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Refúgio,

Migrações e
Cidadania
©ACNUR / Zalmaï

Caderno de Debates 5 Andrés Ramirez


Antonio Guterres
Novembro de 2010 Carlos Alberto Dias
Cyntia Sampaio
Gláucia de Oliveira Assis
John K. Bingham
Scott Leckie
Sueli Siqueira
Refúgio,
Migrações e
Cidadania

Na Malásia,
30 refugiados
da etnia Chin
dividem uma
mesma moradia,
e transformam
a varanda em
quarto para
conseguir mais
espaço.

Caderno de Debates 5 Andrés Ramirez


Antonio Guterres
Novembro de 2010 Carlos Alberto Dias
Cyntia Sampaio
Gláucia de Oliveira Assis
John K. Bingham
Scott Leckie
Sueli Siqueira
ISSN

Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados

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Cadernos de Debates Refúgio, Migrações e Cidadania, v.5, n.5 (2010).


Brasília: Instituto Migrações e Direitos Humanos.

v.1, n.1 (2006)


Anual:
ISSN: 1984.2104

1. Direitos Humanos - Periódicos 2. Migrações - Periódicos 3. Refugiados - Periódicos

CDU 341.231.14 (05)


Editor Responsável
Instituto Migrações e Direitos Humanos

Conselho Editorial
Andrés Ramirez
Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto
Márcia Anita Sprandel
Roberto Marinucci
Rosita Milesi

Coordenação Editorial
Guilherme Soares Fontes (IMDH)
Luiz Fernando Godinho (ACNUR)
William César de Andrade (IMDH)

Coordenação de produção
Supernova Design

Projeto gráfico
Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH)

Diagramação
Supernova Design

Tiragem
2 mil exemplares

Impressão
Gráfica Coronário

As informações expressas nos artigos são de responsabilidade dos autores e não refletem,
necessariamente, a opinião do ACNUR, do IMDH, ou do Conselho Editorial do Caderno. Esse
Caderno aceita contribuições de autores interessados em publicar seus trabalhos. Todos os
artigos não encomendados serão encaminhados ao Conselho Editorial, a quem cabe a decisão
final sobre sua publicação.
Índice

7 Apresentação:
Atuais desafios dos atores humanitários
Andrés Ramirez

11 A proteção das populações de atenção do ACNUR


em ambientes urbano
Antonio Guterres

17 Programa brasileiro de reassentamento solidário:


evolução e reflexões para seu fortalecimento
Cyntia Sampaio

37 Priorizando Necessidades: uma abordagem baseada


em direitos para as Migrações Mistas
John K. Bingham

55 As múltiplas faces do retorno à terra natal


Sueli Siqueira
Gláucia de Oliveira Assis
Carlos Alberto Dias

73 Mudanças Climáticas e Deslocamentos: implicações


sobre os direitos humanos
Scott Leckie
Caderno de Debates – Novembro 2010

©ACNUR/Zalmaï
Mãe e filho Colombianos na cidade de Medelín. Através de ação conjunta entre o ACNUR e o Governo, mais
de 3 milhões de Colombianos receberam o seu Cartão de Identificação.

Atuais desafios dos atores humanitários

Andres Ramirez1

A publicação que o leitor tem em mãos contém uma seleção de artigos de


grande atualidade sobre refugiados e migrantes, tratados em suas complexas
dimensões por especialistas e autoridades amplamente reconhecidos nesta
matéria. Estes artigos dão conta, sem dúvida, dos principais desafios que os atores
humanitários vêm enfrentando nos anos recentes. De igual maneira, todos estes
temas se desenvolvem captando processos cujas tendências atuais nos indicam,
com toda nitidez, que seguirão se consolidando e se aprofundando no futuro.
No primeiro artigo, António Guterres, Alto Comissário da ONU para
Refugiados, oferece uma explicação sobre os mais importantes aspectos da
proteção internacional em zonas urbanas, tomando como princípio o fato de
que no mundo, atualmente, a maioria dos refugiados se encontra em cidades

1. Representante no Brasil do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).

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Caderno de Debates – Novembro 2010

– de pequeno, médio e grande porte – o que levou o ACNUR a elaborar uma


política coerente e ampla sobre as características de proteção dos refugiados
nestas condições. Em seu artigo, o Sr. Guterres expõe, de maneira sintética,
as grandes linhas desta política. É interessante ressaltar que o componente
“Cidades Solidárias”, do Plano de Ação do México, de dezembro de 2004, já
vislumbrava elementos essenciais desta política urbana do ACNUR e, sem
dúvida, representou um aporte fundamental da região latino-americana à
posterior elaboração desta política, em nível mundial.
Os conflitos prolongados que o mundo sofre hoje estão criando uma situação
complexa que impede que a melhor solução duradoura para refugiados, a repatriação
voluntária, seja implementada no mesmo nível de décadas anteriores. Esta situação
especialmente complicada faz com que o reassentamento tenha uma importância
maior, como solução duradoura e ferramenta de proteção internacional. Neste
contexto geral e no marco mais específico do Plano de Ação do México, a especialista
em reassentamento no Brasil, Cyntia Sampaio, demonstra no segundo trabalho do
presente Caderno as linhas gerais deste processo que, na região latino-americana,
é conhecido como reassentamento solidário em países emergentes. O Brasil é,
claramente, um dos protagonistas desta interessante prática, e o trabalho tripartite
entre governo, sociedade civil e ACNUR representa um modelo digno de estudo,
a fim de reconhecer que os desafios para garantir a integração plena de refugiados
reassentados, sobretudo os extracontinentais, não são pequenos.
No terceiro ensaio desta publicação, o Diretor de Políticas da Comissão Católica
Internacional das Migrações (ICMC, na sigla em inglês), John K. Bingham, busca
decifrar algumas das complexas relações que se desenvolvem cada vez mais dentro
dos movimentos migratórios no mundo globalizado contemporâneo. Partindo
de uma visão ampla, totalmente de acordo com a organização que representa, o
autor descreve alguns dos elementos essenciais dos fluxos mistos de refugiados
e migrantes englobados em uma mesma corrente migratória. Neste sentido,
conforme explica o Sr. Bingham, o maior desafio da ampla frente de organizações
que lida com este tema consiste em elucidar a multi-dimensionalidade do problema
para enfrentá-lo de maneira efetiva e com base nas diferentes necessidades das
pessoas. Em relação ao ponto anterior, o autor cita como exemplo ilustrativo o

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Caderno de Debates – Novembro 2010

chamado “Drive Referral”, mecanismo que busca examinar a prática existente,


analisar os vazios e formular recomendações aos principais atores humanitários
para dar respostas efetivas aos fluxos mistos de pessoas que chegam à Grécia,
Itália, Malta e Espanha, em embarcações e por outros meios. Por outro lado, o
ensaio sublinha a importância da estratégia do ACNUR, conhecida como Plano de
Ação de 10 Pontos, que tem como orientação melhorar a proteção e a assistência
a refugiados e solicitantes de refúgio em situações de fluxos migratórios mistos.
Em sua conclusão, o ensaio destaca a importância de compreender que o tema
migratório deve ser abordado sob o enfoque da responsabilidade compartilhada,
baseada nos direitos e nas necessidades dos migrantes e refugiados.
Sueli Siqueira, Gláucia de Oliveira e Carlos Aberto Dias, acadêmicos brasileiros,
dedicam seu trabalho a analisar os principais desafios que os migrantes enfrentam
ao retornar para seu país de origem. Referindo-se especialmente ao caso do
Brasil, são destacados os desafios surgidos com o retorno temporário, aquele em
que o migrante tem o país de destino como seu local de moradia – neste caso os
retornados encaram enormes dificuldades para se readaptar ao seu próprio país
– e aqueles relacionados ao retorno permanente – no qual o migrante consegue
reintegrar-se com êxito na sociedade brasileira. A análise se detém igualmente
em elucidar algumas das contradições que emergem entre o casal, tanto no caso
das mulheres que permanecem no Brasil como daquelas que migram e que, com
renda relativamente melhor, passam a ter maior autonomia. Os autores concluem
o ensaio ressaltando o drama vivenciado pelas pessoas que, ao perderem seus
vínculos, têm dificuldade em reconhecer como seus os lugares de origem. Há
também as enormes complicações da readaptação, o que inclui a culpa pela
ausência e as mudanças tanto dos que partiram como dos que permaneceram – o
que torna o retorno um processo prolongado e doloroso.
Finalmente, o diretor da organização Diplacement Soluctions, Scott Leckie,
apresenta uma análise na qual desenvolve um enfoque integral relacionado às
mudanças climáticas, aspecto de grande atualidade, resultado do aquecimento
global. O artigo enfatiza a necessidade de se desenvolver marcos institucionais para
as comunidades ameaçadas por inundações derivadas das mudanças climáticas,
com base na experiência de exemplos bem sucedidos de alguns países, que podem

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Caderno de Debates – Novembro 2010

servir de modelo para outras nações sob grave risco de inundações. Enquanto,
com razão, o autor urge aos Estados que examinem de maneira sistemática as
implicações de incorporar estes aspectos em sua legislação, o Sr. Leckie provoca
o ACNUR sobre a importância de ampliar seu mandato. Mesmo reconhecendo
que a modificação da Convenção de 1951 pode não dar resultado, o autor propõe
um novo protocolo para a Convenção, que leve à adoção de uma nova normativa
internacional para esta matéria. Certamente, o ACNUR reconhece a importância
de promover uma normativa jurídica internacional para dar proteção às vítimas
das mudanças climáticas que, até agora, estão marginalizadas de qualquer
instrumento do direito internacional. Isso, desde logo, não equivale à adoção de
um protocolo à Convenção de 1951, como propõe o autor.
Assim, nesta quinta edição do Caderno de Debates, publicação que o ACNUR
tradicionalmente edita em parceria com o Instituto Migrações e Direitos
Humanos (IMDH), os artigos produzidos por nossos colaboradores levam a
uma reflexão ampla sobre os movimentos migratórios (forçados ou espontâneos)
contemporâneos, no momento em que o ACNUR completa 60 anos de existência
e de atuação contínua em todas as partes do mundo. Mais que celebrar esta data
passageira, temos que aproveitar a oportunidade para refletir sobre o mundo
em que vivemos, as dinâmicas econômicas, políticas e sociais nas quais estamos
inseridos e como isso impacta a vida de todos nós. Neste contexto, a proteção
internacional e os direitos humanos são mais do que conceitos abstratos. Pelo
contrário, formam a base de uma prática cotidiana de organizações e indivíduos
espalhados pelo mundo que garantem a sobrevivência de muitas pessoas e
condições de vida mais digna para tantas outras.
A agência da ONU para refugiados foi estabelecida em 1950, como
conseqüência do deslocamento de cidadãos europeus após a Segunda Guerra
Mundial. Inicialmente, ganhou um mandato da Assembléia Geral da ONU com
validade de três anos. Seis décadas depois, os deslocamentos se tornaram mais
complexos, e o ACNUR cresceu ao ponto de estar presente em mais de 110
países, com um orçamento de US$ 2 bilhões de dólares em 2009 (contra US$
300 mil, no ano de sua criação). Com dois prêmios Nobel da Paz, o ACNUR está
consciente de que o século XXI continuará apresentando desafios humanitários

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Caderno de Debates – Novembro 2010

que necessitarão de uma resposta coordenada e um comprometimento global


de instituições, povos e Estados.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

©ACNUR / P. Sands
Refugiado iraquiano em Amã, na Jordânia. Mais de dois milhões de iraquianos já deixaram seu país, refugiando-se
em centros urbanos em diferentes partes do mundo.

A proteção das populações de atenção do


ACNUR em ambientes urbanos

António Guterres2

A urbanização é uma tendência irreversível. Um número cada vez maior das


pessoas que atendemos – refugiados, repatriados voluntários, deslocados internos
e apátridas – residem em cidades e, portanto, necessitamos adequar nossas
políticas a esta situação.
É extremamente difícil calcular com exatidão o número real de refugiados,
deslocados internos, retornados e apátridas nas áreas urbanas. Damasco e Amã,
entre outras, receberam mais de um milhão de iraquianos, constituindo o mais
dramático exemplo, embora não único, de populações deslocadas em grande
escala nas áreas urbanas. Estima-se que Cartum tenha recebido 1,7 milhões
de pessoas deslocadas e refugiadas. Abidjan e Bogotá absorveram milhares de

2. Alto Comissário da ONU para Refugiados.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

vítimas de conflitos armados, superlotando bairros que já contavam com serviços


muito precários. Antigos refugiados que voltaram do Irã e do Paquistão, junto a
outros deslocados devido à violência nas áreas rurais do Afeganistão, juntaram-
se a um número ainda maior de pessoas que migraram para Cabul por motivos
econômicos, dentre outros, provocando que sua população tenha se multiplicado
várias vezes desde 2001.
A urbanização é certamente um fenômeno global, com efeitos localizados.
Esta é uma questão que preocupa cada vez mais as autoridades locais e os governos
centrais, assim como as organizações humanitárias e de desenvolvimento.
As administrações municipais se transformaram em atores da linha de frente.
Necessitam de um sólido apoio das organizações nacionais e internacionais, bem
como de maior envolvimento da comunidade de desenvolvimento.

Melhorar nosso foco de atenção


A experiência do ACNUR com refugiados, deslocados internos, repatriados
e apátridas nas cidades não é nova. O que é novo é o reconhecimento de que as
cidades serão, cada vez mais, o cenário principal de uma resposta humanitária
às necessidades da população. Para realizarmos nossa missão de maneira efetiva,
precisamos melhorar nosso desempenho nos ambientes urbanos e reciclar nossa
abordagem, com maior foco nas parcerias e prestando especial atenção ao papel
das autoridades locais.
O dilema dos refugiados e de outras pessoas de nossa atenção em áreas urbanas
não pode ser tratado isoladamente. Ao contrário, é necessária uma resposta
que abranja um contexto mais amplo do que o da população urbana pobre.
A comunidade humanitária deve reavaliar seu paradigma de assistência nas áreas
urbanas. Os atores humanitários neste âmbito devem determinar a melhor forma
de apoiar as iniciativas baseadas na comunidade e traçadas de baixo para cima.
Não queremos limitar o trabalho dos atores de desenvolvimento, mas queremos
estimular seus esforços e coordenar nossas atividades com as deles. Precisaremos
trabalhar exaustivamente com os governos, as autoridades locais e através das
Equipes da ONU para fortalecer a conscientização de que a mitigação da pobreza,
a redução dos riscos por desastres, a remoção de assentamentos informais e

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Caderno de Debates – Novembro 2010

iniciativas similares devem responder às necessidades de toda a população urbana


marginalizada, inclusive as pessoas de atenção do ACNUR.
Se quisermos que nossos esforços alcancem o impacto desejado, não podemos
olhar estas populações separadamente das comunidades locais. Somente seremos
bem sucedidos se adotarmos uma abordagem global, que leve em consideração os
direitos tanto dos deslocados quanto de seus anfitriões.

Parcerias e prioridades
As deliberações ocorridas no Diálogo do Alto Comissário sobre os Desafios
em Matéria de Proteção, realizado em dezembro de 2009, em Genebra,
enfatizaram a necessidade de parcerias sólidas. É claro que os governos
centrais continuarão a ser os principais parceiros, como Estados signatários
da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, da recente Convenção
para a Proteção e Assistência das Pessoas Deslocadas Internamente na África
e outros instrumentos internacionais relevantes, assim como autores da
legislação nacional, marcos estratégicos e políticos com os quais trabalhamos.
Igualmente as autoridades locais são absolutamente essenciais e devem ser
muito mais integradas à articulação das estratégias e das políticas. Nossos
parceiros tradicionais – ONGs, a Cruz Vermelha e a Media Luna Roja têm um
papel importante a desempenhar, assim como a sociedade civil, especialmente
os líderes comunitários locais, as organizações religiosas e outros grupos que
promovam a coesão social.
O elemento central de todas as nossas discussões no Diálogo foi como criar,
aprofundar e expandir o espaço de proteção para as pessoas de nossa atenção
nas cidades. Isto inclui enfatizar os marcos legais e o reconhecimento de direitos,
onde ainda há muito a ser feito como, por exemplo, promover a ratificação dos
instrumentos internacionais, a supressão de reservas e o estabelecimento de uma
legislação nacional sobre proteção. Para tanto, é necessária uma abordagem bem
fundamentada e diferenciada, já que há muitos países que ainda não ratificaram
a Convenção de 1951, mas que adotaram políticas sensíveis a este respeito e,
em alguns casos, até mais progressistas do que alguns Estados que ratificaram
a Convenção.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

Os participantes do Diálogo enfatizaram reiteradamente algumas observações.


Primeiramente, devemos evitar construir estruturas paralelas para a prestação
de serviços e assistência, especialmente para abrigo, educação e saúde. Em segundo
lugar, devemos lutar por um compartilhamento eficaz das responsabilidades.
Os atores humanitários e de desenvolvimento devem se unir de maneira mais
significativa. O ACNUR não é um ator de desenvolvimento, mas tem um papel
catalisador, de defesa e apoio, a desempenhar, juntamente com os doadores, para
promover uma perspectiva de desenvolvimento voltada à comunidade.
A forma como agimos em relação aos que servimos é importante: devemos
garantir sempre que o trato seja humano e profissional. Precisamos trabalhar juntos
para evitar o assédio e as detenções injustificadas. Nossas deliberações enfatizaram a
importância da atitude da população local no combate à xenofobia, cujo crescimento
parece especialmente acentuado no mundo desenvolvido, mas que também
é preocupante nos países em desenvolvimento. Precisamos garantir respostas
adequadas contra comportamentos inaceitáveis, como é o tráfico humano, o estupro
e outras violações dos direitos humanos. E precisamos agir com severidade contra
as atividades criminosas, aumentando nossa eficiência na proteção às vítimas.
Muitos participantes do Diálogo comentaram sobre o registro, a documentação
e a determinação da condição de refugiado. É necessário ter em mente que os
refugiados e outras pessoas deslocadas não agirão contra seus próprios interesses.
Se, por exemplo, eles acharem que se registrar é um risco e não um benefício, eles
não se registrarão. Portanto, devemos tratar de garantir que os beneficiários vejam
o registro como algo útil para eles.
Outro aspecto chave do espaço de proteção é o seu acesso: o acesso à informação,
a redes de proteção e a serviços básicos, que assegurem aos refugiados e deslocados
o atendimento de suas necessidades fundamentais, assim como o acesso aos
mecanismos que favoreçam a auto-suficiência (formação, oportunidades de
emprego e microcrédito).

