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All content following this page was uploaded by Pedro Paulo Palazzo on 08 December 2017.
Resumo
A caracterização da arquitetura tradicional brasileira teve como um dos seus principais problemas
conceituais, na primeira metade do século XX, a tipologia religiosa. Ricardo Severo e Lucio Costa,
em particular, redigiram ensaios extremamente influentes na construção de uma certa imagem da
arquitetura religiosa brasileira vigente ao longo do século. Esta comunicação mapeia o campo
conceitual que fundamentou esses autores em seus respectivos textos A Arte Tradicional no Brasil
e Arquitetura Jesuítica, no tocante à apropriação do referencial teórico fornecido pelo Renascimento
italiano. Apresenta-se a constituição do sistema das ordens clássicas como reflexo da ênfase dada
pelos tratadistas e arquitetos do quinhentos à arquitetura religiosa, e no âmbito dessa pelo desenho
como ferramenta de constituição e explicitação de um campo de conhecimentos referentes ao
patrimônio construído preexistente. Investiga-se a cronologia e a caracterização propostas para
essas obras pelos autores citados, indicando como o universo lacunar da arquitetura conhecida por
eles contribuiu para a construção de um imaginário de originalidade e atemporalidade da arquitetura
religiosa brasileira. Ressaltam-se, então, os caracteres associados por Severo e Costa aos edifícios
de culto no Brasil colonial, considerando o papel preponderante da cultura católica portuguesa nos
manifestos arquitetônicos publicados por ambos os autores.
Palavras-chave: Arquitetura religiosa, Renascimento, Movimento tradicionalista, Neocolonial, Iconografia.
1
Resumen:
La caracterización de la arquitectura tradicional de Brasil tuvo entre sus principales problemas teóricos en la
primera mitad del siglo XX la tipología religiosa. Ricardo Severo y Lucio Costa, en particular, escribieron
ensayos de gran monta para la construcción de una imagen de la arquitectura religiosa en Brasil que perduró
a lo largo del mismo siglo. Esta ponencia explora el campo de conocimientos que dio lastro a eses autores en
sus respectivos textos El arte tradicional en Brasil y Arquitectura jesuítica, en el que concierne a la captación
de referencias teóricas ofrecidas por el Renacimiento italiano. Se presenta la formación del sistema de los
órdenes clásicos como reflejo del énfasis dado por los tratadistas y arquitectos del cinquecento a la
arquitectura sacra, y en ese ámbito al dibujo como herramienta de conformación y externalización de un
campo de conocimientos operando sobre el patrimonio edificado preexistente. Se investigan la cronología y
las caracterizaciones propuestas para esas obras por los autores mencionados, indicándose como el universo
lacunario de la arquitectura por ellos conocida contribuyó para la construcción de un imaginario de originalidad
y atemporalidad de la arquitectura religiosa de Brasil. Se enfatizan los caracteres asociados por Severo y
Costa a los edificios de culto en el Brasil colonial, visto el papel de relieve de la cultura católica portuguesa en
los manifiestos arquitectónicos publicados por los dos autores.
Palabras-clave: Arquitectura religiosa, Renacimiento, Movimiento neocolonial, Brasil, Iconografía.
Abstract
The characterization of traditional architecture in Brazil was driven, during the first half of the twentieth century,
by a major conceptual problem in terms of the religious building types. Ricardo Severo and Lucio Costa, in
particular, wrote essays that were highly influential in shaping the conformation of a certain image of Brazilian
sacred architecture holding sway throughout the century. This paper charts the theoretical panorama
underpinning these authors’ respective essays, Traditional art in Brazil and Jesuitic architecture, in terms of
their embodiment of a methodology derived from the Italian Renaissance. The paper presents the formation
of the classical order system as a reflection of the emphasis placed by sixteenth-century treatises and
architects on sacred architecture, and within it on drawing as a tool for constituting and displaying a body of
knowledge relating to the preexisting built heritage. Next, it is question of the chronology and characterization
put forward by these two authors, and of how they supplemented the fragmentary panorama of the colonial
church architecture known to them with the creation of an imaginaire of originality and timelessness. Finally,
the overarching role of Portuguese Catholic culture is shown to appear in the architectural manifestos
published by both authors.
Keywords: Religious architecture, Renaissance, Neocolonial movement, Brazil, Iconography.
2
PATRIMONIALIZAÇÃO E EXEMPLARIDADE DA ARQUITETURA
RELIGIOSA: PARALELOS ENTRE O RENASCIMENTO E O
NEOCOLONIAL NO BRASIL
INTRODUÇÃO
A caracterização da arquitetura religiosa do passado tem sido um elemento central para os diversos
movimentos que se apropriam de estilos históricos, ainda que ocasionada em não pequena medida
pelo acaso da sobrevivência de monumentos sacros devido a seu abandono ou reutilização. Desde
o primeiro Renascimento até, ao menos, os movimentos tradicionalistas do início do século XX, os
vestígios de edificações religiosas foram exemplos paradigmáticos na construção de todos os
cânones estilísticos da arquitetura ocidental.1 Quer essa preeminência seja acolhida como um
pressuposto transparente ou sustentada ideologicamente pela precedência do “grande”,2 ela
invariavelmente levanta o problema da relação entre o “original” e a “imitação”,3 e junto com esta, a
da conservação dos vestígios físicos daquela arquitetura exemplar, paralelamente às novas
construções nela inspiradas.
Ambos os movimentos artísticos em questão pautam sua relação com o passado com base em dois
interstícios intangíveis: o distanciamento cronológico e o declínio intelectual da civilização, este
representado seja pelas “invasões bárbaras” na Europa medieval, seja pelo período dito de
“desarrumação”6 na arquitetura tradicional brasileira, promovido pela industrialização e imigração.
