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ESTRELAS DO DESERTO
UTILIZANDO A REALIDADE VIRTUAL NA DIVULGAÇÃO DA ETNOASTRONOMIA
DOS REFUGIADOS SAARAUIS.
Rio de Janeiro
2021
FELIPE CARRELLI SÁ SILVA
Rio de Janeiro
julho/2021
Carrelli, Felipe Sá Silva.
Estrelas do deserto: utilizando a realidade virtual na divulgação da
etnoastronomia dos refugiados saarauis / Felipe Carrelli Sá Silva. —
Rio de Janeiro, 2021.
130 f.
________________________________________________________
Prof. Doutor André Fernandes da Paz (PPGMC/UFRJ)
(Presidente/Orientador)
________________________________________________________
Prof(a). Doutora Katia Augusta Maciel – (PPGMC/UFRJ)
(Membro Interno)
Dedico esse trabalho ao povo saaraui.
AGRADECIMENTOS
À minha mãe Fátima, ao meu pai Álvaro e a minha irmã Ligia por sempre estarem lá.
Aos integrantes do GalileoMobile e do Amanar, sem os quais esse trabalho não exis-
tiria: Ana, Andrea, Alba, Alberto, Demetrio, Diego, Edu, Eva, Fábio, Francesca, Hamdi,
Iván, Jorginho, Marja, Mayte, Meghie, Nayra, Pati, Phil, Sandra, Sarah e Tawalo.
Aos integrantes da banca Katia Maciel, Joel dos Santos, Patrícia Spinelli e Julia Salles
pelas contribuições precisas e preciosas.
À Alexandra Elbakyan, Brian Jackson, Gustavo Barreto, Catalina Revollo Pardo, Juan
Antonio Belmonte e todos(as) colaboradores anônimos do youtube que dedicam seu
tempo para compartilhar conhecimento gratuitamente através de tutoriais.
Aos amigos e amigas de todos os momentos: Danilo, Gravity, Juliana, Pavi, Satheesh,
Tobias e Tom.
O deserto do Saara ocupa um terço do continente africano e é uma das regiões mais
inóspitas do planeta. A região é seca o suficiente para mumificar cadáveres e matar
bactérias. Durante séculos, o povo saaraui vive sob essas condições extremas. Além
da paisagem desértica, as estrelas servem para guiá-los junto com seus rebanhos
pelas planícies desérticas em busca de água para sobreviver. Esta dissertação apre-
senta uma reflexão sobre a incorporação da voz do povo saaraui na pesquisa-criação
(OWEN e SAWCHUK, 2012) da narrativa transmídia Estrelas do Deserto, que faz
parte do projeto de divulgação científica Amanar elaborado em parceria com a equipe
do GalileoMobile. A proposta inicial do trabalho era utilizar a realidade virtual na divul-
gação da cosmovisão saaraui desde uma perspectiva decolonial (CASTRO-GÓMEZ
e GROSFOGUEL, 2007), por meio da etnoastronomia, ciência que estuda os conhe-
cimentos astronômicos de um povo por intermédio dos costumes contados através da
oralidade (MAGAÑA, 1986). Ao longo do processo de co-criação (CIZEK, URICCHIO
et al, 2009), surgiu também a demanda por denunciar a situação de refúgio enfrentada
por essa população do Saara Ocidental desde 1976, estimulando o projeto a ramificar
sua narrativa através de uma estratégia transmídia. Assim, baseado em princípios da
lógica de effectuation (SARASVATHY, 2001), essa dissertação descreve as diferentes
linguagens e formatos adotados pelos produtos realizados em Estrelas do Deserto,
focando na tomada de decisão a partir das reivindicação que surgiram durante o an-
damento da co-criação, discutindo as possibilidades, potencialidades e limites dessa
experiência.
CARRELLI, Felipe. Desert Stars: using virtual reality to disseminate the ethno-astro-
nomy of Saharawi refugees. 2021. 130f. Dissertation (Master’s Degree in Creative Me-
dia) – Communicarion School, Federal University of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2021.
The Sahara desert occupies one third of the African continent and is one of the most
inhospitable regions on the planet. The region is dry enough to mummify corpses and
kill bacteria. For centuries, the Saharawi people have lived under these extreme
conditions. In addition to the desert landscape, the stars guided them along with their
herd through the desert plains in search of water to survive. This text presents a
reflection on the incorporation of the voice of the Saharawi people in the research-
creation (OWEN and SAWCHUK, 2012) of the transmedia narrative Desert Stars,
which is part of the Amanar scientific communication project in partnership with
GalileoMobile team. The initial proposal of the work was to use virtual reality in the
popularization of the Saharawi worldview, from a decolonial perspective (CASTRO-
GÓMEZ and GROSFOGUEL, 2007), through ethnoastronomy, a science that studies
the astronomical knowledge of a people through the customs counted through orality
(MAGAÑA, 1986). Throughout the co-creation process (CIZEK, URICCHIO et al,
2009), there is also a demand to denounce the refuge situation faced by this population
of Western Sahara since 1976, stimulating the project to branch its narrative through
a transmedia strategy. Thus, based on principles of effectuation logic (SARASVATHY,
2001), this research dissertation describes the different media and formats adopted by
the products made in Desert Stars, focusing on the decision-making that arise from the
requirements of the co-creation process, discussing the possibilities, potentialities and
limits of this experience.
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
1. INTRODUÇÃO
O céu noturno estava perfeito e ele desejou poder compartilhá-lo com sua
família, temendo que eles nunca pudessem partilhar outro. Depois da
meia-noite, a lua minguante subia na ponta do chifre superior de Touro,
perto de Órion em sua eterna dança com as Plêiades. Mais acima, Marte,
vermelho, fervia. No Noroeste, Vega, Altair e Deneb brilhavam intensa-
mente como os olhos das crianças. Elegante, Cassiopeia coroava o Nor-
deste, enquanto Hércules estava assentado no Oeste. Estes eram seus
sinais no céu, seu mapa do planeta. Estremecendo com o vento frio, Riley
invejou a determinação dessas estrelas. Ele não podia fazer nada por sua
família agora. Ele era como a errante Plêiade: separada de sua família
pela eternidade (KING, 2004, p. 133).
O platô vazio abalou sua alma: era a terra antes do Éden; eram ossos sem
carne; era a natureza que enlouqueceu e se devorou. Riley caiu no chão
em choque e tristeza. [...] Um dos homens murmurou desolado: “É aqui
onde daremos o nosso último suspiro”. Outro resmungou: “Não temos es-
perança de encontrar água, nem provisões, nem seres humanos, nem
mesmo feras selvagens. Nada pode viver aqui1” (KING, 2004, p. 206-211).
1
Tradução e grifo do autor.
16
O Sáara quiviri3 (conhecido então como o Grande Deserto) ocupa um terço do con-
tinente africano, estende-se a mais de cinco mil quilômetros a leste do Mar Verme-
lho e a 320 quilômetros da orla da savana de Sahel ao sul. Ao Norte, as montanhas
do Atlas bloqueiam quase toda a umidade que sopra nos ventos do Nordeste, o que
explica os menos de 15 centímetros de precipitação média anual (KING, 2004).
Imagem 2: Mapa do Saara Ocidental durante o período colonial (dir.) e em 2008 (esq.).
Fonte: Human Rights Watch e Biblioteca Nacional de España.
2
O Saara é considerado o terceiro maior deserto da Terra, logo após a Antártida e o Ártico
3
Deserto do Saara em hassania
17
Ao contrário do que canta a música Noites Árabes do filme Aladdin (1992)4, as bai-
xas temperaturas prevalecem no deserto durante a noite e o frio pode ser intenso
com ventos incessantes. Ao descrever sua primeira noite no deserto, o capitão Ri-
ley lembrou que, apesar da exaustão, o frio não deixava os marinheiros dormir e
descreveu a experiência como "uma das noites mais longas e sombrias já passadas
por qualquer ser humano" (KING, 2004, p.247). Alguns anos mais tarde, Michel
Vieuchange confirmaria o relato de Riley "Durante as noites frias do Saara sofro
muito mais com o frio do que com o sol" (VIEUCHANGE, 1987, p. 223).
Desde o período neolítico, há pelo menos sete mil anos, o ser humano vagueia
pelas costas ocidentais do Saara. Diferentes povos beduínos já habitaram a região,
mas sem nunca conseguir controlar em sua totalidade as planícies remotas do de-
serto. O beduíno é um povo nômade árabe que historicamente habita as regiões
4
“A noite da Arábia e o dia também é sempre tão quente que faz com que a gente se sinta tão bem”.
18
A vida nômade era dura e simples, mas com valores característicos da sociedade
beduína, o que permitia enfrentar as dificuldades inerentes ao seu modo de vida
errante. Além disso, os saarauis tinham a capacidade de se adaptar, física e
5
Dialeto derivado do árabe clássico utilizado pelos saarauis (ENTRIALGO, 2012).
19
Em grande parte, essas tribos permaneceram nômades até o inicio do século 20,
quando os países europeus impuseram gradualmente seus próprios sistemas de
governo sobre esses territórios. A colonização espanhola sobre o território do atual
Saara Ocidental ocorreu em 1884, durante a Conferência de Berlim onde se distri-
buiu o continente africano entre as potências europeias (BERISTAIN e HIDALGO,
2012). Em 27 de junho de 1900, Espanha e França assinaram um acordo estabe-
lecendo as fronteiras coloniais entre ambos os países nessa região (VILLAR, 1987).
A autodeterminação dos povos sob tutela colonial tem sido um dos campos de di-
reito mais exitosos na arena internacional, sendo um fator de soberania baseado
em critérios administrativos e geografia política para colonial:
Embora seja difícil apontar com certeza quando um senso comum de identidade
saaraui emergiu pela primeira vez, Omar (2008) aponta evidências de que antes da
colonização espanhola havia entre os habitantes um sentimento generalizado de
pertencer ao Saara Ocidental como um território distinto e uma população única.