Próximos passos
É claro que a urbanização apresenta problemas diferentes entre os países
desenvolvidos e os países em desenvolvimento, assim como entre os países no

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Caderno de Debates – Novembro 2010

que se refere a leis, tradições e cultura. As necessidades de proteção têm natureza


específica e nossas políticas devem levar este fato em consideração. Contudo,
é igualmente importante reconhecer que há uma série de princípios comuns.
O principal entre eles é a adequação de uma abordagem baseada em direitos e
apoiada nas estratégias, políticas e medidas que almejamos.
De acordo com o Diálogo celebrado em Genebra, em dezembro de 2009, o
ACNUR adotará vários passos, como a seguir referimos, para colocar em prática
nossas propostas:

1. Rever a nova política do ACNUR sobre refugiados urbanos:


Em setembro de 2009, o ACNUR lançou uma nova política sobre a proteção
e soluções para os refugiados em áreas urbanas. A política reconhece que nem as
obrigações do ACNUR nem a de nenhum Estado deveriam estar condicionadas
à residência em campos de refugiados. A política enfatiza o fato de que as
responsabilidades do mandato do ACNUR em relação aos refugiados não são
afetadas nem condicionadas à sua localização. Isto permite tanto incentivar quanto
contribuir com o desenvolvimento progressivo dos marcos legais e políticos,
integrando os refugiados e outras pessoas atendidas em áreas urbanas no tecido
social das cidades de forma adequada e respeitosa de seus direitos. Revisaremos a
nova política para refugiados urbanos considerando o valioso debate ocorrido no
Diálogo de dezembro de 2009.

2. Atuar em favor dos Deslocados Urbanos:


Walter Kälin (Representante do Secretário-Geral para os Direitos Humanos
dos Deslocados Internos) e eu acordamos defender, juntamente com a ampla
comunidade humanitária, uma definição similar das políticas para pessoas que
vivem fora dos campos de refugiados e para os deslocados urbanos. Este deve
ser um esforço de cooperação com as Nações Unidas visto que não faz parte do
mandato do ACNUR a elaboração de tal política.

3. Realizar avaliações em tempo real:


Já avaliamos as atividades do ACNUR sobre os deslocados iraquianos em
áreas urbanas do Oriente Médio, visando especialmente Amã, Aleppo, Beirute

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Caderno de Debates – Novembro 2010

e Damasco3. Em 2010, vários de nossos escritórios intensificaram os esforços a


favor dos refugiados em ambientes urbanos, segundo a nova política do ACNUR.
Nós selecionaremos algumas cidades piloto para fazer avaliações em tempo real
desses programas e identificar as boas práticas para serem aplicadas ao ampliar a
política em 2011.

4. Coletar e intercambiar exemplos de boas práticas:


Concordamos em realizar um levantamento de boas práticas. Não se trata
de algo que possamos fazer sozinhos, e muito apreciaríamos as contribuições de
nossa rede de parceiros.

5. Incorporar uma nova política sobre refugiados urbanos:


Baseando-nos no relatório final do Diálogo, os resultados das cidades piloto
e o levantamento sobre boas práticas, vamos estabelecer uma nova política
sobre refugiados urbanos em nosso programa para 2011, buscando melhorar
continuamente nossa atuação de 2012 em diante. Em termos de recursos, é
necessário considerar tanto a dimensão interna – questão essencial de nossa
parte – quanto a externa, relativas basicamente à boa vontade dos doadores em
dar a devida atenção a esta iniciativa. Conclamamos os países doadores e nossos
parceiros a analisarem os desafios das populações deslocadas em ambientes
urbanos, fazendo uma abordagem global, onde os projetos de desenvolvimento
comunitário sejam administrados principalmente pelos mecanismos de
desenvolvimento em nível local.
Não é fácil enfrentar os desafios que nos apresenta o deslocamento urbano – e
não o conseguiremos se nos limitarmos às estreitas preocupações institucionais, se
não criarmos e fortalecermos as parcerias corretas, ou se acreditarmos que já temos
todas as respostas. Os responsáveis pelos planejamentos das cidades no mundo
todo estão inovando, experimentando e aprendendo. Devemos trabalhar com eles
e com as pessoas que atendemos, as quais geralmente nos lembram que o que elas
mais necessitam não é que lhe demos um peixe, mas que lhes ensinemos a pescar.

3. ACNUR ‘Surviving in the city’, julho de 2009http://www.unhcr.org/4a6dbdbc9.htm

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Caderno de Debates – Novembro 2010

© ACNUR / L.F.Godinho
Casal de refugiados palestinos reassentado no Brasil. O Programa de Reassentamento Solidário atende
aproximadamente 10% do total de refugiados acolhidos no Brasil

Programa Brasileiro de Reassentamento


Solidário: evolução e reflexões para seu
fortalecimento

Cyntia Sampaio 4

Definição de Reassentamento
O reassentamento está contemplado como uma das três soluções duradouras
identificadas pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados
(ACNUR) para solucionar o problema de proteção dos refugiados. Na ausência das
demais soluções duradouras, como a repatriação voluntária e a integração local,
o reassentamento torna-se a solução adequada. O reassentamento caracteriza-se
pela transferência de refugiados, que já se encontram sob a proteção de um país,

4. Assistente social graduada pela Universidade Federal de Pernambuco. Já trabalhou em ONGs


brasileiras e canadenses no atendimento a refugiados e solicitantes de refúgio. Atualmente, trabalha
como Assistente Sênior de Reassentamento do ACNUR Brasil.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

a um terceiro país pelo fato de sua vida, liberdade, segurança, saúde ou direitos
humanos fundamentais continuarem em risco neste país onde solicitaram e
receberam refúgio pela primeira vez.
Ao longo dos anos, o ACNUR vem trabalhando com o objetivo de sensibilizar
os países para o estabelecimento de programas de reassentamento que possam
brindar a proteção internacional aos refugiados em necessidade de reassentamento.
A adesão voluntária dos países a este chamado deve ser interpretada como um
ato de verdadeira generosidade e compromisso dos Estados. Atualmente, existem
24 países5 com programas regulares de reassentamento estabelecidos, cujas
características e critérios diferem consideravelmente, a depender de diversos
fatores como: recursos financeiros e humanos alocados; cotas anuais de recepção;
legislação em matéria de refúgio; solidez do programa de reassentamento como
política de Estado; aceitação e envolvimento da sociedade em geral no processo
de acolhida e integração; estágio de desenvolvimento da rede de proteção social
disponível para os demais cidadãos, entre outros.
Em seu relatório de Projeção das Necessidades Globais de Reassentamento
2011, o ACNUR estima que, no próximo ano, 805.535 pessoas necessitarão de
reassentamento. Em seguida, o mesmo relatório aponta que apenas 80.000 vagas
foram disponibilizadas pelos países que possuem o programa no ano de 2009.
Logo, temos uma estimativa de que a cada 100 refugiados em necessidade de
reassentamento, apenas 10 deles são reassentados por ano.

Uso estratégico do Reassentamento


Por definição, o uso estratégico do reassentamento é caracterizado pela
sua utilização com vista a maximizar os benefícios, direta ou indiretamente,
para além daqueles percebidos apenas pelos refugiados a serem reassentados.
Os benefícios resultantes do uso estratégico do reassentamento podem alcançar
outros refugiados, o país de primeiro asilo, outros países da região ou o regime

5. Argentina, Austrália, Brasil, Bulgária, Canadá, Chile, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos,
Finlândia, França, Holanda, Islândia, Irlanda, Japão, Noruega, Nova Zelândia, Paraguai, Portugal,
Reino Unido, Romênia, Suécia, República Tcheca e Uruguai.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

de proteção internacional em geral. Com o envolvimento ativo dos Estados, dos


refugiados e da sociedade civil, o reassentamento pode abrir caminhos para
promover a solidariedade e cooperação internacional.
O ACNUR vem utilizando sistematicamente o reassentamento de maneira
estratégica para ampliar a proteção de refugiados em escala global. Esses esforços
são empreendidos em várias negociações para melhorar as condições de proteção
no país de primeiro asilo, como por exemplo, mitigando o risco de refoulement6,
garantindo que os documentos de identificação adequados sejam expedidos para
os solicitantes de refúgio e refugiados, ou possibilitando o acesso do ACNUR a
refugiados que se encontram detidos. Em situações prolongadas de refúgio, o
uso estratégico do reassentamento vem sendo utilizado para promover outras
soluções duradouras, como por exemplo, a integração local.

Critérios do ACNUR para o Reassentamento


Faz-se oportuno esclarecer que o reassentamento não é um direito dos
refugiados, mas sim, uma possibilidade de solução duradoura quando as demais
deixam de existir, e que depende exclusivamente da concordância de países
receptores em abrirem suas fronteiras àquelas pessoas em necessidade de proteção
em um terceiro país. O reassentamento tem relação direta com necessidade de
proteção e não com a vontade de um indivíduo em ser reassentado.
Nos últimos anos as oportunidades de integração local nos países de primeiro
asilo se tornaram mais reduzidas e ainda existem países que não são signatários
dos instrumentos internacionais que brindam a proteção aos refugiados como a
Convenção de 1951 e seu Protocolo de 1967. Há outras situações, em que os países
oferecem apenas uma proteção temporária até que o refugiado seja recebido, o
mais breve possível, por outro país.
Diversos países podem encontrar dificuldades em absorver um grande fluxo
de refugiados sem que isto gere instabilidade econômica, social ou política. Não

6. Quando um Estado devolve um refugiado ou solicitante de asilo a um território onde a sua vida
ou liberdade seria ameaçada por motivo de raça, religião, nacionalidade, afiliação a um grupo social
específico ou por sua opinião política.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

é incomum a xenofobia da população local contra os refugiados. Os refugiados


podem sofrer também limitações no acesso ao emprego devido ao seu status
migratório e terem seus direitos mais elementares negados, como o de praticar
sua religião, ter acesso ao sistema de ensino e de se movimentar livremente pelo
território de acolhida.
Em casos assim, o reassentamento em um terceiro país figura como a única
solução duradoura disponível para os refugiados. Os critérios utilizados pelo
ACNUR para identificação de refugiados em necessidade de reassentamento
podem ser encontrados abaixo:

1) Necessidade de proteção legal e física: quando o refugiado sofre ameaça


de devolução ao país de origem ou de expulsão a outro país a partir de onde o
refugiado possa ser devolvido. Ou quando o mesmo sofre ameaça de prisão,
detenção ou encarceramento arbitrário. Ou ainda quando continua sofrendo
ameaça a sua segurança física ou aos direitos humanos no país de primeiro
asilo, em condição análoga à contida na definição de refugiado.
2) Sobreviventes de violência ou tortura: pessoas que sobreviveram a um
ato de tortura, em conformidade com a definição reconhecida na Convenção
sobre Tortura e Maus Tratos de 1984.
3) Necessidade de atenção médica: quando a vida desta pessoa corre
perigo devido a: a) ausência de tratamento médico adequado; b) risco
irreversível de perda de funções; c) estado de saúde o impede de viver uma
vida normal e ser auto-suficiente; d) país de primeiro asilo não oferece
tratamento adequado devido à falta de instituições médicas especializadas;
e) em caso de uma necessidade especial, o país de primeiro asilo não
oferece as condições para que a pessoa possa adaptar-se e desenvolver-se
de maneira satisfatória.
4) Mulheres em risco: mulheres refugiadas que enfrentam problemas
particulares de proteção em razão de gênero.
5) Reunião familiar: O ACNUR aplica parâmetros próprios na identificação
dos grupos familiares, porém cada país tem sua própria interpretação acerca
da matéria.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

6) Crianças e adolescentes desacompanhados: crianças e adolescentes que


se encontram separados de ambos genitores e de outros parentes e que não se
encontram sob os cuidados de qualquer adulto que, legalmente, ou de acordo
com o costume, tenha responsabilidade de fazê-lo.
7) Refugiados idosos: o reassentamento de idosos ocorre apenas no marco da
reunião familiar, tendo em conta os interesses e necessidades do idoso.
8) Refugiados sem perspectiva de integração local: para os refugiados que
não vislumbram a integração local no país de primeiro asilo devido à qualidade
de asilo oferecida e as perspectivas sociais inerentes a ele, como por exemplo,
a incidência de atos de xenofobia contra refugiados.

Primeiros passos no Reassentamento de Refugiados no Brasil


Diversas experiências de transferência de refugiados a um terceiro país podem
ser encontradas ao longo do século XX, iniciando na década de 1920 com os
cerca de 45.000 russos que buscaram refúgio na China após a Revolução Russa e,
posteriormente, foram reassentados em outros lugares. Contudo, o reassentamento
como é conhecido hoje, com o estabelecimento de convênio entre o ACNUR e os
países de reassentamento e estruturação de programas de acolhida, começou a
tomar forma a partir da década de 70, perante a crise vivenciada pelas centenas de
milhares de vietnamitas que fugiam do regime comunista em barcos pequenos e
frágeis, conhecidos como “boat people”.
No Brasil, o reassentamento já estava previsto desde a criação da Lei
9.474/97, expresso no Artigo 46 onde se lê: “O reassentamento de refugiados
no Brasil se efetuará de forma planificada e com a participação coordenada
dos órgãos estatais e, quando possível, de organizações não-governamentais,
identificando áreas de cooperação e de determinação de responsabilidades”.
Em 1999, é celebrado o Acordo Macro para Reassentamento de Refugiados
estabelecido entre o governo da República Federativa do Brasil e o Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, firmando os passos
iniciais em torno do reassentamento no país. Na descrição do seu objetivo, o
Acordo Macro reconhece que o “reassentamento é um instrumento importante
de proteção aos refugiados, na busca de soluções duradouras”.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

Historicamente, o Brasil se comprometeu a reassentar refugiados que se


enquadrassem nos seguintes critérios de reassentamento: 1) Necessidade de
proteção legal e física; 2) Mulheres em risco. Ao longo dos anos, constata-se
a tendência de ampliação dos critérios de reassentamento e, notadamente, a
análise de casos que se enquadram na categoria de refugiados sem perspectiva
de integração local.
O Acordo Macro vislumbra em seu texto a implementação de um projeto
piloto voltado para a recepção de refugiados originários da ex-Iugoslávia, porém,
a primeira experiência de reassentamento seria concretizada apenas três anos
depois. Fischel e Marcolini (2002) nos informam que em novembro de 2000, o
escritório Regional do ACNUR para o Sul da América do Sul localizado em Buenos
Aires contratou um consultor de reassentamento com o objetivo de planejar e
implementar os programas de reassentamento no Brasil, Chile e Argentina, tendo
em conta o estreito envolvimento dos respectivos governos e organizações da
sociedade civil organizada.
O ano de 2001 contou com duas atividades importantes para o desenho do
programa de reassentamento. Em março, houve uma missão do ACNUR às
cidades previamente selecionadas pelo Ministério da Justiça para a implementação
do projeto piloto, tendo em conta critérios como extensão geográfica, atividade
econômica e origem étnica da população. Em agosto deste mesmo ano, foi
realizado um seminário no Rio de Janeiro com a participação de representantes
do ACNUR, Governo Federal e ONGs.
Em abril de 2002, ocorreu a primeira experiência de reassentamento no Brasil
com a chegada de 23 refugiados afegãos vindos de um longo período de refúgio
na Índia e Irã. Devido à extinção das causas que geraram a fuga do país de origem,
muitos deles acabaram optando pela repatriação voluntária ao Afeganistão.
A segunda experiência piloto toma corpo levando em conta as reflexões advindas
da experiência com os afegãos e já passa a ter um desenho de programa com
procedimentos mais fortalecidos. Em setembro de 2003, 16 refugiados colombianos
foram reassentados no Rio Grande do Sul, provenientes da Costa Rica.
Estas duas experiências iniciais propiciaram uma série de reflexões válidas para
aprimorar o programa de reassentamento, possibilitando a superação de algumas

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Caderno de Debates – Novembro 2010

dificuldades iniciais. A seguir, alguns exemplos destas dificuldades: 1) A assistência


financeira oferecida pelo projeto era muito elevada, em relação à realidade econômica
do país. Isto não estimulou os refugiados a buscarem empregos durante o período que
recebiam assistência financeira e gerou muitas frustrações quando se viram obrigados
a procurar empregos com o encerramento do projeto. 2) O conhecimento incipiente
das instituições acerca das questões culturais e lingüísticas dos refugiados gerou uma
série da mal entendidos e dificuldades de comunicação neste primeiro momento
do projeto. 3) A ênfase dispensada ao estabelecimento dos procedimentos
operacionais postergou a necessidade um olhar estratégico voltado para questões
de integração dos refugiados a médio e longo prazo. 4) A ausência do escritório
do ACNUR no Brasil comprometeu a qualidade do monitoramento destas duas
experiências e dificultou uma contribuição mais ágil e efetiva na solução dos
entraves relativos à integração local.

Influências do Plano de Ação México


Em 2004, por ocasião das comemorações do vigésimo aniversário
da Declaração de Cartagena, foi promovida uma ampla reflexão sobre a
situação dos refugiados no mundo e particularmente na América Latina,
em virtude das crises humanitárias da região e dos desafios da integração
econômica dos refugiados. Como compromisso assumido neste encontro,
20 países da região assinaram a Declaração e o Plano de Ação do México,
instrumentos que reconhecem a responsabilidade dos Estados de garantir a
proteção internacional de refugiados, bem como a necessidade de cooperação
internacional na busca de soluções duradouras.
O Plano de Ação do México (PAM) consolida a estratégia dos governos,
do ACNUR e da sociedade civil para fazer avançar a proteção dos refugiados
no sub-continente pelos próximos anos e inova ao inserir formalmente o
conceito de solidariedade na agenda internacional. No marco do PAM, foram
identificados cinco objetivos, sendo eles: 1) Desenvolvimento Teórico, através
da promoção de estudos e pesquisas acadêmicas sobre a proteção dos direitos
humanos e dos refugiados no contexto latino-americano; 2) Fortalecimento
Institucional, através da capacitação e sensibilização de funcionários públicos

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Caderno de Debates – Novembro 2010

para garantir o acesso à proteção internacional de todos aqueles que dela


necessitem e da ampliação das relações com a sociedade civil, para melhorar
a recepção e assistência aos refugiados; 3) Cidades Solidárias, pela busca de
alternativas de auto-suficiência dos refugiados na sociedade de acolhida;
4) Fronteiras Solidárias, por meio do desenvolvimento das comunidades
localizadas nas zonas limítrofes às regiões em conflito, bem como da garantia
de proteção e assistência aos refugiados; 5) Reassentamento Solidário,
mecanismo de proteção que visa oferecer uma resposta humanitária efetiva ao
conflito na Colômbia.
Tendo em vista as lições aprendidas nos dois anos de implementação dos
projetos pilotos, o Governo do Brasil propôs a criação de um programa de
reassentamento regional voltado para solucionar os problemas dos refugiados
latino-americanos, no marco da solidariedade internacional e da divisão de
responsabilidades entre os países da região que recebem grandes fluxos de
refugiados, como Costa Rica, Equador, Panamá e Venezuela. Outros países,
como o Chile, Argentina, Uruguai e Paraguai, aderiram ao reassentamento
solidário no contexto regional e passaram a figurar como países receptores de
refugiados reassentados.
O programa de reassentamento brasileiro toma novo fôlego em 2004,
seguindo a reabertura do Escritório do ACNUR no Brasil, a capacitação de
novos atores envolvidos no programa de reassentamento e a melhoria dos
procedimentos em todas as etapas do processo, desde a missão de entrevista
realizada no primeiro país de asilo até o projeto de acolhida e integração na
sociedade brasileira.

