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RELATO DE EXPERIÊNCIA SOBRE EXTENSÃO UNIVERITÁRIA E ENSINO DE

LÍNGUA PORTUGUESA PARA MIGRANTES1

David Severo2

Este artigo apresenta um breve relato de experiência do projeto de extensão "O ensino
de Língua portuguesa para migrantes em Caçador/SC", cujo objetivo se refere a ações
voltadas ao uso da língua em contextos sociais, para a promoção da cidadania, de
maneira que a língua atue como fator de inclusão para aquele público em situação de
vulnerabilidade social. Os caminhos para a consecução desses objetivos têm como eixo
a articulação entre a concepção de extensão, sob a perspectiva da pedagogia freireana, e
a linguística aplicada indisciplinar de Moita Lopes.

PALAVRAS-CHAVE: Ensino de língua portuguesa. Extensão universitária. Linguística


aplicada.

1 INTRODUÇÃO

A pedagogia freireana defende, por um lado, que a educação favoreça ao


educando reconhecer as condições de opressão em que se encontra e tenha condições de
livrar-se delas, em busca de uma prática libertadora e humanizadora. Por outro lado, o
movimento que organiza essa tomada de conscientização não se pode dar de cima para
baixo, ou seja, do educador para o educando, mas necessita ocorrer sempre pela ação
conjunta, de modo que a construção do conteúdo a ser trabalhado parta sempre das
experiências reais dos participantes do ato educativo.
Na esteira desse pensamento, a Linguística aplicada também desponta como uma
área das Ciências sociais que se engaja na prática social, notadamente a partir de temas
de relevância social (tais como problemas de desigualdade, preconceito racial e étnico,
discriminação, dentre outros), como aqueles que traremos em debate neste artigo.
Assim, este trabalho apresenta um recorte de relatórios de extensão sobre
educação linguística para migrantes e refugiados (de 2018-2020) e seleciona alguns
dados gerados em campo, a fim de analisá-los, e suscitar discussões pertinentes ao tema
da extensão universitária, inspirada na pedagogia de Paulo Freire, e da Linguística
aplicada.

1
Trabalho apresentado à disciplina Tópicos avançados em Linguística Aplicada do Programa de Pós-
graduação em Letras (PPGL – UFPR), como requisito parcial para a obtenção de nota, sob a orientação da
Profa. Dra. Ana Paula Beato−Canato.
2
Doutorando em Estudos linguísticos (PPGL – UFPR).
2 A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA SOB A PERSPECTIVA FREIREANA

A universidade precisa estar sensível às mudanças que ocorrem no seu entorno


histórico-social, porque é sua função tanto a reflexão e a análise desse entorno, quanto o
compromisso com a transformação de questões que surgem no seio dessa mesma
sociedade. No entanto, para alcançar esse objetivo, é necessário que a universidade (e os
institutos federais, onde atuo como docente) combine esforços que integrem saberes
desenvolvidos pela pesquisa, práticas de ação social executadas pela extensão e políticas
de formação de profissionais, em diferentes níveis, especialmente à política linguística,
embora saibamos que relacionar essas instâncias não seja tarefa simples, porque além da
complexidade específica de cada uma das três articulações citadas, há as características
inerentes das diferentes demandas sociais.
No caso da ação para política linguística de migrantes em deslocamento forçado
(ZENI & FILIPPIN, 2014), vemo-nos diante de novas demandas para esse ensino, já
que a universidade, e notadamente os cursos de Letras, ainda não oferecem disciplinas
formalizadas que deem conta dessas necessidades. A crescente procura pelo ensino de
língua portuguesa deve-se a mudanças históricas, em especial às provocadas pelas crises
climáticas, políticas e humanitárias no mundo, e que requerem também novas posturas
por parte da universidade. Uma das possibilidades de se engajar nessa problemática
social é a atuação junto à comunidade externa do IFSC, de modo que se possa oferecer
aos migrantes em situação de vulnerabilidade, oportunidade de conhecer e participar de
experiências que ampliem a sua formação em língua portuguesa em perspectiva de
acolhimento e inclusão.
Sendo assim, optamos por elaborar um projeto de ação extensionista que
oferecesse aos migrantes (majoritariamente haitianos, mas também um pequeno
contingente de venezuelanos e marfinenses) uma oportunidade de conjugar experiências
práticas com a língua portuguesa, de maneira diferenciada da visão do português como
“língua estrangeira”. Nasce dessa maneira uma proposta de atuação junto à comunidade
de haitianos, venezuelanos e marfinenses, que prioriza a língua não como um valor de
"ascensão social" ou de "modelo superior" a ser alcançado, aprendido, mas sim como
um caminho para promover o autoconhecimento, desfazer estereótipos, construir
interculturalidades, ou seja, participar do processo de promoção da cidadania, de
maneira que a língua atue como fator de inclusão.
Neste relato de experiência, portanto, apresento algumas propostas
desenvolvidas no projeto de extensão “O ensino de Língua portuguesa para migrantes
em Caçador/SC” e me alio à linguística aplicada indisciplinar, de Moita Lopes (2006),
que concebe o uso da língua em contextos sociais. Nesta mesma perspectiva, parto do
princípio de que ensinar é um ato político, conforme expõe Paulo Freire (2011), por isso
qualquer proposta de intervenção social, precisa necessariamente ser participante em
uma concepção de educação em que ambos, educador e educando, partilhem juntos uma
prática humanizadora.

