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LIMA, Venício A. de. Mídia: teoria e política. 2ª edição.

São Paulo: Editora


Fundação Perseu Abramo, 2004. p. 53-67.

CAPÍTULO 2

A atualidade do conceito
de comunicação
em Paulo Freire1

"Comunicação [é] a co-participação dos Sujeitos no


ato de pensar [...] [ela] implica uma reciprocidade
que não pode ser rompida [...] comunicação é
diálogo na medida em que não é transferência de
saber, mas um encontro de Sujeitos interlocutores
que buscam a significação dos significados."

Paulo Freire, Extensão ou comunicação?,


Paz e Terra, 1971, original 1968; p. 67-69, passim.

Vivemos um período da história humana em que as mudanças, além de


radicais, acontecem em grande velocidade. Os paradigmas explicativos
sobre o homem e seu lugar no mundo e as análises e interpretações

1
Para evitar a repetição desnecessária dos títulos das obras de Freire utilizadas
frequentemente no texto, optamos por usar apenas as iniciais abaixo, cuja
referência completa pode ser encontrada na bibliografia: EPL: Educação como
prática da liberdade; EC: Extensão ou comunicação?; CFLA: Cultural Freedom in
Latin America; CADA: Cultural Action: A Dialectic Abnalysis; INT: Introduction (In:
Cultural Action for Freedom); PO: Pedagogia do oprimido; ACPL: Ação cultural
para a liberdade; CGB: Cartas a Guiné-Bissau; PA: Pedagogia da autonomia; e PI:
Pedagogia da indignação.

53
decorrentes, na maioria absoluta dos casos, tornam-se obsoletos ainda
durante a vida de seus autores. Um breve retorno aos textos que há apenas
30 anos orientavam a pesquisa e a reflexão sobre os problemas sociais no
Brasil e na América Latina, ou eram referência obrigatória nas
universidades de todo o mundo, revelará um índice extremamente alto de
obsolescência precoce. Além disso, não há mais paradigmas universais neste
início de século XXI, proclamam os pós-modernos!
Nessa nova realidade, que é uma das características da
transitoriedade contemporânea, poucos são os autores do campo das
ciências humanas e sociais que conseguem sobreviver e permanecer
fecundos e atuais depois de seu próprio tempo. Este é certamente o caso de
Paulo Freire.
Nos anos 70, Freire já era amplamente estudado fora do Brasil em
outras áreas além da educação: filosofia, serviço social, teologia, linguística.
Poucos, todavia, haviam se dado conta do potencial teórico de suas ideias
para o estudo das comunicações2. Com base no trabalho que desenvolveu
como consultor internacional das Nações Unidas em projetos de reforma
agrária e extensão rural, no Chile, na década de 1960, Freire já havia
identificado a necessidade de repensar a noção de comunicação. Não a
comunicação instrumental, transmissiva, mas aquela no sentido de ter em
comum, compartilhar, estar conectado pela mesma teia simbólica
construtora de sentido, em um contexto histórico desigual e contraditório.
Neste início de século, a emergência de novas 'e revolucionárias
tecnologias interativas de comunicações (em particular, a internet) obriga a
uma rediscussão conceitual, cada vez mais interligada à cultura., Esse, aliás,
é um aspecto fundamental que ainda não foi absorvido em sua devida
proporção pelos teóricos do campo intelectual das comunicações.
Uma das tendências, particularmente promissora, que pode ser
identificada como característica do novo cenário tecnológico, integrado e
integrador, é a interatividade, isto é, a possibilidade de interação simultânea
entre emissor e receptor (leitor e/ou espectador). Otimistas chegam até

2
Paulo Freire trabalhou o conceito de comunicação dialógica ao nível da interação humana
face a face. Desta forma, neste capítulo e no capítulo 3, vamos preservar a terminologia
usada por ele, isto é, comunicação. O que nos interessa fundamentalmente é avaliar as
possibilidades de utilização normativa do conceito freireano de comunicação dialógica no
contexto contemporâneo potencialmente interativo da nova mídia (comunicações).

