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APRENDER A OUVIR OUTRAS VOZES:

REFLEXÕES SOBRE FORMAS DE DIÁLOGO NÃO COLONIAIS

Ana Luisa Lima Grein1


Ana Otero de Oliveira Mendonça2

RESUMO

Ao considerarmos o complexo acontecimento da pandemia viral de COVID-19 e as


sucessivas crises que se evidenciam com esse acontecimento, é preciso repensar
nossas formas de ser e estar no mundo. Esse contexto atualizou diversas crises
indenitárias, demarcou o desequilíbrio das dinâmicas coletivas e as desigualdades de
acesso às condições de vida, acentuou as hierarquias sociais e culturais, e
apresentou uma emergência existencial. Frente a esses desafios da
contemporaneidade e com o objetivo de considerar outros saberes, refletiremos neste
trabalho sobre a importância de dispormos de condições para ampliar os diálogos com
outras culturas e saberes. Para isso, evidenciaremos o problema da dominação
cultural ocidental, que silencia a alteridade e saberes advindos de outros povos.
Enquanto abordagem metodológica traremos para a reflexão pensadoras e
pensadores que buscam estar abertos ao novo e ao diálogo de maneira não
hierárquica.
Palavras-chave: Dominação Colonial. Pluralidade. Oralidade.

INTRODUÇÃO

A problemática da dominação cultural reflete no silenciamento das expressões


que escapam suas pré-determinações. Nesse contexto, chamamos atenção para a
urgência de repensar este problema de modo congruente com uma abertura aos
diversos saberes. A partir desta necessidade, o presente trabalho aborda reflexões
sobre possíveis meios para ampliar nossos horizontes perspectivos e “suspender a
queda do céu”. Essa noção Ailton Krenak retoma da cosmovisão Yanomami, na obra
realizada por Davi Kopenawa Yanomami e Bruce Albert: “A queda do céu: palavras
de um xamã Yanomami” (2015). Suspender o céu de maneira perspectiva, como
propõe Krenak (2019), requer ampliar as nossas possibilidades de pensar e de estar
no mundo, nossa capacidade de fruir a existência em conjunto com todos os seres
que compartilham conosco a vida na Terra. Ao mesmo tempo, o autor (2020) denuncia
as coreografias utilitárias e civilizatórias que reproduzimos em estado de alienação.

1
Mestranda em Filosofia pela Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ),
analuisagrein@gmail.com.
2
Mestranda em Ciências da Linguagem pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL),
ana.otero.mendonca@gmail.com.
É possível observar essa postura de dominação no Estado Nação brasileiro,
que jamais considerou uma das milhares de línguas indígenas como idiomas oficiais.
A dominação linguística é uma violência epistêmica que age ao ignorar a potência
criativa e performativa das diversas possibilidades de expressão e composição de
ideias no mundo. Ao retornar ao processo histórico de opressão dos povos e das
civilizações, podemos perceber como o fator linguístico foi e é fundamental para
marcar os territórios de exploração. Nesse sentido, as ideias de Krenak em textos e
conferências orais, assim como as de Cristine Takuá, Grada Kilomba, Hannah Arendt,
Deleuze e Guattari, que criticam a modernidade, nos conduzem a repensar nosso
modo de dialogar e agir no mundo considerando novos horizontes perspectivos.

