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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

RAQUEL AUGUSTO SATTO VILELA

a encruzilhada da educação audiovisual:


tempos e espaços de Olhares (Im)possíveis

Mariana
2022
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

RAQUEL AUGUSTO SATTO VILELA

a encruzilhada da educação audiovisual:


tempos e espaços de Olhares (Im)possíveis

Texto apresentado ao Programa de Pós-Graduação


em Comunicação e Temporalidades para defesa
como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Comunicação.

Orientadora: Hila Rodrigues


Linha de pesquisa: Práticas comunicacionais e tempo
social.

Mariana
2022
SISBIN - SISTEMA DE BIBLIOTECAS E INFORMAÇÃO

V699e Vilela, Raquel Augusto Satto.


VilA encruzilhada da educação audiovisual [manuscrito]: tempos e
espaços de Olhares (Im)possíveis. / Raquel Augusto Satto Vilela. - 2022.
Vil255 f.

VilOrientadora: Profa. Dra. Hila Bernardete Silva Rodrigues.


VilDissertação (Mestrado Acadêmico). Universidade Federal de Ouro
Preto. Instituto de Ciências Sociais Aplicadas. Programa de Pós-
Graduação em Comunicação.
VilÁrea de Concentração: Comunicação e Temporalidades.

Vil1. Ensino audiovisual. 2. Cinema. 3. Comunicação. 4. Educação. I.


Rodrigues, Hila Bernardete Silva. II. Universidade Federal de Ouro Preto.
III. Título.

CDU 316.77

Bibliotecário(a) Responsável: Edna da Silva Angelo - CRB6 2560


MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
REITORIA
INSTITUTO DE CIENCIAS SOCIAIS E APLICADAS
PROGRAMA DE POS-GRADUACAO EM COMUNICACAO

FOLHA DE APROVAÇÃO

Raquel Augusto Satto Vilela

A encruzilhada da educação audiovisual: tempos e espaços de Olhares (Im)possíveis

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal

de Ouro Preto como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação.

Aprovada em 24 de fevereiro de 2022

Membros da banca

Prof.(a). Dr.(a) Hila Bernardete Silva Rodrigues (Orientador(a) e Presidente) – Universidade Federal de Ouro Preto

Prof.(a). Dr.(a) Cezar Avila Migliorin - Universidade Federal Fluminense

Prof.(a). Dr.(a) Cláudio Rodrigues Coração - Universidade Federal de Ouro Preto

Prof.(a). Dr.(a) Hila Bernardete Silva Rodrigues orientador(a) do trabalho, aprovou a versão final e autorizou seu depósito no
Repositório Institucional da UFOP em 29/04/2022

Documento assinado eletronicamente por Hila Bernardete Silva Rodrigues, PROFESSOR DE MAGISTERIO SUPERIOR, em
09/05/2022, às 16:00, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de
outubro de 2015.

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acao=documento_conferir&id_orgao_acesso_externo=0 , informando o código verificador 0317044 e o código CRC
AB2ADB2C.

Referência: Caso responda este documento, indicar expressamente o Processo nº 23109.001910/2022-11 SEI nº 0317044

R. Diogo de Vasconcelos, 122, - Bairro Pilar Ouro Preto/MG, CEP 35400-000


Telefone: (31)3557-3555 - www.ufop.br
A todes que vieram e que ainda virão encenar suas próprias histórias.
Axé.
AGRADECIMENTOS

A todos os meus ancestrais, os que estão em terra e os que já fizeram a passagem. Os


que são de sangue e os que não são. Carrego vidas muito além da minha, e espero estar
escrevendo uma bela história para ser lida por quem vem depois de mim.
Aos meus guias espirituais por orientarem meu ori, e a Exu, por se fazer presente em
cada pergunta que faço, em cada risada que dou, em cada encontro que tenho.
À minha família de sangue, que me mostrou o primeiro sentido de amor, comunidade
e cuidado. Principalmente à Alice, que logo chegou e já me ensina tanto. E a todas as outras
famílias que construí nessa breve e intensa jornada.
Às companheiras de casa, com as quais dividi perrengues e felicidades. Agradeço por
me ensinarem várias outras formas de explicar o amor. Só quem acompanhou sabe as noites
de insônia e as crises que fazem parte dessa pesquisa que agora apresento.
À família que se formou no São Gonçalo e com a qual durante a pandemia fortaleci os
laços que já tinha, além de criar outros. Só tenho a agradecer a relação de amizade e amor.
Aprendi muito (principalmente com as crianças).
À Olhares (Im)possíveis, por ter me acolhido. No meio do furacão da vida real, as
reuniões me lembravam dos motivos pelos quais escolhi embarcar nessa jornada acadêmica.
Meu agradecimento também pelas conversas me abraçavam e traziam a certeza de que havia
feito a escolha certa.
Ao Quintais, grupo de pesquisa no qual me encontrei e que, por meio das discussões
cheias de afeto, auxiliou a construir meu espaço dentro da academia.
Ao Ilê Axé Ofá Logunedé, por me proporcionar mais uma família. Chego pisando
macio nesse terreiro, mas já me sinto em casa, como se estivesse ali há muitos anos.
À Hila, por ter sido a melhor orientadora que eu poderia querer. Sua compreensão e
paciência comigo são lembranças que vou carregar para sempre. Você não me deixou desistir
nos momentos em que minha mente só criava cenários catastróficos. Agradeço por ter
segurado minha mão e me dado coragem.
À Gessimara por ter sido a psicóloga que eu precisava para acolher minhas próprias
incertezas e inquietudes. Com sua ajuda entrei por caminhos nunca antes trilhados, que me
levaram a mim mesmo.
“É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da
sensatez.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada,
mas só a poesia é verdadeira.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Melhor jeito que achei para me conhecer foi
fazendo o contrário.
Sou muito preparado de conflitos.
Não pode haver ausência de boca nas palavras:
nenhuma fique desamparada do ser que a
revelou.
O meu amanhecer vai ser de noite”.
(Livro sobre nada – Manoel de Barros)

“Se a vida é um curta metragem


me diz quem dirige o filme.
Takes de Andrei Tarkovsky”.
(Sirenes - Big Bllakk, SD9, Pedro Apoema)
RESUMO
Este trabalho tem o objetivo de refletir sobre as temporalidades e espacialidades presentes,
assim como as questões relacionadas à intersecção entre Educação, Cinema e Comunicação.
Para tanto, foi realizada uma análise do processo de produção audiovisual do coletivo Olhares
(Im)possíveis, durante a realização do filme Ano 2020. O referencial teórico alia conceitos
dessas três áreas, assim como outras das Ciências Humanas e Ciências Sociais, para construir
um arcabouço que possibilite acessar a especificidade de atuação da educação audiovisual e
suas características teórico-práticas e políticas, além de delimitar quais tempos e espaços
serão considerados. A encruzilhada aparece como operador conceitual e analítico, à luz de
epistemologias iorubá e bantu, para analisar a educação audiovisual enquanto um encontro
entre sensibilidades e saberes que intersecciona tempos e espaços, proporcionando espaços de
criação. O desenvolvimento da pesquisa passa pelo histórico do coletivo – suas bases teórico-
práticas e as atividades realizadas –, além da história de Ouro Preto, cidade na qual a Olhares
(Im)possíveis desenvolve suas ações. A análise, realizada a partir do contato com o coletivo e
da observação das ações desenvolvidas, se divide em três eixos: os cruzamentos de tempo e
espaço, práticas educomunicativas, reflexões subjetivas e coletivas suscitadas pelo processo
de produção.
Palavras-chave: Educação audiovisual; encruzilhada; cinema de grupo; Comunicação;
Educação.
ABSTRACT

This work aims to reflect on present temporalities and spatialities, as well as issues related to
the intersection between Education, Cinema and Communication. Therefore, an analysis of
the audiovisual production process of the collective Olhares (Im)possíveis was carried out,
during the making of the film Ano 2020. The theoretical framework combines concepts from
these three areas, as well as others from the Human Sciences and Social Sciences, to build a
framework that allows to access the specificity of the performance of audiovisual literacy and
its theoretical-practical and political characteristics, in addition to defining which times and
spaces will be considered. The crossroads appears as a conceptual and analytical operator, in
the light of Yoruba and Bantu epistemologies, to analyze audiovisual literacy as an encounter
between sensibilities and knowledges that intersects times and spaces, providing spaces for
creation. The development of the research goes through the history of the collective – its
theoretical-practical bases and the activities carried out –, in addition to the history of Ouro
Preto, the city in which Olhares (Im)possíveis develops its actions. The analysis, carried out
from the contact with the collective and the observation of the developed actions, is divided
into three axes: the intersections of time and space, educommunicative practices, subjective
and collective reflections evoked by the production process.
Key words: Audiovisual literacy; crossroads; group cinema; Communication; Education.
SUMÁRIO

ABRINDO OS CAMINHOS ............................................................................................ 10


CAPÍTULO 1 – PARA COMEÇO DE CONVERSA ...................................................... 13
1.1 Educando e aprendendo por imagens .......................................................................... 14
1.2 Pensando encruzilhadas .............................................................................................. 24
1.3 Contando tempos ........................................................................................................ 33
1.4 Construindo espaços ................................................................................................... 42
CAPÍTULO 2 - DE QUEM ESTAMOS FALANDO? ..................................................... 52
2.1 Olhares (Im)possíveis e a escuta do indizível .............................................................. 52
2.1.1 Dispositivos acionados ......................................................................................... 54
2.1.2 Ouro Preto, cidade cartão-postal ........................................................................... 56
2.2. Uma história sobre olhares ......................................................................................... 58
2.3 A pandemia e um novo cenário ................................................................................... 66
2.4 Lampejos avistados em cena ....................................................................................... 70
2.4.1 Percurso da luz ..................................................................................................... 72
CAPÍTULO 3 – ENTRECRUZAMENTOS E ABERTURAS ........................................ 77
3.1 Relações educomunicativas ........................................................................................ 77
3.2 Pensamentos sobre o mundo que cerca...................................................................... 100
3.3 Reflexões sobre o mundo que se é............................................................................. 110
3.4 Rastros das encruzilhadas ......................................................................................... 116
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 123
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 128
APÊNDICE A ................................................................................................................. 136
APÊNDICE B .................................................................................................................. 143
APÊNDICE C ................................................................................................................. 149
APÊNDICE D ................................................................................................................. 247
APÊNDICE E .................................................................................................................. 253
10

ABRINDO OS CAMINHOS

A criação de um único mundo


vem de um grande número de fragmentos e caos.
(Hayao Miyazaki)

Começando pelos devidos lugares, esta pesquisa só existe porque acredito no poder
dos encontros. Naquilo que emana do ser em conjunto e da encruzilhada que oferece
caminhos de entrada e saída. Das possibilidades que são oferecidas nas intercessões que
aparecem durante a jornada de construção do conhecimento. Decidi seguir o caminho que
apresento nesta dissertação porque acredito na potência do que pode ser redescoberto quando
experimentamos o audiovisual.
Essa linguagem sempre esteve presente na minha vida como uma esfera afetiva, um
espaço possível para reconhecer ou estranhar, ver de novo o mundo no qual vivo, imaginar
novos mundos possíveis, encarar medos ou sonhos. Tenho um carinho especial por filmes de
terror que dão o choque necessário para o corpo lembrar que sente, documentários que
conseguem mergulhar na crueza do real de forma sensível e as ficções científicas que
permitem projetar futuros, alertar para perigos ou imaginar cenários melhores.
Primeiramente compreendi o cinema como um lugar de imaginação e reflexão, no qual
poderia me projetar ou me escapar, depois um lugar de fazer política e amplificar vozes,
experimentar com os sentidos, e agora o vejo como tudo isso e sigo redescobrindo. Quando
vivenciei o audiovisual fazendo, me encantei com o que ele me possibilita refletir e dizer por
meio de sua codificação.
Pensar pela combinação de imagens e sons, e estudar sobre ela, me permite sempre o
exercício do olhar de novo, o que também pode significar olhar com calma e prestar atenção.
Quis experienciar o audiovisual na posição de quem propõe os exercícios do olhar e encontrei
também um espaço de encontro de sensibilidades, enxerguei uma fresta de luz que senti que
precisava continuar olhando.
Para mim é preciosa a ideia de compartilhar saberes sobre a educação audiovisual e,
principalmente, ir ao encontro do que ainda não sei. Considero ser importante dizer isso
porque no processo de produção de conhecimento que acredito é parte essencial compreender
de onde se fala para enxergar as limitações - e potencialidades - e entender que a ideia de
imparcialidade da ciência não pode ofuscar a visão e fazer acreditar que se fala de um lugar
superior, ou mais iluminado.
11

Tudo o que digo é fruto de curiosidade impulsionada por metodologias, encontros de


vivências e teorizações que não visam simplificar o mundo, mas contribuir com mais
perguntas. Não é intenção desta pesquisa apresentar soluções fechadas a hipóteses abertas,
mas um olhar localizado do que foi possível perceber.
Quando interpreto o mundo, sei que vivemos em um espaço-tempo de sociedades
extremamente midiatizadas, inundadas por imagens e fluxos de informações, mas ainda
desiguais nas condições materiais e possibilidades de caminhos na vida. Por isso considero
necessário falar sobre - e impulsionar - estratégias que possam interferir positivamente para o
direito à comunicação. Assim como entender melhor a potência que surge de práticas
sensíveis à multiplicidade de vozes, para que esses entendimentos se ramifiquem e toquem
outros solos.
A educação audiovisual dialoga com a crescente necessidade de criar mecanismos que
auxiliem a navegar na correnteza das imagens e informações para as quais somos
apresentados diariamente, em velocidade e quantidade cada vez maiores. E o acesso à
linguagem audiovisual se refere ao fomento da criticidade às produções existentes, mas
também a possibilidade de se expressar por meio dela. Além de interpretar, criar suas próprias
narrativas e estabelecer contato com seu aparato discursivo-estético.
Por isso, quis me concentrar na descoberta de iniciativas que possibilitassem
momentos de experimentação e reflexão conjunta. O pertencimento à cidade também se
apresentava como uma importante questão em minha trajetória acadêmica desde o final da
graduação, e me aproximei do coletivo Olhares (Im)possíveis justamente porque percebi a
centralidade desse debate em suas produções. Ao assistir os filmes Entre_vistas e Benedita,
me deparei com reflexões a respeito de Ouro Preto, do racismo e do espaço escolar que me
instigaram a buscar respostas para as minhas inquietações e também descobrir outras
perguntas.
Durante minha trajetória no programa de Comunicação e Temporalidades, pude
aprofundar as percepções acerca do que significa falar sobre o tempo, e sobre como ele pode
ser interpretado. Aliando isso aos pensamentos sobre produção de espaço pelo audiovisual,
percebi que poderia falar sobre esses aspectos de forma interconectada. Por isso, o prisma que
escolhi observar a educação audiovisual projeta uma reflexão sobre a própria enquanto uma
encruzilhada de tempos e espaços que possibilita encontros criadores e indicadores de
questões para além de si mesma.
Quero descobrir sobre os tempos mobilizados durante a prática da educação
audiovisual, assim como as formas de se relacionar com os espaços reconhecidos e
12

produzidos. Desejo também observar quais são as potencialidades que emergem do


movimento fomentado pelo audiovisual de reaproximação com a realidade, baseando em
minhas percepções e nas percepções das pessoas envolvidas. Quero saber o que o audiovisual
possibilita a partir do re-conhecimento que propõe, e quais questões surgem nesses
cruzamentos, os embates, as conclusões e as aberturas.
A encruzilhada surge neste trabalho como um operador conceitual, analítico, político e
filosófico. Bebendo da fonte de epistemologias ligadas às religiões de matriz africana, acesso
essas visões de mundo para entender o que significa pensar por encruzilhadas. Quero tecer
conexões que consigam lidar com o recorte da realidade que me proponho a dialogar por meio
dessa pesquisa com a Olhares (Im)possíveis.
Assim, o enquadramento proposto é delimitado pelo processo de produção do filme
Ano 2020, da concepção do projeto até sua exibição de forma online e presencial, sintetizando
um ano e meio de acompanhamento e participação nesse trabalho coletivo. No entremeio de
vozes, sujeitos e vidas me coloco na posição de espectador-participante e escrevo como se
apresentasse uma sinopse desse filme que assisti.
Para tanto, no primeiro capítulo apresento as bases teóricas para a reflexão, em quatro
eixos: conceitos sobre educação audiovisual; o que significa pensar por encruzilhadas;
concepções sobre os tempos mobilizados; e os espaços que se apresentam por entre a prática
audiovisual. O segundo trata sobre alguns referenciais teórico-práticos da Olhares
(Im)possíveis; uma breve apresentação da história de Ouro Preto, cidade onde o coletivo atua;
e atividades realizadas ao longo da trajetória do grupo. No terceiro, desenvolvo a análise do
recorte escolhido, a partir das perspectivas acessadas pela fundamentação teórica, em diálogo
com o que pode ser observado nas reuniões e criações realizadas.
13

CAPÍTULO 1 – PARA COMEÇO DE CONVERSA

Imagens, sons, cenas e planos. Conversas e trocas. Uma câmera ou um celular na mão,
muitas ideias na cabeça. O cinema entrou na escola como ferramenta, técnica e tecnologia,
mas nesse encontro reside um algo mais. “Cinema na escola é a força do imprevisível, a
descoberta do mundo sem a funcionalidade que se quer em uma pontuação qualquer, sem a
centralidade do empreendedorismo ou do todos contra todos” (MIGLIORIN; PIPANO, 2019,
p. 145) Essa afirmação reforça a urgência de rejeitar o olhar para esse fenômeno a partir do
que pode oferecer à produtividade capitalista e sua forma de configurar a vida, com preceitos
como competição e individualismo. O convite que se coloca aqui é pensar a partir da
capacidade de possibilitar encontros de compartilhamento e momentos de criação.
É nessa imprevisibilidade que se vislumbra a encruzilhada, no intangível da
experiência da educação audiovisual. Nos movimentos de significação e ressignificação, no
entendimento do que se pensa e na mudança de ideia, no trabalho coletivo que também é
individual e vice-versa, na criação de imaginários e tentativas de captura dos momentos, na
câmera que olha e no olho que vê. A encruzilhada se dá entre a boca que fala e o ouvido que
escuta, no corpo que age sobre a realidade e por ela é afetado. Nas histórias que os sujeitos
criam, mas também naquelas que carregam em si.
O contato com novas imagens que podem apresentar novos mundos, e principalmente
o processo de produção delas, leva os sujeitos envolvidos a experimentar formas de se
relacionar com a dimensão espaço-temporal na qual estão inseridos. Tal experiência, de
provocar encontros e pensar novos mundos, pode causar consequências na forma como essa
organização de tempos e espaços é percebida. Quais são os tempos e espaços inscritos na
encruzilhada da educação audiovisual? E, para além disso, o que surge dessa encruza?
Preparando o terreno para a construção analítica da pesquisa, é necessário apresentar
algumas conceituações importantes para compreender o ponto de partida das reflexões e o
arcabouço que será acessado durante o desenrolar desse processo. As concepções trazidas são
entes vivos e dinâmicos que direcionam o percurso reflexivo a ser assumido e formam a base
que sustenta o enquadramento para a observação.
14

1.1 Educando e aprendendo por imagens


O que exatamente seria a educação audiovisual? De forma sucinta, é possível
conceituá-la como a “alfabetização para os meios e a expressão por meio de imagens e sons,
implicando a prática da realização” (RIZZO JUNIOR, 2011, p.101). A combinação entre o
acesso a obras audiovisuais (com maior ou menor foco na reflexão coletiva sobre elas) e a
prática da produção audiovisual são pilares básicos da maior parte das iniciativas de Educação
Audiovisual, com um leque diverso de metodologias aplicadas que podem seguir tipos
similares de percurso pedagógico.
Moira Toledo (2010), em seu trabalho Educação audiovisual popular no Brasil –
Panorama 1990-2009, apresentou uma sintetização dessas práticas a partir de 70 projetos
pesquisados. Vou apresentar seus resultados a fim de apontar características gerais da
educação audiovisual a partir de alguns de seus formatos possíveis. Em sua pesquisa, a autora
estabeleceu três grandes perfis para discorrer sobre as características da Educação
Audiovisual Popular, agrupando os projetos a partir de sua duração e carga horária. O Perfil 1,
que corresponde a 25,71% do total, seria de ciclo curto (até 1 mês/30 dias/até 160h/aula), no
geral com aulas longas (mais de 4h/dia) por dias consecutivos. Guiado pelo objetivo de
produzir os vídeos, esse perfil segue etapas bem definidas “(...) que, em geral, envolvem
projeções, aulas – de perfis variados (e exercícios), individuais e coletivos.” (p. 166) A partir
de argumentos apresentados pelos estudantes, os roteiros são construídos coletivamente e as
funções são designadas, podendo ou não serem fixas até o final do processo de produção.
Uma série de oficinas desse tipo geralmente se orientaria pela seguinte ordem:
atividade especial de abertura ou atividade pedagógica especial (ou então uma exibição de
vídeos); exercício individual ou coletivo de gravação de imagens (de caráter mais lúdico);
aula expositiva sobre história do cinema/audiovisual; aulas teórico-práticas de roteiro,
produção, câmera e som; atendimentos por parte da equipe de educadores antes das
gravações; as gravações em si (1 ou 2 diárias); e a edição (em 1 ou 2 diárias também);
finalizando com uma exibição pública. Nesse perfil os projetos, em sua maioria itinerantes,
não possuem intenções profissionalizantes em seus objetivos principais, mas com frequência
influenciam participantes a trabalharem com o audiovisual. Além disso, também foram
registrados casos em que estudantes se tornam educadores, muitas vezes no mesmo projeto no
qual participaram. (p. 168-180)
O Perfil 2, de ciclo e carga horária intermediários (de 3 meses a 1 ano/90 a 360 dias e
até 400h/aula), com aulas mais curtas (1h30 a 3h) e mais espaçadas (2 ou 3 vezes por
semana), ou então longas (4h a 5h) apenas nos finais de semana – e simboliza 57,14% dos
15

projetos pesquisados. Podem aparecer estratégias que possuem um objetivo concreto ou uma
sequência de objetivos diversos. Nesse tipo, frequentemente o número de exercícios práticos
ao longo do processo é maior, pulverizando a produção audiovisual em vários momentos em
vez de centrar apenas no produto final. A sensibilização audiovisual é o objetivo mais
comum, sem tanto foco na especialização técnica quanto nos projetos do primeiro perfil e
costumam não ter funções tão definidas. (p. 185-186)
Nesse grupo de iniciativas, são frequentes as atividades que envolvem a prática
audiovisual “mas colocando em primeiro plano a integração, o diálogo, a cooperação e,
especialmente, a curiosidade dos alunos” (p. 186), exercícios lúdicos para gravação das
imagens e dispositivos direcionados para a criação (não necessariamente na linguagem
audiovisual) para incentivar a construção da ideia de ponto de vista. As aulas expositivas são
menos presentes. Nesse perfil, o crescimento pessoal foi visto como uma consequência do
processo e, mesmo que a maioria dos projetos não possua a profissionalização como um
objetivo, “muitos alunos se desenvolvem de maneira tão decisiva, que o processo acaba
implicando em uma melhor perspectiva de inserção profissional, e até mesmo em áreas além
da audiovisual.” (p. 194)
O terceiro perfil corresponde às iniciativas focadas na inserção laboral – 14,29% de
todas as pesquisadas – com um ciclo de duração entre intermediária e longa, e ampla carga
horária (de 90 a 720 dias, de 400h a mais de 800h/aula). Os projetos são organizados em
ciclos de um ano ou um ano e meio, com a oferta de mais de um curso – cursos que, em geral,
poderiam ser divididos entre oficinas técnicas e oficinas socioculturais. Nas oficinas técnicas,
consideradas prioridade nesse tipo de percurso pedagógico, são desenvolvidas as atividades
de prática audiovisual e, normalmente, os estudantes escolhem só uma área para se
especializar ao longo do ciclo.
As oficinas socioculturais geralmente são cursos não-obrigatórios ou obrigatórios que
possuem caráter generalista. Podem ser oficinas com temas sociopolíticos (“Cidadania”,
“Empreendedorismo”, “Realidade Cotidiana” e “Desenvolvimento de Projetos e Ação
Social”) ou direcionadas para habilidades de expressão e inteligência interpessoal
(“Humanismo”, “Criatividade e Expressão”). Além disso, também aparece a ocorrência de
cursos para desenvolvimento da linguagem escrita, de caráter amplo e generalista (“Imagem e
Texto”). (p. 200-202)
Além disso, as visitas culturais também estão presentes nesse processo, assim como as
aulas/cursos dedicados à História do Cinema ou Audiovisual, que podem conter exibição de
obras em seu desenvolvimento. Nesse tipo de projeto, sua própria estrutura “(...) sugere uma
16

forte preocupação com o desenvolvimento de habilidades que permitam aos alunos crescer
nos âmbitos emocional, intelectual e social.” (p. 204), propiciando uma formação transversal.
Assim como nos outros perfis, também acontece a absorção de ex-estudantes como
monitores.
Ao se referir às bases do Programa de Alfabetização Audiovisual, Maria Angélica dos
Santos (2014) estabelece os eixos básicos que guiam sua compreensão: “(...) o entendimento
de que a alfabetização audiovisual exige três processos de interação, ainda no ambiente
escolar: o acesso, a reflexão e a realização.” (p. 242) . Essa tríade dialoga com diferentes
momentos do processo conduzido pela linguagem audiovisual, explorando a importância de
se aproximar das obras audiovisuais, dissecar os significados que são apreendidos na recepção
e conhecer os caminhos da produção para assim compreender as produções a partir de sua
complexidade de elementos entrelaçados.
Importante abrir um parêntese para o uso do conceito de alfabetização audiovisual,
que também será acessado ao longo deste trabalho. Intimamente ligados, os termos
alfabetização audiovisual e educação são sinônimos na prática. Escolhi falar em educação
audiovisual em função da ideia de que educação (também um processo) se refere à área mais
ampla e geral da qual a alfabetização faz parte. Irei me referir a reflexões atreladas à
alfabetização audiovisual para falar sobre a educação audiovisual por compreender as
similitudes entre as concepções.
Mais do que trazer conceitos fechados sobre o que é a educação audiovisual, pretendo
compreender as perspectivas educativa e comunicativa que emergem das práticas, as
potências e capacidades trabalhadas, assim como a dinâmica das relações estabelecidas nesse
momento de ensino-aprendizagem. Atentar mais para o potencial de “iniciar um processo de
ampliação de mundos e também de estranhamento de um mundo tão naturalizado”
(BARBOSA, 2014, p. 250) do que para as capacidades técnicas desenvolvidas.
A educação audiovisual pode se dar em espaços escolares e não-escolares, o que
apresenta diferentes possibilidades e limitações a partir de diferentes estruturas de
funcionamento. Vou me referir principalmente às reflexões sobre a atuação em espaços
escolares por querer observar as especificidades da ação do cinema em contato com esse
ambiente, por compreender “a escola como espaço de criação e pensamento, em meio a
disputas estéticas e políticas” (MIGLIORIN; PIPANO, 2019, p.11). A ideia é olhar o
audiovisual na escola a partir do que ele traz de acúmulo para essas disputas, as reflexões e
possibilidades que se revelam a partir de sua prática e os elementos ético-políticos presentes
nas concepções trabalhadas.
17

Migliorin (2014) lembra que o cinema na escola é um risco, pois, em um espaço que
trabalha com postulados e certezas, a prática audiovisual, em sua potência de deslocamento de
mundos interiores e exteriores, pode romper essa lógica a partir do momento em que “não se
ensina mais ‘isso’ ou ‘aquilo’, mas o abandono, a possibilidade de não ser mais ‘isso’ ou
‘aquilo’. Experimentar o mundo é um risco; habitar outras formas de vida é um risco.” (p.
103) Se colocar em risco significa ampliar os espaços de questionamento mais do que
oferecer respostas prontas às perguntas feitas, lidando com os não-saberes como combustível
para o processo.
As perguntas que se colocaram a partir do início da pandemia de COVID-19, em
março de 2020, forçaram sociedades no mundo todo a pensar sobre a importância do espaço
escolar na sua materialidade enquanto lugar físico que dá suporte para o acesso à educação
formal e que consequentemente também dá apoio a estudantes e suas famílias. Em um
momento em que o isolamento e o distanciamento social se fazem necessários, é cada vez
mais explícita a centralidade da escola em criar comunidade, propiciar que crianças e jovens
tenham encontros com a diferença e aprendam práticas de coletividade essenciais para
conviver em sociedade. Os espaços escolares, enquanto lugares fundamentais para o
funcionamento dos contratos e convenções sociais, reproduzem e revelam questões estruturais
que nos ajudam a entender o mundo em que vivemos.
O ensino remoto foi pensado como substituição às atividades presenciais, em alguns
casos mediado pelo ambiente digital com aulas online e, em outros, a estratégia escolhida foi
o envio de atividades impressas. Qualquer que tenha sido o método escolhido, na rede pública
brasileira de ensino aconteceu um movimento de evasão escolar massivo. Um estudo
apresentado em outubro do ano passado (IBGE, 2020) indica que cerca de 1,38 milhão de
alunos, de 6 a 17 anos, haviam deixado de frequentar as aulas presenciais ou à distância. Isso
corresponde a 3,8% dos estudantes matriculados, um índice maior do que em 2019, que foi
2%.
Seja por não ter acesso aos meios necessários, por precisar trabalhar ou por não ter
quem auxilie em casa para conseguir fazer as atividades, os motivos da evasão variam e as
diferenças se acentuam entre as camadas mais ricas e as mais pobres. Em um cenário de
desigualdade social e abismo entre condições de vida, a inexistência do espaço escolar
escancarou o apartheid digital em que nos encontramos (FERREIRA, 2020), um panorama de
segregação racial entre quem tem e quem não tem acesso às tecnologias e às redes. A
diferença no acesso a direitos básicos - como moradia, alimentação e saneamento básico -
aliada a essa disparidade no uso e letramento digital apresenta uma conjuntura que impacta
18

negativamente e principalmente as populações negras e indígenas, e ainda vai impactar várias


gerações.
A partir do que já se pode observar na educação durante o período pandêmico, e pelo
que se projeta de consequências a médio e longo prazo, parece ser imperativo pensar em
outras possibilidades de construção e abordagem da educação no Brasil. É preciso possibilitar
a diminuição desse desequilíbrio no acesso à escolarização e assegurar a qualidade dos
processos de ensino e aprendizagem. Em uma circunstância que demanda refletir sobre a
função e o lugar da educação, é importante reafirmar a necessidade de seus espaços tanto para
aprendizagem de conteúdos expressos nos planos de aula quanto para a socialização,
desenvolvimento de habilidades psicossociais, consciência de si e do mundo. Encarar a
educação de forma ampla quanto às suas potencialidades e efeitos para reivindicar políticas
públicas que contemplem a pluralidade de sujeitos em constante construção.
A educação audiovisual possibilita entrar em contato com múltiplas capacidades e
tipos de inteligências e rejeitar a ideia de educação que a compreende como assimilação de
conteúdos a partir de uma visão estreita do que significa o desenvolvimento pessoal de
educandas/os. Por isso, também abre espaço para quem pisa fora dos limites da disciplina
escolar. O sujeito que na escola possui a marca do indisciplinado, desorganizado, inquieto ou
arredio pode descobrir outras habilidades que não conseguiria acessar sentado em uma cadeira
prestando atenção em uma aula expositiva. Outros processos cognitivos percorrem seu corpo.
Como observa Moira Toledo (2014), o audiovisual dialoga com o que passa pela
cognição, mas também pelo que existe na camada afetiva e suscita capacidades de relação
com o Outro seja em sua fruição ou em sua produção, exercitando inteligências pessoais
comumente negligenciadas pelo ambiente escolar (p. 150-151). Por isso, Toledo reforça a
necessidade da educação audiovisual se alicerçar em uma compreensão a respeito das
finalidades da educação que não apenas a de transmissão de conteúdos, mas que se atente para
o que se compartilha para além dos tópicos das oficinas, caracterizando uma metaeducação.

Quando falo em metaeducação, quero dizer que ao ensinar produção de audiovisual


não estamos necessariamente ou estritamente ensinando a produzir um filme.
Ensinamos um meio, uma competência que serve para fazer cinema como serve para
fazer outras coisas, uma capacidade de realização, expressão e organização das
próprias ideias, projetos e desejos. (TOLEDO, 2014, p. 146)

Essa é uma perspectiva que enxerga os saberes na sua pluralidade e compreende o


processo da educação audiovisual como atravessado por diferentes potencialidades que
extrapolam o audiovisual em si e se alastram pela experiência de vida dos sujeitos implicados
em seu processo. Para além das discussões dentro do meio escolar, trago também a concepção
19

de cinema de grupo (MIGLIORIN; RESENDE; CID; MEDRADO, 2020), que não tem como
finalidade expressa a produção de um filme, mas o compartilhamento de imagens, processos e
relações. O cinema de grupo não está baseado em uma relação docente-discente na sua
compreensão clássica, mas ressalta a força da criação coletiva descentralizada e entende o
fazer cinema juntos enquanto uma prática de cuidado. Esse processo compartilhado de
exercitar práticas cinematográficas, trocar vídeos e comentá-los constrói momentos de
encontros a partir do contato com as imagens feitas por outras pessoas.

Nesse relançar contínuo da criação de si e das imagens, o grupo tem papel


importante. É ele que com frequência dá notícias de algo que se passa na imagem,
ou na relação de quem a fez com o mundo e com seus próprios processos criativos.
É o grupo que fala das opções feitas em um plano, das conexões feitas em uma
montagem ou do tipo de atenção que se faz no ritmo de um gesto, palavra ou
movimento de câmera. Ao acolher processos de singularização, estranhos à uma
normatividade, o grupo pode justamente devolver a presença de um gesto criador.
(MIGLIORIN; RESENDE; CID; MEDRADO, 2020, p. 155)

A experimentação e a invenção são potências que emergem do cinema/audiovisual e


configuram uma forma própria de educação, a possibilidade de aprender por meio do
exercício de criação e, a partir disso, provocar a atividade reflexiva e auto-reflexiva, de
imaginar novos mundos, ver de formas diferentes e se repensar. A produção audiovisual pode
ser compreendida a partir de sua potencialidade de exercitar a escrita de futuros possíveis, a
revisitação de passados e a suspensão do tempo presente. Por meio das imagens é possível
pensar, falar e ouvir sobre o que existiu e o que existe, mas também sobre o que ainda não
existe ou o que nunca irá existir. E tem algo de mágico nessa proposição, um “não-sei-o-quê”
próprio do audiovisual.
Para além de possibilidades técnicas e estéticas do audiovisual que enchem os olhos de
quem assiste e permeiam as críticas especializadas em cinema, a magia da qual falo aqui está
no exercício de produzir imagens e apreciá-las em coletivo, se abrindo para o momento de
afetação e reflexão. Se estranhar, encontrar e reencontrar por meio das imagens. Em uma
época de profusão de imagens higienizadas, lisas e vazias, acredito que a grande subversão do
cinema, e principalmente da educação audiovisual, é permitir que as imagens respirem e
falem por si só, tenham profundidade, aspereza e poros para canalizar movimentos de entrada
e saída de si mesmo.
A educação pelo audiovisual se dá na construção de narrativas e contranarrativas, no
encadeamento de reflexões, no distanciamento e reconhecimento das realidades, mas, antes do
pensamento verbal, as imagens fílmicas se configuram como uma forma de pensar própria.
No texto Da Imagem Pedagógica à Pedagogia das Imagens, Anita Leandro (2001) atenta
20

para a potência pedagógica da imagem fílmica em si, para além de uma compreensão
funcional do uso do cinema que reduz a inteligência das imagens a um “modelo narrativo
hegemônico” que utiliza as produções de forma instrumentalizadora, apenas para ilustrar
outros conteúdos. Ela afirma que “uma vez abordadas sob o ponto de vista da criação, as
imagens são capazes de suscitar, da mesma forma que o texto escrito, um verdadeiro processo
cognitivo” (LEANDRO, 2001, p. 31). Esse seria o pensar sobre as imagens a partir delas
mesmas.
Para isso, além do pensamento racional e o encadeamento de conhecimentos e
narrativas, o audiovisual enquanto linguagem e prática lida com a dimensão sensorial que
existe na comunicação, demandando uma compreensão de ensino-aprendizagem que se atente
para a experiência daquilo que se sente.

O audiovisual permite um tipo de aprendizagem que exige um corpo, o qual sente,


percebe, emociona-se, interage e pensa. Um produto audiovisual apresenta
conceitos, relaciona informações, trama conhecimentos e cria narrativas - lineares e
não-lineares - configuradas por imagens, sonoridades, montagem e outros elementos
(BARBOSA, 2014, p. 255)

As relações que se estabelecem na esfera sensível do audiovisual mobilizam afetos


que fazem parte do conhecimento que ele carrega.. Esse pensamento é um processo de
construção que não dissocia o sensível do racional, mas defende que “[...] o conhecimento
sensível acontece em linha de continuidade com o conhecimento racional” (JUNQUEIRA
FILHO; BARBOSA, 2014, p. 196-197), sem hierarquizar as formas de se conhecer,
ampliando o entendimento das maneiras pelas quais a educação se dá e o que significa ensinar
e aprender.
Aliado a essa compreensão, o trabalho de docência deve ser encarado para além de seu
caráter intelectual e concebido como um ato relacional, tirando a figura do educador do centro
e o aproximando da dinâmica de produção audiovisual enquanto um trabalho coletivo em que
todas as pessoas envolvidas desempenham diferentes papéis que se unem para efetivar sua
realização. Essa percepção de processo educativo desorganiza as hierarquias que o espaço
escolar possui, a partir da compreensão de um compartilhamento de responsabilidades e da
igualdade de inteligências.
Essa igualdade “não está dada e é efetivada em uma experiência que redistribui os
lugares de fala, o direito de ver e ser visto em uma determinada configuração” (MIGLIORIN,
2015, p. 66) Ao apresentar possibilidades para os estudantes de se expressarem a partir de
suas próprias perspectivas e visões de mundos, a experiência da educação audiovisual
21

subverte exatamente a configuração escolar pré-determinada de fala e escuta, observação e


apresentação.
O ato de fazer audiovisual em grupo dinamiza o foco de atenção, a figura de quem
direciona a atividade e os processos, quem toma as decisões e quem as executa também.
Outras possibilidades de organização coletiva surgem, novas divisões de responsabilidades e
momentos de descentralização do saber. O sujeito que está no lugar de quem educa vai para o
lugar da escuta e é lembrado daquilo que não sabe. Só se proporciona isso bagunçando o que
se encontra arrumado e adentrando o mafuá. (MIGLIORIN, 2015)
Um “emaranhado de seres, objetos e técnicas” (idem, p. 195), o mafuá enquanto
pedagogia aponta para os deslocamentos – as ordens e desordens necessárias para exercitar o
ato criador que abraça a não-linearidade e a experiência com a diferença como parte de seu
processo de invenção. Medrado (2018) reflete sobre um dos efeitos que a inserção do cinema
na escola causa, incidindo sobre a socialização escolar a partir do momento que encarna suas
potências caóticas e desordeiras, se afastando “das lógicas de individualização, concorrência e
punição presentes nos espaços escolares atuais.” (p. 39) A potência anárquica que enxerga no
mafuá do cinema diz sobre a possibilidade da educação audiovisual em construir perspectivas
educativas que visem a “autonomia e a livre circulação dos saberes”. (MEDRADO, 2018, p.
39) E dentro do mafuá cabem tanto os saberes quanto os não-saberes.
A ideia de que trabalhar com cinema no ambiente escolar é proporcionar um
compartilhamento de ignorâncias (MIGLIORIN, 2014, p. 105) explicita um processo
educativo em que que as hierarquias escolares são desmanteladas para colocar em diálogo
aquilo que ainda não se sabe – diferentes bagagens culturais, novas visões de mundos e
interpretações – a partir do encontro com o audiovisual. Passa pela crença na escola como
mediadora e possibilitadora do processo de questionamento que o cinema traz, configurando-
se, assim, em um espaço “onde os alunos e os educadores se questionem juntos, com os meios
que possuem, um lugar no qual estética e política podem coexistir; recortar mundos, organizar
o tempo e o espaço”. (MIGLIORIN, 2014, p. 105)
A perspectiva que não dissocia a política do processo de fazer educação e defende o
princípio da autonomia dialoga com a visão de bell hooks (2017) de que o espaço educativo
pode ser um lugar de transgressão e a educação pode ser uma prática de liberdade. A autora
propõe uma concepção de pedagogia engajada que enxerga a Educação por uma perspectiva
holística, que considera a união entre corpo, mente e espírito para a construção de sua
intelectualidade.
22

hooks (2017) considera que a educação como prática de liberdade é um trabalho


coletivo, aberto à participação de todos os sujeitos mobilizados. Ela apresenta uma
intersecção de referências para construir sua ideia de pedagogia engajada. Aciona Paulo
Freire, para quem “a educação só pode ser libertadora quando todos tomam posse do
conhecimento como se este fosse uma plantação que todos temos que trabalhar” (p. 26),
sinalizando também para a ideia de cultivo que existe na educação, o trabalho contínuo e
cuidadoso que demanda. Também evoca Thich Nhat Hanh, para quem o professor se
assemelha a um curador ou médico, apontando para a esfera do cuidado presente na
educação.
Essa abordagem holística influenciou na construção de um entendimento da sala de
aula como um espaço para professores e estudantes se encararem como seres humanos
“integrais” que buscam “o conhecimento que está nos livros, mas também o conhecimento
acerca de como viver no mundo.” (hooks, p. 27) Isso denota a importância da dimensão
afetiva e das inteligências pessoais nesse processo de construir uma prática emancipatória e
comprometida com a criação de vínculos.
A compreensão do processo educativo enquanto práticas de cultivo ou cuidado
simboliza uma perspectiva que olha para a Educação a partir do que se compartilha, para além
de aspectos técnicos e produtivistas. hooks costura as ideias apresentadas com a leitura do
feminismo negro, mas afirma que, diferente de uma pedagogia feminista ou crítica, o foco da
pedagogia engajada é no bem-estar e reforça a responsabilidade das/os educadoras/es no
sentido de cultivar esse bem-estar primeiramente nelas mesmas.
A autora constrói teoria e prática a partir do “pressuposto de que todos nós levamos à
sala de aula um conhecimento que vem da nossa experiência e de que esse conhecimento
pode, de fato, melhorar nossa experiência de aprendizado” (p.114), apontando para a
importância de abrir espaços de escuta para quem os estudantes possam ser ouvidos, criando
uma consciência de comunidade para a relação ensino-aprendizagem. É uma proposta que se
abre para o diverso e para o multiculturalismo.
A criação de uma comunidade pedagógica é central para a proposta de hooks (2017):
“Em vez de enfocar a questão da segurança, penso que o sentimento de comunidade cria a
sensação de um compromisso partilhado e de um bem comum que nos une.” (p.57-58) A
perspectiva da educação como algo que se compartilha demanda responsabilidade coletiva e
rompe com a ideia de “educação bancária” denunciada por Paulo Freire (1970), em que o
estudante é consumidor passivo da transmissão de informações.
23

Assim como hooks (2007), Mario Kaplún parte das ideias de Freire para pensar a
Educomunicação. Construindo uma perspectiva de comunicação para movimentos populares
na academia e em suas práticas, Kaplún vê na comunicação e na educação funções que estão
para além de informar de maneira verticalizada, e são essenciais na organização social,
difusão de conhecimento e formação sociopolítica. Buscarei nele bases para refletir sobre o
papel da educomunicação e dos comunicadores educativos para costurar as ponderações sobre
a relação Educação-Comunicação-Política, que atravessa o debate sobre Educação
Audiovisual.
Para Kaplún (2002), o comunicador educativo parte da concepção de que a
comunicação deve fomentar uma interação entre quem recebe a mensagem e a própria
mensagem, e não apenas absorvê-la. “Nossa comunicação deve procurar suscitar, estimular
nos destinatários uma recriação, uma invenção.” (p. 22) Ou seja, por meio da leitura crítica
dos meios, instigar reflexões e atos criadores.
Esse modelo pedagógico tem foco nos processos e na ação reflexiva da comunicação,
com o objetivo de ensinar mais do que capacidades técnicas, mas espera que os sujeitos se
apropriem da comunicação com suas ferramentas e acessem uma formação que forneça
capacidades para interpretar a própria realidade, propor fabulações, questionar e agir
politicamente na esfera pública. Uma educação que esteja preocupada tanto com a formação
dos estudantes quanto com a informação passada pelo conteúdo. A concepção de
educomunicação de Kaplún é totalmente comprometida com a transformação social, e rechaça
a hierarquia entre educadoras/es e educandas/os, não negligenciando a responsabilidade do
comunicador educativo nesse processo.
A comunicação educativa cumpre de fato seu objetivo “se mobiliza interiormente a
quem a recebe, se os questiona, se gera o diálogo e a participação, se alimenta um processo de
crescente tomada de consciência.” (KAPLÚN, 2002, p. 80) Isso também significa se utilizar
criticamente das ferramentas e instrumentos que contribuem para produzir a mensagem da
melhor forma possível, sem que se reproduza os mesmos recursos utilizados pela
comunicação dominante, mas provocando transformação nas próprias ferramentas. A ideia
também é descobrir novas coisas: “criar outro conhecimento a serviço de outra eficácia.” A
eficácia da comunicação educativa geradora.
Assim como rompe com a ideia de transmissão para tratar da Educação, Kaplún
afirma que a comunicação não se limita a uma relação de emissor-receptor, mas está dada por
“dois ou mais seres ou comunidades humanas que trocam e compartilham experiências,
conhecimentos, sentimentos, mesmo que seja a distância por meio de meios artificiais”.
24

(KAPLÚN, 2002, p. 58) Nessa mesma esteira de pensamento, a Comunicação é encarada aqui
como uma “ciência do comum”, recorrendo aqui ao termo cunhado por Muniz Sodré (2014),
que está no que se compartilha, nas intercessões que existem em uma comunidade, seja ela de
que tamanho for. Ela se faz viva e pulsante na esfera do encontro, é por entre os sujeitos onde
serpenteia.
Por isso também a natureza transdisciplinar da Comunicação (FRANÇA, 2018) é
considerada, em sua potencialidade, como uma esfera que estabelece diálogo entre diversas
áreas do saber e, a partir dos cruzamentos, vai delineando suas questões. Parto da perspectiva
das encruzilhadas que considera que “os saberes, nas mais diferentes formas, ao se cruzarem,
ressaltam as zonas fronteiriças, tempos/espaços de encontros e atravessamentos interculturais
que destacam saberes múltiplos e tão vastos e inacabados quanto as experiências humanas.”
(RUFINO, 2019, p. 86) Por isso, me interessa mais olhar pelas frestas da Comunicação e falar
de um lugar fronteiriço sobre os processos do audiovisual e suas camadas relacionais de
sentido.
E também diante dessa discussão que destaco aqui quatro ideias atreladas à educação
audiovisual que orbitam as referências trazidas e são centrais para a análise dessa pesquisa:
autonomia criativa, caos criador, comunidade e cuidado. Durante o processo de observação
desenvolvido tais conceitos revelaram-se na perspectiva de trabalho da Olhares (Im)possíveis.
Essas concepções, além de estarem presentes na angulação trabalhada sobre educação
audiovisual, também se relacionam com os ensinamentos da encruzilhada e de Exu.

1.2 Pensando encruzilhadas


O ponto onde os caminhos se cruzam, que simboliza a dúvida, mas também a tomada
de decisões, a entrada e a saída, o encontro e a partida. Encruzilhada. Palavra que deriva do
latim incruciliata, com etimologia relacionada ao diminutivo de crux (cruz), crucicula. Em
quimbundo, língua da família bantu, encruzilhada nos aparece como pambuanjila e se
aproxima mais do sentido que será utilizado aqui, pois se refere ao encontro de caminhos e se
relaciona, etimologicamente, com a palavra que também pode significar atalhos, fronteiras e
destino.
Não tenho pretensão de esgotar ou esvaziar o sentido impalpável e infinito que a
encruzilhada representa não apenas para mim, mas para inúmeras pessoas que também a
encaram como a materialização do intangível. Por isso, de início reforço a afirmação de Luiz
Rufino (2019b):
25

Nesse tom, como quem cospe cachaça ao vento digo: a encruzilhada não é mera
metáfora ou alegoria, nem tão quanto pode ser reduzida a uma espécie de fetichismo
próprio do racismo epistêmico e de um modo de racionalidade assombrada por uma
fantasma cartesiano.

O que se propõe aqui é, a partir da encruzilhada, exercitar uma intelectualidade


encarnada - que pensa emocionalmente e sente racionalmente. Apresentar um acúmulo de
reflexões que ginga com os conceitos não para simplificar o complexo da vida real, mas para
costurar ideias a partir do que é experienciado.
A concepção de encruzilhada é evocada enquanto peço licença e me adentro com
respeito em um diálogo com epistemologias cultivadas e cultuadas em religiões de matriz
africana a partir de cosmovisões yorubá e bantu, que ensinam mais do que conceitos que
expliquem o inexplicável. Essas cosmovisões, uma vez que são visões de mundo que se
apresentam transformadas em narrativas e ritualizadas, manifestam éticas, estéticas e políticas
de vida por meio de suas encantarias. Seus fazeres portam saberes e fundamentos, e seus
saberes apresentam formas de fazer e viver. Impossível de ter seu sentido alcançado por
completo em qualquer escrito, “a encruzilhada é a boca do mundo, é saber praticado
cotidianamente por inúmeros seres comuns que inventam nas dobras do tempo tecnologias e
repertórios poéticos de espantar a escassez com a abertura de caminhos”. (RUFINO, 2019b)
Esse encantamento - sentido, praticado, cantado, dançado, comido - existe como
política de vida e me recorda de desejar sempre ver além do que está posto. Cria a provocação
necessária para tentar conceber novas formas de ser, saber e fazer que não estejam alinhadas
ao pensamento colonizador predatório, responsável por genocídios, escassez e desigualdade.
A matriz colonial, que se pretende dominante a outras concepções de pensamento, molda
sociedades e mais sociedades separando e hierarquizando ideias como “Deus/Estado,
humanos/herdeiros de Deus e natureza/recursos a serem transformados em prol do
desenvolvimento humano” (SIMAS; RUFINO, 2020, p. 6). Tais eixos de compreensão do
mundo operam em oposição e constroem leituras da realidade que trabalham com polaridades.
Com a proposta de enxergar o mundo em escala de branco e preto, a matriz colonial de
pensamento balança seu pêndulo entre bem e mal, certo e errado, sem espaço para as zonas
cinzentas.
Diferente dessa tradição, em um delineado de concepções que aponta intercessões, os
princípios do encantamento pressupõem “a integração entre todos as formas que habitam a
biosfera, a integração entre o visível e o invisível (materialidade e espiritualidade) e a conexão
e relação responsiva/responsável entre diferentes espaços-tempos (ancestralidade).” (SIMAS;
RUFINO, 2020, p. 6). Essas convicções são experienciadas, ou melhor, encarnadas em
26

práticas performativas em que “[...] o encantado e a prática do encantamento nada mais são
que uma inscrição que comunga desses princípios.” (idem) O encantamento permite
experienciar e pensar a vida de forma integrativa, sem a centralidade no humano,
compreendendo o material e o momento presente como partes de um todo impossível de ser
racionalizado em sua totalidade.
O encantamento se exercita em tecnologias ancestrais como as religiões de matriz
africana, o jongo, a capoeira, entre outras expressões que partem dos princípios citados. No
ato da encantaria está o sopro de vida, o drible na necropolítica, o mergulho na existência. É
assumir que não é possível saber de tudo, e o que não se explica é tão importante quanto o que
se explica. Construir formas de vida pautadas na coletividade e enxergar a materialidade do
mundo que se coloca em nossa frente como radicalmente atravessada pelo imaterial
inexplicável, sem dissociar essas esferas ou hierarquizá-las em ordem de importância. Por
isso, mais do que sua forma física de entroncamento, as encruzilhadas das estradas e ruas
possuem significado mítico e espiritual.
Pensar (n)a encruzilhada é considerar que não é possível explicar a vida a partir de
dicotomias simplificadoras. “A religiosidade afro-brasileira tem um outro modelo para o
encontro das diferenças que é rizomático: a encruzilhada como ponto de encontro de
diferentes caminhos que não se fundem numa unidade, mas seguem como pluralidades”
(ANJOS, 2008, p. 80) em contraponto ao pensamento de universalidade das correntes do
cânone ocidental fundadas na tradição greco-romana. A partir dessa perspectiva que se abre
para a diferença, a encruza nos guia a partir de movimentos de troca e diálogo quando em
contato com o Outro, não hierarquização e dominação.

