apropriação de conhecimento científico na
elaboração de projetos. Eu poria as coisas na seguinte perspectiva,
pensando nas possibilidades de a ciência urbana alimentar, de alguma
forma, a atividade projetual:
a) visão de mundo e entendimento do essencial da cidade –
como disse no início, projetos, sejam quais forem, são concebidos
no interior de uma cultura, que muda constantemente, mas, a
cada momento constitui um arcabouço de visões, valores, crenças,
doutrinas para as quais o conhecimento científico contribui em
grande parte. A noção essencial de cidade tem evoluído dentro
e em consonância com esse arcabouço geral, passando, apenas
lembrando as etapas mais recentes, pelo modernismo (visão de
mundo maquinista, mecanicista), pós-modernismo (visão de mundo
mais casual, conjuntural) e, supostamente, hoje, hiper-modernismo
(visão pela auto-organização) (Portugali, 1999).
b) insights sobre natureza e evolução das cidades – não seria

233
Adalberto RETTO JR.

surpreendente se, seguindo as diferentes visões de mundo – e de


cidade, tivéssemos diferentes noções sobre a natureza e a evolução
das cidades. Anos 60/70 foram a época na qual se acreditou que
a cidade se assemelharia a uma máquina, composta de muitas
diferentes partes, cada uma com uma forma e função específicas,
compondo um todo voltado a cumprir certos requerimentos; os
modelos matemáticos compreensivos expressavam isso, através de
um sistema de equações montado para descrever todas as partes,
funções e relações. Anos 80/90 a noção de um todo organizado
em partes coordenadas foi completamente abandonado em favor
da ideia de uma cidade indomável e imprevisível, logo impossível
de ser controlada e planejada de qualquer forma. Hoje estaríamos
privilegiando uma visão de cidade ainda imprevisível e indomável,
mas que teria, não obstante, comportamentos estruturados e
detectáveis.
c) reconhecimento de princípios (leis) de formação e
transformação urbana – a pesquisa científica das cidades hoje está
majoritariamente voltada a identificar padrões evolutivos do sistema
urbano, isto é, procurando descrever os seus processos de mudança,
alimentando a hipótese fundamental segundo a qual os sistemas
urbanos manteriam futuro aberto, quer dizer, evoluiriam para macro-
estados impossíveis de serem previstos, mas ainda segundo padrões
evolutivos identificáveis.
d) meios de simular a dinâmica espacial urbana e estimar seu
desempenho – talvez a contribuição mais efetiva da ciência ao projeto
urbano seja o desenvolvimento de meios capazes de simular respostas
possíveis do sistema urbano a ações de projeto, propiciando, assim
ao urbanista algumas janelas através das quais antecipar efeitos
prováveis de suas ações. Essas janelas podem ser simples e locais,
como por exemplo aferir o desempenho térmico de um agregado de
edificações, ou calcular seu efeito sobre o comportamento de redes
de infraestrutura, passando por avaliações mais extensas e de maior

234
Entre_vista com Prof. Dr. Rômulo Krafta

alcance, tais como o padrão resultante de distribuição de movimento


na rede viária, a modificação da hierarquia espacial do sistema, a
modificação da oportunidade de acesso a serviços das inúmeras
localizações residenciais, et., até as mais complexas e elaboradas,
relativas a padrões de mudança do sistema urbano.
A pesquisa urbana não dará, nem deveria, a solução para problemas
de projeto urbano, mas pode oferecer aos urbanistas um arsenal
crescente de controles de projeto, isto é, meios de inferir efeitos de
suas decisões projetuais; isso tem crescido muito e constitui parte
substancial da pesquisa urbana recente.
Com efeito, o desenvolvimento sustentável é frequentemente
entendido, como o escrevem os cientistas, como uma questão de
participação pública e de implicação cidadãos no estágio mais inicial
possível do processo decisório. Contudo, na prática, encontram-
se frequentemente contradições possíveis entre os imperativos
ecológicos e democráticos da cidade viável.
Quais seriam então os novos procedimentos, e qual nova ética
para estabelecer em matéria de concepção, para preencher o
hiato entre a construção e o desenvolvimento sustentável? Como
o desenvolvimento sustentável poderia tornar-se um operador
concreto na prática do projeto urbano?
Cientistas da cidade e urbanistas têm mantido atenção ao
desempenho das cidades; nos inícios da ciência urbana, anos 50/60
a principal preocupação foi com a eficiência, pensando isto em
duas instâncias: a economia de meios e a funcionalidade. Muito
foi desenvolvido nessa área, buscando constituir instrumentos
de aferição de eficiência das cidades. Em anos subsequentes, um
novo enfoque foi explorado, o da equidade urbana. Por equidade
se entendia a medida de distribuição dos custos e benefícios
gerados pela cidade, tinha por pressupostos os fatos de, primeiro,
a distância gerar, inexoravelmente, desigualdade de localização

235
Adalberto RETTO JR.

e acesso, e segundo, a desigualdade espacial ser rapidamente


precificada, resultando em privilégios locacionais no interior da
cidade. Na verdade, um dos pilares, o ético, do planejamento é
justamente a busca por maior equidade urbana. Meios artificiais de
reduzir as distâncias, de neutralizar seus efeitos, ou de compensar
os desníveis emergentes têm sido (juntamente com eficiência, sem
a qual equidade não faz sequer muito sentido) o campo preferencial
de desenvolvimento das técnicas de planejamento urbano. Nessa
sequência de preocupações com o desempenho da cidade, a
qualidade espacial emergiu como item relevante, sugerindo que a
‘mera’ provisão de habitação, transporte e locais de abastecimento,
trabalho e lazer não era suficiente, e que, na verdade, boa parte da
demanda por cidade se referia a coisas imateriais, algo que acabou
sendo sintetizado pela expressão ‘experiência urbana’. Isso envolveu
desde coisas aparentemente simples, como itens de conforto e
adequação do espaço público, até elementos verdadeiramente
imateriais, como animação urbana, referência de identidade, história
e pertencimento, identidade cultural de bairros, etc. Finalmente, já no
século XXI, a sustentabilidade surgiu como um novo requerimento ao
desempenho das cidades. Apesar do uso intensivo do termo, intenso
a ponto de por em risco seu próprio significado, não há clareza sobre
o que isso realmente implica, tanto em termos ambientais como
urbanos.
Não creio que a definição de sustentabilidade seja associada
necessariamente à participação pública, embora esta seja, desde
o ponto de vista pedagógico e cívico, auxiliar na implementação
de qualquer iniciativa pública voltada a aumentar o desempenho
das cidades. A definição original de sustentabilidade é difusa (mal
definida): qualidade de não ser danosa ao meio-ambiente, ou
comprometedora das fontes de recursos, consequentemente de
ostentar equilíbrio ecológico de longo termo. No que se refere
às cidades, como isso se traduziria: seriam as cidades danosas ao
meio-ambiente, comprometeriam fontes de recursos? Se por um

236
Entre_vista com Prof. Dr. Rômulo Krafta

lado parece óbvio que cidades causam danos ao meio-ambiente


natural, nos locais onde se implantam e à sua volta, por outro, há
que considerar que cidades na verdade transformam o meio-
ambiente selvagem em outro, mais adequado à vida humana (e por
isso preferido pela maioria da população do planeta). Se por um
lado é evidente que a demanda urbana por água, comida e energia
são enormes, sugerindo comprometimento de fontes, por outro, há
também evidências de que cidades, tanto mais quanto maiores, são
capazes de produzir economias de escala, quer dizer, otimizar não
apenas o consumo desses recursos, como também reduzir o impacto
dos humanos sobre a natureza (tratamento de efluentes, redução
proporcional de produção de CO2). Evidências recentes (West 2017)
sugerem que, pressupondo a inevitabilidade da presença do homem
no planeta, as cidades seriam soluções admiráveis para a sua inserção
e para a administração dos efeitos de suas ações sobre o ambiente.
Indo adiante, poderíamos nos perguntar se, dada a inevitabilidade
das cidades, as mais sustentáveis seriam aquelas mais compactas e
densas ou as mais dispersas e diluídas no meio ambiente natural.
Urbanistas apostam nas primeiras, ecologistas nas segundas.
Ainda outra pergunta pertinente e incômoda é se sustentabilidade
se constitui realmente em um novo paradigma, ou se trata de um
conceito obtido pela distilagem e mistura de outros já anteriormente
existentes e considerados na prática do urbanismo.
No âmbito mais restrito do projeto urbanístico, ou do
planejamento territorial local, as contradições e ambiguidades não
param de acontecer: construção sustentável seria aquela que usa
materiais renováveis, como por exemplo madeira, que tem vida
útil relativamente curta e demanda uso extensivo do solo para
sua produção, ou seria o contrário, uso de materiais de grande
durabilidade, e até aqueles que não existiam até há pouco tempo,
como o pvc? Ser sustentável seria advogar o uso de tecnologias
vencidas e simples, como bicicleta, ou ao contrário, tecnologias de
ponta capazes de prover mobilidade de massa?

237
Adalberto RETTO JR.

Referências
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in-case. Cities (vol. 21)
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sustainability and the pace of life in organisms, cities, economies and

238
Entre_vista com Prof. Dr. Rômulo Krafta

companies. New York, Penguim.

239
240
Entre_vista com Donatella Calabi

1. História da arquitetura e história da cidade:


um casamento difícil

Storia della città. L’età moderna. Donatella Calabi.


Venezia, Marsilio, 1999

Adalberto da Silva Retto Jr. & Barbara Boifava


Nas duas conferências ministradas recentemente no Brasil
(São Paulo e Bauru), Donatella Calabi transporta-nos de São Paulo
à Veneza: mais do que a efervescência das cores, apresenta uma
civilização. De um “sestier” a outro, ao invés de levar-nos a um
raciocínio em termos de composição física da cidade, faz-nos pensá-
la por meio de articulações de partes e superposição de extratos,
sem modificar a sintaxe tradicional, mas iluminando um percurso
no qual opera a economia dentro do espaço da cidade: uma outra

241
Adalberto RETTO JR.

maneira de remontar os tempos.


Ao recorrer às categorias interpretativas que, por analogia ou por
diferença, põem à luz a articulação dos fenômenos de transformação
da construção do urbano, restabelece a complexidade implicada
na concretude do ambiente físico, restituindo um panorama rico
de novos elementos, e portanto, fértil de idéias que descortinam
eventuais horizontes de pesquisa. Através de casos exemplares ou
inovações apresenta uma história “não evolutiva”, perfilando, numa
visão de conjunto, como se modifica a paisagem urbana.
Calabi propõe leituras incisivas, capazes de selecionar hierarquias
de fatos construídos, formações tipológicas que, pouco a pouco,
mostram-se funcionais a um novo desenho urbano. Hierarquias
necessárias para reconhecer como Veneza ou Antuérpia, Roma,
Londres, Amsterdã, por exemplo, em uma certa conjuntura histórica
participaram de uma mesma rede de implantação, de um mesmo
desenho, explicitando como este agiu como estímulo para a pesquisa
de uma nova figuração em arquitetura; e assim, como cidade e
território, desenho urbano e organização do regime produtivo
não são facilmente desconexos, o que levaria a uma redução da
complexidade dos fenômenos a puros dados morfológicos.
O título da entrevista sugerido pela professora Calabi, descortina
dois filões de grande importância da historiografia na Itália nos anos
de 1970: a formação do Dipartimento di Storia dell’ Architettura de
Veneza por Manfredo Tafuri, afirmando a autonomia da história da
arquitetura frente a uma “critica operativa”; em paralelo, o despertar
da história urbana e de seus instrumentos de investigação, não como
extensão da história da arquitetura, mas como âmbito de estudo
caracterizado com técnicas e instrumentos próprios, como ponto de
vista da história geral, do qual ela mesma assume um papel de relevo.
1 – Oito anos depois de sua chegada no IUAV, Manfredo Tafuri
funda em 1976, o Dipartimento di Analisi Critica e Storica sobre as

242
Entre_vista com Donatella Calabi

cinzas do Istituto di Storia dell’Architettura dirigido por Bruno Zevi.