1. O ATO DE FALAR E SER OUVIDO

Hannah Arendt, pensadora dos assuntos humanos, destaca a pluralidade


como fator primordial para a garantia da diversidade de visões de mundo. Ela é
praticada por meio da ação humana em conjunto, sem hierarquias necessárias, por
meio do diálogo, o ato de falar, de ser ouvido e de ouvir alguém, bem como participar
de decisões. O fator da pluralidade é então uma condição básica para o discurso e a
ação se darem de maneira ética.
Para Arendt, como explica Parekh (1981), o espaço público, por exemplo, é o
local onde as pessoas estariam na presença umas das outras para discutir temas que
são comuns a todos. De acordo com o comentador, “se dois indivíduos olham para o
mundo basicamente da mesma maneira e possuem as mesmas opiniões, eles […]
não refletem dois pontos de vista diferentes, mas duplicam uma única perspectiva”
(PAREKH, 1981, p. 93)3. Dessa maneira, podemos compreender que a pensadora
nos chama atenção para perceber a relevância de considerarmos a pluralidade nas
relações e organizações humana e escapar da homogeneização dos pontos de vista.
É a partir da articulação entre as diversidades que Arendt (2001) afirma se
originar o poder, pois ele é a potência garantida nos diálogos com mais de um ponto
de vista, que cheguem em um ponto comum considerando a pluralidade. Ela é a
geradora do poder de ação, pois representa a capacidade humana de falar sobre os
assuntos comuns, chegar a deliberações e agir em conjunto. Nesse sentido, o poder

3
“If two individuals look at the world in basically the same way and hold identical opinions, they […] do
not reflect two different standpoints, but duplicate a single perspective”. PAREKH, Bhikhu. Hannah
Arendt & the search for a new political philosophy. Londres: The Macmillan Press, 1981, p. 93.
e a política estão relacionados, na visão da autora, com a liberdade, a cooperação e
a ética. Eles se manifestam no bem comum, na relação entre as pessoas e em
considerar diversidades para garantir a vida e a harmonia do ser humano com o
ambiente. Na concepção arendtiana, “ser livre e agir são a mesma coisa” (ARENDT,
2001, p. 36), logo, a política só existe onde o ser humano possui liberdade para utilizar
de sua fala e ser ouvido. Por esta razão, a vinculação com promessas, pactos e
associações são os meios pelos quais o poder de ação humana se mantém vivo e
evidenciam o valor do diálogo.
Por conseguinte, assim como coloca Deleuze e Guattari (2011), a linguagem
não é apenas ação, mas sim uma ação coletiva, é um agenciamento coletivo de
palavras de ordem, que determinam os processos de subjetivação. Ao perceber o
caráter social da língua e a necessidade do contexto coletivo para a concretização do
ato de fala, podemos observar claramente as hierarquias e desigualdades, a
legitimação da fala de alguns em detrimento da fala de outros.
A partir desta perspectiva, Arendt nos auxilia a refletir como pensar nas
pessoas que não fazem parte de uma nação ou que passaram (ou passam) por
tentativas de genocídio. Ao refletir sobre os direitos dessas pessoas, a pensadora nos
alerta para esclarecimentos e distinções necessárias. Por exemplo, o usufruto da
nossa liberdade não se limita aos direitos civis constitucionais e estes, por sua vez,
não sendo amplamente acordados pela sociedade em questão, não podem ser
legítimos. Entretanto, para a pensadora, é possível haver um direito relacionado ao
poder e à política e este gerar leis e princípios referentes à coletividade e ao bem
comum. Dessa maneira, Celso Lafer explica:

A experiência histórica dos displaced people levou Hannah Arendt a concluir


que a cidadania é o direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e
direito dos seres humanos não é um dado. É um construído da convivência
coletiva, que requer o acesso a um espaço público comum. Em resumo, é
esse acesso ao espaço público – o direito de pertencer a uma comunidade
política – que permite a construção de um mundo comum através do
processo de asserção dos direitos humanos (LAFER, 1997, p. 58).