Tais interstícios haveriam de ser superados pelo diligente estudo “arqueológico”, no sentido literal
1
Para além do escopo ocidental, o mesmo processo operou na compilação do tratado chinês Yingzao fashi, no início do
século XII, bem como na releitura desse texto clássico por Liang Sicheng no início do século XX. Ver LI Shiqiao,
Reconstituting Chinese Building Tradition: The Yingzao Fashi in the Early Twentieth Century, Journal of the Society of
Architectural Historians, v. 62, n. 4, p. 470–489, 2003; LIANG Sicheng, Chinese architecture: A pictorial history,
Mineola: Dover, 2005.
2
FRANK, Hartmut, La Loi Dure et La Loi Douce : Monument et Architecture Du Quotidien Dans l’Allemagne Nazie, in:
COHEN, Jean-Louis (Org.), Les Années 30 : L’architecture et Les Arts de l’espace Entre Industrie et Nostalgie,
Paris: Éditions du Patrimoine, 1997, p. 200; SCOTT, Geoffrey, The Architecture of Humanism: A Study in the History
of Taste, New York: Norton, 1974, p. 29.
3
PORPHYRIOS, Demetri, Classical Architecture, London: Andreas Papadakis, 2006.
4
WATKIN, David, Morality and architecture: The development of a theme in architectural history and theory from
the Gothic revival to the modern movement, Oxford [England]: Clarendon Press, 1977, p. 4.
5
RODIN, Auguste, Grandes Catedrais, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 16.
6
COSTA, Lucio, Documentação Necessária, in: Sôbre Arquitetura, Porto Alegre: Editora UniRitter, 2007, p. 93.
3
da palavra,7 com vistas a se adquirir, pela imitação,8 a proficiência artística necessária para igualar-
se aos grandes monumentos do passado.
Esse processo de construção de um sistema arquitetônico regrado se estende, como é sabido, até
a desestabilização da visão unitária a partir de meados do século XVIII. No entanto, persiste, até o
início do século XX, a hegemonia de um método de ensino e de uma cultura artística partilhada,12
fundada na continuidade, ao menos ideológica, com o Renascimento. É nessa continuidade que se
inscreve o movimento tradicionalista brasileiro. No Brasil do início do século XX, o sistema de regras
está dado no âmbito da arquitetura acadêmica, conjunto diversificado de estilos classicistas frente
ao qual o Neocolonial é uma divergência a ser justificada13
Daí decorre que o estudo da arquitetura colonial não pode ser objeto da minuciosa documentação
de proporções e detalhes dedicada ao classicismo antigo, visto ser a tradição construtiva brasileira
algo como uma versão empobrecida, ainda que original. Em vez disso, defendem seus próprios
promotores, trata-se de uma reconstrução poética, do espírito moral ou telúrico da nação mais do
que de formas construtivas e decorativas específicas.14
A relativa incúria renascentista é habitualmente escusada pela ausência, até então, do moderno
pensamento preservacionista que viria a se desenvolver entre os séculos XIX e XX. Pelo contrário,
a quase inexistência de um pensamento preservacionista neocolonial é registrada no passivo de
arquitetos e intelectuais já fortemente estigmatizados pela pecha de serem insuficientemente
7
HARBESON, John F, The study of architectural design: With special reference to the program of the Beaux-Arts
Institute of Design, New York: Pencil Points, 1927.
8
PORPHYRIOS, Classical Architecture.
9
BERBARA, Maria, “Chi lo tiene antico e chi moderno”. Baco e o Cupido adormecido de Michelangelo, in: MARQUES,
Luiz (Org.), A fábrica do antigo, Campinas: Editora Unicamp, 2008, p. 90.
10
SZAMBIEN, Werner, Symétrie Goût Caractère : Théorie et Terminologie de l’architecture à l’âGe Classique 1550–
1800, Paris: Picard, 1986.
11
WITTKOWER, Rudolf, Architectural Principles in the Age of Humanism, London: Alec Tiranti, 1962.
12
MORALES DE LOS RIOS FILHO, Adolfo, Grandjean de Montigny e a evolução da arte brasileira, Rio de Janeiro: A
Noite, 1941.
13
SEVERO, Ricardo, A Arte Tradicional No Brasil, Revista do Brasil, v. II, n. 4, p. 394–424, 1917.
14
MARIANNO FILHO, José, À margem do problema arquitetônico nacional, Rio de Janeiro: Mendes Junior, 1943.
15
PINHEIRO, Maria Lúcia Bressan, Neocolonial, modernismo e preservação do patrimônio no debate cultural dos
anos 1920 no Brasil, São Paulo: EdUSP, 2012.
4
modernos16 — apesar de terem sido endossados, em seu tempo, por ninguém menos que Mário de
Andrade, personagem fundadora tanto da arte moderna quanto da preservação patrimonial no
Brasil.
A obra mais conhecida do pintor José Wasth Rodrigues, Documentário Arquitetônico, fazendo jus
ao subtítulo “Relativo à antiga construção civil no Brasil”, dedica apenas duas de suas 160 estampas
à arquitetura religiosa. No entanto, uma série de aquarelas do mesmo autor, retratando a cidade de
São Paulo, apresenta grande número de igrejas desenhadas com base em registros do século XIX.
Após redigir diversos artigos com posições equívocas a respeito da arquitetura do período colonial
entre 1928 e 1937, Lucio Costa publicou, em 1944, aprofundada análise da arquitetura jesuítica no
Brasil, no qual sintetizou o conhecimento então existente em um semblante de classificação
tipológica de igrejas e ornamentos.