A mudança sucessiva do nome do departamento que voltou à antiga
denominação de Storia dell’Architettura, afirma que os dois adjetivos,
“Critica” e “Storica”, constituíam uma tautologia. Como sustentava
Tafuri, “a história sempre teve uma função crítica”, logo “não existem
críticos, somente historiadores” (Non ci sono critici, solo storici)”.
De fato, a nova denominação marcava a passagem para uma fase
em que a “fecunda incerteza da análise” se contrapunha à certeza do
projeto da denominada “Storia operativa” de Zevi.
Jean Louis Cohen que seguiu atentamente o âmbito intelectual
veneziano, [Italophilie (1984 ), Dall’affermazione ideologica alla
storia professionale (1999)], explicita que, ao superar a questão da
operatividade da história, a “Scuola di Venezia” consegue passar
do estudo das conjunturas àquele das estruturas, posta como
fundamento da historiografia dos “Annales”: “sem subscrever a causa
da longa duração per se stessa, mas propondo-lhes rearticulações
diacrônicas que fazem aparecer os ciclos estruturais segundo
os quais a crise do capitalismo e da arquitetura se compõem e se
correspondem”. Como escreve H. Burns, Tafuri criou “un nuovo,
fertile modo di fare storia della architettura,– o storia ‘tout court’–
che non ‘spiega’ l’architettura in termini di ‘contesto’, ma identifica la
sua funzione fondante nell’ambito di un dato momento culturale e
politico e la sua interazione con le altre forze culturali, da cui non è
passivamente determinata”.
2 – Nos anos de 1970, denominado por Guido Zucconi como os
anos de ouro da história urbana na Itália, um grupo de professores
começa a delinear um modo novo e autônomo de se fazer história,
no qual o termo “análise urbana” deixa de ser sinônimo da “análise
operante”, protagonizada por Saverio Muratori em seu “Studi per una
operante storia urbana di Venezia “(1953).
Donatella Calabi, seja na entrevista gentilmente concedida ao

243
Adalberto RETTO JR.

Vitruvius seja no discurso do nascimento da “Associazione Italiana


di Storia Urbana” (AISU), intitulado “Storia Urbana in Italia”(2001),
ilumina este novo caminho que é indissociável da história que plasma
sua figura e sua produção intelectual.
Na conferência ministrada em Bauru “La borsa, lo scambio del
denaro, la circolazione delle idee in Europa nel XVI secolo. Problemi
di storia urbana comparata”, Calabi mostra uma fase recente da
pesquisa do departamento de história de Veneza, substituindo a
“história dos eventos” por uma que põe em relevo às “mudanças
geográficas, econômicas, sociais, culturais (das mentalidades), na
longa duração”. Neste contexto, o escopo é aquele do confrontro ou
ainda da “história comparativa”, através de uma prática de pesquisa
de cunho multidisciplinar, como superação da dificuldade inevitável
da fragmentação dada por cada caso singular.
Podemos apostar numa coerência, que confere unidade ao
conjunto das publicações de Donatella Calabi, cujo papel seria o
de pedra angular no debate da história urbana atual. Por fim, vale
ressaltar, sua importância política na formação de um sólido fio
condutor à frente de algumas iniciativas e instituições: no curso
de “Storia della città e del territorio” no IUAV; na organização da
“Fourth International Conference of Urban History” (1995), quando
presidente da European Association of Urban History , presidente
da Associazione Italiana di Storia Urbana, e como coordenadora
do Dottorato di Eccellenza in “Storia dell’architettura e della città,
Scienze delle arti, Restauro” da Scuola di Studi Avanzati di Venezia.
As palavras de Calabi, subsistem à descontinuidade criada pelo
Atlântico e colocam– se dentro de um horizonte de pesquisa que,
apesar de parecer distante e muito diverso, é necessário para restituir
a complexidade e o grau de operatividade, e assim a atualidade, do
estudo dos fenômenos urbanos.
As temáticas por nós propostas à professora Calabi, não tentam

244
Entre_vista com Donatella Calabi

remontar o percurso de sua produção intelectual, mas apresentar


aos leitores de língua portuguesa um estímulo à reflexão sobre o
ambiente intelectual veneziano, pela ótica de um dos protagonistas.

2. Questão de método

La città degli ebrei. Il ghetto di Venezia: architettura e


urbanistica. Donatella Calabi. Venezia, Marsilio, 1996

Adalberto Retto e Barbara Boifava: Qual a importância das


“Questões de método” nos estudos sobre a cidade?
Donatella Calabi: Gostaria de enfatizar a importância das
questões de método, ligadas também a aspectos de terminologia.
No âmbito disciplinar da história da cidade existem confusões, não
somente no linguajar comum e de senso comum, mas até mesmo nas
titulações acadêmicas: por exemplo “História da cidade” e “História
do urbanismo” usados como sinônimos; ou “cidade moderna” e
“cidade contemporânea” como se fossem a mesma coisa. Eu proporia
uma interpretação da História da cidade como ponto de vista da

245
Adalberto RETTO JR.

história geral; uma prática metodológica complexa. Tornam-se,


assim, fundamentais algumas categorias conceituais: entre estas, em
particular, as de continuidade/descontinuidade em um arco temporal
de longo período. Considero que os momentos mais significativos
para propostas, projetos, modificações da configuração física, sejam
os de descontinuidade, nos quais ocorrem episódios de ruptura,
acontecimentos traumáticos: uma guerra, uma crise econômica, uma
mudança de poder, um incêndio, um terremoto, o desmoronamento
de uma ponte ou de um conjunto de edifícios. Mas existem também
fatores de inércia (hábitos, tradições, interesses fundiários, ou
ligados a algumas práticas que obstaculizam as mudanças). A História
da cidade, muito mais que a da arquitetura, sente o efeito destas
oscilações. É muito mais difícil, de fato, no campo da História urbana,
do que na da história de cada edifício, fazer datações, assim como
é muito mais difícil estabelecer com certeza os nomes dos autores.
Para a construção civil, como para a pintura, ou para estatuária, é
normalmente possível reconhecer quem é o artífice (não acontece
sempre, mas freqüentemente); uma parte da cidade, usualmente, é
fruto de mais de um autor e são infinitos os fatores que determinaram
seu desenho.
Justamente por isso, a questão da oscilação entre momentos
de continuidade e de descontinuidade na história longa de um
assentamento e dos seus processos de transformação física é, na
minha opinião, de singular importância. Creio que a possibilidade,
e às vezes a necessidade, de ler acontecimentos, como aqueles de
único manufato, em um longo arco cronológico, (mais do que quando
se estuda episódios mais circunscritos do ponto de vista espacial
ou temporal), sejam colocadas com extrema clareza, sabendo que
os instrumentos para o estudo da História da cidade e aqueles
para o estudo da história da arquitetura são diferentes, ainda se
interrelacionados. Não podemos, esquecer que na História da cidade
(mesmo que se trate de Ancièn Régime ou da Idade contemporânea),
existiram momentos de rupturas, episódios pontuais, momentos

246
Entre_vista com Donatella Calabi

particulares que constituíram ocasiões de reflexão, de renovação, de


disposição às novas formas e novos modelos; e que destes se deve
partir da inércia às mudanças, sem esquecer as fases de viscosidade.
Enfim, não é exatamente uma leitura “evolutiva” que estou
propondo com este discurso, como aquela que teve tanto sucesso na
historiografia. Pelo contrário. Proponho, contemporaneamente, uma
reflexão sobre o tema de como o fator tempo incide (diferentemente
de outras disciplinas afins) sobre os episódios significativos do nosso
âmbito de pesquisa.

247
Adalberto RETTO JR.

3. A dimensão arquitetônica nos estudos da


cidade

La città del primo Rinascimento. Donatella Calabi. Col.


Storia della cità, Bari, Laterza, 2001

Adalberto Retto e Barbara Boifava: O título da sua entrevista


“História da arquitetura e História da cidade: um casamento difícil”,
explicita uma diferença substancial nos estudos sobre a cidade. Qual
o real prejuízo para a história urbana ao utilizar somente a dimensão
arquitetônica nos estudos da cidade?
Donatella Calabi: Falando de “casamento difícil”, uma recensão
publicada há muitos anos atrás no “Journal of Urban History”
reclamava da distância existente entre os dois campos de estudo:
aquele da história da arquitetura e aquele da história da cidade1.
Destacava que somente um dentre dez artigos publicados pela
1 Joseph Arnold, Architectural history and Urban History: a difficult marriage, in “Jour-
nal of Urban History”, 1 novembre 1990, pp. 70-78.

248
Entre_vista com Donatella Calabi

mesma revista tratava de história da arquitetura, enquanto a maior


parte dos ensaios discutiam urbanismo (City planning), matéria
ligada à arquitetura, mas freqüentemente, muito mais relacionada
às questões de engenharia e de obras públicas. A ausência de
uma dimensão arquitetônica se nota não somente nas histórias
gerais dos processos de urbanização, mas também nos estudos de
cidades individuais, como sustentava Joseph Arnold se referindo
principalmente às publicações anglo-americanas. Em se tratando da
cidade européia, era uma lacuna que lhe parecia ainda mais marcante,
dada a importância dos estabelecimentos urbanos, e, dentro destes,
dos aspectos arquitetônicos, na Europa do Ancièn Régime.
Em algumas publicações o autor de uma história da cidade se
desculpava desta “omissão”. Citarei dois exemplos particularmente
significativos. No seu célebre ensaio sobre Florença no Renascimento,
Goldthwaite declara ter excluído questões de “estilo” arquitetônico,
porque não se sentia à altura de uma análise semelhante2. Mais
recentemente, Marino Berengo, na introdução do seu livro
monumental sobre história urbana, do qual a sociedade européia era
o sujeito primário, tem uma atitude análoga, (mesmo se atenuada por
algum tipo de remorso). Na “Europa das cidades” diz o autor, falta
um capítulo sobre “urbanismo”: “A forma urbis”, que foi desenhada e
transformada nas várias nações fica fora do meu quadro: os tempos
da “interdisciplinaridade”, muito evocados nestes anos, não estão
ainda maduros para mim3.
Também, em um estudo da “Society of Architectural Historians”
sobre o ofício e formação do historiador da arquitetura nos
Estados Unidos da América, a História da cidade não é nem mesmo

2 Richard A. Goldthwaite, La costruzione della Firenze rinascimentale, Bologna 1984


[1980].
3 Marino Berengo, L’Europa delle città, Torino, Einaudi 1999, Prefazione, p. XIV.

249
Adalberto RETTO JR.

mencionada4. Na realidade, em todos os países ocidentais, parece


que existem margens de incompreensão entre os dois âmbitos de
estudo.
Em suma, acredito que se possa afirmar que, freqüentemente,
os “historiadores urbanos” (próximos ao campo da História das
instituições, ou àquele da História social e econômica) são míopes,
enquanto os historiadores da arquitetura ou da arte ficaram surdos
às questões sócio-econômicas e políticas, ou institucionais. Os
resultados são freqüentemente antiquados e metodologicamente
ingênuos.
Apesar das citações iniciais, não acredito que as afirmações que
acenei sejam somente válidas para o contexto americano. Talvez,
poderíamos sustentar que o discurso não seria aceitável para a cultura
européia e, talvez também, para aquela italiana? E mais: é legítimo
falar de “casamento difícil” entre os dois campos de estudo, ou se
trata de testemunhar um consenso de “separação” ou de “divórcio”?

4 Elisabeth Blair Mac Dougall (organização), The architectural historian in America,


Hanover+London 1990.

250
Entre_vista com Donatella Calabi

4. Longa duração e inovação

Fabbriche, piazze, mercati. La città italiana del


Rinascimento. Donatella Calabi. Roma, Officina Edizioni,
1997

Adalberto Retto e Barbara Boifava: Qual a importância da “Longa


duração “ e “inovação” para o estudo dos fenômenos urbanos?
Donatella Calabi: O tema “por que uma cidade nasceu aqui e se
desenvolveu tanto?” constitui a pergunta fundamental da História
urbana. Assim, esta última, é simplesmente uma definição operativa
para identificar historiadores e outros que trabalham sobre alguns
problemas (uma espécie de estratégia histórica e nada mais).
Em termos formais pode ser entendida como um campo do
conhecimento, não como uma disciplina isolada, na acepção comum
do termo “disciplina”. Um campo em que convergem muitas formas
de conhecimento, e não uma forma de conhecimento em si mesmo.

251
Adalberto RETTO JR.

O que seja “urbano” e o que não o seja se torna então quase


impossível definir com grande precisão em um certo tempo (não
através da dimensão, nem através da densidade, nem do grau de
nucleação): existem dificuldades no uso de critérios homogêneos
relativos ao longo período, mesmo dentro da mesma comunidade.
O sentido do espaço também muda no tempo e é impossível ter
um sentido absoluto do mesmo: um exemplo é aquele da densidade
física no centro da cidade americana e da massa social que se dispersa
na sua periferia. Contudo, as conexões entre forma e função, entre
escala e estrutura permanecem, sobretudo na conceituação que
temos de uma grande cidade.
É por isso que me parece justo insistir sobre a importância, para
nós, da “longa duração”.
A cidade é cravejada de grandes praças, talvez antigamente
destinadas ao mercado de gado (animais), ou das verduras e das
frutas, ou às feiras anuais, que pouco a pouco perderam significado
e nas quais se instalam outras atividades; ou de ruas nas quais alguns
se estabelecem, outros desaparecem; ou ainda de pórticos invadidos
por bancos e assentos, ou penosamente mantidos desocupados;
e (a cidade) é, num certo momento, marcada pelo fato de que
os hábitos e o gosto dominante assumem um papel de inércia à
mudança. A estabilidade dos mecanismos de propriedade do solo
e do parcelamento constitui um dos obstáculos mais importantes
à transformação da cidade antiga e da medieval5. Mas as razões
simbólicas, ideológicas, culturais podem ser igualmente vinculativas.
Na Europa, por exemplo, a praça foi freqüentemente considerada
a obra– prima da construção medieval e é, ao contrário, o lugar onde
se realizaram intervenções de dimensões importantes, sobretudo

5 As análises de André Chastel sobre as Halles parisienses, de Donatella Calabi e Paolo


Morachiello sobre a ilha de Rialto, de Renate Kistemaker sobre Amsterdã permitem ver a pro-
porção de tais estabilidades.

