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CAPÍTULO 2
A atualidade do conceito
de comunicação
em Paulo Freire1
1
Para evitar a repetição desnecessária dos títulos das obras de Freire utilizadas
frequentemente no texto, optamos por usar apenas as iniciais abaixo, cuja
referência completa pode ser encontrada na bibliografia: EPL: Educação como
prática da liberdade; EC: Extensão ou comunicação?; CFLA: Cultural Freedom in
Latin America; CADA: Cultural Action: A Dialectic Abnalysis; INT: Introduction (In:
Cultural Action for Freedom); PO: Pedagogia do oprimido; ACPL: Ação cultural
para a liberdade; CGB: Cartas a Guiné-Bissau; PA: Pedagogia da autonomia; e PI:
Pedagogia da indignação.
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decorrentes, na maioria absoluta dos casos, tornam-se obsoletos ainda
durante a vida de seus autores. Um breve retorno aos textos que há apenas
30 anos orientavam a pesquisa e a reflexão sobre os problemas sociais no
Brasil e na América Latina, ou eram referência obrigatória nas
universidades de todo o mundo, revelará um índice extremamente alto de
obsolescência precoce. Além disso, não há mais paradigmas universais neste
início de século XXI, proclamam os pós-modernos!
Nessa nova realidade, que é uma das características da
transitoriedade contemporânea, poucos são os autores do campo das
ciências humanas e sociais que conseguem sobreviver e permanecer
fecundos e atuais depois de seu próprio tempo. Este é certamente o caso de
Paulo Freire.
Nos anos 70, Freire já era amplamente estudado fora do Brasil em
outras áreas além da educação: filosofia, serviço social, teologia, linguística.
Poucos, todavia, haviam se dado conta do potencial teórico de suas ideias
para o estudo das comunicações2. Com base no trabalho que desenvolveu
como consultor internacional das Nações Unidas em projetos de reforma
agrária e extensão rural, no Chile, na década de 1960, Freire já havia
identificado a necessidade de repensar a noção de comunicação. Não a
comunicação instrumental, transmissiva, mas aquela no sentido de ter em
comum, compartilhar, estar conectado pela mesma teia simbólica
construtora de sentido, em um contexto histórico desigual e contraditório.
Neste início de século, a emergência de novas 'e revolucionárias
tecnologias interativas de comunicações (em particular, a internet) obriga a
uma rediscussão conceitual, cada vez mais interligada à cultura., Esse, aliás,
é um aspecto fundamental que ainda não foi absorvido em sua devida
proporção pelos teóricos do campo intelectual das comunicações.
Uma das tendências, particularmente promissora, que pode ser
identificada como característica do novo cenário tecnológico, integrado e
integrador, é a interatividade, isto é, a possibilidade de interação simultânea
entre emissor e receptor (leitor e/ou espectador). Otimistas chegam até
2
Paulo Freire trabalhou o conceito de comunicação dialógica ao nível da interação humana
face a face. Desta forma, neste capítulo e no capítulo 3, vamos preservar a terminologia
usada por ele, isto é, comunicação. O que nos interessa fundamentalmente é avaliar as
possibilidades de utilização normativa do conceito freireano de comunicação dialógica no
contexto contemporâneo potencialmente interativo da nova mídia (comunicações).
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mesmo a chamar as sociedades deste início do século XXI de "sociedades
interativas", muito diversas, com certeza, daquela "sociedade de massas"
idealizada no século XIX e que serviu de referência aos modelos teóricos da
Manipulação e da Persuasão.
Qual a contribuição que as ideias de Freire podem trazer na nova
configuração do campo intelectual das comunicações, 30 anos depois de
formuladas?
Para responder a esta pergunta vamos estudar em detalhe o conceito
de comunicação em Freire. Começaremos identificando as diferentes
ocasiões em que Freire trata do conceito em sua obra. Em seguida
abordaremos a visão de Freire da natureza humana e analisaremos os níveis
relacional e político em que ele concretiza as noções de conhecimento,
diálogo e comunicação.
Pequeno histórico
3
A equipe de especialistas era composta por funcionários da Corporação de Reforma
Agrária (CORA), Instituto de Desenvolvimento-da-Produção Animal (INDAP), Serviço de
Agricultura e Pecuária (SAG) e Organização das Nações Unidas para Alimentação e
Agricultura (FAO)
4
Para uma crítica desta tradição, escrita por um de seus pioneiros, ver Rogers e Kincaid
(1981).
