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ARQUITETURA VERNACULAR COLONIAL EM MINAS GERAIS

ALGUMAS RELEITURAS POSSÍVEIS


Martins, Régis Eduardo (1); Dangelo, André Guilherme Dornelles (2)
Universidade Federal de Minas Gerais, martins.regise@gmail.com (1); Universidade Federal de Minas
Gerais, andregddangelo@gmail.com (2)

RESUMO
As manifestações arquitetônicas do período colonial mineiro têm sido objeto de estudo desde os primórdios da história
da construção no Brasil, realizando-se, ao longo do tempo, um amplo aprofundamento no campo da arquitetura
religiosa, principalmente. A arquitetura vernacular desse período, depois de um tempo, deixou de ser investigada na
mesma medida em que se produzia conhecimento nos outros campos. Com isso, houve uma certa estagnação a partir
dos estudos fundadores contidos nos artigos das Revistas do SPHAN e de publicações monográficas de autores como
Paulo Santos e Sylvio de Vasconcellos. Mais recentemente, Güinter Weimer e Carlos Lemos revisitaram o tema,
demonstrando alguns pontos de avanços em relação aos dos primeiros estudos e indicando outras possibilidades de
compreensão desse universo arquitetônico de herança portuguesa. É essa linha de pensamento que conduz a tese em
andamento, que deu origem a esse artigo, na qual se busca indicar outras formas de analisar a arquitetura vernácula
colonial mineira. Para tanto, está sendo utilizado alguns indicadores principais, definidos em função do período de
construção, da tipologia de partido arquitetônico, dos elementos decorativos agregados e do caráter de regionalidade.
A medida que os estudos avançam é possível perceber possibilidades de classificação das obras por: temporalidade
(distinção entre os modelos dos séculos XVIII e XIX), soluções de fachadas (partidos mais complexos, nos quais se
adotam ornamentação de caráter neoclássico-ecletizante) e, principalmente, por similaridade em função de uma região
(existência de padrões que se repetem a partir dos núcleos urbanos mais importantes). Isso permite tratar o tema
aproximando-se mais do modo como se classifica a arquitetura vernácula em Portugal e Espanha, por exemplo. A
definição desses indicadores oferece, também, condições de caracterizar as obras utilizando outros pontos de vista,
como a estrutura da rede urbana colonial em Minas Gerais e da presença de influências externas na arquitetura local.
Palavras-Chaves: arquitetura vernácula; período colonial; Minas Gerais.