Por esta via podemos pensar o caso dos povos originários do Brasil, que se
encontram no território desde antes da colonização. A história aponta para pretensões
genocidas contínuas que perduram por mais de 500 anos, iniciadas com as invasões
às terras em que habitavam e tentativas de dominação de seu modo de viver por meio
da exploração do trabalho, imposição religiosa e cultural. Com o passar dos anos,
este genocídio tomou diferentes facetas, se adaptando à cada contexto. Com o passar
dos anos, este genocídio tomou diferentes facetas, se adaptando à cada contexto.
Atualmente, por exemplo, ele se dá devido à expansão dos grandes fazendeiros do
agronegócio, donos das produções de monoculturas extrativistas e não preservação
de seus territórios por parte do Estado.
Para os povos originários, como demonstra a filósofa indígena Cristine Takuá,
a luta pela manutenção desses territórios não é apenas para os próprios povos
indígenas, mas para que todos os seres visíveis e invisíveis possam viver. Nessa
cosmovisão, todos os seres interagem com o mundo ao seu redor, ocupam espaços
físicos e simbólicos e são considerados portadores de possível comunicação, mas
que não se limitam à maneira como a cultura ocidental europeia concebe como
dialogar. O ato de falar e ser ouvido, considerando essa concepção, precisa se
estender para além da noção de humano. Nesse sentido, a pensadora questiona:
“Quem está escutando a paca, cotia, lontras, abelhas, as formigas, as sumaúmas e
todos os seres sagrados visíveis e invisíveis que estão vivendo dentro da floresta?”
(TAKUÁ, 2019, p. 104).
À vista da ampla dimensão comunicativa concebida nestas cosmovisões, não
ouvir esses seres e os povos que com eles mantém trocas é um modo de consentir
com o sistema de dominação colonial. Este sistema é marcado a partir da diferença
corporal e cultural e elabora um discurso de ódio, de negação da alteridade e de tudo
que escapa à sua norma pré-estabelecida (machismo, racismo, individualismo e
outros “ismos” produzidos pela pretensão hegemônica). Ele domina, pois determina o
que é o absoluto e desconsidera o que está fora de sua determinação.
A escritora Grada Kilomba evidencia a ação colonial sobre os corpos e propõe
desnaturalizar as opressões e o silenciamento do sistema colonial. Para pensar o
silenciamento, Kilomba (2019) apresenta as problemáticas estruturais, binárias e
dicotômicas da língua portuguesa, bem como a colonialidade atuante sobre os corpos
e sobre o pensar na construção da língua. Ela cita o exemplo do português que, além
de possuir todas as construções de maneira binária, todas as generalizações
“corretas” indicam homens, mais ainda, homens brancos4. Além disso, o pensar em

4
Essa relação entre o eu e o outro é revista por Kilomba (2019) a partir de termos psicanalíticos,
quando pensa em mecanismos de defesa do ego, preservação dos sentimentos positivos que se
nutrem em relação a si, sendo o positivo associado ao “self” e o negativo projetado sobre o “outro”.
Desta forma, “a branquitude se consolida como a parte "boa" do ego — enquanto as manifestações da
parte "má" são projetadas para o exterior e vistas como objetos externos e "ruins" (KILOMBA, 2019, p.
português se edifica na fratura fundamental entre sujeito e objeto, o eu e o outro,
agenciando ativamente as hierarquias coloniais.
Para os pensadores pós-estruturalistas Deleuze e Guattari (2011), a língua e a
linguagem não são apenas instrumentos comunicativos e informativos daquilo que já
se encontra dado. Para eles, elas servem a formação de mundo dos sujeitos, agem
diretamente no mundo e forjam as subjetividades principalmente a partir de uma
gramática dicotômica (masculino-feminino, singular-plural, substantivo-verbo, sujeito
do enunciado-sujeito de enunciação etc). Nesse sentido, consideram que: “a
linguagem não é mesmo feita para que se acredite nela, mas para obedecer e fazer
obedecer” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 7), de modo que “uma regra de gramática
é um marcador de poder, antes de ser um marcador sintático” (2011, p. 8).
Portanto, a partir da reflexão desses autores, é evidente que o poder de ação
humana só ocorre de maneira ética quando está embasado no diálogo sem
hierarquias e na pluralidade de saberes e suas expressões. No atual momento, nos
encontramos no contexto de urgência em ouvir, se atentar a essa pluralidade para
que seja possível fazer a manutenção da vida na Terra. No próximo item,
abordaremos sobre a marca da oralidade, da fala e escuta nas cosmovisões
ameríndias, com o objetivo de buscar referências até então silenciadas para
compreender outros meios de diálogo e interação entre os seres viventes.