252
Entre_vista com Donatella Calabi

durante o Quatrocentos e o Quinhentos6. Isto aconteceu num


momento determinado, em que se juntaram os poderes temporal
e religioso, como naquele em que dominavam separadamente o
município, ou o palácio da Signoria, ou a catedral, ou os lugares de
mercados. Na maior parte dos países da Europa central aumentou
a especialização das vendas: construções comerciais permanentes
(freqüentemente construídas em série uniforme) substituem bancas,
tendas e recintos de madeira; aquelas mistas para o fornecimento
de produtos cotidianos a varejo tendem a desaparecer; os grandes
armazéns são cada vez mais destinados exclusivamente aos tecidos,
ou ao couro, ou aos grãos7.
Às vezes, na base dos investimentos urbanos, cujas atitudes
culturais vão além das questões puramente econômicas e mercantis,
tem-se o crescimento de um grupo de mercadores dedicados ao
tráfego de mercadorias ricas (Lubecca). Outras vezes o aumento da
riqueza, ou do risco e da precariedade das despesas feitas somente
com fins comerciais, ou a transferência da propriedade de mão
em mão, não bastam para explicar a maior atenção dedicada aos
edifícios públicos, nem o sentido de dignidade atribuído aos postos
do governo municipal (Nuremberg). Neste processo, é importante o
papel que assumem não só as classes dominantes, mas também os
“mestres de rua”8, os peritos da magistratura pública, os pedreiros,
a mão-de– obra do canteiro, isto é, os assalariados da construção a
serviço da cidade nas primeiras décadas do século XVI. Nas bases
hanseáticas, parecem ser mesmo os edifícios públicos de grande
escala a se constituírem previamente como oportunidade para a
formação de grupos itinerantes de mestres construtores. Mas, em
muitos casos (Veneza, Nuremberg, Paris), é também a passagem da
6 Gustavo Giovannoni, Vecchie città ed edilizia nuova, Torino 1931, pp. 24-26.
7 Erwin Anton, International History of City Development, Glencoe Illinois, 1964-72,
vol.. I, pp. 162-168.
8 Chamava-se assim em Roma a magistratura designada à vigilância e ao controle dos
trabalhos edilícios urbanos.

253
Adalberto RETTO JR.

“cidade de madeira” à “cidade de pedra” a tornar-se um pretexto –


freqüentemente um formidável pretexto– de total reconstrução,
além de parcial emigração de modelos9. A degradação das estruturas,
o perigo de desabamentos, os incêndios na cidade medieval eram
aceitos como inevitáveis, porque faziam parte da vida cotidiana.
“Nínguém deve se espantar se nestes tempos desmoronavam tantos
edifícios, não somente em Vinegia (Veneza) mas em outros lugares
da Itália, assim como em Bolonha e em Milão[...], porque quase
todos os edifícios eram de madeira, como se pode ver até hoje na
maior parte da Alemanha e da França”: esta nota dá uma descrição
pontual quinhentista do “bel paese” (Itália)10. Assim, o propagar-se
das chamas é absolutamente inevitável. Mas ao longo do século,
o fogo parece se transformar, em todos os lugares, num pesadelo.
De um lado a vigilância, do outro a mecanização dos instrumentos
para apagá-los se transformam respectivamente, em objeto de
atribuições específicas, de regras (na forma de obra de prevenção)
e em objetos de ilustração nos tratados. As edições dos dez livros
de Vitrúvio de Como de 1521 e de Nuremberg de 1547, dedicam um
espaço particular ao desenho de máquinas especiais com finalidade
de derramar água em incêndios de grandes proporções; igualmente
acontece no Théatre des instruments, publicado por Besson em Lion,
em 157811. Aliás, neste sentido, são atribuídas tarefas particulares
a um número crescente de funcionários a serviço da cidade ( os

9 Ver as análises de Pierre Francastel sobre as normativas em Paris ainda existentes


na época de Henrique IV; cfr.: L’urbanisme de Paris et l’Europe 1600-1680, Paris 1969, cit., in:
Histoire de la France Urbaine, vol. 3, cit., p. 14.
10 Leandro Alberti, Descrittione di tutta Italia, Bologna 1550, p. 460.
11 Lucio Vitruvio Pollione, De Architectura Libri dece traducti de latino in vulgare affi-
gurati, commentati, Como per Magistro Gotardo da Ponte... nel anno... MDXXI, XV mensis julii
regnante il christianissimo re de Franza [edita da A. Gallo e L. Pirovano: Cesare Cisariano circa il
fine de magio del anno presente MDXXI, havendo commentato e dato le copie a li impressori...
se partite da Como e lasso l’opera imperfecta]; Marci Vitruvii Pollioni, Zehen Bücher von der
Architektur und kunstlichen Bawen, Nürnberg 1948; Theatrum Instrumentorum et machinarum
Iacobi Bessoni Delphinatis, Mathematici ingeniosissimi, Lione MDLXXVIII, p. cii v. e tav. 52.

254
Entre_vista com Donatella Calabi

“quartemiers” de Paris, como os párocos nos bairros venezianos). As


normas construtivas (limitação do uso da madeira, ou das coberturas
em palha, ou a obrigação de erguer muros divisórios separados entre
unidades limítrofes) e de comportamento (sistema de iluminação,
horários), que também existiam em todas as cidades com alta
densidade habitacional, não são por longo tempo aplicadas, mas
repentinamente são reforçadas com maior autoridade e insistência; e
como de improviso, os incêndios são descritos com tons dramáticos
por cronistas e testemunhas oculares; tornam-se uma ocasião de
reflexão, uma oportunidade a ser aproveitada. Freqüentemente,
nestes casos, impulsos de modernização são assim temperados de
um saber constituído, de hábitos no uso dos materiais e interesses
consolidados, da vontade de não criar transtornos. Enfim, não é raro
que velhas regras de técnicas construtivas sejam executadas somente
com muitas décadas de atraso (por exemplo, os editais que, no
centro de Paris, vetam a fábrica de madeira, somente com Henrique
IV, em 1607, tornam-se verdadeiramente executáveis). Às vezes,
nas cidades do norte, a inovação está ligada mais às considerações
econômicas (o preço da madeira, as dificuldades de provisões ou de
laboração) e psicológica (o prestígio do modelo mediterrâneo) do
que às razões técnicas (a defesa contra os incêndios)12. E estes são,
novamente, os fatores que têm uma importância no abrandamento
de algumas decisões ou, ainda, na sua aceleração em favor de um
simples saneamento, ou de rearranjos de pouco valor, conduzidos sob
antigos vestígios. Na história das cidades européias, reencontramos
acontecimentos absolutamente exemplares na incerteza de escolher
entre modelos contrastantes: as controvérsias entre o saber teórico
de um arquiteto de grande cultura e o saber empírico dos técnicos
funcionários, os resumem eficazmente. Os dois casos famosos, de
reconstrução em pedra da antiga ponte de Notre Dame sobre o
Sena e daquela de Rialto sobre o Canal Grande, estruturas vetustas

12 C. Enlart, Manuel d’archéologie française, Paris 1929, parte II (“Architecture civile”),


vol. I, pp. 231-409.

255
Adalberto RETTO JR.

e complexas não somente de passagem, estreitamente ligadas à


renovação das áreas mercantis, as quais dão acesso, fornecem um
sinal significativo, que vai muito além do caso específico. Ambos são
emblemáticos das dificuldades em que se envolve o redesenho das
metrópoles.

5. História local e história comparada13

Il “male” città: diagnosi e terapia. Didattica e istituzioni


nell’urbanistica inglese del primo ‘900. Donatella Calabi.
Roma, Officina edizioni, 1979

Adalberto Retto e Barbara Boifava: A senhora ressalta


recorrentemente a necessidade absoluta de uma “História
comparativa”. Em um artigo recente, isso é reforçado através das

13 Donatella Calabi, Il mercato e la città, Venezia, Marsilio 1993, Introduzione; em vias de


publicação numa versão atualizada em inglês: The market and the city, Leicester, Scholar Press
2003, Introduction.

256
Entre_vista com Donatella Calabi

palavras de Bloch (1928), afirmando que “Non esiste conoscenza vera


senza una certa tastiera di comparazione”. Quais são os limites que
poderão ser estabelecidos entre História local e história comparada?
Donatella Calabi: Para a história da cidade, as razões de interesse
de uma pesquisa comparada são absolutamente evidentes14. É
justamente este um daqueles casos nos quais – para usar as palavras
de Paul Veyne15 – o recurso à analogia para suprir algumas lacunas
de documentação parece ser uma das poucas estradas a serem
percorridas: o confronto para fins heurísticos de fatos relativos a
determinadas nações ou períodos diferentes torna-se insubstituível.
Aqui, o que precisa ser verificado é se seria possível relevar também
na configuração do espaço, os traços comuns que emergem em
outros setores de atividade; é preciso entender se as diferenças
podem ou não serem classificadas como soluções formalmente
diferentes para problemas comuns. Traços comuns e diferenças:
podem ser interpretados como soluções diversas aos mesmos
problemas? Trata-se, desta forma, de colher alguns acontecimentos
concretos, nos quais se notam causas materiais semelhantes,
objetivos comparáveis, análogas casualidades, conhecendo bem que
nem tudo é “típico”; que os “acontecimentos não se reproduzem por
espécies, como as plantas”. Foi, aliás, Lucièn Febvre que nos recordou
que, freqüentemente, parecem existir nos fatos algumas constantes,
algumas coerências e episódios contingentes que retornam também
em lugares e tempos distantes16; portanto, querendo estudar um
acontecimento singular, não é possível ficar indiferente a uma

14 Manfredo Tafuri, Ricerca del Rinascimento, Torino 1992, p. 127: “Ampliare lo spettro
delle analisi verificabili” é um apelo lançado no capítulo em que o autor trabalha com analogias
e diferenças nas estratégias urbanas das cidades italianas entre os séculos XV e XVI. Para o
período medieval, a falta de estudos comparativos sobre a configuraçao do espaço urbano é
lamentado por Jacques Heers, quando se propõe de levar adiante uma leitura deste tipo em: La
ville au Moyen Age, Paris 1980.
15 Paul Veyne, Comment on écrit l’histoire, Paris 1978, p. 85.
16 Lucien Febvre, Problemi di metodo storico, Torino 1976 2, p. 182.

257
Adalberto RETTO JR.

espécie de generalidade, ao repetir-se de histórias símiles, ou ao


menos à possibilidade de verificar uma rede de semelhanças e de
contradições, que se entrecruzam17. Uma vez estudado um espaço
particular, não se trata tanto de querer a todo custo encontrar leis e
modelos, ou de renunciar-lhes, mas de avaliar o funcionamento do
sistema complexo no qual o caso examinado é efetivamente inserido,
que parece aliás apresentar-se em uma escala mais ampla daquela
inicialmente prevista; tentar não esquecer a relação que algumas
“regularidades” mantêm com as “particularidades” que lhes fogem,
se torna então, para a História da cidade, um percurso de pesquisa
quase obrigatório18.
AR e BB: E quais os graus de especificidade e analogias?
DC: Freqüentemente, o início da história de um assentamento
gira em torno de um ponto de interrogação: aquele do grau de
especificidade de um caso conhecido19. No meu modo de delinear o
raciocínio, por exemplo, retorno com freqüência ao caso de Veneza
como referência (que estudei em algumas partes de modo detalhado).
Da mesma forma, no esforço feito por Tafuri nos seus estudos mais
recentes20, existiam juntos o caso de Veneza e o caso de Roma e as
suas diversidades, como ponto de partida.
Quais os caracteres que incidem sobre a destinação dos usos e da
arquitetura na reforma quinhentista no duplo sistema de ilhas de São
Marco e de Rialto, do lado de cá e do lado de lá do Canal Grande, na
metrópole Sereníssima? Até que ponto as decisões tardo-medievais

17 Giovanni Levi, Villaggi, in “Quaderni storici”, n°46, aprile 1981.


18 Michel De Certeau, L’operation historique, in: Jacques Le Goff e Pierre Nora, Faire de
l’histoire, Paris 1974, I, p. 32.
19 A questão estava já presente nas primeiras hipóteses formuladas com Paolo Mora-
chiello em 1980, isto é, na fase de impostação do trabalho analítico que tínhamos conduzido
sobre a área rialtina, que não foi deixado de lado no momento da publicação [Rialto: le fabbriche
e il ponte, Torino 1987], apesar do objeto da pesquisa já estar circunscrito.
20 Manfredo Tafuri, cit.