Assim, o objetivo inicial deste trabalho era utilizar a etnoastronomia para documen-
tar e popularizar os conhecimentos sobre o céu da população saaraui e realizar um
ensaio sobre o potencial da realidade virtual para o campo da divulgação científica
(BROSSARD e LEWENSTEIN, 2010). No entanto, ao longo da pesquisa-criação
(OWEN e SAWCHUK, 2012), me deparei com os estudos decoloniais (CASTRO-
GÓMEZ e GROSFOGUEL, 2007) e resolvi absorver essa perspectiva em nossa
abordagem. Com isso, baseado em princípios de co-criação (CIZEK, URICCHIO et
al., 2009), durante as entrevistas realizadas com o povo saaraui uma nova de-
manda emergiu do intercâmbio com a comunidade: alertar sobre a questão política
e social em torno da comunidade.
6
Os elementos que servem para conceder a categoria de povo são a língua, a religião, o território e os hábi-
tos essenciais comuns.
7
Área de pastagem nas planícies desérticas onde os nômades conduzem seus rebanhos.
8
Cosmovisão, ou visão de mundo, é um conjunto ordenado de crenças, valores, sentimentos, impressões e
concepções de natureza intuitiva a respeito da época ou do mundo em que se vive.
21
Ademais, cito brevemente os outros três produtos que foram criados no contexto
desse projeto, mas que não fazem parte da pesquisa apresentada neste memórial:
Refúgio nas Estrelas (documentário linear longa metragem), GalileoCast (uma série
de podcats) e Irifi: Estrelas do Deserto (uma instalação artística). Todos os produtos
estão disponíveis no hotsite Estrelas do Deserto e podem ser acessados através
do link: https://www.galileomobile.org/desert-stars
Por fim, teço algumas considerações finais sobre os produtos, discutindo as poten-
cialidades, possibilidades e limites das escolhas ao longo da experiência. Pretendo
que essa dissertação colabore para estabelecer relações possíveis entre as áreas
do conhecimento abordadas. Além disso, desejo que a narrativa transmídia Estre-
las do Deserto, apresentada como produto desse trabalho, contribua ao diálogo
entre realidade virtual e divulgação científica, e que os erros e acertos descritos
sirvam como referência para futuros projetos com a mesma abordagem. Por último,
espero que esse trabalho e seus produtos promovam a um público mais amplo a
conscientização sobre a prolongada e ignorada situação dos refugiados saarauis.
2. DELINEAMENTO DA PESQUISA
2.1 JUSTIFICATIVA
Contudo, esse incentivo a migração é contraditório. Sayad (1998) alerta que o di-
reito de migrar e o fato consumado não estão em conformidade. O autor lembra
que mudanças nas circunstâncias econômicas bastam para que os antes bem-vin-
dos imigrantes passem a ser personae non gratae pela opinião pública, se tornando
os principais “culpados” pelo desemprego. Por isso, para Sayad (1998, p. 54) ser
imigrante e desempregado é um paradoxo, uma vez que o imigrante é essencial-
mente uma força de trabalho provisória, temporária e em trânsito. Em virtude desse
princípio, um trabalhador imigrante continua sendo um trabalhador definido, tratado
como provisório e revogável a qualquer momento.
não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua resi-
dência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou,
devido ao referido temor, não quer voltar a ele (ONU, 1951).
Ou seja, a grosso modo, define-se como refugiados aquelas pessoas que se des-
locam de um país para outro por motivos de perseguição ou guerras em seu país
de origem. Já os imigrantes, seriam pessoas que saem de seus países por opção
com o objetivo de conseguirem melhores condições de vida ou sobrevivência.
A cada ano, dados da Agência das Organização das Nações Unidas para Refugia-
dos (ACNUR) mostram que estamos testemunhando os maiores níveis de desloca-
mento já registrados na história. Segundo o relatório Global Trends: forced displa-
cement in 2019, 79,5 milhões de pessoas em todo o planeta foram forçadas a deixar
suas casas. Entre elas estão 26 milhões de refugiados (UNHCR, 2020).
A tendência é que esses números subam cada vez mais, já que o aquecimento
global é um dos fatores que poderia intensificar os padrões de migração (PORTER;
RUSSEL, 2018). Portanto, medidas que visam a melhoria do acolhimento desses
refugiados se fazem necessárias e pesquisas que abordam a questão migratória
se fazem urgentes. É nesse sentido que este trabalho está inserido e se justifica.
Por ser uma das ferramentas mais acessíveis e eficazes para envolver os jovens
na ciência, a astronomia tem sido utilizada em benefício da sociedade para o al-
cance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas ao pro-
mover a paz e a diplomacia em regiões pós-conflito (FRAGKOUDI, 2020), propor-
cionado educação de qualidade em comunidades de estrema pobreza (LYRA, W.
9
Fenômeno conhecido como migração forçada, onde pessoas são forçadas a sair de suas casas ou lugar de
residência habitual.
25
Se, por um lado, abordo o real, através do fenômeno migratório e seus corpos em
movimento (ou não, evidenciando a violência que a fronteira impõe à experiência
do ser material); por outro lado, dialogo diretamente com o digital. Para Castells
(2002), estamos testemunhando um ponto de descontinuidade histórica, causado
pela emergência de um novo paradigma tecnológico organizado em torno de novas
tecnologias da informação. Segundo o autor, isso possibilitou uma nova forma de
economia que surgiu em escala global, ao qual deu o nome de sociedade informa-
cional global e em rede.
Filósofos da tecnologia vão além, ao defender que hoje não há mais oposição entre
um mundo cibernético e uma experiência cara a cara, pois o digital está integrado
a nossas ações e interações cotidianas (FEENBERG, 2019). Quando estamos
usando as tecnologias on-line, “não deixamos nosso corpo em casa”
(COECKELBERGH, 2013, p. 13) e tão pouco estamos separados da realidade off-
line. Aos poucos, o mundo real começa a emprestar ideias da ficção, como as raí-
zes ciberpunks, cyborgs e pós-humano de Neuromancer (GIBSON, 1984).
26
Nesse sentido, o futuro das narrativas imersivas aponta como uma realidade repleta
de desafios e possibilidades. O avanço tecnológico dos últimos anos vem possibi-
litando o ressurgimento da realidade virtual. Interatividade, empatia, atenção, usu-
ário são alguns dos termos que começam a se tornar centrais na criação audiovi-
sual. Salles e Ruggiero (2019) observam um processo de transição das histórias
lineares para narrativas interativas. Nessa nova estética o espectador passa a ter
um papel mais ativo na tomada de decisões, tornando-se um interator. Nesse sen-
tido, o ecossistema criativo audiovisual se aproxima não só ao design de experiên-
cia, mas perspaça todos os campos artíticos.
Por ultimo, é importante destacar que a realidade virtual tem se mostrado uma fer-
ramenta com um grande potencial para ser utilizada na divulgação de assunto ci-
entíficos. Portanto, o estudo da realidade virtual no contexto da imigração, e da
divulgação da astronomia, se faz muito importante. É nesse contexto que esse tra-
balho se insere.
Imagem 4: Crianças saarauis fazendo o sinal Saara Livre com as mãos e vendo suas fotos.
Fonte: Felipe Carrelli e Fábio del Sordo
27
2.2 OBJETIVOS
OBJETIVO GERAL
O objetivo geral deste trabalho é co-criar uma narrativa transmídia para divulgar a
cosmovisão saaraui em diversas plataformas/formatos a fim de alcançar públicos
específicos.
OBJETIVOS ESPECÍFICOS
2.3.1 PESQUISA-CRIAÇÃO-AÇÃO
Paquin e Béland (2015) apontam que articular pesquisa e criação é uma tarefa de-
licada devido aos espaços contraditórios onde se dá essa perspectiva. Por um lado,
a universidade onde o conhecimento produzido e disseminado tradicionalmente im-
põe distância entre sujeitos e objetos de pesquisa. Por outro lado, a oficina do ar-
tista, local de produção solitário e subjetivo, onde a criação envolve manifestação
expressiva e estética. Essa dualidade é dissolvida nos laboratórios, espaços onde
28
Não é intenção deste texto definir em qual desses quatro tipos nosso trabalho se
enquadra, por acreditar que essas definições, apesar de serem importantes do
ponto de vista conceitual, podem limitar as potencialidades que o real apresenta.
Quando estamos tanto tempo imersos em nossa investigação, corremos o risco de
esganar o real para enquadra-lo dentro dos tipos conceituais ao quais estamos
transbordados: se real não respeita a teoria, muda-se o real para adaptar a teoria
quando na verdade, deveríamos fazer o inverso.
Uma dessas disciplinas foi “As migrações transnacionais entre teoria e mundo da
vida: a perspectiva dos pesquisadores e dos pesquisados” ministrada pelo Prof. Dr.
Mohammed ElHajji (coordenador do grupo de pesquisa sobre imigrações, diáspo-
ras e tecnologias da informação e da comunicação – DIASPOTICS). Durante esses
encontros dialógicos com teóricos dos estudos migratórios, migrantes e líderes co-
munitários, a disciplina procurava devolver a palavra para uns, provocar uma meta
reflexão teórico-metodológica nos outros e substituir a abordagem de objeto de
pesquisa por sujeito de pesquisa.
Em sua fala, ele sugeriu uma antropologia menos quantitativa e mais qualitativa,
defendendo uma relação de parceria entre pesquisado e pesquisador. Além disso,
questionou o caráter diretivo das entrevistas, sugerindo que o pesquisador exerça
mais um processo de observação e escuta através de um bate papo. Segundo Bob,
o imigrante precisa desabafar, tem vontade de falar sobre sua comida, sua cultura,
mas falar sobre tragédias pessoais é mais difícil e deve ser abordado com muita
sensibilidade.
Esses dois depoimentos impactaram nossa pesquisa uma vez que iam ao encontro
de alguns textos que usamos como referência durante a etapa anterior a viagem
aos acampamentos. De certo modo, as falas de Bob e Mariama se aproximavam
dos conceitos defendidos pela pesquisa-ação, que consiste na inserção do pesqui-
sador no ambiente de ocorrência do fenômeno e de sua interação com a situação
investigada (PERUZZO, 2003). Atravessados por essa intersecção, resolvemos
adotar a abordagem da pesquisa-ação em nossa metodologia de pesquisa-criação.
pesquisado. Mais adiante nos capítulos subsequentes, discorrerei como esse frutí-
fero fenômeno se manifesta em nosso trabalho, principalmente nos produtos.