Figura 1: Encruzilhadas em X e em T, que na Umbanda remetem, especificamente, à figura de Exu e à figura da


Pomba Gira (desenho feito pelo autor)
27

“Para os africanos, o Aluvaiá dos bantos, aquele que os iorubás conhecem como Exu e
os fons como Legbá, mora nas encruzas.” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 18) Aqui vou falar a
partir de Exu (Èsù na grafia original iorubá), que pode ser compreendido tanto como
divindade quanto como entidade em diferentes religiões de matriz africana. Exu é a reta, o que
corta a reta e os quatro caminhos que a encruzilhada nos mostra. Ele é o orixá associado à
Comunicação, pois estabelece a troca de mensagens entre o Òrun (mundo espiritual dos
orixás) e o Àiyé (mundo material dos seres vivos) e tem o papel de mediador dessas relações.
Nessa perspectiva, a encruzilhada simboliza a materialização de uma força espiritual que está
nos encontros e no ato de se comunicar. Exu é “o canal, o transmissor, a mensagem, o código,
o trânsito.” (DRAVET, 2015, p. 19)
É possível dizer que aqui se fala da encruzilhada na comunicação, mas a própria
comunicação já é uma encruzilhada, assim como também é Exu. Para cultivar potências
exusíacas da comunicação como a invenção e a pluralidade é necessário se movimentar de
forma descentralizada. Para falar sobre trocas comunicacionais que estejam comprometidas
com essa pluralidade de vozes, não como uma matéria-prima a ser mercantilizada, a
encruzilhada aparece como direcionamento filosófico e político. Para Rufino (2019b), “a
proposição de um projeto que elege a encruzilhada tem compromisso com a diversidade e o
inacabamento do mundo.” Ela direciona formas de pensar e fazer que encontram sua força no
que é plural e encaram como possível a mudança. A compreensão de que o mundo não está
dado, mas em eterno movimento e transmutação se manifesta na encruzilhada, no efêmero de
Exu que é a própria força do movimento.

Operadora de linguagem e de discursos, a encruzilhada, como um lugar terceiro, é


geratriz de produção sígnica diversificada e, portanto, de sentidos plurais. Nessa
concepção de encruzilhada discursiva destaca-se, ainda, a natureza cinética e
deslizante dessa instância enunciativa e dos saberes ali instituídos. (MARTINS,
2002, p. 73)

Lugar de pensamento radial, a encruzilhada é confluência (ou melhor, transfluência)


de ideias, convergência e divergência de perspectivas. Assim como os rios que correm pela
terra se confluem, os rios que correm pelos céus no ciclo da água transfluem. Ou seja, os
saberes das encruzilhadas fluem a partir da relação com os cosmos, que brotam de África e
nos encontros de sua diáspora ressurgem de outra forma, mas bebendo dessa fonte.

É por isso que, mesmo tentando tirar nossa língua, nossos modos, não tiraram a
nossa relação com o cosmo. Não tiraram a nossa sabedoria. É por isso que nós
conseguimos nos reeditar de forma sábia, sem agredir os verdadeiros donos desse
território que são os irmãos indígenas. Nós tivemos essa capacidade porque os
nossos mais velhos que estavam em África, apesar de sermos proibidos de voltar
28

para lá, vieram pela cosmologia. Isso é o que nós chamamos de transfluência.
(SANTOS, 2018)

A sabedoria que atravessou quilômetros e séculos continua viva e pulsante por meio
dos processos de transformação e trânsito entre os sujeitos que se guiam pelos mesmos céus,
pela mesma cosmologia, e em contato com outras cosmologias como aquelas dos diversos
povos indígenas que habitam o território chamado de Brasil. Assim como a água que evapora
de um rio para formar uma nuvem e desaguar enquanto chuva em outro lugar, podemos olhar
para a encruzilhada e os saberes oriundos das religiões de matriz africana a partir desse
movimento de fluidez cíclico e transformativo.
A encruzilhada é o comum entre interlocutoras, necessário para que a comunicação
aconteça, o desacerto que se compartilha. Partir da encruzilhada é considerar a pluralidade de
sentidos possíveis na interpretação do que se apresenta na concretude da vida. Isso não
significa concordância, mas consciência da diferença, porque ela faz parte do todo, e
reivindicação da diferença como força propulsora da experiência do ser.
Experienciar o movimento de Exu significa estar, ser e não-ser, abraçar a dobra de
perspectiva e a mudança de estado como políticas de vida e enxergar a pluriversalidade como
essência e combustível, descentralizando as narrativas que se propõem a explicar o curso da
história a partir de uma compreensão fixa do humano, e que consideram a experiência humana
branca como algo universal a todos os habitantes do planeta Terra. O conceito de
universalidade, fio condutor de toda uma trajetória filosófica central no Ocidente, para
entender as correntes filosóficas de origem africana é insuficiente.
Assim, “a pluriversalidade é o reconhecimento de que todas as perspectivas devem ser
válidas; apontando como equívoco o privilégio de um ponto de vista.” (NOGUERA, 2012, p.
64). Partindo da ideia de universalidade e da centralidade do pensamento eurocêntrico,
processos civilizatórios e coloniais se desenvolveram, sempre considerando os colonizados
como seres irracionais e subdesenvolvidos. Por isso, incorporar o princípio da
pluriversalidade também auxilia a questionar a primazia da racionalidade e das formas de
compreender o mundo que escrevem suas histórias em linhas retas.
“A encruzilhada nos possibilita uma crítica à linearidade histórica e às obsessões
positivistas do modelo de racionalidade ocidental, atravessá-la é considerar os caminhos
enquanto possibilidades.” (RUFINO, 2019a, p. 31) Isso significa ir contra a lógica dominante
e seu modelo de intelecto separado de corpo e espírito, com a razão separada da emoção, que
tenta delimitar o que é saber e o que não é. No pensamento por encruzilhadas o saber passa
pelo afeto, aquilo que é sentido (tanto pelos sentimentos quanto pelos sentidos) e percebido
29

pelos sujeitos a partir de seus corpos. Essas cosmovisões apresentam perspectivas de história
não em termos de linhas evolutivas, mas ciclos espiralados de encontros que produzem novos
caminhos. Não é sobre ter apenas um trajeto a seguir em frente na narrativa histórica, e sim
enxergar os entroncamentos que existem.
Para desmantelar ideias sedimentadas em binarismos e dualidades e seguir pela via de
pensar a partir de intersecções, o pensamento ambivalente e o Axé de Exu lembram que “o
bem pode ser o mal, a alma pode ser o corpo, o visível pode ser o invisível e o que não se vê
pode ser presença, o dito pode não dizer e o não dito pode fazer discursos vigorosos”
(SIMAS; RUFINO, 2018, p. 114) assim como a encruzilhada pode representar o que existe e
o que não existe. Compreende as esferas do visível e do invisível como igualmente
constituintes da experiência do viver, e o trânsito entre o Òrun e o Àiyé como possível a partir
da concepção de um mundo aberto para o encantamento.
Como não se insere em um pensamento binário, esse com ponto de início e chegada e
desenhos lineares de percepção do mundo, a encruzilhada é chegada e saída, caminho e ponto
de encontro. A artista Castiel Vitorino Brasileiro (2021), ao falar de sua travestilidade,
apresenta uma perspectiva frutífera para compreensão do desenho da encruzilhada: “a encruza
não é um labirinto, mas um espaço espiralado que infinita-se para todas as direções –
encruzilhadas – feito o ar.” (p. 46) O desenho do espiral aponta para a temporalidade de ciclos
infinitos que se repetem, mas sempre de formas diferentes.

Figura 2: A própria natureza nos oferta os espirais, e é a partir dela que os fundamentos emergem em várias
tradições africanas e afrodiaspóricas. Imagem atribuída a jacilluch, CC BY-SA 2.0, via Wikimedia Commons.
30

Para aprofundar a compreensão do que significa pensar de forma circular ou espiralar,


trago o Dikenga dia Kongo, um cosmograma Bakongo que registra princípios de sua
cosmovisão. Baseado nos ciclos do sol, que nasce, se põe, morre e renasce constantemente, o
dikenga é uma representação de “uma forma alternativa de compreensão do tempo e do ser
que privilegia os ciclos e as mudanças ao invés da linearidade e da continuidade.”
(MOSQUEIRA, 2021, p. 22).

Figura 3: Colagem feita pelo autor, com base em MAGALHÃES, 2018 e foto de fundo atribuída a Martin
Falbisoner, CC BY-SA 4.0 <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0>, via Wikimedia Commons

Atravessada horizontalmente por uma linha inspirada pelo horizonte do mar (Kalunga)
que representa a separação entre o mundo dos mortos e dos vivos, essa forma circular é
dividida em quatro quadrantes simbolizando quatro fases da existência humana - que integra
os dois mundos separados por Kalunga. Ao seu centro, é possível perceber um cruzamento.
Cabe ressaltar que esse cosmograma remonta a uma época anterior a chegada do cristianismo,
logo a cruz possui outras significações.
“A cruz (yowa) que os enleia e forma o cosmograma [...] em relação à distante ideia da
‘crucificação’, ‘significa a visão igualmente convincente da movimentação circular das almas
humanas em torno da circunferência das suas linhas cruzadas’.” (THOMPSON apud
SANTOS, 2019, p. 127-128) Ou seja, no meio dos ciclos da natureza e da experiência humana
está presente uma encruzilhada que costura e conecta fases, ciclos, esferas e planos de
existência. Um ponto do qual e para o qual a espiral de tempos se move. Uma encruza de
tempo - representado na linha vertical do dikenga - e espaço - na horizontal.
31

Em reflexão sobre epistemologias das encruzilhadas, Tiganá Santana (2020) explica


que para os bantus a palavra antecede a imagem. Nessa concepção, a palavra tem significado
de frequência além de seu sentido enunciativo e performativo de explicação e interação com
as coisas. Essas frequências mobilizam o que há de sensorial na comunicação e criam as
imagens que não se limitam ao que é visto, mas ao que é possível de ser sentido. A imagem é
o que se sente. Ele recorre a essa explicação para afirmar que a encruzilhada, antes de mais
nada, é uma imagem que se origina de uma dimensão interna e se presentifica nas relações.
A encruzilhada é o lugar próprio da contradição. Da brecha e da fronteira. Da crise que
se instaura e demanda uma ação. A invenção é exusiástica (ou exusíaca). Exu está no falo que
fertiliza, na concepção da vida em si. As formas de conhecimento, comunicação e educação
que negam Exu são “modos imóveis e avessos às transformações. Exu é o princípio dinâmico
fundamental a todo e qualquer ato criativo.” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 20) É Exu quem
chega com múltiplas faces e seu caos criador e bagunça tudo, colocando em xeque as certezas
e apresentando novas possibilidades de se enxergar o todo para encontrar novas respostas. É
ele quem prega uma peça vestindo um chapéu de duas cores para instaurar a discórdia e
colocar amigos para discutir sobre sua cor verdadeira.
Ainda que a encruzilhada seja “um dos maiores símbolos da imprevisibilidade,
inacabamento, ambivalência e possibilidade” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 117) e relacionada
à força de Exu, ela só se compreende como tal a partir da relação dele com Oxalufã, orixá
ligado à ordem, paciência e método. Exu só ganha o poder sobre a encruzilhada após
acompanhar Oxalufã durante diversos anos em sua tarefa de criação dos seres humanos. A
partir do itan que conta essa história somos apresentadas a uma relação interconectada entre a
ordem e a desordem, forças que se retroalimentam e são catalisadas uma pela outra. Não
existe nessa relação uma ideia de oposição, mas interação e transformação a partir dessas
esferas. Exu não é o contrário de Oxalufã ou vice-versa. A organização e a desorganização
fazem parte do mesmo fluxo da criação do mundo.
Entender a encruzilhada como potência de vida e abertura de caminhos é entender as
intersecções como pontos de partida frutíferos para a compreensão e produção de
conhecimento. Ver o além e abrir caminhos é imaginar mundos possíveis, é tecer
compreensões que não se fecham no que é conhecido como única verdade, mas se fortalecem
ao serem questionadas e se alimentam das múltiplas possibilidades de enxergar a realidade.
“A encruzilhada, símbolo pluriversal, atravessa todo e qualquer conhecimento que se
reivindica como único.”(RUFINO, 2019a, p. 86). É a partir dos cruzamentos que os saberes se
multiplicam infinitamente.
32

A noção de encruzilhada, utilizada como operador conceitual, oferece-nos a


possibilidade de interpretação do trânsito sistêmico e epistêmico que emergem dos
processos inter e transculturais, nos quais se confrontam e se entrecruzam, nem
sempre amistosamente, práticas performáticas, concepções e cosmovisões,
princípios filosóficos e metafísicos, saberes diversos, enfim. (MARTINS, 2002, p.
73)

Esse operador conceitual é evocado aqui por sua capacidade de fazer olhar nas
entrelinhas, exercitar uma perspectiva diaspórica e interseccional de interpretação dos
fenômenos culturais e práticas educomunicacionais, uma escolha que me parece essencial e
necessária para compreender uma realidade na qual a população negra é maioria. A partir
disso, a encruzilhada não se limita a um conceito fixo a ser utilizado para análise e se
estabelece como eixo que atravessa escolhas conceituais, metodológicas e reflexivas. Antes de
ser assumida como ferramenta para guiar um processo analítico da realidade material, ela foi
sentida por mim nos encontros que a comunicação propicia e nos desafios que a pesquisa
apresenta.
Parto da encruzilhada para interpretar cruzamentos de subjetividades, temporalidades
e espacialidades exatamente por ter enxergado na educação audiovisual tais interseções, que
produzem lampejos de vida em meio a uma sociedade que promove o desencantamento e
produz a morte, muitas vezes ainda em vida. “A encruzilhada de Exu é o rasto, a borda, a
cultura, o ponto de contato, as relações, a disseminação, a referência.” (FERNANDES, 2015,
p. 19) Ela está no que é produzido pelas trocas subjetivas e coletivas, se encontra nas pistas,
no movimento, na transição. “Só há referências a serem lidas, só há rasto na encruzilhada
desse lugar que nada tem de objetivo, terrestre, geográfico.”(idem) A encruza não é um lugar
em si, é o entre-lugar, só existe a partir do encontro e se manifesta no atravessamento. Não é
fixa, mas o próprio trânsito de Exu entre as continuidades de tempo e espaço que se
apresentam simultaneamente na experiência do ser. A temporalidade serpenteia em um espiral
e é percebida na espacialidade, uma vez que a atravessa e por ela é corporificada.
Esse diálogo com a encruzilhada parte de uma perspectiva epistemológica que não
trata o passado como algo superado e o futuro apenas como o que está por vir, mas que
entende na experiência a simultaneidade de temporalidades, encarnadas nos corpos, nos
saberes, nas formas de vida. Por isso, “é preciso nos remeter à compreensão arcaica que
envolve uma multitemporalidade numa perspectiva de transtemporalidade. Este é um aspecto
onde a complexidade do tempo e do espaço mítico pode regar a idéia de um universo em
construção.” (MACHADO, 2010, p. 11) A partir dessa concepção, o mundo não está dado,
mas sim em contínua transformação. E isso significa potência de ação e demanda
responsabilidade ao lidar com o que há de ancestral na escrita dos futuros possíveis.
33

1.3 Contando tempos


O tempo é invisível, só consigo perceber seus efeitos. Correndo contra ele, olho para
as diversas formas inventadas para quantificar a passagem do tempo e então contá-lo,
controlá-lo e transformá-lo em dinheiro. O sentimento de que essa relação temporal sempre
foi assim e sempre será pode dificultar a percepção de que isso também foi construído ao
longo da história. Reflito sobre as formas de olhar para o tempo, principalmente com a
curiosidade de entender quais são suas consequências a partir da compreensão de suas
origens.
Parto da concepção de tempo social de Norbert Elias (1998), que tem como finalidade
superar a dicotomia entre perspectivas objetivas e subjetivas que ou colocam o tempo como
algo externo ao sujeito, passível de ser apreendido, ou um dado da consciência, que não
poderia existir fora dela. Ambos os extremos dessa polarização entendem o tempo como um
dado imutável. Elias, por sua vez, afirma que o tempo se compreende a partir de referências
socialmente construídas e não é em si mesmo ou alheio à experiência humana, ou seja, é algo
relacional.
Considerar o tempo como um “algo” imutável e comum a todas as sociedades e
momentos históricos é “ignorar que o saber humano parte sempre de outro saber e que,
portanto, nenhuma ideia parte exatamente do nada, por isso, o tempo é um padrão criado de
diferentes formas em diferentes tempos e espaços” (SILVA, 2010, p. 174). Esse padrão revela
perspectivas de cada sociedade quanto à organização e ordenação de suas formas de vida, por
isso é importante considerar o tempo enquanto uma concepção que se compartilha
socialmente e que é apreendida pelos sujeitos durante sua socialização e desenvolvimento.
A noção de tempo, e mais especificamente sua marcação, está imbuída de mensagens
aos sujeitos que têm como objetivo regular seus comportamentos a partir de uma referência
padronizada de temporalidade. A absorção individual dessa regulação social do tempo
apresenta, na concepção de Elias (1998), um traço do processo civilizador moderno do
ocidente, e tem como consequência o entendimento de que essa percepção do tempo seria
algo natural, e não naturalizado. Além de delinear de forma prática o andamento dos
processos produtivos, molda sensibilidades, comportamentos e relações sociais a partir de
regras impostas pelo regime do relógio e do calendário.

Até o século XIX, a reunião e organização da força de trabalho é promovida por


outros mecanismos – como o sistema de moradia de trabalhadores e os sistemas
coletivos de controle do tempo: sinos, apitos das fábricas, relógios das igrejas. O
relógio afirma o nascimento da ideia de que o homem é primeiramente um produtor,
e que a finalidade da vida humana é gerar e consumir produtos (ALMEIDA, 2018).
34

A forma como compreendemos o tempo afeta a maneira como nos vemos e como
pensamos relações de causalidade, por isso é central nas cosmovisões e narrativas coletivas. A
noção de progresso, força motriz de diversos empreendimentos coloniais, tem em suas bases a
compreensão do tempo como algo linear. Isso fomenta um imaginário para a experiência de
vida em que o passado é o que ficou para trás, agora só existe o presente e o futuro ainda não
chegou. Essa concepção de experiência temporal colide com as experiências subjetivas de
deslocamentos entre lembranças e projeções enquanto vivemos o aqui e o agora.
Os deslocamentos entre quem fomos e quem seremos agenciam nossas ações no
momento presente e a própria forma como a memória se constrói e reconstrói apresenta
trânsitos, idas e vindas que não respeitam o direcionamento progressivo da perspectiva linear
do tempo. Assim como Waly Salomão disse, “a memória é uma ilha de edição” e a cada
exercício do lembrar, remontamos e editamos nossa história. A capacidade humana “de se
apoiar no passado para planejar da melhor forma possível nossas ações foi objeto de uma
seleção positiva ao longo de nossa história evolutiva” (CANDAU, 2012, p. 862-863) e reforça
a perspectiva de que armazenamos informações e experiências não para mantê-las intocadas
mas para combinar e recombinar as lembranças imaginando e preparando o futuro.
É necessário pensar então nas apropriações feitas para a construção dos conceitos de
tempo e o lugar de invenção em que se encontram. “A ação humana interfere no tempo, na
sua concepção e na sua criação. Ao escrever sobre o tempo, indubitavelmente faz-se o esforço
de rever a sua concepção e atentar para a possibilidade de recriá-lo” (PARENTE, 2006, p. 3).
Dizer isso não significa conferir ao ser humano um poder que não existe. Pois já é a partir da
ação humana que a história é construída, assim como as formas (mitológicas, científicas ou
filosóficas) que buscam explicar a passagem de tempo.
Na esteira das concepções de tempo temos as figuras da mitologia grega Chronos e
Kairós que, a partir de seus arquétipos, influenciam a relação das sociedades ocidentais com o
entendimento do que é o tempo. Simbolizam, respectivamente, um tempo objetivo e
cronológico em contraponto ao tempo vivido, da subjetividade. Chronos, o deus que
representa o tempo, é um ser que separa o céu (seu pai, Urano) da terra (sua mãe, Gaia).
Urano, poderoso governante do universo, devolvia todos os seus filhos ao seio materno por
medo de ser destronado, até que sua esposa resolveu libertá-los para que executassem uma
vingança contra o marido. Chronos aceita essa missão e castra o pai durante uma batalha.

Com o pai castrado, Chronos se torna o portador do novo espírito devorador


compreendendo que instintivamente os filhos destroem os pais, como um mito de
mudança. Chronos ao tomar o trono do pai provoca a separação da rainha mãe
(Geia). Nasce uma nova era: “a da foice ou do curvo pensar”. Esta era representa a
35

temporalidade que pode nos consumir em um pensamento que, ao invés de criar e


construir, dá várias voltas sem atingir a nada (SANTOS, 2010, p. 15).

O reinado de Chronos foi um período próspero, mas ele era assombrado pela maldição
de Urano – fundada na ideia de que ele seria destronado por um de seus filhos. Por isso
devorava todas as crianças que nasciam. Da mesma forma que Gaia, a esposa de Chronos
(Réia) conseguiu salvar uma delas, que seria Zeus. Quando Zeus consegue derrotar seu pai e
mandá-lo para o mundo subterrâneo, ele e os outros deuses adquirem o dom da imortalidade,
já que o senhor do tempo estava derrotado.
O tempo cronológico é o ritmo criado a partir de uma contagem de segundos, minutos,
dias, etc.; a linearidade, a ordenação imposta, o tempo limitado. Apresenta em si, da mesma
forma que o mito do deus grego, a ideia da castração das potências frente a ele, o tempo
soberano que engole a todos e que destrói seu progenitor no processo de tomar o poder, em
uma ideia de evolução destrutiva inevitável. Chronos é a figura de um tempo inconquistável,
um ser absoluto.
Kairós, por sua vez, é o filho mais jovem de Zeus, sempre em movimento e
extremamente ágil a ponto de que não era possível controlá-lo, caracterizado como um jovem
atlético com asas nos pés. É o tempo irredutível, mas também o tempo oportuno, que deve ser
agarrado rapidamente porque pode passar. Uma concepção do tempo como aquilo que passa
mesmo quando não se tem consciência dele. “Em nenhum momento Kairós refletiria o
passado ou pressentiria o futuro; ele simboliza o melhor instante presente: o instante em que
se consegue afastar o caos e abraçar a felicidade.” (ARANTES, 2015, p. 2). É um tempo
existencial do momento aproveitado.
A partir do aspecto qualitativo do tempo, Kairós simboliza aquilo que não pode ser
contado ou cronometrado, o momento inesperado, que não é marcado mas marca. No grego
bíblico, Kairós significa o “tempo do Dom, hora da graça, da salvação; tempo propício, dia da
libertação; hora da ‘visitação’; momento em que ‘o anjo passa’; dia do Senhor; shabat;
jubileu. Kairós representa o tempo subjetivo, vivencial.” (ASSMAN, 1998 apud FERREIRA;
ARCO- VERDE, 2001, p. 68). Foi no discurso bíblico que o tempo kairológico ganhou força,
interpretado como o tempo de reflexão e aproximação com o divino, de caráter pessoal
(SABÓIA, 2007). Também pode ser interpretado como tempo de Deus, quando as coisas
acontecem no tempo certo, conforme o desejo divino.
Aliada a mitologia cristã, a ideologia capitalista é um dos pilares que sustenta a
superestrutura de diversas sociedades ocidentais e, a partir dos ideais ditados por essas formas
de compreender e lidar com o mundo, compreensões coletivas são produzidas e reproduzidas
36

para direcionar subjetividades. Digo especificamente da aliança pós-reforma protestante,


compreendendo que o “protestantismo surge na história como a levedura espiritual do
processo capitalista” (MARIÁTEGUI, 1928, p. 178), impulsionando a implementação do
capitalismo. Em um cenário em que o tempo cronológico é usado em função do tempo
produtivo e a ideia de produtividade se impõe até sobre o tempo fora do trabalho, a relação
subjetiva com o tempo é impregnada por essas concepções sedimentadas ao longo das
gerações.
As figuras míticas de Chronos e Kairós, presentes em histórias contadas e recontadas
na mitologia grega e na cristã, fazem parte de uma concepção linear e dicotômica de tempo.
Essa perspectiva oscila entre o tempo institucional que é criado e o tempo da vivência e
experiência temporal, do momento certo de agir. Assim como diversos sistemas de explicação
do mundo na tradição do pensamento ocidental, os conceitos de Chronos e Kairós são
referências oriundas de um pensamento dual, que polariza a compreensão do tempo enquanto
fenômeno.
De agora em diante, proponho uma virada nas ideias e dialogo com outro
entendimento de tempo. Esse deslocamento é proposto a partir do acionamento de saberes que
se distanciam da construção epistemológica eurocêntrica em uma tentativa de transgressão do
cânone. “Transgredi-lo não é negá-lo, mas sim encantá-lo, cruzando-o com outras
perspectivas. Em outras palavras, é cuspi-lo na encruza.” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 19).
Não pretendo refutar conceitos, mas os coloco na encruzilhada para bagunçar as
compreensões sedimentadas sobre o tempo e falo agora do que seria o tempo de Exu.
“Exu matou um pássaro ontem, com a pedra que arremessou hoje. Se ele se zanga,
pisa na pedra e ela põe-se a sangrar.” Esse itan exemplifica a ambivalência do Orixá, uma
temporalidade que possui a capacidade de subverter o tempo e reinventar memórias
reinterpretando o passado.

Constrange o tempo linear, cronológico e supostamente objetivo como artificioso e


criado para atender às expectativas humanas, por exemplo, as de ordem e as de
progresso, que se nos remetem à sanha positiva de controle da aleatoriedade,
reduzindo ao mínimo o leque de possibilidades inventivas (FERNANDES, 2015, p.
131).

Exu diz de uma relação temporal que se abre para o caos e não tem a pretensão de
estabelecer uma relação de domínio do tempo, mas brinca com ele, fazendo suas travessuras.
O tempo para ele não é tirânico, mas passível de ser subvertido. Exu é uma força polilógica e
polifônica,
Polilógica porque há o Orixá Exu ‘uno’ que se multiplica e se divide para
acompanhar cada Orixá e cada humano, de forma que cada exu segue a lógica
daquele que acompanha, fazendo com que o Exu ‘uno’ tenha em si, portanto, um
37

emaranhado de lógicas que coexistem e, polifônica, por sua responsabilidade pela


comunicação entre os Orixás, entre Orixás e humanos e entre os humanos,
competindo a ele, portanto, representar as múltiplas falas e discursos existentes
(SOARES, 2008 apud DAMASCENO, 2014, p. 101).

Ele fala de uma esfera em que diferentes espaços e tempos se confluem, sendo ele
próprio um múltiplo em sua concepção.“Exu é o nada que é tudo ao mesmo tempo e em
espiral.” (FERNANDES, 2015, p. 107) O Orixá representa o material e o imaterial, “é o fluxo
da comunicação entre um e outro, o sopro da memória que reúne passado e presente, o sopro
do ciclo da vida que reúne ancestralidade e descendência” (DRAVET, 2015, p. 19). A
compreensão de ancestralidade e descendência como esferas simultâneas na experiência
temporal se configura com uma transtemporalidade, para além de uma multitemporalidade,
pois compreende a incidência das diferentes temporalidades entre si, a partir do cruzamento e
atravessamento.
Castiel Vitorino (2020), em seu ensaio Exú Tranca-Rua das Almas, fala de um tempo
exusiástico “que é uma temporalidade cíclica e espiralada para todas as direções.” (p.1). O
desenho do espiral do caracol, que rodopia e se expande ao infinito, faz parte da simbologia
de Exu e o tempo espiralar simboliza “uma percepção cósmica e filosófica que entrelaça, no
mesmo circuito de significância, a ancestralidade e a morte.” (MARTINS, 2000, p.79). Nessa
percepção o passado está no presente e no futuro, e os acontecimentos estão sempre abertos à
mudança, correlacionando todos os eventos que aconteceram, que estão acontecendo e que
irão acontecer.
Essa noção de tempo se abre para as experiências que a atravessam, apresenta diversos
caminhos para onde esse tempo se esvai, não necessariamente indo “para frente”.“Exu é da
ordem do tempo mítico que privilegia o tempo subjetivo e engloba a realidade psíquica em
que o sonho, as lembranças, a memória tem papel ativo” (FERNANDES, 2015, p. 131). É o
tempo que está nos deslocamentos realizados pela inconsciência e o estado de transe em sua
concepção de atravessamento. A realidade é considerada tanto em seus aspectos materiais
quanto em seus fenômenos imateriais.
No tempo espiralar, “vivenciar o tempo significa habitar uma temporalidade
curvilínea, concebida como um rolo de pergaminho que vela e revela, enrola e desenrola,
simultaneamente, as instâncias temporais que constituem o sujeito.” (MARTINS, 2000, p.79).
É um tempo que está sempre a ser descoberto, que segue um ciclo que retorna aos mesmos
pontos, mas de uma forma diferente. Suas instâncias também passam pelo mundo dos vivos e
dos mortos, do imaginário e da experiência sensível.
38

As perspectivas de um delineado espiralar do tempo e a circularidade dos


acontecimentos são materializadas nos ritos das religiões de matriz africana, em que são
expressas as narrativas fundamentais dessas cosmovisões. Na dança, na música, na repetição,
o espiral se mostra por meio do corpo e da voz, e busca atravessar tempos por meio de seu
emaranhado com o espaço. “Em outras palavras: o tempo, em sua dinâmica espirada, só pode
ser concebido pelo espaço ou na espacialidade do hiato que o corpo em voltejos ocupa.
Tempo e espaço tornam-se, pois, imagens mutuamente espelhadas.” (MARTINS, 2002, p. 86-
87). Isso demarca uma compreensão que é cara para o ponto de vista construído aqui, a
indissociabilidade entre os âmbitos do tempo e do espaço.
Olhando o mundo a partir da visão espiralar do tempo, compreendo que o futuro é um
dos grandes autores do passado. E que o passado se vivencia e se refaz todos os dias no tempo
presente. A partir de novas escrituras do que já foi experienciado, a memória se atualiza, as
rasuras na História - que podem parecer individuais mas que sempre falam sobre algo coletivo
- reconstroem realidades e imaginários em um movimento que aponta para as diversas
entradas e saídas da encruzilhada.
Para além da experiência subjetiva apresento as características desses tempos para
refletir sobre as convergências possíveis das temporalidades na encruzilhada da educação
audiovisual. Considero principalmente dois tempos envolvidos nesse processo: o tempo
escolar e o tempo do audiovisual. Digo principalmente por compreender a multiplicidade de
tempos possíveis na encruzilhada, assim como a pluralidade de temporalidades dentro desses
dois tempos específicos. Falo do escolar e do audiovisual por querer entender justamente o
encontro deles enquanto possibilidade de transformação.
O tempo escolar será concebido em seu caráter de institucionalidade e concepção
cronológica. “O tempo assumido pela escola, ao se tornar objetivo, padronizado e exterior aos
sujeitos, serve de parâmetro para agrupar e diferenciar os alunos, sequenciar as atividades
escolares e uniformizar os materiais didáticos” (PINHO; SOUZA, 2017, p. 1190). Essa
padronização é um reflexo do processo civilizatório citado anteriormente a partir de Elias
(1998) e também significa a tentativa de homogeneização dos processos de aprendizagem,
tratando todos os estudantes a partir de uma média esperada. Simboliza o processo de
quantificação da aprendizagem e a definição de sua duração, a fragmentação do processo e a
ideia de níveis de dificuldade (PINHO; SOUZA, 2017).
A cultura escolar “é constituída por diversos elementos e, entre eles, os tempos
escolares que influenciam a vida escolar a partir de determinações das diferentes arquiteturas
temporais da escola.” (ARCO-VERDE, 2012, p.86) A ideia de otimização do tempo, presente
39

na ordenação da experiência escolar, passa pela concepção de que estudantes desenvolvem


atividades similares e simultâneas na sala de aula, apagando as individualidades e
discrepâncias dos sujeitos a favor de uma ordem temporal que demanda controle.
Essa perspectiva gera questionamentos sobre a possibilidade de experienciar diferentes
organizações temporais no ambiente escolar que não possuam o ordenamento em si como
centralidade, mas a própria experiência do estudante como fio condutor. “Passar do tempo
institucional e social contado (Chrónos) na escola para o tempo do aluno (Kairós) gera uma
nova ordem, que não é o ordenamento aprendido e apreendido pela maioria dos educadores.”
(FERREIRA; ARCO-VERDE, 2001, p. 76). Ou seja, essa mudança na ordenação temporal
sedimentada da escola passa por modificações profundas na própria concepção de educação
que é passada de geração em geração. Porém, assim como Ferreira e Arco-Verde (2001), a
visão que defendo aqui é a de que pode existir um espaço na escola que possibilita repensar e
modificar sua relação temporal e suas práticas a partir da transformação do que já está
enraizado.
Na pesquisa de Pinho, Souza e Gallego (2013) sobre o cotidiano de escolas com
classes multisseriadas na Ilha da Maré-Salvador/BA são apresentados os atravessamentos
entre o tempo do trabalho, do lazer, das práticas simbólicas e o tempo cósmico. As reflexões
compartilhadas nesse trabalho atentam para a experiência escolar coletiva a partir do que ela
simboliza para a encruzilhada que pode ser percebida no próprio tempo escolar. Representa a
relação de disputas em um espaço pouco afeito a mudanças de ordenação e que impõe padrões
de organização temporal.
Além dos efeitos sobre a estruturação de processos escolares coletivos, o tempo
escolar, assim como outros tempos sociais, afeta as subjetividades de estudantes considerados
e avaliados a partir de um perfil de estudante ideal, que é sempre uma projeção produzida e
reproduzida pelos espaços escolares em diversos níveis. A função ideológica do tempo escolar
dentro do capitalismo também aparece como uma preparação para o tempo produtivo desse
sistema, interessado na construção de uma mão de obra padronizada que esteja preparada para
segui-lo, e a escola seria assim responsável por fornecer um “referencial externo para o
desenvolvimento das estruturas subjetivas de cada indivíduo, cooptando-o para o reino da
máquina de produção social” (GALLO, 1999, p. 196).
Durante a pandemia de COVID-19, a experiência escolar sofreu uma dissolução.
Antes o que era concentrado em tempo e espaço definidos, com infra-estrutura e suporte para
acontecer com objetivos determinados, foi deslocado para outro cenário a partir do momento
em que escolas foram fechadas e o ensino remoto instituído. Além das consequências diretas
40

na escolarização de milhões de pessoas e em todas as famílias que necessitam do apoio


oferecido pelas escolas, o tempo da vivência privada dos lares passou a atravessar esse tempo
escolar em uma conjuntura histórica jamais vista, na qual as possibilidades de encantamento
do mundo e as políticas de vida foram enevoadas.
O tempo do audiovisual aparece como tentativa de encantamento e subversão do
tempo por meio do vídeo, perfurando a realidade e proporcionando novas costuras. O tempo
do cinema traz em si uma característica que dialoga com nossa reflexão a partir das
encruzilhadas, que é a justaposição entre “o presente que conserva em si o passado e, que de
certa maneira, nos remete ao futuro” (MOURÃO, 1989, p.6). Esse tempo seria a condensação
de outros em si mesmo, e representação indireta porque é fruto de montagem, que
essencialmente é a reorganização e estruturação de imagens e sons.
Para falar do tempo do cinema, esse que está relacionado tanto com o pensar a partir
das imagens quanto com o processo de produzi-las, primeiramente vamos recorrer aos escritos
do cineasta Andrei Tarkovski (1998), para quem o cinema é o ato de esculpir o tempo. O
objetivo é refletir sobre a artesania do audiovisual tendo o tempo como matéria-prima.
Partindo dessa perspectiva, o fazer audiovisual pode ser encarado como a atividade de
repensá-lo, remontá-lo e, consequentemente, ressignificá-lo. Um processo de remodelação do
tempo vivido.
Para Tarkovski (1998), “o tempo, registrado em suas formas e manifestações reais”
(p.72) seria a suprema concepção do cinema enquanto arte e esse seria um modo de registrar
uma impressão do tempo. A imagem cinematográfica estaria viva dentro do tempo, e dentro
dela também existiria um tempo próprio. O cineasta compreende três níveis temporais dentro
do cinema: o empírico da experiência do espectador, o impresso do plano, e o esculpido, do
fazer do cineasta. O último diz sobre os processos de relação afetiva de quem produz as
imagens para a modelação dos fluxos temporais no audiovisual.
Como assinala Aumont (2004), “o tempo só pôde ser impresso nos planos, e o
cineasta só pôde montar o filme se souber captar o tempo verdadeiro, o tempo humano, o
tempo dos afetos” (p.36). Além disso, como observa o autor, ele não está falando sobre uma
concepção do tempo enquanto subjetivo, compreendendo que “é a montagem e, mais
geralmente, as imagens fabricadas do tempo que subjetivizam o tempo” (p.36-37). Aumont
recorre ainda ao pensamento de Jean Epstein, que vai inferir que o cinema repensa o tempo a
partir de reviravoltas em ideias como continuidade e descontinuidade, caracterizando-se como
“um instrumento inteligente, pois não apenas nos permite pensar o tempo de outra forma, mas
ele próprio pensa o tempo de uma maneira original” (AUMONT, 2008, p. 23). Nessa
41

perspectiva, o fazer audiovisual é observado a partir de sua potência de remodelação do/com o


tempo – e o tempo do audiovisual seria o próprio refazer do tempo.
O tempo fílmico não deve ser confundido com o tempo de exibição da obra, que é
limitado por sua duração, e pode ser observado pela ideia de ritmo que o olhar fílmico traz,
com todas as descontinuidades temporais operadas pelos processos de montagem. Esse tempo
seria o tempo de ação das coisas, a duração do desenrolar da narrativa, esteja ela na tela ou
não. Na proposição de Khatchadourian (1987) o tempo de ação “se refere ao tempo em que
devemos imaginar que os personagens existem ou duram; consequentemente é um tempo
puramente imaginário ou conceitual, como os personagens e a própria ação.” (p. 173). Por
isso, não deve se confundir com as marcações temporais que existem para delimitar o início,
meio e fim de uma narrativa, pois extrapola o que existe na duração do filme.

Este tempo, de que não nos damos conta e que não é igual, mesmo que dure a
mesma coisa, àquele que passou durante a sessão do cinema, é um tempo muito
especial, é aquele que nos coloca frente à experiência do tempo, à sua densidade.
Aqui acontece, portanto, um deslocamento temporal das imagens que só a
imaterialidade da projeção do filme no cinema nos pode proporcionar, e que não se
confunde jamais com aquele tempo advindo de sua singela sucessão (MENEZES,
1996, p. 87).

A partir do olhar fílmico, o tempo real pode ser acelerado ou atrasado, fragmentado e
rearranjado de formas infinitas, e assim assumir outras durações e significados. Essa
remodelação tem a potência de desconjuntar os tempos percebidos e compartilhados
socialmente, jogando com as percepções subjetivas e coletivas da passagem do tempo. E
quanto mais ciente dessa potencialidade se está, mais evidente fica o jogo do tempo na
realização cinematográfica.
O cineasta Wong Kar Wai, em entrevista sobre seu filme Amor à flor da pele (2000),
destaca a relação entre o tempo real e o tempo em que a história se desenrola na obra. Ele
aponta que “a repetição de cenas, a mistura entre o passado, o presente e o futuro, com a
criação de buracos no tempo, fazem uma alusão a memória humana, e à sua falta de
linearidade, que contribuem para a construção do filme”. Essa perspectiva de montagem e
fabricação de tempo fílmico assume suas lacunas, e compreende o que falta como parte de
uma construção imagética que abarca a inconstância da relação subjetiva com o tempo.
Mesmo o cinema narrativo com a montagem mais linear possível é em si uma
remodelação do tempo, um alargamento ou estreitamento do tempo real. A criação do “mundo
inteiro refletido como que em uma gota d'água" de imagens e sons é um processo de tradução
de linguagens que pressupõe adaptação e recorte, por mais próximo que se pretenda estar da
realidade material. Esse processo possibilita registrar impressões do tempo, e como se fosse
42

possível esculpi-lo com as próprias mãos, provoca o ato de invenção por parte de quem cria
audiovisual e também todas as pessoas afetadas pela obra. O que torna possível contemplar
tais impressões é o espaço e assim, para tornar visível a artesania do cinema, o espaço fílmico
é construído.

1.4 Construindo espaços


Enquanto vivo, percebo a passagem do tempo pelas mudanças do cenário da vida. Os
espaços que me cercam são atravessados pelos movimentos temporais, são construídos e
reconstruídos por terra ou cimento, mas também por ideias e afetos. Quando aponto a câmera
ou o celular para eles e começo a filmar, me proponho a pensá-los a partir das imagens,
agindo com e nos espaços. Por isso, muito me interessa a percepção da educação audiovisual
como algo que age no espaço a partir das relações de contato - entre pessoas, objetos, lugares,
sentimentos… - e também dos processos que constroem os pontos de vista.
Recorro ao pensamento do geógrafo Milton Santos (1988) para falar sobre espaço, a
partir da formulação de que ele “resulta do casamento da sociedade com a paisagem. O
espaço contém o movimento” (p.25). Isso quer dizer que, para além de seu aspecto físico e
material, o espaço seria a soma da materialidade com “a vida que palpita” (p. 26), os sujeitos
e os movimentos próprios da sociedade. É o conjunto dos objetos – geográficos, naturais e
sociais – e as relações que são intermediadas por esses objetos. Um fruto de processos
relacionais individuais e coletivos.
Nessa concepção se compreende que o espaço não é apenas algo por si só, os sujeitos
agem sobre ele, mediados pela materialidade, e suas ações produzem o espaço. Como ressalta
Santos (1998), “o conteúdo (da sociedade) não é independente, da forma (os objetos
geográficos), e cada forma encerra uma fração do conteúdo. O espaço, por conseguinte, é isto:
um conjunto de formas contendo cada qual frações da sociedade em movimento” (p.10).
Nessa perspectiva, esse conjunto de formas teria, assim, “um papel na realização social”
(idem).
Os significados e sentidos de cada espaço se dão na relação interconectada e
retroalimentada entre espaço físico e sociedade, na possibilidade de se criar vínculos
simbólicos a partir de usos, relações de identificação e discursos. Ou seja, a ideia de espaço
comporta um processo de significação que transborda seus limites físicos, afetando e sendo
afetada pelas trocas sociais. Pontuo aqui que irei me referir principalmente aos espaços e
relações urbanas.
43

Henri Lefebvre (2006) trabalha com a noção de produção de espaço, uma vez que,
para ele, “o espaço (social) é um produto (social)” (p.34). O espaço seria então uma abstração
que tem materialidade, materialidade essa que pode ser instrumentalizada mas que também
transcende a instrumentalização. Na perspectiva do autor em seu conceito de espaço, as
relações sociais são parte constituinte dele. Essa produção de espaço está relacionada a três
processos interconectados: as representações do espaço, os espaços de representação e a
prática espacial, que é social.
As representações do espaço são as concepções abstratas criadas a partir da
interpretação das ciências, planejamento arquitetônico, diversos códigos e signos que criam o
espaço concebido. Se exemplifica na forma como as cidades são planejadas, nos monumentos
construídos para exaltar e manter o status quo das sociedades capitalistas, entre outras
expressões ligadas às formas de produção e conhecimento.

Trata-se do espaço planejado, instituído, aquele das normas técnicas (que são
apresentadas como apolíticas), ou seja, um espaço que normatiza o que os cidadãos
podem ou não fazer, que é apresentado como neutro, como se não tivesse sido
planejado para garantir a realização de uma estratégia de reprodução que exige, no
capitalismo, não só a manutenção da desigualdade socioespacial, como, em geral, de
seu aprofundamento e, ao mesmo tempo, busca o controle social. (ALVES, 2019, p.
556).

Os espaços de representação se referem à dimensão do espaço vivido, esfera simbólica


do espaço para além do que é planejado - subvertendo ou não as normativas instituídas. São
exemplos de subversão da norma imposta aos usos dos espaços as ocupações artísticas dos
movimentos de rua ou as manifestações populares, que vivem os espaços extrapolando suas
funções concebidas.

Os espaços de representação, ou seja, o espaço vivido através das imagens e


símbolos que o acompanham, portanto, espaço dos “habitantes”, dos “usuários”, mas
também de certos artistas e talvez dos que descrevem e acreditam somente
descrever: os escritores, os filósofos. Trata-se do espaço dominado, portanto,
suportado, que a imaginação tenta modificar e apropriar. (LEFEBVRE, 2006, p. 41;
grifos no original).

As práticas espaciais são as formas com as quais os sujeitos se apropriam do espaço


cotidianamente ao longo do tempo - e proporcionam o espaço percebido.
A prática espacial, que engloba produção e reprodução, lugares especificados e
conjuntos espaciais próprios a cada formação social, que assegura a continuidade
numa relativa coesão. Essa coesão implica, no que concerne ao espaço social e à
relação de cada membro de determinada sociedade ao seu espaço, ao mesmo tempo
uma competência certa e uma certa performance. (LEFEBVRE, 2006, p. 36; grifos
no original).

Pensando em uma sociedade urbana e capitalista, no espaço percebido a prática


espacial associa “a realidade cotidiana (o emprego do tempo) e a realidade urbana (os
44

percursos e redes ligando os lugares de trabalho, da vida "privada", dos lazeres)"


(LEFEBVRE, 2006, p. 39). O espaço percebido articula e é mediado pelas dimensões do
vivido (pois as práticas sociais são da vivência dos sujeitos) e do concebido (âmbito em que as
práticas são conceitualizadas). O espaço social seria, então, o fruto dos entrecruzamentos
desses três aspectos criados em seu processo de significação.
Lefebvre (2006) propõe uma perspectiva relacional entre os conceitos de tempo e
espaço, uma vez que o processo de produção de espaço acontece ao longo do tempo. O tempo
enquanto uma esfera de produção histórica e social sedimenta as compreensões. E o espaço
enquanto simultâneo a ele o atravessa com a sincronicidade da vida real. Um incidindo sobre
o outro, provocando reificações ou desconstruções de sentidos. Amarrando essas esferas está
a sociedade, entendida na complexidade dos sujeitos, seus corpos, sensibilidades, imaginários
e práticas. Os atos sociais são incorporados com significações coletivas e individuais que
fazem cada espaço social significar o que ele significa, e esse movimento delineia a forma de
nos relacionarmos com cada espaço.
As relações simbólicas engajadas com os espaços são atravessadas por marcadores
como raça/etnia, classe, gênero, localização geográfica, sexualidade, deficiência, idade, entre
outros, que podem conformar a maneira como acessamos os espaços sociais – e se os
acessamos. A relação de uma pessoa que mora na periferia com o centro de sua cidade não é a
mesma que uma pessoa que mora no centro. São outras vivências e simbologias, outras
possibilidades de se apropriar. Cada sociedade ou subgrupo possui suas próprias concepções
de espaço e “cada modo distinto de produção ou formação social incorpora um agregado
particular de práticas e conceitos do tempo e do espaço” (HARVEY, 2006, p. 188)
A partir da compreensão do espaço como algo que atravessa as relações sociais e é
atravessado por elas, as “cidades e seus espaços têm um papel tão importante quanto a
linguagem nas conexões entre atos e na reprodução social” (NETTO, 2014, p. 24). O espaço
urbano está em constante disputa de usos e sentidos a partir das diferentes significações
coletivas, que grupos e sujeitos incidem sobre e são afetados por ela. A partir da noção da
“indissociabilidade espaço/sociedade, compreende-se o espaço urbano como um objeto não
neutro, político, resultado de uma dimensão temporal e histórica que se faz e refaz a cada dia”
(MOCCI; LEONELLI, 2019, p. 931). Essa possibilidade de reinvenção se estende aos
diversos espaços sociais que se encontram dentro do espaço urbano, uma vez que também são
produtos sociais.
Por isso é necessário pensar nas oportunidades de poder dizer sobre os espaços, estar
neles e com eles. Tais potencialidades podem ser mediadas pela prática do audiovisual, e
45

considero ser necessário compreender como essa experiência pode afetar o processo de
invenção e reinvenção dos espaços com os quais possibilita que os sujeitos experimentem,
como a própria cidade, o bairro ou a escola. O usos e discursos sobre os espaços se abrem
para as possibilidades de agir sobre os sentidos por meio da produção simbólica e narrativa, e
também para oportunidades de se apoderar fisicamente desses espaços durante o processo de
produção audiovisual.
Em um contexto histórico marcado pela impossibilidade de estar fisicamente em
alguns espaços – e pela angústia decorrente dessa situação –, parto do imaterial com o
objetivo de tecer algumas reflexões sobre os conceitos de espaço escolar e espaço do
audiovisual. Assim, primeiramente desloco o pensamento para o espaço virtual, ou
ciberespaço, com a compreensão de que após o início da pandemia da COVID-19 essa esfera
tomou outras proporções e expôs ainda mais questões estruturais presentes no mundo inteiro.
A palavra ciberespaço apareceu pela primeira vez em 1984 no livro Neuromancer,
antecipando a chegada da rede mundial de computadores e seu impacto na possibilidade de
interconexão e existência para além do espaço físico. Nessa história de ficção científica os
personagens se conectam na matrix, um espaço fora da materialidade, por meio de
computadores que estão ligados aos seus sistemas neurais e assim conseguem viver além de
seus corpos físicos.