Identificação e submissão de casos para o Brasil


Os refugiados em necessidade de reassentamento são identificados nos países
de primeiro asilo pelos oficiais de proteção do ACNUR. Os casos são apresentados
para apreciação dos países de reassentamento de acordo com o perfil e urgência,
e em alinhamento com o calendário das missões de entrevistas dos países em
questão. No caso do Brasil, existem dois procedimentos de avaliação dos casos
apresentados para reassentamento.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

O primeiro procedimento, e mais comum, é a avaliação através da missão


de entrevista. A missão de entrevista caracteriza-se pelo deslocamento de uma
delegação tripartite, formada pelo Governo do Brasil, sociedade civil (e.g. ONGs)
e ACNUR, ao país de primeiro asilo para realizar entrevistas com os refugiados
identificados para o reassentamento no Brasil e, também, para apresentar o
programa de reassentamento aos candidatos com todas suas prerrogativas e
características. Ademais, é apresentado um vídeo sobre o Brasil e os refugiados
interessados em serem reassentados no Brasil assinam um termo de adesão
voluntária ao programa.
Ao fim das entrevistas, a delegação brasileira discute os casos entrevistados e
decide pela recomendação positiva ou negativa dos casos com base na necessidade
eminente de proteção e potencial de integração das famílias. Estas recomendações
são apresentadas durante a primeira plenária do Comitê Nacional para Refugiados
(CONARE) posterior à missão de entrevista, e os membros, por maioria simples7,
decidem sobre a aprovação ou não dos casos. Os casos aprovados são informados
pelo ACNUR, quando, então, é dado início aos trâmites da viagem dos refugiados
ao Brasil. Aponta-se, como uma boa prática, o fato do Brasil não exigir atestado de
antecedentes criminais e/ou exames médicos anteriores à viagem. Estas práticas,
infelizmente, são comuns em alguns países de reassentamento e em muitos casos
possuem caráter tão restritivo que chega a inviabilizar o reassentamento. Os casos
não aprovados pela plenária do CONARE são encerrados, não cabendo recurso
de qualquer natureza.
Devido ao aumento no número de pedidos de reassentamento de colombianos
com graves problemas de proteção física ou legal no país de primeira acolhida, o
Brasil criou, em 2005, um procedimento de urgência que pudesse apreciar tais
casos. O procedimento de urgência – fast track – prevê que a análise dos casos seja
realizada pelo CONARE em até 72 horas desde sua apresentação pelo ACNUR.

7. De acordo com o artigo 14 de Lei 9.474, fazem parte do CONARE: Ministério da Justiça,
que o preside; Ministério das Relações Exteriores; Ministério do Trabalho e do Emprego;
Ministério da Saúde; Ministério da Educação; Departamento da Polícia Federal; Organização
não-governamental; Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), que
tem direito a voz, sem voto.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

Nestes casos emergenciais, a chegada ao Brasil pode ser viabilizada em apenas 10


dias após o deferimento do pedido.
Os oficiais de proteção do ACNUR nos países de primeiro asilo identificam
casos onde há risco eminente à segurança ou à vida de um refugiado e
encaminham os casos ao ACNUR Brasil que, por sua vez, os submete
eletronicamente para a coordenação executiva do CONARE. A coordenação
executiva é responsável pela comunicação do caso aos demais membros e
o deferimento deverá ser votado por unanimidade para ter validade. Esta
decisão não procede de uma missão de entrevistas por parte do Brasil. Na
ocorrência do indeferimento por algum dos membros, o caso negado pode ser
reapresentado na plenária seguinte do CONARE.
Destaca-se o pioneirismo do Brasil ao ser o primeiro e único país da América
Latina a estabelecer este procedimento de emergência. Até o fim de 2009,
aproximadamente 20% dos refugiados reassentados no Brasil se beneficiaram
deste importante mecanismo de proteção. Apenas um número limitado de
países possui programas especiais para aceitar refugiados para reassentamento
de emergência submetidos com base em dossiê. Em 2009, estes países eram:
Brasil, Dinamarca, Finlândia, Holanda, Noruega, Nova Zelândia e Suécia.
Países como a Austrália e o Canadá, em circunstâncias excepcionais e muito
determinadas podem avaliar casos emergenciais para reassentamento.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

fluxograma 1: Esquema de Análise dos Casos Apresentados

Identificação do caso para reassentamento

O SEU CASO
SIM NÃO
É URGENTE?
ATÉ 72 HORAS

Submissão Fast Track Submissão Normal

Consulta Eletrônica aos


Missão de Entrevista
membros do CONARE

NÃO
Aprovado? Plenária do CONARE

SIM

Viagem ao Brasil SIM Aprovado?


– ACNUR –

Recepção no
aeroporto NÃO

ACNUR apresenta
Documentação
caso a outro país

Integração Local
(Implementado pelas
ONGs parceiras)

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Caderno de Debates – Novembro 2010

Experiência Palestina
Mesmo com as experiências prévias realizadas em 2002 e 2003, o programa de
reassentamento brasileiro vem se consolidar de fato em 2004, inspirado pelo Plano
de Ação do México. O programa passa a ter um enfoque específico na questão do
conflito colombiano, priorizando a acolhida de refugiados desta nacionalidade
que se encontrem em outros países da América Latina. Desde então, o Brasil
reassentou 291 refugiados colombianos nos estados do Rio Grande do Sul, São
Paulo e Rio Grande do Norte.
Em 2003, o deslocamento forçado de palestinos gerou a criação de campos
de refugiados em uma região desértica próximo às fronteiras da Síria, Jordânia
e Iraque. A Síria e a Jordânia fecharam suas fronteiras sob a alegação de que não
possuíam condições de receber mais refugiados palestinos. Na impossibilidade
de acessar os territórios vizinhos e temendo o retorno ao Iraque, as pessoas se
instalaram nos campos de refugiados criados pelo ACNUR. Em 2003, o campo de
Ruweished foi criado neste contexto, abrigando cerca de 1.000 refugiados.
O ACNUR iniciou uma campanha de sensibilização junto aos países
árabes para o acolhimento desta população e algumas poucas demandas
foram atendidas. Esgotadas as possibilidades de uma solução duradoura no
mundo árabe, o ACNUR iniciou uma campanha de sensibilização junto aos
países tradicionais de reassentamento, notadamente, países como Estados
Unidos, Canadá, Austrália e países escandinavos. À medida que as missões de
entrevista destes países eram realizadas ao campo de Ruweished, iniciou-se o
esvaziamento do campo. Em 2007, o número de refugiados remanescentes no
campo foi reduzido para 107 pessoas. O ACNUR passou a apresentar os casos
de Ruweished a alguns países emergentes de reassentamento, e neste momento,
foi inciado um diálogo com o Chile e o Brasil para um possível reassentamento
deste grupo na América do Sul.
Sensibilizado com a precária condição de vida de 107 refugiados palestinos
que permaneciam no campo há cerca de 4 anos, sob as mais adversas condições
climáticas e de estrutura física e social, o Brasil decidiu, em caráter humanitário
e emergencial, acolher todo o grupo a fim de promover o simbólico fechamento

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Caderno de Debates – Novembro 2010

do campo de Ruweished. Destaca-se a boa vontade do Brasil em receber todas as


pessoas sem fazer qualquer distinção quanto à idade, nível educacional, doença
pré-existente, atestado de antecedentes criminais, etc.
Em seguida ao anúncio feito pelo Governo do Brasil, foi iniciado um processo
de orientação cultural sobre a realidade do país aos refugiados, ainda no campo,
enquanto aguardavam os trâmites da viagem. Em paralelo, o ACNUR em conjunto
com o CONARE e seus parceiros implementadores, identificou representantes da
comunidade árabe-palestina a fim de envolvê-los no acolhimento e inclusão dos
refugiados palestinos na sociedade brasileira. Neste ínterim, uma refugiada deu
a luz a uma criança ainda no campo de Ruweished, aumentando o tamanho do
grupo a ser reassentado. Assim, o grupo de 108 refugiados foi reassentado nos
estados do Rio Grande do Sul e de São Paulo, já que ambas localidades contavam
com parceiros implementadores experientes e com uma comunidade árabe-
palestina próspera e bem estabelecida.
A chegada dos refugiados palestinos ocorreu em quatro datas distintas, entre
os meses de setembro e novembro de 2007. Dentre os 44 núcleos familiares
iniciais que chegaram ao país, 20 núcleos foram reassentados nas cidades de
Pelotas, Rio Grande, Santa Maria, Sapucaia do Sul e Venâncio Aires, no estado
do Rio Grande do Sul, e os outro 24 foram reassentados na cidade de Mogi das
Cruzes, no estado de São Paulo. A composição dos dois grupos foi realizada
com base no grau de parentesco e afinidade dos refugiados, observados durante
o longo convívio no campo de Ruweished. Já a escolha das cidades para cada
núcleo familiar foi realizada de acordo com a oferta de serviços disponíveis e
articulações locais previamente estabelecidas para o atendimento das demandas
específicas de cada caso.
Desenhou-se um projeto de acolhida e integração adaptado às características
específicas do grupo, que contava com parâmetros diferenciados de assistência e
de metodologia, como por exemplo: duração do projeto superior ao projeto de
reassentamento dos colombianos, valor da assistência financeira um pouco mais
elevado, mais horas-aula de português, disponibilização de tradutores contratados
e voluntários, assistência odontológica particular.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

Papel dos parceiros implementadores


Os parceiros implementadores são ONGs que trabalham em parceria
com o ACNUR e CONARE na promoção da assistência e integração local de
refugiados. Mediante a disponibilidade de fundos provenientes de doações
voluntárias da comunidade internacional ao ACNUR para o financiamento
direto do Programa Brasileiro de Reassentamento Solidário, os parceiros
implementadores oferecem serviços de orientação cultural, assistência e
incidência política que podem ser traduzidos em atividades concretas que
variam em função das parcerias estabelecidas em cada localidade e da situação
sócio econômica de cada cidade/estado.
Os papéis dos atores envolvidos no programa de reassentamento brasileiro
podem ser contemplados no item 9.1 do Acordo Macro, onde se encontra que:

“O Governo do Brasil será responsável pela recepção e facilitará a


integração dos refugiados reassentados, contando com o apoio do ACNUR
e de organizações governamentais ou não governamentais. O ACNUR
contribuirá financeiramente com a integração dos refugiados por meio
de um projeto no qual se designará a entidade executora. Tal projeto será
executado por tal entidade, em coordenação com o ACNUR”.

A implemetação direta do programa vem ocorrendo desde 2002 com o apoio


de ONGs parceiras do ACNUR nos estados do Rio Grande do Sul, São Paulo
e Rio Grande do Norte. Notadamente, estes parceiros se utilizam da estratégia
da dispersão territorial ao reassentar famílias de refugiados em municípios de
pequeno e médio porte que oportunizam um acolhimento personalizado às
famílias, pelo fato da Administração local estar sensibilizada e envolvida com a
questão do refúgio.
Entre as atividades desenvolvidas pelos parceiros implementadores
estão: recepção dos refugiados no aeroporto; aluguel e preparação de
habitação temporária; orientação cultural e social (cidade/região/país,
legislação brasileira, direitos e deveres, uso da moeda local, identificação de
equipamentos públicos na região); aulas de português; auxílio na emissão de
documentos (e.g. RNE, CPF, Carteira de Trabalho) e abertura de conta bancária;

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Caderno de Debates – Novembro 2010

assistência financeira para compra de vestimentas, alimentação e utilidades


domésticas no momento da chegada; facilitação do acesso de estudantes às
escolas da rede pública; transferência do auxílio subsistência pelo período
de 12 meses; encaminhamento para serviços de saúde disponíveis na rede
pública; encaminhamento de interessados aos cursos de capacitação; apoio
na inserção no mercado de trabalho (elaboração de CVs, cadastro em bancos
de emprego, sensibilização do empresariado local); esclarecimentos quanto
ao reconhecimento de diploma e acesso ao ensino superior; encaminhamento
para serviços de psicologia e odontologia disponíveis na rede pública ou
parceiros locais, como universidades; orientação e auxílio para fortalecimento
de capacidades e pequenos empreendimentos, entre outros.
Todas as atividades dos parceiros implementadores são desenvolvidas em
estreita coordenação com ACNUR e CONARE. O objetivo último da integração
local é permitir que o refugiado possa restabelecer um sentimento de segurança
e alcançar a auto-suficiência social e econômica, satisfazendo suas necessidades
básicas após acabado o fim da assistência financeira disponibilizada em caráter
emergencial e temporário pelo ACNUR. A construção de um futuro no país
de acolhida, juntamente com o restabelecimento dos laços familiares e dos
vínculos com a comunidade e com os sistemas sociais, é o desejo de todas as
partes envolvidas no acolhimento dos refugiados. Como todo processo de
empoderamento, o refugiado é constantemente estimulado a assumir seu papel
de protagonista no processo de reconstrução de sua vida no Brasil. Ele, também,
é encorajado a se esforçar para usufruir, da melhor maneira possível, dos serviços
disponibilizados pelas instituições.
Para galgar a satisfatória integração no país e alcançar a auto-suficiência
econômica, os refugiados contam com uma gama de direitos, tais como: liberdade
de movimento em território nacional; acesso a documentos de identificação (RNE
e CPF); acesso a documentos diversos (carteira de trabalho, carteira de habilitação,
passaporte brasileiro para refugiados); estudar; exercer atividade remunerada;
obter propriedade mobiliária e imobiliária; obter propriedade intelectual e
industrial; associar-se em organizações sem fins políticos e lucrativos; sustentar
ações em juízo; solicitar visto de residência permanente após 6 anos de refúgio

33
Caderno de Debates – Novembro 2010

no Brasil; praticar livremente sua religião; escolher local de residência e retornar


voluntariamente ao país de origem.
Por outro lado, como todo estrangeiro residente no país, os refugiados possuem
deveres, frente à comunidade acolhedora, tais como: respeitar as leis brasileiras,
respeitar a ordem pública, manter sua documentação atualizada, solicitar autorização
de viagem ao CONARE para viagens ao exterior e esforçar-se para integrar-se na
sociedade brasileira, bem como, prover seu próprio sustento econômico.

Perfil da população reassentada no Brasil

Gráfico 1: Total de Chegadas por ano (Entre 2002 e 2009)


455

156

77 77
53
23 34
16 19

2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 Total

Fonte: CONARE/Junho 2010

Gráfico 2: Total de Chegadas por nacionalidade (Entre 2002 e 2009)

455

291

104

27 23
03 07

Colombiana Palestina Equatoriana Afegã Apátrida Outras Total

Fonte: CONARE/Junho 2010

34
Caderno de Debates – Novembro 2010

O reconhecimento da condição de refugiado é uma prerrogativa do Governo do


Brasil seguindo as orientações dos tratados internacionais de proteção de refugiados
dos quais é signatário. O reconhecimento desta condição é algo temporário que,
preferencialmente, será extinto pela transformação deste status para a condição de
residente permanente e posterior obtenção da cidadania brasileira. Contudo, há
situações que levam à cessação ou à perda da condição de refugiado.
Pelo Artigo 38 da Lei 9.474/97, a cessação da condição de refugiado ocorrerá
quando o estrangeiro:

I. voltar a valer-se da proteção do país de que é nacional ou;


II. recuperar voluntariamente a nacionalidade outrora perdida;
III. adquirir nova nacionalidade e gozar da proteção do país cuja
nacionalidade adquiriu;
IV. estabelecer-se novamente, de maneira voluntária, no país que abandonou
ou fora do qual permaneceu por medo de ser perseguido;
V. não puder mais continuar a recusar a proteção do país de que é nacional
por terem deixado de existir as circunstâncias em conseqüência das
quais foi reconhecido como refugiado;
VI. sendo apátrida, estiver em condições de voltar ao país no qual tinha sua
residência habitual, uma vez que tenham deixado de existir as circunstâncias
em conseqüência das quais foi reconhecido como refugiado.

Já as condições que implicam a perda da condição de refugiado estão expressas


no Artigo 39 da Lei 9.474/97, onde está previsto que a perda será aplicada na
ocorrência das situações abaixo:

I. a renúncia;
II. a prova da falsidade dos fundamentos invocados para o reconhecimento da
condição de refugiado ou a existência de fatos que, se fossem conhecidos
quando do reconhecimento, teriam ensejado uma decisão negativa;
III. o exercício de atividades contrárias à segurança nacional ou à ordem pública;
IV. a saída do território nacional sem prévia autorização do Governo
brasileiro. (ver Resolução Normativa 05/99)

35
Caderno de Debates – Novembro 2010

Quadro 1: Aplicação das cláusulas de cessação e perda (Entre 2002 e 2009)

Cessação ou perda do status de refugiado Númerao


entre os reassentados de pessoas
Cessação 32
Perda 16
Total 48
Fonte: CONARE/Junho 2010

Com a cessação e perda do status de refugiados reassentados tendo sido aplicadas


a 48 pessoas, acrescido do total de 6 falecimentos, o universo de reassentados vivendo
no Brasil em dezembro de 2009 foi reduzido para 401 pessoas.

