Você está na página 1de 32

Sérgio Gorjão

A arquitetura jesuítica ao modo-nostro


e a génese do Real Edifício de Mafra

2019

1
A arquitetura jesuítica ao modo-nostro
e a génese do Real Edifício de Mafra

Resumo:

O Real Edifício de Mafra é uma das principais construções da primeira metade do


século XVIII na Europa, um complexo palaciano e conventual, que integra uma basílica,
jardim e tapada, bem como enfermarias, uma academia de estudos e uma das mais
significativas bibliotecas barrocas do seu tempo. Nesta biblioteca reúnem-se os
principais títulos da tratadística de arquitetura, balizadas entre os séculos XVI e
meados de XVIII. Do conjunto destes tratados selecionaram-se nove autores ligados à
Sociedade de Jesus, representantes da corrente arquitetónica que foi seguida em
Mafra, cuja função e projeto refletem um conjunto de valores teóricos e práticos
típicos da arquitetura ao “modo-nostro”.

Estes tratados são, também, códigos filosóficos, científicos e gráficos, reportáveis na


conceção e projeto de Mafra.

Palavras-chave: Palácio de Mafra, Dom João V, tratadística arquitetónica, arquitetura


barroca, arquitetura jesuítica.

Sérgio Gorjão, 2015 [revisto em 2019]


Téc. Sup. Palácio Nacional de Mafra / Direção Geral do Património Cultural

2
Índice

Introdução ..................................................................................................................................... 4
Os Jesuítas e a afirmação da arquitetura barroca......................................................................... 6
Dom João V - enquadramento histórico ....................................................................................... 9
A tratadística jesuítica na Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra ........................................... 15
A tratadística de arquitetura - influência no Palácio Nacional de Mafra .................................... 24
Conclusão .................................................................................................................................... 29
Fontes Bibliográficas e Bibliografia Crítica .................................................................................. 31

3
Introdução

Ao presente artigo subjazem algumas questões relativas à tratadística barroca que


antecede a edificação do Palácio de Mafra, sendo importante considerar o modo como
este monumento integra uma linguagem “modelar”, passiva de ser considerada no
âmbito dos códigos teóricos, científicos e práticos.

A formação “académica” da Companhia de Jesus, expressa-se através de um sólido


conhecimento das ciências (humanas e exatas), para além das questões doutrinárias e
da religião, as quais se interpenetram no campo multidisciplinar da arquitetura. Note-
se que a arquitetura religiosa sempre teve um forte pendor de afirmação de poder;
porém, é no período barroco, sobretudo com os Jesuítas, que esta disciplina assume
uma expressão propagandística visando cimentar a imagem da Igreja e da ordem
jesuítica, configurando-se numa forma de apoio à sua atividade doutrinária (através
das igrejas e colégios) e desenvolvendo-se não um estilo autónomo, mas uma
sensibilidade programática designada, por eles mesmos, como ao “modo-nostro”.

A forma de encarar a arquitetura e a


construção, suportada em várias
ciências, permite-nos afirmar que os
jesuítas criaram modelos dominantes
no panorama construtivo formal desde
meados do século XVI a meados do
século XVIII, firmados numa semântica
e numa gramática construtiva de
excelência e, com isso, influenciando
largamente as grandes construções
barrocas europeias, entre os quais o
Palácio-Convento de Mafra, em parte à Palácio-convento de Mafra
imagem dos colégios jesuíticos.
A formação teórica dos arquitetos no período barroco era, inevitavelmente,
constituída pelo estudo de diversas matérias, como matemática, geometria, geografia,
astronomia, mecânica, engenharia, etc., consideradas ciências ao serviço da prática da
arquitetura, mas também por outro género de conhecimentos menos “científicos”,
como numerologia ou a astrologia.
Em termos práticos, era imprescindível aos arquitetos e engenheiros a observação
direta ou indireta das obras do seu tempo e ainda de obras do passado,
correlacionando os valores das ordens arquitetónicas clássicas ou, ainda, a
participação ativa no exercício da sua profissão, para tal subordinando-se aos
arquitetos já estabelecidos, trabalhando com eles em equipa em grandes obras, ou

4
desenvolvendo o seu trabalho de forma mais ou menos isolada, mas nestes casos
quase sempre suportada em sólidas redes de patronato sociais e familiares.
Para uma compreensão do que seria o exercício da arquitetura na época barroca, há
que considerar algumas variáveis importantes numa atividade em mutação. A
arquitetura barroca era relativamente diversa da abordagem conceptual dos
renascentistas e maneiristas, inspirados em modelos clássicos rígidos; tendo
oportunidade de, dentro de uma moldura relativamente rígida (em termos de modelo
teórico e de capacidade construtiva), estabelecer processos criativos, inovadores,
teatrais e desafiadores dos limites materiais… longe ainda, porém, da prática
prospetiva da arquitetura do século XIX, ou da assunção de novos valores de desenho
com a aplicação de novos materiais e tecnologias (como a arquitetura do ferro), e
ainda mais distante dos múltiplos conceitos que no século XX se fizeram, projetando a
arquitetura e os arquitetos em várias direções, desde uma dimensão criativa e
artística, a áreas mais ligadas ao domínio da economia ou dos novos materiais, como o
betão, polímeros, etc.

Há, contudo, valores comuns aos arquitetos de todos os tempos: a necessidade de


criar espaços, de projetar algo que depois se transporá para uma obra; a necessidade
de passar do intelectual e abstrato, a uma dimensão de concretização física; a
necessidade de estabelecer códigos gráficos e métricos, traduzíveis em fórmulas
matemáticas, que pudessem ser interpretadas pelos construtores.

Muito da tratadística renascentista e moderna reflete a necessidade de construção de


uma gramática lógica na geração de desenho e formas, procurando, por um lado, fugir
à mera cópia de soluções arquitetónicas, mas sobretudo reinterpretar os valores
considerados consensuais, transformando uma aparente complexidade “caótica” num
sistema de programação, estandardização, equilíbrio, simetria e harmonia, como se de
uma grande peça musical se tratasse.

Importa, assim, conhecer a tratadística produzida pelos jesuítas, cuja arquitetura


parece ser aquela que domina o seu tempo e, para tal, optámos por um caso de
estudo: a caracterização dos tratados existentes na Biblioteca do Palácio Nacional de
Mafra; tendo por objetivo a análise dos referidos tratados, importante ponto de
partida para uma reflexão mais alargada, na perspetiva de que estes se integram numa
corrente pré-computacional; mas também considerando que os jesuítas são os
“sistematizadores” de uma nova abordagem à arquitetura como instrumento de
propaganda contrarreformista e cuja influência se generalizou por toda a Europa,
incluindo Portugal.

5
Os Jesuítas e a afirmação da arquitetura barroca

A Companhia de Jesus, estabelecida por bula de Paulo III, em 1540, desde cedo se
revelou uma sociedade com um âmbito de ação muito ligado à Contrarreforma e à
obediência ao Papa, estando particularmente voltada para as questões doutrinárias e
ensino académico, bem como à assistência espiritual.

Os jesuítas rapidamente expandem o seu poder sobre a


Europa durante os séculos XVI a XVIII, tendo começado
com oito padres em 1540, ascendendo a cerca de 1.500
no ano da morte de Inácio de Loyola (1556), e mais de
17.600 em 1679; porém na primeira metade do século
XVIII acentuam-se vários problemas gerados pela relativa
“desobediência” ao poder temporal em matérias políticas
e também em função do tipo de ensino que
desenvolviam, motivando uma onda de repúdio por parte
Símbolo da Sociedade de Jesus
de muitos governos europeus.

No caso português, os jesuítas tiveram uma importância


significativa no processo de expansão e consolidação do poder no Oriente (em Goa, na
China, Tibete e Japão), mas também, no reino, tiveram uma implantação forte, muito
protegida pela Coroa, estabelecendo residências religiosas em Lisboa e nas principais
cidades, tomando o ensino na Universidade de Coimbra e na Universidade de Évora
(mas não na capital, embora essa possa ter sido uma das suas ambições e uma das
motivações para a sua ligação aos estudos de Mafra).

A proeminência que os jesuítas tiveram nos reinados de Dom João III e Dom Sebastião
é evidente, mantendo-se um pouco mais vigiado no período filipino e pós-restauração.
No reinado de D. João V a relação com os jesuítas é aparentemente boa, mas
“controlada”, tendo o rei valorizado as residências e colégios desta congregação, talvez
por influência da própria rainha, D. Maria Ana de Áustria.