10
GalileoMobile é um projeto itinerante de divulgação de astronomia, composto por voluntários de diferentes
áreas de atuação: astrônomos, divulgadores de ciência, cineastas e antropólogos. O projeto GalileoMobile faz
parte dessa pequisa-criação e será abordado com maiores detalhes nos capítulos seguintes.
33
Cada encontro tinha foco e objetivos diversos, a fim de abordar o tema interdisci-
plinar e abrangente. Para mim em particular, aproveitei dessas reuniões para ab-
sorver o que os pesquisadores tinham a dizer sobre a representação dos refugia-
dos. Em uma dessas conversas, Catalina Revollo reforçou que muitos discursos
apontam na direção de uma crise de migração, quando na verdade a migração não
deve ser encarada como problema em si.
Após nos depararmos com a perspectiva decolonial novos desafios foram postos:
Como evitar impor uma leitura eurocêntrica em nosso trabalho? Como colocar a
voz do sujeito no mesmo lugar do científico e incorporar essa voz ao projeto? Como
abordar a questão do refúgio desde o ponto de vista da injustiça social, e não da
piedade, como propõe Chouliaraki (2015)?
Imagem 6: Sábio escreve o nome das estrelas em hassania e quando elas aparecem no céu.
Fonte: Felipe Carrelli
Nesse momento, percebi que um caminho possível para evitar essa imposição es-
taria no processo de absorver o sujeito na própria conceptualização do produto. Por
tanto, afim de evitar impor essa postura colonial e paternalista, nos deparamos com
a necessidade de escutar a opinião do povo saaraui em relação a nossa sugestão
de enfoque. Do ponto de vista prático do pesquisador/realizador, isso significa não
estabelecer perguntas fechadas e diretivas, mas exercer a interculturalidade.
A co-criação não é uma prática recente e tão pouco ocidental. De fato, existem
registros de regimes coletivos de criação desde a pré-história, no alvorecer da hu-
manidade na África, através das antigas artes rupestres:
Ao longo da história, a tradição de criação coletiva foi aos poucos substituída pelos
princípios do renascimento europeu, privilegiando a ideia de um autor singular:
Das pinturas a óleo de Da Vinci, passando pela fotografia da câmera clara de Da-
guerre, até a imagem e movimento do cinematografo dos irmãos Lumiere: através
desses exemplos, fica evidente o crescimento da individualização do processo de
criação e do ponto de vista perante os objetos retratados. Ao associar o papel do
cinema enquanto um aparelho ideológico da burguesia, Baudry analisa a estrutura
do espetáculo cinematográfico para identificar como suas práticas concorrem para
a construção de um sujeito transcendental. Segundo o autor, para este sujeito o
mundo é construído, unicamente para ele, não através dele, o que reforça uma
individualidade geradora de sentido isolada e totalitária:
Em nosso caso, por propor a criação de uma obra conjuntamente com a população
local e por ser um projeto transdisciplinar com diferentes instituições, organizações
e áreas envolvidas, acredito que nossa pesquisa-criação se enquadre em dois ti-
pos: co-criação dentro das comunidades do mundo presencial em conjunto com os
refugiados saarauis e também entre disciplinas (como demonstrarei no capítulo 6.2
ao apresentar os produtos transmídia).
Além disso, como implementar essa estratégia de co-criação dentro das condições
que temos? Onde isso se expressa no processo criativo e no produto? Essas e
outras questões nevrálgicas serão respondidas com mais detalhes ao longo dos
próximos capítulos. Mas antes de mais nada, é importante entender quem é nosso
sujeito de pesquisa e qual é o contexto em que está inserido.
39
No início dos anos 80, a luta contra as tropas marroquinas, caracterizada por gran-
des e prolongadas batalhas no Saara Ocidental e no interior de Marrocos atingiria
sua intensidade máxima. Marrocos deu a impressão de ter concluído a impossibili-
dade de uma vitória militar. Em razão disso, em agosto de 1980, Marrocos iniciou
41
Mais tarde, em 1987, esse muro de areia foi reforçado com pedra, sistemas de
controle, presença militar e baterias de artilharia. Com isso, as tropas marroquinas
conseguiram deter as incursões militares do Polisário ao território ocupado e ao sul
de Marrocos (BOUKHARI, 2004).
O Muro da Vergonha, como ficou conhecido, tem hoje 2720 km de extensão e per-
manece cortando o deserto em dois. Calcula-se que Marrocos tenha colocado mais
de sete milhões de minas terrestres ao longo do muro, afetando a vida nômade da
população saaraui que “sofre com lesões, amputações e mortes por acidentes re-
lacionados com as minas e restos de explosivos de guerra” (BACHIR, 2017, p.
13)11. Uma ferida, incapaz de cicatrizar. Uma parede artificial em um ambiente na-
tural que ao longo de milhões de anos não conheceu fronteiras.
11
Tradução do autor.
42
Grécia e Albânia. Ele para na linha de fronteira pintada no chão enquanto, à distân-
cia, guardas albaneses carregam seus rifles. O coronel mantém o pé direito no ar
pairando acima da linha e diz: “A Grécia termina nessa linha azul. Se eu der mais
um passo, estarei em outro lugar, ou morrerei” (O PASSO, 1991).
Étienne Balibar afirma ser absurda a ideia de delimitar, de forma simples, o que é
uma fronteira. O autor destaca que “marcar uma fronteira é, precisamente, definir
um território, delimitá-lo e, assim, registrar a identidade desse território ou conferir-
lhe um [...] tudo isso como sabemos, não é meramente teórico. As consciências
violentas são sentidas todos os dias” (BALIBAR, 2002, p. 76).
12
Tradução do autor. Grifo do autor.
43
Imagem 9: Blocos evitam que telhado seja levado pela Irifi - Wilaya de Bojador.
Fonte: Felipe Carrelli
44
For years now I have heard the word "wait". It rings in the ear of every
Negro with a piercing familiarity. This "wait" has almost always meant "ne-
ver” [...] We must come to see with the distinguished jurist of yesterday that
"justice too long delayed is justice denied" (KING JR., 1963).
Como mostrei no capítulo anterior, a situação dos refugiados saarauis é uma das
mais prolongadas do mundo, com refugiados vivendo em campos cerca de Tindouf,
na Argélia, desde 1975 (UNHCR, 2018a). Segundo o relatório da ACNUR de março
de 2018 sobre os refugiados saaraui em Tindouf, 173.600 pessoas residem nos
cinco acampamentos em território cedido pela Argélia (UNHCR, 2018b).
Apesar de regular as viagens para as áreas do Saara Ocidental sob sua jurisdição,
o Polisário não impede que os refugiados entrem ou saiam dos campos quando
quiserem (WATCH, 2014). Assim, alguns saarauis preferem manter sua tradição
nômade e tentar a sorte no deserto.
13
Uma divisão administrativa, geralmente traduzida como estado ou província.
14
Cruz Vermelha/Crescente Vermelho é um movimento humanitário internacional, não vinculado a qualquer
Estado. O emblema do Crescente Vermelho é reconhecido por 33 países islâmicos.
45
Imagem 10: Contêineres na cede da Crescente Vermelho (esquerda) e cercas para cabras (direita)
Fonte: Felipe Carrelli
Imagem 11: Tenda tradicional saaraui feita de lona artificial – Wilaya de Smara.
Fonte: Felipe Carrelli
15
Grande tenda formada de pele de cabra e/ou camelo, que protege famílias nômades (ENTRIALGO, 2012).
46
Imagem 12: Reunião na União Nacional das Mulheres Saarauis – Wilaya de Laâyoune.
Fonte: Felipe Carrelli
Além disso, quase não existem escolas de ensino médio nos campos. Isso significa
que as crianças que terminam o ensino médio (em torno dos 16 anos) precisam
deixar suas casas para continuar seus estudos (UNHCR, 2018a). Já os cursos de
nível superior e especialização são realizados no exterior: Argélia, Cuba, outros
países árabes e Europa (GAONA, 1998).
Alguns, agora obrigados a viver nas cidades para ganhar a vida, enchem
os terraços de areia, onde armam tendas e preparam o chá em vários
momentos do dia. Em uma parte remota de Saguia el-Hamra, onde acam-
pei durante minha pesquisa para este livro, vi outros moradores da cidade
que se aventuraram a sair de Laâyoune para estender cobertores e tomar
chá nas dunas. Um dos meus guias me disse que eles fazem isso porque
sentem falta da areia (KING, 2004, p.727).
Durante suas visitas em 2007 e em 2013, a equipe do Human Rights Watch não
encontrou nenhum caso em que a Frente Polisário tenha prendido alguém por suas
opiniões, expressões ou atividades políticas. Além disso, as práticas de escravidão
que séculos atrás eram uma característica básica da cultura nômade tradicional no
Saara Ocidental (ver introdução) parecem ser inexistentes entre os refugiados sa-
arauis hoje (WATCH, 2014).
49
Imagem 14: Cede das exibições do Festival Fisahara 2019 – Wilaya de Auserd.
Fonte: Felipe Carrelli
Ciudades Imposibles (LAS... 2018), Tateh Lehbib, el loco del desierto (TATEH...
2018), Um Fio de Esperança (UM FIO... 2017) e Hijos de las nubes (HIJOS... 2012).
Depois de um tempo sem nos entender, ele resolve chamar Hamdi A. Aomar, de-
legado da Frente Polisário nas Ilhas Canárias e colaborador do GalileoMobile du-
rante nossas atividades. Eles começam a discutir em árabe. Então, em espanhol,
Hamdi desconversa: “Eles são cientistas. É um documentário sobre as estrelas”. O
policial olha para Hamdi e depois para mim. Por alguns segundos fica em silêncio.