Gráfico 3: Reassentados remanescentes no país por sexo (Entre 2002 e 2009)

55%

45%

Masculino Feminino
Fonte: CONARE/Junho 2010

Gráfico 4: Reassentados remanescentes no país por faixa etária


(Entre 2002 e 2009)
58%

24%
13%
4%

0-9 anos 10 - 19 anos 20 - 59 anos > 60 anos

Fonte: CONARE/Junho 2010

36
Caderno de Debates – Novembro 2010

Reflexões para o fortalecimento do Programa


É mister observar que após 8 anos do Programa de Reassentamento Solidário no
Brasil os desafios postos nas etapas iniciais já foram superados e que novas barreiras
precisam ser enfrentadas. Nos dias atuais, os maiores desafios do reassentamento
no Brasil possuem uma relação direta com a capacidade das instituições públicas
e privadas de promover as condições necessárias para um processo de integração
local satisfatório e sustentável. Discorrer sobre questões de integração relacionadas
aos refugiados reassentados no Brasil é a mesma coisa que falar sobre o processo de
integração local dos refugiados de primeiro asilo. Não há qualquer distinção entre a
busca de soluções para um grupo ou para o outro.
Neste sentido, faz-se imprescindível um acompanhamento minucioso da
realidade vivenciada pelos refugiados em seu cotidiano para subsidiar a identificação
dos entraves à integração local que se apresentam ao coletivo de refugiados, e
aqueles que se apresentam a casos específicos. O diálogo tripartite entre Governo
Federal, ACNUR e sociedade civil precisa ser permanentemente estimulado e as
estratégias de promoção da integração local devem ser desenvolvidas de modo
coordenado. Uma vez consolidados os procedimentos técnicos e operacionais
voltados à elegibilidade e documentação dos refugiados, o CONARE, através de sua
composição interministerial, é conclamado, pela realidade objetiva, a desempenhar
um papel mais ativo nas questões de integração dos refugiados.
Atualmente, existem diversas políticas públicas que não beneficiam os
refugiados porque seus mecanismos de acesso desconhecem esta condição
jurídica. Questões como o acesso de refugiados à moradia popular, Benefício
de Prestação Continuada, validação de diplomas e participação em concursos
públicos, tropeçam em entraves burocráticos ou mesmo normativos, em sua
maioria, pautados pelo desconhecimento e insipiência do ordenamento jurídico
referente ao refúgio no Brasil.
Dito isto, elenca-se um conjunto de ações estratégicas mais imediatas, e não
exaustivas em si, para tratar dos entraves, brevemente, mencionados acima. A saber:

- Redução no tempo mínimo de residência legal no país para que o refugiado


se torne apto a solicitar o status de residente permanente. Atualmente, este

37
Caderno de Debates – Novembro 2010

tempo mínimo é de 6 anos. Oportunidades valiosas como o acesso a crédito


habitacional e estudantil, são inviabilizadas devido ao status migratório.
- Inclusão de novos ministérios na composição do CONARE, nominalmente,
o Ministério das Cidades e o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate
a Fome.
- Participação das Secretarias Especiais ligadas à Presidência da República:
Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR),
Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) e Secretaria de Direitos
Humanos (SDH).
- Como previsto no item 9.2 do Acordo Macro, instituição de uma comissão
interinstitucional encarregada da recepção e integração local dos refugiados,
composta por representantes do CONARE, ACNUR, Governos dos Estados e
Municípios de reassentamento e ONGs envolvidas em aspectos operacionais
de integração de refugiados. A integração local dos refugiados deve ser
entendida como solução para todos os refugiados, sejam eles reassentados ou
de primeiro asilo.
- Estabelecimento de cotas anuais de reassentamento para estimular o contínuo
desenvolvimento do programa, além de possibilitar um planejamento mais
estratégico por parte das entidades financiadoras e implementadoras. Ao
contrário de outros países de reassentamento, o Brasil não estabelece cotas anuais
para a recepção de refugiados reassentados, atribuindo o número de novas
chegadas à disponibilidade de recursos financeiros doados pela comunidade
internacional, através do ACNUR, e à capacidade operacional dos parceiros
implementadores em articular serviços que facilitem a promoção da integração
local desta população.
- Busca de fontes alternativas de financiamento do programa de reas-
sentamento, sejam privadas ou governamentais, bem como, o desenho de
novas modalidades de implementação do programa, a exemplo de países
tradicionais de reassentamento como a Noruega e o Canadá a fim de assegurar
a sustentabilidade financeira, técnica e política do programa.

38
Caderno de Debates – Novembro 2010

Referência bibliográfica
ANDRADE, José H. Fischel e MARCOLINI, Adriana. A política brasileira de
proteção e de reassentamento de refugiados – breves comentários sobre suas
principais características. In: Revista Brasileira de Política Internacional. Ano 45
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ANDRADE, José H. Fischel de e Marcolini, Adriana. Brazil’s refugee Act: model
refugee law for Latin America? Forced Migration Review 12. Disponível em:
http://www.fmreview.org/FMRpdfs/FMR12/fmr12.13.pdf [acessado em 10/08/2010].
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Needs 2011. Junho de 2010. Disponível em: http://www.unhcr.org/refworld/
docid/4c5acc3e2.html [acessado em 15/08/2010].
UN High Commissioner for Refugees, Progress report on resettlement. Maio
de 2010, EC/61/SC/CRP.11. Disponível em: http://www.unhcr.org/refworld/
docid/4c5ac6942.html [acessado em 15/08/2010].
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International Handbook to Guide Reception and Integration. Setembro de
2002. Disponível em: http://www.unhcr.org/refworld/docid/405189284.html
[acessado em 05/09/2010].
UN High Commissioner for Refugees, Resettlement Handbook (country
chapters last updated September 2009). Novembro de 2004. Disponível em:
http://www.unhcr.org/refworld/docid/3ae6b35e0.html [acessado em 15/08/2010].
UN High Commissioner for Refugees, Strategic Use of Resettlement. Junho
de 2010. Disponível em: http://www.unhcr.org/refworld/docid/4c0d10ac2.html
[acessado em 15/08/2010].

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Caderno de Debates – Novembro 2010

©ACNUR / P. Taggart
Deslocados em North Kivu, na República D. do Congo. Nos últimos anos os movimentos migratórios têm se tornado
mais complexos e ‘mistos’, requerendo atenção especial na identificação das pessoas necessitadas de proteção.

Priorizando Necessidades: uma abordagem


baseada em direitos para as Migrações Mistas

John K. Bingham8
Comissão Católica Internacional das Migrações

Introdução
Hoje, uma em cada seis pessoas é migrante, seja dentro do seu país, seja em outro
país.9 De fato, somos um mundo de 214 milhões de migrantes internacionais10 e,
no mínimo, outros 740 milhões de migrantes internos.11
É difícil saber quantas pessoas se deslocam a cada ano – seja dentro um país
ou para o exterior - mas um relatório da ONU sugere: cada ano mais de cinco

8. Diretor de políticas da Comissão Católica Internacional das Migrações.


9. Johan Ketelers, Comissão Católica Internacional de Migrações, Mobility ‘slicing’ and fuller societal
response, conferência apresentada na Federação Internacional de Universidades Católicas, Bogotá,
Colômbia, Junho de 2010, disponível em www.icmc.net.
10. Departamento de Economia e Assuntos Sociais das Nações Unidas.
11. Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (UNDP); uma “estimativa conservadora” de
acordo com o UNDP’s Human Development Report 2009, p.4.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

milhões de pessoas cruzam fronteiras para viver em um país desenvolvido.


O número de pessoas que se deslocam para um país em desenvolvimento ou
dentro de próprio país é muito maior, embora seja difícil sabermos com precisão
os números exatos.12
Devido à imprecisão dos dados, é também difícil saber quem se desloca
com a finalidade de permanecer no local e quem se desloca apenas por
períodos temporários.
Mas, por que tanta mobilidade? As razões são variadas. Indivíduos e famílias
se mudam para outros lugares por diferentes motivos e, às vezes, por várias
razões simultaneamente. E tais razões podem até alterar-se durante o período de
deslocamento. Muitas pessoas mudam-se porque são forçadas.
Até fins de 2009, 43.3 milhões de pessoas, em todo o mundo, saíram de seus países
para fugirem de perseguições, conflitos ou violações de direitos humanos. Trata-se do
maior número desde meados dos anos de 1990.13 Deste total:

- 15.2 milhões de migrantes internacionais foram reconhecidos como


refugiados: 10.4 milhões permanecem sob a responsabilidade do Alto
Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e 4.8 milhões
de refugiados palestinos estão, como ocorre há muito tempo, sob o mandato
específico da “UN Relief and Works Agency” (UNRWA). Outros 983.000
são solicitantes de asilo, isto é, pessoas que apresentaram formalmente seus
pedidos para serem reconhecidas como refugiadas.
- 27.1 milhões de migrantes foram considerados deslocados internos (IDPs14),
os quais estão, igualmente, sob a responsabilidade do ACNUR.

12. UNDP, ibid, p.9, citando também o Banco de Dados da Organização Para Cooperação Econômica
e o Desenvolvimento, 2009.
13. ACNUR, 2009 Tendências Globais: Refugiados, Solicitantes de Asilo, Retornados, Deslocados
Internos e Pessoas Apátridas, p.1.
14. Pessoas deslocadas internamente são “pessoas ou grupos que foram forçados a deixar seu lar ou
local de residência, para fugir dos efeitos de conflitos armados, situações de violência generalizadas,
violações de direitos humanos ou desastres tanto ambientais quanto os provocados pelo ser humano,
e que não cruzaram fronteiras internacionalmente reconhecidas como estatais”. (Guiding Principles
on Internal Displacemnt, Introdução, pag.2)

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Caderno de Debates – Novembro 2010

Além destes 43.3 milhões (freqüente, mas erroneamente, considerados como


se fossem as únicas pessoas “forçadas a sair de sua terra”), milhões de homens,
mulheres e crianças foram também forçados a se deslocarem dentro ou fora de
seu país, por urgências ambientais ou necessidades econômicas15. Não obstante as
estimativas variem enormemente, a grande maioria destas pessoas desloca-se no
interior de seus próprios países.
Outras se deslocam voluntariamente, por escolha. Com frequência, estas
pessoas são identificadas como “migrantes econômicos” e, com a globalização,
estes números têm aumentado.
Contudo, é preciso ter muito cuidado ao aceitar facilmente a caracterização de
indivíduos, grupos, ou ainda grandes movimentos como “migrantes econômicos”.
Com freqüência, pessoas que foram forçadas a se deslocar- por perseguição,
conflitos, necessidades econômicas ou ambientais – foram e continuam sendo
consideradas meros “migrantes econômicos” e, dessa forma, não recebem direitos
específicos e respostas adequadas à condição de migrantes forçados.16

O que é “migração mista”?


“Migração mista” é um termo usado para descrever movimentos em que
diferentes pessoas se deslocam conjuntamente, motivadas por diferentes razões ou
circunstâncias, tanto dentro quanto além das fronteiras de seus países. Na maioria

15. Nos últimos anos, o termo “migrantes sobreviventes” tenta descrever os movimentos adicionais
forçados mas necessariamente decorrentes de conflito ou perseguição segundo o conceito tradicional
do que é um refugiado.
16. Como afirmado num documento do Conselho Pontifício Cor Unum e do Conselho Pontifício
para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, em 1992, enquanto “conflitos humanos e outras situações
de ameaça à vida dão origem a vários tipos de refugiados”, lamentavelmente “não entram nas
categorias da Convenção internacional as pessoas que são vítimas de conflitos armados, de políticas
econômicas erradas ou de desastres” Os Conselhos afirmam que “Para os atores humanitários,
há uma crescente tendência a reconhecer tais pessoas como refugiados ‘de fato’, devido à natureza
involuntária de sua migração”.
Finalmente, argumentando contra uma definição demasiado ampla ou demasiado restritiva
de refugiado os Conselhos afirmam – com a clareza provocativa: “No caso dos assim chamados
“migrantes econômicos”, justiça e igualdade requerem distinções adequadas. Os que fogem de situações
econômicas que ameaçam sua vida e integridade física devem ser tratados diferentemente dos que
emigram para melhorar sua situação social ou econômica”.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

dos casos, contudo, a atenção volta-se para movimentos migratórios mistos além
fronteiras, mais especificamente para movimentos irregulares que cruzam fronteiras,
nos quais as pessoas não têm documentos ou autorização para entrar no país a que
estão se dirigindo.
Então, independente de o deslocamento ser por terra, mar ou ar, um grupo é
considerado “migração mista” quando entre seus membros:

- alguns foram obrigados a sair devido a perseguições, conflitos ou violações


de direitos humanos;
- alguns foram forçados pela falta de condições econômicas em seu país
(particularmente, por não conseguirem trabalho) ou devido à degradação
ambiental; e
- alguns estão em busca de melhores condições de trabalho ou oportunidades
econômicas, ou para reunir-se à família.

Outros fatores também contribuem para as “migrações mistas”. Por exemplo:

- Diferentes nacionalidades, etnias ou outras origens podem, às vezes,


implicar diferentes direitos que precisam ser protegidos como refugiado ou
como vítima de tortura.
- Gêneros e idades diferentes podem significar direitos diferentes a serem
protegidos, especialmente para mulheres e crianças.

Finalmente, o que acontece aos membros desses grupos durante o caminho


pode torná-los ainda mais uma “migração mista”. Por exemplo, muitos dos que
começaram a sua jornada migratória esperando encontrar trabalho ou juntar-se à
família estão sujeitos ao tráfico de pessoas, tortura ou outra forma de violência ao
longo do caminho. Em outros casos, refugiados que chegam a um determinado
país após haverem cruzado várias fronteiras dão-se conta de que a possibilidade
de pedir proteção é reduzida ante a constatação de que a proteção efetiva estava
em um dos países por onde já passaram. E, muito claramente, mudanças na
composição do grupo vão modificar tanto o grupo em si quanto suas motivações,
como ocorre frequentemente ao longo da jornada migratória, em particular
quando membros do grupo saem ou novas pessoas se incorporam.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

Um rápido olhar: como é a “migração mista” na região das Américas?


A importância da migração mista nas América do Norte, Central e do Sul e
no Caribe foi subestimada durante o recente encontro anual do ACNUR com
os representantes das Organizações Não-Governamentais, em junho de 2010.
Vejamos a síntese dos relatores, elaborada em nome das ONGs17:

“Nos últimos anos, os países das Américas têm constatado que os movimentos
migratórios têm se tornado mais complexos e ‘mistos’ devido à diversidade
de países de origem, trânsito ou destino, ou uma combinação dos mesmos.
Enquanto a motivação e as razões dos migrantes podem variar, tanto refugiados
quanto migrantes viajam juntos, utilizam os mesmos meios de transporte,
usam os serviços dos mesmos contrabandistas e, muitas vezes, estão expostos
aos mesmos riscos e abusos. Embora tais movimentos sejam majoritariamente
inter-regionais, com os Estados Unidos abrigando o maior número de migrantes
e refugiados, um grande número migra para outros lugares, especialmente para
a Europa. Além disso, o deslocamento de colombianos - devido, principalmente,
ao conflito armado, à fumigação aérea das colheitas, animais e mananciais de
água e aos ataques de grupos paramilitares - continua a ser crítico na região,
especialmente nas fronteiras com o Equador, Venezuela e Panamá.”

“Como em outras regiões, a complexa característica do movimento migratório


na região apresenta desafios para os Estados equilibrarem interesses nacionais no
combate ao crime organizado transnacional com a manutenção de obrigações
internacionais relativas aos direitos humanos, à proteção do refugiado e ao
respeito ao direito de pedir asilo, em particular ao princípio do non-refoulement.
As fronteiras são áreas particularmente delicadas para migrantes e refugiados
que não têm nenhum documento de entrada. Entre outras violações, abuso
sexual, exploração, extorsão e sequestros têm aumentado nestas áreas.”

17. Informe dos relatores, Encontro Anual do ACNUR com os Representantes das ONGs, 29 de
junho - 01de julho 2010, pg. 14, www.unhcr.org/consultations.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

“Preocupa-nos a ação de alguns Estados cuja principal resposta a tais


movimentos migratórios mistos irregulares tem sido pautada por medidas
restritivas de controle, onde freqüentemente falta suficiente proteção,
salvaguardas e medidas de assistência. Em tal contexto, proteger as pessoas
necessitadas de proteção internacional requer que todos os atores trabalhem
juntos para otimizar seus esforços e capacidades.”

Como enfatiza o relator, “a sessão sublinha a necessidade de uma abordagem


de direitos para prover a necessária proteção aos refugiados, solicitantes de asilo e
outras populações vulneráveis, e garantir boas políticas, com a implementação de
instrumentos legais e a destinação de adequados recursos”.

Por que “migrações mistas” merecem tanta atenção?


Há duas razões primordiais para a maior atenção às migrações mistas,
particularmente quando estas implicam o cruzamento de fronteiras.
Por um lado, a natureza de muitos movimentos – e o tremendo impacto de
fotografias – tem atraído o interesse dos meios de comunicação e das agendas
política e humanitária. Por serem predominantemente irregulares, alguns
estão entre os mais perigosos movimentos de pessoas, com enormes riscos e
sofrimento ao longo do caminho. Para evitar a detenção, os meios e as rotas
usadas para cruzar fronteiras são, frequentemente, muito perigosas: longas
jornadas por caminhos isolados com grandes distâncias onde a água é escassa,
por montanhas ou desertos; barcos, caminhões, conteiners e outros veículos
superlotados, com insuficiência de suprimentos e cujas condições não são
recomendáveis para viagem; freqüentemente sujeitos não somente à brutalidade
dos contrabandistas e traficantes de pessoas, mas também a extorsões, prisões,
violência física e deportação nos pontos de fiscalização e locais de controle
nas fronteiras. Se a migração mista, por vezes, é complicada, a necessidade de
proteção não o é.
Ao mesmo tempo, cada refugiado e migrante é titular não apenas de seus direitos
humanos básicos, a começar pelo direito à vida, mas, dependendo das razões que o
levaram a migrar e o que lhe aconteceu pelo caminho, ele ou ela podem ter necessidade

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Caderno de Debates – Novembro 2010

de direitos e assistência adicionais específicos. Segundo a Convenção relativa aos


Refugiados (1951), por exemplo, os refugiados têm direito à proteção internacional;
sob a Convenção dos Direitos da Criança, as crianças têm direito a procedimentos que
avaliam o que são seus melhores interesses; vítimas de tortura ou de tráfico humano
têm direito à proteção e assistência a partir de vários tratados internacionais, além de
muitos outros instrumentos regionais, nacionais e leis nesse campo.
Quando as pessoas estão juntas num grupo, no entanto, essas diferenças são
geralmente difíceis de serem percebidas – especialmente com grandes grupos,
isto pode ocorrer nos pontos de primeiro e inesperado contato ou nos locais
de chegada. Perceber as diferenças é vital para dar respostas adequadas às
necessidades e direitos de cada homem, mulher ou criança no grupo.
Em geral, a resposta adequada encontra-se na obrigação dos Estados,
decorrente da legislação internacional e de Convenções ratificadas. Além disso,
assegurar e participar em tal resposta é mandato, tarefa e missão de organizações
internacionais como o ACNUR, os atores da sociedade civil, a Igreja Católica em
todos os níveis, a rede da Cruz Vermelha e ONGs, como a Save the Children, o
Conselho Europeu para Refugiados e Exilados (ECRE), o Fórum Asiático para
Migrantes e o Conselho Australiano para Refugiados.