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mesmo a chamar as sociedades deste início do século XXI de "sociedades
interativas", muito diversas, com certeza, daquela "sociedade de massas"
idealizada no século XIX e que serviu de referência aos modelos teóricos da
Manipulação e da Persuasão.
Qual a contribuição que as ideias de Freire podem trazer na nova
configuração do campo intelectual das comunicações, 30 anos depois de
formuladas?
Para responder a esta pergunta vamos estudar em detalhe o conceito
de comunicação em Freire. Começaremos identificando as diferentes
ocasiões em que Freire trata do conceito em sua obra. Em seguida
abordaremos a visão de Freire da natureza humana e analisaremos os níveis
relacional e político em que ele concretiza as noções de conhecimento,
diálogo e comunicação.

Pequeno histórico

A única oportunidade em que Freire discutiu conceitualmente a noção de


comunicação em sua obra foi num trabalho escrito em 1968 para o Instituto
de Capacitación e Investigación en Reforma Agraria (ICIRA), do Chile. O
texto tinha o duplo objetivo de formular uma crítica às atividades de
extensão dos agrônomos e servir de base para discussão num grupo
interdisciplinar composto por especialistas ligados ao programa de reforma
agrária3. O ensaio, que tem o sugestivo título de Extensão ou comunicação?
(original de 1968, publicado em 1971), constitui uma crítica radical da
tradição "difusionista" norte-americana, que na época tinha grande
penetração na América Latina, submetida à rubrica geral de "comunicação e
desenvolvimento"4.
Contrapondo a comunicação à transmissão, Freire argumenta que
comunicação é a "coparticipação de Sujeitos no ato de conhecer" e que a
extensão implica transmissão, transferência, invasão. Freire não atribui à

3
A equipe de especialistas era composta por funcionários da Corporação de Reforma
Agrária (CORA), Instituto de Desenvolvimento-da-Produção Animal (INDAP), Serviço de
Agricultura e Pecuária (SAG) e Organização das Nações Unidas para Alimentação e
Agricultura (FAO)
4
Para uma crítica desta tradição, escrita por um de seus pioneiros, ver Rogers e Kincaid
(1981).

55
palavra extensão o mesmo sentido neutro que normalmente lhe é atribuído
nos modelos behavioristas da Manipulação e da Persuasão. Na verdade, ele
encara a transmissão como algo que impede o conhecimento. Diz ele:

"O termo extensão se encontra em relação significativa com transmissão,


entrega, doação, messianismo, mecanicismo, invasão cultural, manipulação
etc. E todos esses termos envolvem ações que, transformando o homem em
quase 'coisa', o negam como um ser de transformação do mundo. Negam
[também] a formação e a constituição do conhecimento autênticos. Negam
a ação e reflexão verdadeiras àqueles que são objetos de tais ações" (EC, p.
22).

Está presente na obra de Freire um conceito subjacente de


comunicação que, como veremos, tem claras implicações não só para a
crítica da tradição "difusionista" como também para a dos demais modelos
de estudo das comunicações que têm sua origem na tradição behaviorista
americana. Na década de 1960, Freire fez uma ligeira referência positiva à
mídia existente em sua época como sendo portadora de "influências
renovadoras" (EPL, p. 91), e em escritos posteriores, como Pedagogia do
oprimido (p. 138-39) ou Cartas a Guiné-Bissau (p. 83-85), ele reconhece o
potencial de uso da mídia nos processos de ação cultural libertadora. Em
seus últimos escritos, todavia, nas poucas vezes em que se referiu
diretamente à mídia, não há dúvida quanto à visão crítica do que chamava
de seu "extraordinário poder ideológico" (PA, p. 156 e seguintes; e PI, p.
103-10).