55
palavra extensão o mesmo sentido neutro que normalmente lhe é atribuído
nos modelos behavioristas da Manipulação e da Persuasão. Na verdade, ele
encara a transmissão como algo que impede o conhecimento. Diz ele:
Freire disse que "a experiência nos ensina que nem todo o óbvio é
tão óbvio quanto parece". Daí sua ênfase no fato de que "toda prática
educativa envolve uma postura teórica por parte do educador. Esta postura,
em si mesma, implica – às vezes mais, às vezes menos explicitamente – uma
concepção dos seres humanos e do mundo" (ACPL, p. 42).
Aquilo que é válido para a prática educacional certamente vale
também para qualquer outra prática, e por essa razão Freire sempre faz
referências explícitas a sua interpretação do homem e de sua relação com os
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outros homens e o mundo. De fato, em todos os seus principais trabalhos,
Freire reitera uma distinção entre homens e animais em seu relacionamento
com o mundo, distinção que implica um tipo particular de relação entre os
homens.
Freire parte do pressuposto de que os homens se diferenciam dos
animais de maneira particular porque são capazes de criar e inovar seu
mundo. Em seu ensaio sobre "A liberdade cultural na América Latina"
(CFLA, p. 167-68), ele diz:
"A diferença fundamental entre o animal, cuja atividade não vai além da
mera produção, e o homem, que cria o domínio da cultura e a história
através de sua ação no mundo, é que apenas o último é um ser de práxis. O
homem, em sua permanente relação com a realidade, produz não apenas
bens materiais, coisas sensíveis e objetos, mas também instituições sociais,
ideologias, arte, religiões, ciência e tecnologia".
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desafio. No jogo constante de suas respostas, altera-se no próprio ato de
responder. Organiza-se. Escolhe a melhor resposta. Testa-se. Age. Faz tudo
isso com a certeza de quem usa uma ferramenta, com a consciência de
quem está diante de algo que o desafia. Nas relações que o homem
estabelece com o mundo há, por isso mesmo, uma pluralidade na própria
singularidade. E há também uma nota presente de criticidade. A captação
que fazem dos dados objetivos de sua realidade, como dos laços que
prendem um dado a outro, ou um fato a outro, é naturalmente crítica, por
isso, reflexiva e não reflexa, como seria na esfera dos contatos [...]. No ato
de discernir [...] se acha a raiz da descoberta de sua temporalidade, que ele
começa a fazer precisamente quando, varando o tempo, de certa forma
então unidimensional, atinge o ontem, reconhece o hoje e descobre o
amanhã. [...] O homem existe no tempo. Está dentro. Está fora. Herda.
Incorpora. Modifica. Porque não está preso a um tempo reduzido a um hoje
permanente que o esmaga, emerge dele. Banha-se nele. Temporaliza-se. Na
medida, porém, em que faz esta emersão do tempo, libertando-se de sua
unidimensionalidade, discernindo-a, suas relações com o mundo
impregnam-se de um sentido consequente. [...] A posição normal do
homem no mundo, visto que não está apenas nele, mas com ele, não se
esgota em mera passividade. Não se reduzindo tão-somente a uma das
dimensões de que participa – a natural e a cultural – da primeira, pelo seu
aspecto biológico, da segunda, pelo seu poder criador, o homem pode ser
eminentemente interferidor. [...] Herdando a experiência adquirida, criando
e recriando, integrando-se às condições de seu contexto, respondendo a
seus desafios, objetivando-se a si próprio, discernindo, transcendendo,
lança-se o homem num domínio que lhe é exclusivo – o da História e o da
Cultura".
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'inacabados' num sentido fundamentalmente diferente dos animais.
Homens e animais são seres inacabados na medida em que estão sujeitos às
categorias de tempo e espaço. Porém, a capacidade que os homens têm de
refletir criticamente sobre si mesmos e sobre o mundo torna-os
profundamente diferentes dos animais. Assim, enquanto o homem, ainda
que condicionado pelas categorias de tempo e espaço, vive dividido entre o
determinismo e a liberdade, os animais são absolutamente determinados
por sua espécie e por seu próprio ambiente. Os homens não são apenas
seres inacabados; reconhecem-se a si próprios enquanto seres incompletos,
ao passo que os animais não são capazes de se fazer perguntas acerca de si
próprios" (CADA, Parte II, p.1).
5
Para uma discussão pormenorizada da influência do ISEB e do envolvimento com a
esquerda católica, cf. De Lima (1981).
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primeiramente como método de sua teoria educacional6 e mais tarde em sua
epistemologia e nas implicações políticas de seu pensamento.