Por que hoje as migrações estão cada vez mais mistas?


Há muitas razões – e muita pesquisa – por que cresce a migração mista na
atualidade. Embora as diferentes regiões do mundo possam variar nestes aspectos,
o fato de refugiados e migrantes se deslocarem em fluxos migratórios mistos
entre todas as regiões da terra sugere que os fatores a seguir relacionados podem
ocorrer mais simultânea do que separadamente, aumentando as migrações mistas
de hoje. Em síntese:

- a redução de acesso ao asilo na maioria dos países de destino, incluindo-se


lentidão, procedimentos incertos, arbitrariedades e altos índices de rejeição
têm levado refugiados e solicitantes de asilo a aderirem a movimentos de
migrantes, inclusive movimentos irregulares em barcos ou transporte terrestre;
- a restrição ou fechamento dos canais legais para imigração, particularmente
para trabalho e/ou reunificação familiar, têm levado trabalhadores migrantes

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Caderno de Debates – Novembro 2010

- como refugiados e outros que fogem da guerra e da violência - a recorrer a


“outros caminhos de acesso”;
- o reforço do controle policial das fronteiras internacionais levou refugiados
e migrantes a caminhos mais restritos - e perigosos – de travessias em grupo.
- a indústria de traficantes de seres humanos e contrabandistas de
migrantes tem prosperado, focada somente em acumular sua própria “carga”
independentemente de quem seja, levando-a e recebendo o pagamento, e cega
frente às diferentes circunstâncias das pessoas em si.
- há significativo aumento de mulheres migrantes sem o esposo ou algum
outro membro homem da família.
- as comunicações e as viagens modernas oferecem possibilidades para o
cruzamento de fronteiras a grupos de pessoas desesperadas para se deslocar,
independente de suas motivações.

Há, muito possivelmente, outro fator que pode estar contribuindo com a
percepção de um aumento nas migrações mistas atualmente: neste caso, não se
trata do número de pessoas que migram, mas da crescente diferenciação entre elas.
Nos últimos anos, houve um aumento substancial de convenções internacionais
e regionais que, pela primeira vez, indicam diferenças que invocam direitos e
respostas específicas para certas pessoas presentes nestes fluxos migratórios.

Qual é a resposta tradicional para as migrações mistas?


Por muitos anos, a reação dos Estados, organizações internacionais, academia
e de um grande número de ONGs tem sido dividir o mundo entre “refugiados” e
“migrantes econômicos”, isto é, “a tradicional distinção entre o deslocamento das
pessoas que fogem de conflitos armados e violência política e a migração de pessoas
em busca de melhores condições de vida e novas oportunidades.”18 Sob o risco de
simplificar demais a distinção, uma implicação adicional é que, em geral, somente
os refugiados eram considerados detentores de direitos perante a comunidade
internacional, em particular, detentores do direito a todo o tipo de “proteção”.

18. Jeff Crisp e Esther Kiragu. Proteção ao Refugiado e migrações internacionais: publicação da
ACNUR em Malawi, Moçambique e África do Sul, 2010, p10.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

Notadamente, enquanto reconhece e promove ativamente direitos específicos,


proteção e assistência aos refugiados, a Igreja, juntamente com a rede da Cruz
Vermelha, tem defendido continuamente uma resposta também para os chamados
“migrantes econômicos” e a melhoria de seus direitos, proteção e assistência –
especialmente em situações de particular vulnerabilidade e angústia, como nos
irregulares e frequentemente perigosos movimentos de travessia marítima e de
outras fronteiras.

Quando as migrações mistas realmente “integraram a agenda”?


Nesta última década, face ao aumento da mistura de “refugiados” e
“migrantes econômicos” que cruzam fronteiras mundo afora, assim como face
à ampliação da proteção legal e assistência a novas categorias de migrantes,
tais como vítimas de tráfico de seres humanos, o ACNUR e outros atores
começaram a examinar o chamado “nexo entre migração-asilo”. Enquanto
a análise abrangeu muitos aspectos da intersecção entre asilo e fenômenos
migratórios, ela também começou a abrir lentamente o horizonte à
consideração de que não se trata simplesmente de identificar e responder aos
refugiados presentes nestes grupos, mas, de maneira mais ampla, examinar o
que fazer para atender às necessidades e direitos de tantas outras pessoas indo
e vindo junto aos refugiados.
O ACNUR tomou duas medidas importantes neste sentido. Em janeiro de
2007, publicou o “Plano de 10 Pontos para a Proteção ao Refugiado e Migrações
Mistas”.19 Onze meses depois, dedicou dois dias inteiros do Primeiro Diálogo do
Alto Comissariado sobre os Desafios da Proteção ao tema das Migrações Mistas.
Tanto o Plano de 10 Pontos quanto a determinação do ACNUR para melhorar
a proteção e a assistência em situações de migrações mistas foram amplamente
apoiadas pela grande maioria dos Estados, organizações internacionais, sociedades
da Cruz Vermelha e ONGs.

19. O Plano de Ação de 10 Pontos encontra-se em www.unhcr.org/protect/PROTECTION/4742a30b4.pdf

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Caderno de Debates – Novembro 2010

Para se ter uma idéia da abrangência deste momento, observemos os 10 Pontos.

A proteção dos refugiados e a migração mista:


O Plano de Ação de 10 Pontos
1) Cooperação entre parceiros chaves
2) Coleta de dados e análise
3) Sistemas de entrada sensíveis à proteção
4) Mecanismos de recepção
5) Mecanismos de identificação de perfis e encaminhamento
6) Processos e procedimentos diferenciados
7) Soluções para os refugiados
8) Resposta a movimentos secundários
9) Acordos para o retorno de pessoas que não são refugiadas e opções
migratórias alternativas
10) Estratégia de informação

Em particular, e como indicamos nos itens a seguir, os pontos 4, 5 e 6


demonstram como o foco foi além do “refúgio vs. migrante econômico”.

“4. Mecanismos de recepção”


Para assegurar que as necessidades humanas básicas das pessoas envolvidas em
movimentos migratórios mistos possam ser atendidas são necessários preparativos
adequados para a recepção destas pessoas. Tais preparativos devem também
possibilitar que os recém chegados sejam registrados e providos de documentação
temporária. Especialmente em situações em que uma alta porcentagem de recém
chegados é composta por refugiados ou solicitantes de asilo, o ACNUR pode
facilitar a implementação de uma preparação adequada, ou então se envolver
temporariamente, junto com os principais parceiros responsáveis.

“5. Mecanismos de identificação de perfis e encaminhamento”


Uma vez que os recém chegados foram registrados e providos de documentação
temporária, deve-se fazer uma identificação inicial sobre quem são eles, por
que deixaram seus países e para onde planejavam ir. O aconselhamento oferece

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Caderno de Debates – Novembro 2010

a oportunidade de determinar se eles desejam pedir asilo e identificar outras


possíveis alternativas, incluindo o retorno, regularização ou migração legal. Este
atendimento inicial, não determina o status de refugiado. A finalidade é dar uma
indicação sobre os motivos que levaram a pessoa a sair de seu país e assegurar que
sua situação seja atendida da forma apropriada.

“6. Processos e procedimentos diferenciados”


Em relação aos pedidos de refúgio, aqueles que parecem relativamente simples
(seja porque são bem fundamentados, seja porque são claramente infundados)
podem ser resolvidos rapidamente. Outros pedidos mais complexos requerem
uma avaliação mais detalhada. Processos diferentes, fora da esfera do refúgio,
devem atender a situação das pessoas com necessidades específicas que não
possuem relação com refúgio, incluindo vítimas do tráfico que não necessitam
de proteção internacional, assim como pessoas que estão buscando migrar.
Mesmo que o ACNUR provavelmente seja o principal parceiro dos estados
no tocante à determinação do status de refugiado, ONGs, advogados e
instituições da sociedade civil devem também ter uma função a desempenhar
neste componente do Plano de Ação. Em relação a outros processos, o ACNUR
deverá se envolver menos, se for o caso. Os prováveis parceiros dependerão
da situação em cada país específico e de quais organizações estão presentes e
desejam atuar nesta parceria.20

Qual é a perspectiva de resposta, hoje?


Em âmbito internacional, o ACNUR, fortalecido no respaldo dos vários
participantes no Diálogo do Alto Comissariado, e apoiado com fundos da
União Européia e dos Estados Unidos, deu início a um processo de longa
duração envolvendo grupos de especialistas, mesas-redondas e encontros de
agências financiadoras de todo o mundo para coletar detalhes e estimular a
implementação prática do Plano de 10 Pontos. Tal processo continuou em 2009
e 2010, por exemplo, com a organização de encontros com agências de apoio na

20. Os 10 Pontos do Plano de Ação do ACNUR, ibid, pgs. 3 a 4.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

Costa Rica (novembro de 2009) e na Tanzânia (setembro de 2010)21. É importante


destacar que muitas dessas atividades foram co-organizadas com outros atores
internacionais, particularmente a Organização Internacional para as Migrações
(OIM), a Federação Internacional da Cruz Vermelha, Sociedades do Crescente
Vermelho e o Escritório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos.
Como descrito abaixo, o ACNUR continua empenhado - e tem recebido o apoio
das outras organizações internacionais e, em particular, da comunidade de ONGs.
Na Sessão de abertura da Reunião anual do ACNUR de consulta às ONGs, em junho
deste ano (2010), a Assistente de Proteção do Alto Comissário, Erika Feller, salientou
que é tempo de todos os atores verem com urgência, sentido e coerência que a
assistência e a proteção são organizadas tanto para refugiados da Convenção de 1951,
quanto para outras pessoas que, embora estejam “fora” de uma interpretação literal
da Convenção, possuem não apenas necessidades, mas direitos próprios e específicos
à proteção genuína e procedimental segundo outras Convenções, Protocolos e Leis.
De fato, ao consultar tanto as ONGs quanto outras instituições, várias
organizações da sociedade civil - incluindo a Comissão Católica Internacional
para as Migrações (CCIM) e seus membros - relatam uma série de experiências
e “lições aprendidas” na resposta a situações de migrações mistas. Entre as
perspectivas, foram mencionados:

- Dado o frequente cruzamento de fronteiras de refugiados com outras


pessoas, tal situação se tornou uma questão urgente e uma prioridade para
organizações que trabalham em países de saída, trânsito e chegada.
- Migrações mistas – isto é, o deslocamento de pessoas por diferentes
motivações, em diferentes circunstâncias, com diferentes necessidades e
direitos específicos – são uma realidade que ninguém pode ignorar.

21. Além das conferências de Costa Rica e Tanzânia, as outras atividades compreendem conferências
regionais sobre “Proteção aos Refugiados e Migrações Internacionais no Golfo de Aden”, no Yemen
(maio de 2008) e “Proteção ao Refugiado e Migrações Internacionais na África Ocidental” no
Senegal (novembro, 2008); mesas-redondas de especialistas sobre “Controlar Fronteiras enquanto
asseguram Proteção” na Suíça (novembro, 2008); “Pessoas Diferentes, Necessidades Diferentes” na
Tunísia (julho, 2009) e “O Retorno de Não-Refugiados e Opções Migratórias Alternativas”, na Suíça
(dezembro de 2009).

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Caderno de Debates – Novembro 2010

- Quando somente um grupo em dificuldade recebe proteção, outros,


em situações semelhantes, naturalmente buscam valer-se dos mesmos
procedimentos e mecanismos de proteção, precisamente porque esses podem
ser o único tipo de segurança ao seu alcance.
- Aumentar a proteção para todos na chegada significa aumentar o espaço de
proteção da “Convenção de Refugiados de 1951”.
- Para conseguir soluções é necessário “abrir” – clarificar – o conceito de
“migrações mistas”, porque o real desafio ao abordar esta realidade é identificar
os grupos específicos no interior dos fluxos migratórios mistos. As lacunas
de proteção e os mecanismos legais das fronteiras que as afetam não são os
mesmos, e os meios para suprir tais lacunas devem ser diversificados.

De certo modo, isso já está acontecendo: um crescente conjunto de


normas nacionais, regionais e internacionais já reconhece estas categorias
abrangentes de migrantes como vítimas, ou como particularmente vulneráveis,
e conseqüentemente dignos de receber a adequada proteção e/ou serviços; por
exemplo, vítimas de tráfico ou menores de idade desacompanhados. Além disso,
continua a haver um movimento para melhorar a proteção e assistência práticas
a categorias específicas de migrantes além dos refugiados. Nesse sentido,
são notáveis o desenvolvimento, pelo ACNUR e OIM, de procedimentos
operacionais conjuntos de entrevista e identificação de vítimas de tráfico humano
e os constantes esforços do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes
(UNODC) para desenvolver diretivas de implementação sob os dois protocolos
internacionais sobre tráfico de pessoas e contrabando de migrantes para, entre
outros motivos, proteger não somente vítimas do tráfico como também vítimas
do contrabando de seres humanos.
Na prática, porém, a resposta a refugiados e migrantes que chegam em
movimentos migratórios mistos continua a ser predominantemente ad hoc,
inconsistente e sub-financiada. Pior, o ambiente para muitas dessas migrações
mistas irregulares tem endurecido consideravelmente em muitos dos tradicionais
países de destino de refugiados e migrantes, especialmente na Europa e na Ásia.
Evitar o acesso e chegada tornou-se uma prioridade: as ocasiões de rechaçá-los e
mandá-los de volta, que já eram chocantes e sem precedentes, tornaram-se quase

53
Caderno de Debates – Novembro 2010

lugar comum em muitas partes do mundo. Para aqueles que conseguem “chegar”,
a resposta e condições são muito severas.
Importante exceção tem sido a postura tomada pelo “Projeto Praesidium”,
um modelo sem precedentes de colaboração estabelecido no sul da Itália entre
ACNUR, OIM, Save the Children da Itália e a Cruz Vermelha italiana. Iniciado
em 2007, com recursos da Comissão Européia e do Governo italiano, esse projeto
organizou respostas com base nas necessidades e direitos básicos dos boat people,
isto é, refugiados, vítimas de tráfico ou tortura, crianças, etc., que chegam a
Lampedusa e a outras ilhas italianas. Embora tenha suas limitações e falhas, esta
forma de organizar a presença, competência e missão específica entre múltiplos
atores tem sido freqüentemente citada, pelo mundo todo, como um exemplo de
“boa prática” na resposta às migrações mistas.22

A caminho: buscando uma “resposta às necessidades” que leve a


abordagens baseadas em direitos
Há tempos faz-se referência à importância de uma “abordagem baseada em
direitos” em todas as questões relativas a refugiados e migrantes, isto é, a referência
e adesão inequívoca aos critérios expressos no direito e tratados internacionais,
incluindo a Convenção para Refugiados de 1951 e instrumentos internacionais de
direitos humanos. Com efeito, “com os olhos voltados para o sofrimento de tantos
homens, mulheres e crianças na migração internacional”23, a CCIM há muito
tempo defende uma abordagem com base em direitos como solução. Tal qual se
procede com outras questões, no caso de movimentos migratórios nos quais se
mesclam múltiplas categorias de refugiados e migrantes, um claro entendimento
da ampla gama de direitos e obrigações previstos em instrumentos internacionais
é vital para prover a adequada proteção e assistência.
Entretanto, entender e implementar direitos é sempre mais fácil na teoria
do que na prática. No contexto de responder no mundo real a problemas de

22. Uma descrição do Projeto em Power Point está disponível em: www.iom.int/jahia/webday/
shared/mainsite/microsites/IDM/wokshops/managing return migration 042108/presentation speeches
/sequenza diapo simo.pdf.
23. Johan Ketelers, op. cit., p.4.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

refugiados e migrantes abandonados ou que chegam em fluxos mistos, uma


abordagem baseada em direitos se fundamenta em três pilares, a saber:

- Primeiro pilar: primeiros socorros para quem necessita, ou seja, cuidados


médicos ou psicológicos urgentes.
- Segundo pilar: identificar cada pessoa com sua necessidade ou demanda a
um direito específico.
- Terceiro pilar: encaminhar para os agentes de atendimento e mecanismos
que possam oferecer uma resposta.

O diagrama a seguir ilustra a seqüência.

Os três momentos, isto é, primeira ajuda, identificação e encaminhamento,


requerem uma orientação voltada primariamente às necessidades, com vistas a
preparar o caminho e prover informações sobre soluções adequadas com base
em direitos.

55
Caderno de Debates – Novembro 2010

Esta foi a conclusão de uma ampla conferência sobre migrações mistas que o
ACNUR, OIM, FICV e Sociedades do Crescente Vermelho organizaram em Tunis,
em Julho de 2009. Partes da conclusão estão referidas a seguir, com expressões em
itálico para conferir maior ênfase:

Conclusão da Conferência de Tunis24 24


Conclusão da Conferência de Tunis
“Especialistas enfatizaram que as principais conclusões das discussões
contemplam particularmente:

- O reconhecimento de que a proteção em determinados lugares de


chegada em contextos de migrações mistas é questão imperativa para
refugiados, solicitantes de asilo e também para crianças e mulheres
em risco, vítimas de tráfico e outras pessoas que sofrem por causa dos
efeitos da violência ou traumas sofridos durante a migração;
- A importância de uma abordagem baseada primariamente nas
necessidades de refugiados recém-chegados em tais contextos, não
somente para atender, de imediato, necessidades físicas e psico-sociais,
como também para diferenciar efetivamente aqueles que realmente
possuem necessidades e direitos à proteção e assistência específica,
também foi destacada;
- A necessidade de um ambiente de segurança, confiança e transparência,
no qual as expectativas dos recém chegados são tratadas adequadamente
e os prestadores de serviços estão plenamente equipados e capacitados
para atender suas necessidades.

Os especialistas enfatizaram que os sistemas legais, complementados


com adequadas estruturas administrativas e pessoas bem treinadas e
equipadas, são elementos fundamentais para identificar e proteger pessoas
que precisam de proteção e/ou assistência.”