2.1 Apresentando o projeto

O projeto de extensão “O ensino de Língua portuguesa para migrantes em


Caçador/SC” caracteriza-se pela oferta de atividade de ensino de língua portuguesa para
migrantes e refugiados. Ao longo do tempo, a partir de demandas da Associação de
imigrantes de Caçador (AIC), do referido município do meio-oeste catarinense, e da
Cáritas Diocesana, também de Caçador, vem-se conjugando esforços no sentido de
contribuir para a integração daqueles participantes na região. Assim, nosso objetivo,
neste artigo, é o de relatar de que forma o projeto vem contribuindo de maneira
dialógica para a construção de proposta de extensão no IFSC.
A proposta desse projeto nasceu de um contato entre a equipe da AIC e a Cáritas
Diocesana, que atua no acolhimento dos migrantes na cidade, com a equipe da
coordenação de extensão do campus Caçador. A partir do encontro inicial, em junho de
2018, houve um desdobramento das negociações que culminaram em uma parceria para
a implementação de oficinas de língua portuguesa, ministradas pelo professor David
Severo, inicialmente, no espaço do próprio campus e, depois, em salas cedidas pela
igreja católica da cidade. Essa implementação contou com a submissão de propostas de
extensão e aprovação em editais do IFSC, o que possibilitou a captação de recursos
financeiros para a aquisição de materiais didáticos para os participantes e uma bolsa
para estudante do campus atuar como bolsista.
Devido à alta demanda e aos resultados positivos do projeto, em 2019,
expandiram-se as atividades para outra unidade, a saber, o Centro Educacional Marista
(CESMAR) de Caçador, que ficava mais próximo do contingente de migrantes que
vinham morar na cidade. Assim, em vez de os participantes se deslocarem para o
campus (que fica em local afastado da cidade), procuramos nos aproximar da
comunidade, a fim de conhecer mais a sua realidade e proporcionar a permanência dos
migrantes até fim da extensão.
Cumpre registrar que no início da extensão utilizamos como referência o
primeiro volume do livro "Avenida Brasil", cujos objetivos, conforme explicitam os
próprios autores, destacam o aprendizado da língua portuguesa falada no Brasil, seja
com o objetivo de viver no país, desempenhar uma atividade profissional, seja
conquistar a proficiência em um segundo idioma. No entanto, com o transcorrer dos
encontros, os próprios migrantes demonstraram insatisfação com o material didático,
porque o seu conteúdo era muito “gramatical” e os assuntos “estavam deslocados” da
realidade daquele público, conforme eles mesmos mencionaram em diálogos de sala de
aula.
Desse modo, direcionamos a perspectiva de abordagem para a escuta, a fim de
construir coletivamente uma proposta que atendesse aos interesses de acolhimento e
espaços de diálogos interculturais. Percebe-se, então, que a extensão começou a ser
produtiva a partir do momento em que se abriu mão de levar um conhecimento pronto, a
partir do livro didático, e deu-se espaço para uma postura dialógica.