Parece pensar: “Estrelas? Isso parece inofensivo”. Satisfeito, ele devolve meu pas-
saporte e chama o próximo da fila.
refúgio e deslocamento interno carece de outros tipos de ações para além das in-
tervenções humanitárias16 (BENÍTEZ e RIVEIRO, 2020).
Essa filosofia se reflete no lema do grupo: “Todos sob um mesmo céu”. Ao longo
dos anos, essa frase foi utilizada pelos membros do grupo GalileoMobile a fim de
fortalecer a mensagem do potencial que o céu carrega: ser um elemento unificador
entre diferentes culturas e questionar o próprio conceito de fronteiras.
No entanto, vale ressaltar que Germano (2017, p. 45) questiona essa ideia ao afir-
mar que o lema do GM “tem como ponto de partida as noções da astronomia oci-
dental e acadêmica”. Segundo a autora, cada cultura tem seu próprio céu, não no
sentido físico, mas cultural, uma vez que cada sociedade desenvolve seus mitos
particulares, criando suas próprias constelações baseadas em sua mitologia, am-
biente cotidiano, condições climáticas e estilos de vida. Germano (2017, p. 45) com-
pleta que “se essas diferenças não são contempladas nas atividades de divulgação
da ciência, podemos ter então, processos colonizadores a partir dessas ações”.
A partir dessa crítica, desde 201617 o grupo GalileoMobile passou a inserir dentro
de suas atividades a troca cultural através da etnoastronomia, ciência que estuda
os conhecimentos astronômicos de um povo por intermédio dos costumes contados
através da oralidade (MAGAÑA, 1986). Com isso o GM pretendia valorizar o co-
nhecimento das comunidades sobre o céu.
16
Forcibly Displaced: Toward a Development Approach Supporting Refugees, the Internally Displaced, and
eir Hosts (World Bank, 2017). Grifo do autor.
17
Apesar de já existirem registros de astronomia cultural desde 2009 durante o primeiro projeto do GM, é a
partir de 2016 que a etnoastronomia passa a ser utilizada sistematicamente pelo grupo.
55
Assim, um dos objetivos do projeto Amanar era justamente aprender sobre a cos-
movisão da população local, representada pelos seus sábios e sábias:
18
Tradução do autor.
56
19
Larga túnica dos saarauis. Quando folgada ela alivia o calor e quando apertada protege do frio
(ENTRIALGO, 2012).
57
Para os beduínos, para os nômades do Saara (...) como não haviam bibli-
otecas... haviam bibliotecas, mas eram todas ambulantes. As condições
do deserto não permitiam instalar-se ou fazer instalações. E por isso se-
guiam um método especial, de converter todas as regras, sejam astronô-
micas, sejam matemáticas, gramaticais, linguísticas ou tirânicas, converter
a regra em um verso. Para que o beduíno aprenda e para que se divulgue
a ideia. E para que se retenha, se conserve na mente (MAMI, 2019).20
Esses dois depoimentos acima exemplificam como, apesar de não viverem mais
como nômades no deserto, a prática de transmissão do conhecimento através da
oralidade ainda está presente na cultura saaraui (CORREALE; MARTÌN, 2015). Ao
longo de nossa estadia, percebemos que muitas dessas trocas acontecem en-
quanto os saarauis tomam chá servido na tradicional berrad22.
20
Tradução de Hamdi A. Aomar e do autor.
21
Tradução de Hamdi A. Aomar e do autor.
22
Chaleira (ENTRIALGO, 2012).
58
Da mesma forma, Lawrence (1991, p.32) relatou que “o deserto era mantido em um
comunismo enlouquecido pelo qual a Natureza e os elementos eram de livre utili-
zação, de forma que cada pessoa pudesse usar para seus próprios propósitos e
nada mais”. O amanhã não parecia existir para os beduínos até finalmente chegar.
Logo, aceitar o convite para compartilhar um chá era uma mostra de respeito e, por
isso, tão importante quanto seguir os protocolos de segurança estabelecidos pela
RASD durante nossa estadia nos acampamentos de refugiados. Por isso, entre as
atividades educativas nas escolas e reuniões com autoridades, a equipe do GM
também sentava para tomar chá e escutar sábios e sábias saarauis contar histórias
do céu. De acordo com Hulan e Eigenbrod (2008, p.7), as tradições orais são:
Embora a maioria das sociedades orais tenham adotado a palavra escrita como
uma ferramenta de documentação, expressão e comunicação, muitas ainda depen-
dem dessa tradição e valorizam muito a transmissão oral de conhecimento como
um aspecto intrínseco de suas culturas (HANSON, 2009). Por isso, povos que con-
tam com a oralidade para transmitir suas tradições sofrem perdas irreparáveis com
a morte de seus sábios, detentores de maior parte dessas informações.
Pensando nisso, a priori, a ideia do presente trabalho era se apropriar dos meios
audiovisuais e das novas mídias para colaborar com o levantamento etnoastrono-
mico realizado pela equipe do GalileoMobile. Aqui cabe um parêntese para escla-
recer uma distinção importante entre os diferentes autores. Apesar de existir uma
participação orgânica entre as ações da equipe do GM/Amanar e a realização dos
produtos audiovisuais, esse processo de pesquisa-criação foi fruto da minha inicia-
tiva e foi articulado por mim em conjunto com outros grupos independentes ao GM.
Dessa forma, inicialmente o nosso trabalho tinha dois objetivos específicos. O pri-
meiro era registrar essa memória oral através de recursos audiovisuais (áudio, foto,
vídeo linear e vídeo 360) a fim de somar aos esforços da comunidade local na pre-
servação da cosmovisão do povo saaraui. Consequentemente o segundo objetivo
era estudar como a RV poderia auxiliar na popularização desses conhecimentos.
As obras de realidade virtual são divididas em dois tipos de experiência23. Nos ví-
deos de 360° de três graus de liberdade (3 DoF) o usuário não pode andar pelo
ambiente virtual, apenas movimentar sua cabeça para olhar e ouvir em três eixos:
horizontal, vertical e diagonal. Porém, se o participante movimentar seu corpo no
espaço, a imagem virtual 360° não se altera.
23
Para alguns teóricos e realizadores, apenas as experiências com seis graus de liberdade são consideradas
como realidade virtual. No entanto, nesse trabalho não farei essa distinção, denominando os dois tipos como
RV.
61
Apesar de muitas vezes aparentar ser uma novidade, a realidade virtual não é uma
tecnologia recente. Experiências com a RV remetem aos meados de 1980 com Ja-
ron Lanier e o centro de pesquisa Virtual Programming Language (VPL). A propó-
sito, Lanier é o primeiro a cunhar o termo realidade virtual, que segundo ele “com-
bina a ideia de mundos virtuais com rede, colocando vários participantes em um
espaço virtual usando óculos montados na cabeça” (LANIER, 2001).
Passados alguns anos, o avanço tecnológico dos últimos tempos vem possibili-
tando o ressurgimento da realidade virtual. Esse movimento ganha força em 2015
com o lançamento dos óculos da Samsung Gear (Oculus), seguido pelo Oculus Rift
no começo de 2016 (SALLES; RUGGIERO, 2019). A indústria de jogos é uma das
mais interessadas no desenvolvimento da tecnologia, devido ao potencial da reali-
dade virtual para alavancar ainda mais esse setor (PENDIT et al., 2017). Por isso,
é importante lembrar que existem interesses comerciais por trás dos discursos en-
tusiasmados sobre o futuro da RV. É comum encontrar afirmações otimistas como
“Por que a RV está prestes a mudar o mundo” (STEIN, 2015), “A realidade virtual
é o meio mais poderoso do nosso tempo” (GOTTSCHALK, 2016) ou “Aqui está tudo
o que você precisa saber sobre o que é RV e como isso afetará sua vida em um
futuro próximo” (CNET, 2016).
Da mesma forma que os videogames não são a razão pela qual tiroteios acontecem
em escolas (DRAPER, 2019), atribuir a uma plataforma tecnológica o poder da em-
patia, é reduzir todos os processos humanos a uma mera ativação tecnológica.
Assim, se a experiência em realidade virtual não possui um design cuidadoso e
imersivo, personagens envolventes e um processo de narrativa emocional, criare-
mos experiências que podem ser igualadas a um “turismo de situação” (SALLES;
RUGGIERO, 2019, p. 88). Essa discussão é central em nossa pesquisa-criação e
por isso será abordada com mais profundidade nas sessões seguintes.
Na medicina por exemplo, a realidade virtual tem sido utilizada para visualização e
compreensão de dados, bem como para educação continuada e experiências do
usuário. Ao longo da pesquisa, encontrei programas de RV desenvolvidos para au-
xiliar na prevenção de câncer de pele (ABUZAGHLEH; FAEZIPOUR; BARKANA,
2013), aplicações em neuro-reabilitação (WEISS et al., 2014), encefalopatia crônica
(MUCELIN et al., 2016), doença de Parkinson (NOGUEIRA et al., 2018), Alzheimer
(GARCÍA-BETANCES et al., 2015) ou no treinamento cognitivo de usuários de dro-
gas (MAN, 2018).
63
Outro campo muito fértil é o da arqueologia. Rua e Alvito (2011) apontam a reali-
dade virtual como uma ferramenta de apoio à arqueologia e à reconstrução do pa-
trimônio cultural. González-Tennant (2013) propõe combinar ambientes de mundo
virtual e narrativa digital em locais turísticos associados à morte ou genocídios para
promover justiça social. Eve (2017) estuda como utilizar a realidade mista para fun-
dir a paisagem arqueológica do mundo real com elementos virtuais de relevância
para o passado, incluindo modelos 3D, paisagens sonoras, paisagens olfativas e
outros dados imersivos.
Apesar da realidade virtual ainda ser uma ferramenta de nicho para pesquisa cien-
tífica (BALL, 2007), a tecnologia tem sido utilizada em diversas áreas, como simu-
lações astrofísicas (RUSSELL, 2016), e principalmente no ensino de ciências
(HUTCHISON, 2018), na engenharia de materiais (DOBLACK et al., 2011) e na
física (YAVORUK, 2019).