ABSTRACT
The colonial architecture of Minas Gerais have been object of study since the beginnings of the history of the
construction in Brazil, being realized, over time, a deep deepening in the field of religious architecture. The vernacular
architecture of this period, however, after a while, was no longer investigated to the same extent as knowledge in the
other fields. With this, there was a certain stagnation from the initial studies that were the basis of the articles of the
SPHAN Journals and monographic publications of authors, such as Paulo Santos and Sylvio de Vasconcellos. More
recently, teachers Güinter Weimer and Carlos Lemos revisited the theme, demonstrating some points of progress in
relation to those of the first studies, indicating other possibilities of understanding of this architectural universe of
Portuguese heritage. It is this line of thought that leads to the ongoing thesis that gave rise to this article, which seeks
to indicate other ways of analyzing colonial vernacular mining architecture. For this purpose, some main indicators
are defined, defined according to the period of construction, the typology of the architectural party, the aggregate
decorative elements and the character of regionality. As studies progress, it is possible to perceive possibilities of
classification of works by: temporality (distinction between models from the 18th and 19th centuries), façade solutions
(more complex parties, in which neoclassical and eclectic ornamentation are adopted) mainly due to similarity as a
function of a region (existence of patterns that repeat themselves from the most important urban centers). This allows
us to treat the theme more closely with the way vernacular architecture is classified in Portugal and Spain, for example.
The definition of these indicators also offers conditions to characterize the works using other points of view, such as
the structure of the colonial urban network in Minas Gerais and the presence of external influences on local
architecture.
Keywords: vernacular architecture; Brazilian colonization; Minas Gerais.
1. APRESENTAÇÃO
Pretende-se, nesse texto, abordar aspectos da história da construção luso-brasileira por meio da
possibilidade de explorar algumas lacunas existentes na interpretação da arquitetura vernacular/popular
urbana do período colonial em Minas Gerais. Isso define uma estratégia de análise na qual não se pretende
apontar respostas em si, mas a partir de um posicionamento desse pesquisador, fundamentado em estudos
realizados por este, que podem ser revistos ou questionados pelo leitor em questão. Propõe-se esse viés
sedimentando a experiência exploratória em curso por vias da História Cultural, que oferece instrumentos
de leitura do passado sem depender das estruturas tradicionais que regeram o campo da história em boa
parte do século XX e, até hoje, ainda repercute em áreas mais distantes da vanguarda dos historiadores.
Interessantemente, a arquitetura, graças a seu caráter multidisciplinar, de certa forma, sempre englobou
uma certa preocupação com outros indicadores além dos documentos históricos oficiais em si, absorvendo
até certa medida uma preocupação em vincular os objetos cultura e sociedade às investigações sobre o
passado arquitetônico. Tal anseio contribuiu para que se desenvolvesse uma visão um pouco mais
abrangente sobre os monumentos e sua integração ao meio circundante. Ainda assim, a linhagem tradicional
do estudo da história foi predominantemente entre os historiadores da arquitetura, uma vez que uma vasta
produção de saber foi desenvolvida em torno de certos bens, normalmente, àqueles associados a uma
civilização ou a algum período histórico ou local de maior representatividade, lançando luzes profundas
sobre a origem, o contexto, os arquitetos envolvidos, o tempo de duração da construção, entre outros fatores.
Sabe-se muito sobre o Partenon na Acrópole Ateniense, o Coliseu Romano, a Catedral de Notre Dame de
Paris e a Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto, mas pouco pode se dizer das características do
casario colonial das cidades chamadas históricas. Esse fato revela uma abordagem tradicionalista no estudo
da história da arquitetura, que se sustenta na maneira como também se tratou o patrimônio cultural por
muito tempo, optando- ou que revelassem os anseios de um
passado que se desejava contar.
Com relação às residências do período colonial, apesar de estudadas por diferentes autores nos primeiros
anos da atuação do IPHAN e, no caso de Minas Gerais, terem no trabalho do professor Sylvio de
Vasconcellos uma importante chave de interpretação, essa temática está longe de esgotamento e permite
explorar novas formas de abordagem por meio da metodologia usada pela História Cultural, por exemplo.
O que se fez até a década de 70 do século XX, fruto do trabalho desses pesquisadores pioneiros ligados ao
serviço de patrimônio, revelou aspectos gerais sobre o assunto, o que permitiu compreender a prevalência
da cultura construtiva portuguesa sobre as de matriz africana ou indígena, e apontou quais foram as
principais soluções de partido arquitetônico adotadas nas edificações. As pesquisas de Vasconcellos,
diferentemente das demais, foram além desses apontamentos e indicaram com competência a forma de
construir e os materiais empregados nas edificações comuns, assim como Paulo Santos e outros já o haviam
feito para com a arquitetura religiosa. No entanto, se comparado com o caso dos países ibéricos, pode-se
perceber pelas investigações que pouco se sabe além das impressões iniciais obtidas por esses estudos
fundadores. Diferentemente do Brasil, em Portugal, por exemplo, foram desenvolvidas pesquisas amplas
sobre a arquitetura residencial do passado, que foram capazes de determinar -
espalhadas pelo país, bem como, quais foram os materiais e as técnicas construtivas empregados em cada
uma dessas soluções regionais. O mesmo pode ser dito em relação à Espanha e a outros países europeus,
que se debruçaram sobre a questão da origem de sua arquitetura vernacular. Nós, entretanto, nos retivemos
na ação de classificar a herança construtiva portuguesa como colonial, baseada num caráter de
reprodutibilidade uniforme e de poucas variações, sem buscar compreender mais profundamente as
características de tamanho acervo que ficou espalhado pelo território nacional da Amazônia até as terras da
antiga Província de São Pedro.
É justamente sobre essa lacuna que a proposta empreendida por esses autores, na tese em andamento, busca
problematizar. A pouca produção de pesquisas sobre essa temática, após a década de 70 do século XX,
possibilitou a existência de alguns paradigmas a serem discutidos, como: a falta de uma definição clara para
a classificação da arquitetura vernacular/popular brasileira; a interpretação delimitada pela perspectiva
modernista de análise do tema; o não aprofundamento na análise de características locais ou regionais,
apontadas por alguns pesquisadores; a compreensão de que as técnicas construtivas pouco variaram em
relação ao caráter genérico descrito nos estudos iniciais; por exemplo. Por outro lado, na atualidade, outros
fatores se agregam como complicadores no estudo do acervo remanescente: a má conservação das obras a
serem estudadas; a precariedade ou indisponibilidade de fontes; a falta de estudos que façam a interrelação
do assunto com outros aspectos da sociedade da época; entre outros. Essas situações permitem indicar a
adoção de algumas estratégias de análise, fundamentadas na História Cultural, para conduzir a metodologia
de pesquisa que está sendo adotada. Nesse sentido, pode-se destacar que a investigação deve ser conduzida
pelo método indiciário, de Carlo Ginzburg, e pela compreensão de que o fenômeno arquitetura
vernacular/popular se trata de um evento de longa duração, na interpretação oferecida por Fernand Braudel.
Esses dois pontos de vista permitem estabelecer as linhas-guias para a configuração da pesquisa,
orientando-se na busca por caminhos mais assertivos para a produção de uma representação atualizada do
tema. Igualmente, essa estratégia possibilita lançar luz sobre fatos não abarcados pelos que estudaram
anteriormente esse objeto, como: a construção de uma leitura mais afastada de questões que nortearam a
constituição de uma história da arquitetura brasileira ou de uma identidade cultural para a nação, intercalada
com a noção de patrimônio histórico que se desejava fundar.
Por fim, essa problematização permite avançar na discussão de como os métodos da História Cultural
podem contribuir para o andamento da investigação, permitindo assim indicar as releituras possíveis sobre
o tema, conforme a proposta indicada no título desse texto. Discutir-se-á também algumas possibilidades
de análise da arquitetura vernacular/popular por meio de outros estudos correlatos, como a formação da
rede urbana em Minas Gerais e a história dos costumes ou da construção. A materialização da dimensão
teórica investigada determinou a configuração de um universo de edificações a serem estudadas, a partir de
um recorte espacial ajustado ao tempo de pesquisa em um programa de doutoramento. Para tanto, escolheu-
se a região compreendida pelas principais cidades chamadas de históricas do Estado. Tal opção se deve a
necessidade produzir um conteúdo relacional, onde se possa constituir um modelo de interpretação mais
integrado do que o realizado nas pesquisas anteriores, voltadas normalmente para Ouro Preto. O
conhecimento construído pelos estudos fundadores garante a possibilidade de se fazerem algumas
comparações tipológicas, necessárias ao processo, bem como, buscar outras explicações para as soluções
adotadas na construção das edificações e dos partidos arquitetônicos adotados.

