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JEQUITINHONHA
RESUMO
A arquitetura colonial mineira tem sido objeto de diversos estudos ao longo do tempo; no entanto, ao
se buscar um aprofundamento sobre essa temática percebe-se a escassez de estudos, que tratem da
arquitetura vernacular, produzida no período colonial brasileiro, no sentido de compreender suas
particularidades e ir além da bibliografia tradicional construída sobre o assunto. Mesmo com os
estudos elaborados por Sylvio de Vasconcellos, Güinter Weimer e as Revistas do SPHAN, entre
outros, ainda falta lançar luz sobre o tema a fim de trata-lo além da forma generalista como foram
trabalhados. Faltam estudos mais abrangentes, que possam explorar as particularidades e
características de soluções estéticas e construtivas de cada região. Isso permitiria apontar relações
entre tipologias arquitetônicas e construtivas específicas de cada povoado e cidade e, até mesmo,
tratar das relações das edificações com o meio urbano das quais faziam parte. No caso brasileiro falta
avançar mais sobre a arquitetura difundida fora das cidades tombadas. Esse contexto de investigação
precisa ser estendido aos locais onde não há o mesmo tratamento do ponto de vista patrimonial,
como em Couto de Magalhães, São Gonçalo do Rio Preto, Minas Novas, Chapada do Norte, por
exemplo. Alguns elementos são comuns na arquitetura na região citada, como a adoção preferencial
do adobe em conjunto das estruturas de madeira como recurso para as paredes externas, enquanto
as internas foram produzidas com pau-a-pique. Do mesmo modo, as fachadas acabaram por
incorporar os recursos para acabamento adotados na arquitetura de Diamantina e Serro, às vezes,
substituindo os cunhais emoldurados com madeira por argamassa de cal e areia e os frisos pintados
abaixo das cimalhas por peças de madeira talhada com elementos repetitivos. Isso se soma ao
contexto de urbanização, que seguindo linhas menos limitadoras que dos núcleos mineradores,
permitem soluções com fachadas menos estreitas e, até mesmo, com gabaritos incomuns como o
“sobradão” de Minas Novas. A investigação em curso, para o doutorado em Programa de Pós-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFMG (NPGAU), propõe identificar, catalogar e analisar a
arquitetura vernácula ainda possível de se encontrar em cidades citadas. Nela tentar-se-á uma
investigação fundamentada além da simples descrição e documentação imagética, mas baseada na
compreensão da arquitetura como meio de apropriação do espaço e dos meios que lhe circunda. tão
genérico como convencionalmente tem se entendido por meio do estado da arte atual.
A arquitetura colonial tem sido fruto de diversos estudos ao longo do tempo, sendo, até hoje,
um universo rico para os pesquisadores nos campos da história da arquitetura e do
patrimônio cultural. Desde a incursões de estudo patrocinadas por José Mariano Filho e
Ricardo Severo, na consolidação do estilo colonial no início do século XX (Pinheiro, 2014),
diversos trabalhos vêm lendo e relendo as principais características das obras produzidas
durante o apogeu da exploração do ouro e diamantes nas terras mineiras. Nesse percurso,
podem-se destacar diversos autores que exploraram esse tema, José Wasth Rodrigues
(Documentário Arquitetônico), Lucio Costa (em textos diversos), Sylvio de Vasconcellos (Vila
Rica, Sistemas Construtivos, etc.), Germain Bazin (A Arquitetura Religiosa Barroca no
Brasil, Barroco e Rococó, etc.), John Bury (Arquitetura e Arte no Período Colonial), além de
boa parte a ação inicial do IPHAN nas Revistas do Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, que tinha as investigações locais como corriqueiras.
1 “Vemos, portanto, que fundada no regime escravista, quer para a construção, quer para o uso, a habitação
urbana tradicional correspondeu a um tipo de lote padronizado e este tipo de arquitetura bastante padronizada,
tanto em suas plantas, quanto nas suas técnicas construtivas. [...]” (REIS FILHO, 2006, p. 32)
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exaustiva das riquezas da terra. Ainda assim, a renovação propiciada alcançou de imediato
somente o Rio de Janeiro. A maioria das cidades e vilas do interior recebeu essas
influências mais tarde, praticamente no alvorecer do séc. XX.