Ciberespaço. Uma alucinação consensual vivenciada diariamente por bilhões de


operadores autorizados, em todas as nações, por crianças que estão aprendendo
conceitos matemáticos... uma representação gráfica de dados abstraídos dos bancos
de todos os computadores do sistema humano. Uma complexidade impensável.
Linhas de luz alinhadas no não espaço da mente, aglomerados e constelações de
dados. Como luzes da cidade, se afastando… (GIBSON, 2003, p. 77)

Parto da compreensão do ciberespaço como conjunto dos espaços de comunicação que


se tornaram possíveis pela rede mundial de computadores, assim como a capacidade de
armazenar dados nas memórias dos computadores, e as conexões que se dão a partir deles.
Não significa apenas o aspecto de “infraestrutura material da comunicação digital, mas
também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos
que navegam e alimentam esse universo” (LÉVY, 1999, p. 17). Esse espaço é multiterritorial
e não se situa em um lugar só, não existe materialidade que o simbolize na totalidade. É
formado basicamente por fluxos de informação e costura-se por meio de redes que são ao
mesmo tempo materiais e virtuais.
O acesso à rede mundial de computadores, ainda que seja considerado um direito
humano pela ONU (2011) e algo a ser assegurado pelo Marco Civil da Internet (2014),
46

depende de outras tecnologias, como computadores ou dispositivos móveis, e é em grande


parte intermediado por provedores privados, logo, sua distribuição não é equivalente.
Segundo a pesquisa TIC Domicílios, de 2019, 1 a cada 4 pessoas não usavam a Internet no
Brasil - o que significa aproximadamente 47 milhões de não-usuários - e 99% dos usuários a
acessavam prioritariamente pelo celular. Em diversos níveis é possível acessar cada vez mais
serviços conectados à rede, e o acesso à internet foi ampliado nos últimos anos, porém o
contato com as tecnologias de comunicação e informação ainda depende da qualidade de
aparelhos e conexões, e do próprio nível de alfabetização digital de quem os usa. Considero
importante ressaltar isso para não corroborar com a ideia de que o espaço virtual está presente
na vida de todas as pessoas ou então a ideia de que quando está presente, se faz de forma
igualitária.
O ciberespaço é algo que cresce exponencialmente em volume de dados, mas não
pode ser considerado apenas como um espaço de dados, porque suas funções estão muito
além do compartilhamento de arquivos. O espaço virtual, que encurta distâncias e dilata
temporalidades, também engloba interação social, comunicação e entretenimento, que em
alguns casos não se dá de uma forma passiva, mas interativa entre os usuários. Nas
plataformas interconectadas que o ciberespaço oferece são apresentadas diversas
possibilidades de viver o “eu” e construir comunidades.
Seja por meio de um perfil em uma rede social ou como personagem de um jogo
online que permite interação com outros sujeitos, “a Internet tornou-se um importante
laboratório social para a experimentação com as construções e reconstruções do eu que
caracterizam a vida pós-moderna” (TURKLE apud WERTHEIM, 1999, p. 170). Não é o
único espaço que permite encarar a subjetividade como algo múltiplo, pois com nossos corpos
físicos na vida real também exercemos diferentes papéis com diferentes cenários e públicos,
mas a existência de si mesmo nos mundos paralelos da Internet coloca “em foco o fato de que
estamos todos ligados numa teia de eus inter-relacionados e fluidos” (WERTHEIM, 1999, p.
184). Por isso, parece importante levar em consideração o seu impacto na experiência de
quem olha para o mundo físico enquanto é atravessado pelos mundos virtuais.
Assim como Margaret Wertheim (1999), considero que a falta de fisicalidade não
caracteriza o ciberespaço como algo irreal - e compreendo que a linha de fronteira entre vida
real e vida virtual se estreita ou expande conforme o nível de inserção nas possibilidades de
ser e estar que se apresentam no espaço online. Milton Santos (2000) questionava se de fato o
ciberespaço se caracterizaria como um espaço – e acredito que esse questionamento se
atualiza com força como questão existencial. O período pandêmico trouxe a reflexão de
47

“existir em um espaço entre o físico e o virtual e, nesse sentido, a própria percepção de ser, de
estar e de trabalhar se remodela e seguirá se transformando” (SANTANA, 2020). Nesse
cenário, revela-se a necessidade de uma reflexão sobre as mudanças simbólicas que o espaço
virtual apresenta para experiência do ser e como isso acaba conformando as formas de vida.
As mudanças impostas pela pandemia iniciada em 2020 revelam novos dados para
pensar as relações na esfera virtual e as apropriações simbólicas que são realizadas. A partir
da compreensão de que o espaço escolar é um aspecto central na vida de seus estudantes, é
necessário pensar sobre a experiência de educação escolar de forma remota durante esse
período. E isso passa por compreender o cenário de acesso às tecnologias de informação e
comunicação, assim como entender o lugar da escola na sua materialidade.
O espaço escolar, aqui compreendido como a escola em si, é considerado em primeiro
lugar por sua funcionalidade de organizar os fluxos do processo escolar e distribuir seus
sujeitos. A escola organiza os objetos e pessoas a partir de seus agrupamentos de turmas e
séries, além de indicar as funções oficializadas de cada espaço. A ideia de homogeneização do
processo escolar e padronização dos estudantes também se faz presente no aspecto físico, e as
escolas costumam seguir padrões arquitetônicos em suas construções.

Em sua materialidade física, o prédio escolar informa a todos/as sua razão de existir.
Servindo-se de recursos materiais, de símbolos e de códigos, a escola delimita
espaços, afirma o que cada um/a pode ou não pode fazer, separa e institui. Para
aqueles e aquelas que são admitidos no seu interior, a escola determina usos diversos
do tempo e do espaço, consagra a fala ou o silêncio, produz efeitos, institui
significados; aos que ficam de fora de seus muros, a instituição também impõe
conseqüências, construindo sentidos e sentimentos que advêm dessa exclusão
(LOURO, 1999, p. 87).

Para além de ser apenas uma parte do processo centrado no tempo escolar, é
importante ressaltar que a materialidade da escola institui um ponto de referência para a
comunidade na qual está inserida, principalmente quando se pensa na escola pública. Esse
lugar de suporte para as famílias se caracteriza como um espaço que pode oferecer educação,
alimentação e acolhimento principalmente para suas crianças e adolescentes.
A construção das identidades dos estudantes é atravessada pela forma com as quais
estabelecem relações com esse espaço físico - se de fato se sentem pertencentes, se encaram
esse ambiente com distanciamento, se o enxergam como um lugar de controle ou um lugar de
oportunidades - e com as relações que estabelecem entre si.

[...] a dimensão simbólica da escola necessita ser desvelada. Para tanto, há que se
considerar os diferentes grupos sociais que ali interagem: alunos, professores e
famílias. São sujeitos em constante interação trazendo experiências diferenciadas,
expectativas, esperanças e desejos. Vivem em condições materiais com práticas
sociais específicas. (WESCHENFELDER, 1994 apud AMES, 1999, p. 123-124)
48

Os diferentes sujeitos que são afetados pelas escolas devem ser levados em
consideração ao pensarmos sobre o que faz esses espaços serem como são, extrapolando suas
funções primárias e institucionalizadas. Por isso, me interessa observar a escola pelas
apropriações feitas pelos estudantes e os discursos mobilizados a partir de suas experiências
com o espaço escolar. E, para além disso, quero saber como suas vidas são afetadas pela
impossibilidade de estar nesse espaço, desencadeada pela pandemia de COVID-19.
Na situação de educação remota, o conceito de espaço escolar se modifica. A partir de
experiências já desenvolvidas na Educação à Distância (EaD), algumas estratégias
emergenciais foram traçadas para lidar com o isolamento social. O ato de se organizar para
estudar apareceu como um desafio para os estudantes que, durante esse período, tentaram
acomodar as atividades escolares em suas casas – o que envolve, entre outras coisas, aliar
estudo e trabalho, ter acesso às tecnologias necessárias para acessar vídeos e conteúdos
relacionados às aulas, ou simplesmente ter espaço físico para estudar, entre outras questões.
É possível afirmar que o abismo de oferta e qualidade educacional entre as classes
segue se aprofundando durante a pandemia, assim como demonstrado na pesquisa “Tempo
para a Escola na Pandemia” (NERI, OSÓRIO, 2020). Registra-se “que os alunos mais pobres
são 633% mais afetados pela falta de oferta de atividades escolares que os alunos mais ricos.”
(p. 3) E que para além disso, “a desigualdade de oportunidades e de resultados educacionais
aumentará durante a pandemia, quebrando tendência histórica de décadas.” (idem)
Em 2020, 30% dos jovens brasileiros pensaram em deixar a escola devido à nova
configuração e, entre os que planejaram fazer o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio),
49% pensaram em desistir. Seis a cada dez jovens consideraram que escolas e faculdades
deveriam priorizar atividades para lidar com as emoções, por questões como ansiedade,
estresse e depressão. (CONSELHO NACIONAL DA JUVENTUDE, 2020) Ou seja,
definitivamente um momento de crise que demandou um olhar atento para as mudanças da
experiência escolar.
Na rede estadual de ensino de Minas Gerais, foi implantado o “Regime de Estudo não
Presencial” (REANP). Esse programa seguiu três iniciativas: cadernos de estudo (Planos de
Estudos Tutorados – PET) entregues para os estudantes, videoaulas disponibilizadas no canal
do YouTube chamado Se Liga na Educação e o aplicativo Conexão Escola. O cenário geral
foi marcado pela dificuldade de adesão do corpo discente ao sistema de ensino instituído.

Sobre o desenho do programa, há questões importantes que ultrapassam o horizonte


da crise. Os comentários revelam que, se para alguns, o ensino remoto é possível;
para outros ele resulta no agravamento da desigualdade e exclusão já
existentes. Do ponto de vista pedagógico, ainda que o esforço da SEE deva ser
49

reconhecido, os comentários mostram o quanto a Secretaria (e as demais redes)


precisa(m) avançar e aprender, especialmente em relação à produção de conteúdo,
gestão e integração de plataformas virtuais, comunicação institucional e suporte
às dúvidas apresentadas tanto pelos profissionais da escola, quanto pelos alunos
e suas famílias. (OLIVEIRA, OLIVEIRA, JORGE, COELHO, 2021, p. 103)

Essa análise de implementação do programa mineiro reflete a dificuldade na gestão


das tecnologias de informação e comunicação por parte do estado, para além das questões de
acesso dos estudantes e suas famílias, e da insuficiência de formação dos profissionais para
trabalhar com essas tecnologias. A partir disso, se evidencia a necessidade de pensar a
importância do espaço físico da escola, assim como os atravessamentos das desigualdades
sociais presentes na sociedade brasileira.
A ausência do espaço físico da escola influenciou no prosseguimento dos estudos de
diversos sujeitos e afetou na percepção do processo educativo e do tempo de aprendizagem.
Pensando na experiência dos participantes da Olhares (Im)possíveis, uma questão que se
apresenta para mim desse cenário é sobre a possibilidade de se pensar uma educação
audiovisual reflexiva - engajada na promoção de troca de experiências e encontros, com
capacidade material e pedagógica - no formato remoto, sem contato presencial ou estrutura
física do espaço escolar. Esse é um dos questionamentos que permeiam o processo de análise
proposto por esta pesquisa, uma vez que ao longo do último ano o espaço virtual apareceu
como nova personagem, central para a compreensão do atual momento.
As mudanças trazidas pela Internet e pela sociedade da informação afetaram e
continuam afetando diretamente a economia, relações sociais, comunicação, política, a cultura
- especialmente naquilo que se refere aos processos de produção, distribuição e acesso – e
também o espaço material, em relação a como ele é produzido e de que forma apropriam-se
dele simbolicamente. O cinema, a linguagem audiovisual de uma forma geral, também
influencia processos de produção e apropriação simbólica da materialidade. Mais do que
imagens projetadas em uma superfície, o cinema também é a reconstrução de realidades e
reimaginação de movimentos.
Nesse ponto, considero importante fazer um adendo. Ainda que até aqui minhas
referências tratem especificamente de questões cinematográficas, me aproprio dos conceitos
para falar sobre audiovisual de forma ampla, uma vez que a imersão nessa linguagem
acontece de diversas maneiras, mas em parte considerável por meio de jogos e vídeos
produzidos para plataformas como Instagram, TikTok e Youtube, em formatos que escapam a
uma compreensão mais clássica de produção cinematográfica, mas que devem ser levados em
50

consideração, uma vez que fazem parte da bagagem coletiva, mas também individual de
diversos sujeitos.
A estética dos games e das redes sociais influenciou e está influenciando os rumos da
produção audiovisual, inclusive do cinema mainstream exibido em grandes salas de cinema e
produzido com orçamentos bilionários. As plataformas online possibilitam a criação em
diferentes formatos audiovisuais e a partir de outras ferramentas, configurando uma
linguagem própria que se espalha pelas redes, transcendendo fronteiras e construindo suas
próprias gramáticas e semânticas.
Quando faço referência ao cinema, tenho em mente que ele é “uma arte no limite entre
o espaço e o tempo” (MOURÃO, 1989, p. 9) e seus sentidos são construídos no entremeio
dessas duas dimensões. Assim, densidade temporal e profundidade espacial costuram a
linguagem audiovisual, formando a base para a criação cinematográfica. Como refleti na
seção anterior, as impressões de tempo demandam materialidade para serem registradas e
percebidas, logo é importante pensar sobre como o espaço cinematográfico era e é
construído.
Em um primeiro momento, o espaço no cinema se resumia àquela perspectiva do
teatro, que apresenta um espaço fixo. Sem tanta importância conferida para o plano de fundo
além de cenário para as ações principais, a imagem fílmica nessa fase não tinha profundidade
de campo e restringia a construção do imaginário do filme àquele recorte estático
(FIORAVANTE, 2016; MARTIN, 2005). A partir do momento em que o espaço no cinema
se tornou lugar do movimento dinâmico e do contínuo, não se restringindo mais ao recorte do
teatro, ele ganhou densidade.
O espaço fílmico está para além do que aparece na tela do audiovisual e é fruto da
criação de um universo imaginário no qual a história transcorre – imaginário porque, mesmo
no caso de produções documentais, é necessário imaginar o mundo no qual as ações irão
acontecer para produzir o onde da obra. Ao contrário do espaço da tela que é definido pelas
configurações de filmagem e exibição, o espaço fílmico é ilimitado e “incorpora outros
espaços que não são visíveis para o espectador, mas são essenciais para a compreensão da
narrativa” (ORUETA, VALDÉS, 2007, p. 163). Ele é todo o espaço que faz parte da obra
audiovisual em si, mesmo que permaneça invisível e imaterial para nós.
O espaço fílmico não pode ser considerado um lugar fixo. Ele faz parte do espaço
cinemático, que contempla as diversas operações ligadas à produção do cinema, e se relaciona
com o espaço narrativo, que é todo aquele construído a partir da narrativa verbal do filme.
Mesmo que eles não apareçam, são importantes para a construção da ideia do espaço fílmico
51

na condição daquele que é construído tanto por aquilo que ele mostra de imagem na tela
quanto aquilo que é apenas dito ou sugestionado (FIORAVANTE, 2016).
As imagens bidimensionais, projetadas em uma superfície ou em meios digitais,
constituem o espaço da tela. Essas imagens fazem parte do espaço fílmico, mas esse tem
profundidade e perspectiva e possui mais uma dimensão. Como se as imagens estivessem por
trás de um espelho, nos fazendo enxergar esse além. Aliado ao aspecto visual, esse espaço
também é construído por sua sonoridade, recorrendo a elementos que trazem diferentes
significados e funções para a obra (KHATCHADOURIAN, 1987). É essa dimensão sensível e
sensória do audiovisual que possibilita que o espaço fílmico acesse e instigue diferentes
sentidos além dos que carrega em seus signos visuais.
A experiência da criação audiovisual apresenta a possibilidade de apropriações
simbólicas e físicas do espaço geográfico e sua transformação em espaço fílmico,
reorganizando-o a partir das continuidades próprias de cada produção. Tanto o espaço físico,
quanto o virtual e o fílmico, produzem sentidos e as relações sociais e simbólicas são
constituintes dos espaços sociais, sendo o espaço produto e matéria-prima.
Por isso, me atento aos indícios desses processos de produção nos espaços em que a
educação audiovisual se realiza, para entender como se dá o processo de significação por
meio do audiovisual e também apreender qual é o papel dele nesses processos. Entender as
relações simbólicas mobilizadas com e nos espaços por meio dos rastros que se apresentam ao
olhar da câmera - e principalmente no que acontece por trás dela.
52

CAPÍTULO 2 - DE QUEM ESTAMOS FALANDO?


Para começar a descrever o que é a Olhares (Im)possíveis, parto de duas frases que
encontram-se registradas na página inicial de seu site: “Cartografias do Cinema como prática
de cuidado” e “Experiência corpo-imagem-cidade”. O que essa primeira impressão pode
apresentar de reflexões iniciais? Como o cinema pode ser uma prática de cuidado? Quais
lugares estão sendo cartografados? O que a experiência do fazer audiovisual provoca de
atravessamento para o eixo corpo-imagem-cidade? Como são articuladas as imagens que
surgem durante esse processo? O que diz essa experiência?
Começo com perguntas para uma atirar uma flecha que pretendo acertar possuindo a
história do grupo como guia, e considero que, para entender os sentidos por trás dessas frases,
é necessário olhar primeiramente para os caminhos percorridos pela Olhares (Im)possíveis,
como projeto e coletivo, até atingir seu desenho atual. De forma que seja possível
compreender os horizontes conceituais, políticos e metodológicos almejados e os processos
concretizados. Neste capítulo irei expor seu alicerce teórico, histórico e cenário de atuação,
para então apresentar o recorte que proponho analisar.

2.1 Olhares (Im)possíveis e a escuta do indizível


Em sua apresentação, a Olhares (Im)possíveis se identifica como um grupo formado
por “pesquisadores/as, estudantes (adultos, jovens, e crianças) gestores/as, profissionais da
escola e ativistas pela educação experimentando práticas colaborativas de realizar cinema de
grupo” (OLHARES IMPOSSÍVEIS, 2019). Também se introduz como um “grupo que
pesquisa, desenvolve e aplica metodologias com dispositivos audiovisuais” (idem), o que
expõe o caráter de processo teórico, prático e reflexivo para sua construção.
Sua história se inicia em 2017, na cidade de Ouro Preto, a partir da pesquisa teórico-
prática idealizada por Arthur Medrado (2018) e desenvolvida no Mestrado em Educação da
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Em uma intersecção de áreas do saber, o projeto
nasceu com o objetivo de desenvolver e aplicar “uma metodologia audiovisual para a escuta
do indizível” (MEDRADO, 2018, p. 25), a partir da realização de oficinas de produção
audiovisual no espaço escolar e da reflexão sobre as imagens-sintoma que o processo revela
dos sujeitos implicados. A partir de algumas conceituações presentes na dissertação de
Medrado (2018), é possível começar a compreender o projeto, iniciando pelas ideias que se
entrelaçam em seu nascimento.
As imagens-sintoma são aquelas cujo registro escapa do controle de quem as produz.
A ideia de sintoma vem da psicanálise, área que está costurada à trama da Olhares
53

(Im)possíveis e que pode ser percebida em sua concepção metodológica, uma vez que o
procedimento clínico da psicanálise é acessado pelo projeto em sua proposição. Esse método
compreende a produção do saber como um processo incompleto e necessariamente cheio de
lacunas, similar à concepção de sujeito pela psicanálise. Nesse campo clínico, “existem
elementos do sujeito em sua relação com o saber que nem sempre poderão ser nomeáveis.”
(DINIZ, 2014 apud MEDRADO, 2018, p. 50). Essa incompletude é importante para a
perspectiva fundada na ideia de que a construção do conhecimento lida com saberes, mas
principalmente com o que não se sabe ainda – o que influencia a escolha metodológica de
Medrado, que, em sua pesquisa, objetiva identificar os traços e indícios que surgem a partir
da relação entre quem pesquisa e quem é pesquisado.
Na metodologia utilizada para o desenvolvimento das oficinas do projeto, e para a
sedimentação de suas bases prático-reflexivas, está presente a Cartilha do Inventar com a
Diferença (MIGLIORIN et al., 2014). Inventar com a Diferença é um projeto que tem como
mote a interseção entre cinema, educação e direitos humanos, e parte da premissa de que “o
cinema é uma forma de ver, pensar e inventar o mundo em que vivemos” (INVENTAR COM
A DIFERENÇA, [s.d.]). Isso aponta para a potencialidade reflexiva da educação audiovisual
que, a partir da possibilidade de revisitar o mundo, faz questões surgirem e imaginários se
(des)construírem por meio da experiência sensível e sensorial que a linguagem possibilita.

É no fazer cinema, lidando com o seu entorno, com a alteridade e com as diferenças,
que adultos e crianças trabalham e inventam juntos. É durante o processo que
descobrimos a força que existe em criar um ponto-de-vista sobre o mundo ou um
lugar para ouvir aquilo que nunca antes havíamos parado para escutar.
(MIGLIORIN et al, 2016, p. 11)

Para desenvolver seu processo de invenção, a cartilha desenha um percurso


metodológico que parte da ideia de dispositivo para pensar as experimentações com o
audiovisual. Cada dispositivo é um exercício proposto,

um conjunto de regras para que o estudante possa lidar com os aspectos básicos do
cinema e, ao mesmo tempo, se colocar, inventar com ele, descobrir sua escola, seu
quarteirão, contar suas histórias. Há dois modelos de dispositivos: aquele com
equipamento de filmagem e gravacão de som e aquele sem equipamento.
(MIGLIORIN et al, 2016, p 14)

Em cada atividade prática estão imbuídos saberes técnicos - de composição, produção


e outros elementos - e reflexões sobre elementos do cotidiano, como o espaço onde se vive, as
pessoas com as quais se tem contato e o próprio olhar de quem os executa. A partir dessas
atividades são apresentadas novas formas de enquadrar o mundo, novos ângulos e
54

perspectivas. Os três dispositivos básicos escolhidos para fazer surgir a Olhares (Im)possíveis
foram Cartão-postal, Minuto Lumière e Filme-carta.

2.1.1 Dispositivos acionados


No Cartão-postal, a ideia é que os estudantes elaborem um cartão-postal a partir de
fotografias que registram cenas do cotidiano. Antes de produzir as fotos, são realizadas
caminhadas e mapas afetivos para que os estudantes possam perceber e apontar o que chama
atenção no caminho que fazem de suas casas até a escola - e então fotografar esses lugares
apontados. “Mais que as práticas audiovisuais, a intenção é aproximar os sujeitos dos espaços
de sua cidade e, através da fotografia, ampliar o olhar para o recorte das realidades, as quais,
inclusive, possam ser produzidas ali pelos participantes” (MEDRADO, 2018, p. 60).
Esse dispositivo foi inspirado por outro presente na cartilha do Inventar com a
Diferença, o Volta no quarteirão, que tem como objetivo fotografar uma volta no quarteirão
da escola. No caso da Olhares, além das fotos, também há a produção de textos parodiando os
cartões-postais de Ouro Preto, elemento comum da cultura local. A proposta é deslocar o
olhar dos monumentos comumente retratados e propor novas cenas que possam se tornar os
cartões-postais a partir da realidade que vivenciam.
Já sobre o Minuto Lumière, sua premissa básica é filmar um plano com a câmera
estática, durante um minuto, qualquer cena desejada. Essa é outra ação da cartilha já
referenciada aqui, e segundo momento de criação. Trabalhando com enquadramento e a ideia
de planos do cinema - o que acontece do momento que se liga a câmera até quando ela é
desligada -, essa atividade lida com o acaso.
Esse dispositivo busca refletir sobre o recorte do mundo que desperta o interesse,
produzir a partir desses recortes e deixar o real atravessar enquanto o registram durante um
breve momento. Além disso, “descobre outra dimensão: todo plano compreende um quadro
(recorte de cena feito pelas lentes da câmera), mas, do mesmo modo que um saber pressupõe
um não saber, um plano também determina um fora de campo.” (idem, p.61-62). Ou seja, é
necessário pensar tanto sobre o que se registra quanto sobre o que se deixa de fora da
imagem.
O terceiro dispositivo traz a proposta do Filme-carta. A ideia é, em poucas palavras,
produzir um filme endereçado a alguém ou algo – esse algo pode ser uma cidade, uma
instituição, um monumento, entre muitas possibilidades. Não pretende trabalhar com uma
forma rígida de pensar os filmes, e cada um é pensado a partir de suas regras internas, sem
ideias pré-estabelecidas do que seria um filme “bom”, bem feito. “Com filme-carta não há
55

filme mal acabado, pelo menos não por carências técnicas” (MIGLIORIN, 2015, p. 156). O
objetivo é pensar o filme a partir da mensagem que se quer passar – e do público para quem se
quer comunicar. Esse destinatário pode nunca receber o filme em si, mas ele existe no
processo e as escolhas são feitas a partir desse interlocutor imaginado.
Essa atividade condensa vários elementos do audiovisual como a idealização da
narrativa, roteiro, narração, atuação, montagem e propõe um espaço reflexivo para as pessoas
envolvidas ao possibilitar essa enunciação (MIGLIORIN et. al, 2016). Por meio desse
dispositivo, o projeto promove a elaboração da fala endereçada pelos sujeitos envolvidos e a
criação discursivo-estética do que desejam dizer. Os dispositivos podem funcionar entre si e
um Filme-carta pode contar com imagens registradas no Minuto Lumière, por exemplo,
podendo modificar os sentidos iniciais a partir do momento que inseridas em uma dinâmica
mais complexa de produção audiovisual. Outros dispositivos serão citados ao longo do
histórico da Olhares (Im)possíveis, assim como os desdobramentos que surgiram dos
dispositivos iniciais apresentados. Destaquei esses porque formam a base de grande parte da
metodologia aplicada pelo projeto e simbolizam dois pontos centrais da educação audiovisual:
experimentação e reflexão.
A partir da compreensão de dispositivo como proposições que colocam em crise o que
está dado e demandam atos de criação, Migliorin (2015) apresenta uma potencialidade que
considero ser exusiástica. Essa potência é possível de ser enxergada ao longo da pedagogia do
mafuá, que atravessa a criação da Olhares (Im)possíveis, pois apresenta uma valorização do
caos criador e da possibilidade de subverter as regras. O Mafuá significa, ao mesmo tempo, a
ordem e a desordem que possibilitam o rompimento com hierarquizações, a horizontalização
dos saberes, o contato com a diferença que faz o novo olhar nascer (MIGLIORIN, 2015).
Nas reflexões sobre a concepção de cinema a ser trabalhada durante o processo de
pesquisa-intervenção realizada por Medrado (2018), a compreensão de que “o cinema pode
ser um instrumento de humanismo, um dispositivo-ferramenta que navega na contramão do
neoliberalismo econômico e subverte as lógicas da globalização” (p. 30) se configura como
um horizonte durante o desenvolvimento da educação audiovisual e reforça a preocupação em
explorar as potencialidades políticas da Olhares (Im)possíveis. Aponta para o fazer
audiovisual como uma forma de se apoderar de ferramentas possibilitadas pela globalização,
como a ampliação do acesso às tecnologias de comunicação e informação, para construir sua
própria subversão. (idem)
Utilizando-se das ferramentas de produção audiovisual para construir comunidades de
escuta e cuidado, a Olhares (Im)possíveis começou sua atuação prioritariamente em espaços
56

escolares, em diálogo com docentes e gestores interessados em abrir espaço para o cinema na
escola. E para compreender o agora, primeiro é necessário olhar para o que já aconteceu. Por
isso, proponho um mergulho no histórico da Olhares (Im)possíveis. Os lugares pelos quais
passou, as atividades que foram propostas, mudanças metodológicas, os resultados desses
encontros.
Além disso, citarei a equipe envolvida no desenvolvimento do projeto em suas
diversas fases, bem como as instituições que circundam e atravessam sua realização, para
exemplificar a transdisciplinaridade existente tanto na concepção quanto na realização do
projeto e registrar os sujeitos que fazem esse grupo ser o que é. Ao fazer essa investigação
arqueológica do grupo, algumas fontes são conteúdos publicados em posts de redes sociais,
um blog, a dissertação de Medrado (2018) e outras que serão citadas ao longo da escrita.
Porém, antes dessa imersão, é necessário entender a cidade que comporta sua criação, o
principal cenário para a história que vou contar, Ouro Preto.

2.1.2 Ouro Preto, cidade cartão-postal


Guiados pelo ideal de exploração colonial e em busca de mais formas de extrair
valores da terra nomeada de Brasil, a história oficializada de Ouro Preto começa a partir da
ocupação dos bandeirantes, que data do final do século 16. Depois da descoberta do ouro na
região, e ao longo do século 17, esse território tornou-se um lugar central. Ainda no final
desse século, as preciosidades já começavam a chegar em terras portuguesas no início do
chamado “ciclo do ouro”, que só foi possível pelo sequestro e escravização de grandes
populações africanas.

Esses mineradores eram provenientes de antigos reinos africanos, como Gana, Mali
e Ashanti, que englobam os atuais países de Mali, Gana, Benin, Togo, parte da
Nigéria e Camarões. A presença destes povos africanos em muito auxiliou no
nascimento da indústria da mineração e metalurgia no Brasil, pois já dominavam
técnicas de mineração e de siderurgia quando foram sequestrados e trazidos para o
Brasil para trabalhar na extração de ouro (REIS, 2007 apud FERREIRA, 2017, p.
44).

Para fins de controle administrativo da coroa portuguesa, houve a fundação da Vila


Rica de Albuquerque, em 8 de julho de 1711, data que marca o aniversário de Ouro Preto. E
logo depois, em 1721, Vila Rica tornou-se a primeira capital de Minas Gerais. Para
compreender a formação sócio-histórica desse espaço, também é necessário ter em mente sua
composição populacional, marcada pela maioria de pessoas negras,

em Vila Rica estima-se que no auge da mineração a população escrava passou com
folga da marca dos 40.000 indivíduos. Em 1721, início da formação da cidade, já era
alta a população escrava com cerca de 10.881 pessoas. (NASCIMENTO, 2018).
57

Em 1808, “a população negra de Ouro Preto ainda era maioria, sendo que ao todo
somavam 10.663 negros contra 3.646 brancos e 7.913 mulatos.” (NASCIMENTO, 2018) É
importante levar em consideração que, entre 1776 e 1821, Vila Rica era uma das zonas
urbanas mais importantes do Brasil, com população que excedia a média atual de 78 mil
habitantes (ESTEVÃO-REZENDE; AZEVEDO, 2020), o que conferia o lugar no topo das
cidades mais populosas das Américas e, juntamente com outros territórios vizinhos,
caracterizava uma rede urbana central para a acumulação de riqueza da coroa portuguesa.
Em 1823, houve a mudança oficial de nome para Ouro Preto e, durante o declínio da
exploração aurífera iniciado ainda no fim do século 18, a importância política e econômica da
cidade foi diminuindo gradativamente. Ao contrário da região do Curral Del Rey (Belo
Horizonte), que simbolizava a modernização das cidades, a antiga Vila Rica representava um
passado que já havia sido brilhante. Por isso, em 1897, perderia o posto de capital para Belo
Horizonte, o que ocasionou uma desaceleração em seu desenvolvimento urbano e uma evasão
populacional na cidade (ESTEVÃO-REZENDE; AZEVEDO, 2020), assim como a
necessidade de dinamizar as fontes de renda, que antes se concentravam na mineração.
Para refletir sobre o que significou o processo extrativista desenvolvido em terras
brasileiras além de marcos históricos, datas e números, busco palavras inspiradas em Eduardo
Galeano que sintetizam muito do que eu poderia apresentar aqui: "o ouro brasileiro deixou
buracos no Brasil, templos em Portugal e fábricas na Inglaterra." Os buracos a que Galeano se
refere podem ser as mortes, degradação ambiental e exploração colonial de diversas formas,
assim como as lacunas históricas que construíram a invisibilização africana - assim como a
indígena - na criação do que é o Brasil. Essa frase se relaciona com a memória que tenho de
quando ouvi pela primeira vez, em uma visita à Mina do Veloso em Ouro Preto, que o ouro de
Minas Gerais havia financiado a Revolução Industrial inglesa, e que esse entendimento
mudaria a minha percepção do que foi esse ciclo e da quantidade de minério expropriado
dessas terras.
Adentrando o século 20, a cidade de Ouro Preto foi pauta de movimentos intelectuais
brasileiros, como o movimento modernista, que “passaram a destacar o papel central da
cidade na constituição do ‘povo brasileiro’, fazendo com que a preservação do passado
ouropretano fosse priorizada” (ESTEVÃO-REZENDE; AZEVEDO, 2020, p. 3). E, a partir de
1930, seu centro histórico foi foco do processo de patrimonialização decorrente do projeto de
identidade nacional homogênea e conciliatória, característico do Estado Novo. Depois de ser
considerada Monumento Nacional em 1933, foi uma das primeiras cidades a ser tombada pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1938; e desde 1980 Ouro
58

Preto possui o título de Patrimônio Mundial da Humanidade pela Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
Ainda na década de 30, a cidade começou a se industrializar e se recuperar
economicamente. “Baseada no desenvolvimento metalúrgico e siderúrgico, a cidade se
encontrou novamente na aspiração de reelaborar a produção do espaço pelas suas
potencialidades minerais” (FIALHO, 2018, p. 63), o que significava a presença de empresas
interessadas na exploração mineral, dessa vez com a extração de bauxita e a produção de
alumínio primário. O chamado “ciclo do alumínio” acarretou em um crescimento exponencial
da população ouropretana, em decorrência dos novos postos de trabalho que se apresentavam,
e esse fenômeno foi ganhando força até os anos 60, quando esse ramo da indústria se
estabeleceu como mais importante agente da economia e do desenvolvimento da cidade
(MOTTA, 1987).
O fato de que o processo institucional de preservação do conjunto arquitetônico de
Ouro Preto se iniciou ao mesmo tempo em que novos sujeitos chegavam para trabalhar nas
indústrias, modificando as dinâmicas sociais e a ocupação urbana, é um exemplo do embate
entre a tradição e a novidade que pode ser observado nessa cidade. Esse é um espaço que
evoca ao mesmo tempo a memória do colonialismo em terras mineiras, o processo de
invenção da identidade brasileira a partir de sua história colonial, mas também a lembrança de
resistências coletivas e a força da cultura afro-diaspórica.
Ainda que possa ser conhecida como uma cidade turística e histórica de contornos
coloniais, por seu patrimônio material com influência barroca, Ouro Preto é um local de
maioria negra, que representa 67% da população, entre pretos e pardos (IBGE, 2010),
construído pelo trabalho intelectual e braçal dos africanos trazidos para esse território. Essa
presença está expressa nas igrejas, ruas e casarões que se tornaram pontos turísticos
conhecidos mundialmente, mas também está em traços do patrimônio imaterial como o
Congado, a Capoeira, as religiões de matriz africana, além de manifestações culturais como as
rodas de samba, e os diversos artistas de funk e rap que povoam os bairros da cidade.

2.2. Uma história sobre olhares


Foi em uma cidade-monumento de heranças ancestrais entrecruzadas que a Olhares
(Im)possíveis nasceu, buscando construir esse espaço a partir de novos pontos de vista.
Durante os anos de 2017 e 2018, suas oficinas estavam inseridas nas ações do Programa
Sentidos Urbanos – Patrimônio e Cidadania, que por sua vez teve início em 2009, a partir da
parceria entre o IPHAN, a UFOP, e a Fundação de Arte de Ouro Preto (FAOP). Com foco nos
59

conceitos de memória, identidade e patrimônio, o Sentidos Urbanos tem o objetivo de atuar


em Ouro Preto construindo projetos interdisciplinares que dialoguem com os sujeitos e o
espaço no qual estão situados. Para isso, se utilizam de uma metodologia de forma ampla, e
trabalham com ferramentas como audiovisual, fotografia, música e jogos teatrais.
A atuação da Olhares (Im)possíveis com a turma da E.M. Prof. Adhalmir Santos Maia,
escola pública da periferia de Ouro Preto, teve início em maio de 2017, com a realização de
um “roteiro sensorial” no centro histórico de Ouro Preto, atendendo o público de crianças
entre 10 e 11 anos do 5º ano do Ensino Fundamental. O eixo principal estava centrado na
“ideia de conhecer a cidade de Ouro Preto através dos sentidos”, oportunidade em que “os
alunos puderam explorar o centro histórico por outro viés, atentando, principalmente, aos
detalhes do lugar.” (PROGRAMA SENTIDOS URBANOS, 2017a). Por meio de exercícios
que envolviam olhar para os detalhes da Praça Tiradentes com um popcard (cartão postal que
simula o orifício de uma câmera) ou utilizar vendas e espelhos para experienciar de uma outra
forma a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, no bairro Antônio Dias, a atividade iniciava o
processo a ser desenvolvido de experimentação e reencontro com o cotidiano.
No mesmo mês se iniciaram as atividades na Escola Estadual Cônego Mauro de Faria,
no distrito de Bandeirantes, que pertence à cidade de Mariana, em parceria com o Coletivo
MICA - Mídia, Identidade, Cultura e Arte. Nesse primeiro momento, após jogos teatrais para
iniciar o contato e uma conversa sobre conceitos básicos da fotografia, os estudantes da turma
da educação integral desenharam mapas afetivos do caminho que fazem de casa até a escola.
No segundo encontro realizaram os registros fotográficos para produzir os cartões-postais.
Na escola de Bandeirantes, as atividades foram realizadas em seis encontros, entre os
meses de maio e junho, e foram divididas em momentos de produção de mapas afetivos,
cartões-postais, criação de roteiros, filmagem dos filmes-carta, edição, exibição e, no caso
dessa escola, especificamente, uma tarde de jogos como encerramento a pedido dos
estudantes. Ainda em maio, a Olhares começou o trabalho na E.M. Juventina Drummond, na
periferia de Ouro Preto, com estudantes do 7º ano com o mesmo percurso metodológico e
quantidade de encontros, em parceria com a professora Olga Penna. As atividades na E.M.
Prof. Adhalmir Santos Maia também seguiram essa proposta de três dispositivos durante seis
encontros no primeiro semestre do ano. No total foram produzidos 7 filmes-carta durante essa
primeira fase.
No segundo semestre, a Escola Municipal Monsenhor João Castilho Barbosa, também
de Ouro Preto, passa a ser atendida, seguindo a mesma estrutura entre os meses de agosto e
novembro, incluindo o roteiro sensorial, com uma turma do 9º ano. Paralelamente, as
60

atividades na E.M. Prof. Adhalmir Santos Maia foram retomadas, com uma reflexão sobre as
etapas desenvolvidas na primeira metade do ano e o primeiro exercício da segunda fase do
projeto nessa escola, com a aplicação da metodologia Cartografia dos Sonhos. Essa proposta
tinha como objetivo produzir mapas que registrassem os sonhos dos estudantes. “Sonhos para
a cidade, o bairro, as escolas, e para eles/as mesmos.”(MEDRADO, 2018, p. 119) A partir da
cartografia, puderam construir colagens que representassem um sonho dentro desses
mapeados.
Em outubro mais um grupo surgia, a Turma Circuitos Museológicos, da FAOP.
Iniciando os trabalhos dessa vez com uma caminhada fotográfica, depois desse exercício
seguiram o planejamento com a realização de cartões-postais e o Minuto Lumière. Enquanto
isso, a turma da Cartografia dos Sonhos seguia com sua criação e fazia registros fotográficos
das colagens, além de momentos de reflexão do trabalho já realizado anteriormente. As fotos
produzidas seguiram para edição, também realizada pelos estudantes.
Em novembro foi produzido e exibido o filme-carta realizado pela turma da E. M.
Monsenhor João Castilho Barbosa. Além dessa intervenção, a grafiteira Iolanda Leiko foi
convidada para deixar sua arte na escola no mês seguinte, após a turma endereçar o filme
“EMMCB Grafitte” para a própria escola pedindo autorização para realizar esse grafite em
alguma parede do espaço escolar, trazendo uma reflexão sobre a arte de rua. Nessa escola as
atividades aconteceram em parceria com o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à
Docência (PIBID) do departamento de História da UFOP.
Na E.M. Prof. Adhalmir Santos Maia, os estudantes experimentaram produzir um
abecedário, exercício que consistia em “pedir uma definição imediata a algumas palavras
escolhidas. Palavras que estão presentes desde os primeiros dias de oficina. Palavras que
foram trabalhadas em seu aspecto verbal e não verbal.” (PROGRAMA SENTIDOS
URBANOS, 2017b) Palavras como sonho, vídeo, patrimônio, escola, bairro, família, amigos,
amor e o impossível foram conceituadas pelos estudantes, registradas e montadas em vídeo.
A turma da FAOP finalizava suas práticas em dezembro, com a realização e exibição
do filme-carta produzido como um convite para a mostra de encerramento das atividades da
Fundação, contando com a participação de outras turmas, de diferentes oficinas. Enquanto
isso, no outro grupo, as imagens editadas das colagens se tornaram lambe-lambes para serem
colados na parede da escola. O ciclo de atividades da E.M. Prof. Adhalmir Santos Maia se
encerrava com esse momento de intervenção no espaço escolar, além da exibição do
Dicionário Afetivo #1, produto do exercício de abecedário.
61

Fora dos espaços escolares, o projeto também atuou no Festival de Inverno de Ouro
Preto e Mariana - Fórum das Artes e no Simpósio Internacional de Artes Urbanidades e
Sustentabilidade - SIAUS 2017, em São João Del Rei. Nesse momento o projeto atingiu, no
total, 20 grupos – seja em atividades pontuais, continuadas, imersões, festivais e eventos ou
os, trabalhos nas escolas. Alcançou-se mais de 300 crianças e jovens. Pelo trabalho realizado
nesse ano, a iniciativa recebeu o 3º lugar no 6º Prêmio AMAERJ Patrícia Acioli de Direitos
Humanos na categoria Práticas Humanísticas (OLHARES (IM)POSSÍVEIS, 2019).
Em julho de 2018, a Olhares (Im)possíveis iniciou seus trabalhos na Escola Estadual
de Ouro Preto (Polivalente) dentro do espaço da Oficina de Mídias e Novas tecnologias,
oferecida pela professora Olga Penna, com estudantes do Ensino Fundamental 2, do período
integral. Na E.M. Monsenhor João Castilho Barbosa o projeto retornava integrando as
atividades do Programa Municipal de Educação e Patrimônio Ouro Preto, o Meu Lugar! e
atendendo, desta vez, uma turma do 5º ano, seguindo o mesmo percurso metodológico-base.
Nesse mesmo mês foi realizada uma intervenção em Mariana durante o Festival de
Inverno de Ouro Preto e Mariana - Fórum das Artes, em parceria com o Coletivo MICA
entre os dias 9 e 13. O público foi composto por estudantes da Escola Estadual de Ensino
Médio Cabanas, que já era uma parceira do MICA, e a metodologia aplicada contou também
com o dispositivo Escrever Sonhos na Cidade, um adendo à Cartografia dos Sonhos, que
propunha a escrita literal dos sonhos dos adolescentes com giz nas ruas do bairro. Além disso,
foi desenvolvida intervenção no espaço escolar com a colagem de lambe-lambes. Também
foram produzidos dois filmes-carta.
No mês de agosto, mais uma turma surgia, desta vez na Associação Comunitária do
Bairro São Cristóvão (Veloso), em Ouro Preto. Com um grupo de crianças e adolescentes, a
iniciativa aconteceu a partir de uma parceria do Sentidos Urbanos, com equipes do curso de
Conservação e Restauro do IFMG e do curso de Arquitetura da UFOP. As atividades na
associação de bairro e na E.M. Monsenhor João Castilho Barbosa duraram até o mês de
setembro, resultando em oito filmes-carta produzidos a partir dos dispositivos básicos
propostos. No Veloso, a produção audiovisual continuou sendo fomentada pelo Sentidos
Urbanos, com o projeto Registro Audiovisual das Memórias do Bairro São Cristóvão/Veloso
que tinha como objetivo realizar entrevistas com idosos do bairro e registrar seus
testemunhos.
Em outubro a Olhares (Im)possíveis chegava em um distrito de Ouro Preto chamado
Santo Antônio do Leite, na turma do 5º ano da Escola Municipal Doutor Pedrosa. O processo
com esse grupo durou até o mês de novembro e também culminou na exibição dos filmes-
62

carta e impressão dos cartões-postais. Além disso, em novembro foi realizada uma imersão na
cidade de Serro (MG) intitulada Olhares (Im)Possíveis: Serro, Minha cidade, Meu cartão
postal, em conjunto com o projeto chamado Oficinas de salvaguarda do patrimônio cultural
imaterial do Modo Artesanal de Fazer Queijo Minas e material do Conjunto Arquitetônico e
Urbanístico Tombado de Serro/MG, que incluiu oficinas de produção audiovisual, cartões-
postais e formação de professores.
As oficinas da Olhares em Serro se desenrolaram ao longo de quatro dias e
envolveram seis turmas entre oficinas de fotografia e audiovisual, com estudantes do ensino
fundamental e médio da Escola Estadual Ministro Edmundo Lins. A iniciativa mobilizou,
além do IPHAN – o Programa Sentidos Urbanos e a UFOP –, as secretarias municipais de
Educação e Cultura, o Conselho de Cultura e Patrimônio, e o Museu Casa dos Ottoni.
Dentre as experiências de 2018 do projeto, destaco a realizada no Polivalente. A
sequência de oficinas de vídeo foi a primeira parte do desenvolvimento da pesquisa
Intervenção audiovisual e processos subjetivos na escola: estéticas hegemônicas e periféricas
de Ouro Preto (título provisório), de Arthur Medrado, desta vez no Doutorado do Programa
de Pós-graduação em Cinema e Audiovisual (PPGCINE), orientado por Cezar Migliorin.
Mais extensa do que as outras ações contínuas, no total foram realizados 20 encontros até o
mês de dezembro, cada um com duas horas e meia de duração, que culminaram na produção
de dois filmes-carta: Benedita e Entre_vistas.
O primeiro é um filme de terror que trata dos temas relacionados ao bullying e ao
racismo, e o segundo é um documentário experimental com entrevistas sobre a relação dos
estudantes com o bairro em que moram e as melhorias que desejam para esse espaço. A
presença violenta da polícia aparece como um eixo central na experiência dos jovens negros
com o Bairro Pocinho, e também é algo que gostariam que mudasse.
Ao refletir sobre a jornada de produção com a turma do Polivalente, mais
especificamente sobre o filme Benedita, Medrado (2020) aponta a possibilidade de um
“aquilombamento com o cinema na escola pública”, propondo a “a assimilação de quilombos
a partir da possibilidade de protagonizar, desenvolver e estabelecer lógicas de trocas em
outras esferas, como a educação e o autocuidado em seus processos subjetivos.” A partir do
alinhavo de perspectivas de cinemas periféricos, negros, decoloniais e comunitários, ele
enxerga no processo de produção de Benedita um espaço de construção de comunidade e, por
meio da invenção da história, a possibilidade de elaboração de traumas e cura de feridas
coloniais que atravessam corpos e gerações.
63

Medrado traz ainda a influência da The Black School em confluência com as ideias do
Inventar com a Diferença. The Black School é “uma escola de arte experimental que ensina
arte e ‘história negra radical’”, e que possui, como direcionamento, a ideia da arte como meio
de propor “alternativas radicais aos sistemas de injustiça atuais” (THE BLACK SCHOOL,
[s.d.]). Além disso, essa escola desenvolveu um baralho de processos, com proposições para
auxiliar na realização de uma obra de arte, que foi acessado durante o processo de produção
dos filmes-carta. Os passos propostos no baralho para construção de uma obra são escolher 1)
princípios, 2) questões, 3) táticas, 4) meios e 5) formas. Além das indicações da The Black
School, para criar o filme Benedita foi escolhido também um destinatário, por se tratar de um
filme-carta. Seu princípio foi o amor-próprio e a própria escola foi sua destinatária.
Em 2019, a Olhares (Im)possíveis iniciou suas atividades em junho, com a ida de
estudantes da E.E. de Ouro Preto para uma sessão de cinema na programação da Mostra de
Cinema de Ouro Preto - CineOP. Além disso o filme Benedita foi apresentado no Fórum de
Cinema e Educação da Rede Kino, articulado a uma fala de Arthur e Olga sobre os processos
de realização do filme e reflexões sobre a prática do cinema na escola. Estive nessa
apresentação e anotei a seguinte frase, que encontrei em meu bloco de notas enquanto
pesquisava em 2020: “O filme organiza um saber, mas está para além do vídeo em si”. Esses
dizeres ecoaram nas minhas reflexões e influenciaram as escolhas que precisei fazer quando
abracei essa pesquisa, por dizer exatamente do “algo mais” que despertou o meu interesse em
mergulhar nas potências do audiovisual. O que estava sendo conversado ali não era só sobre
capacidades técnicas, mas sobre capacidades sensíveis.
A Olhares (Im)possíveis finalizou sua jornada dentro do Programa Sentidos Urbanos
com a realização de uma oficina de quatro dias no Festival de Inverno de Ouro Preto e
Mariana em parceria com o Coletivo MICA no Polivalente. Durante essa oficina, foram
realizados registros do entorno da escola e os mapas afetivos se uniram ao trabalho da artista
Lygia Clark chamado Caminhando para criar o dispositivo mapa-caminhando. Nessa
proposta, os estudantes, assim como na obra de referência, cortam uma fita de
Moebius/Möbius. Essa fita é constituída de uma dobra de material, no caso da Olhares, papel,
que contém uma meia espiral e a junção das pontas, o que confere uma superfície contínua.
Nas fitas da Olhares (Im)possíveis estão desenhados os mapas afetivos do caminho que fazem
para a escola e, enquanto os jovens narram a caminhada e cortam suas fitas, uma câmera
acompanha seus movimentos, produzindo uma série de vídeos.
Em agosto de 2019 nasceu o Grupo de Cinema para Cuidar da Horta, com atuação no
Polivalente, em parceria com o Coletivo MICA. O grupo nasceu da turma de estudantes que já
64

era atendida pelo projeto e sinalizou a vontade de continuar desenvolvendo as atividades.