2. RNO DO TEMA

2.1. O ÇÃO
No caso brasileiro, as pesquisas realizadas ao longo do tempo não se debruçaram sobre uma definição
adequada ao caso da arquitetura produzida pelos cidadãos comuns. Percebe-se, de um modo geral, a falta
de consenso na utilização de um termo que permitisse designar adequadamente o conjunto das edificações
construídas no período colonial e nas décadas que o seguiu. Entre os pesquisadores têm-se empregado os
termos civil, residencial, popular ou, mesmo, o vernacular como sinônimos de uma mesma ocorrência,
variando-se a atribuição em função do tempo em que se desenvolveu a pesquisa ou do recorte que o
investigador adotou.
Os primeiros pesquisadores do tema foram os arquitetos e historiadores cooptados pelo nascente Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), que, entre os anos 30 e 70 do século XX, buscaram
expandir o conhecimento produzido anteriormente pelas investigações que alimentaram o imaginário da
arquitetura neocolonial. Nesse processo foram importantes o pintor, ilustrador e historiador José Wasth

por um estudo pela arquitetura de Diamantina e diversas publicações subsequentes. Sobre a caracterização
do objeto, Wasth Rodrigues, por exemplo, não usa algum termo para classificar o objeto arquitetura, mas
se refere à casa residencial, às antigas residências ou à antiga construção civil. Possivelmente, tal
preocupação não lhe era concernente, já que não era arquiteto de profissão, mas um investigador que
buscava representar os elementos arquitetônicos existentes nas edificações. Lúcio Costa, no entanto, no
1

produzidas no período colonial que estavam associadas ao recorte que se buscava compreender. No mesmo
livro que contemplava a publicação de Costa, o engenheiro-arquiteto Augusto Carlos da Silva Telles utiliza
as designações casa residencial ou mesmo residências2. Igualmente, nas Revistas do SPHAN, onde se
publicaram alguns dos principais textos que buscavam lançar luz sobre a arquitetura brasileira, o vocábulo
vernacular como forma de classificação não é utilizado em nenhum momento. Porém, algumas designações
são mais recorrentes, como os termos casas, residências, casas de residência, vista no texto com o compilado
de cartas resgatadas do engenheiro francês Louis Léger Vauthier, ou casa de moradia, em um texto
posterior3 de Wasth Rodrigues para a revista. Outro a utilizar o termo civil para designar esse tipo de
arquitetura foi o historiador norte-
Colonial4 sa
utilização dos termos.
Após um bom tempo de esquecimento, a temática, mais recentemente, vem sendo retomada como objeto
de pesquisa e tem sido analisada sob outros prismas de leitura. O arquiteto gaúcho Günter Weimer, no seu
brasileira5
pesquisadores do tempo da Revista do SPHAN, indica a opção pelo termo popular, uma vez que, em sentido
mais amplo, a palavra, derivada do latim populus, significa aquilo que é próprio das camadas intermediárias

ao saber do povo é, efetivamente, a terminologia arquitetura popular: aquela que é própria do povo e por
Weimer, 2005, p. XL-XLI).
Em Portugal, interessantemente, ocorre uma variação semelhante de terminologias para designar a parcela
da arquitetura produzida pelos cidadãos comuns, apesar da maior predominância do termo popular. Nos
anos 50 do século XX, após uma série de estudos anteriores, o Sindicato Nacional dos Arquitectos
organizou um
catalogar a produção arquitetônica do passado no território português continental e gerou uma publicação
homônima em 2 volumes. Essa obra foi fruto de uma primeira leva de trabalhos que abordaram essa
temática, apesar de ainda assim, naquele país, ter ocorrido uma lacuna de tempo entre as pesquisas,
semelhantemente ao caso brasileiro. Na mesma linha, em 1979, Mário Moutinho publicou um estudo de
6
, que, assim como os mais antigos
produzidos no Brasil, não continha uma discussão sobre a forma de classificação adotada. Mais tarde, nos
anos 90, Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano publica

1
Lúcio Costa, nesse artigo, que originalmente foi publicado na Revista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, nº 1, de 1938, destaca a necessidade de realizar uma investigação mais abrangente sobre a arquitetura civil
brasileira. O conteúdo publicado não é extenso, mas permite ao autor realizar alguns apontamentos sobre a
temporalidade das obras e a possibilidade de encontrar uma linha de evolução para a arquitetura colonial.
2
Telles Vassouras Estudo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 16, em 1968. Mais tarde, em 1975, o trabalho foi republicado

edificações urbanas com a tipologia das fazendas do período cafeeiro da região.


3
Nesse texto, José Wasth Rodrigues retoma de forma mais abrangente os assuntos trabal
4
O texto citado foi publicado na Revista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 17, no ano de
1969. Nele Smith faz uma leitura da arquitetura civil brasileira, tentando apresentar alguns termos para a classificação
das obras, por meio dos materiais de construção, plantas, exteriores, etc.
5
O trabalho de Weimer, por ser mais recente, aborda o tema da arquitetura popular de uma forma mais ampla, na qual
se tenta indicar uma relação da arquitetura com outros campos da cultura brasileira do passado, bem como, demonstrar
a existências de algumas matrizes arquitetônicas que contribuíram com a produção de uma manifestação local.
6
Moutinho faz uma abordagem da arquitetura portuguesa com intensão de organizar as manifestações por partidos-
tipos, alinhados em torno de cinco regiões arquitetônicas principais: do Norte (Norte Litoral e Norte Interior), do
Centro Litoral, do Alentejo e do Algarve.
7
, reanimando o campo de pesquisas da área após vários anos de restrição a investigações de
título, na introdução do trabalho se faz menção à
em textos anteriores. Mais recentemente, as teses
produzidas, principalmente, têm se direcionado a estudos regionais, que buscam analisar mais a fundo as
manifestações locais. Nessa linha pode-se citar os trabalhos de Victor Mestre, José Baganha e Miguel
Reimão Costa, que estudam as regiões da Ilha da Madeira8, do Alentejo9 e das Estremas do Alentejo e do
Algarve10, respectivamente. Os dois primeiros preferiram adotar no título de suas obras a designação

nas abordagens, dois fatos podem ser colocados em discussão: o primeiro se refere na adoção da expressão