2.2 Sobre o conceito de extensão universitária na perspectiva freireana e a linguística


aplicada

A proposição que trataremos aqui está embasada no livro de Paulo Freire


intitulado "Extensão ou comunicação" (1969), e nesta obra o autor faz uma provocação
sobre o conceito de extensão, que é o fato de que o pesquisador está estendendo algo a
alguém, numa concepção equivocada de que se leva um conhecimento para pessoas que
não sabem de nada. Paulo Freire questiona, neste contexto, a etimologia da palavra em
seu primeiro capítulo, do qual extraímos a seguinte citação:

Assim é que, em cada um dos contextos seguintes, a palavra extensão tem um


sentido específico: “Este escritório tem três metros de extensão.” “A cor tem
como essência a extensão do corpo.” “A extensão do termo extensão foi um
dos temas analisados na semana de estudos.” “A palavra estrutura que, por
sua etimologia, se ligou inicialmente ao arquitetônico, sofreu uma extensão
significativa e passou a ser empregada em economia, linguística, psicologia,
antropologia, sociologia etc.” “Pedro é agrônomo e trabalha em extensão.” O
sentido do termo “extensão”, neste último contexto, constitui o objeto do
nosso estudo. Mais do que em qualquer dos casos exemplificadores, o termo,
na acepção que nos interessa aqui — a do último contexto — indica a ação de
estender e de estender em sua regência sintática de verbo transitivo relativo,
de dupla complementação: estender algo a (Grifos do autor – FREIRE, 1969,
p. 10).

Ainda neste capítulo, o autor destaca o equívoco do termo extensão por várias
razões: primeiro por pressupor apenas a perspectiva de que alguém (geralmente o
pesquisador) "estende/leva" o conhecimento até outro alguém. A extensão aqui é mera
transmissão e, por vezes, uma invasão cultural; e depois porque esse equívoco traz um
viés domesticador, como se depreende de outro excerto:

E todos estes termos envolvem ações que, transformando o homem em quase


“coisa”, o negam como um ser de transformação do mundo. Além de negar,
como veremos, a formação e a constituição do conhecimento autênticos.
Além de negar a ação e a reflexão verdadeiras àqueles que são objetos de tais
ações. (FREIRE, 1969, p. 13).

Diante disso, Freire afirma que seria mais adequado que, se tivermos a intenção
de fazer transformação social, por meio desse processo de divulgar conhecimento, de
disseminar conhecimento da universidade à comunidade; então, seria interessante que se
fizesse isso de maneira comunicativa. Mas para o autor, qual é a diferença entre
extensão e comunicação?
Para fazer essa diferenciação, é importante evocar outra obra do autor, a
Pedagogia do oprimido (1987), na qual Paulo Freire discute as categorias de ação
antidialógica x ação dialógica no campo da educação popular, pois esta última é a que
se aproxima do conceito de comunicação.
O autor mostra que existem ações que são antidialógicas, na medida em que se
as pessoas precisam ser manipuladas ou segregadas para ser conquistadas, numa relação
vertical de interação, então, estamos diante de uma postura extensionista. Já o conceito
de ação dialógica se baseia em colaboração, união e organização para a síntese cultural.
Por outro lado, a invasão cultural, que Freire coloca na ação antidialógica, cabe na
extensão quando se entende que o conhecimento é levado da universidade até a
comunidade, no sentido de que nós sabemos o que as pessoas têm o que fazer, como se
elas mesmas não pudessem tomar as suas próprias decisões.
O conceito mais adequado, portanto, é o de comunicação, porque ele trabalha
com outra perspectiva, inclusive reconhecendo os saberes produzidos fora da
universidade, porque todos nós temos, segundo Freire, a vocação de saber mais:

Neste sentido, a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser o ato


de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir “conhecimentos”
e valores aos educandos, meros pacientes, à maneira da educação “bancária”,
mas um ato cognoscente. Como situação gnosiológica, em que o objeto
cognoscível, em lugar de ser o término do ato cognoscente de um sujeito, é o
mediatizador de sujeitos cognoscentes, educador, de um lado, educandos, de
outro, a educação problematizadora coloca, desde logo, a exigência da
superação da contradição educador-educandos. Sem esta, não é possível a
relação dialógica, indispensável à cognoscibilidade dos sujeitos
cognoscentes, em torno do mesmo objeto cognoscível (FREIRE, 1987, p. 57)

O fundamento desse processo é justamente o diálogo, defendido expressamente


por Paulo Freire; e um pressuposto necessário, de como devemos agir no processo de
intervenção social, é, segundo o autor, a amorosidade. Aliás, é de Freire a frase de que
“não há diálogo [...] se não há um profundo amor ao mundo e aos homens. Não é
possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há amor que
o funda [...]. Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo” (FREIRE,
1987, p. 79-80).
É importante enfatizar que, ao contrário do que se pode pensar, Freire não expõe
aqui um romantismo pueril, ou pensamento utópico para a educação, mas ele considera
o diálogo, expresso pela amorosidade, enquanto compromisso que se estabelece com as
pessoas, tendo realmente a crença de que elas podem e devem ser partícipe do processo
de transformação social.
Com efeito, depreende-se tanto de “Extensão ou comunicação” (1979) quanto de
“Pedagogia do oprimido” (1987) que é construindo o conhecimento coletivamente que
podemos desenvolver o pensamento crítico, a partir sempre dos contextos reais das
pessoas.
Assim, mesmo reconhecendo a crítica que Freire faz à palavra “extensão”,
sabemos que é ela que perdura ainda hoje quando se pensa no tripé ensino-pesquisa-
extensão. Desse modo, não se trata de uma mudança de vocabulário, mas de uma
postura epistemológica, ao pensar a extensão a partir de processos comunicativos, que
possibilite a aproximação dialógica entre a universidade e a comunidade externa.
Assim, quando optamos por não usar mais a perspectiva do livro de português
para estrangeiros, e passamos a ouvir os migrantes, podemos ter uma real noção do que
eles precisavam. Percebemos, desse modo, que a situação de vulnerabilidade que eles
expressavam era bastante heterogênea, seja porque eram de classe social diferente, com
grau de escolarização diferente, e que traziam consigo muito conhecimento
(escolarizado ou não escolarizado), seja também pela diversidade cultural, que precisava
ser valorizada em sala de aula.
Por isso, não dava para fazer a extensão voltada apenas para questões da língua
em si, mas precisávamos ensinar a língua em contextos mais reais, como por exemplo: a
ida a um supermercado; ao médico; o itinerário de ônibus na cidade; a conversa com o
empregador, ou seja, os migrantes reivindicavam uma concepção de língua como prática
social, que contemplasse situações do dia a dia, e que fosse uma possibilidade de troca
de conhecimento entre educador e educando.
Eu poderia ignorar o tipo de ensino de língua que os migrantes exigiam, qual
seja, aquele voltado para o pragmatismo do cotidiano, porque, em minha concepção,
essa prática parecia adequá-los à preparação para o mercado de trabalho, ou seja,
aprender rapidamente a língua oral para a inserção no trabalho. Mas também eu poderia
aproveitar essa oportunidade e problematizar as questões do mundo real, que faziam
parte das práticas sociais deles. É sabido, por exemplo, que muitos migrantes em
situação de vulnerabilidade social são submetidos a trabalhos degradantes no Brasil, por
desconhecerem a língua, as leis e seus direitos (MACHADO, 2016). A propósito, como
defende Moita Lopes

Essa visão parece crucial em áreas como a LA, que têm como objetivo
fundamental a problematização da vida social, na intenção de compreender as
práticas sociais nas quais a linguagem tem papel crucial. Só podemos
contribuir se considerarmos as visões de significado, inclusive aqueles
relativos à pesquisa, como lugares de poder e conflito, que reflete, os
preconceitos, valores, projetos políticos e interesses daqueles que se
comprometem com a construção do significado e do conhecimento. Não há
lugar fora da ideologia e não há conhecimento desinteressado ( MOITA
LOPES, 2006, p. 102).