Como parte da equipe, além do coordenador e discentes, constavam a psicanalista Olga (que
havia trabalhado na escola anteriormente), Thamira Bastos (integrante também do Coletivo
MICA), Raquel Salazar (que também está na Olhares desde suas primeiras atividades), a
direção da escola e a pesquisadora Glauciene Gonçalves, que estava realizando seu Trabalho
de Conclusão de Curso em Jornalismo pela UFOP, produzindo um documentário sobre o
projeto.
A partir desse momento, o percurso metodológico não estaria mais centrado na
realização de oficinas, mas atravessado pela demanda do cuidado com a horta, pensada pelos
próprios estudantes. Nas palavras de Medrado, “a autonomia das/os envolvidos foi
radicalizada [...] quando abandonamos a ideia de oficinas e as posições preestabelecidas entre
educador/a e estudante para a criação de um grupo de cinema” (MEDRADO, 2020). A partir
desse momento foi proposta uma dissolução da hierarquia escolar para a construção de uma
comunidade que aliasse os trabalhos à horta e à realização audiovisual.
O cuidado aparece explicitamente na relação com o espaço físico da horta, mas
carrega a noção de cinema de grupo como prática de cuidado em sua perspectiva, centrada no
“cuidado não como um atendimento a partir da dor ou da falta, mas como uma
potencialização das formas de ser” (MIGLIORIN; RESENDE; CID; MEDRADO, 2020, p.
160) O fazer cinema emerge como cuidado que desterritorializa para reterritorializar, que cria
espaços de escuta e encara a saúde como potência de criação, relacionada “à forma como cada
sujeito se conecta com o outro, com a diferença, com as possibilidades de vida e afeto que ele
inventa para si e para o grupo” (idem).
Assim como na noção de aquilombamento trazida anteriormente, essa ideia de prática
de cuidado se refere a uma sociabilidade que tem sua força na coletividade. Reside nessa
iniciativa uma forma de vivenciar o audiovisual para além dele mesmo, em suas
potencialidades de coletividade e ressignificação, além de exemplificar as possibilidades que
surgem durante o processo educomunicativo quando a capacidade de agenciamento dos
estudantes é incentivada.
Foram realizados 15 encontros ao longo desse processo do grupo de cinema e, entre
cuidar da horta escolar e produzir registros fotográficos e audiovisuais, a filmagem do
documentário Plantando Memórias atravessou as reuniões do grupo. Foram realizadas
entrevistas com os participantes, Arthur e a equipe da escola para construção do filme, que
discute a relação dos jovens ouropretanos com sua própria cidade, por meio de reflexões sobre
a experiência com a Olhares (Im)possíveis e o cuidado com a horta escolar, inclusive
65

apontando que o início da formação dessa horta se deu em função do trabalho de moradores
do entorno da escola.
Estive presente em dois encontros durante esse processo – o 12º e o 13º. Registrei
minhas reflexões nas duas ocasiões, que ainda não se configuravam como parte da observação
oficial da pesquisa, mas apenas os primeiros momentos de contato com o grupo (APÊNDICE
A), antes mesmo de decidir se observaria apenas a Olhares. Considero importante
compartilhar esses apontamentos porque neles já estão expressos gestos e falas significativos,
como quando Arthur me diz que “quando o mestre sai é que o saber se dá”, em resposta a um
comentário que faço sobre os adolescentes se sentirem à vontade até para utilizar seu
notebook nos momentos em que ele não está na sala. Ou quando ele questiona um estudante:
“e assistir já não é alguma coisa?” ao ouvir, do garoto, uma constatação singular: “a gente não
fez nada, só assistiu”. Essas faíscas de diálogo simbolizam elementos de uma maneira de
experienciar a educação audiovisual que deseja criar espaços de questionamento e subversão
por meio de sua prática.
No penúltimo encontro do ano, o grupo fez uma viagem a Belo Horizonte para exibir
o filme entre_vistas no 25º forumdoc.bh - Festival do Filme Etnográfico e Documentário de
Belo Horizonte. Além da exibição houve uma conversa com os realizadores presentes sobre
suas produções. Apesar de tímidos em um primeiro momento, os adolescentes tomaram o
microfone e falaram sobre o filme exibido, assim como a iniciativa do cuidado com a horta, o
que pude ver pelos vídeos que recebi pelo whatsapp depois. Relembro ainda, aqui, da fala de
Arthur, que sintetiza o que há de cuidado na concepção do que se propõem a fazer: “Não só o
cuidado com a horta, mas o cuidado com nós mesmos, com as nossas histórias de vida, com
tudo o que a gente leva pra todos esses encontros que a gente faz lá, nas bordas e nas margens
dessa cidade colonial.”
Na finalização dos trabalhos do ano, no último encontro, o grupo conversou sobre o
trabalho realizado e sobre a exibição do filme em Belo Horizonte, além de gravar o áudio
necessário para produzir os postais narrados – outro desdobramento pensado a partir do
dispositivo cartão-postal. Nessas narrações, os estudantes falam basicamente sobre o que os
levaram a escolher tais locais para o registro e localizam espacialmente as fotos tiradas. Ao
final do ano de 2019 eu já havia decidido que observaria as atividades da Olhares
(Im)possíveis durante o ano seguinte para desenvolver minha pesquisa, e que o trabalho do
cuidado com a horta guiaria as reflexões. Porém, logo no início do ano de 2020 a pandemia de
COVID-19 mudou todas as rotas imaginadas.
66

2.3 A pandemia e um novo cenário


Como ao longo do ano de 2020 não foi possível utilizar o espaço da escola e realizar
atividades presenciais da Olhares (Im)possíveis, a comunicação ficou restrita às redes sociais
e chamadas de vídeo pelo Zoom. Entrei no grupo do whatsapp do projeto no dia 1º de abril e,
desde então, recebi ali mensagens incentivando os adolescentes a produzir fotos e vídeos com
cenas do cotidiano. A orientação era a de que postassem as imagens produzidas no grupo.
Outras vezes Arthur apenas perguntava como estavam, pedia notícias – principalmente no que
dizia respeito à adaptação para o ensino remoto. Na maioria das vezes a resposta era que não
estavam conseguindo estudar e fazer os PETs, cadernos de estudos oferecidos pela escola.
De início não cheguei a participar das conversas no grupo, apenas observava, ainda
sem certeza sobre como caminhar com a pesquisa naquele contexto, uma vez que a ideia
inicial era acompanhar as atividades presenciais na escola. Assim como o resto do mundo,
não sabia o que fazer nesse novo panorama sem precedentes, e no primeiro semestre do ano
ainda era incerto se seria possível seguir com os planos iniciais de construir uma pesquisa
fundada na observação da prática, um objetivo traçado por mim que não gostaria de abdicar.
Entre os participantes do grupo da Olhares, alguns se mostraram interessados em
compartilhar os registros e retomar as produções coletivas, por vezes enviando alguns vídeos
e fotos que faziam. Nessa época, descobri que um dos adolescentes possui um canal no
youtube, em uma mensagem que pedia ajuda para desenvolver um banner para sua página
inicial. Algum tempo depois descobri que outros também possuem canais nos quais divulgam
lives e streaming de jogos - em especial Free Fire - assim como outros vídeos.
No dia 9 de junho foi apresentada ao grupo a ideia para um filme que falasse sobre
como as coisas seriam se não houvesse a pandemia. Na proposta, iniciada por um dos
adolescentes, cada um sairia com seu celular (quando e se tivessem que sair de casa) e falaria
sobre o que estariam fazendo se não estivessem em uma situação de pandemia. No mesmo dia
foi realizada uma reunião no Zoom para desenvolver essas ideias. A conversa teve a
participação de Arthur, Olga e quatro adolescentes. A partir de uma conversa inicial sobre as
circunstâncias em que o mundo se encontrava – e como isso afetava cada um ali presente –, a
chamada de vídeo se transformou em um espaço para a troca de experiências importantes.
Falou-se sobre a adaptação ao isolamento, sobre o período de estudo e de trabalho
remotos – e nas maneiras como a novas tecnologias se faziam presentes – , sobre os demais
colegas (no caso dos estudantes), sobre as preocupações que os afetavam. Tudo em meio a
outras histórias contadas. Arthur propôs reflexões sobre o filme a partir do fato de eles/elas
estarem fora da escola. O que isso significava? O que percebiam ser coisas boas ou ruins a
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partir dessa situação? Ideias e possibilidades de contextos eram apresentadas para que todos
pensassem em imagens que pudessem ser produzidas para o filme – e sobre o que significava
falar sobre o ano de 2020.
Na mesma ocasião, Olga contou aos meninos que havia exibido o filme entre_vistas, o
que instigou conversas sobre questões do cenário sócio-político do mundo, a partir das
manifestações do movimento Black Lives Matter que estavam acontecendo nos EUA e
histórias do grupo Anonymous, que foi chamado em algum momento de “hackers do bem”. A
chamada foi se encaminhando para o final com o grupo pensando no que seria possível
alcançar caso conseguissem financiamento para produzir o filme. Falou-se sobre alternativas
de temas e cenas, sobre formas de produzir coletivamente à distância – pensando, aqui,
também em formas de incentivar os outros adolescentes a participarem do processo de
produção. Ao final da conversa, o adolescente que havia proposto o filme revelou que a ideia
do filme sobre o ano de 2020 veio durante uma live de Free Fire.
Dez dias depois, outra conversa foi realizada com Arthur, Thamira, Olga e três dos
adolescentes para tentar delinear melhor a proposta do filme. O objetivo era dialogar para
compreender o que havia de novo naquele momento histórico, os elementos a serem
trabalhados e as possibilidades de filmagens. As duas chamadas de vídeo foram marcadas, em
vários momentos, por imagens travadas, sons desconhecidos, outros assuntos, outras pessoas,
a rotina dos estudantes em suas casas, reflexões sobre si e sobre o mundo ao redor.
Entre mensagens trocadas, o esforço para marcar outras reuniões, o envio de links de
filmes realizados durante o período de isolamento que pudessem servir de inspiração para um
novo projeto possível e a inscrição de um projeto chamado de Um filme de inverno em edital,
existiram algumas tentativas de reorganização do grupo e planejamento da produção coletiva.
Apesar do empenho, não houve, naquele momento, engajamento o suficiente para organizar
essa produção coletiva à distância. Ainda assim, vídeos e fotos foram compartilhados de
forma esporádica, o que, de alguma forma, significava a continuidade dos exercícios do olhar
por parte dos adolescentes e a vontade de dividir essas imagens com o grupo.
Em outubro, em um movimento que considero de revisitação do projeto, foi lançado o
“Dicionário de Afetos #1”, montado em 2020 com imagens de crianças entre 10 e 11 anos do
Bairro Pocinho, em Ouro Preto, e suas definições para 13 palavras: Amigos/as, Bairro,
Brincadeira, Caminho, Criança, Escola, Família, Impossível, Patrimônio, Professor/a, Sonho,
Vídeo e Vontade. Foram creditados Arthur e as crianças envolvidas, assim como Raquel
Salazar e André Nascimento, que acompanhavam as atividades do projeto na época em que
foram registradas as imagens, em 2017.
68

No dia 4 de dezembro, recebi uma mensagem de Arthur perguntando se eu me


interessava em ingressar no grupo, desta vez para participar do desenvolvimento de um filme
sobre o ano de 2020. Contemplada por edital da Lei Aldir Blanc, a Olhares poderia
disponibilizar câmeras e, se necessário, acesso à internet para os estudantes que se
interessassem a realizar a produção à distância entre os meses de janeiro e fevereiro. No dia
30, veio a confirmação da viabilidade financeira desse projeto. E o ano se encerrou com a
indicação de que, nos primeiros dias do ano seguinte, teria início o processo dessa nova fase.
Nesse momento, percebi que o processo de produção desse filme seria o fio condutor
das minhas observações e reflexões. Agora, transitando entre a posição de observante e
participante do processo. Batizado de Ano 2020 desde o início, o filme teria, como ponto
inicial, o cotidiano do ano que se passou, o que foi e o que poderia ter sido, a partir da ideia
inicial sugerida. A intenção seria incitar a reflexão sobre o que o ano de 2020 significou na
vida desses jovens, e as imagens que poderiam simbolizar suas vidas cotidianas nesse
período, mas também instigar a imaginação e a possibilidade de fabular sobre o que eles/elas
gostariam de ter vivido – e não puderam.
Com uma proposta que mesclava o documental e o ficcional, alguns questionamentos
foram levantados em relação ao projeto proposto, para instigar as reflexões durante o processo
de produção: “Como é estar longe da escola? Como funcionam as aulas remotas? O
isolamento na periferia é igual ao do centro da cidade?” Essas perguntas permeiam algumas
das reflexões realizadas no ano de 2020 e demandavam respostas importantes para entender o
impacto desse momento nas vidas desses adolescentes. As noções de “dentro de casa” e “fora
da escola” seriam trabalhadas, tensionando também a relação com a cidade e o próprio direito
de estar nela, assim como as situações para além da pandemia, que também impossibilitam o
estar na rua – caso, por exemplo, da violência policial.
O projeto de Ano 2020 foi pensado com três momentos de produção das filmagens: a
realização de oficinas online propondo dispositivos com os estudantes que já participam do
coletivo para registro com seus próprios celulares, a entrega de handycams para registrarem as
imagens que desejam durante o período de 24 horas, e uma diária de filmagem presencial.
Aliada aos adolescentes, estaria a equipe de produção, com a participação de pessoas que já
haviam contribuído em fases anteriores e continuaram como participantes do coletivo, como
Olga, Thamira e Raquel. Além disso, outros colaboradores externos foram chamados para
contribuir com a produção e pós-produção, e serão citados ao longo da descrição.
No início do processo de produção ainda não era possível dizer com certeza se alguma
atividade presencial seria realizada, visto que ainda eram altos os números da pandemia da
69

COVID-19 em Ouro Preto e que havia muitas incertezas sobre a segurança necessária para a
realização dos trabalhos. Porém, algumas sugestões já haviam sido dadas durante a conversa.
Decidiu-se que, se possível, pelo menos um dia seria de encontro presencial, provavelmente
no bairro Pocinho. Com o objetivo de acertar os primeiros passos, foram realizadas reuniões
online com os participantes que demonstraram interesse e disponibilidade, para explicar
pormenores de cunho burocrático – como a questão dos termos de cessão de imagem e da
autorização da família no caso dos menores de idade –, mas também para entender os dias e
horários mais adequados para as atividades síncronas.
A partir dessas conversas também foram pensados elementos estéticos e narrativos que
podem ser aproveitados para a construção do filme, e que simbolizam as vivências cotidianas
dos envolvidos. Assim, algumas situações foram mapeadas. Pensou-se em registrar uma visita
à escola para perceber as mudanças no espaço depois desse ano, em cenas na quadra do bairro
– um espaço importante no cotidiano – ou no centro histórico de Ouro Preto, como
oportunidade para observar a maneira como os museus e centros culturais estão funcionando,
assim como a movimentação de turistas na cidade durante o período de pandemia.
O objetivo era que, durante o desenvolvimento das oficinas online a partir dos
dispositivos propostos, também fosse pensada a construção dos contornos narrativos e
estéticos desejados para o filme. A função dos exercícios seria estimular experimentações
com imagens em movimento e fixas, assim como os sons. Todo esse processo proposto é
essencial para a análise, acompanhando, na prática, os dispositivos de produção e reflexões
subsequentes. Abaixo, seguem os dispositivos prévios presentes no projeto contemplado pelo
edital da Lei Aldir Blanc:
1) um auto-retrato em vídeo.
2) Plano de 1min da janela que o/a participante mais observa.
3) de 3 a 5 fotos capturas/feitas/orientadas pela ideia de desvio.
4) de 3 a 5 fotos capturas/feitas/orientadas pela ideia de distância.
6) de 3 a 5 fotos capturas/feitas/orientadas pela ideia de perto/proximidade.
7) Fotografia da janela para seguir com nossos trabalhos de realização de postais/
postais narrados. A ideia é mostrar que “minha janela é meu cartão postal”.
8) Conversa ao vivo em plataforma digital para “ver juntos” as imagens e delimitação
do roteiro de edição
9) trocas de áudios com relatos sobre as sensações dos/as participantes nesse
momento, a relação com a escola (e as aulas remotas), mas também sons captados para a
construção da paisagem sonora do filme.
70

A ideia do roteiro/argumento seria pensada por todo o grupo, todas as pessoas


envolvidas assistiriam às filmagens e, coletivamente, iriam decidir sobre o que deveria entrar
na montagem. Por questões de otimização de tempo, considerando o prazo curto do edital, o
trabalho da montagem ficou a cargo de uma pessoa só, a montadora Yura Netto, a partir do
roteiro de edição que seria enviado. Para além dos vídeos filmados com as câmeras ou
produzidos a partir dos dispositivos, desde o início o grupo trabalhou com a possibilidade de
utilizar as imagens compartilhadas no grupo de whatsapp, registros antigos do projeto,
capturas de tela para registrar jogos online, navegação em mapas e outras experiências, como
simulação de aplicativos de conversa.
Além disso, para dar o tom do filme, foi produzida uma música para sua trilha sonora
original. O funk “Favela Cartão Postal” é cantado e composto por Hudson, ou MC BS da J,
que estudou no Polivalente e participou da Olhares (Im)possíveis em outros momentos. Ao
abrir a prévia compartilhada no grupo, ouvi seus primeiros versos que cantavam “A minha
favela é meu cartão postal/Tudo dentro dela é cultural/Sente a pressão/Escuta o tambor/ Pega
a visão de um menor sonhador” e escolhi dividir essas linhas porque sintetizam todo um
processo de criação que reflete saberes compartilhados na Olhares (Im)possíveis, da periferia,
dos sonhos e cartões-postais, e que agora ecoam em voz e beat.

2.4 Lampejos avistados em cena


Para articular minhas reflexões nesta pesquisa, escolhi acompanhar e analisar os
encontros da Olhares (Im)possíveis focados na produção do filme Ano 2020 e a repercussão
posterior, desde a primeira reunião em junho de 2020 até novembro de 2021. Além da equipe
de produção, esse processo se iniciou com os estudantes do Polivalente que já faziam parte do
grupo, assim como jovens egressos que quiseram continuar na Olhares. Participei dessa
iniciativa como parte da equipe e pude estar em todas as reuniões e atividades realizadas em
2021, o que me abriu diversos caminhos possíveis a serem seguidos.
Para apresentar esse período com profundidade, optei por trazer para a pesquisa tanto
as reuniões quanto o material audiovisual produzido para o filme em si. Minha análise tem o
propósito de interconectar as diferentes matérias-primas que a realização do filme
proporcionou e por isso não se volta para apenas uma forma de registro, mas busca caminhar
entre os diferentes fragmentos disponíveis do enquadramento que propus observar.
Nas reuniões online pude observar diálogos sobre os dispositivos das oficinas,
decisões sobre o filme, conversas sobre as imagens produzidas com as handycams, assim
como conversas sobre a vida dos participantes, reflexões pessoais e sobre o mundo. Vou me
71

ater às reuniões realizadas antes da diária de gravação presencial - que aconteceu no dia 6 de
junho de 2021 - e esse material corresponde a 16 vídeos, totalizando aproximadamente 20
horas de registro. Selecionei alguns trechos para a análise e minhas anotações sobre cada
reunião estão disponíveis nos apêndices B e C.
Também foram consideradas as conversas no grupo do whatsapp, para compreender a
dinâmica das relações construídas no coletivo e as questões que surgem desses contatos. Além
das trocas, no grupo estão algumas imagens e áudios que acabaram por ser utilizados na
montagem final do filme, e esses elementos serão apontados durante o próximo capítulo.
Assim como os resultados em áudio, foto e vídeo dos dispositivos propostos nas reuniões
online, que também foram aproveitados para a montagem e que, para além disso, foram
essenciais para entender o direcionamento dos olhares dos participantes e o ponto de vista a
ser construído no filme.
Outra fonte de análise são os vídeos gravados com as handycams enviadas para os
participantes entre março e maio de 2021. Essas imagens representam 2 horas e 38 minutos de
registro, e foram realizadas por cinco pessoas que expressaram o desejo em receber a câmera
e estavam participando das oficinas no momento. A diária de gravação presencial
(APÊNDICE D) também aparece na minha observação, da mesma maneira que o processo de
decupagem e construção do roteiro - que em razão dos prazos delimitados foi escrito pela
equipe de produção, incluindo eu. Partimos de alguns eixos recorrentes nas imagens e
reuniões para decidir o que poderia ser colocado das filmagens e reuniões gravadas, levando
em consideração os comentários dos adolescentes que fizeram as filmagens e já haviam
apontado algumas cenas que gostariam de ver no filme. As palavras que nos guiaram para
essa decisão e a aparecem permeadas por entre as imagens foram: cuidado, adolescência,
família, escola e território.
Por fim, olho para o filme Ano 2020 - um curta-metragem de 16 minutos - com o
intuito de pensar sobre o que é apropriado das trocas que acontecem em seu desenvolvimento
e naquilo que é produzido por meio do audiovisual, pensando o meio comunicacional de uma
forma alargada. Quero perceber os vestígios da encruzilhada que podem se fazer presentes
tanto no desenvolvimento quanto no resultado, assim como no que vem depois dele – como
na viagem realizada para a exibição presencial do filme no Festival Internacional de Curtas de
Belo Horizonte (FestCurtasBH), que também aparece em minhas descrições (APÊNDICE D).
Além disso, serão citados outros desdobramentos, caminhos abertos a partir da produção de
Ano 2020 e que já apontam no horizonte para outros futuros projetos.
72

Considero os trabalhos que abordam a Olhares (Im)possíveis (MEDRADO, 2018,


2020; GONÇALVES, 2019) como parte da inspiração para analisar esse material, reflexões
passadas que dizem da relação de quem o escreveu com o coletivo em si e complexificam o
observado, pois emergem como fruto de um processo de elaboração. A partir de minhas
observações, alicerçadas nos conceitos em que se baseia essa pesquisa, conduzo a análise dos
rastros que se apresentam sobre relações estabelecidas com tempo, espaço e a educação
audiovisual em si. O objetivo é olhar pelas brechas dos registros e tentar acessar o processo.
Para tanto, a escolha metodológica feita aponta para esse olhar localizado e focado na
experiência com a alteridade.

2.4.1 Percurso da luz


Com a compreensão do quão complexo é apreender questões que surgem durante o
processo de construção audiovisual coletiva, e a partir da especificidade da matéria-prima
escolhida para a análise da Olhares (Im)possíveis, optei por certos procedimentos
metodológicos que possibilitassem a investigação dos indícios presentes. Busco uma forma de
entender o eu e o Outro da pesquisa acadêmica que não seja a partir do distanciamento, mas
que tenha como ponto de partida o encontro. Desde o início, meu desejo é perceber as
potencialidades exusiásticas que transpassam a prática da Olhares a partir dos encontros e o
que eles possibilitam surgir.
Isso significa também não estabelecer metodologias que restrinjam meu olhar e
impeçam que o observado me observe também, e sim que deixem respingar em mim e na
pesquisa os afetos que o mobilizam, pois esses são tão importantes quanto os dados analíticos
para a perspectiva que defendo ao propor uma mirada a partir da encruzilhada. A análise aqui
proposta é a costura de fragmentos direcionados pelo meu olhar a partir da observação dos
registros disponibilizados, uma atividade que vejo como artesania do não-saber.
Evoco a ideia de escrevivência de Conceição Evaristo (2020) a partir da compreensão
de que essa pesquisa tem sua força na escrita autoral do que é vivenciado, e de que dialogo
com a escrevivência coletiva de outros sujeitos. Esse conceito, em linhas gerais, pretende
abarcar os processos de escrita pautados na vivência dos sujeitos que escrevem e, em sua
concepção, parte da literatura de mulheres negras que constroem obras alicerçadas em
vivências individuais que são compartilhadas por um coletivo.

Escrevivência nunca foi uma mera ação contemplativa, mas um profundo incômodo
com o estado das coisas. É uma escrita que tem, sim, a observação e a absorção da
vida, da existência. Por isso, nunca pensaria a Escrevivência como possibilidade de
73

domínio do mundo. Mas como uma pulsação antiga, que corre em mim por perceber
um mundo esfacelado, desde antes, desde sempre. (EVARISTO, 2020, p. 34-35)

O uso da escrevivência como orientação metodológica foi escolhida em direção a


“uma subversão da produção de conhecimento, pois, além de introduzir uma fissura de caráter
eminentemente artístico na escrita científica” (SOARES; MACHADO, 2017, p. 207), o que se
articula no processo de construção audiovisual da Olhares (Im)possíveis é fruto da vivência de
jovens negros, periféricos e interioranos se posicionando como autores e atores da própria
realidade em uma experiência coletiva. Assim como a força da escrita de Conceição Evaristo
em extrapolar a ideia de autorrepresentação e conversar não apenas a partir de si mesmo, mas
de nós mesmos.
O esforço em refletir sobre os métodos de pesquisa nessa chave de diálogo também
parte do meu desejo de não compactuar com metodologias extrativistas de construção do
conhecimento. Com o objetivo de analisar o que está entre as trocas do coletivo, parto das
técnicas de pesquisa qualitativa ligadas à etnografia, compreendendo a limitação intrínseca a
qualquer tentativa de explicar o mundo e buscando uma utilização que não reforce a relação
sujeito-objeto comumente presente na compreensão do fazer científico.
Decidi pela observação participante, por considerar esse método apropriado para lidar
com o lugar ambíguo de pesquisador e participante em que me encontro no coletivo, mesmo
nos momentos em que a interação “face-a-face” é mediada pelas telas. Esse procedimento
compreende a inserção de quem pesquisa em um grupo social a fim de observar suas relações
de forma aprofundada e, por isso, aposta no que surge da relação entre o cientista e seus
interlocutores. Isabel Travancas (2006) aponta que o sujeito que se utiliza dessa técnica “deve
estar atento ao seu papel no grupo. Deve observar e saber que também está sendo observado e
que o simples fato de estar presente pode alterar a rotina do grupo ou o desenrolar de um
ritual.” (p. 103)
Após as primeiras reuniões do coletivo, percebi a necessidade de me colocar enquanto
experimentador do processo para que a própria experimentação do fazer cinema em grupo me
desse outras informações para olhar. Eu nunca havia participado de uma produção coletiva
dessa duração e proximidade entre o grupo, logo, não possuía o saber que vem de uma
experiência desse tipo. Enquanto parte oberv-ativa dos processos, pude acompanhar de perto,
e de forma mais intensa e detalhada, além de elaborar reflexões sobre meu papel dual nessa
construção coletiva e sobre os atravessamentos possíveis. No início do processo ainda era
uma estranha adentrando no espaço de um coletivo com relações já consolidadas, mas dessa
vez experimentando produzir à distância.
74

Não considero que minha participação no projeto tenha sido um obstáculo para a
realização da pesquisa – pelo contrário, acredito que a proximidade possibilita a observação
de aspectos que poderiam me escapar a uma certa distância. Contudo, compreendo a
necessidade de realizar movimentos concomitantes de aproximação e distanciamento da
realidade para costurar as análises pretendidas. Percebi, nesse percurso, a importância da
aproximação para enxergar os detalhes que o contato proporciona - assim como estabelecer
esse contato -, e o distanciamento para produzir a escrita descritiva que a pesquisa demanda.
Por isso, as estratégias da observação participante e suas reflexões metodológicas foram
importantes para guiar meus registros das reuniões e buscar comprêende-los a partir da
experiência vivida no contexto geral do processo de produção.
Em seus estudos etnográficos, James Clifford (2002) atenta para a dinâmica entre
aquilo que é examinado e a interpretação posterior, sem perder de vista as limitações e
potencialidades da observação participante, uma vez que, vista de forma literal, “a observação
participante é uma fórmula paradoxal e enganosa, mas pode ser considerada seriamente se
reformulada em termos hermenêuticos, como uma dialética entre experiência e interpretação”
(p.33-34). No processo de observação participante, a atenção é dada às falas, aos gestos e aos
comportamentos dos sujeitos envolvidos, aliada ao posterior registro do que é observado de
forma contextualizada.

Se a interpretação antropológica está construindo uma leitura do que acontece, então


divorciá-la do que acontece – do que, nessa ocasião ou naquele lugar, pessoas
específicas dizem, o que elas fazem, o que é feito a elas, a partir de todo o vasto
negócio do mundo – é divorciá-la das suas aplicações e torná-la vazia. (GEERTZ,
2008, p. 13)

Ou seja, é necessária a compreensão dos sentidos a partir do que significam no


contexto específico em que se apresentam. A observação das interações e a posterior anotação
produzida é a ideia de “descrição densa” trazida aqui pela leitura de Geertz (2008). O autor
caracteriza a descrição etnográfica como interpretativa do “fluxo do discurso social” (p.15).
Sua interpretação é a tentativa de fixar os “ditos” de um discurso em “formas pesquisáveis”,
colhê-las da corrente das trocas sociais e examiná-las a partir do método proposto. Geertz
observa, ainda, que a descrição etnográfica é microscópica porque, mesmo quando trata de
grandes temas ou estruturas da sociedade, faz isso a partir de uma observação localizada de
fenômenos e de grupos específicos, sempre a partir das suas próprias dinâmicas.
A descrição densa traduz um processo de interpretação que tem por finalidade
alcançar as estruturas significantes que envolvem e atravessam os pequenos gestos a partir
destes gestos. Esse processo de interpretar o movimento pelos sentidos que eles possuem
75

dentro de determinado contexto interacional parte de uma perspectiva que entende a


antropologia como ciência interpretativa, mais do que descritiva. Essa visão compreende que
qualquer análise sobre a cultura não pode se fiar na concepção de que é possível fazê-la a
partir de métodos lógicos e formais, como ocorre no âmbito das ciências exatas.
Por isso há, aqui, também o sentido de uma construção lacunar e contextual, que pode
abrir espaço para o pesquisador se colocar e falar com os sujeitos pesquisados, e não apenas
dos sujeitos, uma vez que também existe como variável na equação. Apesar disso, sigo ciente
de que a participação observante e as interpretações decorrentes desse processo não me
colocam na posição de “porta-voz” dos membros da Olhares (Im)possíveis, e que minha
perspectiva em si é uma fabulação, uma criação a partir do encontro entre minhas referências
e os fatos observados, a partir do que o contexto me diz.
As análises não utilizam o nome verdadeiro dos adolescentes envolvidos, e por vezes
não indicam ao certo quem disse o quê, porque a intenção não é individualizar as percepções e
frases ditas, mas apresentá-las como fruto do contato entre os sujeitos presentes. Os nomes
fictícios são em sua maioria inspirados em diferentes mitologias, porque quando pedi para que
os adolescentes escolhessem seus pseudônimos, dois deles indicaram personagens da
mitologia grega. Eu disse então que quem não selecionasse como queria ser chamado
receberia um nome vindo de alguma mitologia, e eles acharam uma boa ideia.
Com as ferramentas da escrevivência construí um recorte de mundo baseado na
realidade compartilhada ao longo de quase dois anos de contato com a Olhares (Im)possíveis.
Os aspectos verbais, visuais e gestuais observados nas interações do coletivo aparecem como
substratos do que proponho como análise sensível dos rastros, com a compreensão de que o
enquadramento deve mobilizar matrizes interpretativas condizentes com os sentidos que
envolvem o quadro de análise. Por isso, levo em conta tanto o que acontece no campo quanto
no extra-campo das situações comunicativas observadas. O campo, aqui, é o conteúdo
expresso pelos sujeitos durante as interações e as mensagens trocadas. Já o extra-campo é
aquilo que escapa do recorte daquela situação em específico, mas auxilia a conformar as
relações enquadradas.
Ao fazer a escolha de concentrar a análise nos processos da educação audiovisual, e
não em seus resultados técnicos, reverbero uma ideia intimamente ligada ao próprio trabalho
da Olhares (Im)possíveis, uma vez que na concepção de Medrado (2018), é primordial
“advogar pela importância do processo (e não mais do produto), já que são nas etapas da
produção, do pensamento e da ação, que podemos encontrar os valores do processo enquanto
ferramenta para a aprendizagem” (p. 34). Isso significa que, mesmo quando a análise ressaltar
76

o filme produzido, meu olhar se volta para as imagens com o objetivo de perceber o que foi
assimilado e reinterpretado ao longo dos processos.
A parte de análise audiovisual que se atenta ao filme Ano 2020 busca costurar os
sentidos interpretados em relação aos encontros do projeto e às interações do grupo. Parto da
compreensão de que “a etnografia em grande parte tem a ver com a interpretação de
imagens”, e por isso ela deve levar em consideração os “contextos retóricos nos quais elas
estão embutidas” (STRECKER, 1997 apud PINK, 2001, p. 24), ou seja, a intenção é
compreender as imagens, sons e mensagens verbais para além do próprio vídeo, para
descobrir o que revelam das interações do grupo e o processo de significação dos elementos
presentes no filme.
Compreendo que os dispositivos de produção audiovisual atravessam o real e por ele
são atravessados, logo, dizem de uma realidade material e de uma realidade criada a partir do
contato com a câmera e o sujeito-da-câmera. Por isso, me interessa refletir sobre os recortes
da vida cotidiana escolhidos para aparecer nas produções, e quero observar tanto o trabalho
dos adolescentes por trás das câmeras, quanto na frente delas. As temáticas abordadas
refletem um processo maior desenvolvido ao longo do projeto e sintetizam etapas de
elaboração. E as cenas em que os sujeitos aparecem refletem tanto o momento de produção e
a performance frente às câmeras, quanto as relações com as outras pessoas envolvidas e os
afetos mobilizados.
A opção pela análise dos lampejos que aparecem no processo de educação audiovisual
é um caminho articulado com o pensamento de encruzilhada, que aponta para o que há entre
os pontos – neste caso, o processo que há entre os sujeitos e suas imagens criadas. Colocando-
a em diálogo com a metodologia etnográfica que se propõe observar os detalhes, “a
perspectiva analítica lançada pelo conceito de encruzilhadas me possibilita escarafunchar as
frestas, esquinas, dobras, interstícios, cantar as impurezas, a desordem e o caos próprios das
estripulias-efeitos elegbarianos.” (RUFINO, 2019, p. 18) Viver a encruzilhada como
direcionamento político, epistemológico e analítico é não se restringir a fazer perguntas com
respostas binárias, mas abraçar como algo fértil a impossibilidade de construir universalidades
e olhar para as miudezas por entre as brechas, a fim de entender o que acontece.
77

CAPÍTULO 3 – ENTRECRUZAMENTOS E ABERTURAS

Para realizar as costuras analíticas propostas, recorro ao material descrito


anteriormente, enquadrado pelas minhas observações e algumas falas pinçadas das reuniões
online e encontros presenciais. Essas informações estão condensadas nos apêndices B, C e D,
serão apontadas aqui em diálogo com o filme Ano 2020 e outras imagens feitas pelos
participantes durante o período de produção. Proponho quatro eixos para apresentar minhas
reflexões e todos tratam de perspectivas relacionais: 1) relações de ensino-aprendizagem e
processos comunicativos dentro do coletivo; 2) relações entre os adolescentes e os espaços
que habitam; 3) relações entre os adolescentes e suas subjetividades; e 4) relações que
percebo entre as potencialidades da encruzilhada e o processo que observei.

3.1 Relações educomunicativas


As etapas de educação audiovisual que pude observar ao longo do processo de Ano
2020, entre os meses de janeiro e junho de 2021, podem ser resumidas em: laboratório de
experimentação com celulares e apreciação conjunta dos vídeos, áudios e fotos enviados;
conversa sobre o vídeo realizado pela vice-diretora do Polivalente com imagens da escola;
filmagem com as câmeras recebidas em casa e crítica de alguns desses vídeos; crítica de um
corte do filme; e diária de gravação do clipe com presença da equipe e profissionais externos.
Atenho-me principalmente a esse processo.
Depois disso, a versão do filme com o clipe também foi assistida e criticada para que
fosse finalizada pela equipe de montagem e som, e a versão final também foi assistida por
todos. O coletivo voltou a ter reuniões apenas em setembro, para pensar em uma sinopse em
conjunto. pois Ano 2020 havia sido selecionado para exibição no 25º forumdoc.bh. O final do
período que selecionei é demarcado pelo encontro presencial de realização do clipe, momento
de encerramento da produção. Para além desse recorte, destaco apenas a exibição presencial
do filme no 23º Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (FestCurtasBH) porque foi
outra oportunidade de assisti-lo depois de alguns meses, dessa vez juntos na mesma sala de
cinema.
A partir de ideias atreladas à educação audiovisual que puderam ser acessadas na
prática da Olhares (Im)possíveis, selecionei os conceitos que guiaram as reflexões dessa parte
da análise, assim como apontado no primeiro capítulo: autonomia criativa, caos criador,
comunidade, e cuidado. Cada concepção dessas auxiliou a ressaltar diferentes pontos da
jornada e organizam as interpretações decorrentes da minha observação e participação nesse
78

processo. A partir desse momento, vou fazer uma distinção entre adultos e
adolescentes/jovens quando me referir respectivamente à equipe de produção –
principalmente nas figuras de Arthur Medrado, Thamira Bastos, Raquel Salazar, Olga Penna e
eu – e aos participantes do coletivo que são estudantes ou egressos do Polivalente. Essa
categorização é pensada para facilitar a descrição de alguns momentos e comentar os papéis
desempenhados no processo de produção, assim como a dinâmica das relações.
Autonomia criativa. Desde a primeira reunião, em 6 de junho de 2020, Arthur propôs
uma dinâmica de funcionamento em que as decisões seriam tomadas por todas as pessoas
envolvidas e que os adolescentes iriam decidir o que o filme seria, os assuntos tratados e
formatos desenvolvidos. Também tentou distribuir a responsabilidade de organizar as
reuniões para que não ficasse centralizado nele ou nos outros adultos o papel de chamar os
adolescentes para participar, assim como decidir os dias e horários para os encontros. Porém,
antes do início da produção de fato, em 2021, não havia uma resposta positiva explícita por
parte dos adolescentes para que também fossem responsáveis por manter o interesse e a
produção acontecendo.
Uma das dificuldades presentes para realização dos laboratórios de experimentação
com os dispositivos foi garantir a presença nas chamadas de vídeo, e, mesmo quando os
adolescentes confirmavam, alguns não apareciam. Mais de uma reunião foi remarcada e, em
alguns momentos, a falta de internet ou conexão ruim eram questões para a ausência ou
dificuldade em participar da reunião.
Foi importante que se levasse em consideração as diferentes possibilidades de estar no
projeto, uma vez que esse processo não contava com espaço e tempo definidos pela
materialidade da escola para acontecer. Assim como já era feito, não havia a obrigatoriedade
de participar de todos os encontros para se considerar parte do processo, mas, no caso de Ano
2020, o fato de ser apoiado por um edital colocava a entrega do filme como uma meta
concreta a ser cumprida. E, se não houvesse a participação dos adolescentes, não iria
acontecer.
Nas primeiras reuniões de 2021, o grupo se reuniu em três horários diferentes durante
os dias 5 e 6 de janeiro. Assim como todas as outras que viriam em sequência, estive presente
e pude perceber que a equipe – principalmente Arthur, na figura de coordenador –
desempenharia mais um papel de mediação do que de delegação de funções. Ao contrário dos
outros anos, em que o fluxo de produção não era determinado pelo resultado, dessa vez seria
necessário pensar as etapas com o filme em mente, e os adultos da equipe teriam a
preocupação de manter esse fluxo funcionando.
79

Arthur: E a nossa função aqui dos ‘professores’, muitas aspas pra essa palavra, é de
fato tentar guiar vocês pra fazer no final ter um filme. E vocês sabem que no final
vai ter, que no final dá certo. Só que a gente precisa que vocês façam.

Essa fala, da reunião do dia 18 de fevereiro de 2021, aparece no contexto de uma


tomada de posição para lidar com o imperativo do tempo de produção demarcado e com a
tentativa de ajudar a construir uma autonomia responsável por parte dos adolescentes. Com a
compreensão de que o objetivo é fazer o filme, Arthur também diz que ele será feito com
quem quiser fazê-lo e, independentemente de ali estarem muitos ou poucos estudantes, o
processo seria centrado na produção deles, colocando a equipe de “professores” como
auxiliares nesse processo.
O uso da palavra professor aparece na fala da equipe em outros momentos, mas
expondo uma perspectiva que nós, os adultos, não estamos em uma posição vertical de
transmissão de conhecimento. No último encontro on-line antes da diária, as conversas foram
permeadas por reflexões sobre o processo coletivo desenvolvido durante a produção, e Raquel
Salazar disse:

Tem uma coisa que a gente tem aprendido muito com vocês, é que vocês tem muita
coisa pra ensinar pra gente também, sabe? Por mais que a gente seja “professores”
[ela faz aspas com os dedos] aqui, né? A gente não é exatamente professores de
vocês, mas a gente acredita que esse espaço, que esse grupo é um lugar de troca, que
vocês aprendem com a gente e que a gente aprende muitas coisas com vocês
também, entendeu?

Trago essas duas falas para comentar sobre autonomia criativa porque elas se
apresentam em momentos distantes mas simbolizam um contexto educomunicativo que busca
valorizar a potência de criação dos adolescentes, e não colocá-los em uma posição de quem
está ali para aprender com quem sabe mais. As decisões tomadas em coletivo são o que
movem a continuação da Olhares e, no caso do filme Ano 2020, foi a partir da proposição de
um estudante que o novo rumo do grupo foi decidido. Assim, os educadores apareceram nesse
projeto para indicar estratégias que exercitassem a prática e a reflexão.
Nesse processo de produção a ideia de cinema de grupo (MIGLIORIN; RESENDE;
CID; MEDRADO, 2020) de criação coletiva descentralizada e de compartilhamento se
mistura com as práticas da educação audiovisual popular (TOLEDO, 2010). As atividades se
iniciaram com oficinas de experimentação audiovisual e possuem sujeitos que atuam como
guias para seu desenvolvimento, mediando as etapas de produção com o objetivo de fazer um
filme, mas preocupados com o que se partilha em grupo. Isso fica evidente nos momentos em
que a equipe reafirma que sua posição de professor está sempre entre aspas.
80

De fato, em diversos momentos nós, considerados professores, aprendemos com os


adolescentes, seja sobre aplicativos de edição que nunca tínhamos ouvido falar, sobre a Ouro
Preto que eles conhecem, sobre ser adolescente em um contexto de pandemia. Foram várias as
ignorâncias compartilhadas (MIGLIORIN, 2014). Contudo, a autonomia é algo a ser
construído. E ela se faz a contrapelo do que é comum na educação bancária (FREIRE, 1970),
que é a passividade do sujeito estudante no processo de aprendizagem. Logo, pensando na
produção audiovisual em si, para o grupo se desvencilhar do entendimento de que devem
fazer o que é dito pelas figuras de autoridade, é necessário um ambiente que busque incentivar
a liberdade criativa, o que por diversas vezes significa também compartilhar
responsabilidades e incentivar a tomada de decisões.
Isso simboliza instituir uma organização e funcionamento próprios da lógica de
produção de filmes, e contrasta com o que é apreendido na dinâmica de aulas expositivas
(JUNQUEIRA FILHO; BARBOSA, 2014), que centraliza a responsabilidade no professor e
não busca delegar funções que apresentem possibilidades para valorização de diferentes
capacidades e pontos de vista. Para construir autonomia é necessário fazer o esforço de
integrar.
Em um momento que explicava a importância que via na etapa das oficinas para a
realização do filme, na reunião do dia 8 de fevereiro de 2021, Arthur expressou que acreditava
que ter o momento de se encontrar e ver as imagens iria ajudar a pensar as coisas juntos
também, uma vez que os adolescentes não iriam participar da pós-produção dessa vez. “Não é
que a gente vai direcionar o que vocês vão ter que filmar exatamente, mas pra gente entender
o que vai entrar nesse filme.” Ou seja, elaborar uma pré-produção centrada nesse
compartilhamento de ideias para, depois das filmagens, conseguir usar as conversas de guia
para a montagem do roteiro por parte da equipe de produção. No dia 18 ele também falou
disso:

Por isso que a gente tá fazendo essas oficinas e vai mandar a câmera. É muito
melhor ter mais material e a gente selecionar muito bem o que que vai entrar e tudo
ficar muito casadinho, pro filme ter um ritmo legal, sabe? E um ritmo legal é a gente
que vai determinar. Às vezes é lento, às vezes é muito rápido. Às vezes vai ter
variável, vai começar um tempo, vai ser bem lento, vai ter sei lá, um Minuto
Lumière inteiro ou 2 minutos até da mesma cena depois vai entrar um monte de cena
rápido.

Em 15 de março, a reunião foi pautada em grande parte sobre as câmeras que seriam
enviadas e o que poderia ser filmado. Arthur, então, explicou que haveria algumas instruções,
mas que não seria exatamente “mandando o que fazer”. Exemplificou que poderia ser pedido
81

um Minuto Lumière ou gravar o áudio de algum lugar. Quando um adolescente perguntou se


seria algo específico, ele respondeu que não.

Hórus: Então cês vão só dar ideia?


Arthur: É, tipo… faz um Minuto Lumière, grava 3 minutos de áudio, faz um vídeo
com a câmera em movimento, faz um vídeo em selfie… Não to dizendo que vai ser
exatamente assim, a gente vai decidir até mandar a câmera. Mas sempre aberto,
sempre daquele jeito que a gente faz, sem certo e sem errado.
Raquel: E se além das coisas que a gente sugeriu você quiser gravar outras coisas,
pode também.
Arthur: É, na verdade o que a gente vai sugerir, é só pra sugerir. Se não quiser fazer
o que a gente vai pedir, fazer outra coisa…

Isso aponta que o que será filmado é decisão de quem recebe a câmera, e mesmo as
indicações feitas pela equipe não precisam ser seguidas nesse momento de criação. Apesar
disso, durante essa reunião, e todas as outras, conversamos sobre as cenas que poderiam ser
gravadas a partir da compreensão de pensar coletivamente as imagens e compartilhar as
ideias. Nas falas da equipe de adultos apareceram também as possibilidades de instigar a
invenção com o real – como filmar uma quadra de futebol vazia e narrar um jogo que poderia
ter acontecido em 2020 mas não aconteceu.
Em um dado momento, Arthur relembrou que um deles havia citado o quadro “O
Brasil que eu quero” como referência para o filme e começou a falar que isso poderia ser uma
ideia boa para conversarem sobre a pandemia com as pessoas com as quais têm contato, mas
que não seria indicado fazer com desconhecidos em razão da necessidade de autorização. O
mesmo adolescente do diálogo acima respondeu: “Se for com desconhecido assim, a gente
tem que pedir o que, e-mail, número de celular, nome e só?”. Demonstrava, assim, que já
tinha essas questões em mente, e que isso não seria um empecilho.
Arthur então seguiu falando sobre a possibilidade de fazer entrevistas, quando foi
novamente abordado por esse adolescente: “Mas aqui, cês não quer mandar um bocado de
perguntas aí pra gente selecionar algumas pra fazer pras pessoas não?”. Arthur riu e
respondeu: “Cês não querem vocês mandar um bocado de pergunta e a gente selecionar? Não
pode ser ao contrário?”. Considero que esse é mais um indício do esforço em deslocar a
criação para os adolescentes, devolver a demanda para conseguir resolvê-la em conjunto. E
são comentários breves como esse que causam desconforto nos estudantes e colocam em
questão a responsabilidade que está atrelada à autonomia dos sujeitos envolvidos nesse
processo.
Durante o período de realização dos dispositivos, foram enviadas no grupo do
whatsapp imagens que continham as informações do exercício proposto, que também
deveriam ser encaminhadas de forma privada para os adolescentes. No começo do processo
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mandei algumas dessas mensagens, lembrando o que era para fazer e me colocando à
disposição caso tivessem dúvidas. Sem os encontros presenciais, considerei importante
estabelecer contato direto com os adolescentes para que eu pudesse expressar que também
estava ali agora, visto que nem todos que fazem parte do coletivo tinham participado das
reuniões de janeiro. Em outro movimento de me apresentar para o grupo, falando por meio
das imagens, decidi que também faria os dispositivos, e assim fiz nos dois primeiros (reuniões
dos dias 8 e 18 de fevereiro).

Figura 4: Primeiro dispositivo - Minuto Lumière Figura 5: Segundo dispositivo - Postal narrado

Figura 6: Terceiro dispositivo – Fotos de “proximidade”


ou “perto” + 1 minuto de silêncio

Não fiz o terceiro dispositivo e, nesse dia (02/03/2021), um diálogo me chamou a


atenção, vindo à tona depois que terminamos de ver os vídeos montados com as fotos e áudios
recebidos:
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Loki: Professor não manda não?


Hórus: Eles é patrão, não é funcionário
Odé: É... Eles é patrão, não é funcionário não...
Arthur: (rindo) Cês acham que a gente é patrão?