ma de caracterizar as
manifestações arquitetônicas presentes em cada parte daquele país.
A essa discussão acrescenta-se o fato de que se há uma generalização usual de caracterizar a arquitetura
brasileira, produzida entre os séculos XVI e início do século XIX, como colonial. Nesse mote se encaixam
toda uma gama de manifestações, que envolvem as residências, as obras oficiais, os conjuntos urbanos e,
até mesmo, muitas vezes, a arquitetura religiosa. Essa designação desconsidera a condição particular de
constituição de cada modalidade de edifício, em relação às tipologias arquitetônicas e aos sistemas
construtivos empregados. Havia à época uma retórica a ser seguida para a construção civil, em função da
finalidade a que se direcionava a edificação, de modo a se determinarem materiais e soluções de partido
determinadas por um decoro arquitetônico e urbano. Cabia, assim, o emprego de materiais nobres às
construções de caráter mais elevado, as obras públicas e religiosas, que representavam um ideal comum e
coletivo para o núcleo urbano. As de menor expressão, geralmente as residências, cabia o uso da terra e da
madeira, considerados materiais adequados à condição individual e ao papel representado pelo cidadão
frente ao contexto do espaço que entendemos na atualidade como cidade. O uso invertido dos materiais em
relação à função da edificação era considerado uma condição indecorosa, como pode-se perceber nos textos
da comunicação oficial trocados pelos governantes e a Coroa Portuguesa, que recorrentemente continham
a solicitação de autorização ou recursos financeiros para edificar novas casas de câmara e cadeia ou igrejas,
que representassem a nobreza do local onde se desejava construir.
Em função desses e de outros fatores, talvez não nos seja conveniente adotar a
as obras do passado colonial, no nosso caso, como se faz em Portugal, mas se torna urgente e necessário
evoluir para uma forma melhor para se referir ao acervo que foi herdado dos séculos de presença dos
colonizadores portugueses. Situa-se nesse mote a primeira das releituras possíveis: a possibilidade de
sugerir uma terminologia mais apropriada à designação da arquitetura vernacular/popular brasileira.

2.2. ESTIGAÇÕES ANTERIORES


Outro aspecto da problemática, que envolve a investigação da arquitetura vernacular/popular no Brasil, é o
modo como se lançou luz sobre o tema nos trabalhos que fundaram essa categoria de análise, entre os anos
30 e 60 do século XX. Muito disso se deve aos realizadores dos principais estudos da época, que analisaram
o tema sob a égide da arquitetura modernista e entenderam como possível estabelecer um paralelo entre
duas manifestações, tidas como legitimamente nacionais. À época, os historiadores da arquitetura, entre
estes Lúcio Costa, o principal mentor do movimento moderno no país, construíram um modelo de

7
Oliveira e Galhano utilizam uma forma diferente de caracterização empregando como recurso a caracterização por
tipologias arquitetônicas comuns, que, igualmente, permite o alinhamento por região do país. As terminologias
adotadas foram: Casa-bloco, térrea e de andar; Casa Térrea e Casa Urbana.
8
9
10
s e Montes da Serra entre as Estremas do Alentejo e do Algarve Forma, processo e escala
representação11 do tema baseado na necessidade de solucionar uma proposta de origem da nação e de
identidade nacional. Isso conduziu a um ato de direcionar-se a preocupação com uma narrativa do passado
arquitetônico brasileiro sustentada pela própria noção de patrimônio histórico e artístico que se fundava.
Alinhada aos propósitos modernistas, a retórica patrimonial criada acabou por conduzir a uma dedicação
de esforços para validação do pensamento dos líderes do movimento local, como Costa (1975)12, por
exemplo, que em um dos seus textos se esforça em propor um regime de transição das formas das aberturas
de portas e janelas, que naturalmente teriam conduzido do predomínio dos cheios, comum às edificações
seiscentistas, para a redução gradativa das paredes, entre os séculos XVIII e XIX, até chegar à janela em
fita das edificações modernas. Igualmente, tal autor faz analogias ao caráter construtivo das edificações
13
coloniais com a composição das construções
14
em estrutura de concreto armado e paredes vedadas com alvenaria . Tais anacronismos podem se confirmar
no ambíguo imaginário15 da época que se esforçava em traduzir uma certa independência em relação à
metrópole, para a produção da arquitetura religiosa, afirmando existir um gênio local16 que distanciou a
produção mineira da matriz portuguesa da qual era herdeira. Por outro lado, para a arquitetura
vernacular/popular consentia-se do entendimento da mera reprodução construções lusitanas adaptadas aos
materiais locais17, mas dotadas de tal sinceridade que se conformaram como as edificações contemporâneas
que se erguiam.
Do mesmo modo, difundiu-se um certo menosprezo pela arquitetura produzida pelo povo no passado
colonial, por consideram-na simples, sem o caráter de monumentalidade ou atributos plásticos atrativos, se
comparadas com os palazzi e ville italianos, os castelos da França, as mansions inglesas ou dos solares
hispano-americanos e portugueses18. Nessa corrente, na qual o intuito passava por estabelecer referenciais
patrimoniais de caráter monumental, boa parte dos textos revelam essa tendência, quando se encontra nas

-se, sobretudo, pela


-se a isso, a tendência em direcionar os estudos para as obras de maior
vulto, menosprezando as que eram entendidas como menos importante ou dotadas de uma arquitetura
menor. Augusto C. da Silva Telles, no estudo sobre a arquitetura vassourense, faz a seguinte afirmação,