Ainda nesse capítulo, Moita Lopes defende uma Linguística aplicada da


esperança, justamente porque ela focaliza "problemas do mundo real"
(KUMARAVADIVELU, 2006, p. 138), se subscreve dentro de uma visão voltada "às
práticas sociais" (MOITA LOPES, 2006, p. 23), em outras palavras, ela está engajada
com temas que são de relevância social.
Após abandonar o livro didático de português para estrangeiro, fizemos, em um
encontro, uma roda de conversa a partir canção “Canta, canta minha gente”, de
Martinho da Vila, momento no qual foi apresentada também a versão em francês “Cant
chant ça va” da mesma canção. A existência de uma versão francesa da música foi,
inclusive, o motivo de nossa escolha por ela, cujos versos iniciais são assim: “Canta,
canta, minha Gente / Deixa a tristeza pra lá / Canta forte, canta alto / Que a vida vai
melhorar”. O francês é a língua oficial do Haiti, juntamente com o crioulo haitiano.
Os cursistas gostaram bastante de ouvir as duas versões da música. Após esse
primeiro momento, abrimos um espaço de diálogo a partir da seguinte frase motivadora
dirigida a cada um: “O que faz (ou pode fazer) você feliz?”. Essa foi uma oportunidade
de nos conhecermos melhor e vermos a perspectiva que cada um tinha de sua estada no
Brasil e na cidade de Caçador/SC. Além disso, poderíamos dialogar sobre quais as
expectativas deles sobre a aprendizagem da cultura e da língua portuguesa, o que já
sabiam, o que gostariam de estudar.
Na verdade, estávamos interessados também em ouvi-los a fim de perceber o
nível que tinham de conversação em língua portuguesa, pois a turma era bastante
diversificada, pois enquanto uns tinham 1 ou 2 anos no país, outros estavam apenas 3
meses, por exemplo. Por isso, a primeira apresentação foi conduzida pelo coordenador
do projeto David Severo, seguida pela fala dos bolsistas: Augusto Leonel Ribeiro, Luiza
Bortoluzzi Casali e Gertha Pierre Louis (esta última sendo uma haitiana que vive há
bastante tempo no Brasil e ajudou a traduzir os diálogos, já que os haitianos, além de
falarem francês, se comunicam rotineiramente pela língua materna, o crioulo).
Quando foi o momento de os estrangeiros se apresentarem e responderem à
pergunta motivadora, obtivemos respostas bem interessantes. A maioria respondeu
positivamente à pergunta, ou seja, sentiam-se felizes. No entanto, eles destacaram
algumas coisas que ainda precisavam acontecer para que se sentissem realmente
realizados, como por exemplo: estar perto dos familiares (pois praticamente todos
tinham deixado algum membro da família no Haiti), estabilidade financeira e conseguir
um emprego principalmente para as mulheres, pois a maioria delas encontravam-se
desempregadas.
Esta aula exigiu um nível de conversação bastante alto, por isso nem todos
conseguiram articular as frases em português. Contamos com a ajuda de Luiza
Bortoluzzi Casali, estudante do terceiro ano do integrado em Administração, que
domina muito bem o francês. A participação da bolsista foi fundamental, uma vez que
ela havia feito um intercâmbio na França em 2018 e pôde, agora, interagir melhor com a
língua francesa. Além de sua participação como tradutora, ela desenvolveu algumas
atividades de ministração de oficinas. Quem também estava presente às oficinas era a
haitiana Gertha, a qual citamos anteriormente.
Neste primeiro encontro, despertamos para o interesse de que a palavra
motivadora que guiaria a nossa ação seria “trabalho”, vocábulo carregado de valores e
historicidade que precisávamos explorar nas aulas seguintes, dadas as ocorrências na
roda de conversa. A maioria dos participantes destacou a necessidade de trabalho para se
estabilizar no Brasil e sair da situação de vulnerabilidade na qual se encontravam.
A partir desse encontro, podemos elencar vários temas associados à palavra
geradora, os quais foram objetos de conteúdos estudados durante o projeto. No entanto,
para o recorte que faremos a seguir, destacamos apenas duas oficinas, conforme o
quadro que se coloca.