Porém o nível de observação sobre o grau de independência e interferência política


dos jesuítas era grande, agravada no período de cisão entre Portugal e a Santa Sé e
depois, no reinado de Dom José I, acabando por serem perseguidos e expulsos em
1759, acusados de tentarem criar um modelo separatista dos territórios ultramarinos e
sob a suspeita de quererem estabelecer um império sob a sua tutela ou influência.

Outro aspeto relevante para este mau estar face aos jesuítas era a
desproporcionalidade, motivada pela quantidade de membros da sua “ordem” e o
peso sócio-religioso que lhes dariam um imenso poder. Estas características eram
sublinhadas por uma eficiente máquina de doutrina e propaganda, vocacionada para a

6
comunicação com uma vasta massa populacional, tanto de carácter urbano e
metropolitano, com a existência das suas casas próprias em meio rural (onde
procediam a recrutamentos significativos); como colonial, voltada para o contacto e
conversão dos indígenas das missões existentes em territórios asiáticos e americanos.

A Igreja de Jesus em Roma, sede da congregação iniciada por Giacomo Barocci da


Vignola, em 1568, e completada por Giacomo della Porta, em 1575, é um edifício que
marca o surgimento do Barroco em Itália e na Europa, definindo-se como um
“modelo”. O complexo mafrense, embora não seja explicitamente “jesuítico”, não
deixa de responder a esse “modelo” de características, que foi ecoando através de
outras importantes edificações.

Igreja de Jesus, em Roma – Fachada principal e interior da nave (1568-1575)

Ao invés de alguma literatura alemã do século XIX, não se considera hoje a existência
de um “estilo jesuítico” autónomo, no entanto é frequente e aceitável a caracterização
das obras desta congregação como de “arquitetura jesuítica”, ou seja, na qual se
evidenciam características próprias que servem de padrão ao desenvolvimento, mais
ou menos adaptado às condições de cada território, de uma linha programática e a
uma retórica concretas, sucessivamente adotadas na Europa e em muitos territórios
ultramarinos. No entanto, do ponto de vista estilístico e apesar de dominar uma
tendência ligada ao classicismo romano, na verdade os Jesuítas nunca impuseram ou
se fecharam numa “ortodoxia” das ordens arquitetónicas clássicas, embora tenham
tido por base de trabalho as teorias de arquitetura, as relações geométricas e métricas
“canonizadas” por Vitrúvio e revisitadas por vários tratadistas, como Vignola.

Há, contudo, uma espécie de paradoxo. Se por um lado a construção de casas


religiosas era motivo de estrita observação por parte dos censores da congregação e
também sendo notória a ação de muitos jesuítas que conceberam tratados aplicados à
arquitetura; por outro, não podemos afirmar que os jesuítas tenham produzido algum
tratado específico que contemple uma visão arquitetónica normativa e institucional
das suas casas.

7
Deste modo, a Igreja de Jesus em Roma, primeira igreja dos Jesuítas, é um “modelo”
síntese que influencia largamente as opções arquitetónicas usadas na edificação de
muitas outras igrejas na Europa e nos territórios ultramarinos.

Nas construções da Sociedade de Jesus seguiam-se princípios, mais do que um modelo


formal, baseados em seis premissas: vetustez, salubridade, simplicidade, modéstia,
economia e funcionalidade. Os imóveis deviam ser bem desenhados e bem
construídos, sem subterfúgios decorativos excessivos, inspiradores de uma
austeridade sã que eleve o espírito, com uma presença intemporal, com uma orgânica
que facilite o uso e valorize as funções que lhe estivessem destinadas.

No caso dos colégios existiam alunos internos e externos. Para os internos os espaços
deviam ser hierarquizados, devia haver aposentos para os mestres, padres e para
noviços, salas de recreio, jardins, horta, capelas destinadas aos exercícios espirituais e
diversas divisões usadas para as diversas funções diárias (cozinhas, despensas, oficinas,
barbearia, etc.). Já os alunos externos deveriam ter acesso através do exterior às salas
de aula, sem necessidade de interagir com a vivência das casas religiosas; bem como
existência de salas específicas como a Sala de Atos Literários ou de Conclusões
(destinadas à defesa das teses e exames finais), casas de estudo e livraria, etc. Todas
estas características são encontradas em Mafra, como expressão da aplicação dos
princípios de edificação postulados pelos jesuítas.

8
Dom João V - enquadramento histórico

Em 1707, ainda apenas 17 anos,


D. João V (1689-1750) torna-se monarca
de um dos mais poderosos reinos
europeus, com um território continental
relativamente exíguo, mas com vastas
possessões ultramarinas, de onde
resultavam avultados recursos auríferos,
de pedras preciosas, matérias-primas e
produtos de comércio.

A Dinastia de Bragança estava numa fase


de reafirmação externa e interna,
considerando as tensões peninsulares
existentes, fruto da restauração da
independência nacional e do
envolvimento na Guerra de Sucessão
espanhola; com necessidade de aplacar
diplomática e belicamente algumas Dom João V, Pompeo Batoni, c.1711
disputas territoriais em alguns pontos do Palácio Nacional da Ajuda

império; bem como com a expressão de poder de uma monarquia absoluta encarnada
na pessoa do Rei, que urgia assumir no contexto interno e também como sinal de
prestígio externo.

No tempo de D. João V a corte, tinha


assento no Paço da Ribeira, um edifício
iniciado ainda no século XV e que
crescera à medida das necessidades da
Família Real, dispondo ainda de vários
outros paços onde parte da família e os
respetivos séquitos residiam. O Paço da
Ribeira era, assim, um edifício
insuficiente ou para as funções de
estado, pelo que se tornava necessário Paço da Ribeira, Dirk Stoop, 1662,
construir um palácio moderno, funcional, Museu da Cidade de Lisboa

seguro e sobretudo, um símbolo da


grandeza régia.

Desde cedo, o rei estuda a hipótese de construir um novo palácio na capital, a edificar
no Terreiro do Paço (por ampliação do velho Paço da Ribeira), ou no sítio de Buenos

9
Aires (hoje entre a Estrela e o Bairro da Lapa), um lugar
sobranceiro ao Tejo, com um parterre natural e formando
uma encosta em anfiteatro, até ao rio.

Para o efeito foi chamado um grande arquiteto de Turim,


Filipe Juvarra (1678-1736) que, em 1719, faz uma ou mais
propostas para a construção de um grandioso palácio em
Lisboa. Um dos seus esquissos (conservados e Turim)
remete para um palácio-bloco, com algumas
características formais como as que foram seguidas em
Mafra; e outro palácio em U, para Buenos Aires, que tirava
partido cénico da orografia do solo. Filipe Juvarra (1678-1736)

Projetos de Filipe Juvarra para palácios na baixa e no sítio de Buenos Aires, em Lisboa (c.1719)

Poucos anos antes, em 1711, D. João V havia tomado a decisão de promover a


edificação de um convento em Mafra contratando-se, para o efeito, o alemão
“italianizado” Johan Frederic Ludvig [João Frederico Ludovice] (1670-1752), prateiro e
desenhador de arquitetura ao serviço da Sociedade de
Jesus em Roma e, depois, trazido para Portugal com o
propósito de coadjuvar a construção do Colégio dos
Jesuítas em Lisboa, e que gradualmente se tornou um
dos homens mais influentes no que se refere a obras
régias. Em 17 de Novembro de 1717 é lançada a
primeira pedra do faustoso templo marmóreo dedicado
à Apresentação do Menino Jesus, pela Virgem Maria, a
Santo António, uma basílica cujo estatuto lhe advinha
do facto de ser capela-real do Palácio e onde assistiam
João Frederico Ludovice (1670-1752)
às cerimónias o Patriarca de Lisboa, enquanto capelão PNM

do rei, e os membros da comunidade religiosa da


Província Portuguesa da Arrábida.
O Palácio-Convento de Mafra transformou-se na prioridade do rei, que se empenhou
em todas as fases de conceção e construção. O antigo Palácio da Ribeira sofreu obras
para melhorar alguns aspetos funcionais e, em particular, foi reformulada a “capela”

10
do Paço, então transformada em sede patriarcal, porém, é em Mafra que melhor se
cumpre o desígnio de criação de uma majestosa basílica ao modo romano.
O projeto de Buenos Aires foi abandonado ou protelado “sine die”, embora a
necessidade de albergar condignamente a Família Real e a corte em Lisboa se
mantivessem, dando origem à ocupação de áreas no alto das Necessidades, entre a
Ajuda e Belém (consolidando-se como alternativas a Buenos Aires).
Subsistem várias dúvidas quanto à edificação do palácio, convento e basílica de Mafra.
A primeira tem a ver com a decisão de edificação fora de Lisboa, depois a escolha do
local, por último a questão da autoria do projeto. Para compreendermos melhor as
questões colocadas há que ter presente o enquadramento cultural da época e os
“exemplos” europeus.