258
Entre_vista com Donatella Calabi

ou de idade moderna que lhe concernem – de revisão do próprio


aparato mercantil, de separação dos usos e dos usuários, do redesenho
geométrico de alguns lugares, da rearticulação das duas “praças” – são
encontradas também em outros episódios? Quando são estudados os
espaços de mercado das grandes cidades comerciais européias, por
exemplo, o conceito de “limite” – e as práticas que o definem– emerge
como condição significativa das decisões de reforma. Mas deveríamos
pensar que isto seria intrínseco ao espaço urbano do mercado, ou,
ao contrário, sugerido pela natureza dos lugares? No caso de Veneza,
o mesmo é ligado à morfologia lagunar e à existência das ilhas que
a caracterizam? Existe ou não uma lógica interna à configuração e
à tipologia dos espaços de mercado, também diferentes e distantes
entre eles, constituída de elementos substancialmente recorrentes
na estrutura urbana e, no caso afirmativo, tais elementos recorrentes
apresentam também analogias formais, além de destinação de uso?
Mas estudos deste tipo apresentam um enorme risco: somente
alguns casos se baseiam em uma documentação de arquivo elaborada
(ao menos parcialmente) na ótica proposta. Por exemplo, se me
refiro novamente aos meus estudos comparativos dos espaços de
mercado nas cidades européias ou aqueles dos bairros judeus na
Itália, somente para o caso veneziano as deliberações tomadas pelas
magistraturas delegadas à transformação dos espaços urbanos de
uso coletivo foram examinadas de modo sistemático e a iconografia
analisada minuciosamente. A comparação com os outros sujeitos,
conduzida com base em informações recolhidas para fins diversos
e que na maior parte são de fontes secundárias, é inevitavelmente
deformada pela lente de aumento utilizada, que se conhece com
maior precisão. Para o “acontecimento particular” as razões das
escolhas tomadas podem ser explicadas; pondo à luz analogias e
diferenças das “histórias semelhantes” às vezes se deve contentar
com a formulação de hipóteses fidedignas21. Todavia, este é um dos

21 Fernand Braudel, Civiltà e imperi del Mediterraneo nell’età di Filippo II, Torino 1976, I,
p. 330.

259
Adalberto RETTO JR.

modos possíveis para aceitar o convite de Tafuri “para multiplicar as


análises comparadas evitando, juntamente com as generalizações, o
estudo limitado somente aos casos pontuais”22 e para repropô-los a
partir de outros indícios. Processos institucionais e de reorganização
agiram às vezes dentro do tecido edificado segundo esquemas que
apresentam aspectos de “regularidade”, que se repetem, mesmo
somente de modo grosseiro. As razões econômicas são usualmente
comparáveis, quer se trate de um incremento de atividade dentro de
espaços que não são capazes de contê-las, quer se trate de conflitos
de interesse, ou da vontade de manter a independência econômica e
política baseando-se em uma rede de pontos de apoios da federazione.
De vez em quando, os modelos organizativos, decorativos, culturais,
mudam; a mão-de-obra e as competências freqüentemente migram.
Todavia, nestes acontecimentos existem mil variantes. Diversas
eram as cidades do Báltico, ou aquelas francesas, ou italianas, ou as
espanholas entre o tardo-medieval e os séculos sucessivos (mas o
mesmo poderemos dizer para o modelo da cidade romana entre Roma
capital e as suas colônias); diferentes eram, pelo menos, o clima, o
sítio e a relação com o rio e a viabilidade de acesso. Internamente a
elas, a propriedade edilícia é repartida diferentemente entre grandes
e pequenos mercados ou entre ente público e privado; o mecanismo
de aluguel ou leilão tem um peso enorme nas decisões de renovação23.
Um estudo das soluções específicas adotadas (a construção de uma
manufatura edilícia), de praças, de cisternas, loggias, ou a demolição
de alpendres ou de recintos precários) se impõe a quem gostaria
de refletir sobre as estratégias urbanas dos grandes centros da
economia mundial na Idade moderna. E o complexo no qual os casos
examinados singularmente se inserem, torna-se aquele constituído
da rede das suas próprias relações.

22 M.anfredo Tafuri, Ricerca del Rinascimento, Torino 1992, p. 90.


23 Fritz Rörig, cit., cap. 5.

260
Entre_vista com Donatella Calabi

6. História do urbanismo / história da cidade

Il mercato e la città. Donatella Calabi. Venezia, Marsilio,


1993

Adalberto Retto e Barbara Boifava: Qual o diferença entre


História do urbanismo e história da cidade?
Donatella Calabi: Muito freqüentemente, na linguagem comum e
nas práticas de ensino, como também no direito público, os dois termos
“história da cidade” e “história do urbanismo” parecem confundir-
se. É uma confusão que, em certa medida, acha pressupostos nas
dificuldades encontradas pelo urbanismo em reconhecer seu
próprio âmbito e especificidades próprias. Da segunda metade
do século XIX, alguns manuais, muitos atlas de urbanismo (Cerdá,
Sitte, Brinckmann, Lavedan, Piccinato, Morini) colocam o início da
sua narração no momento do primeiro manifestar-se da cidade e
pretendem encontrar os princípios, as normas, as regras a serem
aplicadas para aumentar o bem estar dos indivíduos e da coletividade

261
Adalberto RETTO JR.

nas diversas e sucessivas fases da civilidade urbana; encontram as suas


próprias fontes na cultura ocidental. A “história da cidade” torna-se,
deste modo, um sinônimo de história da civilidade (a civilidade seria
civilidade urbana por definição). A “verdadeira” história, a “grande”
história, a história da civilidade é história “urbana”24. O risco é aquele
de oferecer um quadro parcial, como quadro total. Esta abordagem
(além das definições) não é privada de conseqüências no plano das
categorias conceituais. A primeira é que a história urbana é vista
como uma parte da história do urbanismo, e também uma das suas
questões mais importantes. Entre os dois campos de estudo existe
um hiato intelectual e institucional: não reconhecê-lo leva a um
descaso da existência de técnicas de pesquisa particulares (inclusive
aquelas inerentes à cartografia), e instrumentos que fogem a um
único modo de tratar25.
A “história do urbanismo”, se relegada à dimensão redutiva de
uma pesquisa sobre materiais de construção, sobre a organização do
espaço, sobre o sistema viário e higiênico-sanitário, acaba por ser a
reconstrução de uma morfologia urbana em um dado período. Esta
abordagem, não implica uma atenção a uma disciplina projetual dotada
de seus próprios instrumentos particulares. Significa negligenciar
as noções do projeto (econômico e bidimensional) com o qual se
regulam os conflitos relativos às rendas fundiárias e construtivas; não
leva em consideração os tempos em que amadurece o mecanismo de
aproveitamento do solo; substima o fato de que, quando se fala do
Medieval ou do Renascimento, os conceitos oitocentistas de unidade
e regularidade não apareceram ainda como norma de controle. Se
no Quatrocentos e no Quinhentos é impossível entrever os inícios
24 Italo Insolera, Europa XIX secolo: ipotesi per una nuova definizione della città,
in: A. Caracciolo, cit., p. 123.
25 O que explica também a escarsa difusão tida por algumas iniciativas de estudo
da história da cidade, fundamentais do ponto de vista do uso de técnicas relacionadas à
configuração do espaço: por exemplo, da grande pesquisa CNRS dirigida por André Chas-
tel sulle Halles [Paris, 1976].

262
Entre_vista com Donatella Calabi

do urbanismo– “ciência política” do século dezenove– é de qualquer


forma lícito reconhecer o diferenciar-se de múltiplas estratégias
urbanas: as intervenções na cidade são funcionais para construções
que aprofundam as suas raízes no aparato institucional e nas
estruturas políticas, mas os objetivos não são sempre dedutíveis
através dos instrumentos utilizados para alcançá-los. Nesta lógica,
é precário também o uso de corretivos terminológicos como aquele
(que, de qualquer modo, teve um notável sucesso historiográfico) de
“pré-urbanismo”26. Em definitivo, até que ponto vale a pena nivelar
em categorias e disciplinas contemporâneas a riqueza da dinâmica
histórica?
AR e BB: E sobre a especificidade das fontes?
DC: A história da cidade é um âmbito no qual confluem ou se
sobrepõem mais leituras a partir das fontes que se utilizam. A
existência da história da cidade nas faculdades de arquitetura, por
exemplo, é um fato relativamente recente e muito pouco aceito
ou considerado por aqueles que se ocupam da história política,
econômica ou social. Normalmente para estes a História da cidade,
é a História das instuições citadinas (o Poder Municipal, os Estados
Regionais, os Estados Nacionais, as liberdades, as corporacões...),
ou História da economia urbana, das atividades produtivas ou do
comércio dentro de um assentamento, ou Histórias de categorias,
movimentos e classes sociais.
Por outro lado, é também verdade que a história da arquitetura
como a história dos edifícios e das formas teve freqüentemente
dificuldades de sair das próprias categorias habituais (feitas de
cânones e de atribuições) e negligenciou a cidade entendida como o
conjunto de edifícios (e de contrastes).
Mas é também verdade que, sem a confluência de mais leituras,
o entrecruzamento e a sobreposição de mais fontes (literárias,

26 Françoise Choay, La città, Utopia e realtà, Torino 1973, I, p. 6.

263
Adalberto RETTO JR.

documentais, iconográficas, cartográficas, materiais) derivantes de


diferentes pontos de vista, não é possível fazer a história urbana.
Uma leitura deste tipo, aplicada a um caso de estudo (um
assentamento em um dado período, um bairro, um complexo urbano,
um conjunto de cidades), convida, não necessariamente a conhecer
todo este enorme patrimônio de conhecimentos para o exemplo
estudado, mas a colher para este, as múltiplas possibilidades que as
diversas leituras permitem ou sugerem.
Proceder por fragmentos, querendo cobrir um arco temporal
longo, indicando percursos de leitura e itinerários de pesquisa –
dos escritos filosóficos à iconografia, dos documentos fiscais à
arqueologia da construção. Seria preciso dirigir-se sistematicamente
a uma série de “especialistas” que, pela sua colocação profissional ou
por ter conduzido recentemente e publicado uma pesquisa sobre o
tema que nos interessa, sejam reconhecidos como tais. Nem sempre
isto é possível; às vezes, é necessário receber os resultados de
pesquisas conduzidas em outra sede, aceitar, ou em outras palavras,
trabalhar sobre base de fontes “indiretas”, ou de “segunda mão”,
ao invés de trabalhar exclusivamente a partir da coleta de dados
originais. É preciso, em suma, estar consciente dos problemas que
coloca a própria pesquisa (com as suas dificuldades, as incertezas,
as hipóteses formuladas e talvez posteriormente abandonadas, os
sucessos e os insucessos de um percurso e obstáculos).

264
Entre_vista com Donatella Calabi

7. Circulação das idéias, dos saberes e dos


conhecimentos

I ponti delle capitali d’Europa. Dal Corno d’Oro alla


Senna. Donatella Calabi. Milano, Electa, 2002

Adalberto Retto e Barbara Boifava: Um ponto de grande relevância


no seu programa de pesquisa é a ênfase dada à circulação das idéias,
dos saberes e dos conhecimentos. A senhora poderia falar um pouco
sobre isso?
Donatella Calabi: Fernand Braudel sustenta que a tese clássica
de Paul Mantoux, já é uma realidade no século XVI: naquela época
o comércio – “como o vento que conduz muito distante os grãos”–
guia a vida industrial, ou lhe constitui fator de promoção, colocando-
se como base de significativos processos de modernização27.
Ele afirma, que isto pode ser verificado em qualquer outra parte
no Mediterrâneo, onde a primeira lei é a troca, o transporte, as
revendas... Isso é também verdadeiro em um certo número de centros

27 Braudel, Civiltà, cit., p. 336.

265
Adalberto RETTO JR.

no norte da Europa, que estabelecem continuamente relações com o


Mediterrâneo. De qualquer modo, não é fácil reconhecer com quais
decisões operativas e com quais instrumentos de projeto, o comércio
tenha cada vez mais contribuído na reformulação da estrutura
viária das cidades, nas quais ocupa um espaço preponderante, e
assim tenha influenciado na sua renovação. Inovações significativas
na organização do trabalho modificam sensivelmente a profissão,
mas também as casas e os depósitos, as praças, os bancos e até
as igrejas. Por exemplo, depois do ano 1300, em todas as grandes
cidades, tem-se a existência, sempre mais freqüente, de mercadores
“permanentes”, que se ocupam dos seus afazeres ficando na sede e
delegando a outros a viagem com a mercadoria, condicionando o
uso e a configuração do espaço urbano. Exigências higiênicas e de
decoro são ligadas também a uma relação diferente daquelas que,
quem vive do comércio, tem com a própria cidade, com as suas águas,
e com as classes dominantes de diferentes origens com uma maior
riqueza geral. E se nos grandes centros mercantis italianos (Veneza,
Florença), como naqueles de dimensão média (Mantua, Verona,
Vicença, Bolonha), um papel diferente é atribuído, já a partir do século
XV, à praça do governo e da representação, de um lado, e ao mercado
do outro, sucessivamente, ao longo do século XVI, a operação de
remodelação de um ou mais de seus elementos corresponde a uma
escolha de embelezamento. Esta escolha, às vezes simbólica, é de
qualquer forma sempre uma redefinição funcional e formal dos
“vazios”. E sobretudo, a conceituação geral do espaço não é mais
a mesma; não se pensa mais na mesma escala. Isto é demonstrado
através das palavras dos tratadistas de arquitetura, e muito mais,
pelas decisões das magistraturas relativas à abertura inevitável mas
controlada da cidade, à aceitação da presença dos estrangeiros
e dos seus edifícios, à qualidade da vida, além da quantidade dos
potenciais imigrantes. As intervenções destinadas a constituir
restrições de uso e lugares acabados – a propor limites de destinação
e prospectivos– são numerosos; na realidade correspondem a um