Quadro 1 – síntese de oficinas realizadas no projeto de extensão


TEMA: trabalho
Oficina: Objetivos:
Atuação profissional - Refletir sobre a inserção da mão-de-obra migrante
na sociedade brasileira;
- Reconhecer diferenças de gênero quanto à
inserção no mercado de trabalho;
- Escrever seu currículo ou planejar formas de
divulgar o próprio trabalho
Oficina: - Identificar características de um trabalho decente
Direitos trabalhistas no Brasil - Conhecer alguns direitos trabalhistas no Brasil
- Informar-se a respeito da obtenção da Carteira de
Trabalho
- Fazer uma denúncia sobre exploração do trabalho
Fonte: elaborado pelo autor

As oficinas foram unidades temáticas nas quais procuramos concentrar aulas


diferentes para cada objetivo traçado, a partir de sugestões dadas pelo grupo.
A oficina temática intitulada “Atuação profissional” procurou abrir espaço para
que os migrantes pensassem sobre seus próprios horizontes profissionais no Brasil,
porque nem sempre eles conseguiam exercer aqui a atividade laboral de seu país de
origem. Em outro encontro, trouxemos dados do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA), os quais demonstravam as áreas de trabalho em que vários grupos de
migrantes atuavam no período de 1998 a 2014, antes de migrarem para o Brasil. A partir
disso, podemos constatar semelhanças e diferenças na presença de homens e mulheres
no mundo do trabalho. A título de exemplo, percebemos que seja no Brasil, seja nos
outros países, não foi registrada a presença de homens trabalhando com serviços
domésticos. Geralmente esse tipo de trabalho é colocado para as mulheres migrantes,
que têm dificuldades de se integrarem em outros setores da vida econômica. Quando
elas conseguiam, geralmente as oportunidades de trabalho eram com serviços gerais ou
de empregada doméstica. Do público com os quais desenvolvemos as atividades, 8 em
cada 10 migrantes estavam desempregadas. Por fim, na última aula dessa oficina,
tivemos a oportunidade de ler e aprender sobre o currículo profissional, além de
produzir e imprimir o seu próprio texto para divulgação.
Um episódio curioso que motivou a produção da oficina sobre os direitos
trabalhistas no Brasil foi a inquietação provocada por um participante que me procurou
após a aula para se informar sobre um desconto indevido em seu contracheque. Nesse
momento, tive receio de fazer alguma intervenção que viesse colocar em risco,
inclusive, a empregabilidade do migrante. No entanto, não poderia deixar passar a
oportunidade de problematizar a questão, ao menos em tese, por considerar que todo ser
humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe
assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade
humana.
Assim as aulas foram ministradas no sentido de: reconhecer as características de
um trabalho decente; compreender os direitos trabalhistas (remuneração adequada,
férias, proteção social, segurança, carteira assinada etc); entender melhor outros direitos
garantidos pela CLT, como a carteira de trabalho; além de conscientizar sobre o
problema das condições irregulares de trabalho que podem ser denunciadas aos órgãos
competentes.
Essa síntese aponta para o fato de que tais oficinas foram uma oportunidade de
colocar a questão do trabalho em ênfase sob outra perspectiva, a fim de abrir espaço
para a discussão do grupo.
Em minha interação com os migrantes, procurei considerar que a educação
problematizadora preocupava-se com esta possibilidade de articular o pensar verdadeiro
(para usar uma expressão de Paulo Freire) com a reflexão que proporciona o
desvelamento do mundo, pois “Finalmente, não há o diálogo verdadeiro se não há nos
seus sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar crítico. Pensar que, não aceitando a
dicotomia mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrantável solidariedade.”
(FREIRE, 1987, p.114).
Nos círculos de debate que ocorria no interior da extensão, parafraseando Freire,
procuramos conduzir as oficinas de modo que elas fossem momentos constituídos como
um espaço em que os educandos fizessem o uso da linguagem/palavra para viabilizar os
conteúdos ao tempo em que provocassem reflexões sobre o mundo deles próprios numa
tentativa de questionamento sobre a posição social destes enquanto oprimidos. Desse
modo, ensinar é um ato político, insistamos nisso, em que pensamento se torna uma
ação concreta sobre o ser/estar no mundo. É um ato político também quando se refere à
“leitura do mundo” viabilizada pela educação, pois “A leitura crítica do mundo é um
que-fazer pedagógico-político indicotomizável do que-fazer político-pedagógico, isto é,
da ação política que envolve a organização dos grupos e das classes populares para
intervir na reinvenção da sociedade.” (FREIRE, 2000, p. 21).
Moita Lopes e Fabrício (2019), tecendo reflexões sobre as perspectivas de uma
pedagogia crítica a partir da linguística aplicada, vai ao encontro do pensamento
freireano que captura a postura do educador crítico na luta para provocar mudanças
sociais a partir de suas atitudes em sala de aula, mesmo em espaço de educação popular,
como a extensão. Segundo os linguistas, cabe ao educador a tarefa de despertar a visão
crítica nos educandos: “o questionamento de tal visão encontra-se no centro de uma
abordagem crítica que se proponha a abrir mão de certezas epistemológicas em direção
ao enfrentamento dos múltiplos acasos que constituem a vida social” (MOITE LOPES;
FABRÍCIO, 2019, p. 717).