No entanto, ao longo do texto vai ficando nítida a motivação de Rafael em defesa da conservação
física das ruínas antigas: a necessidade de realizar uma documentação gráfica completa, pelo
método sistemático de desenho técnico famosamente explanado pelo artista. A necessidade de
sobrevivência física dos vestígios cessaria, implicitamente, com a plena apropriação do
conhecimento clássico advinda do estudo das ruínas. Posição divergente havia afirmado Leon
Battista Alberti em 1452, ao defender que:
16
CHUVA, Márcia, Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no
Brasil (anos 1930-1940), Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009, p. 96.
17
RAFAEL, Cartas Sobre Arquitetura, Campinas: Unicamp, 2010, p. 47.
5
[…] é, sem dúvida, vergonhoso não poupar as obras dos antigos, […] pelo que,
destruir, demolir e arrasar completamente o que quer que seja, em qualquer parte,
deve ser uma opção a pôr de lado, sempre. Por conseguinte, eu gostaria que se
conservassem intactas as construções antigas, sempre que não seja possível
18
levantar uma nova sem as destruir.
É presumível que Rafael compartilhasse dessa opinião, ainda que os projetos edilícios do papado
implicassem o aproveitamento dos espólios antigos. Em qualquer caso, a documentação de
edificações antigas — sobretudo templos —, iniciada por Brunelleschi, permaneceu uma prioridade
para os arquitetos renascentistas. O caráter paradigmático dessas mensurações fica evidenciado
justamente na ausência de transposição direta dos tipos arquitetônicos, uma vez que o templo
antigo — epítome do emprego das ordens clássicas tanto no tratado de Vitrúvio quanto,
curiosamente, no de Alberti — não possui correspondência com a basílica moderna.
Em vez disso, as ordens clássicas reconstituídas a partir do estudo de Vitrúvio e da análise dos
templos antigos tornam-se a representação literária da própria natureza da arquitetura enquanto
conhecimento erudito e microcosmo replicando a ordem do universo. Uma consequência dessa
ênfase na representação intelectual da obra, é que Alberti se volta principalmente para:
os conceitos básicos de cunho estético. Alberti não se atém, como Vitrúvio, a uma
descrição dos fenômenos, mas, ao contrário, levanta a questão dos seus princípios
19
fundadores.
E esses princípios, na visão aristotélica predominante na Europa do século XV, não podem ser
simplesmente as causas materiais ou operantes, mas o arcabouço pensante que está por trás da
instrumentalização: a consciência do artista liberal e o seu serviço para o cliente e para a dignidade
cívica:
Desse ponto de vista, a beleza da arquitetura, aqui entendida essencialmente no seu papel de
ornamento, é um instrumento para aumentar (adaugere), por um lado, a dignidade, e por outro, o
decoro, do espaço público. Indra McEwen mostra a grande importância que tem na obra de Vitrúvio
o conceito de augeo, verbo do qual derivam auctor e auctoritas.21 Quem vai aumentando a própria
dignidade tem autoridade, aquela precedência moral sobre os outros que não se confunde
necessariamente com o exercício bruto do poder, seja ele econômico, político ou militar. Nessa
linha, Curt Fernsterbuch, tradutor de Vitrúvio para o alemão, usa para auctoritas, no texto vitruviano,
o termo gosto (Geschmack),22 associando assim a palavra não ao senso de poder, mas ao de
autoridade intelectual acerca de questões estéticas.
18
ALBERTI, Leon Battista, Da arte edificatória, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, III, i, p. 233.
19
KRUFT, Hanno-Walter, Geschichte Der Architekturtheorie, München: C. H. Beck, 1985, p. 46.
20
ALBERTI, Da arte edificatória, Prólogo, p. 140.
21
MCEWEN, Indra Kagis, Vitruvius: Writing the Body of Architecture, Cambridge, Mass.: MIT Press, 2003, p. 35–36.
22
KRUFT, Geschichte Der Architekturtheorie, p. 26.
6
Essa autoridade, ou dignidade, então, está diretamente relacionada à estética do projeto, uma vez
que esta depende de uma intenção intelectual devidamente informada, e não de uma mera
expressão de megalomania. A autoridade estética é pré-requisito para se conseguir o decoro, ou
seja, “a questão da adequação de forma e conteúdo, e não a do ornamento [decoração] aplicado.”23
Em qualquer caso, Alberti vai mais além, preconizando inclusive uma certa modéstia e
comedimento da parte do arquiteto imbuído da tarefa de levar adiante a obra de seus antecessores:
Mas nós, atrevidos, que lhes sucedemos, esforçamo-nos por inovar alguma coisa e
gloriamo-nos disso; daí resulta que as obras, que outros começaram bem, sejam
deformadas e mal concluídas. Na verdade, sou de opinião que nos devemos ater
24
às determinações que maduramente idealizaram.
Paradigma e desenho
A longa sequência de propostas divergentes para São Petrônio contrasta com a obra unitária de
Santa Maria degli Angeli, exercício de recomposição de um sistema decorativo monumental por
Miguel Ângelo no interior das antigas Termas de Diocleciano, em Roma. Nesse local, trata-se
efetivamente de recriar o cânone dentro de um invólucro ele próprio canônico — dupla expressão
do ideal renascentista, ao mesmo tempo que ressalta a não subserviência do projeto aos vestígios
arqueológicos do sítio.
7
[…] cabe considerar que, em geral, nem os arquitetos convidados, nem os
Fabbriceri [administradores do empreendimento de construção da igreja] pensavam
27
verdadeiramente que um projeto de um consultor pudesse ser, por fim, executado.
Afirma-se, com isso, o papel exemplar do projeto como suporte de um conhecimento arquitetônico
autônomo com respeito à construção materializada, extrapolando o âmbito em que Alberti e Rafael
haviam definido a função do desenho em geral, e do emprego das ordens clássicas em particular.