Além das condições materiais, existiam cartas régias e posturas públicas, que versavam
sobre a uniformização da arquitetura, definiam a tipologia das fachadas principais, para que
as casas fossem “sempre fabricadas na mesma figura de uniformidade, pela parte exterior
[...]” (Vasconcellos, 1977, p.88). Entretanto, as determinações não recaíram sobre as
demais partes da edificação, mas ainda assim, houve a repetição do tipo de planta, mesmo
que se permitisse a liberdade de criação do partido arquitetônico. A divisão da casa seguia
uma organização bastante semelhante entre si: sala ou loja na frente, permanência das
mulheres e serviços no fundo, alcovas no centro e o corredor interligando-as, da rua para o
quintal (Reis Filho, 2006). A arquitetura vernacular, ao longo do período colonial e,
consequentemente, nos séculos XVIII e XIX, período de constituição dos núcleos urbanos
na região de estudo, foi moldada pela observância indissolúvel da força das tradições, pelo
respeito inquestionável à autoridade Real ou da Igreja, pelas características da economia
colonial e pela existência da escravidão como força motriz da sociedade. Esta amálgama de
influências culturais adaptou seus fundamentos em uma terra inóspita como a da região
mineradora, dividida por serras e vales. Por mais que a tipologia arquitetônica das
edificações populares fosse simplória muitas vezes, em geral havia o desejo de produzir
riquezas e ostentá-las. Desse modo, derivada de uma pobreza geral que assolava a
população, a arquitetura só ganhou proporção quando criada em função da religião e do
poder do Estado. De fato, as residências propagaram-se como moradas simples,
condicionadas pelos costumes, crenças, posição social, situação financeira do indivíduo e
emprego de cativos na construção civil. De acordo com Vasconcellos (1977):
Fruto desse ambiente de penúria geral, o homem que viveu no séc. XVIII não teve
condições de romper com a teia cultural trazida de Portugal, mas, sempre, que possível
aproximou como podia sua produção arquitetônica daquela existente na terra natal. A
constituição da habitação retornava em inspiração à origem portuguesa, provocando
divisões físicas que refletiam costumes lá instituídos, derivados de condições como a
necessidade de proteção familiar do meio externo ou a restrição tecnológica determinada
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pelos materiais utilizados na época. O desenvolvimento dos núcleos urbanos encaminhava
para reprodução de partidos arquitetônicos semelhantes aos existentes nas cidades
portuguesas; nesse sentido, Rodrigues (1975) descreve que:
Por outro lado, a formação de uma sociedade mineira, definida por um caráter
exclusivamente urbano, influenciou de maneira particular a produção arquitetônica local, já
que a obrigação de permanecer naquela terra implicou na necessidade de se construírem
casas, a fim de abrigar os que se deslocaram para a região. Logo após o início da atividade
mineradora, estabelecidos os primeiros povoados, desenvolveu-se um viver regulado em
relações citadinas, difundidas, na época, por indivíduos de procedências e índoles diversas.
As vilas coloniais mineiras comportaram contatos sociais forçados, ocorrentes entre
costumes preservadores da intimidade familiar e em um universo comum, no qual, somente
homens brancos possuíam direitos comuns como cidadãos. As relações humanas nas
Minas, como em toda a Colônia, forçavam as famílias à proteção, culminando em
edificações encerradas em si mesmas. Estas ocorrências foram descritas por diversos
viajantes, como o arquiteto francês Louis L. Vauthier em meados dos oitocentos, que
descreveu em Pernambuco a existência de residências que se assemelhavam a prisões,
isoladas do exterior por “treliças e urupemas” e internamente defendidas por alcovas e
camarinhas. Gilberto Freire relata, ao introduzir a obra de Vauthier (1975), a existência, no
[...] Vauthier nas suas inovações de plano de casas de residências deve ter
tido que vencer no espírito das famílias mais conservadoras o apego à
verdadeira instituição – a instituição sagrada – que era nas habitações
daqueles dias a alcova ou a camarinha sem luz nem ventilação, é certo,
mas ao abrigo de olhos indiscretos e segura contra o perigo dos raptos. [...]
a alcova para as sinhás-moças [...] era quase sempre sem janelas. Donde
devemos considerar as moças dos sobrados e das casas-grandes antigas
prisioneiras mais bem guardadas do que presos na Cadeia do Brejo [em
Pernambuco] construída ou planejada por Vauthier com tanta atenção pelos
detalhes de segurança. (Freire, 1975, p. 18-19)
Por fim, pode-se considerar que a arquitetura vernacular, conforme Javier Cenicacelaya 3
observa, é fruto de um contexto de adaptação à natureza, aos materiais e ofícios
disponíveis, bem como, ao meio sociocultural presentes na formação de cada núcleo
urbano. Os fatores determinantes por trás desses condicionantes são fundamentais para a
definição de traçados urbanos, plantas, fachadas, ornamentos e coberturas. Com isso, nas
diversas regiões ocupadas durante o período colonial ter-se-á soluções específicas, que
darão características às edificações erguidas naquela situação. Tal fato permite, como
destaca o autor citado, que se desenvolvam estudos que busquem elucidar a existência de
aproximações tipológicas, arquitetônicas e urbanas, bem como, a de ofícios e corporações
que possam influenciar na qualidade dos bens produzidos. Ainda, além de tratar somente de
questões físicas ou culturais, existe a possibilidade de compreender uma identidade em
comum, capaz de permitir regionalizações na produção arquitetônica de um determinado
espaço.