11

de representar como uma forma de realizar uma leitura de um determinado contexto, tentando traduzi-lo e remetendo-
se ao real, de forma a compreender que o que se faz é regido por uma relação de verossimilhança e similaridade e não
de veracidade.
12
Costa, Lúcio. Documentação Necessária. In: Arquitetura Civil II (1975), publicado originalmente na Revista do
SPHAN, nº1, de 1938.
13
Utilizou-se a denominação contida em Weimer (2015), considerando por enxaimeis portugueses a técnica
construtiva que mescla as estruturas de madeira com painéis de paredes de vedação. Diferentemente do enxaimel
original, de origem germânica, em Portugal as peças estruturais de menor importância foram rebaixadas para dar lugar
ao revestimento com reboco e caiação, deixando amostra somente os elementos de modulação das fachadas (cunhais,
frechais, madres e guarnição das aberturas).
14

invariavelmente, a espessura dos pés-direitos, e, nada mais, exatamente como têm agora a espessura dos montantes
15

sistema de ideias e imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas, construíram para si, dando
16
O Aleijadinho arquiteto e outros ensaios sobre
o tema (2008).
17
Contribuem para esse entendimento assertivas como as de Augusto de Lima Júnior, A casa portuguesa
transplantada integralmente, a igreja, os sistemas de vida, deram às Minas Gerais um aspecto que lembra a todo
ou de Robert C. Smith, -se o segundo século
de colonização, os portugueses haviam implantado com firmeza a arquitetura tradicional da mãe-pátria na terra nova,
impondo-lhe assim uma linha de desenvolvimento que haveria de manter-se até o fim do período colonial. [.
1975, p. 153).
18
(Cf. Costa, Lúcio. Op. cit., p 92).
ositalmente, não nos vamos deter nesses tipos de
construção [casas térreas e sobrados], a fim de focalizarmos mais cuidadosamente, as grandes casas de
Telles, 1975, p. 174). A fala do
autor citado revela algo que também foi comum, por exemplo, na ilustração dos textos sobre essa temática
com imagens que, quase sempre, apresentam detalhes das grandes edificações do período, deixando as mais
simples em outro plano.
Em contrapartida a essa tendência, pode-se destacar o extenso trabalho elaborado pelo professor mineiro
Sylvio de Vasconcellos, que empreendeu um estudo abrangente sobre a arquitetura popular da antiga Vila
Rica. Diferentemente dos demais, Vasconcellos elabora uma abordagem que não se limita à descrição do
objeto arquitetônico, mas explora diversos aspectos paralelos à produção de edificações no espaço da antiga
vila. Ao considerar a necessidade de discutir aspectos como os fundamentos do surgimento da povoação, o
meio social e físico, as construções, as plantas, os interiores e as fachadas, o autor citado estrutura um
estudo de caráter mais próximo do empreendido na História Cultural19, na busca de analisar o objeto como
parte de um processo civilizatório mais amplo. Apesar de inovador no método, o que poderia torna-lo o
precursor de uma série de novas investigações regionalizadas sobre as residências do período, não se tem
conhecimento de outro trabalho tão amplo sobre a história da arquitetura de uma localidade, tanto que a
publicação que o contém é até hoje referida em publicações das mais diversas sobre o tema. O valor
inquestionável do trabalho de Vasconcellos e sua amplitude inclusive metodológica, ainda assim, apontam
para a existência de alguns limites, uma vez que o objeto foi tratado a luz do caráter local e não se pretendeu,
por exemplo, contextualizá-lo em função de uma região ou da integração de uma rede urbana, como
atualmente tem-se conduzido uma linha de estudos da análise da formação de Minas Gerais20.
É ainda preciso tocar a superfície de dois temas caros à construção de uma historiografia da arquitetura
vernacular/popular urbana no Brasil. O primeiro, a noção de patrimônio histórico e artístico que se desejava
fundar associada à necessidade de produzir investigações sobre um passado a se contar21, e, por conseguinte,
a predileção por estudos que fossem baseados ou incorporassem a identificação dos sistemas construtivos
empregados nas edificações22. Nesse sentido, pode-se perceber que tais preocupações limitaram as
categorias de análise internas do tema, optando-se por determinar apenas dois tipos de situações: as casas
que seguiam uma tipologia
adaptação ao ambiente brasileiro, e o partido da casa bandeirista paulista, a qual não se conseguiu de
imediato definir a procedência. Ainda que imprescindível às imensas demandas de restauração que um
acervo tão grande ofereceria, essa orientação de certa forma determinou o foco para um caminho que
limitou a possibilidade de interpretação da arquitetura popular em função de outros operadores, como a
cultura, as condições econômicas, os modelos de origem, o caráter de regionalidade, etc. Somente mais
recentemente, com a retomada das investigações sobre essa temática que se houve uma ampliação nesse
sentido, nas obras de Weimer (2015) e Lemos (2015), por exemplo, que buscaram compreender as
manifestações por meio de um universo mais amplo de elementos e assim oferecer modos de organização
das obras por similaridades de concepção23. Esse contexto induz a outro prisma de releitura: a necessidade
de se desenvolverem estudos independentes das referências que nortearam os pesquisadores do passado e

19
Vasconcellos (1977) indica a necessidade de se adotar uma metodologia de análise mais ampla para o estudo da
ema precisa ser encarado com mais

20
(Cf. Resende, Maria E. L.; Villalta, Luiz C.. As Minas Setecentistas, 2007).
21
(Cf. Motta, op. cit.).
22
Esse fato pode ser observado em Costa (1975), Smith (1975), Telles (1975), Vauthier (1975), Saia (1975) e
Vasconcellos (1977), por exemplo.
23
Weimer (2015) define em sua obra alguns modos de classificação, como, por exemplo, as tipologias de edificações:
de porta e janela, de meia morada, de três quartos de morada, de morada inteira ou de morada e meia. Lemos (2015)
é mais criterioso e, ao mesmo tempo, adotando um recorte menor, indica a possibilidade de agrupamento por meio
dos programas de necessidades, das técnicas construtivas e dos partidos arquitetônicos.
fundar a possibilidade de categorizações mais pertinentes à compreensão da arquitetura vernacular/popular
urbana do período colonial.