À primeira questão responde-se pela evidente necessidade de um palácio, que teria de


ser à escala poder real (ou da sua imagem), sendo que evidentemente se seguiu a
tendência de construção à maneira de Versailles, como uma grande propriedade
autossuficiente, relativamente próxima da capital, mas suficientemente retirada para
que o monarca tivesse a garantia de privacidade e segurança.

Na época, existiam dois modelos palacianos distintos: edifícios eminentemente


urbanos (como o Terreiro do Paço em Lisboa, o Alcazar e Buen Retiro em Madrid, as
Tulherias, entre outros) ou edifícios retirados, com domínios agrícolas e florestais
anexos, como é o caso paradigmático de Versailles, ou ainda os exemplos de abadias
alemãs como as de Melk, Einsiedeln e Weingarten (todas do início do século XVIII) ou o
caso espanhol do Mosteiro do Escorial.

À segunda questão corresponde a necessidade de constituir um vasto domínio que


garantisse a captação de água, terrenos agrícolas e agropecuários, espaço para recolha
de lenhas para combustível e como recurso venatório, que não seria possível nas
imediações de Lisboa dada a dimensão e a repartição da propriedade. Outro dado
importante é a relativa proximidade à capital, tanto por terra como por mar.

Os territórios nos arredores de Lisboa (na margem norte do Tejo: Loures, Vila Franca,
até Santarém; ou na margem sul: Alcochete, Almada, Azeitão, etc.) estavam já
tomados por uma rede urbana e rural muito sedimentada, não havendo, por isso,
possibilidade de agregar uma área adequada para uma grande propriedade régia. As
antigas quintas existentes eram pertença da grande nobreza e alto clero, muitas delas
constituíam vínculos perpétuos, as zonas francas eram habitadas por população que
tinha aí as suas residências e modos de vida… a aquisição de quintas (como se fez em
Belém), era excessivamente onerosa; a opção dos arredores imediatos de Lisboa era,
assim, inexequível. A opção de Sintra também não seria útil. Aí já existia um Paço Real,
nada ao gosto do rei nem do tempo, e a topografia do solo era excessivamente

11
acidentada, não permitindo um assentamento expressivo e cenográfico, conforme à
sensibilidade barroca.

Por último, a autoria, embora tivessem existido propostas de outros arquitetos


(segundo crónicas da época), efetivamente é a de Ludovice que ganha, tanto para a
basílica como para todo o projeto.

Embora as outras propostas não tivessem sido aceites, ainda assim é de considerar que
as opções formais básicas possam ter sido aproveitadas por Ludovice, dada a aparente
proximidade às opções propostas por Juvarra. Neste caso Ludovice surge “em cena”
dando voz a opções projetuais que seguramente foram inspiradas noutros projetos ou
modelos, e passados pelo fino olhar do monarca, porém o projeto de Mafra também
tem muito de “autoral”, dado que Ludovice desenvolve detalhadamente o projeto
para todo o palácio e convento (ampliado).

A opção inicial parece ter sido a construção de um palácio em Lisboa e um convento


em Mafra, mas rapidamente se configurou a solução de criar uma megaestrutura
palaciana, integrando o convento, apenas em Mafra. Aqui cumprem-se todos os
critérios essenciais a um espaço áulico em meio rural: um espaço retirado mas
suficientemente perto da capital (a duas horas de distância), de fácil acesso por terra e
mar; um lugar seguro e longe do bulício citadino e resguardado de alguma agitação
social; um espaço com bons ares, favorável à higiene e evitando as epidemias;
autossuficiente em recursos hídricos e caça; numa zona facilmente defensável por se
constituir quase como uma fortaleza posta sobre um outeiro e com todas as condições
de receber a corte e o governo; edificado num alto rochoso que conferia segurança aos
alicerces, com abundância de materiais de construção, com desafogo territorial para
constituir uma vasta tapada, com uma relação com o mar, em termos de vistas e
insolação; com solos agrícolas de qualidade e expectantes, e vastas áreas florestais de
caça; com a possibilidade de se emparcelarem terrenos e de, com um reduzido
impacto, remover os escassos habitantes de um ou dois lugares que ficariam
integrados na Tapada.
Carta topografica que
comprehende todo o
terreno desde as cidades de
Lisboa Occidental e Oriental
té a vila da Mafra, com
todos os lugares, q. contem
na sua extenção tudo feito
debaixo da direcção do
Engenheiro mor. do Reyno,
e do Coronel Manoel da
Maya, Manuel da Maia,
1754

12
Carta topográfica… pormenor da marcação da Estrada Real de Lisboa a Mafra e
do assentamento do palácio de Mafra, Manuel da Maia, c. 1754

Do ponto de vista formal o Monumento de Mafra tende


a ser interpretado como uma sucessão tardia do
Mosteiro de São Lourenço do Escorial (iniciado em
1563), porém esta comparação só é passível de ser
realizar se olharmos exclusivamente para os aspetos
formais das grandes construções do seu tempo. Mafra
tem algumas semelhanças, em termos de distribuição
espacial, com o Escorial, nomeadamente pelo facto da
sua arquitetura ser em bloco, formando claustros
interiores e com áreas civis e religiosas definidas. Porém, quer no estilo arquitetónico,
quer na hierarquização de espaços, existem profundas diferenças que nos permitem
afirmar que Mafra se distancia da gramática serliana do Escorial e aproxima-se do
barroco romano, uma arquitetura também ela sóbria, mas com um carácter diverso do
espanhol, posto em voga por importantes arquitetos, como Vignola, Maderno e
Bernini.

Do ponto de vista propagandístico e político podemos dizer que Mafra não tende a
copiar o Escorial mas, se tal abordagem puder ser feita, seria muito mais uma forma de
integrar uma linguagem de manifestação de poder face a Espanha e à restante Europa,
como estratégia de afirmação de Portugal como reino independente e assinalando a
legitimidade da Dinastia de Bragança.

Mafra distancia-se do Escorial sobretudo no que respeita à simbólica: aqui há a clara


assunção do poder real como dominante, visível através da preponderância do Palácio
Real sobre a estrutura conventual, onde o
rei assume o domínio. No Escorial trata-se
do inverso: estrutura monástica é
predominante e nela o imperador ou o rei
teriam apenas um espaço privativo de
recolhimento e um panteão.

Real Mosteiro de São Lourenço do Escorial


Tesouros Reais de Espanha

13
Dado que em Mafra confluem várias funções: palácio,
basílica e convento, é também normal que se explorassem
várias fontes de inspiração para o desenho e execução desta
obra, aqui entrando a influência clara da arquitetura italiana
(note-se a forte influência borrominiana, mas também a
participação clara dos arquitetos jesuíticos, nomeadamente
através de Ludovice, com formação germânica e romana).

Planta do Mosteiro
de São Lourenço do Escorial

Desconhece-se o paradeiro dos desenhos originais do Real Edifício de Mafra, ao que se


sabe destruídos por ocasião do terramoto de 1755. Contudo, mesmo com a escassez
de documentos específicos, podemos ainda conhecer as principais fontes formativas
dos arquitetos da época e, em especial de Ludovice, que não só estaria familiarizado
com a tratadística, como ainda teve a oportunidade de trabalhar diretamente em
Roma, colhendo aí grande parte da sua experiência.

Palácio Nacional de Mafra – Vista aérea

Palácio Nacional de Mafra – Volumetria e áreas funcionais Palácio Nacional de Mafra - Planta do piso 1
(incluindo basílica e área conventual)

14
A tratadística jesuítica na Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra

Na biblioteca palatina de Mafra existe um significativo acervo de obras de arquitetura


e engenharia, desde tratados a álbuns de gravuras, que demonstram uma parte
considerável do universo literário que influencia as opções tomadas pela equipa que
construiu o Real Edifício de Mafra1.

Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra

Para a presente análise considerámos as obras constantes da Biblioteca do Palácio


Nacional de Mafra, cronologicamente antecedentes ou coevas à construção do
edifício, ou seja, até meados da primeira metade do século XVIII. Nela apurámos mais
de seis dezenas de obras, cujas edições estão balizadas entre 15722 e 1753, que não
esgotam o universo literário existente na biblioteca nem sobre a produção europeia
(sobretudo em Itália, França e Países Baixos), mas são já um extraordinário indicador
dos interesses nesta matéria e seriam, seguramente, das melhores obras para a
formação dos especialistas, cobrindo campos ligados à teoria e matemática, ao
comentário às ordens arquitetónicas e estatuto dos arquitetos, à localização e
robustez de megaestruturas militares, à engenharia e métodos construtivos, catálogos
iconográficos de edifícios análogos, hidráulica, jardins, decoração, entre outros.

O estudo da coleção bibliográfica existente na Biblioteca do Palácio de Mafra é


relevante para o conhecimento do ambiente cultural da época, dos interesses do rei
Dom João V enquanto “comprador” destas obras, reflexo dos seus interesses pessoais

1
Ao denominarmos o monumento de Mafra por “Real Edifício de Mafra”, estamos a usar uma terminologia
abrangente designado o imóvel e as suas várias valências: um espaço palaciano, um espaço de culto, uma casa
religiosa (depois adaptada a quartel militar), um jardim de apoio à residência palaciana e ao convento e uma tapada
de uso exclusivo da Família Real. Independentemente desta circunstância podemos usar no texto outras
designações mais restritas, como “Palácio de Mafra”, ou “Convento”, etc., quando nos referirmos a partes
específicas do imóvel relativamente às suas funções.
2
Considerámos nesta abordagem a obra de Martino Bassi: Dispareri in materia d’architettura et perspettiva…,
datada de 1572, única obra do século XVI na secção de arquitectura existente nesta biblioteca, dado que a mesma
ainda tinha aceitação no século XVIII, tendo tido, por exemplo, uma reedição da mesma publicada em Milão, em
1771.

15
e políticos, mas também para o conhecimento do que mais relevante poderia haver na
constituição de uma base de dados útil para a prática da arquitetura e da engenharia.

Uma primeira abordagem à bibliografia, que simultaneamente é uma fonte


documental, podemos referir a existência de 8 grandes grupos temáticos: i) O estatuto
do arquiteto; ii) Filosofia e matemática; iii) Tratados clássicos, ordens arquitetónicas: a
“verdadeira” e a “falsa” arquitetura; iv) Catálogos iconográficos: a visualização dos
modelos3; v) Engenharia e métodos construtivos; vi) Arquitetura militar e geografia;
vii) Hidráulica e jardins; e viii) Arquitetura de interiores, arquitetura efémera e
decoração.

No contexto dos autores e obras referenciadas, no


que respeita a obras de filosofia e matemática
relacionadas com arquitetura salienta-se a coleção
enciclopédica que compõem a Apiaria universae
philosophiae mathematicae4 (que poderia ser
traduzido, grosso modo, por “Colmeia universal de
Filosofia Matemática”), de Mário Bettini (1582-1657),
um padre jesuíta dedicado ao estudo da matemática,
da filosofia e da astronomia, que estuda, ou melhor,
propõe, uma abordagem à realidade como se se
tratasse de uma anamorfose, ou uma realidade
aumentada, abordando conceitos infinitesimais. Mario Bettini (1582-1657)

Trata-se de uma obra complexa que, em primeiro lugar,


se torna relevante para o conhecimento que podemos ter
de Mafra, já que se trata do conhecimento de um
cientista jesuíta, facto que se vai repetir em diversos
tratados existentes neste núcleo de coleção. Tendo a obra
sido escrutinada pelo revisor/censor jesuíta Christoph
Grienberger, cerca de 1630, contudo apenas depois da
morte deste (em 1636), se procedeu à sua publicação,
integrando importantes correções e sugestões de
Grienberger e que Bettini reconheceu como essenciais à
validade científica da sua obra, tendo especial incidência

as sugestões dadas sobre equipamentos de observação Apiaria universae philosophiae


celeste. A obra Apiaria universae philosophiae de Mario Bettini

3
Destacamos essencialmente dois importantes autores de catálogos iconográficos, nomeadamente os produzidos
por Borromini e pelos impressores Rossi (cf. bibliografia).
4
BETTINUS, Mario – Apiaria universae philosophiae mathematicae in quibus paradoxa et nova pleraque
machinamenta ad usus eximios traducta & facillimis demonstrationibus confirmata... . Bolonha, Ionannes Baptistae
Ferronij, 1642

16
mathematicae deve ser tida em dois contextos distintos: por um lado, internamente, a
obra é um articulado compilado por Bettini, mas ao qual não é alheio o génio científico
de Christoph Grienberger; por outro lado, trata de vários assuntos, dos quais ressalva a
leitura matemática e astronómica, facto importante nos estudos prévios e formação
polifacetada dos arquitetos do tempo, em especial daqueles que, como João Frederico
Ludovice, provinham dessa estrutura eclesiástica (simultaneamente filosófica e
científica).

Dois outros nomes importantes no domínio da filosofia, ciências e matemática,


relativas à arquitetura e constantes na lista de tratadistas, são o Jesuíta seiscentista
André Tacquet e o Padre Juan Caramuel Lobkowitz.

André Tacquet (1612-1660), na sua Opera


Matemática5, dedica-se ao estudo da filosofia
aristotélica e dos tratados de matemática da
antiguidade, focando particularmente sobre os textos
clássicos de Euclides de Alexandria e teorizando sobre
questões ligadas aos volumes e às áreas quer no
domínio da matemática, quer da física e geometria.
Elementa Euclidea de André Tacquet

As obras constantes em Mafra são uma súmula dos seus tratados, nomeadamente:
Elementa Geometriae (Antuérpia, 1654), Arithmeticae Theoria et Praxis (Louvaina,
1656), Cylindricorum et annularium, (Antuérpia, 1659) e Elementa Euclideae,
geometriae (Amsterdão, 1725), escritos sobretudo de
apoio às aulas de matemática nos colégios jesuíticos
alemães. De todas as obras referidas, a Elementa
geometriae foi aquela que, por cerca de 100 anos, foi
tida como elementar, tendo tido várias traduções e
edições. Tratando de um tema fulcral para a formação
de arquitetos, alguns deles também comentaram a
obra de Euclides à luz da interpretação de Tacquet,
refletindo sobre as questões do rácio e das
proporções em arquitetura. Além dos títulos
referidos, Tacquet escreveu também sobre
astronomia, trigonometria, geometria prática e sobre
fortificações, temas extremamente importantes para
o contexto formativo dos arquitetos de final do século Juan Caramuel Lobkowitz (1606-1682)

XVII e início do século XVIII e que presidia ao modo


operativo da arquitetura de Mafra.

5
TACQUET, André – Opera Matemática. Antuerpia, Henricus & Cornelium Verdusen, 1707

17
De Juan Caramuel Lobkowitz, nascido em Madrid em 1606 e falecido em 1682,
contemporâneo de Tacqet, há que referir que, na Biblioteca do Palácio de Mafra,
consta de vasta coleção de 40 obras dedicados a vários temas, uma parte ínfima do
número de títulos que publicou (cerca de 262 obras conhecidas), abarcando vários
domínios como a teologia, direito canónico, lógica, metafísica, ascetismo, gramática,
poesia, oratória, política, sinologia, chegando à matemática, astronomia e física. Este
vasto conhecimento de tantas matérias valeu-lhe o reconhecimento de Doutor na
prestigiada Universidade de Lovaina (1668) e como tal também a fama na Europa e em
especial nos territórios dos Habsburgo espanhóis.

Caramuel redigiu três volumes Architectura civil recta y obliqua (Vigevano, 1678), que
se manteve como o mais significativo tratado espanhol sobre arquitetura e que não
deixou, seguramente, de ser observado pelos arquitetos e engenheiros portugueses ao
tempo de Mafra, pese embora não tenha sido, a nosso ver, uma peça determinante
em termos de influência no Real Edifício, apostada que estava numa abordagem
arquitetónica diversa em estreita associação à arquitetura moderna jesuítica. Apesar
de tudo a obra de Caramuel é relevante, já que, tendo como ponto de partida a obra
de Vitrúvio, analisa as questões ligadas à afirmação da arquitetura como ciência, facto
que não é despiciente no panorama formativo do século XVII.