2. A ORALIDADE INDÍGENA NA CRIAÇÃO DE MUNDOS

As sociedades indígenas até então eram entendidas como sociedades sem


história, por não considerarem um tempo diacrônico. Assim explicam as historiadoras:
“Os povos ameríndios brasileiros foram subjugados pelos europeus por vários
motivos, talvez um dos principais motivos seja por serem ‘povos sem escrita’”
(ALMEIDA; NOTZOLD, 2011, p. 61). O que se pensava era que as sociedades eram
apegadas a um passado mítico (como entenderam os brancos).
Para Ailton Krenak, esse posicionamento que coloca a escrita em
superioridade às outras formas de expressar conhecimento é colonial, surge a partir
de uma lógica que se considera como superior, uma sociedade que quer “levar a luz

37). A partir desse raciocínio monolítico e dicotômico, o outro será sempre um receptáculo de projeções
negativas, o pensamento assim elaborado é fixista e narcísico, requerer negar qualquer outra
possibilidade de conhecimento que não se adequa às suas delimitações. Assim, o silenciamento age
através da complexidade do processo de repressão, sendo fundamentalmente opressivo e não
dialógico.
aos que não tem” (KRENAK, 2019, p. 11). Ao refletir sobre a oralidade, o pensador
(2021)5 a apresenta como um outro tipo de linguagem, sendo esta um modo muito
amplo de elaborar e construir narrativas, saberes e literaturas. Nessa perspectiva, ele
chama atenção para a importância da literatura indígena, quase sempre de origem
oral6, pois quando esta alcança as mãos de jovens (indígenas ou não), pode auxiliar
a ler e significar o mundo. Krenak compartilha a ideia de que “a literatura não tem que
ser escrita” (1:33:25) e diz ainda que “a verdade é que tem muitas outras narrativas
além da escrita” (1:34:48). A oralidade indígena possibilita a atualização dos saberes
ancestrais. A exemplo disso, podemos pensar no movimento de midiatização dos
saberes que possibilitou, no ano de 2021, a produção de uma biblioteca das
oralidades de Krenak7 sobre as formas de ser e estar no mundo na
contemporaneidade.
Na cosmovisão dos povos originários do Brasil, a fala é o meio principal pelo
qual o conhecimento se passa (SILVA, 2000). Dessa maneira, os momentos em que
os mais velhos contam histórias para os mais novos são fundamentais para aprender
os saberes milenares destes povos. Dentre as histórias, existem os mitos. Mitos são
narrativas orais consideradas fundamentais para um povo ou grupo social e que
formam conjuntos de histórias dedicados a contar peripécias dos ancestrais que vivem
desde o início dos tempos, quando tudo foi criado e o mundo ordenado8.
Desde os tempos coloniais, os Guarani são considerados não só como
guerreiros, mas também como povos ‘senhores das palavras’ – de seus mitos e
cantos inspirados nos Karaí, seus xamãs proféticos e messiânicos. Nesse sentido,
para esse povo, “a palavra é o todo e o todo é palavra” (MELIÀ, 2006, p. 202).