Assim, segundo Eduardo Côrte-Real:
A fachada, assim, assume o caráter de paradigma do estilo erudito, uma vez que “são as
possibilidades e as exigências do desenho que levam à instauração do problema da fachada”,
caracterizando-se, assim, a “evidência do Desenho como processo legitimador da Arquitectura.”31
No século XIX, o discurso hegemônico sobre as artes no Brasil postulava que a produção do período
colonial era, na melhor das hipóteses, incipiente e, na pior, degenerada e de mau gosto. Não será
preciso repetir a história da fortuna crítica da arquitetura barroca na Europa, rejeitada desde o início
27
Ibid., p. 31.
28
CÔRTE-REAL, Eduardo, O triunfo da virtude: as origens do desenho arquitectónico, Lisboa: Horizonte : Faculdade
de Arquitectura, UTL, 2001, p. 47.
29
Ibid., p. 99.
30
SCHUMACHER, Thomas L., The Palladio Variations, on Reconciling Convention, Parti, and Space, Cornell Journal of
Architecture, v. 3, p. 12–29, 1987, p. 22.
31
CÔRTE-REAL, O triunfo da virtude, p. 107.
8
do século XVIII com a crítica de Francesco Milizia e reabilitada apenas na virada do século XX, com
as obras de Heinrich Wölfflin e Eugenio d’Ors. Os discursos sobre a arte colonial brasileira, ao longo
do século XIX e primeira metade do XX, preocupavam-se em estabelecer a sua validade — ou não
— como fonte para a produção artística contemporânea, bem como em definir-lhe um caráter. A
depender da filiação acadêmica ou antiacadêmica dos autores, e do papel atribuído à arte
tradicional nos seus escritos, a produção artística do Brasil colônia oscilava entre a extrema
rusticidade — vista ora como sinal de mau gosto, ora como autenticidade exemplar — e o domínio
instintivo dos refinamentos eruditos do Renascimento italiano.
Araújo Porto Alegre, em artigo publicado em 1834, na primeira edição do Journal de l’Institut
historique em Paris, como introdução ao Voyage pittoresque et historique au Brésil de Jean-Baptiste
Debret, caracterizava a arquitetura das ordens religiosas na colônia como “um tipo intermediário
entre o romano e o gótico”.32 Por “romano” ele entendia a produção renascentista num espectro
amplo, “a nova escola de Bramante e de [Miguel Ângelo] Buonarroti”.33 “Gótico”, por sua vez, era o
termo habitual e pejorativo usado, desde o próprio século XVII, para designar a produção
exuberante de inspiração italiana atualmente conhecida pelo termo “barroco”. Antes do século XX,
ressalte-se, não era usual o emprego do termo barroco no contexto das artes. Segundo Guilherme
Simões Gomes Júnior,34 o sentido artístico de “obra extravagante” apareceu pela primeira vez no
Novo Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo, em 1899, como derivação do
italiano e não diretamente associado à raiz portuguesa da palavra. O mesmo autor indica que essa
definição se seguiu a um uso relativamente preciso do termo para designar o estilo artístico já no
último quartel do século XIX. Apologético, todavia, Porto Alegre celebrava a “genialidade” daqueles
“artistas escravos” dignos de estudarem nos grandes centros europeus em contraste com “o
sistema soporífico de inveja e de mediocridade” que teria caracterizado a recepção à colônia
artística francesa de 1816.35 Ao final do seu relato, porém, deixava claro que as bases sobre as
quais a verdadeira arte brasileira se desenvolvia não tinham nenhuma continuidade com a produção
colonial:
Meio século depois, e sem a necessidade de exaltar a produção nacional perante um público
estrangeiro, o jovem crítico de arte Gonzaga Duque foi muito menos elogioso da arte colonial:
A igreja dos jesuítas é uma flagrante prova do mau gosto e da falta de inteligência
que presidiram a formação das suas obras. Os mosteiros e os conventos foram
edificados durante o domínio do estilo barroco, essa brutalidade inventada pelos
fundadores da Inquisição. […]
32
MAGALHÃES, Domingos José Gonçalves de; HOMEM, Francisco de Sales Torres ; PORTO ALEGRE, Manuel de
Araújo, Résumé de l’histoire de la littérature, des sciences et des arts au Brésil, Journal de l’Institut historique, v. 1,
n. 1, p. 47–53, 1834, p. 50.
33
Ibid., p. 50.
34
GOMES, Guilherme Simões, Júnior, Palavra peregrina: o Barroco e o pensamento sobre artes e letras no Brasil,
São Paulo: EdUSP, 1998, p. 32.
35
MAGALHÃES; HOMEM ; PORTO ALEGRE, Résumé de l’histoire de la littérature, des sciences et des arts au Brésil,
p. 51.
36
Ibid., p. 51.
9
Diante, pois, desses barracões acachapados, desses mosteiros frios, acanhados,
inúteis; diante dessas casas mal construídas, no meio dessa existência sem
horizonte, dessa vida sem aspirações, como formar-se uma arte superior?
37
Impossível.
Apesar dos juízos opostos, todavia, Gonzaga Duque retomava de Porto Alegre a incerteza quanto
à filiação estilística das obras do período colonial. Atribuía-lhe apenas talentos individuais, como a
licença à engenhosa autenticidade do pintor Manoel da Cunha,38 em oposição ao alento que nutria
pela formação futura de uma escola artística brasileira, cujo estilo pudesse ser claramente
caracterizado:
Já em 1908, ao final da sua vida, o mesmo Gonzaga Duque abdicou do juízo negativo sobre a arte
colonial, caracterizada então apenas como “interessantissimo documento historico”.40 À
semelhança de Araújo Porto Alegre, reconheceu-lhe qualidades na forma da vinculação aos estilos
artísticos europeus, com:
No entanto, continuou a negar-lhe identidade estilística própria, algo que adviria tão somente no
futuro:
Essa arte brasileira, para o mais aclamado crítico de arte da República velha, deitava raízes num
substrato geográfico e cultural abstrato, mas ganhava forma, de fato, a partir do desenvolvimento
dos estilos europeus. No início do século XX, esse repertório compreendia, por princípio, a pintura
e a escultura acadêmicas, de fonte neoclássica mas tendo abarcado, de longa data, o romantismo.