266
Entre_vista com Donatella Calabi

alargamento efetivo da rede de referência. A cidade não pode ser


estudada como mundo contido em si, como unidade fechada, do
ponto de vista econômico, porque já é cada vez mais, o ponto de um
sistema interrelacionado. Mas não se trata somente disto; também
do ponto de vista da organização formal parece configurar-se uma
topografia nova e diversa para cidadãos originais e estrangeiros que
já estão fortemente presentes em Veneza, em Amsterdã, Gênova,
Sevilha ou Antuérpia, pela sua posição econômica, religiosa e social,
pela sua implantação, pelas decisões e regras que lhes competem,
como para os acordos financeiros, pelas contratações internacionais,
pela transferência da mão-de-obra e das suas competências, pela
divulgação dos conhecimentos, dos saberes técnicos, das notícias... .
As relações que se estabelecem entre Lubecca e Nuremberg, ou entre
Bruges e Antuérpia, falam da transmissão de modelos econômicos,
mas também daqueles edilícios, e de analogias que se estabelecem
entre construções singulares.
Também nas províncias flamengas, como na Alemanha do norte,
nos aglomerados de média e pequena dimensão, se constroem
muitos “Groote Markt” (grandes supermercados) análogos entre
eles. Para os nossos objetivos, eles são tão significativos quanto as
intervenções realizadas ao longo do Quinhentos nos centros cívicos
mais “singulares”, ou mais estudados pela sua arquitetura (Florença,
Veneza). A “galleria degli Uffizi”, as Procuratie e as Fábricas Novas são
certamente o fruto projetual de um artífice mais ou menos culto e
da sua linguagem particular. Se consideradas no contexto urbano,
podem ser interpretadas como fruto de decisões articuladas num
longo período, como resultado de intuições não só individuais,
de decisões que interpretam necessidades coletivas e tendências
largamente sentidas (as estratégias e o gosto de uma época), mais do
que como êxito de uma sistematização teórica, ou a cristalização de
princípios explícitos de desenho urbano e arquitetônico.
Partindo de exemplos circunscritos (para serem escolhidos

267
Adalberto RETTO JR.

cuidadosamente), proporia os que se seguem como sugestões de


grande interesse para pesquisa:
● quais são os traços materiais e construções arquitetônicas
(igrejas, fontes, monumentos, aparatos de festas, palácios
realizados por arquitetos estrangeiros nas cidades que os
hospeda, ou estruturas de acolhimento para comunidade ou
indivíduo de outro país) que põem muito mais em evidência a
existência de uma forte circulação de população?
● Quais são os aspectos que mais impressionam o olhar dos
estrangeiros (as descrições dos viajantes), as representações
(iconográficas e literárias) da cidade?
Através de quais mecanismos passa a circulação das competências,
dos artistas e da mão-de-obra da construção? Onde se dimensiona a
mistura das linguagens arquitetônicas?

268
Entre_vista com Donatella Calabi

8. Estratégias urbanas e resistência da estrutura


edilícia

Storia dell’urbanistica europea. Questione, strumenti,


casi esemplari. Donatella Calabi. Torino, Paravia, 2000

Adalberto Retto e Barbara Boifava: Qual a relação entre estratégias


urbanas e resistência da estrutura edilícia na pesquisa do fenômeno
urbano?
Donatella Calabi: Dada a complexidade e a estratificação dos
poderes, as obras de reformulação física nas cidade do Ancièn
Régime e, em parte, também naquelas contemporâneas, não
acontecem segundo o esquema de um grande plano unitário, nem de
uma transformação em grande escala, mesmo se interferem com a
organização urbana no seu conjunto. Existem casos em que as razões
do sítio são condicionantes, ou nos quais o elemento de viscosidade
é representado pelo peso de uma história muito antiga.
Quando se fala de cidade, é preciso não esquecer que a duração
temporal, de um lado, e a força espacial, do outro, têm uma
269
Adalberto RETTO JR.

capacidade tão ampla a ponto de absorver as condições tecnológicas,


transformações sociais inicialmente não previsíveis. Um exemplo
significativo é a resistência da Paris de Haussmann, à distância de
um século e meio das intervenções.
A narrativa dos acontecimentos que nos interessam se relaciona
então à história longa das cidades: as fases das mudanças são, às
vezes, até mesmo pluriseculares. As hesitações entre o desejo de
captar a herança medieval e as inovações da idade moderna se
arrastam por décadas e abrandam, ou até mesmo obstaculizam,
qualquer decisão28.
Um dos critérios canônicos para definir as escansões cronológicas
urbanas, utilizado contemporaneamente com freqüência, com o das
atividades mercantis predominantes, é a observação do aumento da
população pelo efeito do crescimento demográfico ou migratório
nos momentos de maior complexidade econômica e nos períodos de
transformação dos modos de habitar. Deste ponto de vista, os dados
numéricos geralmente recolhidos para fins fiscais, estratégicos, ou
políticos, são às vezes pouco confiáveis e nem sempre passíveis de
confrontações.
Todavia, a grande articulação do movimento de pessoas nas áreas
urbanas (transitórios ou de um período mais longo) é tal, a ponto
de delinear uma mobilidade elevada, uma notável instabilidade
social de pelo menos uma parte da população e rápidas mudanças;
talvez se possa dizer que, somente para o quadro demográfico, além
daquele político, a fase de 1450 –1650 é, em toda Europa uma das
28 Jean Pierre Bardet, Une nouvelle histoire des villes, in: “Annales” ESC, 1977, 32 (6), pp.
1237-46; Alberto Tenenti, La civiltà europea nella storia mondiale. La formazione del mondo
moderno, sec. XIV-XVII, Bologna 1980, p. 122: não só obstáculos econômicos, mas também di-
ficuldades sociológicas e de gosto coletivo; os mercantes abastados das cidades alemães e
holandesas, de forte tradição municipal ou republicana, identificaram os seus ideais civis com
os modelos da própria construção tradicional, que permaneceram fiéis também no período da
florescência Quinhentista. Cfr. anche: Henry-Russell Hitchcock, German Renaissance architec-
ture, Princeton 1981.

270
Entre_vista com Donatella Calabi

mais vivazes29. Analogamente, pouco confrontáveis são os dados


de ordem topográfica: é conhecido que até as notícias a propósito
da superfície intra muros variam enormemente de um teórico para
outro, e que, em geral, não dispõe-se, para a cidade do Ancièn
Régime, de planimetrias da área urbanizada tão precisas a ponto de
serem confrontadas entre elas, ou a ponto de fornecer indicações
traduzíveis em quantidade, ou de revelar uma tendência30. Fica
ainda mais claro que são pouco comparáveis os dados relativos e a
densidade da edificação, ou a quantidade de habitantes por imóvel,
ou o crescimento por bairro ou por paróquia, ou ainda, o andamento
da despesa pública para a construção, a organização de ofícios, ou
estimativas dos víveres necessários á sobrevivência dos cidadãos.
Estas considerações todas demonstram freqüentemente de enorme
utilidade para o conhecimento de um caso de estudo, mas, que no
conjunto, fogem de qualquer possibilidade de confronto31. É aliás
sabido que, no processo geral de urbanização da Europa depois do
período tardo medieval, esta fase registrou variações importantes
de região à região e entre tipos diferentes de cidade. E, além das
vicissitudes particulares, da alteração de alguns itinerários e de
grupos étnicos inteiros, das desventuras do dia a dia em um lugar
ou noutro (peste, carestia, falências, guerras), os grandes centros
citadinos gozam em geral de boa saúde. Também quando o corpo
destes grandes centros citadinos não aumenta de peso e de volume,
quando no Quinhentos algumas cidades não atravessam mais a fase
do esplendor máximo (Lubecca, Barcelona), as inércias do construído
são tais, que a contrução e a estrutura viária registram por um longo

29 Paul M. Hohemberg, LLynn Hollen Lees, La città europea dal Medio Evo a oggi, Bari
1987, pp. 9-15; R. Mols, Introduction à la Demographie Historique des villes d’Europe du XIV au
XVIII siècle, Louvain 1954.
30 Léopold Genicot, Les grandes villes de l’Occident en 1300, in: Economies et sociétés au
moyen Age, Melanges offerts à E. Perroy, Paris 1973, pp. 199-219.
31 Léopold Genicot, Les grandes villes de l’Occident en 1300, in: Economies et sociétés au
moyen Age, Melanges offerts à E. Perroy, Paris 1973, pp. 199-219.

271
Adalberto RETTO JR.

período o seu passado áulico. Não é somente na época medieval que


uma cidade em declínio pode continuar capital por muito tempo;
também na idade moderna, a geografia das instituições urbanas
evolui menos, e sobretudo menos rapidamente do que a realidade
urbana32. Em cada caso existem deslizamentos temporais fortes; nos
diagramas dos movimentos demográficos ou da taxa de urbanização,
as curvas não se podem sobrepor. Às vezes a recuperação de uma
cidade requer muito tempo ou passa por catástrofes recorrentes:
Florença, cuja população diminuiu drasticamente depois da morte
negra na metade do ano 300, recomeça a crescer sensivelmente
somente depois de 1460; Genova, depois de duas pestes próximas
e um ano de escassez, em 1531 tem 51.150 hab., com uma taxa de
incremento demográfico elevada devido sobretudo à emigração33.
Antuérpia registra 5.000 hab em 1374; 20.000 em 1440; em 1496,
somente poucos anos depois de Maximiliano transferir para ela os
privilégios comerciais de Bruges, 6.000 casas e 68.000 hab; em 1516
passaram a ser 8.785 casas e 87.000 hab., com um aumento de 28%
em uma década; em 1567, momento de máximo esplendor e insipiente
declínio, a sua população teria atingido o teto de 100.000 unidades,
dos quais 26.200 estrangeiros, se confiarmos nos números sugeridos
por Ludovico Guicciardini34, que provavelmente fornece indicações
superdimensionadas mesmo quando trata de outros casos. Isto é
confirmado pelo fato que, na mesma data, Augusta “grande e nobre”,
mas com poucos forasteiros residentes, não supera os 70.000 hab,
enquanto Nuremberg seria bem mais populosa; Paris, para a qual
alguns falam de 700.000 /800.000 hab, na realidade chegaria a
32 É sintomática a renúncia declarada pela maior parte dos medievalistas a um con-
fronto demográfico [IX Congrès International des Sciences Historiques, Paris 1950 pp. 55-80] ; a
afirmação não parece hoje superada, nem mesmo propõe um panorama totalmente diferente
para o período sucessivo.
33 Giuseppe Felloni, Popolazione e case nel 1531-35, in “Atti della Società Ligure di Storia
Patria”, Genova LXXVIII (1964)
34 Ludovico Guicciardini, Descrittione di tutti i Paesi Bassi, altrimenti detti Germania
Inferiore, Antwerp 1567, p. 132.

272
Entre_vista com Donatella Calabi

310.00/320.000; Sevilha, cidade entre as maiores da Espanha, teria


150.000 hab; Florença abrigaria até mesmo 120.000 hab; Veneza,
“cognominata la ricca, e meritatamente”, abrigaria 195.863 almas
esparsas em 60 ilhotas marinhas...35Amsterdã, em períodos normais,
tem uma população de 300.000 pessoas e são todos mercantes, afirma
em 1618 o embaixador veneziano Antonio Donà, talvez exagerando
tal dado; nos momentos de tráfego extraordinário o número de
forasteiros aumenta consideravelmente; é verdade, por outro lado,
que, naquela data, a cidade que tinha começado seu verdadeiro
crescimento há não mais de 35 anos, conseguiu o seu período de
máxima florescência36.
Em suma, estes confrontos resultam somente indicativos;
apesar dos esforços feitos, suscitam algumas perplexidades. Na
falta de uma série de dados contínua e detalhada, existem, porém,
tentativas de reagrupar as maiores cidades dentro de classes de
população bastante amplas37. Há disponível, além do mais, uma vasta
literatura acerca das análises categórico-dimensionais das cidades
no período tardo medieval, assim como numerosas propostas de
corretivos à aplicação da teoria dos lugares centrais aos sistemas
urbanos do antigo regime38. Foi justamente observado que alguns
modelos, mesmo sendo insatisfatórios no seu conjunto, iluminam
certos episódios urbanos melhor do que outros. Mas as diversas
abordagens parecem de fato convergir no elenco de uma espécie
de “internazionale delle città” interessada mais no mundo, na sua
totalidade, do que no próprio quintal39. Se, sob o perfil político,

35 L. Guicciardini, cit. p. 145.


36 Petrus Johannes Blok, Relazioni, cit., p. 110.
37 Roger Mols S. J., La popolazione europea nei secoli XVI e XVII, in: Storia economia
d’Europa, secoli XVI-XVII, Torino 1979, II, pp. 20-21.
38 Cfr. la prefazione di: Bernard Lepetit, Les villes dans la France moderne, Paris 1988.
39 Hans van Werveke, The rise of Towns, in: Cambridge Economic History of Europe, vol.
3, Cambridge 1963, pp. 3-41; J. C. Russel, Population in Europe, 500-1500, in: The Fontana Eco-
nomic History of Europe, vol. I, The Middle Ages, a cura di Carlo Cipolla, London 1972, pp. 25-70.