Embora seja uma tecnologia ainda pouco acessível devido ao alto custo para ob-
tenção de um headset de qualidade, o caráter virtual dessa experiência possibilita
que o público acesse vídeos científicos de 360 RV no YouTube sem necessitar se
deslocar até espaços culturais (COTABISH, 2017). Esse foi um dos motivos pelo
qual optei em adicionar uma experiência em 3 (DoF) em nosso projeto transmídia,
como apresentarei mais adiante nos capítulos seguintes.
Libâneo (2010) aponta que aos poucos, instituições de educação não formal como
museus e centros de ciências buscam trocar o foco da coleção/exibição de objetos
para incluir elementos interativos e recursos audiovisuais para promover uma maior
participação do público. Em adição a esse movimento das instituições para aumen-
tar a interação e o engajamento do público, novas formas de envolvimento de base
surgem na divulgação de ciência (DAVIES; HORST, 2016).
Imagem 17: Estudante utilizando o Oculus Go durante atividade de cineclube – Wilaya de Dakhla.
Fonte: Felipe Carrelli
Afinal, o debate sobre empatia e a realidade virtual também se aplica a esse caso:
nenhuma ferramenta por si só é suficiente para promover o interesse do público em
temas científicos. Em vez disso, a tecnologia deve ser combinada às práticas ins-
trutivas construtivistas dos professores e divulgadores científicos (CHEN;
METCALF; TUTWILER, 2014). No entanto, ao mesmo tempo que vemos sua ampla
e diversificada utilização, observamos que a linguagem da realidade virtual está
longe de se estabelecer como um meio maduro:
“Estamos no alvorecer de uma nova tecnologia que ainda não criou sua
linguagem. E linguagem é importante. A linguagem abre e destrói barreiras
do possível ou imaginável. A linguagem nos permite dar nome aos nossos
sonhos e medos e por esse processo, construir o que é possível” (SALLES;
RUGGIERO, 2019).
Antes de avançar, vale destacar que é preciso ter cuidado com as definições de
imersão e presença, uma vez que é um tanto difícil cravar o que é cada uma delas,
e alguns trabalhos chegam a utilizar os dois conceitos como sinônimos. (CITAR
TRABALHO INES) Por isso, nesse trabalho, adotamos as definições apontadas por
Murray (2003).
exemplos narrativos onde o autor expande a história para incluir nela múltiplas pos-
sibilidades, dando a seu público um papel mais ativo:
Lajeunesse destaca que a ideia de presença na realidade virtual precisa ser mol-
dada em função da história contada, como um instrumento. Ele opina que a narra-
tiva da obra tem que ser construída com parcimônia para que a força da experiência
imersiva não se torne opressora. Segundo ele é necessário entender e equalizar a
quantidade de informação sensorial que o participante irá receber, porque uma pro-
longada intensidade pode criar uma experiência densa demais.
No fim das contas, é uma tendência a dogmatizar as coisas: “isso deve ser
assim, ou então não é RV”. Para mim, o problema com o fato de se sentir
em movimento, é que isso chega muito rápido no limite! Você se encontra
em uma espécie de jogo, obviamente, cheio de regras muito evidentes para
ser uma experiência da realidade, onde, ao contrário, tudo é possível (La-
jeunesse in BELVISI, 2019, p. 96).
De fato, nas experiências de RV, não se pode garantir que o participante observe
exatamente o que o realizador determina. No entanto, isso não significa que o par-
ticipante seja livre para ir onde ele/ela quiser. Pelo contrário, Salles e Ruggiero
(2019) destacam que nas narrativas-de-experiência, o enquadramento ainda existe
como esfera, permitindo ao realizador uma versão mais avançada do seu papel
tradicional, ao construir um espaço 3D com características especiais.
este elogio da ação não alcança o prometido, já que o sujeito ainda é consti-
tuído enquanto um transcendental, agora reforçado por uma ilusão de práxis.
SILVA (2019) reconhece que tensionar corpos teóricos com novas experiências
permite a desconstrução de conceitos, o que pode levar até a construção de outros.
Mas faz uma crítica ao discurso universalizante de alguns autores e realizadores,
quando afirmam que a realidade virtual surge a partir de noções de terra arrasada,
nas quais ela emerge a partir de seus próprios e misteriosos meios, desconectados
das tradições do pensamento, da linguagem e da técnica.
Diante dessa perspectiva, a RV não é tão diferente das outras mídias já consolida-
das. Bimbisar Irom (2018) argumenta que embora as tecnologias imersivas partam
da premissa de ser uma linguagem não mediadora, ignorar as estruturas de repre-
sentação prejudica as possibilidades políticas da comunicação humanitária. Para o
autor, a tecnologia permanece sujeita a estética/linguagem das ideologias domi-
nantes e cita Horsfield (2003, p.165): “Existe ideologia em quais problemas são
incluídos, ideologia em como esses problemas são identificados e ideologia nas
opções que são dadas para solucionar essas questões”.
Como mostrei nas sessões anteriores, a ideia inicial desse trabalho era utilizar a
realidade virtual como linguagem para divulgar a cosmovisão dos refugiados saa-
rauis. Assim, a RV surgiu como ferramenta a partir de uma necessidade prática.
Entretanto, durante a pesquisa-criação, me debrucei teoricamente sobre essa lin-
guagem, para me apropriar dela da melhor forma, estudando como transportar o
tema abordado para a imagem equiretangular.
24
O Docubase é um banco de dados do Massachusetts Institute of Technology (MIT) que busca fazer uma
curadoria de projetos, pessoas e tecnologias que estão transformando o documentário na era digital. https://do-
cubase.mit.edu/about/
71
de caso. Assim, o site busca ser uma plataforma de diálogo entre os realizadores e
o público, popularizando assim esse novo meio narrativo.
Particularmente gosto muito da obra, talvez por ser, assim como Hamdi, uma das
minhas primeiras experiências com óculos de realidade virtual. No entanto, durante
25
http://vrdocumentaryencounters.co.uk/vrmediography/vrmediography/
26
7 Stories for 7 Years: Life After Syria, Aamir, Amazigh, Born Into Exile, Clouds Over Sidra, Dreaming in
Za'atari: Stories After Syria, Forced to Flee: The Rohingya Refugee Crisis in 360º, I Am Rohingya, Interrup-
ture, Life in the Time of Refuge, My Voice-My School: Sidra's Story, Project Syria, Refugees, Schools on the
Frontline: Rama's Story, Sea Prayer, Seeking Home, Syria's Silence, The Crossing, The deported, The Dis-
placed, Under the Net e We Wait. Pesquisa realizada até o dia 20 de maio de 2019.
72
a pesquisa realizada nesse trabalho, me deparei com críticas que fizeram repensar
sobre qual caminhos deveríamos seguir em nossa pesquisa-criação. Salles e Rug-
giero (2019) levantam um debate interessante nesse sentido:
Viagens virtuais podem nos levar a vários eventos e emoções, mas o modo
como chegamos lá fará a diferença entre poverty porn ou uma experiência
de impacto profundo. O termo poverty porn foi introduzido pela primeira vez
nos anos 80 e sugeria o uso de mídia, especialmente filmes e fotos, explo-
rando situações de pobreza ou injustiça para aumentar doações a uma
causa ou para introduzir situações sociais difíceis e específicas para audi-
ências privilegiadas. A RV e essa noção vaga de uma tecnologia empática
e imersiva imediatamente virou um terreno fértil para uma nova onda de
poverty porn. [...] A realidade virtual e nosso mundo mediado por telas onde
narrativas digitais nos protegem da opção de ser vulnerável, nos dão uma
forma segura para participar de uma ação individual ou coletiva, sem real-
mente vivenciar isso e com uma saída de emergência bem definida [...] Em
uma experiência eu posso ser o centro de um conflito, mas se eu estou
olhando para ele de fora (desconexão) eu não consigo atuar, eu continuo
um voyeur externo e flutuante da dor dos outros. Quando crio uma experi-
ência de realidade virtual em que o participante é jogado em uma zona de
conflito, e vive a dor de outros, estaria despertando empatia? Ou provo-
cando empatia? [...] Posso viajar para o interior da dor enquanto estou pro-
tegido com uma armadura digital?
Assim, nesse trabalho, parto do pressuposto que o papel subjetivo dos realizadores
ainda é um fator preponderante em como o participante vai absorver uma obra de
realidade virtual. Portanto, ao longo da pesquisa-criação passa a ser importante
refletir e estabelecer uma abordagem pertinente ao tema que pretendíamos tratar:
a cosmovisão do povo saaraui. No entanto, durante o andamento de pesquisa-cri-
ação, entendemos que seria importante abrir o espaço virtual para perguntar os
saarauis sobre o que eles queriam falar. Ao adotar esse processo de co-criação
durante a viagem de campo, outras demandas surgem nas falas dos saarauis. Esse
será o tema do próximo capítulo.
Porém, sair de nossa inercia conceitual inicial não é um movimento simples. A inér-
cia é a propriedade da matéria que indica resistência à mudança, e indica a ten-
dência de manter em repouso um corpo que está em repouso. Essa tendência na-
tural que cada corpo tem de manter seu estado inicial também se dá na pesquisa
acadêmica, e só pode ser alterada pela aplicação de uma força externa.
Por isso, estou ciente que nosso processo de co-criação não é exemplar, devido as
limitações impostas pelas diferenças culturais, linguísticas, a distância e principal-
mente o curto tempo da viagem de campo. Apesar disso, esse trabalho partiu em
74
direção ao hemisfério norte com a co-criação como nossa Belhadi27: estrela que
guia os nômades em direção o Norte.
Seguramente todos vemos esse céu, mas temos diferentes percepções, di-
ferentes interpretações dele. Todo aquilo que conduza a encontrar-nos, a
aproximar-nos é importante. E o melhor instrumento para isso é a ciência.
[...] É um tema difícil de tratar em uma situação como a nossa em um acam-
pamento de refugiados, onde as pessoas tem em vista outras coisas de pri-
meira ordem, que consideram de primeira necessidade. Mas não cabe a me-
nor dúvida que existe pessoas que estão muito interessados nesse tema.