Contudo, já estava aberto também para as manifestações impressionistas, sobretudo diante da
importância que a pintura paisagística e de gênero adquiria para a tarefa de se retratar o caráter
nacional. A inspiração barroca continuava, assim, implicitamente excluída do universo de modelos
artísticos, em que pese a arquitetura baseada no estilo do Segundo Império francês, que pautava
37
GONZAGA DUQUE ESTRADA, Luís, A arte brasileira, Campinas: Mercado de Letras, 1995, p. 74.
38
Ibid., p. 81.
39
Ibid., p. 258–259.
40
GONZAGA DUQUE ESTRADA, Luís, Contemporaneos: pintores e esculptores, [s.l.]: Benedicto de Souza, 1929,
p. 247.
41
Ibid., p. 247.
42
Ibid., p. 255.
10
as construções na nova Avenida Central no Rio de Janeiro e nas obras públicas de muitas cidades
brasileiras. Já a arquitetura religiosa, a exemplo das novas catedrais de São Paulo e Porto Alegre,
oscilava entre o neogótico criativo e o classicismo renascentista, na mesma amplitude “de Bramante
a Buonarroti” que Araújo Porto Alegre queria ver nos primórdios da arte colonial. A revista Acrópole
elogiava, em 1945, o “grandioso templo” que viria a sediar a Sé de São Paulo, citando, para dar
autoridade à escolha do neogótico, exemplares indistintamente antigos e modernos, como a
Catedral Notre-Dame de Paris e a de São Patrício, em Nova York.43 O mesmo artigo nenhuma
referência fazia à antiga Sé barroca, construída em 1764 e demolida em 1911.
Em 1914, seis anos depois do derradeiro discurso de Gonzaga Duque, Ricardo Severo proferiu sua
palestra A Arte Tradicional no Brasil: A Casa e o Templo na Sociedade de Cultura Artística de São
Paulo. O interesse do engenheiro português pela arquitetura do período colonial era muito mais
direto e operativo do que a referência meramente retórica feita pelo crítico carioca. Severo
corroborava, todavia, a opinião de Gonzaga Duque de que a cultura brasileira não tivera ainda
desenvolvido força suficiente para constituir um caráter nacional. Em vez de um substrato
arquitetônico oscilando entre o renascimento e o “gótico” ou, no sentido atual, o barroco, ele trazia
de Portugal os mais recentes conceitos sobre a importância da influência mourisca na matriz
romana da arquitetura luso-brasileira.44 O comparecimento do barroco é, então, situado com maior
precisão conceitual, mas sem um recorte cronológico ou uma atribuição dos mais específicos:
Ele prosseguia argumentando que as igrejas barrocas, tanto quanto as casas, do período colonial
exibiam essa simplicidade, “sendo apropriadas no contexto local e no seu aspecto de característica
originalidade”. Essa qualidade moral da “modesta singeleza” adaptada ao “contexto local”
reapareceu num dos primeiros ensaios de outro exímio arquiteto neocolonial: Lucio Costa. Em artigo
polêmico de 1928, posteriormente renegado pelo próprio autor, Costa traçava uma distinção entre
a arquitetura colonial exemplar e a obra barroca do Aleijadinho:
11
pouco precioso. Assim tôda a sua obra como que desafina de um certo modo com
46
o resto da nossa arquitetura.
Não se tem certeza se àquela altura ele ainda mantinha a mesma opinião que Gonzaga Duque e
Ricardo Severo quanto à inexistência de uma arquitetura caracteristicamente brasileira, expressa
numa entrevista concedida ao diário A Noite em 1924:
Habituado a viajar por terras diversas, estava eu acostumado a ver em cada novo
paiz percorrido uma architectura caracteristica, que reflectia o ambiente, o genio da
raça, o modo de vida, as necessidades do clima em que surgia; uma architectura
que transformava em pedra e nella condensava numa synthese maravilhosa toda
uma época, toda uma civilisação, toda a alma de um povo. No emtanto, aqui
chegando, nada vi que fosse a nossa imagem…
[…]
Não vou ao extremo de achar que já devíamos ter uma architectura nacional.
Naturalmente, sendo o nosso povo, um povo cosmopolita, de raça ainda não
constituída definitivamente, de raça ainda em caldeamento, não podemos exigir
uma architectura propria, uma architectura definida. Deveríamos, porém, ter
tomado, e isso ha muito tempo, uma directriz, e iniciado a jornada aceitando como
ponto de partida o passado que, seja elle qual fôr, bom ou máo existe, existirá
47
sempre, e nunca poderá ser apagado.