A visão de natureza humana em Freire

Freire disse que "a experiência nos ensina que nem todo o óbvio é
tão óbvio quanto parece". Daí sua ênfase no fato de que "toda prática
educativa envolve uma postura teórica por parte do educador. Esta postura,
em si mesma, implica – às vezes mais, às vezes menos explicitamente – uma
concepção dos seres humanos e do mundo" (ACPL, p. 42).
Aquilo que é válido para a prática educacional certamente vale
também para qualquer outra prática, e por essa razão Freire sempre faz
referências explícitas a sua interpretação do homem e de sua relação com os

56
outros homens e o mundo. De fato, em todos os seus principais trabalhos,
Freire reitera uma distinção entre homens e animais em seu relacionamento
com o mundo, distinção que implica um tipo particular de relação entre os
homens.
Freire parte do pressuposto de que os homens se diferenciam dos
animais de maneira particular porque são capazes de criar e inovar seu
mundo. Em seu ensaio sobre "A liberdade cultural na América Latina"
(CFLA, p. 167-68), ele diz:

"A diferença fundamental entre o animal, cuja atividade não vai além da
mera produção, e o homem, que cria o domínio da cultura e a história
através de sua ação no mundo, é que apenas o último é um ser de práxis. O
homem, em sua permanente relação com a realidade, produz não apenas
bens materiais, coisas sensíveis e objetos, mas também instituições sociais,
ideologias, arte, religiões, ciência e tecnologia".

Portanto, Freire utiliza-se da relação do homem com a natureza para


explicar o tipo de criação que é exclusivo dos seres humanos. A essa relação
do homem com o mundo ele chama "práxis", usando a palavra "contatos"
para identificar as relações entre os animais e o mundo. Freire assim define
as categorias que identificam cada um desses tipos de vínculos com o
mundo (CADA, p. 1-5):

Relações Homens-Mundo: Contatos Animal-Mundo:


a) postura crítica a) ausência de postura crítica
b) pluralidade b) singularidade
c) consequência c) inconsequência
d) transcendência d) imanência

Provavelmente, o melhor resumo desta distinção seja apresentado


por Freire nesta longa e bela citação das primeiras páginas de Educação
como prática de liberdade (p. 39-41, passim):

"Há uma pluralidade nas relações do homem com o mundo, na medida em


que responde à ampla variedade dos seus desafios. Em que não se esgota
num tipo padronizado de resposta. A sua pluralidade não é só em face dos
diferentes desafios que partem do seu contexto, mas em face de um mesmo

57
desafio. No jogo constante de suas respostas, altera-se no próprio ato de
responder. Organiza-se. Escolhe a melhor resposta. Testa-se. Age. Faz tudo
isso com a certeza de quem usa uma ferramenta, com a consciência de
quem está diante de algo que o desafia. Nas relações que o homem
estabelece com o mundo há, por isso mesmo, uma pluralidade na própria
singularidade. E há também uma nota presente de criticidade. A captação
que fazem dos dados objetivos de sua realidade, como dos laços que
prendem um dado a outro, ou um fato a outro, é naturalmente crítica, por
isso, reflexiva e não reflexa, como seria na esfera dos contatos [...]. No ato
de discernir [...] se acha a raiz da descoberta de sua temporalidade, que ele
começa a fazer precisamente quando, varando o tempo, de certa forma
então unidimensional, atinge o ontem, reconhece o hoje e descobre o
amanhã. [...] O homem existe no tempo. Está dentro. Está fora. Herda.
Incorpora. Modifica. Porque não está preso a um tempo reduzido a um hoje
permanente que o esmaga, emerge dele. Banha-se nele. Temporaliza-se. Na
medida, porém, em que faz esta emersão do tempo, libertando-se de sua
unidimensionalidade, discernindo-a, suas relações com o mundo
impregnam-se de um sentido consequente. [...] A posição normal do
homem no mundo, visto que não está apenas nele, mas com ele, não se
esgota em mera passividade. Não se reduzindo tão-somente a uma das
dimensões de que participa – a natural e a cultural – da primeira, pelo seu
aspecto biológico, da segunda, pelo seu poder criador, o homem pode ser
eminentemente interferidor. [...] Herdando a experiência adquirida, criando
e recriando, integrando-se às condições de seu contexto, respondendo a
seus desafios, objetivando-se a si próprio, discernindo, transcendendo,
lança-se o homem num domínio que lhe é exclusivo – o da História e o da
Cultura".