Ainda que abordada em alguns aspectos no caso brasileiro, falta produzir mais
conhecimento sobre a arquitetura vernacular colonial difundida fora das cidades tombadas e
nacionalmente reconhecidas como patrimônio histórico. É importante que esse contexto seja
estendido aos locais onde não há o mesmo tratamento do ponto de vista patrimonial ou que
tenham manifestações associados ao auge das atividades mineradoras, o que exige novos
estudos que permitam o levantamento de informações além daquelas produzidas para o
tombamento de imóveis. Desse modo, o que se busca investigar, no projeto de tese em
curso no NPGAU da Escola de Arquitetura da UFMG, visa lançar luz sobre manifestações
Essa região, que é compreendida entre o alto e médio Jequitinhonha, contém uma
arquitetura vernácula bastante singular, distribuída pela rede urbana formada a partir do
século XVIII, que se encontra distribuída em cidades como Diamantina, Datas, Gouveia,
Serro, Couto de Magalhães, São Gonçalo do Rio Preto, Felício do Santos, Congonhas do
Norte, Conceição do Mato Dentro, Itacambira e Minas Novas, por exemplo; além de diversos
distritos e povoados espalhados por essa região. Interessantemente, as características
arquitetônicas que serão ressaltadas também podem ser identificadas no norte do Estado,
em Grão Mogol, Januária, Porteirinha, Montes Claros e Coração de Jesus, que, de acordo
com relatos e documentos históricos, receberam construtores provindo das áreas
mineradoras após o fracasso das atividades de extração.
Nas localidades onde vem a ser os diamantes o carro chefe da atividade mineradora,
ocorreu um maior controle da exploração por parte da Coroa Portuguesa e um
desenvolvimento mais contido dos núcleos urbanos formados. Materialmente, tal fato deu
origem a uma tipologia arquitetônica vernácula que se consolidou a partir da segunda
metade do século XVIII e nas primeiras décadas do XIX (Lemos, Celina, 2008). Nesse
Por fim, retomando a discussão anterior, com a escassez dos minerais preciosos após as
primeiras décadas do séc. XIX, se dá início a uma migração dessas regiões para localidades
que experimentaram um desenvolvimento baseado na exploração da atividade
agropecuária, até então limitada pelo empreendimento mercantilista português. Esse fato
permitiu, um terceiro eixo de formação, o crescimento de arraiais que estavam à margem da
ocupação inicial em Minas Gerais e, no norte do estado, acabou dando origem a cidades
como Montes Claros (antigo Arraial das Formigas), Coração de Jesus (arraial de Sagrado
Coração de Jesus) e ao distrito de São José do Gorutuba (arraial de Gorutuba), entre
outras. Essas localidades acabaram por absorver, em parte, oficiais e escravos que
migraram das vilas mineradoras do Vale do Jequitinhonha para os novos núcleos urbanos
que se formavam em torno da exploração do salitre e do algodão. Como resultado, pode-se
perceber uma tendência semelhante na construção das edificações, adotando igualmente as
soluções citadas nas fachadas, arremate dos telhados e materiais construtivos.
Considerações Finais
Apesar de algumas obras, que são fruto desse percurso de formação de núcleos urbanos na
região, estarem tombadas a nível estadual ou municipal, existem poucos estudos sobre a
tipologia dessa arquitetura vernácula, sendo a maioria do que se tem, presente nos dossiês
criado para instituir a proteção desses bens. Faltam estudos mais abrangentes, que possam
explorar as particularidades e características de soluções estéticas e construtivas aplicados
às edificações. Algumas investigações, feitas pelo autor dessa proposta, apontaram para
elementos comuns como a adoção preferencial do adobe em conjunto das estruturas de
madeira como recurso para as paredes externas, enquanto as internas foram produzidas
com pau-a-pique. Isso possivelmente indica a predileção por um sistema que oferecesse
melhores respostas às condições climáticas da região. Excetua-se a essa condição a
arquitetura de Grão Mogol, no qual a pedra seca era adotada no lugar das vedações de
terra; ainda assim, se trata de um contexto diferente do de Ouro Preto, por exemplo, que a
pedra era recurso construtivo destinado aos pavimentos térreo nas construções civis
(Vasconcellos, 1979).
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