Mas precisamos fazer um esforço porque é um tema difícil (OMAR, 2019).28
Imagem 19: Chá sendo preparado ao modo tradicional saaraui – Wilaya de Smara.
Fonte: Fábio del Sordo
27
A Estrela Polar (ou Polaris) indica sempre a direção do norte e só é visível no hemisfério Norte.
28
Tradução do autor.
75
Hamdi apontou que o chá é um instrumento sócio/cultural dos saarauis para esti-
mular as reuniões, as conversas e a tomada de decisões:
Durante essa escuta também abríamos a pesquisa às sugestões e críticas por parte
do entrevistado, efetivando o processo de co-criação. Como essas entrevistas ti-
nham caráter de bate papo esse procedimento era orgânico, dinâmico e contava
com o imprevisível. Mas de modo geral, ocorreram desta maneira.
29
Tradução do autor.
76
De forma clara, Andrea resumiu perfeitamente nossa proposta. A fala é tão sintética
que está presente em dois produtos sem cortes (como destacarei no capítulo a
seguir). Em seguida, Hamdi fazia a tradução para Alhaizza. Ela agradeceu as pa-
lavras e brincou em espanhol com a simplicidade característica dos saarauis “eu
sei um pouco”:
30
Tradução do autor.
31
Tradução do autor.
77
Outro elemento muito marcante do céu noturno é a faixa esbranquiçada que atra-
vessa o céu. No ocidente, chamamos essa faixa de Via Láctea, por lembrar uma
mancha de leite derramada. Na tradição saaraui existe outra história para interpre-
tar esta estrutura: o caminho de palha. Segundo a lenda, um camponês teria rou-
bado a palha em outro povoado e ao longo do caminho de volta para sua aldeia, a
palha foi caindo, formando assim o caminho branco que vemos enfeitando a noite.
Todas estas histórias são apenas uma pequena amostra de todo o conhecimento
astronomico que sobrevive através da oralidade ao longo das gerações. Ao escutar
aquelas histórias de Alhaizza na presença das estrelas do deserto, tive a certeza
que vivia um momento especial, por ser um costume essencial da tradição beduína
e da identidade cultural saaraui. Uma experiência que valia a pena ser eternizada
e compartilhada através da realidade virtual.
Imagem 20: Alhaizza contando lendas sob o céu estrelado – Wilaya de Auserd.
Fonte: Felipe Carrelli
Ao final de sua fala, Alhaizza agradeceu nossa visita e apresentou a principal de-
manda que iria reverberar com diversas falas de outras pessoas da comunidade:
Muito obrigada. Vocês também são uma enciclopédia com a qual pode-
mos aprender muito. Agradeço o interesse de vocês virem até aqui nos
visitar nessa situação. Isso significa que está interessado por nós e por
nossa causa. E aproveitamos para, através de vocês, divulgar ao mundo
nosso calvário (ALNAH, 2019)32.
32
Tradução de Hamdi A. Aomar e do autor. Grifo do autor.
78
Tudo isso que estamos gravando, a ideia é criar alguns produtos. Mas
também que isso (os registros) volte aqui para que vocês possam utilizar
como parte de sua pesquisa. Além disso a ideia é vir até aqui e aprender
sobre toda a condição política e social [...] para mostrar isso também às
pessoas através dos produtos. A ideia é utilizar esse conhecimento que
vocês têm sobre o céu, para mostrar ao público que o povo saaraui tem
muita sabedoria. E que merece ter sua terra e sua cultura. Não queremos
que as pessoas vejam o povo saaraui apenas como um povo frágil, mas
um povo que tem um conhecimento que é importante para o mundo. Eu
gostaria de perguntar o que pensam sobre essa abordagem, vinculando a
questão social ao conhecimento sobre o céu (ALNAH, 2019).
33
Mohammed Ali foi quem nos levou para até Alhaizza Aldih Alnah.
34
Tradução de Hamdi A. Aomar e do autor. Grifo do autor.
35
Tradução do autor.
79
Após a imprevisível resposta, Fabio observou que talvez a pergunta não tinha fi-
cado clara ou que tivesse ocorrido algum problema na tradução. Ele repetiu a per-
gunta de outra forma e aproveitou para dar um exemplo: “Existe algum oásis, mon-
tanha ou vale que tenha o mesmo nome de algo que está no céu?” Essa confusão
exemplifica a dificuldade de comunicação que enfrentamos durante todo o projeto
Amanar. Apesar de muitos saarauis falarem espanhol devido a aproximação histó-
rica com a Espanha, sábios(as) mais idosos(as) não tinham tanta familiaridade com
o idioma e preferiam falar em hassania enquanto Hamdi ajudava na tradução. De
toda forma, nesse exemplo vale ressaltar como os erros inesperados e imprevisí-
veis geram respostas preciosas. Dentro do processo de co-criação esse percurso
acidental não é apenas bem-vindo, como necessário.
36
Fabio del Sordo é integrante do GalileoMobile e do projeto AMANAR.
37
Tradução de Hamdi A. Aomar e do autor.
38
Tradução de Hamdi A. Aomar e do autor. Grifo do autor.
80
Imagem 21: Hamdi (esq.) traduzindo a fala do sábio Mohammed Salek (dir.) – Wilaya de Auserd.
Fonte: Felipe Carrelli
De modo geral, mesmo os saarauis que conhecemos sem vínculo institucional com
a RASD se mostraram pessoas muito politizadas. Na escola visitada pela equipe
do GalileoMobile em Dakhla, a professora Onija Mohamed apontou que:
Na mesma escola em Dakhla, essa ideia se evidenciou ainda mais na fala do estu-
dante de 8 anos Hayra Mohammed, quando perguntado sobre a sua experiência
durante as atividades de divulgação de astronomia, fez questão de lembrar que:
Não podemos viver aqui porque aqui faz muito calor e frio. E por isso não
podemos viver aqui. Nós, os saarauis, queremos viver uma vida digna. E
por isso, nós vamos seguir até que a gente consiga recuperar a nossa
terra (HAYRA, 2019).
O homem é um animal social e a vida não é fácil para ele quando os laços
sociais são cortados. Os padrões morais são muito mais fáceis de manter
na textura de uma sociedade. Poucos indivíduos têm força para conservar
sua própria integridade se seu status social, político e jurídico for comple-
tamente confuso. Sem coragem de lutar por uma mudança de nosso sta-
tus social e jurídico, decidimos, em vez disso, muitos de nós, tentar uma
mudança de identidade (ARENDT, 1943, p. 116).
Agradecemos esta visita de vocês a esta região. Apesar de tudo, nós re-
sistimos. Estamos lutando com todos os meios e instituições possíveis
para conseguir nosso objetivo. Temos certeza de que o dia da vitória virá.
Por isso queremos que sejam testemunhas de tudo isso e que comparti-
lhem de alguma maneira a verdade que viram aqui (BAL-LA, 2019)39
Imagem 22: Reunião da equipe GM com líderes do Conselho Regional – Wilaya de Bojador.
Fonte: Felipe Carrelli
39
Tradução de Hamdi A. Aomar e do autor. Grifo do autor.
82
Em segundo lugar, temos a barreira cultural. Muitos conceitos como “realidade vir-
tual”, “interatividade”, “imersão” são complexos e podem assustar ouvidos que es-
cutam pela primeira vez. Todos os entrevistados tinham conhecimento sobre a fun-
ção de uma câmera fotografia ou de vídeo, mas era a primeira vez que se depara-
vam com uma câmera 360º ou óculos de realidade virtual. Explicar e demonstrar
exemplos dessa ferramenta também requeria tempo, indisponível em nosso caso.
6. DESENVOLVENDO OS PRODUTOS
Hamada é a palavra usada pelo povo saaraui para descrever a paisagem rochosa
e inóspita do deserto ao longo da fronteira entre a Argélia e o Saara Ocidental, onde
estão localizados os campos de refugiados. Aziza Brahim, nascida no campo de
refugiados saaraui e atualmente cantora/ativista, utiliza sua expressão artistica para
refletir sobre a inquieta luta do povo saaraui por sua terra. Em seu álbum Abbar el
Hamada (Do outro lado do Hamada), a letra da faixa Los Muros denuncia a fortifi-
cação de areia (conhecida como Muro da Vergonha) que Marrocos ergueu ao longo
da fronteira com o Saara Ocidental:
Outra estrela cadente foi vista. Atravessando o muro hoje à noite. Não
detectada pelo radar, despercebida pelo guarda. Na terra e no mar, as
paredes continuam subindo, ainda (BRAHIM, 2018).
Assim, a sutileza e beleza dos versos de Aziza Brahim nos inspirou em buscar,
dentro do nosso conteúdo, a mesma poesia. No entanto, a tarefa de unir esses dois
temas dentro de uma obra de realidade virtual acarretou em alguns problemas. O
primeiro deles era a complexidade dos dois temas. A segunda era o tempo limitado
pela experiência de realidade virtual.
Apesar dos estudos recentes serem todavia inconclusivos, uma das alternativas
para evitar o cybersickness40 é, entre outros fatores, criar experiências com breve
duração. No entanto, as entrevistas realizadas durante a viagem de campo tinham
entre uma e duas horas cada. Por isso, era necessário adaptar o conteúdo para
40
O cybersickness (enjoo cibernético) é uma forma de enjoo de movimento que ocorre como resultado da
exposição a ambientes imersivos de realidade extendida como aplicativos de realidade virtual (YILDIRIM,
2019). Os sintomas mais comuns incluem desconforto como dores de cabeça, cansaço visual, tontura, visão
turva, fadiga ocular, salivação, náuseas e até vômito (ISRAEL et. al., 2019).
84
O universo das criações transmídia inclui desde filmes, livros, animações, jogos,
programas de televisão, séries, HQs, documentários interativos, instalações artísti-
cas. Como exemplos temos as grandes franchises como Harry Potter, Stars Wars
e Matrix que exploram diversas plataformas para engajar seu público.