Com a adesão de boa parte do círculo profissional de Lucio Costa ao Movimento moderno, na
década de 1930, a relação da arquitetura contemporânea com o substrato colonial tornou-se
ambivalente. De um lado, o próprio Lucio Costa continuava a se valer dela como paradigma de
adaptação, exaltando em 1937 o “velho portuga” como modernista avant la lettre.48 De outro,
Joaquim Cardozo, em aula magna proferida na Escola de Belas Artes do Recife em 1939, buscava
separar de um conceito genérico de nacionalidade, potencialmente útil, ainda, no seu discurso,
aqueles modelos arquitetônicos a serem, doravante, descartados pelos futuros profissionais:
12
Assim como seu contemporâneo e colega repentista do movimento neocolonial, Lucio Costa, o
arquiteto Paulo Santos procurou caracterizar a arquitetura colonial brasileira ressaltando a sua
simplicidade, para tanto recorrendo ao maneirismo como síntese do erudito europeu com a
rusticidade adquirida no contato com as restrições da terra. Em Quatro Séculos de Arquitetura —
produto de conferência proferida em 1965 —, consolidava o entendimento de que “arquitetura
jesuítica” e maneirismo fossem mais ou menos sinônimos, separando da produção dos Jesuítas a
linguagem barroca. Santos ponderava, de modo semelhante ao que Severo afirmara, que tanto o
maneirismo quanto o barroco no Brasil “exprimiram antes o arcaísmo próprio ao meio áspero e rude
do que uma maneira ou atitude contrária às normas consagradas”.50 Ele sintetizou, desta feita, a
tendência dominante nas primeiras décadas do século XX na caracterização da arquitetura
tradicional brasileira. Esta se afastava da tentativa acadêmica de justificar a erudição instintiva dos
artistas coloniais, celebrando, ao contrário, a sua rudeza autêntica, e enfatizando a simplicidade
percebida nas suas obras em comparação com os equivalentes europeus.
Lacunas e pesquisa
Essa liberdade de atuação diante da matéria física objeto de inspiração caracteriza, por um lado,
uma espécie de sucessão tipológica, na qual fica entendido, da parte dos arquitetos atuantes e
militantes, que o valor histórico dos exemplos coloniais se dá num nível abstrato de interpretação
do estilo, mais do que na expressão direta de um cânone claramente regrado. Em comum com a
prática renascentista, o Neocolonial brasileiro assume a transposição de um repertório erudito da
edilícia religiosa do passado para a arquitetura civil moderna, ao mesmo tempo que considera os
vestígios físicos por seu potencial informativo mais do que pelo valor de sua materialidade.
Não se deve subestimar o quanto era lacunar o universo de obras com base no qual os autores da
primeira metade do século XX construíram seu discurso sobre a rústica autenticidade da arquitetura
brasileira. Ele se resumia, inicialmente, às cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, com
seu entorno rural ou suburbano. O esforço de documentação empreendido de modo diletante na
década de 1920, e a partir do final da década seguinte com a sistemática inspirada ao Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) pelas viagens de Mário de Andrade, começou a
render frutos a partir de 1940. Essa contingência fez do longo e fartamente ilustrado estudo de Lucio
50
SANTOS, Paulo F., Quatro séculos de arquitetura, Barra do Piraí: Fundação Educacional Rosemar Pimentel, 1977,
p. 6.
13
Costa sobre a arquitetura jesuítica, publicado em 1941 na Revista do SPHAN, um divisor de águas
na caracterização da arquitetura colonial.
Ricardo Severo
No começo do nosso recorte, a publicação de Ricardo Severo na Revista do Brasil, em 1917, era
acompanhada de desenhos e fotografias, dois terços dos quais correspondiam a edificações
religiosas, ocupando a arquitetura residencial a maior parte do terço restante. O autor pretendia,
efetivamente, que o texto fosse um contraponto à ênfase na arquitetura residencial dada à palestra
de 1914. Todas as igrejas apresentadas tinham em comum a implantação em grandes centros
urbanos do litoral; as regiões de mineração, hoje incontornáveis no estudo da arquitetura colonial
brasileira, eram completamente ignoradas. Apenas a arquitetura residencial — casas-grandes de
engenhos e casas de fazenda paulistas — tinha alguma representação fora das principais cidades
costeiras.
Severo reconhecia a dificuldade dos seus contemporâneos em apreciar esse “grupo archeologico”
pelo seu valor histórico. Ponderava, portanto, que:
Um segundo grupo, em que “a architectura é mais erudita e esthetica” era formado por:
14
— Igreja de São Pedro dos Clérigos, São Paulo (1750, demolida em 1911);
— Além dessas, mencionou, sem ilustrá-la, a Matriz de Nossa Senhora do Bonsucesso, em Caeté
(1756–1790);
Severo separou, nesse grupo, exemplares “curvilíneos” de Ouro Preto e São João del-Rei, cuja
arquitetura ele atribuiu ao Aleijadinho, provavelmente com base na “ilusão de tôdas as vilas mineiras
que se orgulham de possuir uma pedra trabalhada pelo divino leproso”, como criticaria Lucio Costa
em 1928.53 A despeito de a historiografia de boa parte do século XX ter insistido no termo “barroco
mineiro”, Severo já caracterizava essas duas igrejas como tendo ornamento rococó.54 Como
exemplo contrário, denunciou o novo campanário eclético da então Catedral de Nossa Senhora do
Carmo, no Rio de Janeiro, o qual combinava elementos clássicos e românicos, sugerindo que:
[…] teria occasião de mostrar com evidencia como o novo campanario, no seu
desenho, composição architectonia e ornamentação, é de valor muito inferior ás
visinhas torres coloniaes; denunciaria, em flagrante corpo de delicto, não só a
dissonancia entre certas modernidades e o meio local, como tambem a falta de
caracter e inferioridade esthetica de muitas dellas, em confronto com esses banaes
55
e toscos productos da arte colonial.
O último conjunto de exemplos de igrejas coloniais apresentado por Severo era um compêndio do
que não se enquadrava nos dois anteriores, compreendendo:
Após breve menção à arquitetura residencial, o autor prosseguiu elencando certo número de
exemplos de arquitetura religiosa portuguesa — todos em estilo barroco ou rococó, inclusive três
edificações medievais com intervenções seis e setecentistas. A integração entre o gótico e o barroco
serviu-lhe de oportunidade para fazer um paralelo elogioso entre os dois estilos, tencionando
reabilitar, aos olhos dos seus leitores, a arquitetura barroca, cujo:
[…] estylo é, como o gothico, das mais bellas expressões artisticas duma epocha e
dum meio social, tem uma legitimidade tão legal quanto o dogma classico das
ordens architectonicas dos pantheons greco-romanos. Na arte não ha estylos
56
privilegiados.