273
Adalberto RETTO JR.

o Quinhentos pode ser definido como o século das grandes


transformações, a ponto de considerá-lo como um divisor de águas
decisivo para a organização do construído, a escansão é menos clara
e nos casos singulares, se verificam maiores ou menores ritmos de
transformações à jusante e à montante40. Afinal, se é verdade que na
época de Carlos V, da Alemanha à Itália, o poder se consolida nas mãos
dos cidadãos maiores e mais ricos, mas que somente em alguns casos
identifica uma sólida classe de governo patrício capaz de avantajar o
predomínio do interesse público sobre aquele particular, e ainda, se
é verdade, que assim emergem algumas cidades a preço do declínio
de outras, os processos da sua reconfiguração parecem às vezes
escorregadios, algumas vezes sujeitos à aceleração de improviso e
nem sempre reconduzíveis àqueles poderes41.
A disciplina institucional e os acontecimentos da absorção de
muitas cidades dentro de complexos estatais mais vastos, com uma
redução das prerrogativas de autonomia, ou com o manifestar-se de
uma situação de crise, amadurecem nos diversos países em tempos
distintos e nem sempre rápidos, mas sobretudo não têm como único
efeito uma decadência complexiva.
Instrumentos novos e diversos são às vezes adotados para fazer
valer o próprio peso, através das instituições representativas (a sede
de algumas magistraturas, certos ofícios, ou o lugar de organizações
citadinas que administram ou produzem riqueza), ou tentam inventar
e aperfeiçoar novas possibilidades de desenvolvimento42. Assim, a
forma particular de organização do assentamento urbano para fins
produtivos e comerciais, herdada do período medieval, nem sempre
se revela funcional no novo sistema, já governado pelas grandes

40 Guido D’Agostino, Città e monarchie nazionali nell’Europa moderna, in: Pietro Rossi (a
cura di), Modelli di città, Torino 1987, p. 399.
41 Marino Berengo, cit., pp. 669-670.
42 Giorgio Chittolini, La città europea tra Medioevo e Rinascimento, in P. Rossi (a cura di),
cit., pp. 370-393.

274
Entre_vista com Donatella Calabi

potências mundiais43.
É um fato que, para ler a estrutura edificada, parece mais do
que nunca necessário dotar-se de algum instrumento que permita
observá-la através da “abstração da longa duração”, sem negligenciar
as operações que se medem no tempo breve44.
AR e BB: A senhora poderia discorrer sobre o estudo da cidade
como variável de transformação?
DC: Foi observado no passado que responder à pergunta “que
coisa é uma cidade?” para o período entre os séculos XI e o XIV, é
aparentemente muito fácil: a maior parte dos escritos e das pinturas
mostra a cidade como cinturão murado, densamente construída no
seu interior, com um perfil dominado pelas construções religiosas;
o coração da vida ativa é o mercado, onde se efetua a troca entre
os vários setores de produção; no momento em que se consolida
esta centralidade, acrescentam-se funções culturais e político-
administrativas45. Mas, ao longo dos séculos, a maior parte das cidades,
mesmo permanecendo em boa medida fiel à própria imagem, não a
preserva: em geral suscita não um discurso, mas outros discursos
simultâneos que se entrecruzam. Os séculos XVI e XVII não fogem
certamente a esta regra. Ao contrário, na Europa é justamente esta a
fase em que uma série de iniciativas de definições setoriais preparam
o nascimento da cidade contemporânea46: iniciativas que são em
parte velhas, porque são repetitivas de outras já empreendidas no
passado, e em parte totalmente novas. Existem fatores externos que
condicionam o desenvolvimento e as transformações das cidades,
nesta ótica é possível estudar a cidade como variável dependente; ou

43 F. Braudel, Civiltà....cit., pp. 398-9.


44 Ludovico Guicciardini, Descrittione di tutti i Paesi Bassi, altrimenti detti Germania
Inferiore, Antwerp 1567, p. 132.
45 Edith Ennen, Storia della città medievale, Bari 1983 (I ed., Goettingen 1972)
46 Roger Chartier e Henri Nevreux, La ville dominante et soumise, in: Histoire de la Fran-
ce Urbaine, vol. 3, pp. 121-127.

275
Adalberto RETTO JR.

ainda, como variável independente da mudança, ou até mesmo capaz


de influenciar toda a economia e o conjunto da sociedade. Isto foi
feito não só no estudo da época Medieval, mas também para a cidade
industrial. O advento da ferrovia é um fator de grande significado
potencial para a transformação urbana, que dificultou o estudo da
história local, e contribuiu para separar cidade e campo.

9. Crédito

Venise. Civilisation. Donatella Calabi. Paris , Liana Levi,


1999

Donatella Calabi

Professora titular de “Storia della Città e del Territorio” do

276
Entre_vista com Donatella Calabi

Dipartimento di Storia dell’Architettura, do Istituto Universitario


di Architettura di Venezia – Itália. Atualmente è coordenadora do
Dottorato di Ricerca di Eccellenza da “Università Ca’ Foscari” de
Veneza, juntamente com o “Istituto Universitario di Architettura di
Venezia” (IUAV) e com a “Venice International University di Venezia
“(VIU) e Presidente da “Associazione Italiana di Storia Urbana”. Foi
Directeur d’études na Ecole des Hautes Etudes de Paris, professora
visitante na British Academy de Londres, na Universidade de Paris
VIII e na Katholieke Universiteit de Lovain. Presidente da European
Association of Urban Historians e Team Leader para os temas
relacionados à “cidade” da European Science Foundation/ gruppo
“Cultural Exchanges”.
Publicou ensaios sobre história da cidade moderna na Itália,
Inglaterra, França e possui publicações em inglês, francês, alemão,
espanhol, grego, japonês e holandês. Dentre os quais: Fabbriche,
piazze, mercati. La città italiana del Rinascimento, Roma 1997; La
città degli ebrei (com Concina e Camerino), Venezia 1991; Venise
(Paris 1999); com P. Lanaro dirigiu La città italiana e i luoghi degli
stranieri, Bari-Roma 1998; com J. Bottin, Les Etrangers dans la ville,
Paris 1999. Atualmente dirige pela editora Laterza a coletânea de
livros sobre História da Cidade, na qual publicou La Città del primo
Rinascimento.
Sobre história do urbanismo, escreveu: E. Hénard. Alle origini
dell’urbanistica: la costruzione della metropoli, Padova-Venezia 1974;
uma antologia de textos de Baumeister, Stübben, Eberstadt, Roma
1974; antologia de textos de W. Hegemann, Milano 1975 e 1976; Il male
città: diagnosi e terapia, Roma 1979; L’architettura domestica in Gran
Bretagna, Milano 1982; Parigi anni Venti. Marcel Poëte e le origini
della storia urbana, Venezia 1997 e Paris 1998); e Storia dell’Urbanistica
europea. Questione, strumenti,casi esemplari,Torino 2000.
Adalberto Retto Jr.

277
Adalberto RETTO JR.

arquiteto, professor da UNESP – Campus de Bauru; doutor em pela


FAUUSP com a tese “Escalas de modernidade. Vale do Anhangabaú:
estudo de uma estrutura urbana”, que é uma reconstrução da
história da estrutura urbana de uma parte da cidade de São Paulo,
nos diversos períodos da sua formação. Durante a permanência de
um ano e meio no Istituto Universitario di Architettura di Venezia,
cursou como aluno regular o doutorado no Dipartimento di Storia
dell’Architettura, coordenado pelo prof. Howard Burns e realizou
atividades de pesquisa em arquivos na Itália, França, Bélgica e
Portugal, seguido pela profª Donatella Calabi.”
Barbara Boifava
Arquiteta, formada pelo ‘Istituto Universitario di Architettura di
Venezia. Atualmente freqüenta o doutorato em História de Arquitetura
e Urbanismo na mesma universidade, onde desenvolve atividade de
colaboração á didática. Na tese de doutorado está pesquisando sobre
o tema do ensinamento da história da arquitetura no século XIX na
Ècole des Beaux-Arts de Paris.
Entrevista
Esta entrevista é a primeira de uma série sobre a “Scuola di
Venezia”, organizada por Barbara Boifava e Adalberto da Silva Retto
Júnior. As temáticas da entrevista foram elaboradas conjuntamente
pelos dois entrevistadores e encaminhadas à professora Calabi. A
entrevista foi disponibilizada em Vitruvius em julho de 2003.
Tradução
A versão para o português foi feita em conjunto por Adalberto e
Christian Traficante.

278
Entre_vista com Donatella Calabi

279
280
Entre_vista com Guido Zucconi

1. Introdução

Camillo Sitte e i suoi interpreti, livro de Guido Zucconi

Adalberto da Silva Retto Júnior: Donatella Calabi em História


urbana na Itália (2002) afirma que “A História da cidade (na Itália)
nasceu da História da Arquitetura, mais do que da história social,
institucional, ou econômica (como é freqüente em outros países
europeus)”. Tafuri, sem deixar de incluir Marcello Piacentini, enfatiza
que “No momento em que a história da arquitetura nasce na Itália
moderna, encontra um forte apoio na figura de Gustavo Giovannoni,
depois de Vicenzo Fasolo e de outros personagens deste gênero.” E
reforça que “Tratava-se da tese do arquiteto integral”, com o mesmo
fundo ideológico de Walter Gropius, cujo slogan era, “da colher à
cidade”. Dessa forma, pode-se pensar na formação de intelectuais

281
Adalberto RETTO JR.

“orgânicos”- para usar uma expressão de Antonio Gramsci. Gostaria


de saber, quais são as personagens-chave, na Itália, que desenharam
um percurso alternativo que individualiza a cidade como sujeito de
estudo?
Guido Zucconi: Acho muito apropriada a referência a Giovannoni,
através da interpretação proposta por Tafuri em 1967. O meu livro
sobre Giovannoni de 1997 partia daquele juízo brilhante de trinta
anos antes: o título escolhido naquela ocasião Do capitel à cidade,
correspondia à tradução giovanoniana da colher à cidade: uma
tradução sob o signo da arte e da história.
Porém, devemos estar atentos, pois Tafuri ia ainda além,
envolvendo o conjunto dos arquitetos, intelectuais italianos incapazes,
segundo ele, de emancipar-se do mito giovanoniano do “projetista
integral” e do “arquiteto que faz tudo”: tivemos uma prova disso com
a recentíssima reforma das ordens didáticas (o assim chamado “3+2”)
que “driblou“ a demanda de especialidades. Em todos os cursos por
assim dizer “especialistas” foi de fato proposto a mesma figura do
projetista onisciente, variadamente aromatizado (existe o arquiteto
ao sabor de “restauro”, o arquiteto ao sabor do “urbanismo”).
Esta hegemonia do arquiteto condicionou também setores
limítrofes, como da história urbana: isto também por causa da
fraqueza de algumas disciplinas – como a geografia – que em outros
países tiveram e têm ainda hoje um papel decisivo. Porém, na França
e na Espanha, dois países vizinhos da Itália, são os geógrafos – não
os arquitetos – que fornecem uma longa e nobilíssima tradição de
estudos monográficos.
Em meu ensaio apresentado no Brasil, eu enfatizei um outro
fator de “desbalanceamento” na mesma direção: o peso adquirido
na Itália da assim chamada “literatura artística” (monografias sobre
praças e monumentos, guias, coleções fotográfica) que, entre o
fim do século XIX e o início do século XX, havia concentrado sobre

282
Entre_vista com Guido Zucconi

bases arquitetônicas uma grande massa de material cartográfico,


iconográfico, monográfico. Na origem de uma tradição de estudos
sobre a cidade, existem aqueles mesmos lugares que mais tarde
reaparecem representados do mesmo modo: basta analisar as fontes
para perceber esta surpreendente continuidade.