2.3. TES
O último dos problemas a se equacionar, no recorte adotado para esse texto, remete à questão da situação
em que se encontram as fontes propriamente envolvidas na pesquisa: a arquitetura vernacular/popular
urbana presente nas ditas cidades históricas mineiras e a documentação sobre as construções. Apesar da
existência de inventários, tombamentos e estudos que buscaram compreender parte das obras existentes
nessa região, ainda pouco se sabe sobre esse acervo na verdade. Como Vila Rica foi o tema preferido pelos
historiadores da arquitetura ao longo do tempo, poucos direcionaram um olhar mais atencioso a outras
cidades, limitando-se a alguns apontamentos em investigações mais amplas, como as empreendidas por

24
.
Fonte: Acervo do Autor
Fora os apontamentos citados, na bibliografia corrente não há nada na magnitude do trabalho de Sylvio de
Vasconcellos sobre a antiga capital mineira ou que se estenda muito além de um esboço da formação urbana
da cidade de Diamantina no período colonial. Essas lacunas evidenciam mais uma vez o imaginário da
época dos estudos fundadores da categoria de análise, que estavam mais atentos ao discurso de formação
de identidade nacional do que em aprofundar o conhecimento de uma forma mais abrangente. Como nas
demais localidades compreendidas no estudo quase nada de monumental foi erguido, sendo as igrejas, até
mesmo, muito mais limitadas dos que as de Vila Rica, pouca atenção se deu à questão. Como, muitas vezes,
essas obras não faziam parte da representação que se desejava construir, o próprio descaso com a pesquisa
se refletiu na ação patrimonial que sucedeu a criação do IPHAN, onde pouco esforço se destinou à

24
Em sentido horário, de cima para baixo: 1 Diamantina; 2 Conceição do Mato Dentro; 3 Serro; 4 Sabará.
conservação dos conjuntos urbanos fora das sedes de seus escritórios técnicos25. A narrativa26, consequente
desse modo de interpretar a preservação, traduzida numa imensa descaracterização ou mesmo a destruição
de boa parte do acervo, o que hoje impõe ainda mais dificuldades para se analisar os objetos pesquisados.
Soma-se a isso o fato de essa ser uma arquitetura em que não se teve preocupação com evidenciar a autoria.
Não haviam riscos, arrematações, louvações ou quaisquer atos públicos que permitissem um registro mais
27
perene. É certo que não se trata de uma obra realizada somente por , como
se chegou a atribuir em alguns momentos às características dos oficiais que ergueram as construções nos
conjuntos urbanos coloniais. Esse posicionamento despreza a percepção de outros tipos de cultura senão a
letrada ou a ensinada nas academias ou ateliês de ofícios. As caraterísticas das obras do período colonial
revelam aspectos que certamente faziam parte de uma circularidade cultural e arquitetônica, pois são
percebidos elementos que certamente não se tratam de mera adaptação de exemplos de obras maiores ou
sorte na execução. A maneira como certos ornamentos foram aplicados às fachadas de edificações da região
estudada revelam, no mínimo, uma inserção básica no contexto das ordens arquitetônicas, da regularidade
do partido ou da modulação das proporções, principalmente, após a segunda metade do século XVIII.
Apropriações desse tipo não se desenvolveriam sem um universo de informações circulantes nesses núcleos
urbanos. Outra releitura possível é a existência de uma regulamentação das tipologias arquitetônicas e dos
meios de construção, imposto pelas casas de câmara locais, que controlavam de maneira efetiva a
arquitetura vernacular/popular urbana. Ao não ser uma realização espontânea, a produção de edificações
servia como propósito de um decoro a se seguir, no qual se impunham o modelo a se seguir nos partidos,
nos materiais a se utilizar, bem como, no papel de regularidade e uniformidade frente ao perfil urbano do
núcleo28.

3. OUTRAS POSSIBILIDADES PARA AS RELEITURAS

3.1. A CONTRIBUIÇÃO DA HISTÓRIA CULTURAL


Uma das chaves de resposta possíveis para a sustentação da metodológica da pesquisa se dá por meio de
uma associação à História Cultural, que, como afirma Pesavento (2013, s/p.), permite
novos óculos para enxergar a realidade, a partir de um corpo articulado de conceitos que passam a explicar
que tal empresa possa ser realizada, primeiramente, é necessário
estabelecer novos parâmetros para a narrativa e a representação sobre o tema, indo além daqueles
proporcionados pelos estudos fundadores realizados pelo antigo SPHAN e dos demais consultados. Apesar
da contribuição inquestionável desses pesquisadores, como visto, algumas das premissas adotadas por eles
deram cores diferentes das que podemos oferecer na atualidade. Nesse sentido, trabalhos mais recentes de
certa forma já estão a reorientar a bússola das investigações para novos nortes, como no caso dos
empreendidos por Weimer (2015) e Lemos (2015). Esses autores acrescentaram fatos novos, indicando que
a arquitetura vernacular/popular urbana brasileira pode ser relida por meio da contribuição de outras
matrizes culturais e que existem tipologias predominantes, capazes de permitir uma categorização por
aproximação, diferentemente do que se pregava nos textos produzidos até a década de 70 do século XX.
É preciso considerar também que o cenário descrito indica para a pertinência do emprego do chamado
método indiciário criado por Carlo Ginzburg. A metodologia de investigação desse autor pode auxiliar