Assim, na visão de Freire, enquanto os animais são seres de contatos


que se adaptam ao mundo e estão nele, os homens são seres de relações que
interagem com o mundo na práxis e estão com ele. Em outro texto ele
completa a visão anterior, assinalando:

"Tanto os homens como os animais são seres inacabados, em relação a, ou


em contato com, uma realidade igualmente 'inacabada'. Porém, os homens
são seres conscientes de si mesmos e do mundo, ao passo que os animais
são seres inconscientes de si mesmos e do mundo. A consciência é uma
característica exclusivamente humana, de forma que os homens são

58
'inacabados' num sentido fundamentalmente diferente dos animais.
Homens e animais são seres inacabados na medida em que estão sujeitos às
categorias de tempo e espaço. Porém, a capacidade que os homens têm de
refletir criticamente sobre si mesmos e sobre o mundo torna-os
profundamente diferentes dos animais. Assim, enquanto o homem, ainda
que condicionado pelas categorias de tempo e espaço, vive dividido entre o
determinismo e a liberdade, os animais são absolutamente determinados
por sua espécie e por seu próprio ambiente. Os homens não são apenas
seres inacabados; reconhecem-se a si próprios enquanto seres incompletos,
ao passo que os animais não são capazes de se fazer perguntas acerca de si
próprios" (CADA, Parte II, p.1).

Dessa forma, a conclusão básica contida na comparação feita por


Freire, e que ele usa com maior frequência, parece ser a de que os homens
não são objetos (por natureza), mas Sujeitos criativos. Eles podem ser
tratados como objetos por sistemas sociais opressivos, isto é, podem ser
desumanizados, porém isso não altera a "vocação ontológica" do homem,
que é a de ser Sujeito, consciente de si mesmo e que interage com o mundo
e com os outros homens.
A visão que Freire tem do ser humano como um Sujeito em relação
com o mundo implica uma concepção das relações entre os homens que
fundamenta a compreensão de seu conceito de comunicação. Em sua visão
do homem e do mundo, Freire se credencia a ser incluído na mesma tradição
filosófica de existencialistas como Buber, Mounier, Marcel, Camus, Jaspers
e Rosenzweig, que, segundo Maurice Friedman (BUBER, 1975, p. XXVII),
encaram o "diálogo, a comunicação e a relação Eu-Tu não enquanto uma
dimensão do ego, mas como a realidade existencial e ontológica na qual o
ego é criado e através da qual satisfaz e autentica a si mesmo".
Na verdade, Freire recebeu forte influência da filosofia
existencialista, quer por intermédio do trabalho do Instituto Superior de
Estudos Brasileiros (ISEB), quer, sobretudo, por meio de seu envolvimento
com a esquerda católica brasileira dos anos 50 e início dos 605. É este
envolvimento que faz da comunicação uma categoria central –

5
Para uma discussão pormenorizada da influência do ISEB e do envolvimento com a
esquerda católica, cf. De Lima (1981).

59
primeiramente como método de sua teoria educacional6 e mais tarde em sua
epistemologia e nas implicações políticas de seu pensamento.
Em seu Extensão ou comunicação?, Freire argumenta que "o mundo
social humano não existiria se não fosse um mundo capaz de comunicar" (p.
65) e prossegue afirmando que "o mundo dos seres humanos é um mundo de
comunicação" (p. 66). Diz também, em outra obra, que "uma pessoa só pode
existir em relação a outras que também existem, e em comunicação com
elas" (EPL, nota de rodapé nº 1, p. 41). Mas ele vai mais além ao sublinhar
que

"os homens [...] não podem ser verdadeiramente humanos sem a


comunicação, pois são criaturas essencialmente comunicativas. Impedir a
comunicação equivale a reduzir o homem a condição de ‘coisa’. (PO, p.
149) [...] Somente através da comunicação é que a vida humana pode
adquirir significado" (PO, p. 73).