Segundo Maciel (2018), isso significa que embora cada uma das obras seja autô-
noma – não sendo necessário conhecer uma para compreender a outra - na expe-
riência transmídia o público que buscar informações sobre todas as obras, tem uma
experiência expandida, gerando um interesse continuo e mais consumo. Justa-
mente por isso, Jenkins (2010) afirma que na estratégia transmídia, o público pre-
cisa buscar ativamente o conteúdo por várias plataformas de mídia: o público es-
colhe o que quer assistir, por quanto tempo, em que ordem, etc.
85
41
O significado dessa estratégia transmídia é o resultado da adaptação de conceitos de outros autores da
área ao projeto de pesquisa-criação (Jenkins, 2010; Maciel, 2018).
86
A autora ressalta que embora os dois conceitos sejam partes integrantes do racio-
cínio humano e que podem ocorrer simultaneamente, sobrepondo-se em diferentes
contextos de decisões e ações, é no processo de effectuation que o empreendedor
cria um ou mais vários efeitos possíveis, independentemente do objetivo final com
o qual começou.
Logo, Sarasvathy (2003) destaca que embora o processo de effectuation não re-
duza a probabilidade de falha, ele reduz os custos da falha. Segundo a autora, o
empreendedor que opta pela effectuation precisa estar atento a improvisação e
adaptação. Consequentemente, dentro de um projeto de pesquisa-criação, a lógica
87
Além de ter conteúdos complementares, cada produto tem uma abordagem distinta
e proporciona ao público uma experiência única. Por viabilizar uma obra mais es-
tética, o Estrelas do Deserto VR prioriza o esplendor do céu e do cenário para imer-
gir o participante. Estrelas do Deserto 360º explora as possibilidades da imagem
equirectangular para criar uma transição poética entre os elementos da narrativa. O
docugame Procurando Estrelas utiliza os elementos de gamificação para colocar o
42
Alguns dos produtos ainda estão em desenvolvimento durante a escrita dessa dissertação.
88
Apesar dessa etapa da criação não contar diretamente com a participação da po-
pulação saaraui, as demandas apresentadas durante as gravações foram levadas
em consideração em todos os produtos. Assim, cada uma dessas obras foi direci-
onada para uma plataforma específica, a fim de alcançar diferentes tipos de público.
Cada produto com sua especificidade, prós e contras que serão apresentados a
seguir, junto ao relato dos meios e processos de criação de cada experiência.
89
Para criar essa obra utilizamos as filmagens em 360º que realizamos durante o
projeto Amanar, além dos áudios originais dos depoimentos (em hassania ou
43
Procurando Estrelas está disponível no link: https://www.galileomobile.org/searching-for-stars-eng
44
Tradução do autor
90
Imagem 23: Cada quadrado é uma cena que se conecta a outra cena do docugame interativo.
Fonte: Felipe Carrelli
Após cada cena, o participante tem duas ou mais opções para escolher por qual
caminho prefere seguir. No caso da cena da imagem 24 (abaixo), o participante
pode escolher entre quatro botões: tanque de guerra, livro, chá ou estrela. Se optar
pelo primeiro, ele vai para o Museu da Resistência onde vai escutar sobre a história
do êxodo da população saaraui. No segundo botão, o jogador escuta sobre como
o conhecimento oral era transmitido entre o povo nômade. Se clicar no símbolo chá,
o interator escuta Hamdi contando a anedota sobre os três chás saaraui. Mas se o
participante preferir escolher o botão com o símbolo da estrela, ele irá até a próxima
cena onde encontra a sábia saaraui que vai falar sobre a cosmovisão saaraui.
91
Imagem 24: Imagem equiretangular da entrevista com o sábio de estrelas – Wilaya de Smara.
Fonte: Felipe Carrelli
Apesar dessa limitação, cada participante tem uma experiência diferente pois o
conteúdo é diferente dependendo do caminho escolhido. De fato, esse é um dos
motivos da utilização dessa estética, uma vez que o docugame possibilita uma his-
tória mais longa e detalhada. Assim, nesse produto são apresentados conteúdos
complementares as experiências de 3DoF e 6DoF, já que não tivemos a limitação
de tempo (como citado anteriormente). Dessa forma, conseguimos adicionar no ro-
teiro desta obra as questões político/social demandada pelos saarauis durante o
processo de co-criação.
Por ser uma inovação tecnológica assimilada a um jogo, o docugame tem um po-
tencial de atrair um público mais jovem. Por outro lado, a desvantagem é justamente
exigir que os participantes tenham familiaridade com vídeos 360º para explorar a
imagem em todos os ângulos e tomar decisões dentro da narrativa.
elementos multimídia como fotos, vídeos, sons e plantas baixas, panoramas e ví-
deos 360º para criar exposições virtuais.
Durante a realização do docugame, o primeiro passo foi escolher com qual pro-
grama iriamos trabalhar. Durante essa pesquisa, percebemos que existe uma vari-
edade muito grande de aplicativos destinados para a construção de passeios virtu-
ais 360, mas o maior problema encontrado foi a descontinuidade de muitos softwa-
res. A falta de atualização os tornava rapidamente obsoletos, já que estavamos
lidando com tecnologia de ponta como a realidade virtual. Por isso, testamos dife-
rentes programas: Wonda VR, KrPano, Pano2VR, Kuula, Klatpy e Orbix360.
Após analisar cada opção, percebemos um outro problema de trabalhar com esses
programas. Por ser pensado para o desenvolvimento de passeios virtuais, esses
aplicativos não apresentam muitas ferramentas narrativas. Por exemplo, algumas
não tem a opção de fade in/fade out para texto ou imagens. Outras trabalham com
45
http://www.fotosintese360.com.br/tour/ratimbum
46
https://visit.voma.space/
47
https://digitalekunsthalle.zdf.de/zkm_en/index.html
48
http://machupicchu360vr.com/#/
49
https://www.virtualyosemite.org/virtual-tour
50
https://archeologie.culture.fr/chauvet/en
93
som 360 espacializado, mas não dão a opção de vincular legendas ao áudio. Algu-
mas exportam o produto final para a web, mas não para óculos de realidade virtual.
A escolha pelo 3DVista Virtual Tour se deu principalmente pelas diversas possibili-
dades de exporte. O programa permitia que o produto final fosse exportado para
diferentes óculos de realidade virtual e/ou um arquivo, podendo ser facilmente
acessado via navegadores web como Firefox, Google Chrome ou Safari. Visando
alcançar um público mais abrangente, principalmente em locais com menos recur-
sos tecnológicos, optamos pela segunda opção, e criamos uma experiência em que
o participante não necessita ter um headset para jogar. Ainda assim, pretendemos
no futuro disponibilizar uma versão para que o público possa optar por assistir a
obra em óculos de realidade virtual.
Para desenvolver a obra 360º com 3DoF, nos baseamos na lógica de effectuation.
Buscando tutoriais da internet para estudar as técnicas possíveis dentro dos pro-
gramas disponíveis ao nosso alcance: Adobe Premiere, Photoshop e After Effects.
O primeiro passo foi identificar o fluxo de trabalho para criar a experiência com
esses programas. Para isso contamos com a ajuda de Garrett Sneen e seu canal
51
Estrelas do Deserto 360º está disponível em: https://www.galileomobile.org/desert-stars-360-eng
94
52
https://www.youtube.com/watch?v=6bPiQx-9_5g
53
https://www.youtube.com/watch?v=45lPJ5B6mMU
54
https://www.youtube.com/watch?v=wWNSOcxX_xs
95
Feito isso, iniciamos a criação do céu. Adicionamos a imagem The Milky Way pa-
norama disponível pela ESO55 licenciado sob uma Licença Internacional Creative
Commons Atribuição 4.0. Além disso, utilizamos o Photoshop para pintar uma ca-
mada de estrelas sob a imagem equiretangular, corrigindo algumas imperfeições.
55
https://www.eso.org/public/images/eso0932a/
96
Dessa maneira, obtivemos uma resolução muito superior a imagem capturada atra-
vés da câmera 360. Apesar de trabalhar com elementos de animação, o grau de
imersão da cena é maior do que na imagem real da câmera 360.
O deserto aos poucos vai se transformando, árvores e casas surgem em fade in.
Hamdi continua a história e explica sobre a chegada a terras argelinas e a constru-
ção dos acampamentos de refugiados, onde o participante se encontra agora.
Vale citar que a obra foi contemplada com o edital de divulgação científica CoMci-
ência de Ocupação em Arte, Ciência e Tecnologia do MM Gerdau – Museu das
Minas e do Metal. Entre o final de 2020 e início de 2021, a experiência foi exibida
on-line56 e gratuitamente na exposição “Cristais do tempo: emergências nas fissu-
ras do presente” juntamente com outras nove obras de artistas nacionais e interna-
cionais. Além disso, a obra Estrelas do Deserto 360º também foi selecionada pela
plataforma Ucraniana V-ART para ser exibida na exposição Art Spaceship57.
56
https://2020.programacomciencia.org.br/virtual/s03360.html
57
https://v-art.digital/
58
Estrelas do Deserto VR está disponível em: https://www.galileomobile.org/desert-stars-vr-eng
98
Imagem 30: Victória, Rafael e Joel durante uma reunião online de desenvolvimento no Unity.
Fonte: Felipe Carrelli
Vale destacar que esses fóruns de discussão, assim como os tutoriais disponíveis
no YouTube e a completa documentação no site da Unity são fundamentais para o
desenvolvimento dessa experiência. Sem esses colaboradores remotos, que dedi-
cam seu tempo a ajudar outros gratuitamente nessas comunidades on-line, nosso
trabalho para encontrar soluções rápidas teria sido muito maior. A eles e elas, so-
mos eternamente gratos por sua generosidade.
Nessa etapa, como discuti em capítulos prévios, era importante elevar o grau de
imersão do participante para que ele permaneça na história. Assim, além do es-
plêndido céu estrelado, a construção do espaço do acampamento foi essencial para
conferir veracidade ao ambiente. Em um primeiro momento utilizamos fotografias
inseridas em planos 2D para compor as paredes das casas ao redor do participante.