Na década de 1910, o neogótico estava no auge do seu prestígio no Brasil, como evidenciavam as
reconstruções das Catedrais de São Paulo e Santos, a conclusão da Catedral de Petrópolis, o início
53
COSTA, O Aleijadinho e a Arquitetura Tradicional, p. 13.
54
SEVERO, A Arte Tradicional No Brasil, p. 404.
55
Ibid., p. 404.
56
Ibid., p. 412.
15
da de Belo Horizonte, e a reforma da Sé de Olinda. Além desses notórios monumentos, um imenso
número de igrejas paroquiais foi construído ou reformado em estilo gótico — o que, por sua vez,
ensejou em meados do século XX diversas intervenções do SPHAN para remover esses elementos
estilísticos, frequentemente criando simulacros de arquitetura colonial em seu lugar. Nesse
contexto, a associação entre o gótico e o barroco, no texto de Severo, não tinha mais a conotação
pejorativa vista no século XIX, mas, ao contrário, buscava alçar a produção arquitetônica colonial
ao patamar de prestígio dos edifícios cuja construção coeva ameaçava aniquilar aquele patrimônio.
Lucio Costa
A extensão do conhecimento de Ricardo Severo e de Lucio Costa sobre a arquitetura colonial
brasileira tinha, inicialmente, poucos pontos de contato. Severo apresentara, em 1917, sobretudo
exemplares de igrejas paulistas e cariocas, com algumas referências a Salvador e Olinda. Poucos
anos depois, Lucio Costa viajou a Minas Gerais, detendo-se, principalmente em Diamantina. A
diferença entre o repertório arquitetônico da Capital, incluindo-se aí a produção neocolonial recente,
e o que ele encontrou num remoto e sonolento arraial, parece tê-lo impactado. Tornou-se lugar
comum do Movimento moderno citar a declaração dada em entrevista para o jornal A Noite, em
junho de 1924:
Percebe-se nessa declaração um certo enfado com a arquitetura erudita, de estilo barroco ou
expressão jesuítica, diante da empolgante novidade representada pela simplicidade da arquitetura
civil. A isso agregava-se um alerta de Lucio Costa quanto a:
[…] certos elementos de influencia hispano-arabe que, note-se bem, devem ser
aproveitados com muito cuidado para que se evite todo e qualquer cunho descabido
58
de orientalismo em nossas construcções.
O repertório estilístico que se delineava dessas assertivas retomava o foco residencial de Ricardo
Severo na sua primeira palestra, em 1914. Todavia, contrariamente ao engenheiro português, a
preferência de Lucio Costa parecia tender para o programático e não meramente circunstancial. Ao
mesmo tempo, a regularidade e a consistência percebidas por Costa no “verdadeiro colonial”,
explicitadas em termos de “elementos básicos para a solução inteligente de um projeto”, estabelece
um paralelo com o aspecto da sistemática clássica conhecida como “omissão progressiva”, que
permite, segundo Steven Semes:
57
COSTA, Lucio, Um Architecto de Sentimento Nacional: Lucio Costa e a Sua Excursão Artistica Pelas Velhas Cidades
de Minas, A Noite, 4512. ed. p. 1, 1924, p. 1.
58
Ibid., p. 1.
16
[…] aos edifícios responderem à adequação-ao-propósito que Vitrúvio chamou de
“decoro” — ao passo que a ordem implícita sustenta uma continuidade entre
59
edifícios diversos, a despeito de suas diferenças superficiais.
Sua preferência por falar de “casas pequenas” seria confirmada em escritos posteriores, dentre os
quais o famoso Documentação Necessária.60 Tal atitude confirmava-se logo na ressalva com a qual
Costa abria o seu estudo sobre a arquitetura jesuítica, publicado na Revista do SPHAN em 1941:
Após esse desabafo inicial, contudo, o restante do estudo se desenrolava com grande esmero na
descrição e na caracterização da produção dos jesuítas. O autor corroborou o processo de
reabilitação do barroco, definindo-o não como “uma arte bastarda, como pretendem alguns, mas
[…] uma nova concepção plástica, liberta dos preconceitos anteriores e fundada em princípios
lógicos e sãos.”62 Ao mesmo tempo, marcou posição contra a extensão arbitrária do conceito,
proposta pela teoria de Eugenio d’Ors, apenas para, imediatamente em seguida, aplastar dentro da
categoria do barroco “a maior parte das manifestações de arte compreendidas entre a última fase
do Renascimento e o novo surto classicista de fins do século XVIII”63 — implicitamente
proscrevendo a distinção entre barroco e rococó, tabu que continuaria a pautar a historiografia da
arquitetura brasileira até recentemente.
O esquema adotado por Lucio Costa na redação do estudo foi cuidadosamente sistemático.
Vencida a digressão introdutória sobre o barroco, o corpo do ensaio foi dividido em duas partes:
primeiro, o ordenamento geral dos colégios e de suas igrejas, seguido da análise dos retábulos. A
primeira parte inicia-se com a descrição do programa de necessidades básico, seguida da
exposição das técnicas construtivas disponíveis, e finalizando com a apresentação do partido
arquitetônico básico e suas variações. Em sendo transparentes a técnica — talha e pintura em
madeira — e o programa — iconografia sacra — dos retábulos, a segunda parte, muito mais extensa
que a primeira, consiste na descrição da talha seguida da descrição da pintura.