25
Apesar dos esforços empreendidos, em função das limitações de ação do órgão, mesmo nas sedes dos escritórios
técnicos muito foi perdido em relação ao que se tinha como herança do período colonial.
26
Para esse termo, emprega-
27
Vide assertiva de Costa (1975, p. 91).
28
Na documentação das casas de câmara existem diversas regulamentações sobre a forma de construir ou para a
utilização de materiais de construção. Vasconcellos (1977) demonstra diversas posturas públicas ocorrentes em Vila
Rica, entre as quais existem ordens para a preservação das matas locais para o usufruto de todos os cidadãos, a
exigência de adequar as construções à serventia pública, a necessidade de se adotar certos materiais mais duráveis na
construções, como a cobertura com telhas cerâmicas, por exemplo.
na compreensão das pequenas dimensões existentes por trás dos objetos estudados, contribuindo para
oferecer peças para o quebra-cabeças da leitura do passado. Com relação à pesquisa empreendida aqui,
pode-se lançar mão tanto das informações oferecidas pelas edificações e dos aspectos que permitiram a
configuração das soluções que lhes deram origem, quanto das demais fontes que podem ser cruzadas em
outros campos. Por exemplo, os indícios fornecidos pelos próprios objetos de estudo ofereceriam condições
para se verificar o caráter de permanência de certos sistemas construtivos vernaculares ou da adoção de
composições classicizantes ou ecletizantes nos elementos decorativos. A análise de situações presentes no
contexto da época, como a introdução de partidos de inspiração neoclássica no final do séc. XVIII, ao
mesmo tempo, demonstra que as soluções construtivas vigentes ao longo de quase todo o período colonial
já se esgotavam em parte frente a outras que estavam por se afirmar nas décadas seguintes. As inovações
introduzidas incluíram uma retórica nova no campo da configuração das fachadas e do modo de morar, mas
ainda não estavam totalmente consolidadas no contexto da arquitetura29 por causa de fatores socioculturais.
Outros operadores podem ainda oferecer contribuições, como: a introdução de traços associadas a correntes
ou escolas estilísticas que possibilitaram a renovação das soluções construtivas empregadas; os aspectos de
circularidade da cultura arquitetônica associadas ao modo de fazer ou a repetição de partidos, ornamentos
e recursos estéticos em localidades diferentes; os avanços ou retrocessos associados ao caráter cultural ou
econômico dos núcleos urbanos; entre outros. Por outro lado, as fontes, no cenário estudado, ainda
demandam de ser mais investigadas, selecionadas, alinhadas, isoladas ou reunidas para serem
adequadamente compreendidas e, assim, oferecerem a releitura necessária e, por consequência, mais
completa.

Pesavento,
2013, s/p.). Em função disso, o repertório anterior produzido pelos primeiros investigadores precisa ser
revisto, ampliado ou mesmo refutado em alguns aspectos, para que se proponha alguns passos de avanço
na compreensão da arquitetura vernacular/popular urbana do período colonial. Tal fato implica em admitir

Ibid.). Pensando-se assim, até que ponto


certas verdades universais com relação ao período colonial, como a afirmativa da necessidade de reclusão
das mulheres como um componente básico da sociedade luso-brasileira, são válidas em todos os tempos e
lugares? As configurações básicas de planta, baseadas no tridente social / dormir / serviço doméstico, tidas
como padrões sem mutação ao longo dos séculos XVI e XVIII, comportariam as salas onde se realizavam
as festas relatadas pelos viajantes naturalistas do início dos oitocentos? Esses são só alguns
questionamentos, que uma análise mais profunda, como a proposta por Ginzburg, pode ajudar a solucionar,
em função dos indícios oferecidos por outros
campos de pesquisa.

ao estudo. Em primeiro lugar, a arquitetura vernacular/popular urbana, tanto a portuguesa quanto a


brasileira, carece mo observa Fernand Braudel30. Não se
está tratando, nesse caso, de um objeto de pesquisa com data de início ou fim, que pode ser delimitado em
algumas décadas de duração, mas de um acontecimento baseado em saberes que foram retransmitidos desde
os tempos mais remotos da formação de Portugal e que, no Brasil, foram adaptados ou mesmo
transformados a uma outra realidade. Por serem mais do que unidades construídas, mas baseadas em um
grupo de conhecimentos que permitiram a materialização de conjuntos inteiros nos núcleos urbanos da
colônia, urge a compreensão desse acervo como a manifestação de uma cultura construtiva, que surgiu em

29
Essa discussão orienta para uma análise a ser melhor configurada em função de uma parte do acervo, que incorporou

período colonial, indicando para uma preocupação maior com a ornamentação paredes voltadas para a rua. Ao mesmo
tempo que se verifica essa possível tendência de inovação, pode-se questionar: se novos valores começam a vigorar
na arquitetura local, por que não se há a adoção integral dos novos partidos e formas de se construir, mas se mantém
atrelados a um modo de fazer edificações associados uma tradição tão antiga?
30
(Cf. Braudel, Fernand. Escritos sobre a História).
terras lusas, mas que foi além da barreira da mera reprodução. Elementos básicos que são caros à arquitetura
de origem, como os fornos que dominavam o centro da concepção da planta das casas portuguesas em
praticamente todo o território, aqui não encontraram lugar possivelmente em função do clima, o que deu
lugar ao modo africano de cozinhar, como afirma Weimer (2015) e outros autores. Ao mesmo tempo, a
questão do trabalho livre que, no Brasil, se interpretava não se acomodar bem à sociedade escravocrata,

mecânicos31 que estavam disponíveis nos arraiais e vilas coloniais. Todos esses aspectos se somam ao
fazer, ao morar, à forma de construir, ao modo de se apresentar-se à sociedade ou de revelar o aspecto
externo da casa de morada, que só podem ser acomodados em uma compreensão nos moldes apresentados
por Braudel.