No entanto, após testes com o Oculus Quest, notamos que a falta de profundidade
diminuía a sensação de imersão. Por isso, buscamos técnicas realistas para recriar
essas paredes em nossa experiência. Uma dessas técnicas é a fotogrametria.
59
Evento que reune profissionais dos mercados de audiovisual, música, neurociência, inovação, marcas, ga-
mes e realidade virtual.
101
No mesmo painel, Nelson Porto apontou que a técnica de fotogrametria é uma ex-
celente alternativa nesse sentido, por ser a maneira mais próxima de chegar ao real
quando trabalhamos dentro de universos imersivos (CARRELLI, 2019c). O realiza-
dor mostrou ainda que a fotogrametria permite aos realizadores trabalharem com
seis graus de liberdade, onde o interator pode se deslocar dentro do ambiente ao
invés de ficar apenas preso a um ponto fixo, ampliando a capacidade e interação
do participante com o espaço.
60
O XRBR é uma associação sem fins lucrativos, criado por profissionais do mercado, da academia e do
governo para unir esforços e impulsionar o emergente e desafiador mercado brasileiro.
61
Samsung Gear 360, GoPro Fusion 360 e Insta Pro 2.
62
De fato, a qualidade das imagens 360º cinemáticas não são as melhores quando visualizadas nos óculos de
RV. No caso do equipamento utilizado durante esse trabalho, as imagens noturnas são ainda menos satisfató-
rias devido a baixa iluminação, além é claro de limitar as experiências a três graus de liberdade.
102
No entanto, após a viagem a campo, essa etapa ficou em suspensão pois a foto-
grametria requer um alto processamento computacional e uma placa de vídeo
avançada, recursos não disponíveis pela equipe. Por isso tivemos que esperar
aproximadamente um ano até contar com o apoio da professora Leila Lobato Graef
do Instituto de Física da Universidade Federal Fluminense que disponibilizou uma
máquina capaz de realizar o desenvolvimento desse processo, efetivando assim
mais um exemplo da lógica de effectuation adotada ao longo do projeto.
103
Imagem 31: No total foram tiradas 1072 fotos do local para realizar a fotogrametria do espaço.
Fonte: Felipe Carrelli
Imagem 32: Nuvem de pontos criada a partir das fotos do campo – RealityCapture.
Fonte: Felipe Carrelli
Imagem 34: O processo de retopologia para limpeza e diminuição dos polígonos – Zbrush.
Fonte: Felipe Carrelli
Imagem 36: Modelo 3D inserido e iluminado no cenário com outros elementos - Unity.
Fonte: Felipe Carrelli
63
Túnica de uma peça usada por mulheres.
106
de acordo com o papel que nos é dado na narrativa. Por meio do áudio, o público
escuta Andrea Antón apresentar a equipe do GalileoMobile e explicar o objetivo do
nosso encontro. O interator é posicionado como parte desse grupo de pesquisado-
res e personagem da narrativa. Isso é retomado ao final, quando a sábia pede que
o participante divulgue ao mundo seu calvário. Desse jeito, a obra convida o público
a difundir essa discussão através de seus próprios meios.
livre para explorar o espaço. Junto ao áudio, outro personagem aparece e o parti-
cipante pode ativar o áudio dessa pessoa ao se aproximar. Dessa forma, a narrativa
faz conexões entre as histórias sobre céu e a situação política e social na qual os
refugiados estão submetidos.
Nessa jornada de exploração das conexões de conteúdo, não é nosso objetivo mo-
nopolizar a atenção do participante, mas é certo que projetarmos um caminho para
chamar a atenção à narrativa, propondo significados através dos diálogos. O es-
paço e a interação são limitados principalmente por se tratar de uma primeira ex-
periência e, portanto, cada passo de desenvolvimento é como andar sob ar rare-
feito: é preciso esforço e atenção. Sabemos que se trata de um primeiro e humilde
passo nesse novo universo narrativo sedutor da realidade virtual e dos jogos. Faço
das palavras de Murray (2003, p. 84) as minhas:
Apesar de não ser o foco desta dissertação, vale citar rapidamente os outros pro-
dutos que foram desenvolvidos no contexto do projeto Amanar e que também re-
fletem os processos criativos descritos nos capítulos anteriores.
Apesar desse produto ter uma abordagem mais institucional do projeto, o documen-
tário também apresenta as pautas da causa saaraui. Por ser uma mídia mais
64
Refúgio nas Estrelas estará disponível em: https://www.galileomobile.org/a-refuge-in-the-stars-eng
108
Isso obrigou a equipe ser criativa, trabalhando com podcasts em áudio para que os
professores pudessem ter acesso ao material de maneira assíncrona. Além disso,
enviamos imagens e fotos em .jpg de baixa qualidade para ilustrar as atividades.
65
GalileoCast está disponível em: https://www.galileomobile.org/galileocast-eng
109
Imagem 38: Instalação Irifi no Sesc Quitandinha em Petrópolis entre 08.10.2021 – 30.01.2022
Fonte: Felipe Carrelli
66
Mais informações sobre a instalação Irifi podem ser acessadas em: https://www.galileomobile.org/irifi-eng
ou em https://ocupacaorefugio.com.br/
110
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Parte da minha motivação para realizar esta pesquisa-criação era descobrir novas
formas de integrar o documentário à divulgação científica. Para mim sempre foi um
desafio transmitir essas histórias sobre o céu para a linguagem audiovisual. Afinal,
como podemos nos inspirar pelas estrelas sem vivenciar sua beleza? Como pode-
mos reproduzir o esplendor e magnitude desses céus ao público? Em outras pala-
vras, como reproduzir essas experiências humanas realmente memoráveis e co-
nectar pessoas, sentimentos e sentidos?
Ao escolher olhar para a realidade virtual, este trabalho tentou um primeiro passo
para a compreensão de como essa linguagem pode ser aplicada dentro do campo
da popularização da ciência. Assim, ao longo desse relato, busquei discutir, analisar
e replicar estes elementos em nossos produtos.
A primeira tarefa deste trabalho foi contextualizar a situação político e social na qual
este projeto estava inserido. Para isso, fizemos um breve resumo sobre o conflito e
sobre o estado atual dos refugiados saaraui. Como mostrei, essa discussão não
poderia ficar de fora desta dissertação. Ao adotar a perspectiva decolonial em
nossa pesquisa-criação, sentimos a necessidade de fundamentar nossa prática ao
processo de co-criação e falar sobre essas questões foi uma demanda que surgiu
como consequência dessa escuta ativa com a população saaraui.
Logo, relatei o passo a passo do processo criativo e das tomadas de decisão, além
da refletir sobre as questões nevrálgicas levantadas na trajetória da pesquisa-cria-
ção, seja na prática ou na teoría. Essa articulação entre pesquisa e criação se deu
principalmente ao longo do processo de co-criação, efetivado sobretudo através da
lógica de effectuation.
Ao escolher olhar não apenas para o que deu certo, mas também para os percalços
e limitações dentro de nossas decisões, descrevi e refleti sobre como estas se ex-
pressam em cada passo do processo criativo. Acredito que uma decisão frustada,
enquanto pesquisa, pode ser uma lição aprendida pertinente ao leitor e por isso
valeu a pena ser compartilhada.
Outra janela que se abriu foi a possibilidade de estar presente em diferentes lugares
ao mesmo tempo, através das conferencias, simpósios e festivais on-line. Ao longo
do período de 2020-2021, apresentei o Estrelas do Deserto em 8 eventos: IV Redes
Digitais e Culturas Ativistas (Campinas); Immersivity and Technological Innovations
113
Entretanto, dez dias após o bloqueio, em texto elaborado pelos Estados Unidos, o
Conselho de Segurança da ONU renovou o mandato do ministério no Saara por
mais um ano por meio, sem fazer menção ao referendo de autodeterminação exi-
gido pelos saarauis (PEREGIL, 2020). Em 13 de novembro, o Marrocos enviou for-
ças ao local para atacar um grupo de saarauis que protestava pacificamente contra
a passagem. Em razão do fracasso do processo diplomático, na madrugada de 14
de novembro, o Polisario reagiu para proteger os civis e o seu território liberado,
considerando então nulo o cessar-fogo de 1991 e decretando o retorno à luta ar-
mada após 29 anos de espera num estéril plano de paz que apenas consolidou a
ocupação do território por parte de Marrocos (CUARTOPODER, 2021; PAZ, 2021).
própria existência.
Por fim, gostaria de terminar essa dissertação com uma mensagem positiva e re-
confortante sobre o importante papel da educação, da divulgação científica ou
mesmo da realidade virtual na resolução de todos os problemas sociais que nos
temos nesse planeta. “Mas o Saara se libera através de guerra” (BARUYEMAA,
2019) – a dura profecia do sábio saaraui é tão certeira quanto o movimento das
estrelas no céu do deserto. Sobra pouca esperança. Mas, para não encerrar esse
último capítulo todo de negativas como fez Brás Cubas em suas memórias póstu-
mas, deixo aqui algum alento.
Durante os dez dias em que dividimos xícaras de chá com o povo saaraui aprendi
que apesar da injustiça, da tragédia e da dor, é possível sorrir. A paciência e prin-
cipalmente, a resiliência, desse povo são inspiradoras, e me ajudaram a resistir aos
dias mais difíceis - que não foram poucos - dessa pandemia.
Plantar sete milhões de mudas no deserto do Saara parece uma tarefa hercúlea.
No entanto, um estudo recente publicado na Nature detectou uma contagem ines-
peradamente grande de árvores no Saara e no Sahel da África Ocidental. Os pes-
quisadores encontraram mais de 1,8 bilhões de árvores isoladas (13,4 árvores por
hectare), com copa media de 212 metros, em locais com precipitação que variam
entre de 0 a 1.000 mm por ano (BRANDT et al., 2020). Ou Como diria Dr. Ian Mal-
colm em Jurassic Park (1993) “Life, uh, finds a way...”.
Afinal de contas, somadas umas coisas e outras, “Não é o que a Vida nos dá. Nem
o que dela colhemos. Mas o que semeamos em pleno deserto” (COUTO, 2016).
115
8. REFERÊNCIAS
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