Após esse cerne há outra digressão, inteiramente contemporânea dessa vez, e com ares de
conclusão. Nela, Lucio Costa marcava posição simultaneamente contra a arquitetura neogótica, e
por uma unidade de propósito entre as construções religiosas e civis de cada período. A segunda
posição era, de certo modo, instrumento para afirmar a primeira, negando a distinção entre a
arquitetura erudita e a popular que comparecera no seu discurso de juventude:
E a “enscenação” das nossas igrejas jesuíticas, como a de todas as demais, foi tão
legítima quanto o foi a “enscenação” das igrejas góticas, cada qual a seu modo, de
59
SEMES, Steven W, The future of the past: A conservation ethic for architecture, urbanism and historic
preservation, New York : London: W. W. Norton, 2009, p. 55.
60
COSTA, Documentação Necessária.
61
COSTA, Lúcio, A Arquitetura Dos Jesuítas No Brasil, Revista do Serviço do Patrimonio Historico e Artistico
Nacional, v. 5, p. 9–104, 1941, p. 9.
62
Ibid., p. 11.
63
Ibid., p. 12.
17
acordo com a sua época. Porque o “estilo” das igrejas nunca foi uma coisa à parte,
64
divorciada do estilo das construções contemporaneas comuns.
O argumento em prol da unidade subjacente à produção jesuítica no Brasil foi reforçado, por um
lado, pela brevidade da análise da composição arquitetônica dos colégios — ressaltando a
uniformidade dos partidos — e, por outro, pela minúcia cronológica no estudo dos retábulos. A
descrição das peças de talha remetia ao recurso tradicional do historiador da arte oitocentista, a
expertise de obras para confirmar cronologias. Resultou desse método, além da consecução de um
ideal de unidade na produção jesuítica de todas as épocas, o estabelecimento de uma cronologia
estilística mais ou menos clara, em quatro fases.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O papel da arquitetura religiosa na teorização do movimento tradicionalista e na subsequente
reavaliação historiográfica modernista, exemplificada em Ricardo Severo e Lucio Costa, navega
entre o paradigma fornecido pelo Renascimento italiano e as vicissitudes das leituras históricas
sobre a cidade brasileira. Do Renascimento, herda a expectativa de uma articulação paradigmática
do estilo erudito por meio dos exemplos desenvolvidos no desenho em geral, e nas fachadas em
especial. Devido à tradição historiográfica e crítica da arte brasileira constituída durante o século
XIX, por outro lado, assume a tarefa de reabilitar uma tradição identificada como divergente da
norma clássica. Da tentativa de identificar nessas manifestações coloniais um sistema passível de
ser reutilizado e transmitido, resultam as tipologias formuladas pelos dois autores tradicionalistas.
Cada parte do estudo de Lucio Costa se abre com uma exposição teórica, seguida da sua ilustração
pelos exemplos específicos: Ele inverte, portanto, a abordagem de Ricardo Severo, o qual cita
primeiro os exemplos para depois descrever-lhes o caráter. Diverge do seu antecessor, ainda, pelo
cuidado com a indicação da cronologia ao longo do trabalho. Essa cronologia, porém, é menos
determinante do que a construção de um senso de unidade nacional que transcendesse a
diversidade estilística.
Lucio Costa enfatizava tanto a noção de uma unidade na produção jesuítica no Brasil — inclusive
unidade na evolução do programa decorativo dos retábulos — que lhe pareceu razoável o relato de
que as talhas da igreja no Morro do Castelo tivessem sido realizadas em Portugal.66 Tal explicação
ajudaria, de fato, a excluir do contexto brasileiro produtos de rara sofisticação erudita, incompatíveis
com o ideal de unidade entre a arte popular e aquela, mais refinada, dos Jesuítas — exibidas,
segundo o autor, nas “interessantíssimas versões populares seiscentistas desses mesmos
64
Ibid., p. 88.
65
COSTA, O Aleijadinho e a Arquitetura Tradicional, p. 15.
66
COSTA, A Arquitetura Dos Jesuítas No Brasil, p. 53.
18
retábulos”.67 O relato em questão foi desmentido por Paulo Santos,68 com base em informações
provavelmente já disponíveis à época em que Lucio Costa redigira seu estudo.
Severo assume o papel de fazer uma “tipologia arqueológica” de alguns edifícios religiosos
brasileiros: para tanto, abre mão de buscar datas para os exemplos que cita, agrupando-os, em vez
disso, em grupos de caráter distinto. O primeiro grupo compreende as obras de interesse
“meramente” arqueológico, nas quais ele não vê componentes arquitetônicos dignos de apropriação
pelo movimento tradicionalista. Já os segundo e terceiro grupos são representativos da arquitetura
erudita, capaz de fornecer os necessários elementos iconográficos e ornamentais requeridos pela
prática moderna.
Ambos autores partem de uma formação acadêmica sólida para manipular um material carente de
sistematização teórica. Têm como principal referência metodológica a construção do sistema das
ordens clássicas, amparado no desenho e, sobretudo, no projeto de fachadas de edificações
religiosas, tal como formulado no Renascimento. Divergem, então, na aplicação dessa metodologia
à análise da arquitetura colonial brasileira. Severo aplica-lhe a mesma hierarquia renascentista,
selecionando dentre a arquitetura religiosa somente aqueles objetos dignos de interesse pelo
fornecimento de um sistema formal e decorativo completo.
Lucio Costa, por sua vez, desde sua fase neocolonial até a fase modernista, adota como fio condutor
o argumento de que existe uma coerência interna perpassando as formas mais vernáculas de
arquitetura ao longo de diversos períodos históricos e regiões do País. Desse ponto de vista, busca
separar caracteres estruturais e ornamento acidental, favorecendo os primeiros enquanto
ferramentas de sistematização da tradição nacional, porém sem desprezar totalmente os aspectos
decorativos enquanto portadores de significado. Ainda assim, pode-se entender a abordagem de
Costa como o reconhecimento de ordens implícitas, abordando uma leitura mais abstrata da
tradição clássica.
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67
Ibid., p. 54.
68
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