A nossa reação foi rir, e fiquei pensando nesse questionamento irônico a partir da
minha própria atitude de não ter feito esse exercício, apesar de ter entregado os outros. Nessa
reflexão acabei percebendo que não fiz realmente porque, com o passar do tempo, entendi que
deveria me ater ao papel de quem auxilia e, consequentemente, o tipo de responsabilidade
também mudou. Não é possível dizer se ele falou isso ao perceber essa mudança, mas sem
dúvida me fez refletir. Como parte da equipe de produção, eu havia sugerido um dispositivo e,
nessa mesma reunião, apresentamos qual era a proposta. Dei a sugestão de uma atividade
nova que trabalhasse com som e me responsabilizei por auxiliar os adolescentes para produzir
a banda sonora do vídeo que escolhessem. Deveria ser algum que foi enviado no primeiro
dispositivo, para possibilitar uma revisitação a essas imagens e pensar o que poderia
acompanhá-las.
O laboratório foi marcado para o dia 15 de março, mas não ocorreu exatamente como
planejado e, nessa reunião, pude apresentar o que eu tinha produzido de sons, para incentivar
que fizessem o exercício. Um dos adolescentes presentes se mostrou interessado em fazer o
dispositivo, mas depois não prosseguiu. Nesse momento da produção havia a percepção, por
parte da equipe, que talvez a entrega das câmeras ajudaria a motivar o engajamento dos
adolescentes no processo, que a própria presença dela poderia mobilizar as ideias que
surgissem da prática. As câmeras chegariam junto com o prazo de um dia para filmar o que
cada um quisesse mostrar do cotidiano – o que, por si só, pode ser considerado outro
dispositivo aberto à invenção.
Cito a oficina que sugeri e a brincadeira dos adolescentes para pensar que a autonomia
no caso da Olhares também se apresentou na negativa do que é proposto, nas recusas.
Compreendi que elas sugerem a demarcação de suas próprias posições sobre o que está posto
e demandam do outro a criação de uma resposta diferente. Me recordo de uma fala de Arthur
que sintetiza a ideia disso, registrada em 2019, no meu segundo dia de contato com a Olhares
(Im)possíveis: “Autonomia é isso, né? Às vezes é não conseguir fazer o que a gente quer.”
A equipe de educadores precisou lidar com perguntas que não eram respondidas,
ausências e desmotivação em um contexto onde não há a obrigatoriedade, mas no qual se
busca construir a noção de responsabilidade coletiva. Por isso, considero que essa autonomia
se dá tanto nos encontros com o outro quanto nos desencontros, assim como no
compartilhamento e no embate.
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As conversas do coletivo são permeadas por piadas, feitas tanto pelos adolescentes
quanto pelos adultos, apontando indícios da proximidade entre os sujeitos do grupo, e de
como esse é um espaço em que não se busca a rigidez e formalidade das relações. Na reunião
do dia 29 de março, por exemplo, um vídeo que seria assistido estava travando na tela, e os
meninos passaram a comentar sobre isso:
Loki: 30fps.
Odé: Caraca, 30 não, 10.
Hórus: Travando…Agora baixou pra 10.
Anansi: Ou, tá travando, hein.
Odé: Ó, por que cê não pediu pra eu editar, meu fi?
[...]
Odé: Eu vou falar do quê? Não sei como é que eu vou falar se
eu só vejo foto?
Hórus: Calma que tá rodando
Odé: Eu não vejo vídeo não, eu to vendo um monte de foto
pulando, uai
[Todos riem]

Depois que um outro vídeo começou logo em seguida, Hórus falou, rindo: “tá
gravando, mas é zuera, Arthur!” – referindo-se aos comentários feitos. Loki também disse: “é
meme, é meme”. Enxerguei esse momento como algo significativo da abertura que é possível
perceber nas relações estabelecidas entre os “professores” e os “alunos” dentro da Olhares,
assim como nas estratégias metodológicas que procuram criar ferramentas para a expressão e
debate de ideias entre todas as pessoas que fazem parte.
Quando olhamos para o que foi realizado durante a etapa dos dispositivos, os debates
que se seguiram possibilitaram acessar diversas perspectivas. Os posicionamentos tomados
pelos adultos nessas conversas são de instigar o debate, na maioria das vezes devolviam algo
que os meninos falaram com um questionamento. Cada um apresentava seus comentários
sobre os vídeos na dinâmica da reunião, atentando-se a um detalhe ou outro, o que colocava
esses pontos de vista em diálogo.
As interpretações não eram vistas como certas ou erradas porque as imagens são
encaradas em sua polissemia, não há resposta esperada. E um indício da autonomia criativa se
faz presente quando os adolescentes se sentem confortáveis para contestar algumas respostas
ou criticar a forma como foi realizado o vídeo, expressando sua própria interpretação ou
experiência de produção audiovisual.
Na reunião do dia 8 de fevereiro de 2021, aconteceu um debate sobre os significados
das ideias de horizonte e paisagem, a partir do exercício de associar uma palavra a cada um
dos Minutos Lumière assistidos. Um adolescente comentou que achava que horizonte e
paisagem eram a mesma coisa, e, a partir disso, pudemos conversar sobre seus significados.
Arthur nos perguntou sobre o sentido que temos para essas palavras e, como eu havia
85

escolhido horizonte para o vídeo em questão, cheguei a comentar por que achava que as
palavras não eram a mesma coisa. Não para explicar alguma coisa, mas para compartilhar
meu processo de significação. Nessa conversa, a conclusão a que chegamos é que às vezes
essas palavras são a mesma coisa e às vezes não. Foi um exercício coletivo de conceituação a
partir da imagem.
Quando conversamos sobre o segundo dispositivo, a resposta de dois adolescentes a
uma foto que mostrava uma janela fechada também explicitou a multiplicidade de
compreensões que as imagens e as palavras podem carregar. Segundo o primeiro, a foto não
mostrava nada. Já para o segundo, a adolescente que fotografou, ela havia tirado “a foto mais
certa que todo mundo”, porque era a janela em que ela gostava de ficar. Ela “foi lá e tirou a
foto da janela, e não tirou da vista, não”. A adolescente apontou que, nos outros casos, o que
aparecia não era necessariamente uma foto da janela, mas um registro da vista da janela.
Depois desse comentário, Raquel disse que era “como se todo mundo tivesse tirado de dentro
e ela de fora”. Um terceiro adolescente comentou que “a questão da janela é do que você
gosta dessa janela e tal…” e Arthur entrou na conversa para reforçar que as diferentes
interpretações da proposta não estavam erradas. Nem eram excludentes.

O dispositivo era tirar foto da janela que mais vê ou fica, isso


abre um monte de possibilidades, mesmo. Porque quando a
gente fala ‘vou tirar uma foto da janela’, tem um duplo
sentido na linguagem que é eu vou até a janela tirar a foto ou
eu posso tirar a foto da janela.

Figura 7: Postal narrado.

Depois desse comentário, Arthur disse ainda que o que chamava mais atenção não era
aparecer uma janela, e sim que ela aparecia fechada. Em mais um exercício de significação,
ele perguntou:

Arthur: Que mensagem é essa de uma janela aberta? O que uma janela aberta
significa?
Loki: Caminhos abertos para ser livre.
Hórus: Caminho? Mas cê não passa pela janela, não. (risos)
Loki: Claro que passa.
Raquel: Será que não?
Eu: Dá pra passar, né? Dependendo da janela.
Hórus: [inaudível] Aqui não tem nem como né [inaudível]
Loki: Quem falou que não pode passar pela janela? Quem deu essa regra?
Eu: Justamente.
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Odé: Uma ideia que eu tive aqui é que na casa da menina tem ar-condicionado e
ventilador e… Como que é o nome mesmo? É isso memo, ar-condicionado. Porque
pra janela tá fechada…
Loki: Ali não é a casa dela, não.
Odé: …deve ter uns ar-condicionado da hora, tá ligado?
Raquel: Ou tá muito frio né?
Odé: Pode ser também.

Na Olhares (Im)possíveis a polissemia é exercitada com a compreensão de que aquilo


que se entende a partir do audiovisual é fruto de suas diversas camadas possíveis de serem
acessadas. Durante a conversa sobre o terceiro dispositivo, que pedia um áudio com 1 minuto
de silêncio, Arthur questionou os adolescentes sobre a diferença entre ver a imagem com e
sem o áudio, em contraponto com a reunião anterior, que contava com uma explicação
narrada.

Odé: Eu penso que com o silêncio... Por exemplo, se fosse a pessoa mandando um
áudio você não iria abrir a cabeça, abrir a mente pra entender, entendeu? Tipo, igual
nós tá entendendo aqui... O áudio tá em silêncio, aí cê tem que falar o que cê
entendeu nessa foto... Por exemplo, se ele tivesse mandado um áudio das fotos que
ele mandou, cê só iria entender o que ele falou, e não abrir a cabeça pra ter o seu
entendimento, entendeu? Não sei se cês entendeu.
Hórus: Entendemos.
Arthur: Eu entendi perfeitamente. E é isso que eu tô tentando falar um pouco com
vocês sobre esse filme, talvez. Que a gente não precisa sempre dizer o que a gente…
Ou seja, tem uma esfera da imagem, uma camada, uma possibilidade de olhar pra
imagem, que é sobre a sensação, sabe? E aí a sensação, a gente pode entender como
isso que o Odé falou… O entendimento que cada um vai ter sobre aquilo. E às vezes
é legal a gente não fazer muito explícito do que que a gente quer, entendeu?

Evocando o conhecimento sensível e o conhecimento racional que o audiovisual


carrega (JUNQUEIRA FILHO; BARBOSA, 2014), essa fala de Arthur aponta que as relações
interpretativas estabelecidas não precisam necessariamente ser explícitas, porque as imagens
apresentam uma possibilidade de comunicação a partir do que é sentido. Por isso, ele continua
dizendo sobre “deixar a imagem falar por si” e não precisar explicar tudo. Essa perspectiva
que busca desorganizar ideias, deixando espaço para a confusão do audiovisual, se relaciona
com a própria dinâmica de funcionamento do coletivo e se expressa nas escolhas feitas para o
filme.
Caos criador. No encontro do dia 5 de janeiro, um adolescente havia dito que não
gostava de ir para escola e Arthur o questionou comentando que, na escola, ele também ia
para o projeto [da Olhares] e para o futebol. O menino então o respondeu que o projeto era
diferente.

Arthur: Mas por que você acha que o projeto é diferente da escola?
Loki: É melhor?!
Arthur: Mas como assim melhor?
Loki: Porque, igual eu, eu sou… eu gosto de gravar esses trem assim de internet e eu
me identifico mais com o projeto. Porque a gente faz isso.
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Arthur: E mais o que é bom do projeto?


Loki: Viajar também, apresentando as coisas… (risos) E gravar né? Eu gosto de
gravar também. Editar não edito muito, não. Mas gravar…

Ao mencionar os passeios que havia feito com o projeto, ele se lembrou de uma
oficina que havia produzido no centro histórico de Ouro Preto, da visita à UFOP e da exibição
no fórumdoc.bh em 2019, quando foram dar palestra e apresentar o filme. Esse comentário foi
um indício de que, para além da atividade primeira do contato com o vídeo, o “ser diferente”
da Olhares estava na possibilidade de estar em outros espaços, no lugar de agência que possui
ao “dar palestra” sobre uma produção que fez, e nas diferentes estratégias experienciadas ao
longo de sua participação no projeto.
Mesmo ciente de que os encontros da Olhares aconteciam no espaço escolar, o
adolescente considera essa experiência algo distinto da escola em si. Acredito que essa
distinção pode ser percebida na bagunça ordenada presente na forma como o processo
acontece, do mafuá (MIGLIORIN, 2015) que se instaura no questionamento de posições na
relação ensino-aprendizagem e na valorização dos múltiplos saberes. Apesar de serem
apresentados objetivos e de haver exercícios a cumprir, a prática da Olhares não buscava
hierarquizar as percepções trazidas ou avaliá-las como certo ou errado – ou, ainda, punir.
Com o início da pandemia e a impossibilidade dos encontros na escola, o formato
remoto apresentou uma nova (des)ordem com a qual o grupo teria que lidar para a realização
de suas atividades – um novo espaço sem fisicalidade que seria atravessado pela realidade dos
diferentes lugares que se tornaram parte do online compartilhado. Com cada sujeito
participando de um local, os encontros foram permeados por barulhos, pessoas, sobreposição
de falas. Durante as reuniões foi possível presenciar momentos em que as famílias dos
adolescentes apareceram, por vezes questionando o que estava sendo feito como “Peraí, cês
tão batendo papo ou o que é?” (durante a reunião de 02/03/2021), enquanto um menino
explicava por que o som de suas cachorras havia aparecido no áudio gravado; e momentos em
que eles falavam com alguém sobre o projeto: “Ô mãe, eu tô num negócio importante aqui!”
(no encontro de 05/01/2021).
Ao exercitar um ato de criação coletiva, que lida com diferentes vozes e percepções, o
que se observou na Olhares é que o controle não é algo considerado central para esse
ambiente de aprendizagem mútua. As reuniões são caóticas, elas vão e vêm, saem do tópico
central e rodopiam por algumas histórias, criando outras possibilidades de troca. As conversas
– que poderiam consideradas menos importantes em uma concepção mais rígida de
aproveitamento do tempo produtivo – ou são interrompidas pelos próprios adolescentes ou os
adultos retomam o rumo do que estava sendo conversado, aproveitando os assuntos e
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experiências como gancho para questões da produção do filme, seja de forma direta ou
indireta.
O caos próprio dos vários microfones abertos na plataforma online em alguns
momentos provocava ruídos na comunicação, porém foram raras as vezes em que observei
alguém da equipe interromper conversas entre os meninos de forma mais incisiva. Em uma
reunião, no dia 18 de fevereiro, Arthur estava falando sobre como seria o processo de
montagem e edição quando risadas vindas de dois adolescentes, que estavam assistindo à
reunião na mesma casa, o fizeram parar de falar. Ele então os chamou pelo nome e disse:
“Rapidão, tá acabando… É isso mesmo... Também... cê ficar mais de uma hora e meia... até
pra gente fica muito tempo mesmo, né? É difícil de concentrar nas telinhas, mas tá acabando.”
Nessa fala é possível perceber que a posição do educador era a de acolher a dificuldade de
estar em uma reunião longa de forma remota, mas também de assinalar a necessidade de
respeitar o andamento da conversa.
O que pude notar é que o fluxo dos encontros era dado de forma fluida, com a
preocupação de não extrapolar a estimativa de uma hora e meia ou duas horas de reunião,
assim como realizar o que havia sido proposto, mas também com a atenção de não destituir a
Olhares de sua potência babélica. A partir da compreensão de que o acolhimento é algo
central ao coletivo, e de que as vivências e olhares dos adolescentes direcionam a criação, não
faria sentido silenciá-los, e sim incluir outros elementos nesse emaranhado.
Na reunião do dia 2 de junho de 2021, Arthur interrompeu um assunto que se estendia
já há 20 minutos e disse que o considerava importante, mas que gostaria de voltar a falar do
filme. Tínhamos assistido o primeiro corte nesse dia e nem todos haviam comentado sobre.
Logo depois, ele próprio disse: “Acho que a gente tá falando do filme, né? Porque Odé falou
um pouco sobre pesquisa, a questão dos escravos…”. E prosseguiu comentando uma
sequência de cenas do filme em que uma ladainha de capoeira que falava sobre escravidão
aparece como trilha sonora para as imagens feitas por um dos participantes. A conversa
anterior havia sido sobre religiões de matriz africana, e o adolescente havia contado como a
procura que ele tinha feito na internet sobre essas religiões – e como o fato de ele ter assistido
alguns documentários sobre a escravidão – o havia ajudado a mudar seu ponto de vista, antes
carregado de preconceito.
Esse ato de buscar relacionar a produção do filme com questões que não
necessariamente foram ditas sobre ela, aproveitando os atravessamentos das conversas, é
indicial de uma posição aberta para a criação que emerge do caos. A equipe que guia o
processo parte do pressuposto de que o “fazer cinema” não está restrito apenas ao ato de
89

filmar, mas acontece com a vida e por entre as experiências vivenciadas. Os momentos em
que os educadores explicam questões técnicas do audiovisual não aparecem como aulas
expositivas, mas como orientações dissolvidas entre as conversas sobre as imagens
produzidas, também com objetivo de indicar possibilidades de criação para o próprio filme.
Ao assistirmos um vídeo com fotos e áudio do terceiro dispositivo proposto, o
adolescente que fez os registros comentou que esses materiais haviam sido produzidos em
diferentes lugares, tanto as fotografias quanto o som que as acompanhava. Quando respondi a
ele que parecia que eram do mesmo lugar quando assistíamos em sequência, Arthur
aproveitou essa reflexão para falar sobre a potência de se criar novos significados para as
imagens a partir da montagem com a parte sonora:

quando a gente junta as imagens, elas ganham outro significado, sabe? Pode parecer
que é tudo no mesmo lugar, a gente pode pegar o significado e distorcer a partir do
áudio, sei lá, por exemplo… Uma pessoa com a cara séria, se o áudio é triste, talvez
a gente veja cara de tristeza, sabe? Se o áudio é uma música de suspense, que a gente
tá acostumado a ver no filme, talvez a gente associe aquela pessoa a algum
personagem que vai cometer crimes, sabe? Como que na montagem, ou seja, na
edição, a gente pode dar outros significados pra coisa, sabe?

Em movimento similar, na reunião seguinte, Arthur apresentou outra explicação sobre


as possibilidades de se criar, em filme, algo que não aconteceu – em diálogo com um
comentário anterior sobre como teria sido a vida em 2020 caso a pandemia não tivesse
acontecido. Ele falava sobre a maneira como, no cinema, poderíamos “inventar esse ano”.

Vou dar um exemplo, o Anansi falou “ah, se tivesse sido normal, eu tinha ido pro
baile todo dia”. Se ele pega a câmera, coloca o tripé, e se filma dançando com 10
roupas diferentes, em 10 horários diferentes, ou só em 3 horários diferentes, isso já
vai dar uma ideia de continuidade do tempo… de várias vezes, entende? Ou em 10
lugares diferentes, por exemplo. Isso já dá uma ideia de que quem sabe ele passou o
ano inteiro no baile, sabe?

A construção da passagem de tempo no audiovisual foi abordada em outro momento,


na reunião do dia 8 de fevereiro, a partir da exibição de um Minuto Lumière que captou a cena
de uma chuva em Ouro Preto. Ao ver essa cena, Arthur disse que, no filme, as unidades de
medida para determinar o tempo que se passou poderiam ser coisas como “desde que eu
gravei o último vídeo, choveu não sei quantos milímetros, ou seja, de lá pra cá foram 36 horas
seguidas de chuva”, “pode ser bombons… eu comi 38…”. No mesmo sentido, as outras
integrantes da equipe também fizeram sugestões do que poderia ajudar a contar o tempo
dentro do espaço de criação do audiovisual: “Tantos dias de sol, tantos dias de chuva”, disse
Raquel. Thamira completou dizendo que, “dependendo de como a gente resolve contar esse
dado, faz toda diferença. Às vezes a pessoa vai ficar chocada, às vezes não vai ficar tão
90

chocada…‘90% dos dias fez tantos’, é diferente da gente falar que ‘5 dias choveu, choveu
tantos milímetros’.”
Conversas como essas exemplificam a forma original de se pensar o tempo – algo
mobilizado pelo cinema a partir da possibilidade que se apresenta de remodelá-lo e esculpi-lo
com suas impressões registradas no plano (AUMONT, 2008; TARKOVSKI, 1998).
Considero que são indicativos de uma equipe de educadores que busca bagunçar as
perspectivas que os adolescentes possuem sobre a realidade, instigando o exercício de olhar
para o que foi vivido em 2020 a partir da representação, mas também da fabulação que é
possível no audiovisual.
Após o término das oficinas online centradas nos dispositivos, e antes de assistirmos
às filmagens realizadas com as câmeras, uma reunião foi realizada no dia 29 de março para
que os adolescentes pudessem assistir aos vídeos feitos pela vice-diretora do Polivalente. Esse
foi o único momento em que foi pedido para que eles abrissem suas câmeras, porque a ideia
seria fazer um react (tipo de vídeo característico do Youtube, que tem o objetivo de mostrar
pessoas reagindo a diferentes coisas). Durante esse encontro, os adultos foram menos
presentes e só os meninos comentaram enquanto os vídeos passavam.
Em todas as filmagens comentadas, as falas se sobrepõem em diversos momentos,
permeadas por lembranças da escola suscitadas pelas imagens, e se adicionam à narração feita
por Ronessa. Considero este um momento significativo do caos criador desse processo, pois a
partir da afetação causada pelas imagens e a reação espontânea dos adolescentes, foi possível
captar cenas que simbolizaram um reencontro virtual com o espaço da escola. Esse registro,
quando colocado no filme, expõe fragmentos da relação deles com esse espaço, mas também
indica sobre como foi produzir à distância: um emaranhado de vozes e imagens.

Que saudade véi, da escola…


Eu vou chorar.
Mó saudade dessa entrada aí, que eu lembro que
descia correndo, trupicava, rachava a cabeça…
Eu já desci um monte de vez de skate aí meu filho, pra
nunca mais.
Eu lembro que nós ficava brincando ali no mato...

Figura 8: Cena de Ano 2020

A reconstrução do espaço escolar no vídeo, entrelaçado com o espaço virtual da


chamada de Zoom, é significativo do entremeio da experiência de produção remota. Durante o
91

processo de Ano 2020, pudemos “visitar” diversos espaços presentes nas imagens, encontros
mediados pela plataforma online. A sobreposição e reconstrução de espaços aparece como
elemento estético em outra passagem do filme, em que filmagens de dois adolescentes
diferentes da Escola Adhalmir Santos Maia são colocadas lado a lado, e é possível ouvir a
narração de um deles com a música que toca na rua no momento, junto da música que toca no
outro vídeo.
O espaço da escola aparece mais uma vez caracterizado por sua impossibilidade de
estar nela. Os meninos filmam sua entrada e a narração de um deles nos conta:

Aqui é o portão dela. Música aleatória da casa dos


outros. E aqui é o outro portão dela. Eu estudei aqui
até o quinto ano, mas não estudo mais, por causa de
que agora eu estou no nono… e ela está parada como
todas as escolas por causa da pandemia.

Figura 9: Cena de Ano 2020.

Além do recurso das sobreposições, considero que a presença da estética do Free Fire
e dos vídeos de gameplay no Youtube também sugerem essa perspectiva caótica de fazer
cinema, que não busca se apegar no estilo clássico de produção documental e agrega a
influência do jogo nos olhares apresentados na montagem final, uma vez que é elemento
importante da bagagem audiovisual e vivência dos adolescentes – e que foi assunto
recorrente em nossas conversas.

Figura 10: Cena de Ano 2020. Figura 11: Cena de Ano 2020.

Essas sobreposições e referências estéticas presentes no filme são simbólicas do


processo polifônico que é o fazer cinema em coletivo, a produção audiovisual que busca
misturar as perspectivas dos adolescentes envolvidos para compor o ponto de vista do grupo.
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Por isso, também considerei importante me atentar às trocas que pudessem indicar como o
senso de comunidade é construído na Olhares (Im)possíveis e de que formas o pertencimento
se dá.
Comunidade. Em uma cena presente em Ano 2020, um adolescente está em uma
chamada de vídeo com um amigo e diz “Eu nem sei falar com câmera e tô aqui falando com
câmera mano, olha só isso aí.” Quando é perguntado sobre de quem é a câmera, ele responde:
“Ah, é do projeto que tamo fazendo, aí tá ligado? É de um filme… nós tamo fazendo um
filme, mano.” O amigo então pergunta “Nós quem?” – e a cena termina com ele dizendo: “Eu
e um pessoal da escola, tá ligado?”
Em outra cena do mesmo adolescente – que não entrou no filme, mas foi comentada
na última reunião analisada –, ele está conversando com outra pessoa e também conta que está
fazendo um filme. Essa pessoa pede pra participar e ele diz para ela: “Cola, chega junto”.
Quando ela pergunta se ele vai ficar famoso, ele ri e responde: “É um projeto nosso que era da
escola, agora saiu da escola e é a partir de nós mesmos.” A pessoa responde: “Que forte.”
Pontuo essas duas passagens para ilustrar o entre-lugar em que a Olhares
(Im)possíveis se situa nas falas sobre pertencimento. Um coletivo que se iniciou dentro do
espaço escolar, mas com um funcionamento diferente. A solidificação de seu entendimento
como grupo de cinema começou a partir da mudança empreendida em 2019, quando as
atividades se voltaram para o cuidado com a horta e quando o desenvolvimento não era mais
centrado em oficinas.
Todos os adolescentes envolvidos desde o início da produção já eram participantes do
coletivo há alguns anos e já haviam realizado outros filmes. A partir da observação, considero
que a mudança para o formato remoto e o distanciamento físico da escola, assim como o novo
projeto de filme com novas responsabilidades, demarcou outro momento de compreensão do
grupo em si. O contato da equipe com a escola não foi interrompido, e a instituição é
considerada como parceira. Inclusive, na última reunião analisada, Arthur fez questão de
apontar a importância da vice-diretora para o começo do projeto na escola, além de ter
participado da produção de Ano 2020 com as filmagens que enviou. Ele também frisou que

A gente não pode esquecer que a gente é um grupo que se conheceu numa escola.
Por mais que agora a gente não esteja mais nessa escola, porque ninguém está em
escola nenhuma, esse foi o lugar que a gente se conheceu…. o lugar que a gente se
propôs a cuidar da horta, entendeu?

Em um momento anterior, na mesma reunião, Arthur havia falado sobre a cena que
cito, comentando sobre o adolescente ter respondido que “antes era na escola, agora estamos
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fazendo nós por nós mesmos.” Explicou que ele dizia isso não porque a escola os tivesse
abandonado, mas “porque, apesar de não ter aula, esse grupo, pequeno grupo, resolveu
continuar”. E complementou: “Olha quanto tempo a gente tá se encontrando, sabe?” Essa fala
aponta que, apesar de continuarem vinculados à escola, o grupo que se estabeleceu durante a
produção o fez de forma independente. E o contexto em que essa reflexão aparece é durante a
conversa sobre a ajuda de custo que será entregue para os adolescentes, quando Arthur e
Raquel estão explicando sobre o edital e por que consideram importante compartilhar o
recurso recebido com todos os participantes da produção do filme.
Como o projeto de Ano 2020 foi selecionado pelo edital da Lei Aldir Blanc, pela
primeira vez foi possível garantir ajuda de custo aos adolescentes envolvidos na produção. De
início, alguns se mostraram avessos a receber alguma coisa do projeto e não chegaram a tocar
no assunto. Ao longo da realização era expresso que os menores de idade não poderiam
receber diretamente o dinheiro em suas contas nominais, mas que todos os envolvidos
receberiam de alguma forma.
Durante a última conversa sobre receber pagamento para a produção, a equipe falou
sobre o porquê de distribuir a todos e Arthur pontuou: “A coisa que a gente mais aprende
aqui, juntos, é um outro modo de fazer cinema, que não é o modo que as pessoas fazem…”.
Então, um dos adolescentes estendeu a reflexão sobre esse outro modo de fazer cinema e
expôs potencialidades da educação audiovisual que estão além do vídeo, indicando a
importância de construir comunidade para a prática presente: “Eu acho que a gente aprende
mais a ter mais, tipo… Comunicação um com o outro e ajudar um ao outro né, porque um tá
ajudando o outro.”
Considero que essa fala expressa o que Moira Toledo (2014) compreende como
metaeducação no processo de produção audiovisual: o ensino de capacidades que estejam
ligadas e auxiliem o fazer cinema, mas que também sirvam para desenvolver outras coisas.
Ao compreender que aprendem sobre comunicação interpessoal e como se ajudar
mutuamente, o estudante denota a presença do exercício de inteligências pessoais em meio à
comunidade – e que se forma na construção coletiva proposta pela Olhares.
Ao responder o adolescente na conversa que se seguiu, Raquel disse: “Aqui a gente tá
num grupo, sabe? Todo mundo tá fazendo alguma coisa que, independente se fez mais ou não,
tem importância pro grupo, entende?” Essa é uma indicação do princípio de horizontalidade
almejado pela equipe de educadores para a consolidação desse grupo, algo que esbarra na
concepção de bell hooks (2017) sobre o que é necessário para construir uma comunidade de
aprendizado. No caso da autora o espaço da sala de aula é abordado, e ela pontua que a
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construção dessa comunidade se inicia na verdadeira valorização da presença de cada pessoa,


com o reconhecimento permanente que todos influenciam a dinâmica e que todos contribuem.
Não quero dizer com isso que a valorização no contexto da Olhares se dá
necessariamente por essa remuneração do projeto, porque, assim como colocado por um
adolescente nessa conversa, o ganho que está em jogo não é exatamente esse. Quando ele diz
“eu acho muito bom a gente participar assim, mesmo que a gente não ganhe nada, tá
participando e tá ganhando aprendizado”, deixa explícito seu interesse em aprender nesse
espaço, porque gosta de gravar, fazer vlog. Em resposta, outro participante contou: “Eu tava
limpando o quarto aqui, aí eu tava vendo ali em cima do guarda-roupa, tava o certificado, até
embalei ele e deixei bonitinho ali que agora eu vou ter pro resto da vida… Lembrei dele ali. E
aí pode virar uma profissão.” O certificado que ele havia encontrado era o da oficina realizada
no CineOP pela Olhares (Im)possíveis – e aparece aqui como um símbolo material do
aprendizado que é acessado pelos estudantes, além de um possível caminho profissional,
como ele mesmo aponta.
Outro ponto que considero importante é que o pertencimento a esse grupo se dá de
diferentes formas. Mesmo quem só apareceu uma vez em reunião faz parte dessa rede que se
estabelece além vídeo, e é considerado integrante do processo pela compreensão de que os
motivos para não participar podem ter sido vários no contexto em que se deu tudo. A prática
do coletivo não prevê a exclusão de seus participantes, e os educadores deixam explícito que
não é um problema não querer participar em algum momento. Não existe a obrigação de
continuar. Algo que aconteceu durante o processo de produção do filme foi a reaproximação
de um jovem que havia saído do projeto porque mudou de cidade. Ele foi o responsável por
escrever a música para a trilha sonora e também aparece cantando.
No dia da exibição presencial de Ano 2020, no FestCurtasBH, a produção garantiu que
ele estivesse presente, e todos os adolescentes
que estavam no grupo do filme puderam ir de
van para assistir à sessão.
Ao longo do processo pude perceber
que a rede da Olhares está em processo de
expansão e mobilização de outros sujeitos para
além do grupo inicial. Seja pela participação de
profissionais externos na produção e pós-
Figura 12: Registro do coletivo na sessão produção do filme ou pela participação das
presencial de exibição do filme Ano 2020.
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crianças que estavam na gravação presencial no Pocinho – filmando e aparecendo no elenco.


Além disso, uma figura que simboliza a comunidade mobilizada para o processo é Suzana,
mãe de um dos adolescentes, que também trabalhou na logística da produção. Para a parte
burocrática, Raquel contatou os familiares dos envolvidos para assinatura de termos de
autorização, e Suzana foi quem entregou documentos e as câmeras usadas para as filmagens.
Algumas famílias responderam rápido e logo assinaram, outras demoraram a
responder e uma responsável só foi assinar na data da diária presencial – liberando, assim, a
participação de um menino que, até então, imaginávamos que não poderia aparecer no filme.
Comento isso apenas para explicitar que o engajamento por parte das famílias envolvidas não
é homogêneo, mas não consigo dizer com detalhes porque não tive contato com elas.
Outro indício da mobilização em rede foi o fato de Ano 2020 ter sido eleito o Melhor
Filme pelo Júri Popular do 23º FestCurtasBH, que contava com 118 curta metragens
selecionados nas mostras competitivas. Assim que o filme estreou na plataforma online, todos
do coletivo fizeram campanha para a votação, compartilhando vídeos e imagens em suas
redes sociais. Também foi enviado um release para os meios de comunicação da região, uma
tentativa de ampliar a visibilidade desse momento. O filme ficou em exibição para ser votado
durante dois dias, de 7 a 9 de novembro. No dia 16, o resultado foi divulgado para o público.

Figura 14: Captura de tela do site do 23º FestCurtasBH

Figura 13: Captura de tela da versão on-line do


Jornal O Liberal

Por último, trago a resposta de um dos adolescentes para Arthur, no grupo do


whatsapp, poucos dias depois de ter assistido ao filme finalizado pela primeira vez. Ao ser
perguntado sobre o projeto, ele disse:
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“Eu acho que é um projeto pra ajudar a gente a se


enturmar mais, e uma coisa de comunidade assim, tá
ligado? Uma coisa que ajuda a comunidade em si.”

Figura 15: Captura de tela do grupo do


whatsapp do coletivo

Essa compreensão, que se relaciona com outras já apresentadas aqui, aponta para a
ajuda que se estabelece dentro da comunidade da Olhares, ou seja, o apoio mútuo almejado
para fortalecer as relações e os atos de criação, e a responsabilidade coletiva trabalhada na
perspectiva da autonomia. Por isso, também olhei para o cuidado, compreendendo que ele é
algo a ser praticado para a manutenção de uma comunidade, e foi uma questão impossível de
ser ignorada no contexto da pandemia.
Cuidado. Na reunião do dia 10 de maio, foi proposta uma “dinâmica do dicionário”
para o adolescente que estava presente.Seria o último encontro que talvez pudesse entrar no
filme. Ele teria que responder, com suas palavras, qual era o significado de alguns conceitos
que a equipe iria mencionar. Foram escolhidos, como verbetes desse dicionário espontâneo,
os termos ser adolescente, família, escola, bairro, território e cuidado – e uma grande parte
da conversa se deu por conta do último.

Ah, cuidado é uma palavra que tem muita expressão, né?! Tipo.. igual, ter cuidado.
Quando a gente fala ... quando a gente vai sair. Porque sempre quando eu saio,
minha mãe fala "ah...cuidado! não sei o que..." isso é cuidado com si mesmo. Aí tem
o cuidado que você cuida de outra pessoa. Então cuidado, eu acho que tem muito
significado.

Essa foi a primeira resposta para a palavra cuidado, e destaquei alguns outros trechos
que apresentam aprofundamentos na conversa que se deu sobre os diversos significados em
que esse termo aparece.
Raquel: E ser cuidado?
Loki: Ser cuidado é igual eu falei…. eu cuido da minha avó. Então eu tô indo lá para
cuidar dela e olhar ela. Então eu tô cuidando dela… então é ser… é ser de alguém,
cuidar da outra. Sei lá, tô dando minha opinião.
Raquel: Mas a gente quer ouvir sua opinião mesmo (sorrindo).
[...]
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Arthur: E por que que o cuidado é importante?


Loki: Tipo, não é que cuidado é depender de outra pessoa… Mas cuidado é você
gostar de uma pessoa e querer o bem dela, aí.
Arthur: E por que que isso é importante?
Loki: Pra…. porque é um sentimento do ser humano? Sei lá. Cuidado é uma coisa
de dentro de nós, pra gente querer o bem das outras pessoas?
[...]
Arthur: Como que você se sente quando você é cuidado por alguém?
Loki: Ah, eu me sinto bem, né? Porque cuidar também é um ato de também amor.
Então se a pessoa tá te dando amor você tem que retribuir com amor… Eu acho que
cuidado é um sentimento bom, querendo ou não.

A partir de suas próprias conceituações, posso dizer que ser cuidado é ser de alguém,
não depender, e é um ato de amor. No momento em que ele deu a última resposta, Arthur
comentou que era legal essa ideia de que o cuidado é um sentimento, mas também uma ação.
O adolescente concordou: “Sim, cuidado pode… igual eu falei… Eu não sei se eu falei foi
cuidado, mas ele pode ser interpretado de várias formas… como um sentimento e como uma
coisa de ação.”
A ideia de cuidado como ação pode ser percebida na própria forma como os
educadores lidaram com os momentos de desânimo e desmotivação dos adolescentes, na
preocupação com o desempenho na escola, na escuta atenta ao que eles expressavam, nos
momentos de abertura para essa expressão. A importância de compreender o grupo da Olhares
como, primeiramente, um espaço de acolhimento, em especial nesse período histórico de
isolamento social, foi objeto de reflexão por parte de Arthur, depois da fala de Raquel sobre o
fato de o grupo ser um lugar de troca e aprendizagem múltipla, na última reunião antes da
diária:
É por isso que pra gente é muito importante escutar coisas como as que vocês
falaram aqui hoje… “Nós não estamos aqui por dinheiro”, “a gente tá aqui porque é
legal, porque a gente aprende outras coisas”. O Loki falou uma coisa que é muito
importante: “um ajuda o outro”, a pandemia foi um momento muito difícil né? Foi a
primeira vez que depois de três anos que a gente escutou vocês às vezes falando “e
aí, tudo bem?”, cês falam “não, não to bem, hoje não to afim, hoje tô cansado"...
Todas as pessoas tão assim. E a gente se sente feliz por ter aqui, nesse espaço que
agora é virtual, um espaço onde a gente pode se encontrar e falar, e conversar.

Em uma reflexão anterior, durante a dinâmica do dicionário, Arthur se lembrou de


outra ação de cuidado coletivo que já haviam desempenhado em grupo, que era o cuidado
com a horta da escola. Citando esse projeto da Olhares, ele então perguntou para o
adolescente sobre o que era o cuidado com a terra.
Loki: Como assim, cuidado com plantas e… alguma coisa?
[Arthur balança a cabeça positivamente]
Loki: Ah, eu acho que aquilo ali é um tipo de consumo porque a gente vai plantar
pra comer… Igual a gente ia plantar na horta lá, cuidar da horta, mas a gente ia
consumir aquilo. Igual aquele ditado, tudo que você planta você colhe.
[silêncio]
Arthur: Será que tudo?
98

Loki: Ah, eu acho que sim….


[silêncio]
Loki: Ah, eu acho que sim. Tudo que planta, a gente colhe. Porque nada vai ficar pra
trás não, tudo vai pagar. Tô falando no sentido do ditado, no sentido dos negócio lá
cê não come tudo não. Cê vai comer árvore?

Comecei a rir com o comentário e, então, decidi provocar mais uma reflexão de
autocuidado, perguntando para ele se cuidar da terra também seria cuidar de si mesmo. Ele,
então, respondeu:
Loki: É lógico, se você tá cuidando do meio ambiente que você vive, você vai
ganhar… Não é que você vai ganhar em troca, cê vai ter um ar melhor, um… sei lá.
Uma cidade melhor. Igual, se você tiver poluindo o mundo, aí vai ter lá aquecimento
global… Aí quem tá se ferrando é nóis, porque a gente que mora no mundo.

Essa fala exprime mais uma esfera do cuidado a partir de uma visão integrativa da
natureza, colocando-nos como parte do mesmo mundo. O cuidado com a horta aparece como
algo importante na trajetória da Olhares em diversos momentos, e no filme está retratada em
duas cenas, a partir de momentos distintos. A primeira é o registro da reação dos adolescentes
ao ver a situação em que ela se encontrava, em março de 2021. É importante ressaltar que essa
era a primeira vez, em um ano, que eles viam esse espaço. A preocupação foi evidente:

Nossa senhora!
Matagal danado
Cê é doido, os cara não tem nem... Os cara não tem
compaixão com a escola não
Nossa, que triste…
Que matagal danado
Vou ter que levar uma roçadeira e roçar esse trem uai
[Sobreposição de falas]
Nó véi...

Figura 16: Cena do filme Ano 2020

A cena seguinte a essa retrata a pré-pandemia. É um vídeo de 2019, feito por um dos
adolescentes enquanto os participantes cuidavam da horta. Há, ali, uma fala dita na reunião do
dia 6 de janeiro, início da produção, em que a conversa era sobre os cuidados relacionados à
pandemia.

Porque os outros anos nós ia pra escola, aprendia as


coisas, fazia coisas diferentes... Esse ano não, esse
ano a gente aprendeu em casa, maneiras de se
cuidar.

Figura 17: Cena do filme Ano 2020


99

Retomando as falas citadas anteriormente sobre comunidade, é possível perceber que


o cuidado se faz visível nessa rede na forma de reflexões e cultivo das relações. Elas
expressam a potência do grupo em articular ajuda mútua entre os indivíduos, a importância de
cada um que compõe o coletivo e os esforços em conectar as diferentes necessidades,
capacidades e angústias. Os laços são possibilitados pelo fazer cinema e não se limitam a
compartilhar apenas questões técnicas da produção de um filme, mas dividir experiências e
exercitar pontos de vista.

Figuras 18 e 19: Cenas do filme Ano 2020

Como manifestações explícitas do cuidado, as imagens acima fazem parte do filme e


foram enviadas por um dos participantes, retratando seu cotidiano na esfera familiar. Os
vídeos, embalados por um canto da capoeira em Ano 2020, apresentam, mais uma vez, o olhar
que se volta para o ato de cuidar do outro.
Além disso, o cuidado com as imagens foi observado tanto no que se refere ao respeito
aos direitos de imagem de quem iria aparecer no filme, quanto em relação aos comentários
por parte dos educadores, que buscavam estabelecer diálogos que se aprofundassem para
propiciar encontros entre as diferentes sensibilidades que compõem o grupo. No exercício das
práticas cinematográficas, a crítica do que foi criado pelos adolescentes foi empreendida com
objetivo de instigar o compartilhamento de visões e processos, e se relaciona à potência do
cinema de grupo de acolher processos de singularização (MIGLIORIN; RESENDE; CID;
MEDRADO, 2020).
Os fragmentos do filme aqui apontados dialogam com o processo contínuo de
revisitação da própria história da Olhares, e das experiências de reencontro possibilitadas ao
longo da produção de Ano 2020. Durante a realização do laboratório de experimentação, as
filmagens com câmeras e conversas nas reuniões, foi possível perceber a expressão de
encontros com a nova realidade que se apresentava, com as experiências subjetivas e espaços
significativos para a vivência dos adolescentes.
100

3.2 Pensamentos sobre o mundo que cerca

O audiovisual proporciona o enquadramento da realidade. Quando digo isso, falo tanto


dos limites do quadro da câmera, quanto do exercício de revisitar os espaços com outros
olhares. Ele influencia na noção de espacialidade dos realizadores, que podem escolher
recortar o mundo em diferentes sentidos e direções. Na reunião do dia 8 de fevereiro, na qual
comentávamos os resultados do Minuto Lumière, um dos vídeos recebidos estava na vertical e
isso foi abordado por um dos adolescentes:

Loki: Se tivesse sido filmado assim [ele vira o celular nesse


momento da orientação vertical para a horizontal] ia pegar
mais coisa… Ia pegar mais o morro, mas aí tinha que ter
gravado mais do lado de fora, se não ia pegar mais a casa
do que o ambiente.

Figura 20: Captura de tela de reunião no Zoom.

Esse comentário breve aponta, para além das questões técnicas da filmagem, a
compreensão do espaço para além do que está na tela. O adolescente pode não conhecer a
casa em questão, mas, a partir do que vê, consegue imaginar o que pode estar na continuação
desse espaço. Começo com essa reflexão para pensar sobre os quadros com os quais a
realidade foi observada pelos participantes da Olhares, e o que fica para fora deles.

Ah, território eu acho que é tipo uma coisa do reino animal… Mas é assim, tipo,
igual cachorro assim… Marcar território, né? Cachorro, animal assim, eu acho que
isso daí é território… Porque quando a gente fala assim de marcar território, o ser
humano, a gente fala terreno, né? Eu acho.

A fala acima foi compartilhada durante a dinâmica do dicionário, e é a conceituação


proposta para a palavra território. Essa aproximação entre marcar território e terreno me fez
refletir sobre os territórios demarcados durante esse processo de produção – e as reflexões que
apareceram por meio do audiovisual como ferramentas para essa demarcação. Em um
exercício de significação dos espaços, no dia em vimos os resultados do dispositivo do cartão-
postal narrados (fotos das janelas com narração), Arthur perguntou:

Arthur: O que vocês vêem da casa de vocês que quem mora no centro não vê?
Hórus: Não vê a paisagem…
Loki: Não, mas tem vez que a paisagem do centro é mais bonita…
Hórus: Paisagem verde. Tem nada lá não, sô. Lá só tem casa e…
Loki: Eu também acho que é o mato
Arthur: E agora eu vou fazer a mesma pergunta, só que é pra responder mais
viajado, não precisa ser… Esse ver não precisa necessariamente ser com o olho,
101

pode ter mais uma relação com o sentir. O que que vocês vêem que quem mora no
centro não vê?
Hórus: Não vê a realidade.
Loki: Ar puro.
Odé: Na minha opinião, sei lá... Deixa eu ver... Meio sem graça, sei lá, não tem
corpo.

Em Ano 2020, esse diálogo não aparece por completo, mas escolhi trazer esse trecho
para assinalar a diferença da primeira para a segunda vez em que Arthur pergunta. Quando ele
diz que o ver não precisa ser com olho, mas com o sentir, as respostas dos adolescentes
apontam para as relações que eles estabelecem, como sujeitos, com o centro da cidade e o que
experienciam.
No filme, as falas aparecem como narração de um vídeo que observa uma igreja de
longe. Conforme o plano se abre, aparecem outras casas e ruas, além do próprio terraço de
onde se olha. É uma demarcação do lugar de enunciação no qual os sujeitos realizadores se
inserem e olham para Ouro Preto, enquadrada, primeiro, como um cartão-postal.

Arthur: O que que vocês vêem que quem mora no


centro não vê?
Hórus: Não vê a realidade.
Loki: Ar puro.
Odé: Na minha opinião, sei lá... Deixa eu ver... Meio
sem graça, sei lá, não tem corpo.

Figuras 21, 22 e 23: Cenas do filme Ano 2020.

É possível compreender, a partir de Lefebvre (2006), que o espaço concebido de Ouro


Preto – pensado, principalmente, a partir de seu centro histórico-turístico – é contraposto com
essa manifestação da experiência vivida pelos adolescentes com a cidade. As práticas
102

espaciais desse grupo de jovens constroem um espaço percebido que se expressa no


distanciamento – físico e relacional – com o que é considerado centralidade.
A partir disso, percebo que o exercício de filmar e falar sobre a cidade em que se vive
pode ser caracterizado na esfera do espaço de representação, pois constitui-se como
apropriação do espaço para além de suas interpretações oficiais concebidas, criando a partir
dele. Para a construção da Olhares (Im)possíveis, o centro de fala não está no centro da
cidade.
Assim, a pergunta que se coloca é: se não são centro, são periferia? Em um momento
inicial do processo, na reunião do dia 19 de junho de 2020, os meninos haviam reclamado que
um jornal da região havia chamado o Pocinho de “periferia”. Compreendiam que o bairro
“não é tão pobre assim” e, por isso, não poderia ser encarado como periferia.

Hórus: Tá ligado esse negócio do... Depois cê vai ver no Voz Ativa, jornal lá no
youtube... Eles falam que aqui é periferia. (risos) Periferia o bairro nosso e tal... Ah
tomar banho… Periferia…
Black n444: É!
Arthur: Acho que a gente já tinha conversado sobre isso umas vezes.
Hórus: É, cê falou que centro é quem mora no… sei lá. E o resto é periferia. Mas
aqui não é tão pobre assim não...
Arthur: Então, é isso que eu ia perguntar… Cê acha que isso tem a ver só com
pobreza?
Hórus: Ah, véi, eu acho que sei lá… Acho que…
Arthur: Você não gosta quando chama de periferia?
Black n444: É!
Hórus: É... também, né.

Eu não estava presente a essa reunião, mas a discussão do conceito periferia já havia
aparecido outras vezes nos encontros da Olhares. Nesse momento, o que estava em pauta era a
forma como um jornal – um Outro – referia-se ao bairro, chamando-o de periferia. No
entanto, em reuniões posteriores o que percebi foi uma mudança na perspectiva. Os jovens
passaram a falar mais sobre suas próprias percepções desse espaço. Para além disso, passaram
a expressar suas visões sobre outros espaços da cidade, e sobre as vivências externas às deles.

Odé: Pô, por exemplo... Em comunidade, em favela, todo mundo é amigo de todo
mundo, entre aspas, entendeu? Vizinho conversa com vizinho, vizinho é
fofoqueiro...
Loki: Mas é lógico, vizinho mora do lado dele
Odé: Cê chega na porta de vizinho ‘ó vizinho, tranquilo?’ Aquelas coisas,
tranquilidade e calmo. Direto eu vou na casa do colega meu, na casa de vizinho ver
se tem café, qualquer coisa... Só pra trocar uma ideia mesmo. Cê chega no povo, por
exemplo, em condomínio lá de cidade grande, prédio, tudo... O povo num comunica
um com outro igual em comunidade não, sô.
[...]
Hórus: Quem mora no centro não precisa pegar ônibus pra ir lá no banco, não
precisa pegar ônibus pra ir no supermercado, não precisa pegar, fazer nada... Quem
mora longe tem que ficar pegando ônibus, tem que ir na correria, as vezes tá
103

trabalhando tem que chegar rapidão pra pegar um ônibus, um táxi, que seja, pra ir...
E os povo lá não. Os povo lá só cinco minutinho já tá na porta.

Esse diálogo se deu logo após o grupo ter respondido sobre o que eles viam, estando
fora do centro. Depois da exibição das fotos e das narrações, a conversa que seguiu era sobre
as diferenças entre o centro de Ouro Preto e o bairro no qual eles moram. Nessa conversa, a
palavra periferia não foi dita em momento algum pelos meninos – até que o questionamento
abaixo se deu. E, mesmo acreditando que a resposta era “periferia”, nem eu nem qualquer dos
outros adultos respondeu. Ficamos sem uma conclusão acerca da pergunta.

Hórus: Aí depois vem neguin, igual aqui tem a Geladinha, vem neguin lá de
Cachoeira do Campo, vem neguin do Centro, vem de Mariana, vem de Passagem...
Aí vem aqui lotar o bagulho que tá aqui no... Como que chama quem não mora no
Centro?
[Eu e Raquel não esboçamos reação, Arthur não responde mas faz uma cara de “não
sei”]
Loki: Ahn?
Odé: Ah sei lá, pô.
Hórus: Tem um nome, sô, que fala lá. Quem mora no centro é tal, quem não mora é
tal... Não é favela, é um negócio lá.
Loki: Quem mora no centro, mora no centro, é pessoa. Ahn.
Hórus: (risos) Não… Pode deixar.

A Geladinha a que o adolescente se referiu é uma cachoeira que fica no bairro e,


segundo os relatos dele e de diversos participantes, mesmo durante a pandemia o local fica
lotado de pessoas. Era uma reclamação – e ela se deu no momento em que Arthur perguntava
aos meninos se eles achavam que a pandemia havia afetado, da mesma forma, quem mora no
centro e quem não mora.

Odé: Pra mim afetou todo mundo igual. Pra mim afetou todo mundo igual…
Loki: Eu acho que não.
Odé: De menos pras pessoas que podem…
Loki: Eu acho que não, sabe por que? Porque quem é, igual… Não podia trabalhar…
Odé: É o que eu to falando!
Loki: …aí tinha que ficar vivendo de auxílio. Auxílio emergencial.
Odé: É o que eu to falando! Por exemplo, pra mim afetou pra todo mundo igual
assim... Cada um no seu estado social de vida, mas não afetou pra quem pode
trabalhar de casa, tá ligado?
Eu: Mas isso é igual?
Loki: Acho que não.
Eu: Isso não é afetar igual, então né?
Odé: Não, não é afetar igual, mas de qualquer forma afeta dos dois jeitos. Pra quem
é pobre afeta mais, pra quem não é já é menos.
Loki: Então já não é igual.
Odé: ...Já é menos, tá ligado?