24. Relatório Final da conferência “Pessoas Diferentes, Necessidades Diferentes”, Tunis, Tunísia, julho
de 2009, p.12, disponível em www.unhcr.org/refworld/docid/4ae15db72.html.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

Na medida em que há convenções internacionais, regionais e nacionais que


contemplam essa necessidade, uma abordagem baseada em direitos requer a
implementação das mesmas.
Em casos onde não existam esses marcos ou políticas, ou não haja ainda formas
práticas de implementação, uma genuína resposta às necessidades faz-se necessária
para suprir essa lacuna.

Preenchendo lacunas
Em termos simples, há uma grande lacuna no acesso à proteção para refugiados
e outras vítimas, num contexto de migrações desordenadas ou em migrações
mistas, cruzando fronteiras ao redor do mundo.
Os membros da CCIM destacam, assim como ACNUR, OIM e vários programas
de fortalecimento, que muitas pessoas nestes movimentos são vítimas de tráfico,
tortura, violência e de brutalidades em série a cada passo de sua migração em
muitos casos. Inúmeras pessoas têm experiências traumáticas, inclusive como
testemunhas de assaltos, morte por fome ou sede, estrangulamento, asfixia
ou afogamentos forçados. Grande número são mulheres, muitas estupradas, e
crianças desacompanhadas.
Para a maior parte, as lacunas das respostas não estão tanto nos direitos
normativos (para os quais muitos instrumentos já existem), mas nas diretivas e no
estímulo aos direitos: lacunas na garantia das necessidades urgentes em primeiro
lugar, na assistência para recuperação, diferenciação cuidadosa e encaminhamento
para as agências especializadas em proteção ou retorno.
O ACNUR, a OIM, a Cruz Vermelha/Sociedades do Crescente Vermelho, Igrejas
e outros grupos religiosos e entidades não-governamentais de fato trabalham em
muitas destas lacunas em diferentes lugares, frequentemente em parceria e com o
apoio dos Estados, da União Européia, assim como de organizações internacionais.
Claramente o projeto Praesidium, como mencionado, oferece boas idéias, mas, de
modo geral, as respostas dadas nas fronteiras terrestres e marítimas da Europa, do
Caribe e das Américas, África e Ásia são extremamente inadequadas.
O Plano dos 10 Pontos do ACNUR, em particular, está correto ao solicitar
“mecanismos consistentes” para preencher as lacunas. Felizmente, existe um

57
Caderno de Debates – Novembro 2010

movimento considerável para responder a essas lacunas, incluindo um novo espírito


de colaboração entre organizações internacionais para resolver tais questões.
Da mesma forma, a CCIM constituiu uma parceria com oito ONGs25,
trabalhando com uma rede mais ampla de especialistas do ACNUR, da OIM, da
Federação Internacional da Cruz Vermelha, Sociedades do Crescente Vermelho e
centros acadêmicos, para avaliação e intercâmbio de boas práticas sobre a melhor
maneira de agir na busca de soluções, especificamente para os boat people nos
lugares de desembarque no Sul da Europa e no período imediato após a chegada,
e identificação das lacunas e recomendações para encontrar soluções adequadas.

Um exemplo concreto de cooperação e bons resultados


Este projeto com um grupo de oito ONGs chamado “Drive Referral”
(“Differentiation, Refugee Identification and Vulnerability Evaluations for
Referral”) concentra-se no exame de práticas existentes, análise de lacunas e
recomendações para a cooperação múltipla transnacional a fim de atender os
boat people após o resgate ou na chegada. Trata-se de um projeto liderado pela
CCIM, com relevância na Europa e internacionalmente, para oferecer melhores
respostas aos refugiados e aos migrantes que cruzam fronteiras terrestres, aeras
ou marítimas.
Mantido pela Comissão Européia de junho 2010 até agosto 2011, o projeto
visa principalmente dar respostas para os que chegam à Grécia, Itália, Malta e
Espanha. Ele tem como meta iniciar e fortalecer as redes e as capacidades das
ONGs, dos provedores de serviços locais, das instituições internacionais e dos
países ao promover, em nível regional, a capacidade e cooperação destas entidades
na identificação e encaminhamento de refugiados e outras pessoas necessitadas,
no contexto de fluxos marítimos mistos, aos serviços de assistência e proteção aos
quais têm direito.

25. Além da CCIM, as outras sete ONGs são a Associação da Comissão Católica Espanhola de
Migrações (ACCEM); Comissão Espanhola de Ajuda a Refugiados (CEAR); Conselho Italiano
para Refugiados (CIR); Conselho Europeu para Refugiados e Asilados (CERA); Serviço de Refúgio
dos Jesuítas (SRJ) em Malta; Projetos de Desenvolvimento, Apoio Social e Cooperação Médica
(PDASCM), Salvem as Crianças, Itália.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

O foco é, em primeiro lugar, dar uma resposta imediata. Em seguida, fazer


um encaminhamento diferenciado no que se refere aos direitos específicos e
soluções devidas àqueles que estão sob a proteção de convenções internacionais
e regionais – muitos dos quais em barcos ou cruzando desertos e outras
fronteiras. Em resumo, estas respostas, operacionais por natureza, devem ser
claramente mais “co-operacionais” e padronizadas.
Tendo presente o que foi dito acima, os parceiros do projeto DRIVE
conduzirão 400 entrevistas com boat people e outra série de pesquisas com
entidades nacionais envolvidas com o tema na Grécia, Itália, Malta e Espanha para
identificar a existência de práticas e procedimentos e, depois, lacunas importantes
e recomendações. Ao longo do trabalho, serão organizados encontros com
entidades nacionais participantes e quatro dias de capacitação regional conduzida
por especialistas em diferenciação e referência baseados em necessidades direitos.
Ao concluir o projeto, um relatório tripartite será publicado e uma conferência
internacional será organizada para apresentar os resultados do levantamento das
práticas existentes, da identificação de boas práticas e das recomendações para
eventuais lacunas.
A CCIM e seus parceiros desejam coordenar a análise das conclusões e, mais
importante, o seguimento das recomendações a ONGs na Europa e outros lugares,
talvez na Consulta Anual do ACNUR com ONGs, em 2011, assim como a países
e organizações internacionais.

Conclusão
A migração é uma responsabilidade compartilhada, a qual inclui vários atores
da sociedade. Ela não se refere somente ao deslocamento de quase um bilhão de
pessoas, mas também ao deslocamento de sociedades.
Como observamos, migrantes e refugiados estão cada vez mais juntos, assim
como estão todos os atores envolvidos com migrantes e refugiados em nível
nacional, regional e internacional: Estados, organizações intergovernamentais
e internacionais, grupos da Igreja, ONGs e sociedade civil no sentido amplo.
A consideração pelos sofrimentos e necessidades do ser humano é mínima, a
interpretação das convenções existentes de direitos é demasiadamente rigorosa,

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Caderno de Debates – Novembro 2010

a leitura extremamente técnica dos mandatos institucionais que exigem respostas


– afirmar ‘eu não’ ou ‘você não’ – simplesmente não é uma opção neste assunto.
Migrações mistas podem ser complicadas. A necessidade de proteção não o é.
Diariamente, lemos ou ouvimos falar de homens, mulheres e crianças deslocados
e a caminho em alguma parte do mundo, sofrendo com a ausência da proteção
e assistência a que têm direito. Para oferecer respostas consonantes com a
dignidade humana, abordagens baseadas em direitos devem priorizar a atenção
primeiramente às necessidades. A cooperação prática é a chave - e um incremento
da vontade política para que isso aconteça.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

IMDH/ R. Milesi
Migrante brasileira retornada da Bélgica reencontra seus filhos no Brasil e recebe apoio para reintegração e
projeto de geração de renda.

As Múltiplas Faces do Retorno à Terra Natal

Sueli Siqueira26
Gláucia de Oliveira Assis27
Carlos Alberto Dias28

Introdução
A mobilidade populacional é um fenômeno social que acompanha a história da
humanidade. Podemos dar como exemplo as migrações que ocorreram no século
16, na época dos grandes descobrimentos, quando milhares de europeus partiram
rumo ao Novo Mundo. As migrações que ocorreram nesse período contribuíram
para povoar e colonizar as colônias recém descobertas. A própria história do
desenvolvimento do capitalismo, que se intensifica e consolida a partir do século
XVIII na Europa, teve grande impacto na mobilidade espacial da população.

26. Doutora em Sociologia e Política, professora da Universidade Vale do Rio Doce - UNIVALE.
27. Doutora em Ciências Sociais, professora da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC
28. Doutor em Psicologia, professor da Universidade Vale do Rio Doce - UNIVALE.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

Os países europeus vivenciaram na virada do século XIX, e inicio do


século XX um intenso fluxo emigratório rumo ao continente Americano.
Naquela época, segunda metade do século XIX, os países destino eram
principalmente os Estados Unidos, o Canadá, a Argentina e o Brasil. Essas
localidades representavam para os europeus uma terra de oportunidades.
Nesse sentido podemos considerar que não apenas as migrações internas, mas
também as internacionais se constituem numa peça chave para a compreensão
da formação das sociedades, das identidades culturais e do desenvolvimento
do capitalismo. A história recente é marcada pelas correntes de migração
internacional.
Para os estudiosos dos fenômenos urbanos, compreender a migração torna-
se uma questão essencial e passou a ocupar um lugar de destaque na agenda
de discussão das ciências humanas, tendo em vista suas novas características,
o crescimento do fluxo e os problemas dele decorrentes, tanto no continente
Americano quanto no Europeu. Esses movimentos têm seu auge na virada
do século XIX para o século XX, no entanto, no período entre a Primeira e a
Segunda Guerra Mundial, (1914-1945) ocorreu uma diminuição significativa
das migrações internacionais em função das guerras, das crises econômicas e da
instabilidade política. Assim foi na década de 1950, com o fim da Segunda Guerra
Mundial que ocorreu uma retomada dos movimentos de população através das
fronteiras entre os países.
O termo “novos migrantes” se refere em geral às migrações internacionais
que ocorreram após os anos 1960 e se intensificam a partir da década de
1970, atravessando a virada do século XX para o seguinte. O novo caráter
dos movimentos migratórios está ligado ao fato de que tais fluxos ocorrem
num mundo “cada vez menor”. Uma das diferenças significativas desses novos
fluxos de população, a partir dos anos de 1960, é a inversão de sua direção.
Anteriormente os fluxos migratórios eram de europeus, em sua maioria
camponeses que migravam da Europa rumo à América. A partir dos anos de
1960 a direção se inverte e passa a ser dos países da América Latina para os
EUA e das ex-colônias para a Europa. Com isso, muda sua composição étnica,
de classe e gênero.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

No caso do Brasil, até os anos de 1950 o Brasil era reconhecido como um país
receptor de migrantes internacionais. Em 1920, a imigração respondia por 5,11%
da população residente no país, enquanto que em 1980 essa participação reduziu-
se expressivamente (PATARRA e BAENINGER, 1995). Essa auto-imagem do
Brasil passa a ser problematizada quando, em meados da década de 1980, fomos
surpreendidos por uma significativa emigração de brasileiros para o estrangeiro e
também por um novo fluxo de coreanos, bolivianos e outros latinos para o Brasil
– os novos migrantes internacionais do e para o Brasil (ASSIS e SASAKI, 2001).
De um modo geral o projeto migratório é sempre familiar e está assentado
em três pilares: emigrar, ganhar dinheiro e retornar em condições econômicas
melhores. O retorno é constitutivo do projeto migratório, mesmo que ao longo
do tempo não se concretize. Esse movimento populacional produz marcas no
território de origem, de destino e nos sujeitos que dele participam.
“Retornar é mais difícil que partir [...]” é uma frase recorrente entre os emigrantes.
Neste artigo pretendemos refletir sobre a complexidade do retorno, seus diferentes
tipos e sua complexidade tanto para os que ficam como para os que emigram.

Migrações no contexto da sociedade global


No final do século XX, o espaço – tempo, dentro de uma perspectiva de
diminuição das distâncias e do tempo, pela possibilidade de comunicação
instantânea e transporte rápido, é uma variável importante para compreender
as novas tendências das correntes migratórias (HARVEY, 1993). As cidades
globais possuem um mercado de trabalho secundário que é atrativo para o
emigrante, pois assegura melhores possibilidades de renda. A circulação
dessas informações e o acesso aos mecanismos que possibilitam a ligação
entre os trabalhadores e essas cidades configuram os fluxos migratórios
contemporâneos.
Nesse sentido o fenômeno da migração internacional deve ser observado
numa perspectiva da economia global e das desconjunturas entre economia,
cultura e política. Segundo APPADURAI (1992), para pensar a imigração a
partir dessa perspectiva é necessário observar cinco dimensões. A primeira diz
respeito aos grupos étnicos, os imigrantes, exilados e trabalhadores temporários.

63
Caderno de Debates – Novembro 2010

A segunda é a capacidade para produzir e disseminar informações; a terceira é


a capacidade de inserção na economia global; a quarta dimensão refere-se à
velocidade de movimentação de altas quantias de dinheiro e a última refere-se
ao conceito de liberdade, bem estar social e democracia.
Dentro destas dimensões é possível pensar a migração internacional de
brasileiros na segunda metade dos anos de 1980, que se intensifica nos anos de
1987-198929 como resultantes de questões estruturais aliadas a fatores políticos que
desencadearam esperanças e frustrações nos primeiros anos de redemocratização
do país (SALES, 1999, p. 129).
Realçamos que esta perspectiva analítica se encontra dentro de uma visão
macro do fenômeno da migração internacional, pois o concebe como estratégias
de mobilidade sujeitas a constrangimentos estruturais. No entanto, como
demonstraremos ao longo desse artigo, embora os constrangimentos estruturais
ajudem a explicar as causas da migração é importante compreender outros
fatores que atuam para explicar porque o fluxo se direciona para determinadas
regiões e conecta certas cidades na origem e no destino, como foi o caso da
intensa rede de relações que se configurou entre Governador Valadares e algumas
cidades nos Estados Unidos na região da Nova Inglaterra, assim as redes sociais
tornam-se aportes teóricos importantes para analisar a continuidade desse fluxo
ao longo do tempo.
A migração internacional de brasileiros, dentro desse novo contexto, é pouco
significativa em termos de volume, se comparada a outros países, contudo é
conseqüência do mesmo processo de transformações econômicas e sociais,
resultantes do novo paradigma da economia mundial, e é significativa para as
cidades e regiões de onde partem esses brasileiros, pois reconfiguram seus espaços
sociais, culturais e econômicos. Ao longo dos anos de 1980, quando o fluxo
migratório para o exterior torna-se intenso, o Brasil deixa de ser um território de
chegada de imigrantes para tornar-se um ponto de saída.

29. Sales (1999) denominou “triênio da desilusão” o período - entre os anos de 1987 a 1989 - quando
milhares de brasileiros deixaram o país decepcionados tanto com a política econômica, quanto com
a situação política.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

I/Emigração no Brasil – o início do fluxo


Os quase 50 anos do início da emigração marcaram a história de algumas
cidades brasileiras como Governador Valadares, ponto inicial da emigração
de brasileiros. O processo de migração de valadarenses para os EUA, iniciado
na década de 60, foi ampliando suas redes envolvendo a cidade nos anos 80
e início dos anos 90, marcando sua identidade e sua história, tanto dos que
partiram, quanto dos que ficavam. Nestes quase cinquenta anos de fluxo,
homens e mulheres foram e voltaram, transformaram suas vidas, de suas
famílias, e do território. Viveram à espera do retorno, com o passar dos anos
os habitantes da cidade viram-se envolvidos, numa Conexão Valadares-USA30,
configurando uma cultura migratória que passa a fazer parte do cotidiano da
vida de seus cidadãos.
Segundo Margolis (1994, p. 93-94), uma “cultura de migrar para o
exterior” existe em Governador Valadares e nas cidades do Vale do Rio Doce.
O termo, elaborado pelo cientista político Wayne Cornelius, é aplicado para
comunidades que têm amplos padrões de migração internacional estabelecidos
por longo tempo; muitas crianças esperam ao crescer migrar como parte
de sua experiência de vida. Portanto, padrões de migração de longo tempo
levam ao fortalecimento de laços entre a comunidade de envio e a de destino
no estrangeiro, neste caso, entre Governador Valadares e algumas cidades
americanas (Assis, 1995).
Assim percebemos em Governador Valadares a constituição de uma cultura
da emigração que significa a presença de um imaginário coletivo que se
traduz na idéia da emigração internacional como uma alternativa viável para
melhoria das condições de vida tanto na perspectiva econômica quanto social
e cultural. Essa consciência é formatada ao longo do tempo e configurada por
determinantes históricos que ligam a origem ao destino.

30. Conexão USA é o título de um programa exibido na TV Rio Doce, em Governador Valadares,
em 1992. Este programa pretendia relatar a vida dos emigrantes brasileiros nos EUA. Utilizamos
deste título aqui, para evidenciar esta ligação. Para maiores informações sobre a história da cidade e
sua articulação com o fluxo Goval-EUA, ver ASSIS (1995).