Encarando o homem como um Sujeito criativo em relação com o


mundo e um ser essencialmente comunicativo em relação com outros
homens, Freire estabelece a base filosófica imediata de seu conceito de
comunicação.

A comunicação como relação social e politica

Freire baseia-se na obra do filosofo espanhol Eduardo Nicol em sua


mais abrangente discussão sobre o ato de conhecer. Nicol formula seu
argumento no contexto de uma discussão acerca da natureza do
conhecimento científico e da verdade (1965, cap. 2, p. 42-43), afirmando
que além das três relações compreendidas pelo conhecimento –
gnosiológica, lógica e histérica – existe uma quarta relação, também
fundamental e indispensável, sem a qual nenhum ato de conhecimento seria
possível. Ele a denomina relação dialógica. Nicol intercambia a palavra
conocimento (conhecimento) com a palavra pensamiento (pensamento). Em
ambos os casos, todavia, está referindo-se claramente ao fato de que o
conhecimento constitui um processo dinâmico e as quatro relações se acham
6
Em seus primeiros escritos, Freire chamava seu método de alfabetização de "dialógico" e
utilizava a definição de diálogo encontrada em Karl Jaspers (1963).

60
dialeticamente inter-relacionadas. O argumento de Nicol, portanto,
reivindica que, assim como não existe ser humano isolado, da mesma forma
também não existe pensamento isolado7.

DIMENSÃO RELACIONAL
Freire refere-se à discussão de Nicol e desenvolve em Extensão ou
comunicação? (p. 66-69, passim) o argumento sobre a natureza do
conhecimento (e da comunicação) da seguinte forma:

"O Sujeito pensante não pode pensar sozinho. Não pode pensar acerca dos
objetos sem a co-participação de outro Sujeito. Não existe um 'eu penso',
mas sim um 'nós pensamos'. É o 'nós pensamos' que estabelece o 'eu penso'
e não o oposto. Esta co-participação dos Sujeitos no ato de conhecer se dá
na comunicação. A comunicação implica uma reciprocidade que não pode
ser rompida. Portanto, não é possível compreender o pensamento sem
referência à sua dupla função: cognoscitiva e comunicativa. [...] O que
caracteriza a comunicação enquanto este comunicar comunicando-se é que
ela é diálogo, assim como o diálogo é comunicativo., [...] A educação é
comunicação, é diálogo, na medida em que não é transferência de saber,
mas encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos
significados".

Em seu ensaio "O processo da alfabetização política — uma intro-


dução", escrito cerca de 13 anos depois, Freire desenvolveu a mesma
argumentação de forma ligeiramente diferente:

"Conhecer, que é sempre um processo, supõe uma situação dialógica. Não


há, estritamente falando, um 'eu penso', mas um 'nós pensamos'. Não é o
'eu penso' o que constitui o 'nós pensamos', mas, pelo contrário, é o 'nós
pensamos' que me faz possível pensar. Na situação gnosiológica, o objeto
do conhecimento não é o termo do conhecimento dos sujeitos
cognoscentes, mas a sua mediação" (ACPL, p. 86).

7
Este também é o argumento de Clifford Geertz em sua discussão acerca do "Crescimento
da cultura e a evolução da mente". Sustenta ele que "o pensar como ato público e aberto
que envolve a manipulação intencional de materiais objetivos é provavelmente fundamental
aos seres humanos; e o pensar como ato encoberto e privado, sem recurso a tais materiais,
uma capacidade derivada, ainda que não inútil". Cf. Geertz (1978), p. 90.

61
Em outra passagem de Extensão ou comunicação?, Freire é ainda
mais incisivo. Ele exclui a possibilidade da existência da comunicação — e
do conhecimento — quando o modelo da comunicação é transmissivo. Diz
ele que "sem a relação de comunicação entre Sujeitos cognoscentes, com
referência a um objeto cognoscível, o ato de conhecer não existiria" (p. 65).
Portanto:

"o objeto, [...] como conteúdo da comunicação, não pode ser comunicado
de um sujeito a outro. Se o objeto do pensamento fosse um puro
comunicado, não seria um significado significante mediador dos sujeitos.
Se o sujeito 'A' não pode ter no objeto o termo de seu pensamento, uma vez
que este é a mediação entre ele e o sujeito 'B', em comunicação, não pode
igualmente transformar o sujeito 'B' em incidência depositária do conteúdo
do objeto sobre o qual pensa. Se assim fosse – e quando assim é – não
haveria nem há comunicação" (p. 66-67).