Desde o Renascimento que existiu sempre uma grande


necessidade de refletir sobre a “verdadeira” e a “falsa”
arquitetura, tendo por base a análise de diversos
tratados filosóficos e matemáticos clássicos. Porém, no
que respeita a tratados de arquitetura gregos ou
romanos, apenas um teve uma sobrevivência real - “De
Architectura” - da autoria de Vitrúvio (Marcus Vitruvius
Pollio), arquiteto romano que viveu no século I a.C. e
que constitui a base para a “reforma” renascentista,
barroca e neoclássica, que marca grande parte dos
séculos XV a XIX, versando, para além de uma métrica e
estética arquitetónica, temas ligados ao urbanismo e
engenharia6. Vitruvio Pollione

São cerca de uma dezena as referências bibliográficas existentes em Mafra sobre as


ordens arquitetónicas, que na verdade instituem uma espécie de norma construtiva
base. Contudo, para a presente abordagem, selecionámos Giacomo Barrozzi (1507-
1573), natural de Vignola e conhecido por este nome.

6
No século XV foram descobertos cerca de 15 tratados parcelares sobre arquitetura, alguns deles levantando
dúvidas quanto à autoria. O tratado de Vitrúvio, também não totalmente isento de problemas de autoria, manteve,
contudo, uma coerência e foi a principal fonte para a reapreciação da arquitetura clássica.

18
Embora tendo vivido num contexto pré-barroco,
Vignola assume um papel de destaque na
implementação dos valores da arquitetura clássica e
pela sua expansão no contexto europeu quer em
outros pontos do mundo (de que Goa, Macau ou
algumas cidades brasileiras são exemplo).

Vignola publica, em 1562, a Regola delli cinque ordini


d’architettura7, obra que viria a ser múltiplas vezes
editada e traduzida em toda a Europa, marcando
indelevelmente o surgimento de um “estilo” barroco
romano que vingará culturalmente em toda a Europa.
Giacomo Barozzi da Vignola (1507-1573)
Esta importante obra tem duas fontes: uma leitura
teórica à obra de Vitrúvio e uma analogia, ou confirmação, com as obras clássicas
sobreviventes em Itália.

Tendo começado a trabalhar em Bolonha na medição (e inventário) de estruturas


romanas, é em Fontainebleau, ao serviço de Francisco I de França, e depois em Roma,
ao serviço da Santa Sé, que desenvolve as suas competências no domínio da
arquitetura, sendo particularmente relevantes as obras na cúpula da Basílica de São
Pedro (duas cúpulas subordinadas, de acordo com os projetos iniciais de Miguel
Ângelo) e na igreja de Jesus, sede dos Jesuítas.

Ambas as estruturas (cúpula de São Pedro e Igreja de Jesus) são muito relevantes para
o projeto mafrense, já que no que respeita à Basílica aí edificada, muitas das opções
advêm desta autoridade.

A Regla de las cinco ordenes de architectura de Jacome da Vignola, é uma reedição e


tradução da obra quinhentista originalmente impressa em Roma, estrutura-se em
capítulos pondo em evidência aspetos construtivos característicos da arquitetura
clássica, formando uma espécie de catálogo ilustrado com as respetivas tabelas de
proporções, inventando assim um sistema que permitia interpretar
“matematicamente” as proporções dos elementos de cada uma das cinco ordens
contempladas. Por exemplo, uma ordem é subdividida em 15 partes, sendo 12 para a
coluna e 3 para o entablamento, somando-se mais 4 para o supedâneo. O mesmo é
válido para a proporção com a altura e diâmetro das colunas, havendo um crescendo
em cada uma das ordens.

A Regola (ou regra) de Vignola é um tratado dirigido aos profissionais e num contexto
extremamente prático, permitindo, assim, a partir de um único elemento e sabendo-se
a que ordem pertence a construção, determinar com exatidão as dimensões das

7
A edição presente em Mafra é muito posterior: VIGNOLA, Jacomo Barocci da – Regla de las cinco ordenes de
architectura de Jacome da Vignola… . Madrid, Isidro Colomo, 1702

19
restantes partes, o que era francamente relevante se considerarmos que muitas das
obras eram geridas a grande distância e os elementos construtivos eram, muitas vezes,
trabalhados nas pedreiras e não em estaleiro de obra.

Um outro autor intimamente ligado à Igreja de Jesus,


sendo ele mesmo, além de jesuíta (leigo), um eminente
pintor, cenógrafo e arquiteto, foi Andrea Pozzo (1642-
1709), do qual, em Mafra, existe a obra Perspectiva
pictorum atque architectorum8. Deste prolífero artista
existem muitas referências bibliográficas na
actualidade, sobretudo explorando aspetos virtuosos
da sua atividade enquanto artista. Contudo a obra que
temos em análise, não deixa de ser, também ela, um
importante marco na formação dos artistas e
arquitetos do tempo de Mafra. Andrea Pozzo (1642-1709)

A obra Perspectiva pictorum atque architectorum, inicialmente publicada em duas


partes, entre 1693 e 1700, trata sobretudo da questão da perspetiva aplicada às artes
plásticas e arquitetura, daqui resultando uma importante atividade de muitos pintores
de arquiteturas fingidas perspetivadas, das quais Pozzo foi um dos principais mentores.

Perspetiva pictorum atque architectorum de Andrea Pozzo

Pozzo revela, na sua obra, estar perfeitamente familiarizado com os grandes tratados e
com a obra dos maiores arquitetos antecedentes e do seu tempo. Assume-se, assim,

8
POZZO, Andrea (Andreas Puteus) – Perspectiva pictorum atque architectorum. Augsburgo, Peter Detleffaen, 1719.

20
como herdeiro de uma tradição, mas estabelece um novo patamar de abordagem à
arquitetura ao tratar de um aspeto muito relevante e que estava a emergir,
nomeadamente a necessidade de oferecer ao olho humano um conjunto de valores
(reais ou ilusórios) que vincassem o carácter das obras de arquitetura; ou seja, tende a
tratar os temas da arquitetura não no plano bidimensional, mas tridimensional, o que
obrigou a uma nova conceção teórica e formal a que se associava a necessidade de
conhecimento profundo da matemática e da geometria.

O domínio das técnicas construtivas seria um dos campos mais relevantes para a
formação dos engenheiros e arquitetos, dada a complexidade e magnitude de obras de
grande volumetria, como Mafra.

No âmbito da construção (e intimamente ligados aos princípios conceptuais


defendidos por Vitrúvio - de utilidade, robustez e beleza) são também relevantes uma
série de tratados que apontam para a necessidade de construir de forma sólida,
sobretudo em obras de arquitetura e engenharia com a envergadura de Mafra, que de
algum modo nos remete para um conhecimento profundo das construções militares
(nas quais Portugal era perito).

Há um grande número de tratados sobre as edificações


militares, que contemplam aspetos tão relevantes como a
geografia, orografia, balística, relações de defesa e
visibilidade e robustez construtiva. Sendo as construções
militares tão relevantes, é natural a existência de inúmeros
especialistas que nos deixaram testemunho sobre este
tema, aliás uma das áreas mais desenvolvidas no que
respeita às questões ligadas aos cálculos de materiais, de
resistência, etc. Para uma megaestrutura como Mafra este
tipo de conhecimento (teórico e prático) era fundamental,
dado tratar-se de uma construção complexa, com
importantes cargas e que, embora fosse essencialmente L’art universel des fortifications de
Jean du Breuil
um palácio e uma casa religiosa, não prescindia de uma
reflexão sobre a necessidade de resistência estrutural e de segurança como bastião de
defesa do Rei.

De uma dezena de tratados sobre arquitetura militar existentes em Mafra,


selecionámos as obras de Jean du Breuil e José Cassani, todos eles ligados de algum
modo à companhia de Jesus (onde obtiveram os conhecimentos necessários à
especialização nesta área).

21
Jean du Breuil (1602-1670) que escreveu, com o pseudónimo de Bitainvieu Silvère, a
obra L’art universel des fortifications9, recebeu a sua formação em Roma e dedicou-se
à análise das fortificações militares das principais potências militares europeias do seu
tempo, criando, assim, um compêndio para o estudo e ensino desta matéria, além do
que este mesmo tratado cumpria, possivelmente, uma missão mais ambígua (de dar a
conhecer as vantagens e fragilidades dos sistemas militares existentes em cada um dos
países que aborda, nomeadamente França, Holanda, Espanha e Itália, classificando as
estruturas em quatro tipos). Este tratado, no entanto, reveste-se de uma natureza
prática também associada ao ensino da matemática, da geometria e do desenho, e
particularmente dirigida aos membros da nobreza que tinham a missão de servir
militarmente os seus estados.