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Arte da Palavra - Narrativas do atual, entre oralidades e escritas. Ailton Krenak, Evanilton Gonçalves Gois da
Cruz mediada por Veronica Stigger. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AGtJYaXNNp0. Acesso
em: 24/06/2021.
6
Como coloca Ailton Krenak, sobre ter suas palavras transformadas em escrita: “assim, gravado em
letrinhas, e talvez por eu ter mais uma experiência de oralidade, de fala, e menos experiência de escrita,
esse efeito da escrita sobre mim tem um impacto grande” (KRENAK, 2015, p. 341).
7
Uma iniciativa da comunidade Selvagem para catalogar, organizar e acessibilizar as conversas de
Krenak em diálogo com demais pensadores. Disponível em: https://www.notion.so/Biblioteca-do-
Ailton-Krenak-cd46ab5c7c4448ffb3111f3c9ef833d9. Acesso em: 15/01/2022.
8
No entanto, a historiadora Aracy Lopes ressalta: “(...) no contexto da Conquista, ganham força nova,
nascida da desigualdade e da dominação típicas desse momento. Mitos da origem do homem branco,
reflexões sobre sua humanidade, reavaliações do lugar dos índios no mundo, registro de experiências
do contato na memória a ser legada, exemplarmente, às gerações futuras… Os mitos se reafirmam e
se transformam, dialogando com a história”. SILVA, Aracy Lopes da. Mitos e cosmologias indígenas no
Brasil: breve introdução. In: GRUPIONI, Luís Donisete. Índios no Brasil, São Paulo: Global/MEC, 2000,
p. 76.
Portanto, nos mitos de criação e destruição do mundo9, tem-se a palavra como
fundamento, a dança e a oração como sacramento.
Por conseguinte, a diferença entre os mitos de origem grega e os mitos
cosmogônicos é que nós destituímos o mito como referência à nossa realidade. No
entanto, nas cosmovisões ameríndias, os mitos se mantêm como referência para a
vida ordinária e são compreendidos como um modo contemporâneo de elaborar o
mundo. Isto, pois, para esses povos, os mitos imprimem diretamente na sociedade o
modo de viver e de pensar, “orientam, dão sentido, permitem interpretar
acontecimentos e ponderar decisões” (SILVA, 2000, p. 75).
De acordo com Krenak (2017), no tempo mítico não existe “resposta certa”,
visto que a necessidade de certeza se limita à metodologia colonial de pensar e
produz monocultura, necrosa a existência em sua ilimitada produção de mesmice.
Como demonstra Krenak, essa angústia da certeza contida no âmago no pensamento
moderno/colonial não existe no universo dos mitos. Nele, não precisamos ter certeza.
Por serem incertos, essa concepção ampla de significação ultrapassa a linearidade
temporal e, por isso, os mitos são, em sua plenitude, desafiadores de entender. Para
elaborar alguns de seus sentidos, é preciso considerar os contextos sócio-culturais,
que são as referências da reflexão contida em cada mito.
Para além das complexas narrativas, podemos pensar também na agência das
artes verbais entre os xamãs. Nesse sentido, Cezarino apresenta o contexto ritual de
transmissão das palavras: “o conjunto de fórmulas que transita pelos modos de suas
artes verbais (os cantos de cura shõki, as narrativas cantadas saiti e os cantos
pessoais iniki, entre outros)” (CEZARINO, 2013, p. 440). Além do conteúdo do mito,
a forma de contá-lo ou cantá-lo também compõe a complexidade desse saber. Sendo
assim, quem conta, quando, situação, modulação da voz, repetições, ouvinte,
narradora, todos compõem um sentido na narrativa, que são expressos através da
linguagem simbólica da dramaturgia nos rituais. Desse modo, proporcionam um
reencontro possível com outra dimensão temporal por meio da reunião para se ouvir

9
Um exemplo da temática do futuro da mitologia ameríndia está no mito do dilúvio pré-colonial.
ÑandéRuVusú (Nuestro Padre Grande), segundo informou Nimuendajú, aconselhou a Guyraypoty que
dançassem, pois a Terra esperava o mal, estava esquentando e iria se incendiar. Guyraypoty, sua
mulher e filhos foram em direção ao mar, construíram sozinhos uma casa para flutuar enquanto
esperavam o dilúvio universal. Ninguém se disponibilizou a ajudá-los. Quando chegou o dilúvio,
dançaram, cantaram o ritual e sua casa foi elevada aos céus. MELIÀ, Bartolomeu. O. Mitología Guaraní.
In: RESCANIERE, Alejandro O. (Editor). Mitologías ameríndias. Madri: Enciclopedia Iberoamericana
de Religiones. Ed. Trotta, 2006, p. 192.
os mitos. Assim, pode-se compreender que os mitos evidenciam como a cultura é viva
e pode conduzir as ações do presente (SILVA, 2000).
A partir dessa reflexão, podemos perceber que a cultura e a linguagem são
vivas e seguem constantemente se modificando, a cada instante ela pode sofrer
variações. Nesta perspectiva, a oralidade permite um modo fluido de expressar
saberes, que não se pretende fixo ou absoluto. O tempo do mito escapa a qualquer
tentativa de fixá-lo. Por um lado, a esfera da oralidade é intransponível e
continuamente se atualiza no tempo presente. Por outro, uma sociedade que não é
capaz de escutar os povos que mantêm vivas suas ancestralidades reproduz o
silenciamento e a dominação, bem como apresenta dificuldade em formular novas
ideias para pensar um novo mundo e responder eticamente a crise existencial que
estamos vivenciando.
Como foi evidenciado, estes conhecimentos indígenas carregam a marca de
uma distorção inevitável causada pela constante tentativa de apagamento de suas
formas de saberes, que possui o objetivo de privilegiar o modo ocidental como o único
modelo de agir no mundo. Nesse sentido, Ndlovu destaca que existem muitas
definições para a ideia de conhecimento indígena e o que é necessário compreender
“é que nenhum deles é objetivo porque a ideia de objetividade é em si um dos mais
poderosos mitos do século XXI” (NDLOVU, 2017, p. 138). Esta observação, para a
autora, é um passo inicial para uma noção de conhecimento indígena que se
estabeleça para além das classificações coloniais do poder.
Desse modo, reconhecer a oralidade enquanto amplo espaço de produção de
saberes e de criação de mundo é uma das maneiras de aprender a resistir à
dominação colonial. Para além, as cosmovisões indígenas ampliam suas
possibilidades relacionais ao considerarem igualmente os saberes não-humanos.
Portanto, estes saberes milenares podem indicar um caminho para a desconstrução
da noção de um “Universal Verdadeiro” e uma abertura à pluralidade.