Ao enfatizar que a comunicação significa co-participação dos


Sujeitos no ato de pensar, que o objeto de conhecimento não pode se
constituir no termo exclusivo do pensamento mas, de fato, é seu mediador, e
que o conhecimento é construído mediante as relações entre os seres
humanos e o mundo, Freire está, na verdade, definindo a comunicação como
a situação social em que as pessoas criam conhecimento juntas,
transformando e humanizando o mundo, em vez de transmiti-lo, dá-lo ou
impô-lo. A comunicação é uma interação entre Sujeitos iguais e criativos.
Mas esta interação é de natureza tal que necessita estar fundada no diálogo.
Embora em sua obra os conceitos de Comunicação e Diálogo sejam
empregados indistintamente, para Freire "só o diálogo comunica" (EPL, p.
107). Ele insiste neste ponto afirmando que

"dialogar não significa invadir, manipular, ou 'fazer slogans'. Trata-se, isto


sim, de um devotamento permanente à causa da transformação da
realidade. Esta é a razão pela qual, sendo o diálogo o conteúdo da forma de
ser própria à existência humana, está excluído de toda relação na qual
alguns homens sejam transformados em 'seres para o outro' por homens
que são falsos 'seres para si'. É que o diálogo não pode travar-se numa
relação antagônica. O diálogo é o encontro amoroso dos homens que,

62
mediatizados pelo mundo, o 'pronunciam', isto é, o transformam, e,
transformando-o, o humanizam para a humanização de todos" (EC, p.43).

DIMENSÃO POLÍTICA
Como se torna claro, Freire considera crucial que o princípio filosófico do
diálogo, no nível do ato de conhecer, seja realizado no plano social.
Inicialmente, ele insiste em que "o verdadeiro ato de conhecer é sempre um
ato de engajamento" (CADA, p. 1-4). Em seguida, sugere que a
comunicação/diálogo não apenas supõe coparticipação e reciprocidade, mas
acima de tudo constitui um processo significativo que é compartilhado por
Sujeitos iguais entre si numa relação também de igualdade. A comunicação
deve ser vivida pelos seres humanos como a sua vocação humana. Em
outras palavras, a comunicação deve ser vivida em sua dimensão política8.
Sua mais candente defesa da dimensão política da comunicação,
porém, é feita na Pedagogia do oprimido, no contexto que denomina de
ação cultural-revolucionária9. A comunicação é definida como sendo um
"encontro entre homens, mediados pela palavra, a fim de dar nome ao
mundo". Freire introduz a ideia de "dizer a palavra verdadeira" ou "dar
nome ao mundo" enquanto dimensão política específica do diálogo10.
Ao analisar o diálogo como fenômeno humano, a palavra surge
como "essência do próprio diálogo"; porém, sustenta ele, a palavra é algo
mais que um instrumento que torna possível o diálogo. Buscando os
elementos constitutivos de uma palavra, Freire encontra duas dimensões – a
reflexão e a ação –, "numa interação tão profunda que se uma é sacrificada,
ainda que em parte, a outra sofre imediatamente". As consequências são,
então, ou o verbalismo – o sacrifício da ação – ou o ativismo – o sacrifício
da reflexão. Freire prossegue afirmando que "não há palavra verdadeira que

8
O compromisso de Freire com a ação política reflete seu catolicismo de esquerda, para o
qual "o grande pecado do cristão [é] o pecado da omissão histórica". Ver De Lima (1981,
cap.1).
9
Pedagogia do oprimido é a obra "clássica" de Freire. Seu capítulo 3 discute em detalhe o
conceito de diálogo, encarado como "radicalmente necessário a qualquer revolução
autêntica".
10
Freire demonstra aqui suas raízes religiosas; recorrendo ao mito do Gênesis, no qual o
domínio de Adão sobre o universo era representado por sua ação de dar nomes aos animais.
Cf. Gênesis 2,19.