José Cassani (1673-1750), padre jesuíta, astrónomo e


matemático, é outro dos autores presentes na Biblioteca
de Mafra, com uma obra destinada à formação de
construtores de obras militares, nomeadamente a Escuela
militar de fortificación ofensiva y defensiva, arte de fuegos
y escuadronar10; obra que, tal como a anterior, dispõe de
importantes informações sobre o modo de edificar
estruturas de grandeza relevante. Este autor é relevante
na questão da incorporação da ideia dos logaritmos no
estudo da matemática em Espanha, a par de outros

Escuela militar de fortificación


matemáticos do seu tempo, ou seus antecedentes, como de José Cassani
Juan Bautista Corachan, Ulloa, José Zaragoza, Juan
Caramuel, Vicente Mut, Della Faille, entre outros, tendo sido seu especial promotor o
escocês John Napier, no início do século XVII.

Por fim restam ainda algumas obras de autores ligados


aos jesuítas e que apresentam trabalhos em áreas
importantes. L’Architecture hydraulique, ou l'art de
conduire, d'élever, et de ménager les eaux pour les
différents besoins de la vie, de Bernard Forest de Bélidor
(1698-1761), é uma dessas obras, publicada em quatro
volumes (editados entre 1737 a 1753), e será a última
obra coeva à construção do Palácio de Mafra, devendo
para este efeito ser considerada, já que trata de um tema
importante (a hidráulica) aplicado, entre outros, aos Bernard Forest de Bélidor (1698-1761) –
l'Architecture hydraulique (1750)

9
BITAINVIEU, Silvère de (BREUIL, Jean du) – L’art universel des fortifications françaises, hollandoises, espagnoles,
italiennes et composées. Paris, Jaques Du Breuil, 1674
10
CASSANI, José – Escuela militar de fortificación ofensiva y defensiva, arte de fuegos y escuadronar. Madrid,
González de Reyes, 1705

22
jogos de água e fontanários, dos quais em Mafra se sente uma falta relativa por
comparação a outros palácios seus contemporâneos na Europa11.

Bélidor, nascido em Espanha, mas tendo exercido


a sua profissão em França, foi um dos mais
renomados engenheiros militares e matemáticos
do seu tempo, tendo redigido várias obras de
carácter pedagógico, em que introduz a
matemática no domínio da prática construtiva.
Este tratado, que se manteve atual por cerca de
um século e que ainda marca grande parte do l'Architecture hydraulique
de Bernard Forest de Bélidor
século XIX, demonstra a relevância que o tema do
abastecimento de água tinha para os antigos construtores, neste caso sublinhado pelo
rigor e sofisticação de soluções que também advinham da sua formação militar12.

Outros nomes serão de considerar para áreas concomitantes à arquitetura, mas cuja
relação nem sempre é linear. Uma destas autoridades será o sábio alemão jesuíta
Athanasius Kircher (1601-1680), renomado
matemático, físico e alquimista, que em Mafra tem
várias obras em diversas secções, duas delas sobre
obeliscos egípcios e hieróglifos, e outra sobre a
China e seus monumentos; obras que
aparentemente não influenciam a obra de Mafra,
mas que ainda assim são testemunho de um tipo de
conhecimento que poderia não ter estado distante
dos interesses do Rei. Note-se que muitas vezes os
obeliscos eram, por exemplo, usados como
ornamentações de espaços públicos e geralmente
associados a jogos de água, modelo aliás seguido no

terreiro fronteiro ao Palácio das Necessidades, em Athanasius Kircher (1601-1680)


Lisboa.

11
A questão do abastecimento de água ao Palácio era muito relevante, pois além dos mananciais naturais
existentes nas suas imediações, foi ainda necessário captar águas de outros pontos e canaliza-las para serviço dos
vários tanques existentes, e para os 66 pontos de fornecimento de água existentes em várias dependências do Real
Edifício (cozinhas, lavatórios, etc.), conforme notícia de Guilherme José de Carvalho Bandeira, no seu manuscrito
Relação do Convento de Santo António de Mafra suas Oficinas e Palácios que se fundaram místicos ao dito
Convento…”, no qual se coligem notas recolhidas cerca de 1744. É também sabido que estava prevista a construção
de um grande fontanário com figuras a jorrar água frente à fachada do palácio, facto coerente com outros
monumentos idênticos e que nitidamente se encontram em falta em Mafra.
12
Também deste autor, em Mafra, existe um outro tratado, La science des ingénieurs dans la conduite des travaux
de fortification et d'architecture civile, de 1729.

23
A tratadística de arquitetura - influência no Palácio Nacional de
Mafra

A tratadística, como vimos, era uma das bases de formação dos arquitetos do século
XVII e XVIII e invariavelmente, no caso do Palácio-convento de Mafra, a sua influência
terá sido muito grande.

A dimensão deste imóvel e o rigor sob o qual ele foi projetado e construído, implicam
um profundo conhecimento das várias áreas temáticas que assinalámos no contexto
da coleção de tratados na secção de arquitetura da biblioteca palatina de Mafra, sendo
notável a existência de mais de mais de meia centena de autores representados nesta
biblioteca, que refletem, através das suas obras, sobre o estatuto do arquiteto;
filosofia e matemática; tratados clássicos, ordens arquitetónicas; catálogos
iconográficos; engenharia e métodos construtivos; arquitetura militar e geografia;
hidráulica e jardins; e arquitetura de interiores, arquitetura efémera e decoração.

A mera existência de tantas obras literárias sobre arquitetura (de carácter teórico e
prático) é, por si só, um sinal da grande importância dispensada a este assunto e da
relevância que a mesma deverá ter tido nesta e noutras construções.

Para além da grande experiência em obra tida por Ludovice, arquiteto responsável
pelo acompanhamento da obra de Mafra, ou outros grandes mestres que nela
trabalharam, como o arquiteto e engenheiro Custódio Vieira (c.1690-c.1744); ou ainda
outros que se presume estarem a ela ligados como os italianos Carlo Fontana (1634-
1714), Filipo Juvarra (1678-1736) e António Canevari (1681-1764), o húngaro Carlos
Mardel (c.1695-1763), o maltês Carlo Gimac (1655-1730), entre outros; é de considerar
a importância das suas formações teóricas, facto que, apesar das diversas origens,
ainda assim lhes dá alguma coerência como seguidores de uma mesma corrente
barroca.

O efeito prático da existência do manancial de informação tratadística tem


essencialmente duas orientações: o primeiro, como instrumento de formação
académica dos arquitetos; o segundo, de apoio direto à gestão desta grande empresa
de arquitetura e construção, ou seja, na possibilidade de recorrer a este tipo de
tratados para resolver problemas candentes durante o processo de programa,
desenho e decisão, bem como do processo de edificação.

Ao que se supõe, foram vários os projetos apreciados pelo rei, até que este tomou a
decisão de se guiar pelo que foi proposto por Ludovice, eventualmente dado a sua
presença na corte e pelos contactos formais com a arquitetura romana jesuítica.
Infelizmente não chegaram até aos dias de hoje os desenhos originais, perdidos no
grande terramoto de 1755 ou já mais recentemente, matéria que seria preciosa para

24
avaliar alguns aspetos do raciocínio, hesitações, correções, etc., que presidiram às
opções tomadas.

Pela análise da tratadística de arquitetura existente e através de uma observação


direta, podemos constatar que a obra de Mafra cumpre os critérios destinados às
edificações jesuíticas (as mais vanguardistas do seu tempo), e ainda, do ponto de vista
formal, cumpre escrupulosamente a métrica das ordens arquitetónicas descritas por
Vitrúvio, no século I a.C., e condensadas, cerca de 1600 anos depois, por Giacomo
Barrozzi, de Vignola (1507-1573).

O Classicismo arquitetónico romano é a base remota sobra a qual Mafra é desenhada,


numa apropriação de “modelos” que servem como inspiração, mais do que de uma
regra, contemplados em monumentos romanos tão importantes como a Basílica de
São Pedro, a Igreja de Jesus, a Igreja de Santo Inácio, ou mesmo a Igreja de Santa Inês,
entre muitas outras.

Todas estas construções romanas do final do século XVI e de todo o século XVII, são já
a clara afirmação de uma “reforma” dos valores renascentistas que tinham sido
preconizados por Alberti (1404-1472), Bramante (1444-1514), Rafael (1483-1520) e
Michelangelo (1475-1564), Baldassare Peruzzi (1481-1537), Serlio (1475-1554) ou
Palladio (1508-1580), agora sedimentados num “estilo” com forte peso dramático e
expressão máxima do poder terreno e Divino, cujos protagonistas são Vignola (1507-
1573), Della Porta (1535-1615), Domenico Fontana (1543-1607), Carlo Maderno (1556-
1629), Bernini (1598-1680), Borromini (1599-1667), entre outros. Vignola surge, no
entanto, assim, como um marco na afirmação do Barroco, estabelecendo regras
estéticas e formais que passam a ser indefetíveis na prática da “boa” arquitetura até
final da Idade Moderna.