Considero que esse diálogo é um rastro da concepção de comunicação educativa


defendida por Kaplún (2002), que busca gerar o diálogo, a participação coletiva e propicia,
por entre suas práticas, o desenvolvimento de uma tomada de consciência. A formação
104

empreendida pela Olhares por meio da educação audiovisual passa pelo exercício recorrente
de interpretação e fabulação da realidade. As questões sobre a cidade de Ouro Preto no
contexto da pandemia mobilizaram indagações internas que, como no exemplo acima, podem
encontrar respostas ou abrir caminho para outras perguntas.
Algum tempo depois, ao assistir o corte do filme na última reunião analisada, o
mesmo menino que havia reclamado do jornal, e também quem tinha feito a pergunta “Como
que chama quem não mora no Centro?”, respondeu que era periferia a palavra. A conversa era
sobre os comentários que tínhamos a respeito do filme, ele riu da fala sobre território e
terreno, e deu a resposta para sua própria pergunta registrada em Ano 2020. Em outro
momento, no dia da diária presencial, ele se virou para as pessoas presentes e disse de novo:
“É periferia né? Aquele dia lá que eu perguntei como que chamava quem não mora no
Centro.” Quem estava em volta concordou com ele e seguimos nossa programação.
Desde a reunião de fevereiro até a filmagem do clipe, pude observar um processo de
construção conceitual que se estendeu durante todo o processo das oficinas, em diálogo
coletivo, para culminar em uma conversa na rua. Isso escapa dos registros em cena, mas
considero esse momento um lampejo da construção de pensamentos pelo audiovisual, com ele
e por meio de sua experiência multissensorial e corporificada. Assim como algo que emerge
do compartilhamento e da troca de percepções instigada pelos encontros em grupo.
No filme, a conversa sobre a Geladinha aparece aos 13 minutos, como se expressasse
uma reflexão que se estende ao longo de todo o Ano 2020 – e de sua produção – e é costurado
por imagens feitas pelos adolescentes. Eles constroem imageticamente o espaço do bairro,
fornecendo pistas da relação desses sujeitos com o lugar onde moram e com as práticas
espaciais empreendidas por eles. Olhar os morros da cidade a partir de sua casa, a subida na
escadaria, perceber de longe um estranho em sua moto, o skate na rua. Movimentos de
observação que se aproximam e se distanciam, símbolos de um processo que propôs o
enquadramento da realidade vivida a partir da experiência e das reflexões em coletivo, no
processo de um deslocamento simultâneo de dentro para fora.
105

Figuras 24, 25, 26 e 27: Cenas do filme Ano 2020.

Desde a reunião do dia 19 de junho de 2020 até a diária de filmagem, a perspectiva


sobre a palavra periferia mudou. Acredito que é possível afirmar, a partir dos indícios, que
este processo de ressignificação simboliza uma aprendizagem de conceitos a partir da
experiência, do que é vivenciado e não do que é dito por alguém externo àquela realidade.
Inicia-se pelo contraponto com o centro e vai tomando forma para compreender a periferia a
partir dela mesma.
Ao longo do filme, o encadeamento de ideias culmina no clipe da música, que, como o
nome “Favela cartão-postal” já nos conta, propõe apresentar as imagens que fazem parte do
postal da periferia. Assim o faz a partir de seus próprios sujeitos, um exercício de auto
representação do que significa ser e estar naquele espaço específico. E não apenas de
representação, mas também de imaginação do que ainda pode ser vivido.

A minha favela / é meu cartão postal


Tudo dentro dela / é cultural
Sente a pressão / escuta o tambor
Pega a visão / de um menor sonhador
Funk é favela / respeita ela
Cada casinha / que deixa ela mais bela
Quebrada em paz / a criançada sorrindo
Várias pipas no céu / hoje o dia ta lindo
Não fica com medo / meu povo acordou
Já sofremo muito agora o tempo ruim passou
106

Figuras 28, 29, 30, 31 e 32: Cenas do filme Ano 2020.

O espaço apresentado nas cenas do clipe assinala diversos pontos importantes para a
construção do espaço fílmico no qual a história de Ano 2020 acontece
(KHATCHADOURIAN, 1987; ORUETA, VALDÉS, 2007). As locações escolhidas para a
gravação da diária presencial dão dicas para a compreensão dos espaços que atravessaram as
reflexões sobre a vida no ano de 2020. A escolha de filmar no Pocinho – nas suas ruas, quadra
e campo; na escola Polivalente; na UFOP; e na pixação “Vacina para o povo já!” demarca em
tela o universo singular do grupo.
As conversas sobre o mundo em que se vive permearam o caminho percorrido nas
reuniões e ajudam a costurar imageticamente a experiência dos adolescentes em 2020. E esses
diálogos destacaram a relação com o espaço escolar, o bairro, suas casas e a realidade que se
instaurou durante a pandemia na esfera micro e macro, trazendo questões referentes ao país e
ao mundo.

Uma imagem do filme que entrelaça


vários desses espaços de forma simbólica
é a cena da bicicleta no mapa (FIG. 33).
Nela é possível ver um mapa de Ouro
Preto com o caminho entre as duas escolas
presentes na história do grupo: Adhalmir
Santos Maia e o Polivalente. Na animação
Figura 33: Cena do filme Ano 2020. realizada, esse percurso é desbravado por
um dos adolescentes que está empinando a bicicleta (dando grau) e saltando o coronavírus. A
apropriação de um mapa virtual nos apresenta a representação de um espaço físico
significativo para a vivência dos estudantes, assinalando mais uma vez de onde se fala. A
animação o coloca no contexto da pandemia – a “fase ruim” que vai ser ultrapassada. Além
107

disso, a prática de dar grau de bicicleta foi algo recorrente nas falas dos meninos sobre a
relação com a cidade – é uma de suas práticas espaciais.

Oi oi, bom dia gente. Como é que tá aí em casa,


presos? E o coronavírus? Prendeu todo mundo na
cadeia. A cadeia de casa, tá lavando muita roupa?
passando muita roupa? Oi gente. A ieu aqui
também presa. (risos)

Figura 34: Cena do filme Ano 2020.

Essa fala aparece em uma das cenas do filme, e é dita pela avó de um dos
adolescentes, dirigindo-se ao público. A concepção da casa como prisão é indício de uma
ressignificação desse espaço decorrente do isolamento social da pandemia, e também demarca
de qual tempo se fala, um tempo pandêmico. A impossibilidade de sair de casa, para ela, ou a
impossibilidade de ir para escola, no caso dos adolescentes
No dia em que assistimos às filmagens feitas com a câmera pela primeira vez (6 de
abril), Arthur comentou sobre a pandemia e como ficamos “presos em casa”. Ele fez menção
à fala acima e também lembrou de comentários feitos quando vimos as imagens da escola.
Um dos meninos disse que estava com “saudade desse presídio.” Ele já havia dito isso
anteriormente, e ao explicar que sente saudade de um espaço em que se sente preso, apresenta
o lampejo de uma relação complexa com o espaço escolar a partir da ausência dele. Depois do
comentário de Arthur, o diálogo também é revelador do momento pandêmico.

Loki: (risos) Mas era uma prisão… mais ou menos né…


Arthur: É… prisão livre né? Pode entrar e sair, tem hora pra entrar e hora pra sair.
Tá livre. Acho que a casa tá mais prisão que escola, que teoricamente a gente não
pode sair hora nenhuma.
Hórus: Eu tava vendo lá… é crime os professor deixar os aluno depois do horário,
tá? (risos) Deixar nois muito tempo depois da aula…
Loki: Vai denunciar procê ver!
Hórus: Não dá nada… Eu não, não tá me prendendo mais.
Loki: (risos) Agora só o governo só, toque de recolher.

Nessa conversa, estão entrelaçadas a relação com a escola, com a casa e com a própria
cidade – o que transparece na expressão “toque de recolher”. Em mais de um momento, foi
cogitada a possibilidade de se produzir filmagens mostrando as aglomerações na rua, para
108

representar como esse período estava se dando realmente na região. Um dos adolescentes, em
especial, mostrava-se interessado em abordar isso no filme e, na reunião do dia 8 de fevereiro,
chegou a apresentar a ideia de falar sobre o centro nessa perspectiva:
Hórus: O recomendado era o quê? Ficar em casa, não fazer aglomeração e... aqui em
Ouro Preto teve vários lugar que pegou assim aglomeração, tipo cachoeira das
andorinhas, tava lotada. Aí a guarda chegou, tirou todo mundo. O centro tava lotado,
a guarda chegou também avisando pra não ficar assim no centro, entendeu?

Nesse mesmo dia, ele trouxe à tona outro momento significativo da realidade da
pandemia:
Hórus: Nó, Mariana também foi outra… Quando tinha a campanha política lá, ali na
rodoviária não cabia mais gente... Era gente demais que tinha. E a gente nem tinha a
ideia de começar o filme, entendeu, se tivesse dava pra ter filmado. Tava muito
lotado. Vários lugares lotou... Bar fica lotado, cachoeira fica lotada... Comércio
também, alguns ficam, outros não.

Ainda falando sobre a pandemia, na reunião do dia 29 de março, ele contou que tinha
ouvido uma tia dizendo que não sabia se tomaria a vacina porque tinha gente morrendo depois
de receber a dose. Sobre isso ele disse “Ó as ideia da minha tia, gente... Fica vendo essas
bosta nesse trem de whatsapp aí…”. Esse comentário é representativo do fenômeno de fake
news que tomou conta do país, e também do negacionismo impulsionado pelas notícias
compartilhadas em grupos de mensagem. Depois disso, seguiu-se um diálogo sobre a
importância da vacinação. Quando alguém disse que o governo estava demorando para
vacinar a população, o mesmo adolescente disse: “O governo tá preocupado com dinheiro,
sô... Da economia. Essas bosta.”
Cito essa fala para ilustrar os comentários que apareceram sobre a vacinação – um
tópico importante nesse processo. Os adolescentes sempre demonstraram como estavam
preocupados com isso e queriam se vacinar logo. Os tópicos que se tornaram comuns por
conta da pandemia atravessaram todas as reuniões: aglomerações, mortes, vacinação. Em
mais de um momento os participantes falaram sobre a situação da região e do Brasil. E em
uma das reuniões também contrastaram com os dados que tinham sobre outros lugares do
mundo.
Em um deslocamento do macro para o micro, também foi possível observar momentos
em que a relação com o espaço domiciliar era trazido para a reflexão por meio das imagens.
Durante a reunião do dia 18 de fevereiro, a partir dos postais narrados inspirados nas janelas,
pudemos conversar sobre mais de uma casa retratada – e , num diálogo, em especial, sobre o
próprio quarto. Em um determinado postal, a pessoa dizia: “Essa janela é a que eu mais gosto,
pois é a janela do meu quarto”. Ao assistirmos a isso, no entanto, os adolescentes reclamaram,
argumentando que a resposta era óbvia. Arthur aproveitou essa reação e perguntou: “será que,
109

necessariamente, a gente sempre gosta mais da janela do nosso quarto?”. Provocava, assim,
uma reflexão sobre algo que parecia ser evidente para eles.

Arthur: Qual é a importância desse espaço restrito, né? Porque tipo… o quarto, lugar
que a gente geralmente fica mais à vontade, que às vezes a gente divide ou às vezes
a gente não divide… Talvez na quarentena é o espaço que a gente ficou mais, ou
não, cada um pode ter usado a casa de um jeito. Mas como que o quarto é um espaço
muito importante, né? Que a gente talvez… a gente passa… só dormindo a gente
passa no mínimo 8 horas nele.
Loki: Ah eu passo mais, tá? Eu passo umas 16 horas dormindo.
Odé: Sei lá, mano… Pra mim é um santuário sagrado.
Eu: [não havia entendido porque eles responderam ao mesmo tempo] o quarto é o
quê?
Odé: Um santuário sagrado.
Eu: Por que cê acha que é uma coisa sagrada, assim?
Loki: Lugar de… Eu acho que é um lugar de paz, vei.
Odé: Tipo assim, é o quarto, né? Único lugar que você pode realmente descansar
assim. Desligar, sem preocupar tá ligado?

Essas falas expressam mais um indício do processo alargado de reencontro com


espaço da própria casa durante a pandemia, propiciado a partir dos olhares compartilhados e
mediado a partir dos questionamentos da equipe. É importante também pontuar aqui outra
reflexão desse dia, expressa na narração de um dos postais, que indica uma elaboração
realizada durante o exercício proposto – e que aparece no filme, em articulação com imagens
feitas por mais de um dos adolescentes, que auxiliam a caracterizar o bairro em que moram.

Eu gosto dessa janela, gostei dessa janela, tirei essa janela


porque....nessa janela eu consigo ver a natureza, sabe? Eu
consigo ver plantas, além do horizonte eu consigo ver
uma montanha lá no fundo, e tipo essas coisas de natureza
me acalma sabe? Me traz uma paz. Tipo assim: eu quando
eu acordo, na janela de lá de casa eu consigo ver o pico,
as montanhas, o verde. E tipo assim... que eu acordo e
isso me traz uma paz, quando eu vejo isso, entende? E é
basicamente isso, pô. Como eu acordo e olho pra uma
janela, que é a janela de lá de casa, uma coisa que eu
quero ver é isso, natureza, verde. Eu não gosto de acordar
e ver, olhar prédio do lado, asfalto, carro...prefiro um
lugar mais calmo, onde mostra o verde, céu bonito,
entendeu. Então é isso pô, mato… coisas da vivência
assim da natureza, no geral é isso né?! Me acalma, me
traz paz, traz uma… uma... sei lá, transparência. E aí eu
fico refletindo, eu reflito, eu reflito um pouco da vida, de
coisa que vai vim, que vai acontecer comigo, que já
aconteceu, o que eu posso mudar, o que eu posso
melhorar, entendeu? Reflito na vida, na da minha família,
pessoas que eu gosto...basicamente eu reflito em tudo.

Figuras 35 e 36: Cenas do filme Ano 2020.


110

Ao ouvir sobre a relação com a natureza e a vivência que possui, em contraponto com
a vista cheia de carros e trânsito que ele não gosta, considero esse um lampejo da maneira
desses jovens de perceber as especificidades da periferia na própria cidade. A caracterização
do bairro fora do centro, nesse caso, é permeada por imagens de árvores e montanhas em
volta. É mais uma demarcação da realidade na qual e com a qual o filme foi produzido, que
não se pretende que seja a mesma de uma cidade grande. Lembro, então, das palavras de um
dos adolescentes quando chegamos para a exibição presencial no 23º FestCurtasBH: “Atenção
BH, os da roça tá chegando!”.
Atravessado e atravessando o mundo externo, está o mundo interno de cada sujeito.
Considero que, assim como a encruzilhada da produção do espaço, esse atravessamento se dá
entre o ser e o estar, entre o que se sedimenta ao longo do tempo e o que incide para a
mudança. Percebo a produção do espaço sendo costurada com a própria produção de si por
meio do tempo do audiovisual, que possibilita parar, filmar e dizer. O pensar por meio das
imagens dá a oportunidade de elaborar e enunciar as formas com as quais nos relacionamos
com o mundo, e também sobre como nos enxergamos nesse mundo.

3.3 Reflexões sobre o mundo que se é

Em um contexto de produção que aborda o ano de 2020, as conversas se deslocaram


entre lembranças e possibilidades do que poderia ter acontecido, o que de fato havia passado,
o que estava ocorrendo no momento, e o que aqueles meninos gostariam que acontecesse no
futuro próximo. O movimento entre as temporalidades experienciadas pelos adolescentes
rendeu momentos de reflexão sobre o próprio ser e estar de cada um.

Igual... a gente tá passando por uma fase ruim, tá ligado, é...esse pandemia,
coronavírus. Eu tipo... tô com essa fase ruim mas tô com uma fase mais ruim ainda
que é muito foda. A adolescência é uma coisa esquisita tá ligado? Eu falo isso para
vocês porque eu tô vivendo essa fase. A adolescência, os hormônios à flor da
pele...os bagulho tudo ai que fala. Mas é uma fase muito ruim, sabe? É… na vida
tem altos e baixos e.... agora o mundo todo tá passando por uma baixa, né?! Ou o
Brasil em si. Mas a gente vai superar. Enquanto a gente supera isso, eu também
tenho que superar o que eu também tô passando…

Essa fala está presente em uma das cenas de Ano 2020, em uma filmagem feita
enquanto um dos jovens andava de volta para casa. O que ele diz enquanto conversa com um
público imaginário é indiciário da potencialidade do audiovisual em fornecer ferramentas para
a elaboração e a enunciação de vivências, que, nesse caso, embaralham o individual e o
coletivo. Isso se relaciona com a perspectiva de pedagogia das imagens de Anita Leandro
111

(2001), que compreende a possibilidade de um processo cognitivo próprio da criação


audiovisual.
Além disso, quando esse jovem diz sobre o período pandêmico aliado ao período da
adolescência como uma fase ruim ou uma coisa estranha, considero esse um dos lampejos
percebidos sobre os efeitos emocionais e psicológicos da pandemia nos sujeitos. Na reunião
do dia 2 de março, foi possível presenciar uma troca sobre percepções da pandemia, em um
encontro permeado por reflexões sobre o isolamento:

Loki: Nós já tá há um ano sem estudar... Eu tô. Tá sendo muito ruim, carai.
Querendo ou não, agora tá sendo muito ruim.
[silêncio]
Arthur: Por que não tem a rotina, né?
Loki: É, aí embaralha tudo... por isso que eu to meio mal esses dias assim também...
Tem mais coisa, mas por isso também.
[...]
Arthur: Ou seja, você acha que a pandemia agrava as sensações?
Loki: Eu acho que sim, porque a gente fica numa rotina muito repetitiva e se a gente
não tiver um trabalho, algum passatempo assim, aí a rotina fica muito repetitiva e a
gente começa a pensar muito... E pensar muito acaba com o psicológico da gente.

Depois que ele diz que está mal, entramos na reflexão sobre o que o isolamento causa
em nós. Raquel e eu sugerimos a ele atividades que ocupassem a cabeça – como atividades
físicas e fotografar. Ele seguiu falando sobre a solidão.

Loki: Tipo, eu sempre fui assim... Gosto de passar sozinho, tá ligado? Mas a
quarentena piorou isso. Não era tanto, agora a quarentena piorou isso.
Raquel: É porque antes era por escolha sua, e agora você não tem mais essa opção
de escolher, você é obrigado. Tem uma grande diferença.
Loki: Nem tanto, porque independente da quarentena ou não a gente… Igual eu, ia
pra casa dos meus parentes, chamava meus amigo pra vir aqui... Então ficar sozinho
ainda é uma escolha minha, tá ligado? Eu só não sei se isso tá me fazendo bem ou
me fazendo mal.
[silêncio - toca uma música de fundo em algum lugar]
Arthur: É, eu fico pensando também que tem essa coisa… Eu não sei, né, por
exemplo… Quando não tinha quarentena, eu acho que ainda assim ficar sozinho é
diferente, sei lá. Ficar sozinho no canto da escola, ficar sozinho em uma praça, ficar
sozinho no mirante. É um outro tipo de estar sozinho, porque essa coisa da
quarentena é muito na casa, né… Muito dentro de casa. Muito…
Eu: Não tem outros espaços... assim, né?
Loki: Tipo, você fica isolado.. Querendo ou não, você fica isolado do mundo
porque é um isolamento. Tipo pra você... Você tá se protegendo e tá protegendo as
outras pessoas. Mas, querendo ou não, um isolamento te faz mal, carai.

Esses trechos do diálogo sintetizam diversas conversas e comentários pontuais feitos


durante o processo de produção e simbolizam as angústias enfrentadas coletivamente durante
a realidade pandêmica. Apontam também a forma como a recepção dessas manifestações se
deu por parte dos educadores. Em uma reunião anterior, do dia 8 de fevereiro, também foi
possível observar uma conversa com o mesmo teor, dessa vez com as percepções de Raquel:
112

Loki: Nessa pandemia, tipo… a gente que é adolescente, a gente tá sem nada pra
fazer ... adolescente, criança... Criança até que não. Tipo, a gente fica muito...
Depois de um tempo cê começa a num querer fazer nada... Aí cê pega alguma coisa
pra fazer, cê num faz, cê fica desanimado. Eu não sei porque, deve ser tipo um
sentimento de solidão assim mesmo, sabe?
Raquel: Mas num é nem só adolescente não, eu acho que isso é todo mundo assim…
Porque é tudo tão igual, é todo dia tanto a mesma coisa, que cê fica querendo,
esperando que alguma coisa diferente aconteça, só pra sair um pouco daquilo, e aí cê
fica meio com preguiça assim mesmo, de falar assim “Ai, hoje vai ser igual a ontem,
que vai ser igual amanhã, que foi igual a 30 dias atrás, que foi igual um ano atrás!”
Loki: Grande bosta, nó! Esse trem de pandemia tá acabando com a minha mentali…
Minha… Esqueci. Minha mente. Porque não tá ocupando minha mente, aí… vei…
parece que cê vai ficar louco assim, tá ligado? É muito ruim.
Arthur: Mas agora cê tá fazendo um filme, cê tem o que pensar ó. Foca no filme.
Raquel: Ocupa a mente com o filme!

Escolhi trazer esse trecho para indicar um rastro das trocas propiciadas pelas
conversas sobre os dispositivos – nos quais, em diversos momentos, os adultos também
puderam dividir suas reflexões, validando as experiências, mas buscando compartilhar outras
perspectivas. Além disso, também quero destacar a sugestão de Arthur e Raquel no sentido de
que o adolescente se ocupasse com o filme. Quando eles dizem “foca no filme” ou “ocupa a
mente com o filme”, não interpreto isso como um silenciamento do que está sendo
compartilhado pelo estudante – porque, em outros momentos, a mesma reflexão foi respeitada
e dividida pelo grupo. Considero uma postura que compreende a limitação do acolhimento
possível para as demandas emocionais e psicológicas, e que coloca o fazer cinema como uma
prática de cuidado e exercício mental que poderia auxiliá-lo naquele momento.
Durante essa mesma reunião, em uma reflexão sobre suas relações na escola, o mesmo
adolescente comentou sobre os tipos de grupos presentes nesse espaço, e considero essa uma
pista da construção de identidade no período da adolescência. Uma fala que expressa um
pertencimento que está para além de posições dicotômicas em relação a sua experiência com
o espaço escolar – ou com os lugares fixos nos quais os estudantes podem ser percebidos. Os
papéis de nerd ou descolado não são suficientes para explicar a visão de si mesmo.

Loki: Na escola, eu já fiz até um vídeo pro meu canal disso... Na escola tem 3 tipos
de grupo: os nerds, os descolados, e tem a gente... Tipo eu, o Odé. Que são nerds
disfarçados de... Não. São descolados, mas são nerds. Então a gente pega tudo isso,
e é a gente, tá ligado? Porque a gente gosta de estudar, mas é descolado também.
Tipo, nós não gosta de ficar perto de pessoas, receber elogio, esses trem assim... Mas
a gente gosta de estudar também, tá ligado? Então geralmente a gente não se
encaixa em algum grupo, a gente gosta de ser a gente. A gente, os dois.

O fato de esse jovem ter relacionado um vídeo produzido para seu canal (gravado em
março de 2020, em que reflete sobre sua escola) com a visão que ele tem de si mesmo e do
amigo próximo evidencia a potência do audiovisual para permitir o compartilhamento desse
processo de elaboração. Isso possibilita que ele converse com um outro, o público. Essa
113

reflexão, situada no contexto da reunião, em resposta ao que Arthur havia questionado sobre
um comentário anterior, é a abertura para mais uma enunciação sobre seu lugar nesse espaço.
Em um dos vídeos que não foram para a montagem do filme, um adolescente gravou a
si mesmo durante mais de 20 minutos. Nesse tempo, ele fala olhando para a câmera, como se
conversasse com alguém. Em um dado momento, diz que talvez precisasse refazer alguma
filmagem em função de sua forma de falar, mas então muda de opinião: decide que falaria
daquele jeito mesmo porque aquele era o seu jeito. E completou:
Eu tô conversando aqui agora, cês acha que eu to conversando aqui… falando com o
pessoal da oficina, mas não mano, aqui eu tô conversando com a câmera, cê tá
entendendo? Eu realmente tô conversando com a câmera… e comigo. Porque eu tô
olhando pra mim.

Tendo a câmera como interlocutor para falar consigo mesmo, ele segue em um
monólogo repleto de reflexões pessoais. Diz que dialoga muito com ele mesmo e reforça:

Nesse exato momento, eu tô conversando com a câmera e comigo mesmo. Às vezes


eu falo alguma coisa de mais porque eu tô pensando que tô dialogando comigo
mesmo. Já cheguei a pensar que era paranoia, mas isso é palhaçada, tem nada de
paranoia, não… eu acho que é só convivência com a solidão. Aprendi a conviver
comigo mesmo, a conversar comigo mesmo e nisso aí eu fiz minha própria amizade
comigo mesmo.

Nessa cena, ele está bem próximo da câmera e, porque a imagem está com efeito, ela
fica bem escura. Ele segue falando baixo, em tom de voz sério. Fala sobre a solidão e diz que
teve que aprender a lidar com isso desde cedo:

Aí as pessoas, quando vê eu quieto demais, vê que eu tô afastado, não falo muito se


eu ficar uma semana, um mês sem falar... não é porque eu tô com raiva... é só
porque eu afastei... porque eu quis, tá ligado, porque eu gosto de ficar sozinho. E de
comunicar comigo mesmo.

Ele diz isso com os olhos fixos na câmera e vai falando cada vez mais baixo, até
terminar a frase. Então se afasta de uma vez e diz alto: “Mas enfim, pera aí ó ... pega essa
edição aqui, pega!”, enquanto se levanta da cadeira e mostra a tela do celular para a câmera,
com uma cena do Free Fire. Esse é o único registro não comentado em reunião, nem
selecionado para o filme, que escolhi trazer para reflexão. Fiz isso porque esse trecho
explicita de forma mais contundente o falar com a câmera no processo de reflexão de si
mesmo.
Ao assistir o mergulho que o adolescente faz em si mesmo durante essa filmagem,
lembrei dos filmes La Haine (O ódio) e Taxi Driver. Falo de cenas em que pessoas postadas
em frente ao espelho perguntam “você está falando comigo?”, de forma a intimidar um outro
imaginário. No vídeo em questão, no entanto, o monólogo é longo e às vezes interrompido
114

por outras personagens que passam pelo quarto do adolescente enquanto ele segue em seu
fluxo de pensamento – e em mais de um momento, ele diz que sente raiva. Segundo ele, o que
o tranquiliza é editar seus vídeos de jogo.

Bagulho de edição pra mim é como se fosse uma válvula de escape imensa ta
ligado? Quando eu tô editando eu esqueço da vida... Quando eu aprofundo de
verdade numa edição, porque é um bagulho que demora. Pra fazer uma clipada eu
demoro uma hora e meia, dependendo do que eu faço. É um bagulho que te prende e
me ajuda, tá ligado? E por isso que eu gosto, porque me ajuda a espairecer a mente.

Nesse vídeo, a câmera aparece como o elemento que o encara de frente, instigando sua
mente a caminhar pelos tópicos que apresenta na fala, sem roteiros, e parece que ele
desenvolve uma interpretação de si mesmo para o público imaginário que o assiste. A edição
aparece como forma de esquecer as próprias angústias que apresenta. Um exemplo de como o
audiovisual pode mobilizar de diferentes formas conforme a prática que é realizada.
Em outro momento de reflexão possibilitada pelo exercício do audiovisual, um dos
postais narrados apontou para o processo de associação das imagens com o que existe para
além do que está explícito, em um fluxo de significação compartilhado conosco.

Eu gostei dessa janela, desse vista da onde que eu tô, na


minha tia, por causa que mostra muito a natureza e
também mostra muito o céu e as nuvens. Porque tá frio
pra carai aqui, tá ligado? Tá muito frio aqui e eu num
gosto de… Não, calma. Eu gosto de frio. Num gosto
muito de calor por causa das doenças que eu tenho. Mas
tipo, me lembra muito roça, lugar pra ficar tranquilo,
frutas que aqui tem muitas… Natureza, animais… que
aqui também tem muito. E me lembra muito, é… meu
vô. Porque meu vô morava na roça, infelizmente ele
num tá entre nós e isso me lembra muito ele. Isso é
muito legal porque lembranças assim, das pessoas que a
gente ama, que a gente convive, é muito bom, né? Ter
lembranças, assim… de alguém que a gente ama, de
alguém que a gente conhece. É muito bom porque isso
dá um ar tipo, é… Cê fica feliz, né? Porque cê tá
Figura 37: Postal narrado.
lembrando da pessoa que você conhece, que você ama,
que é seus parente. E é isso.

Essa fala também denota a possibilidade de pensar sobre si ao dizer sobre os espaços e
as relações que os constituem. No momento da reunião, esse áudio mobilizou a reflexão de
Raquel e a fez lembrar de “uma coisa que tem tudo a ver, mas não tem nada a ver”, que é
como ela associa andar de ônibus com a lembrança de seu próprio avô. A partir disso, Arthur
comentou os processos de significação por meio da imagem, dizendo que o áudio
115

ensina pra gente uma coisa que é muito importante pro filme: é que a gente não
precisa sempre mostrar a coisa que a gente tá falando, sabe? Pra ele falar e trazer a
presença do avô dele, ele não precisou mostrar uma foto do avô dele. Não precisa ser
tudo, no audiovisual, tão diretamente conectado. A gente pode criar outras relações
com as imagens a partir dos significados que a gente dá pra elas, sabe?

A potencialidade sensível do audiovisual é uma expressão do fazer e pensar


simultâneos, que são experienciados pelos sujeitos envolvidos. Por meio de sua linguagem, é
possível conversar consigo mesmo, com um alguém imaginário ou só mesmo dizer. No ato de
criação, é possível experimentar o movimento entre diversas temporalidades, e elas
atravessam as imagens, sons e conversas desenvolvidas ao longo do processo de produção.
Ao elaborar a experiência vivida no ano de 2020, foi possível perceber a noção de que aquele
foi um ano que não acabou, ou pelo menos que não acabou na virada do calendário.
“Eu acho que o ano de 2020 tá sendo mais agora, em 2021, porque cê tá vendo que
agora as pessoas tão preocupando, porque lá no começo ninguém tava preocupando, não.”
Essa é uma fala do dia 15 de março, que expressa uma sensação que foi compartilhada por
mais de uma vez nos diálogos que tivemos: essa de que o ano não havia acabado, mas apenas
permanecido. A continuação da pandemia, aliada ao fato de que os adolescentes seguiam
fazendo atividades do ano letivo anterior, provocava a sensação coletiva da persistência de
2020.
Trago o texto apresentado pelo júri da Mostra Competitiva Minas do 23º
FestCurtasBH, na cerimônia de premiação dos melhores filmes, para pensar a encruzilhada de
tamanho global que foi (e ainda é) a pandemia da Covid-19, e o encantamento que percebo no
fazer cinema. Por possibilitar fazer as encruzas do que foi, está sendo e será. O filme vencedor
da escolha do júri foi Para as gerações que vieram antes de mim, de Filipe Bretas Lucas, e,
mesmo não dizendo diretamente sobre Ano 2020, esse trecho diz sobre a mostra de que
fizemos parte e ressoa pensamentos que, de alguma forma, foram encarados em seu processo
de produção.

“Uai, como é que poderíamos começar? Eu acho que a gente poderia começar com a
minha história mesmo”. Memória, comunidade, afeto, família, tempo. Foram esses
temas recorrentes entre os filmes selecionados para a Competitiva Minas desta
edição do FestCurtasBH. Nos parece que, em tempos de distopia pandêmica, onde
perdemos muitos de nós e de nossas referências, tivemos ao mesmo tempo que lidar
com uma temporalidade nunca antes experimentada na história. Espera, cuidado,
pausa. Ao trazermos a memória, a reflexão sobre o tempo e a espera se fizeram
verbo presente. Impossível não pensarmos no passado porque o futuro pareceu estar
suspenso. Estava difícil fazer planos. Que tempo era esse em que estávamos
vivendo? Sonhamos, contudo, com um tempo pós-pandêmico, onde tudo e todas as
coisas seriam possíveis. Alguns de nós traçou planos, outros não conseguiram
sonhar. Isso porque o agora nos impôs a espera e o luto. Seria a saída possível
revirarmos nossos arquivos pessoais e ouvirmos nossas histórias? O que esteve em
116

jogo em quase dois anos de pandemia? Muitas coisas. E entre elas, uma se impôs: a
vida.
(DA COSTA; ARAÚJO; GUARANI, 2021)

Considero esse momento do festival como fechamento de um dos ciclos de Ano 2020,
e, enquanto assistia à premiação, pensei sobre o quanto essa fala está relacionada à
encruzilhada que pude perceber em nosso trabalho coletivo. Durante as conversas, os sonhos e
a invenção se misturavam com a crueza da realidade imposta enquanto pensávamos no que
tinha acontecido – e o grupo olhava de um lado para o outro buscando entender como
codificar, na linguagem do cinema, a experiência da vida. Essa que pulsa apesar das políticas
de morte, do desânimo e da desesperança.
Rodopiando por entre lembranças e planos, tentando atender à urgência do agora, a
experiência da produção de Ano 2020 aconteceu entremeada de diferentes rotinas e formas de
engajamento, e o filme emergiu do encontro das sensibilidades dos sujeitos envolvidos em sua
realização. Na última parte da reflexão falo um pouco mais sobre as encruzilhadas que percebi
enquanto observava e participava.

3.4 Rastros das encruzilhadas

Porque nem sempre é sobre cinema, né? Nem sempre é sobre a imagem, às vezes a
gente vai só se encontrar, e falar sobre a vida, falar sobre o cotidiano. E isso também
ajuda muito a gente, não é só vocês. O que a gente quer dizer no resumo é que a
gente tenta ao máximo, que foi isso que a Raquel falou e a gente é muito feliz por
isso, que nesse grupo aqui todas as pessoas possam falar, não só quem é professor,
aluno, estudante, adulto, jovem, preto, branco, homem, mulher… Que todas as
pessoas que venham aqui conversar com a gente, que esteja aqui pra fazer filmes, ou
pra trocar imagens, ou pra ir pra BH, ou pra cuidar da horta, ou pra caminhar no
bairro, ou pra fazer filme na escola… Que todo mundo que chegue possa se sentir
acolhido aqui nesse espaço, porque a gente sabe que às vezes o mundo lá fora não é
acolhedor com a gente né? Tira onda com a nossa cara, diz que a gente tá fazendo as
coisas erradas, diz que a gente não vai chegar a lugar nenhum, diz que a nossa vida é
uma merda, e talvez aqui a gente encontra um espaço pra gente falar “Olha, não é
tão assim, peraí, existe uma outra… Minha vida não é isso que tão me contando.” A
gente pode escrever junto uma outra etapa dessa vida, sabe? Vamo ver o filme que
eu já tô ficando emocionado.

A fala de Arthur durante a reunião do dia 2 de junho de 2021 é permeada por emoção
e sintetizou sua relação afetiva com a Olhares minutos antes de assistirmos ao corte do filme,
pela primeira vez todos juntos. Ao mesmo tempo em que diz dos adolescentes, está dizendo
de si mesmo, e refletindo sobre o que pulsa como cerne deste grupo, além de seu objetivo
primeiro, que é fazer cinema: o encontro. Deixar explícito o esforço de construir a Olhares na
condição de espaço de acolhimento é também expressar, em palavras, que a força do que está
sendo feito vem dos encontros que são possibilitados pela educação audiovisual.
117

A potência desses encontros está no que se compartilha das diferentes experiências de


vida e pontos de vista. Quando observo as conversas, percebo o que foi almejado na criação
da Olhares a partir de seu referencial que bebe do método psicanalítico para escutar o que é
indizível. Principalmente a partir dos atos de escuta, que simbolizam um movimento de
autorização do Outro, como diria Grada Kilomba (2017).
Porque a conversa não é apenas ouvir, mas se engajar com o que o outro diz – e na
Olhares isso acontece como parte de um processo dialógico alargado, que é a produção
audiovisual coletiva. A encruzilhada como símbolo da comunicação – do que existe no entre
do grupo – se apresenta nessas conversas que podem ou não chegar a conclusões explícitas,
mas que expressam os diferentes atravessamentos presentes no grupo e se abrem para outras
encruzilhadas de pensamento. O próprio filme é uma conversa que, em si, carrega outras
conversas.
Assim como a encruzilhada carrega a potência exusíaca da dobra da realidade e do
repensar, o modo de fazer cinema da Olhares reflete a preocupação em pensar o real a partir
de fabulações e dar espaço para que o encontro de diferenças aconteça. O que surge dessas
trocas está além do que pode ser registrado em filme, mas pode ser proporcionado pelo
contato reflexivo com o audiovisual e por ele interpretado.
Por isso, quero analisar também as próprias encruzilhadas que me apareceram de
forma pessoal nesse caminho de participação no grupo durante os encontros online. Situações
que demarcaram minha presença, relacionadas a questões identitárias alinhadas à minha
experiência com o mundo, e que, no contexto da pesquisa, expressam a afetação mútua entre
mim e os outros participantes. Recorro a elas para indicar potencialidades exusíacas que pude
perceber dessas trocas, que refletem a própria forma com a qual o grupo lida com a diferença.
No dia 21 de junho de 2020, dois dias depois da segunda reunião, recebemos algumas
fotos retratando uma oferenda deixada em uma encruzilhada no Pocinho. O áudio que
acompanhava as imagens dizia: “Aí ó, pra vocês que nunca viram uma macumba”. As únicas
respostas foram de Arthur e de outro adolescente. Depois disso, ninguém mais comentou
sobre a foto. Outra imagem sem relação com essas foi enviada, e outros assuntos apareceram.
Só fui ver essas mensagens alguns dias depois, e ainda não estava participando dos encontros
online. Mas por muito tempo essas imagens ecoaram na minha cabeça, intrigada com o
aparecimento de uma encruzilhada literal nesse momento da minha observação – e pensando
sobre a visão pejorativa reservada a essas oferendas nessa região extremamente católica, que é
a Região dos Inconfidentes.
118

Figuras 38 e 39: Capturas de tela do grupo do whatsapp.

Com o propósito de utilizar o material de arquivo em Ano 2020, as imagens trocadas


no grupo do whatsapp foram aproveitadas na sequência inicial, inclusive essas da
encruzilhada. Enquanto assistíamos ao filme pela primeira vez, o mesmo menino que
fotografou a oferenda disse que não tinha gostado da inserção daquelas fotografias. Quando
terminamos de ver, ele reforçou, dizendo que havia gostado de tudo, menos das fotos da
“macumba”. Não queria que elas entrassem no filme. Como explicito na observação desse dia
(APÊNDICE C), refleti se deveria dizer alguma coisa – e assim que ele falou novamente
sobre não ter gostado da inserção das fotos, perguntei a razão disso.
Quando o adolescente comentou que não queria a imagem porque “macumba não era
coisa boa”, me senti em uma posição que trago aqui sobre a encruzilhada se apresentar como
o que coloca algo em crise e demanda uma tomada de decisão. Nesse momento, decidi que
iria retribuir o embaraço e aproveitar para compartilhar informações, na tentativa de colocar
as questões em perspectiva. Então falei que tinha que contar uma coisa para ele: que eu era
macumbeira. A escolha da palavra não foi impensada. Depois do choque inicial, pude explicar
diversas questões sobre as religiões de matriz africana sobre as quais ele disse nunca ter
conversado nem ouvido falar. Então se mostrou curioso, interessado em conhecer mais.
Nessa conversa eu fui, conscientemente, o Exu da situação. Busquei causar um
estranhamento com relação às ideias sedimentadas enquanto explicava várias coisas a partir
das perguntas que ali se apresentavam. Fiz isso contando parte de minha história,
119

demonstrando que, para além de explicar coisas, queria compartilhar algo com eles.
Compreendo a problemática em me colocar de forma tão contundente e explícita durante a
reunião, questionando uma posição referente ao filme. Para mim, porém, essa é uma questão
ética que não poderia deixar em aberto. No decorrer da produção, a proximidade que
desenvolvemos foi baseada em respeito mútuo e partilha de si. Expressei-me não para
defender que a imagem estivesse no filme, e, sim, para que conversássemos sobre as
percepções presentes em nossa sociedade – que violentam diversos sujeitos.
O comentário de Raquel durante a conversa expôs o que havia de mais importante na
troca de ideias gerada por essas imagens, que era a “importância de a gente conversar
também, escutar as pessoas que são diferentes da gente, pra ir tendo esses outros pontos de
vista”. Esse deslocamento para compreender o ponto de vista do outro é a potência exusíaca
de colocar tudo em perspectiva. A partir dos encontros com a diferença, entender o que não se
sabe para provocar a mudança do que está posto.
Nessa mesma conversa, outro adolescente expôs que não teria problema em ir num
terreiro para conhecer mais – e poder passar essa visão para quem não conhece. “Posso não
ser da religião, passar a não ser, mas caso alguém vim, virar e falar: ‘é isso, é aquilo…’ Ó
mano, não é assim não, porque eu fui, aprendi, sei como o negócio é, então não é dessa forma
que cê tem que olhar não, não é essa maldade toda que cê vê, tá ligado?”. A partir dessa fala,
mais uma vez Raquel sintetizou outra potencialidade exusíaca que atravessa as formas de
pensar e fazer presentes na Olhares (Im)possíveis: a valorização da experiência encarnada.

quando a gente experimenta as coisas, e a gente vê com nossos olhos, a gente sente
com a nossa pele, porque aí a gente consegue tirar um pouco desses preconceitos, do
que as outras pessoas estão falando, e a gente pode falar ‘não, eu fui lá e eu vi como
é’, entendeu? Pra poder ir quebrando esses preconceitos que a gente vai
encontrando.

Ao evidenciar a importância do que se experiencia para a compreensão do mundo, ela


dialoga com a ideia de conhecimento que se constrói a partir da simultaneidade corpo e
mente, que não dissocia o racional do sensorial e possibilita um pensar por encruzilhadas. No
processo de produção de Ano 2020, a vivência dos adolescentes e a experimentação com as
imagens foram pontos de partida que mostraram os caminhos possíveis para o filme.
Além disso, outro momento que considero um rastro do que são as encruzilhadas de
lidar com o Outro aconteceu na reunião do dia 18 de fevereiro de 2021. Enquanto
conversavam sobre o que tinham achado da viagem a Belo Horizonte – para exibir o filme
entre_vistas no fórumdoc.bh – dois adolescentes mencionaram algumas diferenças observadas
120

em relação a Ouro Preto. Quando Arthur perguntou sobre as pessoas, um deles respondeu que
eram muito diferentes. E disse também:

igual o que você falou lá que não devia falar se era homem ou mulher não,
entendeu? Que o certo seria virar e perguntar. Pô, mas tinha muita gente diferente lá,
cara. Por exemplo, tinha um cara lá que eu achei que era mulher, mas na hora que eu
olhei pra perna tava toda cabeluda, tá ligado? Sem querer ofender, mas eu nunca fui
de ver isso em Ouro Preto, não.

Quando eu disse, rindo. que também não depilava as pernas, o menino afirmou que,
então, a pessoa em questão também era uma mulher 1. Nesse momento eu não sabia sobre
quem estavam falando, mas Arthur seguiu questionando se era mulher mesmo – e aí entendi,
nas entrelinhas, que podia se tratar de uma pessoa trans. Quando Arthur pediu para eles
descreverem a pessoa sobre quem estavam comentando, ele respondeu que não via mulher, e
um dos adolescentes falou do “cabelo dela, ou dele, não sei.” Arthur concordou e a conversa a
seguir aconteceu:
Arthur: Ah… agora sim tamo…
Odé: Ah, o Arthur já considera né? Porque pra Arthur já é mais fácil…
Loki: Não é que é mais fácil, é porque tipo…
Odé: Já acostumou!
Loki: Ela escolheu aquela sexualidade pra ela então Arthur sabe que ela quer que ele
chama ela daquele jeito.
Arthur: Cê também sabe, cê tá falando aí!
Loki: É, uai.
Arthur: Se cê tá falando que eu sei, cê também sabe uai.
Loki: É, uai! Mas é diferente… é diferente pra nós.
Odé: Só não tem o costume de falar assim normalmente ainda, sabe? Ainda tem que
bater uma lembrança. Lembrar ainda de que tem que falar desse jeito.
Arthur: Mas aqui, vamo supor. Vamo pensar… Naquele caso, de uma pessoa que
tava levando a gente pra ver uma exposição. Mudaria ser homem ou mulher?
Os dois adolescentes juntos: Não.
Loki: Nem reparei, véi.
[Arthur ri]
Odé: Pra falar a verdade nem eu. Eu, assim de cara na hora que eu olhei, achei que
era menino, sinceramente…
Arthur: Mas era talvez…
Odé: Tava de bigodin ralinho, pô… Falei ‘ah, sei lá, deve ser um menino assim…’
Eu: Mas cês sabem o nome da pessoa?
Loki: Não lembramos…
Odé: Pô, eu não lembro.
Loki: O Arthur deve saber!
Odé: Arthur deve saber!
Arthur: Eu sei…

1
Uma nota importante sobre isso quase um ano depois, em janeiro de 2022: hoje me compreendo enquanto uma
pessoa trans não-binária e uma parte essencial do processo até essa conclusão foi ter que me olhar sempre
durante as chamadas de vídeo da Olhares, quando me olhar era algo que não costumava fazer. Isso me ajudou a
perceber uma questão e entender o que era a disforia corporal. Também passei a perceber melhor alguns
problemas de foco e concentração ao me observar durante essas mesmas reuniões. Se essa conversa fosse agora,
meu posicionamento seria diferente. Mas no momento acredito que foi importante.
121

Quando Arthur falou o nome da pessoa, soube de quem se tratava. Exclamei, então,
que o achava lindo. Os meninos riram um pouco. Quando um deles perguntou se era “ele é ele
ou ele é ela?”, Arthur e eu respondemos: “Talvez nenhum dos dois”. Depois dessa resposta, a
conversa se dissipou. Os meninos se mostraram surpresos com o pôr do sol cheio de cores na
janela da frente, e então passaram a nos mostrar a vista. Cito esse diálogo porque acredito que
expressa a potência do questionamento como combustível para a reflexão – e que não se fixa
na busca de uma resposta definitiva. Durante a conversa é mais interessante que o grupo
continue se perguntando do que algum dos adultos repreender logo de início, dando uma
explicação formal. Sem a resposta, abre-se espaço para que o grupo tenha seu próprio
processo de compreensão, que se desenrola em diálogo.
Quando os guias deste processo de educação audiovisual decidem não ir pelo caminho
da repreensão ou do silenciamento, e sim da devolutiva da pergunta, do aprofundamento das
perspectivas, considero que a metodologia aplicada nas discussões da Olhares exemplifica
uma tomada de postura que é exusiástica. Os pontos de vista não são descartados, mas
reconhecidos e revisitados ao longo do diálogo. Além do centramento na escuta e na troca de
ideias, o erro é parte importante desse processo. E isso se fazia presente na própria postura
sobre o fazer cinema.
Durante as reuniões, partia-se do pressuposto de que não existia forma errada de fazer
os dispositivos, contanto que partissem do exercício proposto, e de que não havia imagem
errada, no sentido técnico da palavra, quando fizessem suas filmagens. Demarcando as
possibilidades de criação sem buscar limitar o que será criado a partir disso. Ao comentar
sobre uma foto enviada para o terceiro dispositivo, que pedia imagens com a ideia de perto ou
proximidade, Arthur expressou algo sobre essa perspectiva. O que ele disse indica o senso
estético que guia a produção: não coloca a “boa qualidade técnica” como mais importante na
hora de olhar para as imagens, e, sim, o que é possível dizer com elas abraçando seus
“desvios”.

É uma distorção mesmo, né? De tanta imagem de


imagem, a projeção de uma imagem, a outra câmera
não dá conta de captar e isso gera um efeito, que a
gente poderia… se a gente tivesse interessado numa
qualidade técnica super boa, a gente poderia
descartar essa imagem, né? Dizer que essa imagem é
ruim, porque ela tem algum desvio, porque ela tem
falha técnica, porque ela tem algum erro da
imagem… mas dependendo de pra que a gente vai
usar, é até mais interessante que tenham esses
desvios, né? Sei lá… Se a gente for parar pra pensar,
os filtros do Instagram fazem muito isso né? Vários
dos filtros dos aplicativos é colocar ruído, é alterar a
Figura 40: Fotografia realizada a partir do terceiro
dispositivo.
122

cor, é fazer movimentos que dependendo do tipo de


fotografia isso nunca seria aceito, né?

O princípio do erro e da pergunta como potência se fazem presentes também na


concepção compartilhada pelo grupo de que não há forma errada de interpretar as imagens.
Durante as conversas sobre os dispositivos, e quando assistimos ao filme juntos pela primeira
vez, as interpretações foram questionadas com a mentalidade de que as imagens podem dizer
muitas coisas diferentes, dependendo de quem olha. Isso evoca o entendimento da
pluriversalidade e os diálogos se dão na tentativa de colocar as perspectivas em cheque, sem
buscar necessariamente uma conciliação entre as formas de interpretar, mas a necessidade de
se pensar sobre elas.
A elaboração dos pensamentos por meio das imagens e sons demanda um tempo de
reflexão própria e, no contexto da Olhares, isso acontecia a partir das conversas dinâmicas
que iam e vinham, inspiradas por assuntos diferentes e interligando o que era visto nas
produções com outras conversas. Um processo de educação audiovisual que não se limita ao
que é planejado, e cresce a partir do encontro de ideias. No filme, isso está representado
também nas diferentes durações dos planos mais lentos e mais longos, e nas cenas mais
silenciosas, contrastando com sobreposições de vozes.
Lidando com o tempo da produção marcado por datas e prazos, misturado com o
tempo das diferentes realidades em jogo, cada reunião representava a suspensão e o
atravessamento do real. Mesmo com hora e dia marcados, no espaço virtual da chamada de
Zoom a vida continuava acontecendo na casa de cada um. Foram diversos os momentos em
que tive acesso a fragmentos da realidade de cada sujeito envolvido. Por mais que o formato
remoto conferisse distância entre nós, ao mesmo tempo abria-se uma janela para o espaço
íntimo da casa do outro. Considero que esse processo não mais era o “fazer cinema no espaço
escolar”, e sim “o cinema no espaço domiciliar”.
Não quero dizer com isso que fazer a produção no espaço online foi algo fácil, porque
os problemas de conexão ou impossibilidade de acesso também foram atravessamentos da
realidade com a qual tivemos que lidar. A falta dos encontros presenciais foi apontada como
dificultador por diversas vezes, assim como a ausência da escola, e, sem dúvida, isso afetou o
processo de produção do filme, assim como os momentos de desmotivação e cansaço. O que
aponto é que essa nova forma de encontro agregou em si novos espaços ao emaranhado da sua
encruza. O mundo, a cidade, a escola, o bairro, a casa, o quarto, todos compartilhados em tela.
A encruzilhada das temporalidades se apresentou no processo como entrelace da
experiência já vivida com a possibilidade de reinventá-la, reescrevê-la nos códigos
123

cinematográficos. O exercício de imaginar o que poderia ter acontecido foi incentivado


durante diversas falas da equipe e, por mais que os adolescentes às vezes tivessem dificuldade
em reimaginar o que foi o ano de 2020, esse deslocamento proposto trazia à tona lembranças e
sonhos, em um movimento de vai e volta na espiral do tempo.