63
não seja ao mesmo tempo práxis. Assim, dizer a palavra verdadeira é
transformar o mundo" (PO, p. 91).
Freire também utiliza a noção de "dizer a palavra verdadeira, nomear
o mundo" para a compreensão do processo sócio histórico em que são
gerados o pensamento e a linguagem. Para ele, "pensamento e linguagem,
na medida em que constituem uma totalidade, estão sempre referidos à
realidade do sujeito que pensa. O autêntico pensamento-linguagem é gerado
na relação dialética entre o sujeito e sua realidade histórica e cultural
concreta". Desse modo, no caso das sociedades "dependentes" ou "alienadas
culturalmente", o próprio pensamento-linguagem encontra-se alienado
porque "dissociado da ação implicada pelo pensamento autêntico". Isto gera
somente "palavras falsas", e não "palavras verdadeiras"11. Freire prossegue
argumentando que o tema fundamental do Terceiro Mundo consiste
exatamente na "conquista de seu direito à voz, o direito de pronunciar sua
palavra", acrescentando que o homem que "tem voz" é "um homem que é
sujeito de suas próprias opções, um homem que projeta livremente o seu
próprio destino" (INT, p. 1-4, passim). No ensaio Ação cultural para a
liberdade (p. 49), Freire se mostra ainda mais explícito acerca do significado
que atribui à ideia de dar nome ao mundo:

"Aprender a ler e escrever se faz assim uma oportunidade para que


mulheres e homens percebam o que realmente significa dizer a palavra:
um comportamento humano que envolve ação e reflexão. Dizer a palavra,
em um sentido verdadeiro, é o direito de expressar-se e expressar o mundo,
de criar e recriar, de decidir, de optar. Como tal, não é o privilégio de uns
poucos com que silenciam as maiorias" (grifado no original).

Para Freire, a dimensão política do diálogo – a transformação do


mundo ao nomeá-lo – faz parte da própria natureza humana. À luz dessa
realidade, ele argumenta que

11
Pode-se argumentar que a ideia de "palavra falsa" em Freire é similar ao conceito
habermasiano de "comunicação distorcida''. Jurgen Habermas propõe que os desvios em
relação ao modelo de ação comunicativa pura, isto é, a comunicação distorcida, "crescem
segundo os diferentes graus de repressão que caracterizam o sistema institucional numa
dada sociedade; estes, por sua vez, dependem do estágio de desenvolvimento das forças
produtivas e da organização da autoridade, ou seja, da institucionalização do poder político
e econômico". Ver Habermas (1970, p.146).

64
"a existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem
tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras,
com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é
pronunciar o mundo, é modificá-lo" (grifado no original; PO, p. 92).

A ação cultural dialógica para a liberdade e a revolução dialógica são


os caminhos propostos por Freire para que os homens e as sociedades
possam reconquistar sua verdadeira voz num mundo desumanizado.
A ideia de ação cultural revolucionária em Freire precisa ser
compreendida no contexto do que ele considera o problema central da
segunda metade do século XX: a desumanização. Esse fato, segundo ele,
constitui a libertação como o objetivo fundamental a ser atingido pela ação
cultural. A desumanização se caracteriza por ser um processo "que marca
não apenas aqueles cuja humanidade foi roubada [os oprimidos], mas
também os que a roubaram [os opressores]". Assim, no processo de
libertação (ação cultural revolucionária) "os oprimidos não devem, ao
procurar reconquistar sua humanidade, se transformar, por sua vez, em
opressores de seus opressores, mas sim restaurar a humanidade de ambos".
Freire identifica a libertação como "o processo [ou luta] pela humanização",
ou seja, "pela emancipação do trabalho, pela superação da alienação, pela
afirmação dos homens enquanto pessoas". Para ele, "a grande tarefa
humanística e histórica dos oprimidos" torna-se então a de "libertar-se a si
próprios e seus opressores" por meio de um permanente processo histórico
de libertação (PO, cap. 1, passim).
Entendendo a libertação como um processo de humanização total,
Freire preconiza a ação cultural revolucionária enquanto um "ato de amor".
Ao fazê-lo, resgata a ênfase típica, atribuída ao amor na teoria dialógica,
mas a redefine agora como um processo no qual "o homem que emerge é
um novo homem, tornado viável apenas na medida em que a contradição
opressor-oprimido é superada por meio da humanização de todos os
homens". Em suas palavras:

"Estou cada vez mais convencido de que os verdadeiros revolucionários


devem encarar a revolução como um ato de amor... A distorção imposta à
palavra amor pelo mundo capitalista não pode impedir a revolução de ter

65
um caráter essencialmente amoroso, nem impedir que os revolucionários
afirmem seu amor à vida" (PO, p. 94, nota de rodapé).

Nesse contexto, a qualidade política do diálogo proposto por Freire é


de importância central para a ação cultural revolucionária. Na verdade, ele
se faz bastante explícito quanto a essa centralidade em sua Pedagogia do
oprimido:

"A validade de qualquer revolução resultante de uma ação antidialógica é


algo altamente duvidoso. [...] O diálogo com o povo é radicalmente
necessário a qualquer revolução autêntica. [...] A legitimidade mesma [da
revolução] se fundamenta no diálogo. [...] Desejaria ressaltar que não há
dicotomia entre diálogo e ação revolucionária. Ao contrário, o diálogo é a
essência da ação revolucionária" (PO, 147-48, passim).

A revolução que nega o diálogo é, na verdade, uma "autonegação


completa" e mostra uma "falta de fé no povo". Mas, se "o povo não é digno
de confiança", Freire assinala, "não há razão para a libertação".

Comunicação dialógica (interativa)


Podemos retomar agora a questão inicialmente proposta: "Qual a
contribuição que as ideias de Paulo Freire podem trazer na nova
configuração do campo intelectual das comunicações, 30 anos depois de
formuladas?".
Até aqui discutimos o conceito de comunicação em Freire em duas
dimensões. Primeiro, vimos sua visão da natureza humana – o homem em
sua relação com o mundo enquanto Sujeito e em sua relação com os outros
homens em comunicação. A comunicação surge então como "a realidade
existencial e ontológica na qual o ego é criado e através da qual satisfaz e
autentica a si mesmo". O ser humano é uma "criatura essencialmente
comunicativa". Segundo, destacamos a forma pela qual Freire vincula o
princípio filosófico de diálogo – extraído da discussão de Eduardo Nicol
sobre os elementos constitutivos do ato de conhecer – tanto à natureza
relacional como ao compromisso político. A comunicação é definida como
uma relação social transformadora.

66
Finalmente, o que torna a contribuição de Paulo Freire singular e
original é exatamente ele ter ido à raiz conceitual da noção de comunicação
e nela incluído a dimensão política da igualdade, de ausência da relação
desigual de poder e de dominação. Comunicação implica um diálogo entre
Sujeitos mediado pelo objeto de conhecimento que por sua vez decorre da
experiência e do trabalho cotidiano. Ao limitar a comunicação a uma relação
entre Sujeitos, necessariamente iguais, toda "relação de poder" fica excluída.
O próprio conhecimento gerado pelo diálogo comunicativo só será
verdadeiro e autêntico quando comprometido com a justiça e a
transformação social. A comunicação é, portanto, por definição, dialógica.
Fora dessas premissas não haverá comunicação, não se produzirá cultura.
No momento em que as potencialidades das tecnologias interativas
acenam para a quebra da unidirecionalidade e da centralização das
comunicações, o conceito de comunicação dialógica, relacional e
transformadora de Freire oferece uma referência normativa revitalizada,
criativa e desafiadora para todos aqueles que acreditam na prevalência de
um modelo social comunicativo humano e libertador.

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