2. Biografia e historiografia

Camillo Sitte e i suoi interpreti, livro de Guido Zucconi

Adalberto da Silva Retto Júnior: A biografia, em geral, foi colocada


á sombra da historiografia idealista, marxista e da “nova história”
quantitativa. Em seu recente ensaio apresentado no Brasil (2002),
intitulado “Os arquitetos e a história da cidade: a contribuição
italiana”, o Sr. afirma porém que na Itália contemporânea, se
desenvolvem dois filões que assumem relevo: as monografias
ilustradas, mas também as pesquisas de história local. Carlo Olmo,
ao contrário, em “Hipóteses e contradições de uma nova história
da arquitetura e da cidade industrial” (1980), dizia que “A distância

283
Adalberto RETTO JR.

que separa história urbana e história da arquitetura é, teoricamente


menor na Inglaterra que na Itália” e que esta tradição historiográfica
de estudos quantitativos no setor da construção (Inglaterra) ajuda
a explicar dois fenômenos, aparentemente contraditórios, que
distinguem hoje a história urbana inglesa: o aumento de estudos
da história local e o interesse por modelos matemáticos, aplicada
aos estudos da história econômica.” E reforça que “A historiografia
urbana mais em crise e portanto certamente mais interessante é hoje
a anglo-saxônica pelos interesses e relações que articula a formação
de uma teoria do crescimento urbano e a definição de instrumentos
formais de análise quantitativa, a riqueza de trabalhos setoriais, o
interesse da demografia histórica, como da história econômica para a
organização do território”. Quais são as razões desta particularidade
italiana?
Guido Zucconi: É verdade que a dimensão da biografia foi colocada
oficialmente à sombra da historiografia idealista, marxista e da “nova
história” quantitativa: é também verdade que, se percorrermos os
catálogos das principais editoras (a começar pela Electa), encontramos
uma nítida supremacia do gênero monográfico-biográfico. Isto vale
sobretudo para a atualidade, mas também para o século XX e o século
XVI, ou mesmo os dois âmbitos principais da pesquisa histórica.
Deste ponto de vista, a historiografia arquitetônica aparece anos
luz distante da revolução quantitativa que ao contrário assinalou
a historiografia maior: Le Corbusier, Gropius, Mies ou Behrens
que ainda de forma imponente dominam o campo, quase como se
representassem o equivalente dos reis e dos chefes tão queridos à
histoire événémentielle.
Estamos ainda bem distantes de ter enfrentado uma dimensão
quantitativa: o problema é depois agravado pelo “dilúvio” construtor
que caracterizou a cidade ocidental (e não somente nos últimos dois
séculos): quem mediu seriamente em seus aspectos de construção,
nos modelos e nos tipos predominantes? Apesar do grande

284
Entre_vista com Guido Zucconi

crescimento, continuamos a falar somente dos pontos de excelência:


como se quem quisesse escrever uma história da alimentação levasse
em consideração somente as receitas dos grandes cozinheiros
franceses.
Chegando à segunda pergunta, eu não sei se a anglo-saxônica é
a historiografia mais em crise, como afirma Olmo: certamente, além
do canal da Mancha, a história urbana parece sic et simpliciter como
um ramo da história econômica. Esta sua particularidade a distingue
da Europa continental e da Itália em particular (e do Brasil, de acordo
com o que eu pude ver no congresso da Bahia).
Num paralelo entre a Itália – resto do mundo, continuamos porém
a girar em torno de um mesmo problema que tem várias faces: eu
me refiro à fraqueza dos estudos analíticos e das pesquisas de tipo
quantitativo que na Itália tiveram modesto desenvolvimento. Eu me
lembro que nos dois primeiros anos do século XX, foi derrotada a
facção dos urbanistas-estatísticos que então comandava a União
dos municípios italianos e que tinha em Turim a sua cidade de
referência: a revista Urbanistica, em suas melhores edições, e a obra
de Astengo representaram a deixa desta tradição ininterrupta. Não
por acaso, tanto uma como outra constituíram vozes dissonantes em
um panorama urbanístico dominado pelos princípios piacentinos e
giovanonianos: antes pela direita, depois pela esquerda continuavam
(e continuam) a ser reafirmadas a supremacia dos problemas da
forma e o primado da arquitetura sobre a urbanística (esta última
considerada como um caso particular da primeira). Astengo aparecia
porém com um “alienado” quando convidava os alunos de seu curso
a recolher preliminarmente e sistematicamente dados estatísticos
que diziam respeito à área do projeto: este tipo de operação em
outros países aparecia descontado, enquanto que no “país da bela
arquitetura”, parecia bizarro.
Discordo portanto, quando Olmo avista uma distância entre
a história urbana e a história da arquitetura que seria menor na

285
Adalberto RETTO JR.

Inglaterra com relação à Itália; ao contrário, enquanto lá os dois campos


pertencem a duas corporações bem distintas (respectivamente dos
historiadores econômicos e dos historiadores da arte), para nós os
dois âmbitos têm em comum especialistas que provêem da mesma
fonte, ou seja, da arquitetura.

3. Boito, Giovannoni, Sitte, Calabi e Levi

La città contesa. Dagli ingegneri sanitari agli urbanisti


(1855-1942), livro de Guido Zucconi, Jaca Book

Adalberto da Silva Retto Júnior: As biografias e estudos


monográficos escritos pelo senhor tendem a reconhecer as
peculiaridades de pensar o urbanismo e a cidade. O emergir das
diferenças entre os personagens pelo senhor estudados, como
Camillo Boito, Gustavo Giovannoni, Camillo Sitte, Daniele Calabi,
Rino Levi, seguem uma determinada seqüência histórica ou um linha
interpretativa?
Guido Zucconi: Poderia acrescentar outras, como Luigi Mattioni,

286
Entre_vista com Guido Zucconi

arquiteto da reconstrução milanesa, Gino Zani, artífice da reparação


medieval de S. Marino, Marcello D’Olivo, o arquiteto do 2° pós-guerra
italiano mais próximo a Wright. Digo isto não para ostentar outros
títulos, mas porque este segundo lote de estudos monográficos
revela melhor o meu objetivo de partida: reconsiderar obras ligadas a
figuras que permaneceram em um cone de sombra.
Agora existem dois tipos de cones de sombra: os que envolvem
as figuras mais seriamente analisadas pelos estudiosos (como Zani,
Mattioni, Calabi e o próprio Giovannoni), apesar do valor meta-
individual de sua obra. Há aqueles (como Boito ou Sitte) que foram
objeto de um culto superficial: o peso de sua contribuição foi
considerado tradicionalmente como certa sem sérias verificações a
respeito. Veja-se por exemplo a assim chamada “carta do restauro”
de Boito ou a “herança” de Sitte: duas noções nebulosas tão citadas,
quanto pouco analisadas concretamente.
A biografia deve ser, a meu ver, sempre combinada a um ou mais
termos de importância geral: nesta perspectiva, não achatada pelo fato
individual, o estudo monográfico se torna o instrumento para medir
a distância entre o estado dos conhecimentos e o ponto de chegada
que nos propomos no plano da pesquisa crítica. A superficialidade
das referências boitianas revelava, na realidade, uma escassa atenção
nos confrontos das correntes neo-medievais, bastante mais fortes
na Itália setentrional e central de quanto nos dizem os estereótipos
correntes no “país do classicismo por excelência”.
As figuras, o objeto de estudo, aparecem neste caso ainda mais
indeterminados com relação a setores afins, como aquele dos
arquitetos projetistas. Há sociólogos emprestados à urbanística,
analistas provenientes das ciências estatísticas e econômicas,
arquitetos que se ocupam de planos urbanos, ex-assessores ou ex-
funcionários públicos convertidos à academia: enfim, encontramos
um leque muito amplo de perfis que são por sua vez reveladores de
uma multiplicidade de hipóteses disciplinares.

287
Adalberto RETTO JR.

Em 1989 escrevi um livro intitulado La città contesa. Dagli


ingegneri sanitari agli urbanisti, 1885-1942. Tinha colocado em
confronto não simples biografias, mas possíveis perfis identitários:
o médico-sanitarista, o engenheiro-funcionário, o cultor da
arquitetura, o sociólogo, o economista e enfim o urbanista (tanto
aquela “alla Piacentini”, como aquele “alla Giovannoni”). Todos tinham
reivindicado, entre 1885 e 1945, um primado técnico-intelectual
sobra a cidade a nível tanto de indagação como de intervenção.
Em muitos casos, é portanto possível construir uma espécie
de “super biografia”, de “biografia das biografias”, que nos permite
compreender aquele emaranhado disciplinar-metodológico que
acompanha o problema da especificidade no interior da cidade.

4. A biografia de um arquiteto e urbanista

La grande Venezia. Una metropoli incompiuta tra Otto


e Novecento, livro de Guido Zucconi, Marsilio

Adalberto da Silva Retto Júnior: O que deve ser objeto de estudo


com a finalidade de focalizar o aposto disciplinar na montagem

288
Entre_vista com Guido Zucconi

de uma biografia de um arquiteto urbanista? Os planos: enquanto


produto de uma prática, e portanto documentos que evidenciam o
modo próprio de usar e padronizar as ferramentas da profissão, ou
os planos enquanto instrumento eficaz de domínio dos fenômenos,
e portanto planos realizados, planos eficazes, obras induzidas e
processos iniciados? Os escritos e portanto, a teoria expressa que
restitui o sentido da prática?
Guido Zucconi: Eu penso que foi excessivamente enfatizado o
papel dos planos, com prejuízo de elementos menos espetaculares,
mas igualmente eficazes: por exemplo, em sua constituição, a ”Veneza
maior” não foi objeto de planos, porém, a seu modo, foi igualmente
planejada (através do desenho da viabilidade, o projeto de alguns
pontos significativos, a localização de serviços estratégicos...) Para
não falar dos países anglo-saxões onde nunca existiram planos, no
sentido comumente dado pelas nações à alta taxa de direcionamento
(França, antes de tudo, mas também a Itália, Brasil...): Londres nunca
teve um plano, depois da perda dos esquemas que se seguiram
ao grande incêndio de 1666: impingir para os planos os esquemas
redigidos para o Greater London por Unwin e por Abercrombie foi
forçar claramente a situação.
Há contudo um setor ainda totalmente a ser explorado que
eu chamaria de unproper planning: é dominado por indivíduos
teoricamente estranhos ao planejamento oficial, os quais porém
condicionaram profundamente a forma e o destino da cidade. Penso,
por exemplo nos superintendentes dos monumentos os quais na
Itália marcaram a acomodação de muita áreas protegidas (em alguns
casos de inteiros centros históricos); penso no corporate planning,
ou nos desenhos de administrações que souberam incidir sobre a
acomodação territorial bem mais do que o plano regulador (como
a Fiat em Turim, a Anic-Eni em Ravena e, obviamente, a Olivetti em
Ivrea).
Penso sobretudo nos militares, grande “buraco negro” da

289
Adalberto RETTO JR.

historiografia urbana: por dificuldade de acesso aos arquivos, além


de razões ligadas ao politically correct, falou-se muito pouco,
principalmente, do período compreendido entre o fim do século
XVIII e a metade do século XIX: nesta fase, as corporações do
exército substituíram a ausência de aparatos civis que nasceram
somente mais tarde. Isto vale, me parece, também e principalmente,
para países do novo mundo, como o Brasil e o México.
Mesmo na ausência de planos stricto sensu, conheço não poucas
cidades européias redesenhadas por militares no curso do século
XIX: Tolone, Corfù, Malta, Timi-oara, Belgrado...para não falar das que
nasceram de um esquema inteiramente militar (Odessa, La Spezia...).

5. O quantitativo e o qualitativo

Daniele Calabi. Architetture e Progetti. 1932-1964, livro


de Guido Zucconi, Marsilio

Adalberto da Silva Retto Júnior: A freqüência do historiador


da arquitetura moderna aos estudos sociológicos, significou

290
Entre_vista com Guido Zucconi

criticamente a colocação em discussão de implantes historiográficos,


construídos sobre a leitura de edifícios considerados excepcionais
pelas técnicas utilizadas (construtivas, formais, etc). Estudos como
os de S. Giedion, p. Pevsner, B.Zevi e de G.C. Argan, nas palavras de
Olmo (1980), não tem só representado um modo de fazer história,
mas, de modo direto, a proposta e a afirmação de uma teoria do
habitar. O que é colocado em discussão é a separação entre análise da
dimensão urbana, entendida como setor de uma mais vasta realidade
econômica e social e a concepção da arquitetura, como a produção
de alguns intelectuais e a história de poucas obras excepcionais. A
ligação que une a pesquisa de soluções individuais e a cidade como
pode ser mediado no estudo urbano?
Guido Zucconi: A análise da habitação, também e através de
fontes cadastrais, deveria representar a célula constitutiva de um
universo urbano estudado em seu todo e não somente através de
alguns episódios emergentes: isto não é utopia, mas uma perspectiva
percorrível, como demonstra o quanto se está fazendo na Espanha
há alguns anos, graças a geógrafos como Rafael Màs e Mercedes
Tatjer. O estudo sistemático sobre a ”vivenda” permitiu reconstruir
por inteiro o traçado construtor de alguns bairros residenciais como
Barceloneta ou o Bairro de Salamanca em Madri. Eu retomo assim
aquilo que eu disse na segunda resposta.
Recortada sobre um aprofundado fundo cognitivo, a análise
pontual de algumas obras de realce adquire por isso um valor relativo
que se revela fundamental para a interpretação do simples projeto. Em
confronto com um quadro definido por inteiro, os casos são dois: ou
a obra adquire uma unicidade e excepcionalidade ou afunda no mare
magnum de uma produção corrente. O culto difundido para l’Unité
lecorbusieriana receberia um sério redimensionamento se colocada
em comparação com o panorama das periferias francesas, dominado
no segundo pós-guerra pelos grandes imóveis – freqüentemente
experimentais – concebidos nos programas HBM e HLM.