É curioso que Vignola aparentemente ao escrever sobre as cinco ordens arquitetónicas


(toscana, dórica, jónica, coríntia e compósita), fá-lo para justificar o uso que fez, nas
suas obras, de teorizações sobre as proporções já anteriormente desenvolvidas por
Peruzzi ou Serlio e não necessariamente como forma de criar um modelo rígido e
normativo, sobre uma área que deveria ser deixada ao arbítrio prudente dos
arquitetos. Sendo a formação de Vignola essencialmente autodidática e prática, não
deixa de ser extraordinário que, em resposta a uma necessidade sua, Vignola tenha
estruturado uma “regra” de cálculo de proporções muito prático, possibilitando que, a
partir de uma parte, se pudesse calcular o todo, partindo de um princípio de
correlação proporcional, fornecendo um modelo aritmético harmoniosamente
proporcionado e facilmente adaptável a qualquer construção.

Mafra é um espelho das doutrinas arquitetónicas expressas, entre outras, no uso das
ordens arquitetónicas, sendo de referir que o uso das mesmas é realizado de acordo
com a métrica de Vignola.

25
As ordens arquitetónicas são sistemas arquitetónicos que detêm particulares
diferenças nas proporções e de linguagem estilística, remetendo para duas origens:
grega e romana, nomeadamente nas ordens jónica, dórica e coríntia, ou toscana (uma
versão simplificada do Dórico) e compósita (que integra o Jónico e Coríntio),
respetivamente.

Estas diferenças são facilmente observáveis, especialmente no que respeita às colunas


(integrando a base, o fuste e capitel), que se ligam a outros elementos da arquitetura
clássica, como os supedâneos, pódios e pedestais, entablamentos e frontões.

Na Ordem Dórica, a mais simples das ordens gregas,


sua expressão da coluna é massiva, sem base,
apresentando caneluras verticais (geralmente 20). O
capitel é formado por um coxim e uma peça
quadrangular semelhante a um ábaco. O friso é
intercalado por métopas e tríglifos.

Na Ordem Jónica as colunas são mais leves e


elegantes, apresentando mais caneluras verticais
mais finas que no dórico (com vinte e quatro estrias
mais finas). O capitel da coluna apresenta uma
adição ao Dórico, pelo acrescento de duas volutas ou
“rolos” que aumentam a área de contacto com o
friso, sendo que este também passa a um elemento
único passível de ser decorado em continuidade.
Ordens Arquitetónicas –
pormenor dos capiteis em diferentes ordens

A Ordem Coríntia, mais tardio, traduz-se num desenvolvimento da capacidade técnica


associada a uma maior preocupação de carácter decorativo. As colunas são mais altas
e esguias, o fuste apresenta, de forma idêntica ao jónico, vinte e quatro caneluras e o
capitel uma abundância decorativa de natureza fitomórfica, lembrando folhagens de
acanto.

A Ordem Toscana simplifica o modelo Dórico, deixando o fuste liso, mas usando
também o friso com métopas e tríglifos, exemplo que podemos observar nos dois
claustros palatinos a norte e a sul do complexo palaciano.

26
Claustro palatino sul (Ordem Toscana adaptada da Ordem Dórica)

Na Ordem Compósita, associam-se as ordens Jónica e Coríntia, dando-se expressão aos


elementos decorativos clássicos, as volutas e folhagens de acanto que, muitas vezes,
eram metamorfoseados noutros elementos decorativos de natureza heráldica ou
simbólica.

No caso de Mafra, há uma clara hierarquização do uso das ordens em função da


natureza dos espaços. No palácio e áreas conventuais é comum o uso das ordens
Dórica ou Toscana, na parte inferior da basílica é usado o Jónico ou o Coríntio e, nas
áreas superiores ou mais próximas dos altares, é usada a Ordem Compósita. É também
frequente vermos a adaptação das ordens, com fustes lisos em vez de canelados, com
existência de elementos decorativos (ou a sua simplificação) adaptadas ao programa
definido para as diversas áreas de uso deste complexo.

Basílica de Mafra – Fachada principal, piso térreo (Ordem Jónica moderna)

Note-se, por exemplo, que os capitéis da nave da basílica em vez de apresentarem um


rebento de acanto, fazem referências às açucenas, um dos atributos de Santo António,
a quem o templo está dedicado.

27
Maquete em madeira 1:1, para capitéis da basílica de Mafra
(Ordem Jónica moderna)

Basílica de Mafra – Fachada principal, piso da Galeria das Bênçãos (Ordem Coríntia moderna)

Basílica de Mafra – torres sineiras e zimbório, pormenor do sistema de colunas (Ordem Coríntia moderna)

Basílica de Mafra – Interior, capitel de uma pilastra


(Ordem Compósita)

28
Conclusão

A construção do Real Edifício de Mafra insere-se numa política de afirmação do poder


absoluto do rei, da legitimidade da Dinastia de Bragança e de política de
internacionalização, articulada com uma série de outras iniciativas que pontuam este
reinado de 43 anos.

A arquitetura, como instrumento de poder e de propaganda política, estabeleceu-se,


nesse momento, num novo patamar em Portugal. Para tal usou-se de princípios
arquitetónicos modernos, em voga sobretudo em Roma, e técnicas construtivas
perfeitamente dominadas pelos construtores portugueses, sobretudo pelo
Engenheiro-mor Custódio Vieira, a quem se deve a edificação física do monumento.
Em ambos os casos, na arquitetura e na engenharia, são processos amadurecidos e
testados durante os séculos XVI e XVII, onde se ensaiaram não apenas as soluções
estéticas saídas do renascimento, como também as soluções técnicas, levando-se a
capacidade construtiva dos materiais disponíveis ao seu limite.

Esta arquitetura “nova”, barroca, foi promovida sobretudo pelos Jesuítas, cuja
presença social e religiosa se torna galopante nos séculos XVI e XVII. A expressão
arquitetónica jesuítica (que não é um estilo, mas um “modo”), passou a ser um
instrumento de grande eficiência em termos de afirmação de uma imagem.

O palácio-convento de Mafra é gerado neste ambiente e a partir de uma base de


reflexão teórica que radica, em grande medida, nos tratados de arquitetura correntes
nos séculos XVI, XVII e XVIII, pelo que a análise destes instrumentos é fundamental
para uma compreensão do conteúdo formativo dos arquitetos desse tempo.

Os jesuítas desenvolveram uma linguagem arquitetónica que recorre habitualmente a


tratados de matemática, física, geometria, etc., muitos deles teorizados pelos seus
próprios padres e eminentes professores, gerando assim uma série códigos teóricos,
científicos e práticos, sem contudo obrigar a que nas edificações da sua “ordem”, se
recorresse à cópia de um modelo específico. Há contudo uma observância aos
princípios construtivos preconizados no tempo, nomeadamente o seguimento de um
conjunto de regras tratadísticas, bem como por um conjunto de princípios ligados
particularmente observados nas construções jesuíticas.

É pacífica a observação de que a arquitetura jesuítica, não constituindo um estilo


autónomo, dispõe, no entanto, de princípios específicos (de vetustez, salubridade,
simplicidade, modéstia, economia e funcionalidade) que definem a existência de uma
“arquitetura jesuítica”, usada como um instrumento de função, de propaganda e
poder desta congregação no mundo.

29
Note-se que a arquitetura jesuítica é um instrumento da própria contrarreforma, na
qual se pretendia uma maior depuração. O desenho de plantas, alçados e diversos
elementos constitutivos do espaço de culto (ou de áreas residenciais ou educativas),
obedecia, assim, à regra da utilidade.

As estruturas arquitetónicas e a arte, para os jesuítas, deviam ter por intento a


glorificação de Deus e a elevação do espírito. Por esse motivo, e para evitar desvios ou
“vaidades”, todas as obras eram sujeitas à aprovação prévia do Geral da congregação,
estando esta função altamente centralizada com o objetivo do manter um rigor
gramatical e simbólico comum em todas as partes em que os jesuítas operassem.

As igrejas e casas religiosas deviam ser austeras/modestos, robustos e higiénicas,


valorizando a dimensão funcional do exercício do culto, princípios que parecem ser
decalcados de Vitrúvio, em que se privilegia o sentido de utilidade (utilitas), robustez
(firmitas) e beleza (venustas), este caso entendida sem subterfúgios decorativos
excessivos e distrativos. O designado “modo-nostro” (ao modo dos jesuítas) não
aponta para uma mudança de estilo, mas para uma coerência funcional e construtiva
raramente antes vista e que se expressa de forma evidente em Mafra, tanto no aspeto
fenomenológico da edificação, como na ontologia que lhe subjaz.