Que navio é esse, que chegou aqui agora


é o navio negreiro com os escravos de Angola
Que navio é esse, que chegou aqui agora
é o navio negreiro com os escravos de Angola

Vem gente de Cambinda, Benguela e Luanda


Eles vinham acorrentados
Pra trabalhar nessas bandas

Que navio é esse, que chegou aqui agora


é o navio negreiro com os escravos de Angola
Que navio é esse, que chegou aqui agora
é o navio negreiro com os escravos de Angola

Esses versos, característicos da capoeira, aparecem no filme, cantados e


acompanhados pelo som do berimbau. Servindo de trilha sonora para as cenas de uma família
acolhendo a nova vida que chegou, e imagens de um jovem negro fazendo arte, considero esse
mais um rastro da encruzilhada. Unindo a história de quem veio para esse território à força e
as novas histórias sendo contadas, apresenta os giros da espiral do tempo que não ficou para
trás, mas renasce pelo ato criador.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando iniciei a trajetória do mestrado, sentia uma angústia diante da necessidade de


produzir um olhar localizado sobre uma iniciativa específica de educação audiovisual. Mesmo
compreendendo o curto período de tempo que teria para fazer a pesquisa, ia contra o meu
desejo de abraçar o mundo. Porém, assim que me permiti entrar em contato com a Olhares
(Im)possíveis, vi de perto um universo inteiro de reflexões. E ali enxerguei a grandiosidade
dos pequenos atos. Entendi que nos atos da Olhares moram fagulhas de utopia e delírio, que a
meu ver, faz sentido compartilhar. E assim como Vinícius da Silva (2021) aponta em
Barricadas para o fim do mundo,

(...) as utopias fornecem mecanismos de produção de sentido a partir de nossa


realidade e constroem o terreno fértil para as transformações sociais. Não há utopia
sem esperança, e isso significa dizer que o futuro é fruto de uma disputa coletiva
fundamentada na ética da comunhão. (p. 39)

Enquanto reassistia às reuniões, pensei nisso. Mais especificamente quando presenciei


um diálogo no qual o coletivo conversava sobre a diferença da pandemia para quem mora no
124

centro e para quem não mora. Nessa troca, a consciência do lugar no mundo foi como um
fermento invisível que ia inflando os questionamentos. Entre os próprios adolescentes, com
intervenções pontuais por parte dos adultos, debatia-se a diferença das realidades em um
contexto micro como Ouro Preto. Refleti que o discurso de que “estamos todos no mesmo
barco”, por vezes impulsionado por veículos da grande imprensa interessados em apaziguar o
ódio de classe, não resiste a 2 minutos e 14 segundos de realidade, tempo da conversa que
cito.
Também pensei que, no interior da metodologia da Olhares, não interessa “ensinar a
pensar”, e sim sacudir aquilo que sabem para ver o que fica. Ser o Exu da encruzilhada, dar o
chapéu de duas cores e deixar que eles discutam até perceberem que o chapéu tem dois, três,
quatro lados. E isso demanda principalmente escuta. De minha parte, aprendi – no exercício
de observar e permitir que me observem – a jogar com o que não se sabe. Colocar-me cada
vez mais na perspectiva de quem pergunta do que de quem responde, reconhecendo minha
ignorância.
Desenvolver uma pesquisa no que considerei ser uma encruzilhada de escala global foi
desafiador, e tenho a certeza de que foi a escolha de realizá-la com a Olhares que me manteve
firme nessa jornada. O que se iniciou com a observação me permitiu fazer parte desse
processo coletivo, estabelecendo laços e pensando a teoria por meio da prática. Acessei
conhecimentos de vida e me joguei no movimento com os outros. Como parte do grupo, pude
ver desdobramentos que escapam à própria produção de Ano 2020.
A Olhares fez brotar novos caminhos na jornada de todos os envolvidos,
possibilitando o acesso a novos lugares e experiências. Assim como já citei, o filme foi
escolhido para exibição no FestCurtasBH e no fórumdoc.bh. Também foi selecionado como
parte da programação do Festival Visões Periféricas e da Mostra Tiradentes, alçando voos
para lugares nos quais a Olhares ainda não havia pousado. Além disso, no grupo do whatsapp
do coletivo pude receber notícias como a participação de um dos jovens na figuração de um
filme que seria rodado em Ouro Preto, e a admissão de outro no IFNMG para cursar técnico
em teatro.
Em mais um ato de criação a partir das imagens realizadas na produção do filme, foi
feito um curta-metragem chamado Contra Monumento Cena #1. Instigado pela proposta do
7º Prêmio BDMG Cultural / FCS de curta-metragem de baixo orçamento, centrada no Cinema
125

de Invenção2, Arthur realizou uma montagem com inscrições de perguntas que fazem parte
das reflexões dos educadores/pesquisadores durante a prática da Olhares (Im)possíveis.
Compartilho alguns dos frames de Contra Monumento Cena #1 para evidenciar
questionamentos que permearam a produção de Ano 2020 e já transitavam pelo coletivo antes
desse processo. Contrastando com as imagens coloridas e inquietas estão essas cenas
monocromáticas, em respiros reflexivos que demarcam a presença de sujeitos que não filmam
ou aparecem em frente à câmera, mas também estão presentes no emaranhado da Olhares,
indagando e desorganizando para organizar.

Figuras 41, 42, 43, 44, 45 e 46: Cenas do filme Contra-Monumento Cena #1

2
No texto de anúncio dos filmes selecionados pelo edital é sintetizada sua ideia central: “A nova edição do
Prêmio propôs aos realizadores o desafio de pensar um Cinema de Invenção, conforme o conceito estabelecido
pelo cineasta Jairo Ferreira (1945-2003), dentro de uma temática livre. O marco do Cinema de Invenção é o
pensamento voltado à produção experimental, e, no contexto do Prêmio, surgiu como um estímulo aos processos
criativos cujas propostas estéticas e conceituais utilizem meios de produção de baixo custo, popularizados com o
acesso à tecnologia digital.” (BDMG CULTURAL, 2021)
126

Esse contra-monumento é parte da jornada que não se encerrou em um filme, mas que
a partir dele se ramificou em outros caminhos, assim como é resultado de passos dados
anteriormente. Passos dados pela invenção de si mesmo, do outro, da cidade, e que não andam
em linha reta. Provocar outros enquadramentos da realidade, enquanto se vislumbra a
possibilidade de brincar com ela, ajuda a estabelecer relações que não são perceptíveis quando
se considera que ver é só com os olhos. É andando na beira do impossível que a criação
acontece, no que se compartilha além do limite instituído pela racionalidade e a
hierarquização dos seres e saberes.
Escrevo essas considerações após uma reunião para retomar as atividades da Olhares
(Im)possíveis, em que conversamos sobre os rumos que o grupo vai tomar. Lembramo-nos de
uma sugestão que havia sido feita para um novo filme e também assistimos a Contra
Monumento Cena #1. A partir disso, dois adolescentes assumiram a direção do encontro e
passaram a questionar o que significa monumento e contra-monumento. Esse diálogo
desaguou em uma conversa sobre os personagens que aparecem na História do Brasil que
aprendemos na escola, e quais são as narrativas e figuras invisibilizadas. Eles falaram sobre a
situação política do país, o salário mínimo, se acreditam ou não na mudança.
Enquanto finalizo minha etapa de escrita, os diálogos continuam por mensagem de
áudio no grupo, conceituando o que seria o (im)possível. Ainda sob o efeito da espiral de
palavras, imagens e sons, absorvendo o que acabei de aprender das conversas que presenciei,
reflito que esse é mais um lampejo de que o futuro é um dos grandes autores do passado. E
esse se refaz todos os dias. Novas escrituras do que aconteceu se atualizam, as rasuras
reconstroem realidades e imaginários. É rasurando e gingando na brecha, no entre da
encruzilhada, que a Olhares se encontra. Por isso me colocou a gingar também, lembrando a
cada momento de observar por diferentes ângulos, chegar perto e me distanciar. Os conceitos
não me possibilitam abraçar o mundo, mas me ajudam a elaborá-lo. Assim como o cinema.
Ao olhar com a lente de aumento da câmera ou da pesquisa, vi que é possível
estranhar para fazer sentido, construir amarrações da realidade em diálogo com os outros e o
que, para mim, é o mais extraordinário: compartilhar as conexões realizadas. Ao longo do
desenvolvimento dessa investigação, paralelamente a um período dramaticamente imposto de
autoconhecimento, reencontrei-me e olhei para diversos aspectos de quem sou – e que estão
relacionados com a forma de ver o mundo pelo vídeo. Minha inquietude e atenção difusa, que
127

por muitas vezes vi com algo negativo, encontrou no audiovisual uma maneira de pensar que
é dinâmica e mobiliza o corpo para produzir pensamentos.
O que consegui escrever é apenas uma fração de tudo o que aprendi me
movimentando com e para o audiovisual. Seja de forma solitária, escolhendo as palavras ou
imagens para codificar o conhecimento pensado, ou coletivamente, no embate ou na filmagem
das ideias. E a possibilidade de realizar a dissertação dialogando em coletivo me auxiliou a
eletrizar as sinapses necessárias. Além disso, o contato com o outro me pôs a lidar com
encruzilhadas que eu nem poderia imaginar.
Encruzas que surgem de cada pessoa podem aparecer inscritas em suas existências a
partir de marcadores sociais que se interseccionam e apresentam os caminhos possíveis para
viver. E interpelam diferentes respostas. Penso nisso porque, ao sentir o embate das minhas
próprias intercessões, por algum tempo acreditei que o mundo seguia uma lógica binária
intransponível e definitiva para explicar todos os seus fenômenos, até olhar para trás e
entender outras formas de pensar e sentir a experiência do ser.
Quando compreendi minha posição entrecruzada na identidade racial, passei a
entender melhor o que significa habitar um não-lugar forjado entre colonizados e
colonizadores, que não oferece certezas ou lugares fixos, mas apresenta formas singulares de
compreender o que significa ancestralidade em sua concepção responsiva e responsável.
Quando me entendi na encruza da identidade de gênero (e sexualidade), voltei-me para
entendimentos pré-coloniais a fim de buscar referência para o que pode parecer novo para a
normatividade imposta, mas são ecos de compreensões de mundo para além da cisgeneridade
e da binaridade, que não buscam se estabelecer como universais. O que aprendi e escolho
compartilhar passa pelo que vivi. Por isso escrevo em primeira pessoa, com a certeza de que
me habitam muitas.
128

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https://ehcho.org/conteudo/exutrancaruadasalmas Acesso em 20 jan. 2021

ZANETTI, Daniela. O cinema da periferia: Narrativas do cotidiano, visibilidade e


reconhecimento social. 2010. 319f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura
Contemporâneas) Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia. 2010.
136

APÊNDICE A
Observações presenciais em 2019

14/11/2019
Escola Estadual de Ouro Preto - Polivalente
Sujeitos envolvidos:
7 estudantes e a equipe do projeto (Glauciene Oliveira e Olga Penna)
Descrição da atividade:
O objetivo do encontro de hoje foi apresentar para os participantes do Olhares
(Im)possíveis uma prévia do documentário que está sendo produzido pela Glauciene para o
seu TCC em Jornalismo, que tematiza a atual fase do projeto. A partir do feedback dos
estudantes, pensar as mudanças para o documentário e combinar as entrevistas e filmagens
que faltam.
Estamos na sala de vídeo da escola. A conversa é sempre descontraída e os
adolescentes se sentem confortáveis com a Glauciene. A interrompem em alguns momentos,
alguns são brincalhões, debochados e agitados. Começam conversando sobre os planos para o
fim de semana e os shows que algumas meninas comentaram anteriormente.
Os adolescentes riem da música de abertura do vídeo, colocada propositalmente para
causar um aspecto de documentário “careta”. Quando Glauciene comenta que foi uma
escolha, eles entendem o motivo e riem de novo. As cenas nas quais as pichações aparecem
são bastante comentadas, alguns reconhecem os espaços retratados e uma menina diz, em um
tom que não consigo distinguir se é sério ou irônico, “vocês sabiam que isso aí é crime, né?”.
Dois adolescentes fazem alguns comentários animados sobre os efeitos gráficos que aparecem
no vídeo e elogiam o trabalho de edição feito. Pelo o que parece, ambos já expressaram
interesse na parte de edição da produção audiovisual.
Aparecem na tela imagens dos adolescentes (feitas por eles ou não) e entrevistas sobre
o que gostam de fazer, relação com os espaços da escola (mais especificamente com a horta) e
relação com o projeto em si. Além disso, aparecem entrevistas de Arthur Medrado,
idealizador do projeto que atualmente ainda o desenvolve, e a vice-diretora da escola. Em
diversas falas da vice-diretora os adolescentes riem ou fazem pouco caso. Numa fala
específica, que ela diz sobre a falta de acesso ao audiovisual e conhecimento sobre
tecnologias, eles protestam e fazem piada para dizer que tem acesso e conhecimento sim. (Em
conversa posterior, Glauciene me explica que ela se referia ao corpo discente no geral, mas
acabou parecendo que era só sobre os participantes do projeto) É curioso comentar que os
137

únicos momentos em que todos se calam é quando Arthur aparece. Aí sim se aquietam e
prestam atenção ao que ele fala, com semblantes felizes, por vezes concordando com a
cabeça. Na primeira vez em que isso acontece, é uma fala bonita dele sobre as potencialidades
que os adolescentes têm e as atribuições de funções no projeto a partir disso.
Durante o documentário, é problematizado o direito à cidade. Seja nas pichações sobre
patrimônio e comunidade, ou nas falas sobre a relação dos alunos com a apropriação do
centro da cidade. Uma fala bem contundente é colocada pela vice-diretora, que alega em um
dado momento que existem alunos que nunca foram ao centro histórico da cidade, o que
alguns dos participantes refutam fazendo piada.
Também são entrevistadas duas mulheres da comunidade do entorno da escola,
familiares de uma das meninas presentes. Não consigo entender muito do que a primeira -
Menaíde Mesquita - está contando porque a captação de som e a conversa dos adolescentes
bagunçam tudo. Mas, de uma forma geral, ela está falando sobre a horta da escola, contando
histórias e dizendo da importância do cuidado com ela. A outra entrevistada, Maria Mesquita,
também reforça esses mesmos pontos, assim como a estudante. Não ficou explícito para mim
porque essas duas mulheres foram escolhidas, mas é algo a ser descoberto no próximo
encontro.
Depois disso, aparecem os próprios participantes do projeto falando sobre a
importância de terem a horta na escola e manter o cuidado. Aí, descobri numa fala do Arthur
que a proposta de cuidar da horta veio dos adolescentes no fim do semestre passado. O que
me parece bastante simbólico e significativo para começar a entender a relação dos estudantes
com o espaço da escola, suas noções de pertencimento e responsabilidade coletiva.
Depois da exibição do documentário, Glauciene pede o feedback dos estudantes para
saber o que pode ser melhorado e modificado. Alguns sugerem a inserção de fotos e lembram
das entrevistas que ficaram faltando. Lembram que falta a entrevista de Rodolfo, trabalhador
da escola responsável pela horta. Uma das poucas meninas, sempre muito retraída e mais
silenciosa, coloca que não quer que sua entrevista de apresentação apareça no começo do
filme. Ela inclusive é a única pessoa que estranha explicitamente minha presença lá, sempre
me encarando e olhando de canto de olho.
Ao finalizarem os comentários sobre o vídeo, Glauciene sugere ir na horta procurar
Rodolfo para marcar a entrevista. Todos os adolescentes aceitam. Olga, que apareceu durante
a exibição do documentário, nesse momento está conversando com outra adolescente, que
brinca com ela, e depois as duas se abraçam. Olga comenta sobre suas tranças box braids e
pergunta se ela vai parar de alisar o cabelo, ao que a adolescente responde que sim. Depois
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disso, Olga fala de uma exibição muito bem sucedida de Benedita, filme produzido durante o
ano passado no Olhares (Im)possíveis e protagonizado por essa mesma menina. Nesse
momento, os adolescentes colocaram música na caixinha de som.
Já na horta, converso bastante com Olga sobre sua relação com os adolescentes e
percebo muito carinho e aproximação. Ela era professora do Polivalente em 2018 e as oficinas
aconteciam com sua participação. Já em 2019, trabalhando em outra escola, não estava
conseguindo acompanhar o andamento do projeto. Esse é o primeiro encontro do ano em que
ela está presente. E é explícita a cumplicidade e proximidade que existe em sua relação com
os participantes do projeto.
Alguns brincam no balanço, outros comem jaboticaba (eu inclusa). Começa uma
conversa sobre babosa e hidratação para o cabelo, e alguém conta uma história de estudantes
da escola que invadiam a horta para pegar babosa. Outras conversas sobre plantas animam os
adolescentes e alguns comentam sobre sua relação com elas, as que gostam, as que não
gostam, identificam algumas que estão na horta. Enquanto isso, ando pela horta tentando
identificar algumas plantas e pego uma muda de funcho que acabei perdendo depois.
Com os celulares de Glauciene e Olga, e outros dos próprios estudantes, são realizadas
algumas filmagens e fotografias, com algumas selfies entre essas. Alguns pegam a enxada
para revirar a terra, outros regam as plantas. A viagem para Belo Horizonte, para exibir no
festival forumdoc.bh uma produção desenvolvida pelo Olhares (Im)possíveis, é citada com
muita animação, e as expectativas são compartilhadas. Eles querem comer fast-food, passear e
mostrar seu filme.
Quando voltamos para a sala de vídeo, Olga coloca os assuntos em dia com os
adolescentes, pergunta sobre suas vidas pessoais e família, além de relacionamentos e
paixões. Os alunos perguntam sobre a vida dela e insistem (fiquei sabendo depois que é
recorrente) que ela e Arthur são um casal e brincam que eu, Olga e Glauciene vamos “brigar
por ele”, o que eu e Olga respondemos ser impossível de acontecer. Depois disso, vamos
almoçar todos juntos no refeitório da escola, e alguns adolescentes voltam a falar das
expectativas para a viagem para Belo Horizonte.
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21/11/2019
Escola Estadual de Ouro Preto - Polivalente
Sujeitos presentes:
6 estudantes e Arthur Medrado.
Descrição da atividade:
A proposta do encontro desse dia era receber o retorno sobre a última atividade e o
documentário produzido pela Glauciene, além de conversar sobre a viagem da turma para BH
+ atividade com uma turma do Integral (parte da programação da Queerlombos 2019) que
consistiria em exibir os filmes desenvolvidos pelo grupo e troca de ideias.
Antes de começar, Arthur entrega os certificados referentes a uma oficina atendida
pelos estudantes no CineOP. Ao perguntar para o grupo sobre o último encontro, Hórus diz “a
gente não fez nada, só assistiu”, ao passo que Arthur questiona “e assistir já não é alguma
coisa?”. Arthur explica sobre o TCC de Glauciene e fala que também estou fazendo uma
pesquisa, além de sua própria pesquisa desenvolvida no doutorado. Explica o que é um TCC,
o processo de referenciação teórica e o processo de pesquisa na faculdade. Arthur também
fala sobre questões relacionadas à universidade a partir do interesse de um deles em cursar
Educação Física - explica o que é estágio, a parte da pesquisa na graduação.
Nesse momento, mais três adolescentes chegam - Arthur pergunta para um deles sobre
a burocracia para a viagem, porque ele ainda não entregou os documentos necessários. Às
9h05, começa o encontro a partir do que havia sido programado. Arthur fala sobre o porquê
de não ter comparecido na semana anterior, que estava resolvendo questões de financiamento
de um outro projeto que será desenvolvido em BH. Aproveita pra falar sobre investimento em
cultura e questiona os participantes o que eles consideram ser cultura. As respostas variam
entre projetos para a sociedade, cultura é futebol, pixação, batalha e passinho. Ao serem
perguntados sobre o que consideram que seja patrimônio, um responde que é tudo o que o
brasileiro tem direito de ver e fazer. Arthur aproveita o gancho para falar sobre como os
patrimônios também são prática, e que patrimônio é reconhecimento.
No momento em que Arthur quer o retorno sobre o documentário de Glauciene, os
adolescentes estão muito dispersos e respondem de forma evasiva, comentando sobre erros de
gravação e outras cenas que não entraram.
Sobre os detalhes da viagem para BH, Arthur fala de transporte, alimentação, quem
vai com eles e como funciona o festival (senhas, sessões, etc). Ele também conversa sobre a
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importância de assinar a direção do filme enquanto um coletivo, o que isso significa para o
trabalho e a diferença com relação ao cinema tradicional. Todos estão muito dispersos nesse
momento e Arthur pede a atenção com frequência. Uma adolescente me observa fixamente,
como se me analisando.
Arthur propõe a leitura coletiva do texto sobre o filme deles, que está no catálogo do
fórumdoc.bh. Ele apresenta o catálogo e inicia a leitura. Um dos estudantes está com os fones
de ouvido. Arthur explica as palavras desconhecidas (como práxis, contemporânea, etc), as
notas de rodapé e o formato do texto. Nesse momento Giovany, da coletiva Queerlombos,
chega na sala e pede informações para Arthur, que o responde e depois pede para os
adolescentes guardarem os celulares e prestarem atenção.
Dois meninos em específico não estão em volta do notebook como os outros, que
acompanham Arthur em sua leitura e explicação. É interessante observar o processo de
compreensão dos adolescentes sobre algo escrito a partir do filme dele, além das explicações
de Arthur a respeito dos termos e sentidos do que é apresentado no texto. Ele desenvolve uma
tradução didática da linguagem acadêmica, nas palavras dele “um texto de adulto com termos
de quem trabalha com cinema”. Arthur pede para um dos meninos que está longe do notebook
guardar o guarda-chuva que ele não para de mexer. Três adolescentes são os que mais prestam
atenção. Um menino chega chutando a porta e bate ela, resmungando e xingando. Os outros
riem e Arthur pede para ele respirar. Isso desestabiliza ainda mais o foco de atenção.
Um menino diz “só podia ser do Pocinho” para uma menina que está de costas para a
projeção do texto na parede rindo. Começam a falar sobre os estereótipos dos bairros e a
relação com a polícia. Um diferente diz “Bauxita só tem noiado” e o outro rebate “Pocinho só
tem retardado”.
A partir desse momento Arthur conversa em um tom mais sério e sóbrio, e volta para a
leitura do texto. Ao falar sobre o termo burguês, que aparece em “arte burguesa” no texto, um
estudante diz que os burgueses só ligam para o dinheiro. Um menino questiona: “Isso não vai
acabar mais não?”
Falam sobre a suspensão de hierarquias proposta pelo projeto em si, e mais
especificamente no encontro do dia. Arthur fala que são eles que decidem como vão ser feitas
as coisas, mas que é preciso prestar atenção.
Dois meninos saem para o futebol às 10h, outros dois logo depois. Arthur tira uma
foto do momento e um dos que ficou brinca que ela deveria ser exibida em todo lugar. Duas
meninas e um menino vão apresentar os filmes produzidos para a turma do 6º ano integral
141

juntamente com Arthur. Mas antes disso, vão para a quadra fotografar uma atividade que
também faz parte da Queerlombos 2019, coletiva que Arthur faz parte inclusive.
Em um momento em que os estudantes não estão na sala, Arthur fala para mim
“Autonomia é isso né? Às vezes é não conseguir fazer o que a gente quer.” Logo depois, fala
da diferença de engajamento dos adolescentes entre as atividades que ele propõe mais
fechadas e as atividades de criação mais livres (pegar as câmeras e apenas sair para filmar).
Também conversamos sobre a importância deles entenderem o lugar onde o trabalho está
chegando, complexificando o que fazem. Arthur fala sobre a autonomia em relação à escola
que ele quer fomentar nos alunos (ele deixa os meninos pegarem o material, chave da sala,
etc) e o fato deles se sentirem à vontade para usar inclusive seu computador pessoal. “Quando
o mestre sai é que o saber se dá”, reflete.
Os estudantes do 6º ano chegam, alguns já são conhecidos de Arthur, com duas
professoras. Em sua grande maioria, quase totalidade, negros. O adolescente do pé na porta
faz uma “piada” (“olha lá o rosquinha queimada”) para um aluno do 6º ano. Serão exibidos
dois filmes, fruto do ciclo de 2018 da Olhares (Im)possíveis: Benedita (filme de terror que
aborda o bullying na escola) e entre_vistas (documentário sobre a relação dos estudantes com
a cidade, o projeto, a escola).
Arthur fala sobre o processo de produção dos filmes e enfatiza que se trata de um
trabalho, pedindo respeito aos alunos na hora da exibição - “respeito às imagens”. Também
fala sobre a exibição do filme no fórumdoc.bh. Ele pede para uma das meninas apresentar o
Benedita e um menino, o entre_vistas (irritado, ele se nega).
Durante a exibição de Benedita - que possui uma discussão densa sobre racismo,
bullying e suicídio a partir da narrativa do terror, filmado na escola - os semblantes se
alternam entre risadas e caras sérias. A partir do momento em que é retratada uma carta de
Benedita, menina que sofre o bullying, todos fecham a cara e passam a prestar mais atenção.
Uma das professoras aplaude e elogia a obra. Durante o entre_vistas, a atenção é maior. Mas
quando Arthur não está na sala, alguns estudantes começam a rir e as professoras intervêm
tentando silenciá-los.
Depois, Arthur pergunta sobre o que tem de igual e o que tem de diferente entre os
dois filmes. Um aluno prontamente responde que um é sobre entrevistas e o outro é terror. A
partir disso, Arthur explora os elementos que diferenciam ficção e documentário, falando da
diferença entre gêneros.
Uma aluna fala que o filme é bom porque retrata a realidade, já que “toda escola tem
bullying”. Arthur pergunta o que pode ser feito para diminuir ou interromper o fluxo de
142

bullying e lança o questionamento “um bullying a menos faz diferença?”. Além disso, fala
sobre responsabilidade social
O menino que havia sido escolhido para apresentar o entre_vistas pede para exibir o
documentário de Glauciene e apresenta o projeto da horta antes de projetá-lo. Outra
professora chega nesse momento. Quando alguns alunos do 6º ano começam a rir, dois
estudantes do projeto os repreendem, falando que “não tem do que rir nesse filme”.
Palavras como comunhão, auto-descoberta, memória, território e pertencimento são
evocadas durante a exibição do documentário. Os meninos que estavam no futebol voltam.
Ao final, Arthur fala da necessidade de envolvimento na horta (e convida os alunos do
6º ano) por parte do período integral e das professoras e professores. Também fala sobre a
autonomia dos alunos em solicitar à escola que tenham acesso à horta. Descubro que um
aluno do integral, que estava presente, foi quem deu a ideia sobre o cuidado com a horta na
oficina realizada no CineOP. Uma professora fala que “pro pessoal não desanimar e continuar
cuidando da horta…” e conta sua história com a horta, de quando estudava nessa mesma
escola e tinha a disciplina “Práticas agrícolas”.
Arthur encerra convidando novamente os alunos para participar do grupo de cinema
no ano seguinte e fala da possibilidade de uma atividade prática de cinema, ainda sem
confirmação. Depois da atividade, apenas com os participantes do projeto, ele fala sobre a
importância das “partes chatas” do processo de produção e a necessidade de respeito, dentro
da autonomia que eles têm no projeto. “Vocês mandam nesse projeto!” reforça ele, antes de
dar as recomendações para a viagem para Belo Horizonte e cobrar os documentos necessários.
Finalizado isso, vamos todos almoçar no refeitório da escola.
143

APÊNDICE B
Recortes das reuniões em 2020

09/06/2020
vídeo de 57 minutos de duração
objetivo: retomar as atividades do coletivo e conversar sobre a ideia de filme.
participantes: Arthur, Olga, Hórus, Black n444, Loki.
Depois de 6 meses sem reuniões e tentando se adaptar a um novo formato, o grupo se
encontra pela primeira vez em 2020, no Zoom. Arthur diz aos meninos que o ano de 2020 não
será um “ano perdido” e comenta que existem editais abertos para produção de filmes e, que
se forem contemplados, terão dinheiro para produzir um filme. Também explica que as
reuniões serão realizadas no Zoom e gravadas, para ter a possibilidade de utilizá-las no filme
que será produzido. Além disso, entre as conversas todas as pessoas pensam nas
possibilidades de se reunir de forma online, os sites e aplicativos possíveis, e se os outros
participantes possuem acesso a internet e a esses programas, os dias e horários melhores para
se reunir.

09:14 - 09:34
Arthur: Vocês tão fazendo isolamento ou vivendo a vida normal?
Olga: Vocês tão ficando em casa?
Hórus: Eu tô normal.
Black n444: Eu to ficando só em casa, vim aqui pra casa da minha prima porque tava no tédio mesmo. Mas tô
tomando todas medidas. To deixando o sapato de fora, tô passando álcool em gel, nossa vida… Minha orelha tá
até relaxada de tanta máscara.

21:36 – 21:45
Hórus: Bora fazer um filme doido!
Loki: Mas cê quer fazer filme de quê?
Hórus: O ano de 2020!
Loki: O ano de 2020 é uma bosta!
Hórus: Então... Por isso mesmo vamo fazer um filme bosta!

21:58 – 22:08
Hórus: É que eu tava vendo uma live lá, sô... Aí eu vi lá: Já to vendo o nome do filme... O ano de 2020. Falei: ó,
nós pode tirar uma coisa disso aí, tá ligado?
Black n444: Uma conclusão.

42:32 – 43:55
Hórus: Igual, quando começou a gente tava estudando normal, aí entrou de greve. Dá pra gente fazer um áudio
explicando tudo sem erros. Aí depois a gente começa com esse trem aí... Falar igual, como que fala... ‘Ouro
Preto só tinha um caso, aí já foi pra num sei quantos. BH tinha um, e num sei quantos’, entendeu? Um noticiário
assim que passa no jornal, a gente corta e põe.
46:05 - conversa sobre o protesto do Black Lives Matter e ações do Anonymous, os “hackers do bem”
47:11 – 47:20
Hórus: Aí agora eles tão tentando é parar esses negócio aí de polícia aí, tá falando pra investigar Bolsonaro,
investigar Trump... Num sei se cês tão vendo não, mas eu tô.
144

50:47 – 50:50
Loki: Youtuber bom de verdade improvisa, tá ligado?

53:20 – 53:30
Loki: ô Arthur, eu vou tentar gravar um pouco da minha rotina pra ver se eu tiro algumas parte e te mando.
Hórus: Aí, vamo fazer isso aí todo mundo aí... Dá uma ideia pra todo mundo gravar um pouco da rotina...

19/06/2020
vídeo de 1 hora e 36 minutos de duração
objetivo: conversar sobre a ideia do filme e estipular as imagens a serem realizadas.
participantes: Arthur, Thamira, Olga, Hórus, Black n444, Anansi.

No começo da reunião, está presente apenas um dos adolescentes com a câmera


desligada, e é possível ouvi-lo conversando com outras pessoas de sua casa, explicando que
estava em uma reunião do projeto da escola. Uma voz desconhecida pergunta para Arthur se
ele é aluno, no que ele responde que é “professor de cinema”. Outras vozes aparecem
perguntando o que é que está acontecendo, e o menino segue respondendo que é uma reunião
de projeto, para fazer um filme. Logo depois ele sai, e outros meninos entram, com
dificuldade na conexão. A reunião começa aos 23'13'' com Arthur perguntando a um deles
(Black n444, único que estava na chamada no momento) como foi a semana dele, como tinha
sido mudar de bairro, as novidades do Pocinho.

38:14 – 39:30
Arthur: Me conta uma coisa… Várias vezes quando a gente fazia oficina lá no Adhalmir [Maia], os meninos
falavam sobre a Cooperouro [supermercado no Pocinho]. Do tipo assim, sei lá, que às vezes não se sentia tão
bem lá dentro… Quando as vezes tava sozinho, ou quando ia de galera, que era diferente quando ia com a
família, por exemplo. Como é que é essa experiência lá, na Cooperouro em si?
Black n444: É por causa que, tipo assim… Se você for sozinho… Aí tem um segurança lá, ele te olha de um
jeito. Se for um monte de gente, ele já fica meio desconfiado e aí já olha de outro jeito. Se você entrar com uma
mochila, aí te olha de outro jeito também. É meio sei lá... Aí quando cê tá com a sua família ele nem fala nada,
nem olha.
[silêncio]
Arthur: Ah você lembra disso, né? Sem ser o ano passado, em 2018, quando era no tempo integral, que teve uma
ideia de filme que era pra fazer lá… Você lembra? Você tava, num tava?
Black n444: Tava, só que a gente num fez.
Arthur: É, porque não dava né?
Black n444: Uhum. Pelo fato de lá ser uma empresa, é meio complicado.

O menino fala sobre a saudade de 2018, “melhor ano” em sua visão, do período
integral, das atividades que eram feitas na escola, o filme entre_vistas que fizeram no projeto.
Relembra a exibição presencial que fizeram em Belo Horizonte no ano de 2019, em que todos
foram ao Burger King depois. Arthur comenta que, como agora o coletivo é um grupo de
cinema e não um projeto da escola, é possível ele participar mesmo estudando em outra
escola.
145

Aos 55 minutos Arthur explica para Black n444 a pesquisa que ele desenvolve, que já
havia mandado algumas perguntas para os meninos responderem, quando Hórus entra. Aí
começam a falar sobre Free Fire porque ele disse estar com várias reuniões “do Free Fire e
da vida real”, citando a reunião online com a guilda do jogo. Arthur pede para explicarem a
dinâmica do jogo e pede para imaginarem que, se o mundo e a vida fosse um Free Fire, o que
precisariam para vencer. Os meninos falam de outros participantes que também jogam.
Depois disso, todos conversam sobre o que filmar para a produção. Arthur questiona Hórus,
que havia dito anteriormente que “filmar sozinho é ruim” e ele diz que falou isso porque sente
vergonha.
Arthur dá ideia para os meninos filmarem a janela de suas casas, com uma narração de
como seria a vida fora da pandemia, e também diz para eles chamarem os outros para
participar. Propõe marcar outra reunião para o domingo, para que os meninos fiquem
responsáveis por marcar e chamar os outros, e diz para eles irem mandando as filmagens e
fotos para o grupo. Olga e Thamira também reforçam as ideias.

01:11:50 - 1:13:28
Arthur pergunta sobre a ideia geral do filme Ano 2020, o que é para falar no filme.
Hórus: Como foi o ano.
Arthur: Como foi ou como seria?
Hórus: Como é, como tá sendo.
Arthur: Então qual seria a pergunta, pra gente explicar pras outras pessoas pras elas fazerem o mesmo tipo de
imagem? Qual seria a pergunta pra gente falar pra pessoa assim: ‘ó, é pra gravar um vídeo da janela e gravar um
áudio respondendo a seguinte pergunta’…. Qual que seria a pergunta?
Hórus: O que mais tá fazendo na quarentena.
Arthur: O que você mais tá fazendo na quarentena? E aí como é que a gente vai explicar, vocês quando forem
falar com as pessoas, o que elas tem que falar, ou seja, que a resposta não pode ser de uma palavra só. Porque se
me perguntarem o que cê mais to fazendo na quarentena, posso só dizer “ler”, “tô lendo”, “o que mais to fazendo
é ler”, aí acabou a resposta. Como que é o jeito de p erguntar pra pessoa falar mais? Como cê acha?
Hórus: Falar mais do que tá fazendo?
Arthur: É.
Hórus: Ah… Deixa eu perguntar. O quê que ela tá aprendendo, o que que tá fazendo bem e o que que não tá... O
quê que... Sei lá, algumas coisas.
Thamira: Isso é legal né? O que que tá fazendo bem e o que que não tá .

1:15:46 – 1:19:11
Arthur: E vocês não tão indo mais [na quadra de futebol] por que vocês decidiram não ir?
Hórus: É.
Arthur: Além de respeitar a norma…
Hórus: Também.
Arthur: … vocês conversaram alguma coisa, decidiram não ir mais?
Hórus: Não, todo mundo tem cabeça né... Todo mundo falou ‘se nós ficar lá jogando bola, os home vai passar lá
e vai socar nóis, então não vamo ficar.
Arthur: Como que tá essa coisa da polícia durante a quarentena? Tá igual, tá pior?
Hórus: Ó! Cê viu o tanto de droga que achou aqui no Pocinho?
Black n444: (risos)
Arthur: Não vi. Saiu em algum lugar?
Black n444: Duas vezes! Duas vezes!
Hórus: Hoje tinha helicóptero e rodou a Boa Esperança, aí depois eu tava lá em cima, os home parou assim né?
Aí eu fiquei até com medo de passar... (Black n444: Hoje?!) Vai que eles rouba minha bicicleta. É... Porque tá
146

ligado que eu comprei a bike de Franguinho, aí to andando com ela e ela não tem nota fiscal nem nada... Falei
‘vou passar não que os home vai querer pegar eu’ e aí fui lá... Depois eles veio e foi embora.
Black n444: Boto fé.
Arthur: Cê acha que piorou então? Que tem mais polícia agora aí?
Hórus: Polícia… deixa eu ver… Acho que não aumentou não.

Black n444: Pocinho já é inflamado sem pandemia e sem quarentena, sem COVID-19.
Arthur: O que que é inflamado?
Black n444: Um lugar que tem assim... Muito conhecido pela polícia, que todo dia eles faz questão de ir lá pegar
um.

Hórus: Tá ligado esse negócio do... Depois cê vai ver no Voz Ativa, jornal lá no youtube... Eles falam que aqui é
periferia. (risos) Periferia o bairro nosso e tal... Ah tomar banho… Periferia…
(Black n444: É!)
Arthur: Acho que a gente já tinha conversado sobre isso umas vezes.
Hórus: É, cê falou que centro é quem mora no… sei lá. E o resto é periferia. Mas aqui não é tão pobre assim
não...
Arthur: Então, é isso que eu ia perguntar… Cê acha que isso tem a ver só com pobreza?
Hórus: Ah, véi, eu acho que sei lá… Acho que…
Arthur: Você não gosta quando chama de periferia?
Black n444: É!
Hórus: É, também né.
Arthur: Por que?
Hórus: A prefeitura nem olha pra gente… Cê tem que ver como tá o negócio lá na casa de [Black n444]... Lá no
barraco que caiu aí... A gente tirou, queria mandar pro MG Móvel, só que aí a gente lembrou que vai ter eleição,
então eles não vão vir agora.
Arthur: Por conta de eleição?
Hórus: É, é só em janeiro.

Black n444: Ô Arthur… Eu não gostava que eles falava que onde que eu morava aqui no Pocinho era esse trem
de periferia não. Mas se quiser chamar de favela, quebrada, lá onde que eu moro pode... Porque lá todo dia vai
polícia, todo dia, todo dia mesmo... E lá tem muita droga, tá? Todo dia. Ah não, tá.

Uns segundos depois Hórus envia as fotos (no grupo do whatsapp do coletivo) de
onde havia caído um barranco no bairro, em janeiro. Diz das coisas que poderiam ser feitas
“um muro… uma academia ao ar livre”. Sobre uma das fotos ele explica: "Até ali mora gente
rica, pra cá mora gente pobre, que mora na terra.”

Olga e Arthur comentam da qualidade das fotos, e como ele tem um acervo de
registros do bairro. A partir da segunda foto Arthur começa a dizer sobre a ideia de que Ouro
Preto possui uma “linha imaginária que define o que é centro histórico e o que não é.” O
147

adolescente responde que próximo de onde tirou a foto tem um prédio que se chama Recanto
das Montanhas [descobri ser um edifício residencial que antes de terminar de ser construído
estava divulgando apartamentos de dois quartos a partir de 195 mil reais], segundo ele “um
prédio foda num bairro desse”. Arthur questiona se “não pode ser assim, cê acha que não pode
ser misturado?”, e ele responde: “Pode, eu acho que aí que a prefeitura tinha que olhar pro
lado, pra gente. E fazer um negócio pra nós aí.” Ainda conta que na época da construção do
residencial o transformador de energia não era suficiente para aguentar a carga dos
elevadores, e depois disso, foi mudado. Arthur finaliza esse assunto lembrando do horário (já
eram 20h) e questiona o que deve ser feito de imagem e o que iriam pedir para as pessoas
fazerem. Thamira explica que têm que mandar um textinho ou um áudio explicando o que
deve ser feito. Black n444 fala para mandarem então o texto pra ele ver e ela responde que é
para eles resolverem juntos naquele momento e ri.
1:24:22 - 1:25:46
Hórus: O que tá fazendo bem, o que não tá... O que tá gostando, o que que não tá gostando... Eu to gostando
porque não tem aula. Mas também ao mesmo tempo não gosto porque não tem futebol, ce não pode ligar a
televisão e ver seu futebol que ce via antigamente, ce não pode fazer mais nada.
Arthur: E aqui, nessa história de perguntar pras pessoas a gente pode também perguntar pra alguém de fora do
grupo né? Cê tem algum amigo seu que não participou até hoje por algum motivo… Porque não estuda no
Polivalente, sei lá. E aí se você encontrar ele, já que cê tá saindo, ou se você não encontrar, cê pode mandar um
áudio pra ele pedindo pra ele te responder e mandar isso pro grupo …
[Na câmera de Black n444 um barulho e alguém xingando, como se ele tivesse batido em alguém]
Arthur: … pra essas várias vozes estarem no filme.
[gritaria e briga na câmera de Black n444, todos seguram o riso]
Hórus: [fazendo piada] A cara de mal dele… Isso que é o lado ruim de ficar em casa, todo mundo te enche o
saco, cê vai lá e [bate na câmera].
Arthur: Tem que ter paciência, gente. É difícil mas tem que ter paciência.

Para tentar encerrar a reunião, Arthur relembra da proposta de marcar reunião no


domingo, pede para os meninos fazerem as imagens e mandarem no grupo (lembra da ideia de
filmar a janela). Os meninos começam a conversar de passeios de bicicleta que querem fazer e
um deles dá a ideia de filmar quando forem andar de bike e o outro fala de um tipo de take
estilo “Largados e Pelados” em que a câmera fica no chão e filma de baixo pra cima. Arthur
fala para eles tomarem cuidado porque já quase quebrou o braço fazendo isso, e para
mandarem as imagens na medida em que puderem. Ele e Thamira falam mais uma vez sobre
tomar cuidado na rua ao andar de bicicleta e gravar. Arthur retoma a conversa sobre sua
pesquisa e pergunta para Black n444, porque o outro já respondeu, sobre o que ele acredita
que é o mais importante para estar escrito na pesquisa. Ele respondeu que Arthur “pegou ele
pelo ponto fraco” e que vai mandar no grupo. Arthur confirma se vão marcar a reunião no
domingo e avisar ao grupo, também afirmando que vão continuar fazendo o filme, mesmo que
seja apenas com os dois adolescentes. Depois disso conversam mais alguns minutos, inclusive
148

com um dos meninos falando como “precisava de um calmante” e terminam a reunião falando
sobre assuntos diversos como seus animais de estimação, enquanto Arthur reforça para
marcarem a próxima reunião e fazerem as imagens.
149

APÊNDICE C
Observação das reuniões online de 2021

05/01/2021
vídeo de 1 hora e 11 minutos de duração

objetivo: repassar as informações do projeto “Ano 2020” e retomar o contato.


participantes: Arthur, Raquel, Thamira, eu, Loki.

Antes de entrar nessa que é minha primeira reunião oficial na Olhares (Im)possíveis,
me questionei de tudo que deveria fazer ou falar (ou não fazer). Por mais difícil que seja para
mim não participar de conversas ou mesmo ficar imóvel e com foco durante um longo período
de tempo, entro na posição de observador e ao longo da reunião inteira penso que devo ficar o
mais invisível possível, pisando devagar nesse terreiro que adentro.
É interessante que nessa primeira conversa já consigo ver um pouco da relação da
equipe com os adolescentes, principalmente Arthur. Na gravação vejo que, antes de eu entrar,
Arthur conversa com a mãe de Loki e vê a casa da família. Thamira também entra nessa
reunião logo no início, fala sobre a irmã dele que aparece rapidamente no vídeo, e o pergunta
se ele está ficando em casa durante a pandemia. Ele fala que foi para casa de alguns parentes e
conta um pouco. Arthur questiona se a irmã dele não quer participar do projeto e fala para ele
chamá-la. Raquel entra na reunião e logo depois eu entro também.
Logo que chego já sinto que o clima não é nem de uma reunião de trabalho séria e
rígida, nem de uma aula online unilateral e silenciosa. Enquanto vão conversando, descubro
mais sobre a rotina do menino. Mais uma vez o assunto do Free Fire aparece. O adolescente
fala sobre seu canal do youtube, onde faz lives de jogo e pede pra sair. Nesse momento,
Arthur nos lembra de duas pessoas que falaram que participariam da reunião, mas ainda não
apareceram. Ele também provoca as outras pessoas adultas presentes: “E aí, todo mundo
coagido com a presença do estudante?” Eu rio e digo que estou tímida, de forma descontraída,
mas por dentro tenho certeza que sim, me sinto travada porque não sei muito bem como agir
nessa reunião.
O adolescente volta, logo depois ouvimos sua mãe gritando de longe, e descobrimos
que a cachorrinha da casa sumiu. Arthur pergunta pra ele o que fez na pandemia além de
jogar e ele diz que “bosta nenhuma”, também responde que fez apenas 1 apostila de “8 ou 7
apostilas”. Ele diz que é muito difícil e os professores não ajudam, também não está
interessado em saber da escola nesse momento [o que penso no momento ser totalmente
compreensível]. Sai de novo para procurar a cachorra e depois aparece com ela na câmera.
150

Enquanto ele não volta para a conversa, os adultos trocam ideia e Arthur me explica
algumas questões da logística do projeto, quem vai entregar as câmeras e onde seria realizada
a diária de gravação presencial caso realmente fosse acontecer, já que na escola não poderia.
Arthur fala que provavelmente vamos ter que fazer reuniões individuais com cada um dos
interessados para participar do projeto. A conversa sobre outros assuntos com a equipe vai me
deixando com menos ansiedade.
Arthur chama o menino de volta e o avisa que a reunião será só com ele mesmo,
explicando que a partir da ideia compartilhada no grupo sobre o filme “Ano 2020”, foi escrito
um projeto no edital. Ele passa a explicar as etapas do processo de produção: oficinas, envio
das câmeras e “se der” uma gravação presencial em fevereiro. O adolescente fala “no vlog eu
sou bom!”. Arthur diz da música a ser produzida para o filme e já comenta sobre a ideia de
gravarem cenas com eles dançando o passinho na cidade.
Arthur repassa as questões burocráticas e fala sobre a possibilidade de recompensa
para os adolescentes (em forma de equipamento, vales para jogo, crédito para celular, etc). A
mãe de Loki o chama e ele diz “Ô mãe, eu to num negócio importante aqui!”. Arthur brinca
que pelo menos um lanche daora vai ter, e o menino já lembra do lanche que haviam comido
no Burger King depois da exibição do entre_vistas em Belo Horizonte. Ele sai de novo e
Arthur percebe que o menino está com as unhas pintadas de preto. Nesse momento Arthur me
informa que o filme tem que ser entregue até o dia 1º de março, uma “luta contra o tempo”, e
por isso (também pelos diferentes formatos de vídeo para trabalhar) uma montadora
experiente foi contratada.
Assim que Loki volta, Arthur fala para ele conversar sobre as cenas de dança com
Anansi, outro menino que dança funk e já participou de atividades anteriores da Olhares, e
chamá-lo para participar. Arthur diz que dia 10 de janeiro a música fica pronta, e Raquel
reforça para ele chamar Anansi para participar e fazer alguma coisa, já que ele havia dito que
não tinha feito nada na pandemia. Quando Arthur começa a falar das possibilidades do que
pode ser dito com o filme “o que foi, mas também o que poderia ter sido 2020”, Loki diz
“Nós pode fazer tipo aquilo lá do... acho que era do Fantástico, sei lá, ‘como que eu queria o
Brasil’, aí como que eu queria o 2020!” e todo mundo concorda com a ideia. Arthur questiona
como seria isso, com quem, e ele exemplifica, muda a posição do celular e diz “O Brasil que
eu quero… o 2020 que eu queria, num sei o que, num sei o que.”
Arthur pergunta o que ele fez em 2020, e ele conta “estudei um mês mais ou menos e
depois disso só fiquei em casa, indo para casa dos parentes, jogando no computador, mexendo
na internet… Aí eu fiz um bocadinho das apostilas.” Então Arthur pergunta se ele viu que a
151

escola postou a data limite de entrega das atividades de 2020, e fala para o menino tentar
entregar essas apostilas. Também diz que Ronessa, a vice-diretora, contou que na semana
seguinte as novas apostilas seriam entregues, e que se os meninos fossem buscar, ela poderia
filmar esse momento, assim como eles, e teriam dois pontos de vistas para serem usados no
filme.
Mais uma vez Loki sai da chamada, nos deixando em silêncio. Então, eu pergunto para
Arthur sobre a quantidade de dispositivos pensada, que seriam quatro, e ele me explica sobre
as possibilidades: fazer alguns dias seguidos de atividades ou distribuir durante as semanas.
Ele também diz que, por conta do edital, vamos ter que, de alguma forma, dar uma
direcionada maior e ter a preocupação de ter um filme. Loki volta durante essa conversa. Já
penso que, ao contrário dos outros anos, em que o fluxo de produção não era determinado
pelo produto, dessa vez seria necessário pensar as etapas com o filme em mente.
Arthur então pergunta para Loki como foi não ir para escola durante o ano. O menino
ri e diz que foi bom. Quando Arthur o questiona de novo ele já muda e diz “bão para um lado
e ruim para o outro”, porque ele não gosta de escola “nem a pau” mas depois de ficar um ano
sem já estava sentindo falta. Ele ainda diz que gosta de estudar, mas não gosta de ir para
escola.
43:20 - 44:38
Arthur: Mas você vai no nosso projeto, você vai no futebol…
Loki: Mas seu projeto é diferente né, meu fi?!
Arthur: Por que?
Loki: Porque é diferente, aí…
Arthur: Como assim? Me explica.
Loki: Quando tinha integral era muito melhor do que agora… Depois do 9º ano pra cá ficou chato pra caramba.
Arthur: Mas cê acha que é porque? Porque parou de ter integral?
Loki: Não, no 1º ano ia ter integral… Mas nem integral igual nós fazia. Integral de estudo tutorado de alguma
coisa.
Arthur: Do curso técnico?
Loki: É.
Arthur: Mas por que você acha que o projeto é diferente da escola?
Loki: É melhor?!
Arthur: Mas como assim melhor?
Loki: Porque, igual eu, eu sou… eu gosto de gravar esses trem assim de internet e eu me identifico mais com o
projeto. Porque a gente faz isso.
Arthur: E mais o que é bom do projeto?
Loki: Viajar também, apresentando as coisas… (risos) E gravar né? Eu gosto de gravar também. Editar não edito
muito não. Mas gravar…

A partir disso, Arthur pergunta de outros rolês que eles deram com o projeto, e o
adolescente lembra de um que estavam com os olhos vendados no centro, que Arthur disse ter
sido em 2018. Pela descrição feita e pelo semblante de Arthur e Raquel, acredito ser um dos
roteiros sensoriais do Programa Sentidos Urbanos. O menino também lembra da visita na
Concha (acústica) do campus da UFOP, Arthur pergunta se ele lembra de ter ido no RU
152

(restaurante universitário), ele diz que sim e que também lembra do mirante. Quando
perguntado sobre o que lembra das oficinas realizadas, Loki lembra de ir para a informática
gravar os vlogs com a gopro de Arthur e que lembra de “gravar muito”.
Arthur comenta que existe todo esse material de arquivo deles cuidando da horta
também e Loki começa a rir lembrando de algumas cenas que ele gravou. Também se
recordam dos acontecimentos da viagem para Belo Horizonte, quando eles foram “dar
palestra” e apresentar o filme, e Arthur mostra o catálogo do fórumdoc.bh, que possui um
texto sobre o filme apresentado pelo coletivo, com os nomes dos participantes. Ele abre na
página do texto e vai lendo os nomes. Também pergunta se o menino lembra da exposição
que tinham visitado na viagem. Nessa conversa Arthur aproveita para saber sobre alguns
outros adolescentes por meio de Loki, se possuem contato, o que ele sabe.
Então, Arthur pergunta sobre o que poderia ser filmado do cotidiano de Loki para
colocarem no filme.
52:31 – 53:01
Loki: Antes eu tava dormindo cedo e acordando cedo, minha rotina virou tudo de novo... agora tô dormindo
tarde e acordando tarde. Eu durmo, acordo, lá pras onze horas, meio dia, arrumo minha cama, escovo dente e vou
lavar vasilha... E depois, vou jogar. Só.
Arthur: Cabou o dia jogando.
Loki: Não, tem que comer, pô. O povo não vive sem comer não.
Arthur: E nesse tempo todo que cê tá… sobrando muito tempo para pensar. Em que que cê tem pensado?
Loki: ....Nada.
Arthur: Nada?
Loki: Nadinha de nada.
Arthur: E cê acha que tá tendo então quarentena no Pocinho? Isolamento social?
Loki: Acho que… Nem aqui usa máscara. Nem usa máscara, pô.
Arthur: Não usa nem máscara? E tá tudo funcionando normal?
Loki: Não, na minha rua não tem comércio. Então não sei.