Em seu Extensão ou comunicação?, Freire argumenta que "o mundo
social humano não existiria se não fosse um mundo capaz de comunicar" (p.
65) e prossegue afirmando que "o mundo dos seres humanos é um mundo de
comunicação" (p. 66). Diz também, em outra obra, que "uma pessoa só pode
existir em relação a outras que também existem, e em comunicação com
elas" (EPL, nota de rodapé nº 1, p. 41). Mas ele vai mais além ao sublinhar
que
60
dialeticamente inter-relacionadas. O argumento de Nicol, portanto,
reivindica que, assim como não existe ser humano isolado, da mesma forma
também não existe pensamento isolado7.
DIMENSÃO RELACIONAL
Freire refere-se à discussão de Nicol e desenvolve em Extensão ou
comunicação? (p. 66-69, passim) o argumento sobre a natureza do
conhecimento (e da comunicação) da seguinte forma:
"O Sujeito pensante não pode pensar sozinho. Não pode pensar acerca dos
objetos sem a co-participação de outro Sujeito. Não existe um 'eu penso',
mas sim um 'nós pensamos'. É o 'nós pensamos' que estabelece o 'eu penso'
e não o oposto. Esta co-participação dos Sujeitos no ato de conhecer se dá
na comunicação. A comunicação implica uma reciprocidade que não pode
ser rompida. Portanto, não é possível compreender o pensamento sem
referência à sua dupla função: cognoscitiva e comunicativa. [...] O que
caracteriza a comunicação enquanto este comunicar comunicando-se é que
ela é diálogo, assim como o diálogo é comunicativo., [...] A educação é
comunicação, é diálogo, na medida em que não é transferência de saber,
mas encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos
significados".
7
Este também é o argumento de Clifford Geertz em sua discussão acerca do "Crescimento
da cultura e a evolução da mente". Sustenta ele que "o pensar como ato público e aberto
que envolve a manipulação intencional de materiais objetivos é provavelmente fundamental
aos seres humanos; e o pensar como ato encoberto e privado, sem recurso a tais materiais,
uma capacidade derivada, ainda que não inútil". Cf. Geertz (1978), p. 90.
61
Em outra passagem de Extensão ou comunicação?, Freire é ainda
mais incisivo. Ele exclui a possibilidade da existência da comunicação — e
do conhecimento — quando o modelo da comunicação é transmissivo. Diz
ele que "sem a relação de comunicação entre Sujeitos cognoscentes, com
referência a um objeto cognoscível, o ato de conhecer não existiria" (p. 65).
Portanto:
"o objeto, [...] como conteúdo da comunicação, não pode ser comunicado
de um sujeito a outro. Se o objeto do pensamento fosse um puro
comunicado, não seria um significado significante mediador dos sujeitos.
Se o sujeito 'A' não pode ter no objeto o termo de seu pensamento, uma vez
que este é a mediação entre ele e o sujeito 'B', em comunicação, não pode
igualmente transformar o sujeito 'B' em incidência depositária do conteúdo
do objeto sobre o qual pensa. Se assim fosse – e quando assim é – não
haveria nem há comunicação" (p. 66-67).
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mediatizados pelo mundo, o 'pronunciam', isto é, o transformam, e,
transformando-o, o humanizam para a humanização de todos" (EC, p.43).
DIMENSÃO POLÍTICA
Como se torna claro, Freire considera crucial que o princípio filosófico do
diálogo, no nível do ato de conhecer, seja realizado no plano social.
Inicialmente, ele insiste em que "o verdadeiro ato de conhecer é sempre um
ato de engajamento" (CADA, p. 1-4). Em seguida, sugere que a
comunicação/diálogo não apenas supõe coparticipação e reciprocidade, mas
acima de tudo constitui um processo significativo que é compartilhado por
Sujeitos iguais entre si numa relação também de igualdade. A comunicação
deve ser vivida pelos seres humanos como a sua vocação humana. Em
outras palavras, a comunicação deve ser vivida em sua dimensão política8.
Sua mais candente defesa da dimensão política da comunicação,
porém, é feita na Pedagogia do oprimido, no contexto que denomina de
ação cultural-revolucionária9. A comunicação é definida como sendo um
"encontro entre homens, mediados pela palavra, a fim de dar nome ao
mundo". Freire introduz a ideia de "dizer a palavra verdadeira" ou "dar
nome ao mundo" enquanto dimensão política específica do diálogo10.