Embora não possamos dizer que Mafra é uma obra destinada aos Jesuítas em Portugal
(pese embora a sua relação com a Aula dos Estudos que aqui se desenvolveu), é
postulável que esta obra integre não apenas os princípios que esta congregação seguia
nas suas edificações, como ainda é notório o lastro de conhecimentos do arquiteto
responsável, com uma formação teórica e prática colhida no contexto jesuítico,
sublinhado pela sua passagem por Roma, centro de emanação da arquitetura barroca,
algo propagandística e associada ao poder da Igreja Católica, no contexto da
contrarreforma. Em Mafra inteligentemente adotam-se os mesmos princípios
arquitetónicos (construtivos, estilísticos, e também simbólicos e propagandísticos),
associando este poder da Igreja ao poder do próprio monarca.

30
Fontes Bibliográficas, Bibliografia Crítica e Fontes Iconográficas

FONTES BIBLIOGRÁFICAS:

BÉLIDOR, Bernard Forest de – L'architecture hydraulique, ou l'art de conduire, d'élever et de ménager les eaux pour
les différents besoins de la vie. Paris, Charles-Antoine Jombert, 1737-1753

BÉLIDOR, Bernard Forest de – La science des ingénieurs dans la conduite des travaux de fortification et
d'architecture civile. Paris, Claude Jombert, 1729

BETTINUS, Mario – Apiaria universae philosophiae mathematicae in quibus paradoxa et nova pleraque
machinamenta ad usus eximios traducta & facillimis demonstrationibus confirmata... . Bolonha, Ionannes Baptistae
Ferronij, 1642

BITAINVIEU, Silvère de (BREUIL, Jean du) – L’art universel des fortifications françaises, hollandoises, espagnoles,
italiennes et composées. Paris, Jaques Du Breuil, 1674

CASSANI, José – Escuela militar de fortificación ofensiva y defensiva, arte de fuegos y escuadronar. Madrid,
González de Reyes, 1705

KIRCHER, Athanasius – Ad Alexandrum VII Pont. Max. Obelisci Aegyptiaci: nuper inter Isaei Romani rudera effossi
interpretatio hieroglyphica. Roma, Varesij, 1666

KIRCHER, Athanasius – China monumentis, qua sacris qua profanis, nec non variis naturae & artis spectaculis.
Amsterdão, Joannem Janssonium & Elizeum Weyerstraet, 1667

KIRCHER, Athanasius – Athanasii Kircheri e Soc. Iesu Obeliscus Pamphilius : hoc est, interpretatio noua & hucusque
intentata obelisci hieroglyphici quem non ita pridem ex veteri Hippodromo Antonini Caracallae Caesaris, in Agonale
Forum transtulit, integritati restituit, & in vrbis aeternae ornamentum erexit Innocentius X, Pont. Max. In quo post
varia Aegyptiacae, Chaldaicae, Hebraicae, Graecanicae antiquitatis, doctrinaeque quà sacrae, quà profanae
monumenta, veterum tandem theologia, hieroglyphicis inuoluta symbolis, detecta è tenebris in lucem asseritur.
Roma, Ludovici Grignani, 1656

LOBKOWITZ, Juan Caramuel – [Diversos (coleção de 40 obras)]. 1670

POZZO, Andrea (Andreas Puteus) – Perspectiva pictorum atque architectorum. Augsburgo, Peter Detleffaen, 1719

TACQUET, André – Opera Matemática. Antuerpia, Henricus & Cornelium Verdusen, 1707

VIGNOLA, Giacomo Barocci da – Regla de las cinco ordenes de architectura de Jacome da Vignola… . Madrid, Isidro
Colomo, 1702

BIBLIOGRAFIA:

AAVV - Colóquio em Mafra - Barroco: Perspectivas de Estudo. IPPA, 2000

AAVV - L’architettura della Compagnia di Gesù in Italia, séc.XVI-XVIII. Ed Grafo, 1990

ADORNI B. - Jacopo Barozzi da Vignola. Milão, Skira, 2008

AFONSO, Simonetta Luz (coord.) – Lisboa no Tempo de D. João V (1689-1750). Lisboa, Instituto Português de
Museus / Réunion des Musées Nationaux, 1994

ASSUNÇÃO, Guilherme José Ferreira de – À Sombra do Convento. Mafra, Câmara Municipal de Mafra, 1978

31
BOSSI, Agostino; FUSCO, Ludovico M. – “Le Reducciones Gesuitico-Guaraníes: percorso tra natura, architettura e
utopia”, in DOMUS nº789, janeiro 1997

CARVALHO, Armindo Ayres de

Dom João V e a Arte do seu Tempo. Lisboa, 1960 e 1962

Obra Mafrense. Mafra, Câmara Municipal de Mafra, 1992

DAINVILLE, F. de – “L’enseignement des mathématiques dans les collèges jésuites de France au XVIe et XVIIIe siècle
(II)”, Revue d’histoire des sciences,1954, vol. 7, 2, p. 109-123.

FRANÇA, José Augusto – Lisboa Pombalina e o Iluminismo, Lisboa, Bertrand Ed., 1987

GOMES, Joaquim da Conceição – Descripção Minuciosa do Monumento de Mafra. Lisboa, Imprensa Nacional, 1871
(2.ª edição)

GORMAN, Michael John (2003), "Mathematics and modesty in the Society of Jesus: The Problems of Christoph
Grienberger (1564-1636)", in Feingold, Mordechai, The New Science and Jesuit Science: Seventeenth Century
Perspectives, Archimedes 6, Dordrecht, s.d.

GUTIERREZ de CEBALLOS, Alfonso Rodriguez

Bartolomé de Bustamante y las orígenes de la arte jesuítica en España. Roma, Ed. Institutum Historicum,
1967

Instructio de ratione aedificiorum Societatis Iesu. Roma, Curiam Praepositi Generalis, 1954

La Arquitectura de Los Jesuitas. Edilupa Ediciones, 2002

IVO, Júlio; FERREIRA, Santos – O Monumento de Mafra, Guia Ilustrado…, Lisboa, Tip. A Editora, 1906

LAVY, Evonne – Propaganda and the Jesuit Baroque. Los Angeles, University of California Press, 2004

MANDROUX-FRANÇA, Marie Thérèse – “La Patriarcale del Re Giovanni V da Portogallo”, in Giovanni V da Portogallo
(1707-1750) e la cultura romana del suo tempo. Roma, Argos Ed., 1995

MARTINS, Fausto Sanches; Jesuítas de Portugal 1542-1759. Porto, 2014

MATTEI, F., “Giambattista Aleotti (1546-1636) e la Regola di Jacopo Barozzi da Vignola della Biblioteca Ariostea di
Ferrara (ms. Cl. I, 217)”, Annali di architettura, 22, 2010, p. 101-123.

MOREIRA, Rafael – “Arquitectura: Renascimento e classicismo”, in História da Arte Portuguesa, Lisboa, Ed. Círculo
de Leitores, s.d.

ORTIZ-IRIBAS, Jorge Fernández-Santos - Juan Caramuel y la probable arquitectura. Madrid, Centro de Estudios
Europa Hispánica, 2014

PEREIRA, Fernando A. Baptista, História da Arte Portuguesa. Lisboa, Ed. Universidade Aberta, s.d.

PIMENTEL, António Filipe – Arquitectura e Poder, o Real Edifício de Mafra. Lisboa, Livros Horizonte, 2002 (2.ª ed.)

RAGGI, Giuseppina – “La circolazione delle opere della stamperia De Rossi in Portogallo”, in Studio d’Architettura
Civile, Aloisio Antinori (coord.), Roma, Ed. Quasar, 2012

STAKOVSKI, Leon – Giorgio Vasari, Architect and Courtier. Princeton, 1993

VALLERY-RADOT, Jean – Le Recueil des plans d’edifices de la Compagnie de Jésus conservè a la Bibliotheque
Nationale de Paris. Roma, Ed Institutum Historicum S.I., 1960

ZAMORA, Maria Isabel Álvaro, FERNANDEZ, Javiér Ibañes, MAINAR, Jesús Criado – La Arquitectura Jesuítica, Actas
del Simposio Internacional. Zaragoza, Instituición Fernando el Católico, 2012

32

Você também pode gostar