32
, é preciso entrelaçar outras explicação para o
período, lançando mão: de estudos sobre o caráter econômico da capitania durante o período colonial; da
compreensão do papel da rede urbana formada em Minas Gerais nos setecentos e início dos oitocentos33 e
a forma de circulação de produtos e pessoas; dos relatos de viajantes naturalistas que percorreram a região
no início do século XIX e, nos locais pesquisados, estiveram, se deslocaram, se hospedaram e foram
acolhidos; dos preceitos de decoro social, arquitetônico e urbano34 que delineavam à época, impondo a cada
edificação um lugar específico no conjunto e no espaço das povoações; do aspecto da sociedade mineira do
período, que poderiam explicar transformações nas habitações; e, mesmo, na permissividade ou restrição
de movimentação de pessoas em certos locais da colônia, que poderiam limitar a circularidade cultural em
certos núcleos. Esses pontos levantados já indicam para uma série de análises faltantes nos primeiros
estudos sobre a arquitetura vernacular/popular urbana mineira, sinalizando para a possibilidade de outro
tipo de narrativa e de representação do tema a serem formados.
A isso pode-se somar as transformações provocadas pela chegada da Corte Portuguesa no Brasil, fato
responsável por modificar o espírito das relações sociais e familiares, no seio de uma sociedade
extremamente atrasada e conservadora, em relação ao que se fazia na metrópole. A abertura dos portos para
as nações amigas, que acompanhou a chegada do Príncipe Regente, ofereceu condições para a renovação
arquitetônica no litoral e, possivelmente, teve consequências no mais remoto dos sertões. Tanto que em
poucas décadas após tal ação, já se tem registro de arquitetos ou construtores estrangeiros atuando no
interior do país, como no caso da região de Diamantina, que teve a presença do artífice inglês John Rose35,
por exemplo. Todo esse universo de provocações não pôde ser elucidado no modo tradicional com o qual
se formou o estudo da arquitetura vernacular/popular urbana no Brasil, baseado, muitas vezes, na
interpretação individual das obras e constituída a luz de elementos isolados dos demais existentes nos
demais núcleos urbanos. Para tanto, umas das soluções possíveis é estabelecerem-se relações entre
contextos diferentes, entender como as pessoas viviam e se relacionavam com o outro e compreender como
cada povoação se inseria em relevância para a região. Esses aportes oferecidos pela análise à luz da História
Cultural permitem enxergar um pouco mais longe e, por consequência, buscar preencher uma lacuna da
explicação do passado por meio de outro tipo de narrativa.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No tocante à História da Construção, a contribuição desse estudo pode ser relacionada à reinterpretação do
contexto de estabelecimento da arquitetura vernacular/urbana no período colonial brasileiro. Nesse sentido,
é de extrema relevância analisar a condição de interferência das Casas de Câmara na constituição dos

31
Os ofícios mecânicos eram a denominação dada a todo trabalho empreendido de forma manual.
32
(Cf. Pesavento, Op. cit.)
33
(Cf. Moraes, Fernanda B. De arraiais, vilas e caminhos: a rede urbana das Minas Coloniais, 2007).
34
(Cf. Bastos, Rodrigo. A arte do urbanismo conveniente, 2014).
35
A presença desse artífice-arquiteto na região é relatada pela doutora Celina Borges Lemos em um estudo sobre a
arquitetura dos séculos XVIII e XIX em Diamantina.
núcleos urbanos de Minas Gerais, mas também de todo o país. As recomendações oficiais firmadas pela
Coroa Portuguesa, para o estabelecimento das vilas e cidades, certamente foram as responsáveis pela
determinação de um caráter particular ao perfil das edificações, pois induziam para a necessidade de se
adotar alguns cuidados específicos nas construções, como: a regularização e uniformização das fachadas,
ao qual deveria se adotar o sistema construtivo mais pertinente; a necessidade de reformas constantes ou da
recorrente caiação das paredes voltadas para a rua em épocas festivas ou que marcassem a passagem de
algum governante ou personagem ilustre; ou, mesmo, a imposição de se substituir as coberturas de capim
pelas telha cerâmicas36. Tais condições não foram um mero capricho dos administradores locais, mas
faziam parte de cenário de controle da arquitetura e do urbanismo português conduzido pelas Ordenações
e Leis do Reino de Portugal 37 e pelas instituições criadas para a efetivação das medidas destinadas às
construções de um modo geral. Deve-se destacar, nesse sentido, a Provedoria de Obras Reais / Casa das
Obras38 que estabeleceu na Lisboa Manoelina, no século XVI, toda uma série de regulamentações aplicadas
à construção civil em si, determinando desde a necessidade de realização de reformas nas fachadas, para
expurgar o caráter medieval e insalubre da cidade, até a determinação de reconstrução completa de bairros
e trechos urbanos, a fim de substituírem os materiais que facilmente poderiam facilitar a propagação de
incêndios. Igualmente, coube a essa entidade a regulação da atividade dos oficiais que trabalhavam nas
obras contratadas pela Coroa e da qualidade dos insumos usados nas edificações locais, de modo a se buscar
uma padronização da oferta de serviços e tornar mais duráveis os imóveis erguidos pela Administração
Real. O trabalho da Provedoria de Obras Reais não se limitou a Portugal, mas estendeu-se às possessões,
tendo repercussão nas edificações oficiais de Goa, na Índia, e nas povoações brasileiras que dispunham de
Casas de Câmara. Por fim, destaca-se que a questão sobre a arquitetura vernacular/popular urbana do
período colonial não é um estudo que pode ser esgotado a partir de único ponto de vista, mas depende de
várias outras releituras. Os estudos que foram realizados ao longo do século XX até agora, ainda respondem
a uma realidade muito fragmentada, na qual ainda se deve conectar a situação de metrópole e de colônia,
de modo a se compreender a razão de certas condições às quais as edificações brasileiras forma submetidas.
O equívoco, estabelecido a partir do entendimento isolado do objeto, permitiu algumas generalizações
pouco pertinentes à investigação do tema na atualidade, como a do conceito de uniformidade existente
nesse tipo de arquitetura. O aspecto, estético e construtivo, uniforme das residências, ao nosso ver, não foi
uma condição espontânea e atemporal nos séculos de presença do colonizador, mas, sobretudo, imposta em
meados do séc. XVII e que repercutiu em diversos cenários na constituição de uma arquitetura ainda
genericamente chamada de colonial.

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escala do estudo da arquitetura vernacular. Porto: Edições Afrontamentos Lda.

36
(Cf. Vasconcellos, Op. cit.)
37
Ordenações e Leis do Reino de Portugal l.
38
Ver: Carita, Helder. 2013. "Sistemas Métricos e Normas construtivas em argamassas de cal implementadas pela
Provedoria de Obras Reais/Casa das Obras: séculos XVI a XVIII". In Subsídios para uma História da Construção
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