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, procuramos relatar ações com projeto de extensão que tem
possibilitado experiências importantes para os migrantes, situados na cidade de
Caçador/SC, por meio de oficinas de ensino e aprendizagem da língua portuguesa como
prática social.
Com isso, constatamos que a extensão universitária pode ser um caminho aberto
para interagir com as demandas que surgem na sociedade, a partir de processos
educativos de grupos humanos marginalizados ou que vêm ao país em situação de
vulnerabilidade social, com os migrantes e refugiados. Neste sentido, destaca-se a
contribuição da linguística aplicada, em nosso caso particular, não no sentido de fazer
intervenção para solucionar questões de linguagem, mas para problematizá-las.
Acreditamos que a proposta vem transformando-se em um espaço colaborativo,
em que a perspectiva da extensão universitária está aberta a ouvir a demanda da
sociedade, a fim de construir coletivamente o conhecimento, garantindo a possibilidade
de uma ação reflexiva entre educador e educando.

4 REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

______. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

______. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo:


Editora Unesp, 2000.

______. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2011.

MOITA LOPES, L. P. Linguística Aplicada e vida contemporânea: problematização dos


construtos que têm orientado a pesquisa. In: MOITA LOPES, L. P. (org.) Por uma
linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.

FABRICIO, B. F. ; MOITA LOPES, L. P.; Por uma proximidade crítica nos estudos em
Linguística Aplicada. Calidoscópio, v. 17, p. 711−723, 2019.

KUMARAVADIVELU, B. A Linguística Aplicada na era da globalização. In: MOITA


LOPES, L. P. (org.) Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola
Editorial, 2006.

MACHADO, R. C. Imigrantes e o mercado de trabalho no Brasil: segmentação entre


brasileiros e estrangeiros e o impacto da língua materna. 2016. 88 f. Dissertação
(Mestrado em Economia) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2016. Disponível
em: ttps://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/6661. Acesso em: 27 jul 2023.

ZENI, K., FILIPPIM, E.S. Migração Haitiana para o Brasil: Acolhimento e Políticas
Públicas. Revista Pretexto, ano 2014 - abr./jun, Belo Horizonte: v. 15, n. 2, p. 11 – 27.
Disponível em: http://revista. fumec.br/index.php/pretexto/article/view/1534. Acesso
em: 20/04/2021.

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