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Caderno de Debates – Novembro 2010

Os primeiros dezessete jovens da cidade de Governador Valadares, emigraram


na década de 1960 para os Estados Unidos da América com o objetivo de
trabalhar. Pertenciam à classe média, possuíam o segundo grau completo e
estavam na faixa etária de 18 a 27 anos. Emigraram não por razões econômicas
e sim pela aventura e pela curiosidade de conhecer um país que consideravam
rico, desenvolvido e cheio de grandes oportunidades (SIQUEIRA, CAMPOS,
ASSIS, 2010).
Como esta idéia sobre os EUA foi construída? Através dos relatos, desses
primeiros emigrantes, ficou evidenciado que nos anos de 1960 estava presente no
imaginário da juventude a idéia de que lá, nos EUA, aconteciam as coisas mais
importantes do mundo, a música, os filmes e a guerra do Vietnam.
É importante destacar que a admiração pelo estilo de vida americano difundido
principalmente pela música e os filmes, fazia parte do imaginário popular de toda
a juventude brasileira, contudo na cidade de Governador Valadares havia um
elemento diferenciador que impulsionou o fluxo emigratório para os EUA.
O elemento importante neste processo foi a escola de inglês IBEU e os
intercâmbios dos primeiros estudantes valadarenses para os EUA que trouxeram
notícias mais concretas da sociedade americana. A imprensa local noticiava as
viagens e as maravilhas vividas por esses intercambistas, que pertenciam à mesma
camada social e eram amigos dos primeiros emigrantes.
Esta escola foi fundada em 1960 pela esposa do Mister Simpson, Dona
Geraldina Simpson. Mister Simpson era um dos engenheiros americanos que
vieram para Governador Valadares em 1942 para trabalhar na ampliação da
Estrada de Ferro de Vitória a Minas. Findas as obras todos os trabalhadores
americanos deixaram a cidade, contudo a família Simpson aqui permaneceu.
Mister Simpson viveu em Governador Valadares até sua morte em 1969
(SIQUEIRA, 2008).
Ao retornar, o primeiro intercambista relatou as grandes possibilidades
de trabalhar e estudar nos EUA e indicou o caminho e as possibilidades
de emigrar, ganhar muito dinheiro e estudar. No mesmo ano, de posse das
informações concretas os primeiros jovens partiram para os EUA com visto
de trabalho.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

Os quatro primeiros emigrantes foram os pontos iniciais da rede, partiram em


1964. As cartas acompanhadas de fotos eram enviadas com freqüência relatando
as oportunidades e maravilhas da terra, difundindo assim a grande aventura que
era emigrar. Esses primeiros davam o suporte necessário para aqueles que os
seguiam. Além das informações emprestavam dinheiro, buscavam no aeroporto,
ofereciam estadia ou moradia, arrumavam o primeiro emprego, compravam
roupas adequadas ao clima dos EUA, etc.
As redes sociais emergem em decorrência do próprio desenvolvimento do
processo migratório e das conexões que passam a ser estabelecidas entre os locais
de destino e origem dos emigrantes. As redes formadas nos países que recebem
emigrantes são um dos principais fatores da permanência destes por lá, pois
tornam a migração mais segura na perspectiva do emigrante. Ao encontrarem
um grupo de amigos receptivos, sentem-se menos sozinhos e desprotegidos.
As redes são formadas por interesses comuns e laços de amizade ou parentesco
de seus participantes. Sendo assim, podemos considerar que o fluxo migratório
para os EUA definiu-se a partir de um contexto histórico que criou, no imaginário
popular, a idéia da existência de um lugar onde era fácil ganhar dinheiro e teve
como fator determinante a formação das redes sociais.
A partir do boom emigratório31, na segunda metade dos anos de 1980, até
o início do ano 2000 o destino da maioria dos brasileiros, principalmente
valadarenses eram os Estados Unidos, em razão, principalmente, das
possibilidades de trabalho e das redes de relações que disseminam informações
sobre o mercado de trabalho e o surgimento de mecanismos facilitadores para
o processo de emigração32. Se por um lado a emigração internacional começou
nesse ponto geográfico, ainda nos anos de 1980 se espraiou para várias outras
regiões do Brasil, com trajetórias históricas que se assemelham em muitos
pontos (SIQUEIRA, CAMPOS. ASSIS, 2010).

31. O crescimento do fluxo migratório de valadarenses para os EUA se dá exatamente entre 1985 e
1990 (SOARES, 1995).
32. Surgimento de agencias de turismo que organizavam viagens e davam orientações para conseguir
tirar o visto americano, falsificadores de vistos e agenciadores para a entrada pela fronteira do
México. Maiores detalhes sobre esses mecanismos ver Siqueira, 2009.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

A partir da dificuldade de obtenção do visto para viajar para os Estados


Unidos, bem como o acirramento americano da fiscalização da Imigração, os
fluxos de brasileiros, se direcionaram também para a Europa (Portugal, Espanha,
Itália, Reino Unido, etc.). O atentado de 11 de setembro de 2001 acirrou ainda
mais a fiscalização em relação ao estrangeiro indocumentado e a crise econômica
que em 2007 atingiu diretamente o mercado de trabalho secundário, reduziu as
oportunidades de trabalho e renda para a maioria dos emigrantes, tornando o
custo benefício da emigração negativo. Para algumas das cidades de origem do
fluxo esse retorno em grande escala e em diferentes condições das que ocorriam
até os anos de 2007 o impacto é significativo.
O projeto migratório costuma ser traduzido pelo emigrante como: trabalhar
e permanecer no estrangeiro para juntar recursos suficientes para comprar uma
casa, um carro e montar um negócio, ou seja, passa sempre pela possibilidade
de ganhar dinheiro e retornar em condições econômicas melhores. A expressão
“fazer a América”, que os emigrantes do século XXI continuam a utilizar
significa exatamente este percurso. Assim no projeto migratório está inserida a
perspectiva ou a promessa de retorno. Com o passar do tempo o projeto inicial
é reformulado e abandonam o projeto de retorno. Contudo, a maioria, mesmo
adiando o projeto de retornar à terra natal indefinidamente continua afirmando
“um dia ainda vou voltar”.

As diferentes formas de retorno na perspectiva do emigrante


Durante o percurso do projeto migratório, dadas as condições sociais,
econômicas e culturais, esse projeto é reelaborado e o retorno apresenta diferentes
nuances. Assim podemos considerar que existem cinco tipos de retorno.
Retorno temporário é aquele em que o migrante define o país de destino como
seu local de moradia. Lá tem sua família, seu trabalho, e seus investimentos.
Vêm ao Brasil de férias ou para festas familiares. Recebem os jornais de sua
cidade natal ou acessam através da internet. Mandam dinheiro para ajudar a
família e ajudam entidades de caridade local. No país de residência muda seu
padrão de vida e consumo, pois já não têm a preocupação de fazer poupança
para voltar e investir no Brasil.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

Outro tipo é o retorno continuado. O emigrante retorna à cidade de origem


investe e acaba perdendo seu investimento ou não consegue se readaptar à vida no
Brasil. Volta a emigrar para o mesmo país ou para outro país e continua mantendo
o projeto de voltar. Alguns fazem esse caminho por várias vezes. Restringe seu
padrão de vida e consumo no país de destino objetivando fazer uma poupança
para tornar a investir em sua cidade de origem33. Este é um dos aspectos perversos
da emigração, o sujeito perde a identidade com sua origem e não estabelece um
espaço social no destino.
Vive no entre lugares, quando está no país estrangeiro tem o desejo de estar
na sua cidade natal, pois a vida é mais alegre, tem muitos amigos e tudo é
mais fácil e mais bonito. Quando retorna, depois de ausentar-se por 3 ou até
10 anos ou mais sente-se um estrangeiro, tudo é diferente. Não encontra o
território imaginado, aquele que guardou e congelou em sua memória por
longos anos. As pessoas são diferentes, o lugar é estranho, tudo é mais difícil.
Retorna para o estrangeiro e depois de algum tempo recomeça a pensar no
retorno à origem novamente.
Nessas tentativas de retorno fazem investimentos que muitas vezes são mal
sucedidos, pois no tempo de permanência no exterior, pouparam capital financeiro,
mas não adquiriram nenhuma habilidade para se tornar empreendedores e
autônomos. Além disso, o tempo vivido no exterior, principalmente para os que
são indocumentados, foi um tempo de invisibilidade social, medo de deportação
e uma vida restrita à comunidade étnica. No retorno é preciso demonstrar para si
e para os outros o sucesso do seu projeto migratório (emigrar – ganhar dinheiro
– retornar em condição econômica melhor), nesse sentido é comum promover
festas, pagar a conta do barzinho e dar presentes caros para os amigos, parentes e
visinhos. Assim gastam boa parte da poupança feita a duras penas.
A maioria investe no comércio, abre negócio sem conhecer o mercado e sem
nenhuma prática no ramo. Finda a euforia da chegada, começa o estranhamento e
as dificuldades financeiras devido ao investimento mal sucedido, então recomeça
a construção de outro projeto migratório, para o mesmo país ou para outro.

33. Margolis (1994) denomina de migração iô-iô.

69
Caderno de Debates – Novembro 2010

Siqueira (2009) relata as idas em vindas deste tipo de emigrante de até 5 vezes,
fazendo sempre o mesmo percurso.
A trajetória de sofrimento nessas idas e vindas não se torna visível socialmente,
pois o insucesso do negócio, a angústia de viver no entre lugares, a esquizofrenia
de viver essa dualidade de insatisfação em qualquer lugar que esteja, ou seja,
viver sempre na perspectiva de que o lugar do qual se ausenta é melhor, não é
explicitado e visível socialmente.
O Retorno permanente é aquele em que o emigrante retorna e consegue
estabelecer-se na sua cidade ou país de origem, não pretende emigrar novamente.
São os que se tornaram autônomos ou conseguiram se inserir no mercado de
trabalho. Conseguem se readaptar ao estilo de vida da sua cidade de origem e
creditam a sua condição ao seu projeto migratório. Esses são considerados bem
sucedidos, pois concretizaram o projeto de ascensão social ou melhoria de vida.
São visíveis, pois antes não possuíam casa própria, carro e um empreendimento
que lhes proporcionasse renda para viver bem.
É interessante destacar que, nas cidades onde o fluxo de emigração
internacional é grande, é fácil observar como o status de retornado bem
sucedido é ostentado através das casas. Constroem casas grandes, de dois
ou mais andares, em lugares que só existiam casas mais simples, pois fazem
questão de retornar para seu bairro, para o mesmo ponto de partida, mesmo
que possuam capital para comprar ou construir em bairros mais valorizados.
As casas são pintadas de cores berrantes, tais como, laranja, verde, vermelho,
amarelo. Essa é uma forma de demonstrar para si e para os outros o seu
sucesso. Vale ressaltar que este grupo não constitui a maioria, mas são muito
visíveis e estimulam a emigração de outros, pois são a prova concreta de que
o projeto migratório é possível.
O transmigrante é aquele que vive nos dois lugares. Em sua maioria são
documentados, têm vida estabilizada no país de destino e no Brasil. Possuem
casa, fazem investimentos e trabalham nos dois lugares. Passam parte do ano no
Brasil e participam ativamente da vida social das duas cidades. Transitam, têm
visibilidade e são atores sociais nos dois lugares. Estes como os anteriores, também
constroem casas grandes e coloridas. Em sua temporada no Brasil, demonstram

70
Caderno de Debates – Novembro 2010

o seu sucesso através de festas, presentes e das fotos que mostram as maravilhas
do estilo de vida americano. Não relatam as dificuldades do inverso ou a dureza
do trabalho. São minoria, mas também são muito visíveis e são referência para os
emigrantes em potencial, ou seja, seus vizinhos e amigos.
A partir de 2007, inicia-se outro tipo de retorno, são os retornados da crise.
A crise atingiu diretamente o mercado de trabalho secundário. A construção civil
teve queda, com isso houve redução do valor das horas. Em seqüência houve
redução de trabalho e ganhos e quase todas as atividades do mercado de trabalho
secundário onde a maioria dos homens e mulheres migrantes atua.
Diante disso o custo benefício da emigração deixa de ser positivo e muitos
optaram por retornar diante da inviabilidade de continuar vivendo nos EUA e em
outros países que foram também atingidos pela crise (Portugal, Itália, Espanha,
etc.). Para muitos o projeto emigratório tornou-se um projeto interrompido,
frustrado. Alguns conseguiram retornar e ter uma renda nas cidades de origem,
mas a grande maioria afirma que o retorno não desejado torna ainda mais difícil
a readaptação, principalmente porque experimentaram a vida num país que
acreditavam que era o país das oportunidades (SIQUEIRA, 2009).
A crise atingiu tanto os emigrantes documentados como os não documentados.
Contudo os não documentados vivem, além da queda da renda, a situação de
insegurança e medo da deportação. Os emigrantes que possuem Green Card ou
cidadania americana têm a esperança de que a crise vai passar e então poderão
retornar. Enquanto isso retorna “temporariamente” ao Brasil.
Dados da pesquisa realizada na Microrregião de Governador Valadares34 com
emigrantes retornados no período de 2007 a 2008 demonstram que 18% afirmam
que possuem renda no Brasil para sua sobrevivência, ou seja, fizeram investimentos
como: casas de aluguel, comércio, propriedade rural, etc. antes de retornar. Outros
51% estão retornando com capital para investir e assim auferir renda para sua
manutenção, e 21% não possuem nenhum investimento no Brasil e retornam sem
capital. Pretendem entrar para o mercado de trabalho (SIQUEIRA, 2009).

34. Foram entrevistados 398 emigrantes retornados no período de 2007 a 2008 na Microrregião de
Governador Valadares.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

Grande parte dos investimentos realizados por emigrantes na Microrregião de


Governador Valadares não são bem sucedidos como demonstrado na pesquisa de
Siqueira (2009), principalmente por falta de conhecimento do mercado em que
investem e de experiência como empresário. Essa situação ocorre com os emigrantes
que retornam para diversas regiões do país, pois embora acompanhem a vida
cotidiana em suas cidades de origem através da internet e do contato constantes
com parentes e amigos, perderam o contato com a dinâmica da economia local,
não têm informações sobre onde investir seus recursos, não buscam as mesmas
em órgãos públicos o que leva muitos investimentos à falência em poucos meses.
Por essa razão, podemos considerar que esses emigrantes correm o mesmo risco
de não serem bem sucedidos em seus investimentos.
Os migrantes que estão retornando com a intenção de conseguir se inserir
no mercado de trabalho também tem pouca probabilidade de obter sucesso, pois
estiveram afastados por 3 ou 4 anos e durante o tempo de emigração não agregaram
nenhuma característica que conferisse valor ao seu perfil de trabalhador.
A emigração trouxe para alguns a melhoria de suas condições de vida, para
outros a frustração de anos perdidos num trabalho duro e fatigante em busca do
sonho de “fazer a América” ou de desfrutar do American Way of Life. O sonho
acabou e restaram para muitos as frustrações e a incerteza do futuro.

Estranhamento: efeito de uma nova percepção do outro decorrente


do retorno
A migração internacional impacta tanto aqueles que emigram quanto
aqueles que ficam na origem e participam diretamente do projeto migratório.
As companheiras dos emigrantes que permanecem na origem são pontos
importantes na elaboração e concretização do projeto migratório.
Pesquisa realizada por Almeida, Machado e Boechat (2008)35 investiga essa
perspectiva do fenômeno migratório, ou seja, a percepção das companheiras que
permaneceram na origem dando sustentação ao projeto migratório.

35. Pesquisa realizada em Governador Valadares no período de 2006 a 2008. Nesse estudo foram
realizadas 247 entrevistas com esposas de emigrantes.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

O projeto é familiar e a companheira dá suporte tanto no aspecto afetivo como


na administração da casa e na realização de investimentos das remessas enviadas
do exterior.
O casal mantém contato com freqüência e a expectativa do retorno é
vivenciada por toda a família. Contudo, como afirma Sayad (2000), não é
possível retornar para o mesmo tempo da partida. Durante os anos de ausência
o emigrante fixou a terra natal e as pessoas que ficaram no tempo da partida,
mas o lugar e as pessoas mudaram e ele também mudou. Ao retornar a esse
ponto de partida percebe que tudo está diferente de como era quando partiu e
da mesma forma, sua família o percebe diferente daquele que havia partido. Este
novo cenário gera no emigrante um desconforto e estranhamento que resulta
num profundo sentimento de não pertencimento àquele novo ambiente, isto é,
ao seu local e convívio de origem, no tempo da partida.

[...] quando a pessoa chega, tem um conflito, um choque, é difícil, não é fácil
pra adaptar, começa-se tudo de novo. [...]. Ele voltou diferente, agora que ele
ta se situando, ta voltando ao normal, antes ele estava mais individualista
por ter ficado aquele período todo sozinho, agora ta voltando ao normal
(Mulher de retornado, 30 anos).

Muitos retornados não conseguem se sentir novamente pertencentes ao seu


meio familiar, social e territorial. Em decorrência de tantas mudanças inesperadas,
não é incomum que o retornado assuma uma posição crítica (nesse caso pejorativa)
em relação aos familiares, ao bairro à cidade enfim ao ambiente ao qual pertencia.

[...] então eu notei assim muita diferença sabe, achei a pracinha horrorosa,
que antigamente ela era mais bonita [...] Sabe, eles deviam fazer aquela
pracinha mais bonita, então assim, eu achei que o Rio Doce encolheu que ele
era bem mais largo, agora ele ta um tiquitinho, eu perguntei pro meu irmão:
“é impressão minha ou esse rio encolheu?” (Emigrante retornada, 59 anos).

Durante sua ausência idealiza o local e as pessoas que deixou para traz.
A cidade fica maior e mais bonita, esquece os atritos com a companheira e os filhos
e recria no seu imaginário tanto o espaço físico, como o social numa dimensão

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Caderno de Debates – Novembro 2010

ideal. Ao se encontrar novamente na terra natal, o emigrante fatalmente percebe


que apenas seu retorno não é suficiente para acabar com toda a saudade que
sentia. Percebe também que ele, as pessoas e seu ambiente de origem, mudaram
com o passar do tempo. Finalmente constata que foi possível apenas retornar ao
território físico de onde saiu, porém não para as vivências do tempo da partida.
A partir daí é feita a descoberta da irreversibilidade do tempo de que fala Sayad:
“Não se pode estar e ter estado ao mesmo tempo. O passado, que é o ‘ter-estado’,
não pode jamais tornar-se novamente presente e voltar a estar-no-presente, a
irreversibilidade do tempo não permite” (SAYAD, 2000, p. 11).
Por outro lado, a família também passa por um processo de estranhamento em
relação ao emigrado, pois ela também idealiza esse sujeito. As remessas, as caixas
cheias de presentes e as palavras carinhosas e promessas trocadas nos contatos
durante a ausência são fixadas e todos os atritos e discordâncias são esquecidas.
Nos relatos dos familiares, pode-se constatar que o estranhamento sentido pela
mulher em relação ao companheiro que retorna não tem relação com o sucesso
ou insucesso financeiro do projeto migratório, mas com o tempo de ausência e as
mudanças operadas tanto nela como nele.
Fora do país de origem as experiências do emigrante tornam-se parte de seu
modo de vida. O novo cenário, as novas relações e as percepções do conjunto são
representadas alterando o modo de ser do sujeito. A magnitude de tais alterações
tem grande influência na percepção daqueles que ficaram:

Muda, muda muito. A pessoa fica diferente, a pessoa fica distante, agora até
que eu acostumei, mas quando chega, parece até outra pessoa, que você não
conhece a pessoa. [...] parece que você não conhece a pessoa, que a pessoa ta
diferente, pra gente muda (Mulher de retornado, 35 anos, fracasso).

O rearranjo familiar decorrente da ausência do parceiro constitui-se num


segundo elemento quase incontornável responsável pelo estranhamento
percebido tanto pelo retornado quanto por seus familiares. Pode-se dizer que
por envolver a mulher e na maioria das vezes os filhos, este se constitui num
dos maiores fatores de ordem psicossocial de dificuldades de reinserção do
emigrante em sua cidade de origem.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

As desavenças produzidas pela perda de autoridade do emigrante em relação a


sua família ou manutenção da autonomia conquistada pelos que ficaram tendem
a acirrar os conflitos entre retornado e residentes. Existe nessa situação um novo
processo de aprendizado que nem sempre é fácil para os envolvidos. Como afirma
Sayad (2000) o pecado da ausência é cobrado pelos que ficaram e se transforma
numa autopunição para o emigrante.