CONCLUSÃO

A dominação colonial se edifica em práticas violentas e, como Arendt afirma, a


força e a violência substituíram o poder e a política no mundo atual. Confundimos
estes últimos com força, violência e degradação. Assim, a glorificação da violência se
explica na frustração da faculdade de agir no mundo. A partir desse contexto de
destruição é que urge a necessidade de transformar a estrutura na qual se dão dos
diálogos no que tange ao bem comum e aos modos de viver no mundo. Com isso,
buscamos aprender outras formas de dialogar, pensar e agir num mundo que se
encontra doente e precisa de ser nutrido com mais organicidade e espontaneidade.

REFERÊNCIAS

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ed. Forense Universitária, 2019.

ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Trad. André Duarte. Rio de Janeiro: 3 ed.
Dumará, 2001.

COMUNIDADE SELVAGEM. Biblioteca do Ailton Krenak. Disponível em:


https://www.notion.so/Biblioteca-do-Ailton-Krenak-
cd46ab5c7c4448ffb3111f3c9ef833d9. Acesso em: 05/06/ 2021.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia 2. Rio


de Janeiro: Editora 34, 2011.

FLORES, Maria Bernadete R.; BRANCHER, Ana Lice. HISTORIOGRAFIA: 35 anos.


Ed. Letras Contemporâneas: Palhoça - SC, 2011.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano.


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KOPENAWA, Davi.; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã


yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Editora Companhia
das Letras, 2019.

MELIÀ, Bartolomeu. O. Mitología Guaraní. In: RESCANIERE, Alejandro O. (Editor).


Mitologías ameríndias. Madri: Enciclopedia Iberoamericana de Religiones. Ed.
Trotta, 2006, p. 177-208.

NDLOVU. Morgan. Por que saberes indígenas no século XXI? Epistemologias do


Sul. Foz do Iguaçu, Paraná 1, (1), p. 127- 144, 2017.

PAREKH, Bhikhu. Hannah Arendt & the search for a new political philosophy.
Londres: The Macmillan Press, 1981.
SILVA, Aracy Lopes da. Mitos e cosmologias indígenas no Brasil: breve introdução.
In: GRUPIONI, Luís Donisete. Índios no Brasil. São Paulo: Global/MEC, 2000, p. 75-
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SOUZA, Tânia Conceição Clemente de. Línguas indígenas: memória, arquivo e


oralidade. Policromias -Revista de Estudos do Discurso, Imagem e Som, Rio de
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TAKUÁ, Cristine. Seres criativos da floresta. (Cadernos Selvagens) Publicação


digital da Dantes Editora Biosfera, 2021. Disponível em:
http://selvagemciclo.com.br/wp-content/uploads/2020/11/CADERNO_4_TAKUA.pdf.
Acesso em: 14/01/2022.

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