291
Adalberto RETTO JR.

Um consistente nexo entre arquitetura e edificação, entra a


poesia e a prosa do construir poderia portanto encurtar aquela
distância profunda que hoje separa a historiografia quantitativa da
historiografia qualitativa (esta, para sermos claros, centrada nas
grandes obras de grandes arquitetos).

6. Continuidade histórica

La cittá delĺ ottocento, livro de Guido Zucconi, Laterza

Adalberto da Silva Retto Júnior: Em La città dell’Ottocento


(2001), a cidade aparece dominada por fatores dinâmicos, que serão
fornecidos pela demografia, antes que da economia (Zucconi, 2001).
À frente de estrepitosas performances quantitativas, se difunde e
se impõe o termo “metrópole”. Queria que o Sr. respondesse a uma
pergunta feita pelo senhor mesmo em seu livro: O que caracteriza
a história da cidade ocidental de modo particular? Quais fatores de
continuidade recordam um longo período, entre o fim do século
XVIII e o início do século XX?

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Entre_vista com Guido Zucconi

Guido Zucconi: Difícil dar uma resposta seca. Preferiria contudo


falar de “cidade européia”, incluindo nesta definição também as que
Braudel havia definido as “novas Europas” (neste caso entrariam
também cidades que estão nominalmente no leste, como Vladivostok
ou Sidnei). Começaria com um dado quantitativo: a onda demográfica
se manifesta na Inglaterra e na metade do século XVIII, depois avança
para a Europa continental de norte a sul, para depois dirigir-se para
novas Europas. Nos últimos cinqüenta – quarenta anos voltou-
se para além das novas Europas: o que hoje está acontecendo em
Djacarta ou em Seul é, portanto, a “cauda” de um fenômeno iniciado
há mais de duzentos anos, nas ilhas britânicas. Nisto há uma perfeita
continuidade entre Ocidente e Oriente, entre não-Europas e Europas,
sejam elas velhas ou novas.
Mas cheguemos aos aspectos qualitativos. Se nos detivermos no
período que antecede 1970, talvez possamos chamar para a causa, a
persistência de uma acomodação topográfico-formal que nas velhas
e novas Europas tinha “sustentado” também a passagem da cidade
para metrópole, por quanto estivessem dilatadas desmedidamente.
Londres, Boston ou Rio de Janeiro haviam conservado as noções
de centro e de limite, já amplamente “demolidas” em lugares como
Tóquio ou Calcutá. Neste processo de manutenção acredito tenha
desenvolvido um papel importante a presença de algumas instituições
bem localizadas: a igreja, a prefeitura, os prédios governativos que,
nas cidades das velhas e novas Europas mantiveram uma relação de
identidade com os lugares. No oriente, a “volatilidade” dos lugares
das instituições tem contribuído com uma lentidão na relação forma-
identidade.
Enfim, após um certo período, também no ocidente, a dimensão
da megalópole parece ter submergido uma série de consolidadas
coordenadas urbanas, como bem demonstra o caso de São Paulo.

293
Adalberto RETTO JR.

7. Créditos

Florence e Venice, livros de Guido Zucconi

Guido Zucconi
Nasceu em Modena (1950), formou-se m Arquitetura junto ao
Politécnico de Milão (1975), posteriormente obteve o título de Master
em História da Arquitetura junto à Universidade de Princeton, USA
(1977). Ensinou junto à Faculdade de Arquitetura de Veneza, Milão
e na Faculdade de Letras da Universidade de Udine. Desde 1994 é
professor do Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza (IUAV),
na qualidade de titular de ensino de História da Arquitetura, mantém
cursos de História do Urbanismo e de História da Arquitetura
contemporânea.
Foi “visiting professor” na Universidade de Edimburgo em 2000 e
na Ecole Pratique de Hautes Etudes, na Sorbonne em Paris em 2001.
Fez conferências em Roma, Napoles, Milão, Turim, Palermo, Atenas,
Lion, Paris, Londres, Edimburgo, São Paulo, Brasília.

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Entre_vista com Guido Zucconi

Seu principal campo de interesse é a História da Arquitetura e


do Urbanismo entre os séculos XVIII e XX, com especial atenção ao
caso italiano. Neste contexto aprofundou temas e casos que dizem
respeito à relação arquitetura-cidade, conservação-urbanística,
profissão-formação didática: a arquitetura neo-medieval foi objeto
de estudos particulares no curso dos últimos dez anos.
Autor de artigos e textos sobre o assunto, entre os quais “A
invenção do Passado. Camillo Boito e a Arquitetura Neo-Medieval na
Itália” (1997). Curador de coletas de ensaios sobre a obra de figuras-
chaves como Camillo Sitte (1992), Gustavo Giovannoni (1997). Foi
responsável por uma mostra de sobre a figura e a obra de Camillo
Boito (Camillo Boito: uma Arquitetura para a Itália Unida, Padova
2000).
No setor da história urbana e da história do urbanismo, publicou
La città contesa. Dos Engenheiros Sanitários aos Urbanistas, 1885-
1942, (1989) e mais recentemente La città dell’Ottocento (2001); foi
também responsável por uma coleta de ensaios, La Grande Venezia.
Una metropoli Incompiutatra Otto e Novecento (2002).
Autor de monografias sobre a obra de arquitetos italianos
contemporâneos, principalmente de algumas figuras deixadas à
sombra pela crítica (Mattioni, Zani, D’Olivo, Avon). Sobre estas e
outras personagens redigiu ensaios, e artigos para enciclopédia em
italiano e em inglês.
Adalberto da Silva Retto Júnior
Professor de História Urbana/ Projeto Urbano no Departamento
de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo da FAAC – Unesp Bauru.
Entrevista
Esta entrevista é a segunda da série sobre a “Scuola di Venezia”.
Adalberto Retto Júnior entrevistou Guido Zucconi em Veneza, Itália,
em Janeiro de 2004. A entrevista foi disponibilizada em Vitruvius em

295
Adalberto RETTO JR.

abril de 2004.
Tradução
A versão em português é de Ilda Rugai Delicato, com revisão de
Adalberto Retto Júnior e de Norma Constantino.
Imagens
Fernanda Turini

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Sobre o Autor

Sobre o Autor

Professor na Universidade Estadual Paulista – Unesp, desde 1994,


e atual coordenador do Curso de Arquitetura e Urbanismo e do
Curso Internacional de Especialização Lato Sensu em Planejamento
Urbano e Políticas Públicas: Urbanismo, Paisagem, Território.
Pós-doutorado no Istituto Universitario di Architettura di Venezia
- IT (2007) como bolsista FAPESP.
Mestre e Doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo (Bolsa Fapesp) e pelo Departamento de
História da Arquitetura e Urbanismo do 2003) com bolsa sanduíche
CNPq no Istituto Universitario di Architettura di Venezia – IT.
Foi professor-pesquisador visitante no Master Erasmus Mundus
TPTI (Techniques, Patrimoine, Territoire de lIndustrie: Histoire,
Valorisation, Didactique) da Universidade Panthéon Sorbonne Paris
I(2011-2013).
Representante da Unesp no Condephaat Conselho de Defesa do

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Adalberto RETTO JR.

Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado


de SP (2015 e 2016). Membro suplente do CAU SP (gestão 2018-2020)
Coordenador do grupo de pesquisa SITU - Sistemas Integrados
Territoriais e Urbanos, cadastrado no Diretório dos Grupos de
Pesquisa no Brasil desde setembro de 2003 e composto por docentes
e alunos pesquisadores (Iniciação Científica e estagiários de
prefeituras) de Arquitetura e Urbanismo e outros cursos da Unesp,
de outras universidades nacionais e internacionais, e consultores
externos.
Em seu primeiro ano de funcionamento, visando delinear e
consolidar um itinerário de pesquisa no Centro Oeste Paulista,
o grupo de pesquisa SITU realizou dois eventos internacionais e
sedimentou duas linhas prioritárias de pesquisa, a saber: 1 - História
da Cidade e do Território e 2 - Conhecimento Histórico-Ambiental
Integrado na Planificação Territorial e Urbana.
Dentro da linha História da Cidade e do Território, e com
parceria com o IUAV di Venezia na figura da Prof. Donatella Calabi
e colaboração da Profa. Dra. Heleni Porfyriou (CNR), foi realizado o
I Congresso Internacional de História Urbana, como parte de uma
rede internacional de três congressos ( Viena em nov. 2003, Veneza
em jan. 2004 e Agudos em nov. 2004), que objetivou refletir sobre o
urbanismo internacional de 1880 a 1930, reposicionando profissionais
latino-americanos no mapa da circulação dos saberes e explorando
as “declinações nacionais”.
Coordenação do grupo de pesquisa da Unesp (Bauru) “O processo
de urbanização do Centro-Oeste Paulista e as Frentes Pioneiras
baseadas no Binômio Café-Ferrovia - 1850–1950”, com pesquisas in
loco em 100 cidades do estado de São Paulo, como parte do projeto
temático Fapesp (2006-2011) coordenado pela Profa. Dra. Maria
Stella M. Bresciani - Unicamp: “Saberes Eruditos e Técnicos na
Configuração e Reconfiguração do Espaço Urbano: Séculos XIX e XX”.

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Sobre o Autor

A segunda linha de pesquisa, em Conhecimento Histórico-


Ambiental Integrado na Planificação Territorial e Urbana, promoveu
um workshop itinerante com dois objetivos: 1 - analisar as
transformações da paisagem do estado de São Paulo (do litoral ao
interior) e 2 - elaborar um plano diretor participativo para a cidade de
Agudos com financiamento do Ministério das Cidades (Laboratório
Agudos). Para o primeiro objetivo, o grupo contou com a participação
especial de equipe interdisciplinar composta pelos professores Dr.
Aziz Ab’Saber – FFLCH USP, Dr. José Cláudio Gomes (Unesp – Bauru/
FAU USP), Dr. Jurgen Richard Langenbuch (Unesp- Rio Claro), Dr.
Sylvio Barros Sawaya (FAU USP), Dr. Witold Zmitrowicz (FAU USP)
e do italiano Dr. Bernardo Secchi. Com isso, buscou-se construir
um arquivo de intervenções e planos urbanísticos realizados nas
cidades para evidenciar o longo percurso no campo da construção
do território.
Na linha de pesquisa em Conhecimento Histórico-Ambiental
Integrado na Planificação Territorial e Urbana: Coordenador da
elaboração do Plano Diretor Participativo do Município de Agudos
SP (2004-2006), da revisão do Plano Diretor do Município de Jaú
(2010-2011), do Plano Estrutural de Pirajuí (2013), do Plano Diretor,
de Mobilidade e de Turismo do Município de São Manuel SP (2014-
2015), do Plano Diretor de Bariri, do Plano de Mobilidade da Estância
Turística de Holambra, da revisão do Plano Diretor de Itápolis, de
Pederneiras e do Plano de Zoneamento de Agudos. Foi coordenador
científico da Revisão do Plano Diretor de Jaú - 2019.
Como representante da Unesp no Condephaat Conselho de
Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico
do Estado de SP (2015 e 2016), fez parte da equipe de Revisão do
Plano de Tombamento do Centro da Cidade de Amparo, que teve
metodologia baseada no conceito de Morfotipo Urbano referendada
pelo Condephaat.

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Adalberto RETTO JR.

300
A coletânea ilustra um quadro sinóptico de
dez entrevistas realizadas a partir de 2003,
e destaca a importância das mesmas para
construção de um itinerário de pesquisa no
campo da historiografia do projeto urbano
em escala internacional. As perguntas
foram previamente apresentadas e lapida-
das, em conjunto, tendo por base um plano
de pesquisa predeterminado, cujo objetivo
primordial era fornecer uma estrutura para
que os entrevistados expressassem seus
pontos de vista, a partir de uma abordagem
centrada nas variáveis da pesquisa e nas
características do fenômeno estudado. Em
síntese, as entrevistas foram pensadas
como estratégia de coleta de dados primá-
rios ou em combinação com observações e
análises de outros tipos de documentos.

Adalberto RETTO JR

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