Mas na relação de você ter uma família e deixar ela pra viver em outro
país, é muito complicado, os filhos sentem a falta do pai, a esposa, e então
pra você saber controlar isso é muito difícil e a pessoa de lá também, porque
tem a convivência, e depois extrai, e depois que volta é aquela coisa mais
estranha, tipo assim, você aprende a viver sozinha, e depois a pessoa volta, e
tem que reaprender (Mulher de retornado, 24 anos, fracasso).

Eu acho que não agüentaria (de novo), pois a separação é muito difícil e o
retorno mais ainda, pois o casal tem que começar como se fosse do zero, a
relação (Mulher de retornado, 38 anos, sucesso).

As situações adversas provocadas pela ausência não são apagadas com o


retorno. No decorrer do projeto migratório as mulheres tornam-se autônomas,
pois se descobrem capazes de administrar suas próprias vidas e de suas famílias.
No retorno do companheiro não admitem perder a liberdade e autonomia
conquistada e começa então o estranhamento tanto do migrante em relação a
sua família quanto vice-versa.

Eu fico mal, vou te falar a verdade, não me passa nada bom, eu fico com
aquele sentimento de um vazio, aquela coisa ruim dentro de mim, tudo que
eu senti, as lembranças voltam [...] (Mulher de retornado, 30 anos, sucesso).

As mulheres que emigram também sentem as dificuldades de readaptação,


contudo em diferentes dimensões. No retorno, tanto os homens quanto as
mulheres não voltam para o mesmo, lugar, para as mesmas relações familiares
e de gênero, o que significa que tem que renegociar posição, masculinidades e
feminilidades.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

Essas dificuldades são sentidas de maneiras distintas por homens e mulheres


emigrantes. Enquanto as mulheres emigrantes vivem um processo de empoderamento,
possibilitado pela inserção no mercado de trabalho no país de destino, em especial no
negócio da faxina, e se percebem numa sociedade que garante uma série de direitos às
mulheres protegendo-as, inclusive, de relações violentas, o que faz com que as mesmas
renegociem suas posições de gênero, os homens vivenciam um processo distinto.
Os homens solteiros e casados vivenciam uma perda em relação a suas posições
de autoridade que vivenciavam antes do processo migratório. No contexto da
migração têm que dividir tarefas domésticas, cuidados com os filhos, respeitar
leis que protegem as mulheres e crianças de relações violentas.
Quando retornam ao Brasil, aqueles homens que partiram e deixaram suas
mulheres se surpreendem ao encontrar suas mulheres empoderadas e assumindo
a chefia dos domicílios e aqueles que retornam com suas companheiras, vivenciam
o desejo delas de manterem no Brasil um padrão de relações de gênero mais
igualitário, como vivenciaram nos Estados Unidos.
Em ambos os casos, as posições de gênero são renegociadas o que tem gerado
crises, tensões e re-definição nas identidades de gênero. Assim, no contexto do
retorno a terra natal, os emigrantes homens e mulheres negociam suas posições de
gênero o que muitas vezes gera questões para a sociedade de origem que vivencia o
retorno como um momento de transformações nas relações familiares e de gênero.

Considerações finais
O projeto migratório tem como meta principal ganhar dinheiro para viver
em melhores condições no país de origem. Nesse sentido ele é elaborado sempre
numa perspectiva de retorno ao ponto de partida. Esse retorno assume diferentes
formas como: temporário, continuado, permanente e transmigrantes e após 2007
os retornados em função da crise econômica no país de destino.
Nesse percurso, todos os constrangimentos, a dureza do trabalho e a
invisibilidade para os indocumentados não são visíveis, mas as conquistas de
bens materiais tornam-se extremamente visíveis e isso reafirma o imaginário
popular de que, através da migração para o exterior, é possível ganhar dinheiro e
conquistar melhores condições de vida no retorno.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

Ao longo dos anos, a visibilidade daqueles que foram bem sucedidos e a


circulação das informações das grandes possibilidades de ganhar dinheiro, foi
constituído o que denominamos de uma cultura da emigração, ou seja, a idéia
de que a resolução dos problemas econômicos passa sempre pela emigração
para um país rico. Neste sentido a emigração passou a ser uma alternativa viável
e acessível aos moradores da região. Entre cursar uma faculdade e emigrar, entre
a possibilidade de por vários anos construir uma carreira ou juntar dinheiro
para adquirir um carro ou a casa própria e emigrar e conseguir esse dinheiro
em poucos anos, muitos optam pela segunda possibilidade, pois, acreditam que
terão uma ascensão social mais rápida independente do que representa essa
ausência no seu território de origem.
Independente das condições de retorno ele é sempre marcado pelo
estranhamento entre aqueles que ficaram e os que partiram. No que diz respeito
às mulheres, durante o período de ausência de seus parceiros, passam a assumir
as tarefas dos cônjuges e se tornam responsáveis pelos investimentos das remessas
enviadas do exterior. Esse novo papel lhes confere autonomia e a percepção de
que são capazes de gerir suas próprias vidas e de suas famílias. No retorno do
companheiro não estão dispostas a perder a posição alcançada.
As mulheres que emigram também conquistam autonomia, pois durante o
tempo de emigração tornam-se também provedores e quando emigram com
seus companheiros dividem tanto o papel de provedor como dos afazeres
domésticos. No retorno não aceitam a posição de submissão que possuíam
anteriormente. Nesse sentido podemos concluir que o retorno reconfigura as
relações de gênero, as relações familiares e sociais. Um aspecto importante
no retorno que não tratamos nesse artigo devido aos limites de espaço, mas
igualmente importante, são os efeitos desse retorno para o território, no que diz
respeito à cultura e economia.
A dificuldade de reconhecer seu próprio lugar de origem e as pessoas que
ficaram, as dificuldades de adaptação, a dor e a culpa da ausência, as mudanças
temporais tanto dos que partiram como dos que ficaram tornam o retorno tão
desejado, um processo demorado e carregado de sofrimento tanto para os que se
ausentaram como para os que ficaram.

77
Caderno de Debates – Novembro 2010

Referências bibliográficas
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Carlos Alberto; BOECHAT, Clarisse Souza. Impactos do isolamento conjugal
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a Economia Mineira. Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2008. v. 13.
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Programa de Pós-Graduação em Antroplogia Social, Universidade Federal de
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Caderno de Debates – Novembro 2010

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SOARES, Weber. Emigrantes e investidores: Redefinindo a dinâmica imobiliária
na economia valadarense. 1995. 174 f. Dissertação (Mestrado em demografia) -
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

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©ACNUR / H. J. Davies
Caderno de Debates – Novembro 2010

No Sri Lanka, mulher atingida pelo tsunami coleta água em frente ao abrigo construído pelo ACNUR
no distrito de Jaffna.

Mudanças Climáticas e Deslocamentos:


implicações sobre os direitos humanos36

Scott Leckie37

Adotar uma postura frente às mudanças climáticas a partir do ponto de vista dos
direitos humanos com base no princípio da dignidade inerente à pessoa implica
que a cifra total de deslocados não seja o único que importa. Cada pessoa que se
vê obrigada a abandonar seu lar contra sua vontade deve receber uma solução que
respeite seus direitos, proteja-os e, se é necessário, cumpra-os segundo reconhece
a legislação internacional em matéria de direitos humanos.
Os direitos humanos constantes na legislação internacional, que são
especialmente pertinentes ao debate sobre o deslocamento provocado pelas

36. Artigo publicado na Revista Migraciones Forzadas, número 31, novembro de 2008, da
Universidade de Alicante, Instituto Universitario de Desarrollo Social y Paz, Espanha (permitida a
reprodução com citação da fonte). Tradução do espanhol: Rosita Milesi, IMDH, Brasília, out/2010.
37. Diretor e Fundador da organização Displacemant Solutions (www.displacementesolutions.org).

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Caderno de Debates – Novembro 2010

mudanças climáticas são: o direito a moradia adequada e os direitos que dela


derivam, o direito à titularidade garantida, o direito a não ser discriminado
arbitrariamente, o direito à terra e aos direitos que dela derivam, o direito à
propriedade e ao uso e gozo pacífico dos bens, o direito à intimidade e ao respeito
ao lar, o direito à segurança da pessoas, à liberdade de movimento e a escolher
o lugar de residência, à restituição ou compensação pela moradia, à terra e à
propriedade, depois do deslocamento forçado. Contemplam-se todos estes
direitos e obrigações com o objetivo de que as pessoas de qualquer lugar possam
viver com segurança em seu terreno, residir numa moradia acessível e adequada,
com acesso a todos os serviços básicos e se sintam seguras sabendo que estes
direitos serão plenamente respeitados, protegidos e realizados.
De fato, o marco normativo que contempla estes direitos é considerável e
está em constante evolução e expansão. É extenso o conjunto de leis e normas
internacionais sobre os direitos humanos que os governos podem aplicar para
construir os marcos jurídicos, políticos e institucionais necessários para garantir
que qualquer direito relacionado às mudanças climáticas e, sobretudo, com
soluções duradouras no que diz respeito ao deslocamento, sejam plenamente
respeitados, protegidos e cumpridos.
Contudo, quando nos fixamos na atuação dos estados e da comunidade
internacional nos últimos 60 anos de experiência em matéria de direitos humanos,
e quando escutamos a voz de milhões de pessoas no mundo inteiro que continuam
sem desfrutar do mínimo de seus legítimos direitos no que se refere à moradia, à
terra e à propriedade, fica evidente que solucionar as conseqüências das mudanças
climáticas sobre estes direitos está muito longe de ser uma tarefa simples.
Milhões e milhões de pessoas perderam sua casa e suas terras devido a conflitos,
à avidez de investidores, ao desenvolvimento mal planejado e aos desastres naturais
(terremotos, inundações e tsunamis). Infelizmente, são muito poucos os que viram
seus direitos respeitados, os que se beneficiaram com uma melhoria lenta e gradual
de sua moradia e condições de vida depois de cessada a situação que provocou
seu deslocamento. Esta circunstância deve servir para recordar-nos que devemos
dar prioridade às estratégias baseadas nos direitos humanos na hora de abordar a
dimensão do deslocamento motivado pelas mudanças climáticas. A história revela

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Caderno de Debates – Novembro 2010

que o tratamento que a maioria dos países dispensa às vítimas quanto ao seu direito
à moradia, à terra e à propriedade, nestes deslocamentos, é muito deficiente.
Em muitas situações catastróficas, os deslocados retornam a seus lares assim
que as circunstâncias o permitem e iniciam rapidamente a árdua e difícil tarefa
de reconstruir sua condição de vida anterior. Em outros casos, impede-se aos
deslocados, de maneira arbitrária ou ilegal, de regressar e recuperar seu lar. Por
exemplo, no Sri Lanka e Aceh, segue-se impedindo fisicamente a milhões deles
de regressarem a seus lares depois do tsunami asiático de 2004, apesar de seu
evidente desejo de fazê-lo. Ainda que se tenha dedicado consideráveis esforços
para tratar o deslocamento e o retorno no contexto de conflitos armados, faz muito
pouco que os profissionais começaram a explorar os vínculos essenciais entre o
deslocamento, os desastres naturais e meio-ambientais e as soluções duradouras
relativas ao deslocamento no marco dos direitos humanos.

Boas Práticas
Parece que os que trabalham depois de um desastre natural conseguem um
número cada vez maior de conclusões importantes. Por exemplo, as boas práticas
indicam que todos os deslocados devem ter direito a regressar voluntariamente
(restituição da moradia, terra e propriedade) e sem discriminação a seu lar. Em
outras situações posteriores à catástrofe, os esforços de reinstalação realizados no
próprio local demonstraram ser o meio mais eficaz para proporcionar ajuda às
vítimas. Atualmente, a normativa internacional respalda o direito das populações
afetadas por um desastre natural a regressar e recuperar seu antigo lar e terras, se
assim o desejam. Os que propiciam dito regresso devem trabalhar para:

- Eliminar qualquer legislação discriminatória sobre heranças e propriedade


que impeça uma transmissão equitativa dos bens aos sobreviventes, em concreto
às mulheres e crianças, e que garanta que estas não sofram discriminação
direta ou indireta nos esforços de ajuda e reconstrução.
- Assegurar que todos os esforços de reconstrução tenham em total
consideração as necessidades dos grupos mais vulneráveis ou marginalizados,
como as minorias étnicas, as crianças, os idosos, os deficientes, os enfermos
crônicos e as famílias monoparentais ou compostas só por menores de idade.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

- Evitar que se impeça o regresso de forma ativa, assim como impedir que os
funcionários públicos ou as redes de delinqüentes se apropriem de terras.
- Garantir a existência de programas para proporcionar refúgio ou moradia
que estejam bem providos de recursos e bem coordenados.
- Fomentar a participação de toda a comunidade no processo de reconstrução.
Conscientizar as autoridades locais de que a reconstrução de moradias
pode representar o elemento de mais longo prazo em qualquer processo de
recuperação e ajudá-las a planejá-lo.

Felizmente, entende-se cada vez melhor que a realocação ou o reassentamento


devem ocorrer unicamente como último recurso e só depois de examinar
detalhadamente todas as alternativas possíveis. Aceita-se, cada vez mais, o princípio
de que, quando o reassentamento constitui a única opção, depois de estudar todas as
vias possíveis, a realocação permanente não deve dar lugar jamais à falta de moradia
e deve proporcionar a todos, por direito, um alojamento alternativo que cumpra as
normas internacionais de direitos humanos relativas a uma moradia adequada.
Contudo, é provável que o deslocamento induzido pelas mudanças climáticas
apresente novas e maiores dificuldades. Os Estados e sua população ainda terão
de assimilar os efeitos e as conseqüências de um deslocamento permanente e
irreversível provocado pelas mudanças climáticas e pela elevação do nível do mar.
Alguns arquipélagos, como as Ilhas Carteret, Tokelau e Vanuatu, já começaram a
reassentar de forma permanente sua população devido à perda de território com
o aumento do nível do mar e a salinização dos recursos de água doce. É evidente
que estes e outros casos apresentam só um pequeno começo do que se prevê que
venha a ser a maior migração global em massa da história da humanidade.
Não há dúvida de que as respostas das políticas de curto prazo serão similares às
que já se aplicam após muitos conflitos armados e desastres naturais, e consistirão,
em grande parte, em programas de refúgio, acampamentos e assentamentos de
migrantes forçados e outras medidas. As políticas de longo prazo devem embasar-
se, com maior profundidade, no marco do direito à moradia, à terra e à propriedade,
e incluir soluções como prover casas e terras alternativas, compensar e oferecer
novos meios de subsistência e é de se esperar que se baseiem na experiência do
reassentamento permanente, graças ao trabalho realizado no mundo inteiro.

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Caderno de Debates – Novembro 2010

Conclusões
Dados os problemas que representa e representará o deslocamento provocado
pelas mudanças climáticas, é muito urgente:

- Desenvolver marcos institucionais nacionais adequados: por exemplo, em


fevereiro de 2008, requereu-se às prefeituras da Austrália que realizassem
exercícios de planejamento completo, relativo às mudanças climáticas, para
todas as comunidades ameaçadas por inundações. Este e outros exemplos
semelhantes podem servir de modelo para outras nações que desejem mitigar
as consequências e adaptar-se às futuras mudanças do clima.
- Desenvolver marcos institucionais internacionais adequados: os Estados e o
ACNUR devem examinar, de forma sistemática, as implicações da incorporação
destas questões em seu mandato legal e em suas operações diárias.
- Promover a evolução do direito internacional: talvez modificar a Convenção
de 1951 não dê resultado, porém um novo Protocolo à Convenção poderia ter
efeitos positivos. Uma consequência importante relativa à maior atenção que
se presta às implicações das mudanças climáticas para os direitos humanos
poderia consistir na adoção de uma nova normativa internacional na matéria.
Esta normativa, ou talvez um conjunto de normas que constituiriam os
princípios internacionais sobre a relação das mudanças climáticas e os direitos
humanos seria de grande ajuda aos governos nacionais que buscam orientação
sobre como enfrentar estes desafios.
- Aumentar o Fundo de Adaptação Global: estabelecido durante a Cúpula de
Bali de 2007, o Fundo se encontra com um déficit mínimo de 9.750 milhões de
dólares. Não é o melhor momento para que o mundo rico se mostre mesquinho.
- Desenvolver medidas de desapropriação de terras em virtude do direito
e investir no banco rural: deve-se animar os governos do mundo inteiro
para que revisem sua legislação nacional relativa à expropriação de
terras. O deslocamento provocado pelas mudanças climáticas pressionará
sobremaneira as cidades e as zonas desprovidas que as rodeiam. Os governos
devem localizar as terras não utilizadas para que no futuro possam reassentar
sua população e comunidades, se for necessário.

85
O Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), fundado em 1999, é uma entidade social sem fins
lucrativos, filantrópica, cuja missão é promover o reconhecimento da cidadania plena de migrantes
e refugiados, atuando na defesa de seus direitos, na assistência sócio-jurídica e humanitária, em
sua integração social e inclusão em políticas públicas, com especial atenção às situações de maior
vulnerabilidade. É vinculado à Congregação das Irmãs Missionárias Scalabrinianas e atua em
parceria com várias organizações da sociedade, especialmente com as aproximadamente 50 entidades
integrantes da Rede Solidária para Migrantes e Refugiados, que o próprio IMDH articulou.

Encerrando a celebração dos dez anos de fundação do IMDH, é com alegria que apresentamos, em
parceria com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), o Caderno de
Debates nº 5 – Refúgio, Migrações e Cidadania.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados foi estabelecido em 14 de dezembro
de 1950 pela Assembléia Geral da ONU. A agência tem como mandato liderar e coordenar a
ação internacional para proteger refugiados e solucionar seus problemas em todo o mundo.

O principal objetivo do ACNUR é salvaguardar os direitos e o bem-estar dos refugiados


e refugiadas, buscando assegurar que todos possam exercer o direito de buscar refúgio e
receber refúgio em outro país, com a opção de retornar para casa voluntariamente, integrar-
se à sociedade local ou ser reassentado em outro país. O ACNUR também tem o mandato de
ajudar pessoas apátridas.

Em seis décadas, o ACNUR já ajudou dezenas de milhões de pessoas a recomeçar suas vidas.
Atualmente, a agência possui aproximadamente 6.600 funcionários em mais de 110 países,
que trabalham para ajudar mais de 30 milhões de pessoas.

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