Ao analisar o diálogo como fenômeno humano, a palavra surge
como "essência do próprio diálogo"; porém, sustenta ele, a palavra é algo
mais que um instrumento que torna possível o diálogo. Buscando os
elementos constitutivos de uma palavra, Freire encontra duas dimensões – a
reflexão e a ação –, "numa interação tão profunda que se uma é sacrificada,
ainda que em parte, a outra sofre imediatamente". As consequências são,
então, ou o verbalismo – o sacrifício da ação – ou o ativismo – o sacrifício
da reflexão. Freire prossegue afirmando que "não há palavra verdadeira que
8
O compromisso de Freire com a ação política reflete seu catolicismo de esquerda, para o
qual "o grande pecado do cristão [é] o pecado da omissão histórica". Ver De Lima (1981,
cap.1).
9
Pedagogia do oprimido é a obra "clássica" de Freire. Seu capítulo 3 discute em detalhe o
conceito de diálogo, encarado como "radicalmente necessário a qualquer revolução
autêntica".
10
Freire demonstra aqui suas raízes religiosas; recorrendo ao mito do Gênesis, no qual o
domínio de Adão sobre o universo era representado por sua ação de dar nomes aos animais.
Cf. Gênesis 2,19.
63
não seja ao mesmo tempo práxis. Assim, dizer a palavra verdadeira é
transformar o mundo" (PO, p. 91).
Freire também utiliza a noção de "dizer a palavra verdadeira, nomear
o mundo" para a compreensão do processo sócio histórico em que são
gerados o pensamento e a linguagem. Para ele, "pensamento e linguagem,
na medida em que constituem uma totalidade, estão sempre referidos à
realidade do sujeito que pensa. O autêntico pensamento-linguagem é gerado
na relação dialética entre o sujeito e sua realidade histórica e cultural
concreta". Desse modo, no caso das sociedades "dependentes" ou "alienadas
culturalmente", o próprio pensamento-linguagem encontra-se alienado
porque "dissociado da ação implicada pelo pensamento autêntico". Isto gera
somente "palavras falsas", e não "palavras verdadeiras"11. Freire prossegue
argumentando que o tema fundamental do Terceiro Mundo consiste
exatamente na "conquista de seu direito à voz, o direito de pronunciar sua
palavra", acrescentando que o homem que "tem voz" é "um homem que é
sujeito de suas próprias opções, um homem que projeta livremente o seu
próprio destino" (INT, p. 1-4, passim). No ensaio Ação cultural para a
liberdade (p. 49), Freire se mostra ainda mais explícito acerca do significado
que atribui à ideia de dar nome ao mundo:
11
Pode-se argumentar que a ideia de "palavra falsa" em Freire é similar ao conceito
habermasiano de "comunicação distorcida''. Jurgen Habermas propõe que os desvios em
relação ao modelo de ação comunicativa pura, isto é, a comunicação distorcida, "crescem
segundo os diferentes graus de repressão que caracterizam o sistema institucional numa
dada sociedade; estes, por sua vez, dependem do estágio de desenvolvimento das forças
produtivas e da organização da autoridade, ou seja, da institucionalização do poder político
e econômico". Ver Habermas (1970, p.146).
64
"a existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem
tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras,
com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é
pronunciar o mundo, é modificá-lo" (grifado no original; PO, p. 92).
65
um caráter essencialmente amoroso, nem impedir que os revolucionários
afirmem seu amor à vida" (PO, p. 94, nota de rodapé).
66
Finalmente, o que torna a contribuição de Paulo Freire singular e
original é exatamente ele ter ido à raiz conceitual da noção de comunicação
e nela incluído a dimensão política da igualdade, de ausência da relação
desigual de poder e de dominação. Comunicação implica um diálogo entre
Sujeitos mediado pelo objeto de conhecimento que por sua vez decorre da
experiência e do trabalho cotidiano. Ao limitar a comunicação a uma relação
entre Sujeitos, necessariamente iguais, toda "relação de poder" fica excluída.
O próprio conhecimento gerado pelo diálogo comunicativo só será
verdadeiro e autêntico quando comprometido com a justiça e a
transformação social. A comunicação é, portanto, por definição, dialógica.
Fora dessas premissas não haverá comunicação, não se produzirá cultura.
No momento em que as potencialidades das tecnologias interativas
acenam para a quebra da unidirecionalidade e da centralização das
comunicações, o conceito de comunicação dialógica, relacional e
transformadora de Freire oferece uma referência normativa revitalizada,
criativa e desafiadora para todos aqueles que acreditam na prevalência de
um modelo social comunicativo humano e libertador.
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