Depois disso, Arthur pergunta do futebol, das amizades que ele tinha no bairro que
morava antes e das que ele tem agora. Busca ver o que ele sabe de outros integrantes do
projeto. Thamira pergunta se ele está assistindo muita live, e ele diz que assiste live de jogo.
Ela fala que assistiu a primeira faz pouco tempo, de CS (Counter Strike), mas que não sabe
jogar nem CS nem Free Fire; ele diz que não assiste tanta live mas vê vídeos no youtube e
podcasts, citando alguns. Thamira fala que muitas pessoas começaram a ouvir podcasts
durante a pandemia, e eu digo que sou uma delas. Também pergunto pra Loki como é isso de
ver o podcast e ele diz que vê as entrevistas..
Arthur pergunta o que o adolescente queria ter feito em 2020 que ele não fez, e a
resposta é “estudado”. Quando Arthur fala das apostilas e do grupo no facebook, Loki fala
que “isso não é estudar pra mim, eu não consigo estudar assim”. Ele acha que tem que ir pra
escola para ter aula, aula presencial. Arthur pergunta se alguém quer dizer mais alguma coisa,
153

para ir finalizando, e Thamira pergunta sobre os horários disponíveis, Loki diz “tanto faz” e
confirma que vai participar, que tem wi-fi em casa para isso.
Raquel reforça para o adolescente pensar na dança para o filme e chamar Anansi para
dançar com ele. Ele diz que vai falar sim, e que se precisar vai na casa do outro. Arthur fala
para ele fazer algumas imagens e ir mandando no grupo, e reforça que se for necessário falar
com qualquer um de nós, ele pode ligar de qualquer forma. Loki não dá certeza de que vai
buscar a apostila na escola, mas pergunta algumas coisas sobre a filmagem que seria feita no
trajeto desse dia (que é um trajeto de 2km, pelo o que ele disse). Arthur o lembra de usar
máscara quando for sair de casa e pede para que ele fale com sua irmã para ela participar.
Também diz para não deixar as ideias de imagens fugirem, para anotá-las ou mandar áudio
para gente. No final da conversa nós elogiamos a unha pintada dele.

05/01/2021
vídeo de 54 minutos de duração
objetivo: repassar as informações do projeto “Ano 2020” e retomar o contato.
participantes: Arthur, Raquel, Thamira, eu, Hórus.

Nessa reunião, a segunda do dia, Arthur e Hórus entram primeiro, Raquel entra depois.
Antes de Raquel entrar, Arthur estava explicando para o adolescente sobre as etapas
estipuladas para a produção do filme, e que os meninos receberiam uma gratificação pela sua
participação. Também explica sobre a parte burocrática do projeto do filme, que o nome será
Ano 2020 oficialmente, a necessidade de seus responsáveis assinarem um termo de
autorização de imagem, e a probabilidade do filme passar na Rede Minas. Os três começam a
conversar sobre a importância de pensar o que pode ser falado sobre o ano de 2020, e Hórus
conta de algumas filmagens que tentou fazer com a câmera que comprou, fala de seu canal de
youtube, Raquel comenta que elas podem ser usadas no filme também.
No momento em que entro na reunião, eles estão falando da possibilidade de
participação de um primo de Hórus, e Raquel e Arthur incentivam que ele chame pessoas
externas ao grupo já consolidado. Depois Arthur fala sobre a incerteza de fazer encontros
presenciais, e reforça a necessidade de engajamento dele (que deu a ideia) e dos outros
adolescentes para fazer o filme acontecer, mesmo que seja esquisito fazer filme online. O
menino fala que não gosta de online pra ele, que não quer fazer as atividades da escola e
segue reclamando da quantidade de páginas da apostilas, assim como os prazos propostos pela
escola. Arthur e Raquel tentam incentivá-lo para ele pegar a apostila e realizar as atividades
154

que finalizam o ano letivo de 2020. O interfone de Arthur toca, ele sai para atender. Hórus
some da chamada e Thamira entra. Depois de alguns minutos eles voltam.
Arthur volta a questionar sobre a entrega das apostilas na escola, e reforça o que
Ronessa, a vice-diretora, disse para ele. Também fala que ela aceitou fazer algumas filmagens
no dia que fossem pegar as apostilas, o que já foi acordado com Loki na reunião anterior do
dia. Hórus questiona porque o outro adolescente não está na reunião e Arthur fala que até eles
conseguirem um horário para todo mundo se encontrar, estamos nos reunindo com cada um
deles para fechar as questões da produção. Ele também repassa que será produzida a música e
que, se for possível realizar a diária presencial, vamos gravar os meninos dançando passinho
em alguns pontos da cidade.
Arthur pergunta para ele como foi a quarentena, e ele diz que não teve quarentena
porque não ficou em casa, mas que também não se aglomerou. Falou dos rolês de bicicleta
que deu, o que queria ter gravado, que ficou na casa de uma tia… Contou algumas histórias
desse período que passou lá, na zona rural.
24:53 - 27:07
Arthur: E como é que foi esse ano sem escola?
Hórus: Ruim demais, queria que voltasse rápido pra poder passar de ano e formar logo e vazar fora da escola. Cé
doido. Mó ruim véi, os cara fica falando “ah não podia ter aula mais não”... Não, tem que ter aula, carai. Ficar
em casa, quem fica em casa acha bom né, mas… Sei lá, não é muito bom não.
Arthur: Do que que cê sente falta da escola?
Hórus: De tudo (risos)
Arthur: E como que poderia, assim… hoje que já passamos 2020, quando você olha pra esse ano que passou, o
que você acha que poderia ter acontecido.
Hórus: Ah, Arthur… Acho que o que podia ter acontecido é ter evitado a pandemia né…
Arthur: E como que foi as duas semanas de aula? Foram dois meses na verdade, né? Chegou a ter um tempo de
aula, num teve?
Hórus: Ah, de aula presencial?
Arthur: É.
Hórus: Foi… fevereiro, março. Foi rapidão assim. A escola queria entrar de greve também por que não tava
recebendo salário, o povo tava falando lá que tinha dinheiro nem pra por gasolina no carro pra ir pra escola...
Então um monte de professor começou a fazer greve uma semana, fez outra... E aí a pandemia começou. Aí teve
acho que mais uma semana de aula... Aí com um pouco parou. A escola entrou de greve, parou. Veio a pandemia
e nunca mais ninguém voltou pra escola.
Arthur: E como que foi essas duas semanas de aula? Como que foi a sua chegada no ensino médio?
Hórus: É, tava bom tá, vei? Tava ruim não. Tinha muita pessoa nova, assim... Que ainda não conhecia.Tava mais
focado no campeonato escolar, queria jogar lá no… É… Ia ser o último ano de muitas pessoas lá na minha sala
lá. Num sei... Do nosso time lá, né? Aí foi lá e não teve nada.

Ele fala um pouco das primeiras impressões dessa nova fase, o ensino médio. Ao ser
perguntado sobre como achava que seria o primeiro ano do ensino médio se não tivesse a
pandemia, ele diz “Ah, eu acho que ia ser tranquilão... Ia ser mó daora porque ensino médio
cê já começa a preparar pra fazer ENEM... Pensar no curso que cê vai fazer…” e depois
também diz que não fazia muita coisa no curso técnico, porque a escola não tinha muito
recurso antes de começar a greve. Sobre o projeto da Olhares, ele fala que iriam precisar
155

combinar horário para pensar nos alunos do fundamental e do ensino médio, mas que ia
continuar sendo a mesma coisa. Arthur pergunta “Você acha que a diferença do fundamental
pro ensino médio é que o ensino médio prepara pra quando sair da escola?” e ele diz que sim,
que não sabia fazer a apostila que foi dada porque não estava acostumado com disciplinas
como biologia, que não existia no ensino fundamental. Ao ser questionado se havia pensado
na faculdade que quer fazer, ele diz que quer cursar Educação Física, “só que sem estudar não
dá, por isso que eu queria aula presencial de novo, mas tá osso”.
Arthur pergunta sobre as lembranças que o menino tem da Olhares e ele diz que “Foi...
Normal. Tava todo mundo... Tinha uns que era mais desanimado, eu também era muito
desanimado. Mas foi tranquilo fazer o projeto. E... tava sendo bom. A gente conseguiu
bastante coisa assim de... Falo de animação da galera pra fazer.” e ainda comenta de duas
meninas que não querem mais participar e dizem que não pode. Em sua opinião “tá só
afastando que não tá fazendo o projeto presencialmente”. Arthur diz que, por conta de não
estarmos no presencial, é mais difícil ter um horário para todo mundo se encontrar e depende
muito mais dos adolescentes.
Hórus responde que “Se a gente tivesse na escola, ia ser muito mais fácil... porque...
todo mundo tá indo pra escola, né? Ninguém ia faltar à toa, aí ia ser muito mais fácil pra ver
horário porque os meninos de manhã tinham... que no caso é a gente. No caso meio-dia a
gente ia embora, aí os meninos chegava, e como a gente tava fazendo curso, a gente ficava até
quatro e pouquinha. Então os meninos, não sei se podia perder a última aula, ou então depois
do horário a gente combinava e ficava todo mundo no projeto.”
Ao ser perguntado por Arthur um jeito de conseguir o maior número de pessoas e
fazer online, Hórus acha que tinha que animar todo mundo, que não daria pra ser 4 ou 5
pessoas, e que mandar as câmeras iria animar. Ele também fala sobre os meninos que não
foram na reunião que marcaram, que precisam ter responsabilidade, e Arthur diz que é
necessário entender quem quer porque não quer, e quem não está conseguindo encontrar.
Também expõe sobre as datas do projeto, que a montagem será feita por uma profissional
externa, e diz que se tiver só 4 pessoas, vamos fazer, se tiver mais de 1 pessoa já dá pra fazer.
Raquel, Arthur e Hórus ainda pensam nas possibilidades de chamar um outro menino que já
havia estado em outros momentos da Olhares, a equipe fala que pode colocar crédito no
celular dele para poder estar nas reuniões. A conversa segue com os três pensando sobre a
necessidade de fazer as reuniões com as oficinas antes das filmagens com câmera. E Arthur
diz que “é um desafio” que “a gente vai filmar 2020 em 2021”, por isso precisam do exercício
de fazer imagens e pensar juntos.
156

38:10 - 40:17
Raquel: Eu acho que… É um desafio mesmo, pra gente pensar como filmar 2020, sendo que a gente já tá em
2021. Só que eu acho que tem muita coisa pra gente pensar assim, né? Porque ainda tem muita coisa de 2020 que
continua em 2021, e muita coisa que não aconteceu em 2020 que a gente também pode falar dessas coisas que
poderiam ter acontecido em outras condições.
[alguém entrou e saiu, interrompendo a conversa]
Arthur: Mas vamo voltar aqui porque acho que isso que a Raquel tava falando é muito importante, que era isso
que eu ia perguntar… Que você mesmo falou né, Hórus? Ah, 2020 já passou, mas se bem que continua né…
Talvez tem até um anexo pra esse título do filme, que seria “Ano 2020 - o ano que não acabou”, nós estamos em
2021 entregando atividade da escola de 2020.
Raquel: É, porque geralmente é isso assim né? Quando tem essa virada no calendário, é meio que um recomeço
né? Na escola, no trabalho, em vários lugares… E aí nesse ano meio que as coisas não tiveram esse recomeço.
Elas ainda tão acontecendo, como se fosse 2020.

Arthur começa a pensar sobre a possibilidade de fazer lives e retoma uma ideia citada
na reunião anterior, do quadro “O Brasil que eu quero”, só que no formato de live. Que
poderiam ser feitas no canal dos meninos ou da Olhares. Eu digo que poderiam ser usados
inclusive vídeos já postados nos canais deles, só cortar para usar no filme. Arthur e Raquel
prosseguem instigando Hórus a dar ideias do que ele gostaria de ver num filme dele, o que
gostaria de filmar e fazer. Nesse momento ele fala que foi inspirado por uma live do canal
“Você Sabia?” no qual comentam “Já tô vendo o nome desse filme, o Ano de 2020”, e que a
gente deveria gravar algo assim. Os adultos concordam que isso seria um ótimo começo de
filme, e ele não sabe dizer se era uma live mesmo ou um vídeo do youtube.
Para tentar organizar a reunião, Arthur recapitula que é necessário o adolescente
conversar com os pais sobre sua participação, e que ele havia dito que o melhor dia para ele é
domingo. Daí seguem pensando em qual momento do final de semana seria melhor, já que o
menino não poderia durante a semana. Arthur o questiona sobre o que havia pensado para
aparecer no filme.

Hórus: Praticamente a rotina de cada um, como que a pessoa acha que tem que gravar na quarentena… Ainda
mais que tá no meio da pandemia. Aí vai tá aí “40 mil doláres para todo mundo tomar [vacina]”, aí quando fosse
tomar vacina, todo mundo fazer um vlog indo lá tomar, sei lá… um negócio assim, entendeu?
Arthur: Você acha que vai ter vacina em Ouro Preto quando?
Hórus: Ah, véi… fevereiro acho que já vai ter.

Todos os presentes dizem que vão tomar a vacina, que estão esperando, e sinto aquela
sensação de agonia e esperança misturadas, bem significativa do início de 2021, momento de
recuperação do baque do ano de 2020. Arthur fala para Hórus chamar os conhecidos que ele
sabe que gostariam de participar, e para ele procurar o equipamento que havia falado que
queria comprar, que talvez o projeto poderia desembolar isso. O adolescente responde que ele
ia comprar isso, mas seu computador quebrou, nesse momento penso como ele é um contador
de história nato mesmo, para tudo há uma narrativa, mesmo ele sendo tímido. Arthur fala de
157

novo que o projeto poderia comprar pra ele, para nos avisar o que precisasse, e que assim que
soubéssemos as datas da reunião, iríamos avisar.

06/01/2021
vídeo de 1 hora e 36 minutos de duração
objetivo: repassar as informações do projeto “Ano 2020” e retomar o contato.
participantes: Arthur, Olga, Raquel, Thamira, eu, Black n444, Cronos.

Black n444 entra já fazendo piada com Olga – que segura uma caneca - dizendo que
está tarde para ela tomar café da manhã. Quando entro na reunião, já estão todos, menos
Cronos. Antes de eu entrar, Arthur pergunta sobre questões da escola e de casa, o adolescente
fala que voltou a morar no Pocinho e estudar no Polivalente, e que fez as apostilas da escola
anterior. Depois, Arthur pergunta como está a quarentena e sua rotina.
01:33 – 01:38
Black n444: Minha rotina é a mesma.
Arthur: Qual que é?
Black n444: Ficar dentro de casa e jogar FreeFire o dia inteiro.

02:06 – 02:26
Arthur: Mas e aí, qual foi a diferença de 2020 pros outros anos?
Black n444: Nenhuma! Ah não, teve diferença sim… Porque os outros anos nós ia pra escola, aprendia as coisas,
fazia coisas diferentes... Esse ano não, esse ano a gente aprendeu em casa, maneiras de se cuidar.

O menino pega o celular, Thamira pergunta sobre o Free Fire e aí conversam sobre
isso. Arthur pergunta sobre a mudança de bairro e de escola que ele havia feito antes, então
ele responde sobre as diferenças do espaço, que ficou mais sozinho. Olga perguntou se ele
manteve o contato com os meninos do Polivalente e se é com eles que ele joga Free Fire.
Arthur pergunta sobre a autorização da família para Black n444 participar do projeto e
da gravação do filme, e também diz que se o pai tiver alguma dúvida, pode contatar a equipe
diretamente. Explica as burocracias, e o menino diz que já participou e quer participar de
novo. Quando questionado do porquê ele quer participar, responde que “é bom, é diferente. É
uma coisa que você não vê todo mundo fazer.” Arthur pergunta do que ele sente falta da
escola, e a resposta é “meus amigos, a merenda, educação física”.
Mais uma vez, Arthur sonda sobre os horários disponíveis para as oficinas e o
adolescente responde que na agenda não tem horário cheio, e também pode participar nos
finais de semana. Arthur diz que o filme vai ser “Ano 2020” e Black pergunta se vai ser
como “aquele filme 2012”. Quando Arthur pede para explicar que filme é esse, o menino diz
que não sabe e ri, dizendo que só falou por causa do nome, e Olga responde que é “o filme do
158

fim do mundo”. Aí Arthur diz que “pode ser, a gente pode pensar, a gente não sabe ainda
como vai ser não, cês que vão [decidir]…”
Depois de explicar o processo proposto de oficinas e gravações à distância, além da
possibilidade da diária presencial, Arthur pergunta se o menino vai buscar na escola as
apostilas de 2021, para gravar as imagens, e também o questiona sobre o que ele pensa “de
primeiro momento, nada definitivo, sobre esse filme”, o que pode ser tratado. Black responde
“como afetou a vida da gente, o que mudou… se foi pra melhor, se foi pra pior.”
11:36 - 12:46
Arthur: É, e às vezes mudou só pra diferente, né? Nem melhor, nem pior.
Black n444: Às vezes tem gente que ganhou lucro acima disso, e num sabe. Às vezes num gostava de trabalhar,
foi demitido, e tá ganhando dinheiro ainda… auxílio. Às vezes lucrou com isso.
[silêncio]
Arthur: É…
Black n444: É o que eu sei… Vai falar que tem gente que gosta de trabalhar, vai falar?
Arthur: Tem. (rindo) Não tem não?
Black n444: Ah, tem gente que gosta… tem gente que não. E mesmo assim as que gosta é porque não têm opção.
Vai falar que se não precisasse trabalhar, ninguém no mundo ia trabalhar… Num ia.
Arthur: O que que é trabalhar né?
Black n444: Trabalhar é várias coisas… Trabalhar, vários setor. Ah, agora continua, nó!

É interessante perceber esse momento de embates silenciosos e implícitos entre as


opiniões e visões de mundo. A questão de Arthur sobre o que é trabalhar desencadeia um
desconforto. E fico pensando também sobre essa ideia de “lucro”. Os reais lucros da
pandemia estão muito longe de ser o desempregado que ganha auxílio, mas ganhar dinheiro
sem trabalhar já é considerado estar no lucro. Thamira fala que se fosse milionária ela ia
continuar trabalhando, e para o adolescente isso não faz sentido. Quando ela diz que é porque
existe quem trabalha com o que gosta, ele já passa a concordar e diz “agora você explicou”.
Ela diz que iria montar um centro cultural, com vários equipamentos para edição. Nessa hora
penso como o sentido da palavra trabalho no capitalismo sempre está ligado à exploração.

13:45 - 14:26
Arthur: Como que seria o mundo sem o trabalho? Do tipo, como que seria a rotina das pessoas que não
trabalham? Cê acha que como seria o dia-a-dia?
Black n444: Ah, não sei não, tá? Mas ia ser bem estranho.
Arthur: Estranho? Como?
Black n444: Ah, ia ser… Aqui ia ser meio que Estados Unidos?
Arthur: Por que? Como que é nos Estados Unidos?
Black n444: Ah, lá as pessoas trabalha, mas a vida é mais fácil… Só come coisas industrializadas, não come
nada saudável, aí os que não engorda de ruim ia agradecer.

Durante esse diálogo, só reajo com minha feição a surpresa quando ele fala dos
Estados Unidos, mas está cada vez mais difícil para mim ficar em silêncio. Ainda não me
sinto na posição de atravessar as conversas, estou chegando nesse espaço e trabalhando meus
próprios incômodos com o silêncio, para deixar as interações acontecerem. Depois disso,
159

Arthur muda de assunto e pergunta para ele o que mais gostou da quarentena, “tirando toda a
parte ruim, qual foi a melhor parte?”

14:44 – 16:00
Black n444: Melhor parte? Ah, tem nenhuma não.
Arthur: Tudo ruim?
Black n444: Foi tudo… Ah, deve ter uma parte boa, só que eu não lembro não. Ah! tem uma parte boa... Não
estudei esse ano.
Arthur: Essa é a parte boa?
Black n444: Aham. Descansei, tô de férias prolongada.
Raquel: E você falou antes, que uma das coisas que a quarentena trouxe é essa questão de pensar maneiras da
gente se cuidar, né? Porque tá todo mundo fechado em casa... então a gente tem que pensar na gente. E aí, que
que cê fez por você mesmo? Como que cê se cuidou?
Black n444: Fiquei só dentro de casa, não saio pra rua, não saio pra lugar nenhum. Aí quando tem que sair tem
que levar máscara, aí eu levo um potinho de álcool em gel. E tomo uns cuidados, lavo a mão com frequência,
antes de comer... Mas isso eu já fazia antes, tá? Não comecei a fazer só agora na pandemia não. Aí aqui em casa,
tipo assim, quando a gente sai… quando a gente vai chegar a gente deixa o sapato, troca de roupa, aí põe pra
lavar e toma uns cuidados assim pra não ter risco.

Nesse momento o adolescente reclama que o áudio tá lento, “ou vocês que não tão
falando”. Todos rimos e Arthur fala que a gente tá escutando. Ele aproveita e pergunta o que
poderia ser filmado com a câmera que vão receber. Black responde que poderia filmar umas
coisas que aconteceram, como a obra do muro de sua casa que foi entregue, também que
“poderia filmar o que poderia melhorar... Com ou sem pandemia”.
Ao ser perguntado por Thamira se assistiu alguma live, ele diz que assistiu a live do
nobru. Ela entende Olodum, e quando ele o corrige ainda fala “você não entende minha
língua.” Acho interessante e engraçado a diferença geracional explícita assim. Depois ele
ainda diz também que escuta música pelo Soundcloud ou pelo Youtube. Nessa hora penso
como o Soundcloud é uma plataforma cheia de produção independente, e é muito usada pelos
MCs e produtores de funk (e música eletrônica no geral).
Arthur então fala da música que está sendo produzida para o filme, as cenas com
passinho de funk que estão pensadas. Ele tenta descobrir se o adolescente está em contato
com outros participantes do coletivo que estão sumidos e não respondem mensagens da
equipe. Também reforça para enviar imagens no grupo,e sobre as questões de horário para
reuniões, filmagem com câmera e diária presencial. Black pergunta “Será que as aulas voltam
esse ano?”e Arthur responde que pode ser que sim, mas sem certeza. Ele então diz que tem
que voltar, que já está cansado de ficar em casa. Nesse momento eu descubro que ele ainda
está no 9º ano, provavelmente o participante mais novo do coletivo até onde sei.
Thamira pergunta sobre ENEM, mas ele diz que não se interessa nisso, quer um
trabalho, Jovem Aprendiz, ser independente do pai. Arthur então pergunta se ele já foi
160

independente, e o menino responde que não, que tem 15 anos que está no mundo e nunca foi.
Thamira então diz “É, não é fácil não viu?”.
Quando Arthur o questiona sobre o que poderia ter acontecido em 2020, ele só fala do
que poderia ter sido pior. Nesse momento eu penso em reformular a pergunta, intervenho e
pergunto o que ele tinha imaginado para o 2020. Ele diz que nada, e que quando saiu a notícia
de que não teriam aulas todo mundo ficou feliz. “Vocês que é adulto assim, que estuda na
faculdade, pode ser que não, mas nós assim… Folga.” Continuo perguntando se ele fez as
atividades da escola e o que ele achou de estudar longe da escola.
28:21 – 28:52
Black n444: É meio que mais difícil, né? Porque na escola aí cê tem uma dúvida, vai lá e pergunta pro professor,
aqui tem internet mas tipo assim, nem sempre o olhar da internet é bom.
Thamira: Tem que saber pesquisar na internet né? Não é tão fácil, as vezes a gente não sabe se aquela fonte ali é
uma fonte verídica ou não.

Conversamos sobre pesquisa na internet, e um site bem conhecido que tem resolução
das questões, que é utilizado por vários estudantes. Lembro que vi meu irmão mais novo
procurando isso para procurar as respostas dos próprios PET. Olga pergunta como ele vai
saber se está certo, aí ele fala que se tiver errado a pergunta “90% dos alunos vai tá com
pergunta errada, e todo mundo vai tomar bomba junto.”
Arthur pergunta para Black sobre o que ele lembra do projeto. Então ele fala que
lembra da UFOP, em Saramenha, produzindo o filme, tirando foto dele “panguando”, a
viagem para BH, que ia falar que lembrava de ir para o cinema mas ele não tinha ido, lembra
de ter comido na UFOP… “Tirando umas fotinha tipo arte”, que seriam os cartões-postais
produzidos por eles. Sobre a viagem para Belo Horizonte, seu relato é muito similar aos dos
outros meninos, sobre suas lembranças e o lanche que fizeram no Burger King. Mas no caso
dele, ainda cita o outro filme que foi exibido na mesma mostra [chamado Um filme de verão],
que segundo ele era de um projeto parecido com a Olhares.

35:31 - 36:38
Arthur: Se cê fosse contar, sei lá, tipo… pra alguém. Cê vai convidar alguém pro projeto, alguém te pergunta o
que é o projeto, como foi… Como que cê ia falar? Como que cê ia convidar alguém pra vir participar do projeto?
Black n444: Eu ia falar: cê quer participar? Pronto, aí.
Arthur: Não, aí a pessoa vai te perguntar: tá, mas como é que é? Como que funciona? Como que funciona esse
projeto?
Black n444: Eu vou falar: você tem a chance de ficar famoso, você tem a chance de ficar rico, você tem a chance
de poder filmar… Caso seja seu sonho… Só que não.
(risos)
Arthur: Mas é sério, se alguém te perguntasse como que funciona esse projeto, que que cê ia…
Black n444: Ah, eu ia falar que a gente filma várias coisas pra tentar montar um filme.
[silêncio]
Black n444: Ou, dá pra falar aí? Cês tá muito calado.
161

Sem muito mais o que ser conversado, Arthur diz que é isso que queria conversar, que
estamos esperando as outras pessoas que querem participar para poder explicar para elas
também. Reforça que vamos trabalhar com quem puder e quiser, que teremos que fazer o
filme de qualquer forma e que é um projeto aprovado por edital, com data para entrega. Aí
lembra de todo processo até conseguir enviar. Que vamos pensar tudo junto, mas dessa vez
será com direcionamento e que tem que sair um filme. Nesse ponto a probabilidade maior é de
fazer encontros no final de semana, pelo o que estamos percebendo da resposta dos meninos.
Assim que Black n444 sai, a equipe de adultos conversa sobre as pessoas que já
responderam sobre a participação no projeto, quem falta, como serão realizadas as primeiras
reuniões, e que provavelmente nesse momento vão ser encontros com cada um deles de cada
vez. Conversamos sobre o outro participante que havia falado que entraria nessa reunião,
Cronos, que trabalha durante a tarde, as possibilidades dele participar da produção. Arthur
fala sobre as chances de se fazer um encontro presencial, que nesse momento são poucas,
visto que a região central de Minas Gerais é a pior na quantidade de casos de COVID-19.
Caso sejam apenas quatro pessoas, é possível pensar em algo assim. Mas um número maior
que esse, já não conseguimos pensar em colocar todos juntos. Difícil fazer projeções nesse
momento. Compartilhamos ideias, preocupações e possibilidades para a produção. Duas
questões que saltam aos olhos nesse momento são: a quantidade de adolescentes confirmados,
que são 3 até o momento, e o fato de só terem meninos interessados - as meninas do projeto
não respondem às mensagens.
Enquanto conversamos, Cronos aparece no grupo e diz que vai entrar na reunião. Ele
ainda demora um pouco, a equipe já compreende que a conversa com ele deve ser mais
objetiva. Quando finalmente ele consegue se conectar na chamada, Arthur pergunta se ele
ainda está na escola, se largou, e ele diz que não está fazendo as aulas online, mas não
desistiu. Nos conta que seu filho nasceu em dezembro e ainda diz sobre a paternidade recente:
“Ah, emoção demais né? Aquela sensação diferente que cê só sente uma vez na vida, sabe?”.
Fala de seu trabalho na fiscalização de um supermercado, explica a rotina e seu turno. Quando
ele diz que fica vendo telas de segurança, Arthur comenta que no dia-a-dia dele então existe a
presença do vídeo. Acho muito interessante essa perspectiva porque ele também já coloca a
possibilidade de incorporar isso no filme.
Arthur explica os dispositivos que serão propostos nas oficinas, a entrega das câmeras,
e diz que pode ser massa que Cronos fale sobre a experiência dele como jovem pai, com filho
na pandemia, até como registro de suas memórias. Pelo fato dele ter a rotina mais ocupada,
provavelmente não vai participar das reuniões online. Mas topa participar da produção do
162

filme. Arthur explica mais detalhadamente sobre o processo dos dispositivos e das câmeras
que serão entregues, e diz da possibilidade de gravação presencial que vai acontecer “se a
pandemia deixar”. Também conta da música da trilha sonora. Enquanto Arthur fala, ouvimos
Cronos responder alguém e dar direções pra Rua Boa Esperança, e já me lembro da história
que ouvimos sobre a bicicleta e a polícia, na reunião do dia anterior.
Finalizando a reunião, Arthur termina de repassar as informações e também conta
sobre o pagamento que Cronos receberá pela produção [ele é o único maior de idade dos
participantes até então]. Arthur reforça que vamos compreender o fluxo diferente dele, e
retoma a ideia do filme. Por fim, a ideia é que as oficinas online aconteçam em janeiro e que
as câmeras sejam enviadas até o meio de fevereiro, para dar tempo da montagem e da edição.
E fica a sugestão de Cronos enviar as imagens que for produzindo para nosso grupo.

08/02/2021
vídeo de 1 hora e 56 minutos
objetivo: ver e conversar sobre os resultados do 1º dispositivo - Minuto Lumiére (plano fixo
de 1 minuto)
participantes: Arthur, Raquel, Thamira, eu, Loki, Hórus, Kali.
Depois de algumas semanas vendo a disponibilidade de todo mundo pelo grupo do
whatsapp, com mais participantes que já fazem parte da Olhares confirmados para o projeto,
foi possível marcar a reunião para o dia 04/02, no melhor dia da semana e horário para a
maioria. Não dá certo de nos encontrarmos, e apesar de algumas pessoas terem mandado os
vídeos do dispositivo, a maioria não aparece.
Depois de Arthur enviar um áudio no grupo explicando a importância dos encontros, a
seriedade do projeto aprovado no edital, e de que se alguém não quisesse participar, era só
falar diretamente que a produção então iria fazer com que quer, ficamos combinados de nos
encontrar no dia 8. Ainda não sei como me portar dentro do grupo e decidi fazer o dispositivo
proposto, em um certo movimento de abertura para essa experiência.
Quando o primeiro adolescente entra, a conversa se inicia com a equipe falando sobre
a necessidade de conversar com os outros membros para participarem, mas também há o
reforço da ideia de que o filme será realizado com quem quer fazer, e não há muito tempo
para correr atrás das pessoas. Ele então se coloca no papel de também convocar os colegas e
“puxar a orelha deles”.
Quando Arthur pergunta se depois de um ano longe da escola, ele já sente saudade,
Loki responde que sim, que “dá saudade da escola, mas de estudar não.” E quando perguntado
163

sobre o que sente saudade da escola, ele diz “comer, jogar bola… porque na escola a gente ia
pra... também pra estudar, mas a gente ia também porque ficar em casa é osso, cê ia pra
escola, cê já aliviava a mente, ficava mais de boa porque você sabia que ia pra escola, ia fazer
alguma coisa, não ia ficar parado em casa.” Sobre a horta, ele diz que “deve tá um zoológico”.
Ficamos um tempinho esperando e Arthur fala que recebemos 9 vídeos do dispositivo,
que se mais ninguém aparecesse iríamos assistir e comentar entre nós. Quando Loki pergunta
quem enviou, Arthur então explica que a proposta é que a gente assista os vídeos juntos sem
saber de quem é, e que depois de ver cada um envie uma palavra no chat que pensou enquanto
assistia. Acho que o exercício de apreciar os vídeos sem saber a autoria pode abrir a outras
possibilidades de interpretação, e até instigar essa busca de tentar associar as imagens às
pessoas.
As palavras escolhidas para o primeiro
vídeo são: subida, sossego, calmo,
aglomeração. Então, cada um de nós explica
porque pensou nessas ideias. Começo
explicando porque Loki ri da minha escolha e
eu justifico que foquei nas ladeiras da
imagem, por isso subida. Quando Thamira
explica sua palavra sossego e a saudade da calmaria do interior, o adolescente diz “é, eu sei
que Ouro Preto é roça mesmo.” Ele é quem manda a palavra calmo, em um sentido parecido
com o de Thamira. Raquel, por sua vez, é quem escolhe aglomeração, caminhando para uma
direção totalmente oposta, pensando nas ruas da cidade.
Enquanto conversamos, Loki começa a rabiscar na tela com uma ferramenta do Zoom
que nenhum de nós adultos conhecia, e ficamos maravilhados com a possibilidade de
interação com a imagem. Depois, Arthur começa a comentar sobre o movimento das nuvens,
suas sombras, os fios de energia, uma pessoa que aparece no canto inferior esquerdo andando
na rua, detalhes do vídeo que são bastante sutis. Em coletivo realmente fica muito mais
evidente a multiplicidade de sentidos que pode surgir de um simples plano estático de vídeo.
Depois de assistir o segundo vídeo, logo de cara Loki comenta que a pessoa está
tremendo ao filmar, e que provavelmente foi alguns de nós “professores”, porque não
reconhece a rua entre as pessoas que ele conhece do projeto. As palavras que aparecem são:
morro, recorte, linhas, calçada e respiração. Loki comenta sobre sua palavra morro, no
sentido de ladeira, e diz que pensou em escolher vertical. A partir disso, diz que “se tivesse
sido filmado assim” (ele vira o celular nesse momento da orientação vertical para a
164

horizontal), “ia pegar mais coisa”, “ia pegar mais o morro, mas aí tinha que ter gravado mais
do lado de fora, se não ia pegar mais a casa do que o ambiente”.
Raquel diz que foi por isso que
pensou em recorte, mas depois repensou que
seria melhor moldura, pois a varanda estava
fazendo uma moldura para o vídeo. Thamira
explica sua escolha pela palavra linhas, pela
quantidade de linhas presentes na imagem (da
janela, do poste, a vertical do vídeo). Eu explico que escolhi a palavra calçada porque o vídeo
me deu a sensação de ser um observador da rua, “de sentinela ou de fofocagem”, parado na
calçada. Arthur escolhe respiração porque “a câmera não está fixa, justamente porque a gente
respira”, e completa: "A gente grava achando que tá paradinho, mas é o fato da gente respirar
que faz ter esse movimento”. Nesse momento Loki fala que quando foi gravar deixou o
celular encostado em um lugar, Arthur e Raquel concordam que é a única forma de fazer uma
imagem fixa mesmo.
Arthur faz uma ligação entre o primeiro e o segundo vídeo e diz que “dependendo de
como a gente edita e na ordem que a gente tá vendo, a gente pode pensar que aquela é a visão
de longe, e que aí aproximou e essa rua faz - por mais que possa não fazer - a gente podia
pensar que essa rua tá dentro daquelas ruas que a gente viu antes”. “Como se fosse um zoom
naquela outra imagem, né?”, diz Raquel. Ele também explica que “o cinema tem um pouco
isso, né? De começar com essas imagens mais abertas, né? Mostrando onde que tá, dando um
panorama geral da situação…”. “Contextualizando, né”, completa Thamira. Ele concorda e
diz que a primeira imagem poderia inclusive ser incluída no filme, direto. Loki brinca: “é que
cê sabe que o pai grava bem né?”, entregando que foi ele o autor do primeiro vídeo.
Nesse momento Arthur comenta sobre a orientação vertical a partir do comentário que
Loki havia feito, para dizer que algumas pessoas usaram nos vídeos enviados e que fazemos
isso por causa do uso de celulares, mas que se formos parar para pensar a orientação dos
nossos olhos é na horizontal e não na vertical. Loki brinca: "Quem é youtuber igual eu já
sabe, né? Anos de carreira.” Arthur termina dizendo que não é um problema filmar na
vertical, que não tem certo ou errado, mas questiona se estamos fazendo cinema ou um vídeo
para o youtube, se a gente vê na horizontal, “se nosso olho tá um do lado do outro”, por que
gravar na vertical? Confesso aqui que não tinha parado para pensar por essa perspectiva, nesse
fato básico de que os olhos dos seres humanos estão posicionados na horizontal.
165

Arthur comenta o terceiro vídeo (feito por


mim) se atentando para a presença das
máscaras penduradas, um símbolo da
pandemia. Eu pontuo que se colocassem as
três cenas assistidas em uma mesma
montagem daria para dizer que se trata da
mesma casa, em diferentes pontos. Também
reflito que os três vídeos se tratam de perspectivas de dentro da casa para algo de fora. Arthur
fala um pouco mais sobre essa característica do cinema de construir espaços, filmando em
lugares diferentes e os sentidos que se formam a partir da montagem.

39:21 - 40:19
Arthur: [...] a montagem não é só com as imagens, ela também pode ser com outras coisas. Então se a gente visse
essas três imagens, cada uma com uma cartela antes. O que é uma cartela? É uma informação escrita. Então se
tivesse, por exemplo, na primeira: Ouro Preto, aí vem essa imagem que a gente viu primeiro; na segunda,
Mariana, essa imagem; e na terceira, Belo Horizonte, essa imagem […] Por mais que nenhuma dessas imagens
seja em Belo Horizonte e nenhuma dessas imagens seja Mariana, a gente poderia construir esse sentido de que
são três cidades onde mais ou menos tá acontecendo a mesma coisa, né? Porque a ação é um pouco a mesma, né?
Olhar a paisagem.

Ele continua falando sobre questões relativas à montagem do audiovisual, “como essas
imagens vão fazer relação, e essa relação nem sempre tem que ser por proximidade ou por
causa e efeito”, e exemplifica com sequências de cenas hipotéticas, algumas mais realistas e
outras não. Loki diz que pode haver um “duplo sentido”, e Arthur fala que na verdade podem
ser múltiplos sentidos e acha importante pensar na estrutura do filme, “o que vai entrar e o
que não vai, não necessariamente querendo passar uma mensagem muito direta, às vezes
deixando espaço pra quem vai assistir encontrar esses sentidos na imagem”. Raquel ainda
completa dizendo que “as pessoas que filmaram aquilo ali filmaram pensando em alguma
coisa, eu que to aqui por exemplo assistindo, pensei coisas completamente diferentes”.
No quarto vídeo, Arthur começa apontando o movimento das nuvens e um movimento
de câmera, no qual a pessoa que filmou está arrumando o enquadramento. Sobre as palavras
escolhidas, Loki fala que horizonte (que eu
escolhi) e paisagem (que ele escolheu) são a
mesma coisa. Eu e Thamira discordamos e
Arthur então pergunta para ele o que é
paisagem.
166

Loki: A vista.
Arthur: Mais, mais!
Loki: Retrato?
Arthur: Mais!
Loki: Ah, fala aí, gente.
Eu: Oxe, ué… você que escolheu a palavra…
Arthur: Tá, e o que que é horizonte?
Eu: Pra mim ou pra ele?
Arthur: Pros dois.
Loki: Você que escreveu…(risos)
Eu: O horizonte é essa linha que você vê lá na frente assim ó… (gesticulando) Láaa na frente…
Loki: As montanhas?
Eu: …o infinito que não é infinito. Mas não é exatamente as montanhas, porque o que eu fiquei viajando nessa
imagem é que, tipo assim, todos os elementos que eu vejo, as nuvens e as casas, elas tão tipo todas apontando
pro mesmo lugar, que é esse vazio entre as montanhas. (gesticulando muito) Então tá meio que tudo te
direcionando pra olhar pra lá… Lá, sabe?
Raquel: Quando fala em horizonte eu tenho muito essa imagem de um negócio que tá na frente, nessa linha que
vai… (apontando para frente) E paisagem é um pouco mais ampliado.
Loki: Quando eu penso em horizonte eu penso em uma praia, e um sol no final, tá ligado?
Eu: Eu também.
Thamira: Lá no fundo, assim né? (apontando)
Arthur: Mas olha, eu também penso. Mas quando alguém me fala uma praia e um sol, eu posso também
responder pra pessoa: nossa, que paisagem bonita!
Thamira: Agradável…
Loki: Então paisagem e horizonte é a mesma coisa?
Raquel: Quem me garante que no final daquilo tudo ali não tem uma praia também? [se referindo ao vídeo que
estamos vendo]

No final do debate, eu e Loki chegamos a conclusão de que às vezes horizonte e


paisagem são a mesma coisa e às vezes não. Arthur também pontua que, dependendo da
construção que se faz no filme, essa imagem pode ser em mais de um lugar diferente e eu digo
que o som que se coloca muda a percepção do lugar. Enquanto falamos, Loki coloca uma seta
na imagem, e Arthur já comenta que esse efeito poderia ser usado no filme, para logo depois
aparecer outra cena dando a ideia de que era o lugar apontado - como o vídeo da rua que
vimos antes.

Ele ainda reforça que isso são


possibilidades de uso das imagens, as
brincadeiras com o real. Raquel e Thamira
ainda comentam que ficaram reparando no
movimento dos carros nesse vídeo, detalhe
que prestaram atenção, e por isso Raquel
escolheu a palavra esconderijo, porque os
carros apareciam de algum lugar que não é
possível ver no enquadramento da imagem.
167

Ao comentar o quinto vídeo, Raquel e


Thamira concordam que se parece com “casa
de vó”. As cores presentes na imagem são
ressaltadas por Arthur e Loki - e ele diz como
o verde atrás traz um destaque para isso.
Arthur fala que ficou pensando sobre os
vídeos “como tem a ver com a pandemia, não só porque tem a máscara naquele [vídeo] do
gato, mas como que as pessoas tão sempre longe, não tem nenhum vídeo com pessoa perto.
Os espaços estão sempre ocupados por outras coisas, animais… E as pessoas estão sempre
longe, muito longe”.
53:17 - 54:38
Loki: Que bom!
Arthur: É, nesse caso muito bom.
[silêncio]
Mas, viu, olha como que é contextual… Ou seja, olha como tem a ver com a situação. É bom, agora que a gente
tá em pandemia, que as pessoas estejam longe… Mas talvez, se não tivesse pandemia esse monte de imagem…
Loki: Ia ser bom as pessoas tá longe também.
Arthur: Então, mas aí talvez esse filme, ou seja, essas imagens podiam passar uma ideia de solidão, de
distância…
Loki: Sim! Nessa pandemia, tipo… a gente que é adolescente, a gente tá sem nada pra fazer ... adolescente,
criança... Criança até que não. Tipo, a gente fica muito... Depois de um tempo cê começa a num querer fazer
nada... Aí cê pega alguma coisa pra fazer, cê num faz, cê fica desanimado. Eu não sei porque, deve ser tipo um
sentimento de solidão assim mesmo, sabe?
Raquel: Mas num é nem só adolescente não, eu acho que isso é todo mundo assim… Porque é tudo tão igual, é
todo dia tanto a mesma coisa, que cê fica querendo, esperando que alguma coisa diferente aconteça, só pra sair
um pouco daquilo, e aí cê fica meio com preguiça assim mesmo, de falar assim “Ai, hoje vai ser igual a ontem,
que vai ser igual amanhã, que foi igual a 30 dias atrás, que foi igual um ano atrás!
Loki: Grande bosta, nó! Esse trem de pandemia tá acabando com a minha mentali… Minha… Esqueci. Minha
mente. Porque não tá ocupando minha mente, aí… vei… parece que cê vai ficar louco assim, tá ligado? É muito
ruim.
Arthur: Mas agora cê tá fazendo um filme, cê tem o que pensar ó. Foca no filme.
Raquel: Ocupa a mente com o filme!

Nesse momento eu digo que tive que aprender a ficar sozinho durante a pandemia, que
não tinha o costume e isso é difícil mesmo. Ele diz que no seu caso sempre foi assim, que não
gosta de ficar na companhia de muitas pessoas, e que na escola ficava só ele e outro colega.
Eu respondo que ficar sozinho por escolha é uma coisa, mas que ficar sozinho porque é
necessário é mais difícil. Arthur relembra de um vídeo que foi enviado por Loki em março de
2020, duas semanas da pandemia, falando sobre a rotina, que ele não aguentava mais - e
Thamira diz que daria para fazer o remake, a versão de um ano depois. Arthur comenta que o
filme pode convocar a usar outras imagens de arquivo do coletivo.
168

Sobre o sexto vídeo, Thamira diz que a faz lembrar muito de Ouro Preto, que mesmo
que ela não soubesse que foi filmado na cidade, lembraria. “Essa penumbra, essa montanha,
esse frio.” E Raquel diz que, mesmo fora do contexto de coronavírus e a necessidade de ficar
em casa, esse vídeo a daria vontade de ficar em casa. Todos nós sentimos o frio apenas de
olhar para essa imagem com neblina e chuva.

Arthur comenta que, intercalando imagens


como essa com imagens de sol, seria possível
dar uma ideia de passagem do tempo. Loki dá
a ideia de uma montagem iniciando com o
vídeo dele do ano anterior e essa sequência de
passagem do tempo juntamente com uma
narração. Raquel relembra o comentário de
Arthur sobre o movimento das nuvens do outro vídeo, que quando acelerado também dá
o efeito de passagem do tempo. “Igual anime, mais ou menos, os cara coloca: dois anos
depois, um ano depois, seis meses depois…”, Loki diz. E Arthur responde que em alguns
casos é até interessante não especificar quanto tempo foi passado, que existem formas
implícitas de mostrar, e explica que essa construção se chama elipse. A partir disso o
adolescente vai lembrando exemplos de elipses.
Arthur retoma o comentário feito sobre ficar sozinho na escola, e então o menino
explica:
1:05:12 – 1:06:16
Loki: Na escola, eu já fiz até um vídeo pro meu canal disso... Na escola tem 3 tipos de grupo: os nerds, os
descolados, e tem a gente... Tipo eu, o Odé. Que são nerds disfarçados de... Não. São descolados, mas são nerds.
Então a gente pega tudo isso, e é a gente, tá ligado? Porque a gente gosta de estudar, mas é descolado também.
Tipo, nós não gosta de ficar perto de pessoas, receber elogio, esses trem assim... Mas a gente gosta de estudar
também, tá ligado? Então geralmente a gente não se encaixa em algum grupo, a gente gosta de ser a gente. A
gente, os dois.
[nesse momento, os adultos reagem com um sorriso no rosto em silêncio]

Os comentários sobre o sétimo vídeo se


centram em sua sensação de movimento,
dada pelo vento, a chuva e o foco
automático utilizado para filmar. Arthur
retoma a conversa sobre passagem de
tempo e faz um comentário dizendo que as
unidades de medida, para determinar essa
169

passagem, podem ser coisas como “desde que eu gravei o último vídeo choveu não sei
quantos milímetros, ou seja, de lá pra cá foram 36 horas seguidas de chuva”, “pode ser
bombons… eu comi 38…”, “Tantos dias de sol, tantos dias de chuva”, continua Raquel.
Thamira ainda completa dizendo que “dependendo de como que a gente resolve contar esse
dado, faz toda diferença. Às vezes a pessoa vai ficar chocada, às vezes não vai ficar tão
chocada. Sei lá, ‘90% dos dias fez tantos’, é diferente da gente falar que ‘5 dias choveu,
choveu tantos milímetros’.”.
Sobre o oitavo vídeo, Loki comenta do
fundo da imagem, e Thamira responde que
parece uma pintura. Arthur ressalta que há
um contraste entre a cor da parede e a cor
do gato. Se no outro vídeo falamos tanto
do mar, do horizonte, este também tem
algo de mar nele. Raquel acha que “esse
deixa bem aberto essa questão da imaginação, fica bem livre.” Thamira fala que “parece que
tem uma corrente marítima, vem um azul clarinho e um escuro”, tipo a parte das tartarugas
em Procurando Nemo. “Dá impressão de vento também, essa sensação assim… E eu acho que
o fato do gato estar todo enroladinho também deixa essa ideia de frio”, completa Raquel.
Arthur avisa que Hórus vai entrar na chamada, e Thamira diz que Kali vai tentar também.
Hórus entra pedindo desculpa dizendo que seu celular não está carregando, e está apenas com
5% de bateria, quase desligando.

Sobre o nono vídeo, Loki diz que o faz


pensar em movimento. E Thamira
comenta que parece que foi gravado
minutos antes dos vídeos de chuva.
Raquel ainda reforça que estamos
conversando sobre tempo “aí vem o
nublado, ensolarado, chovendo…”. Loki
faz uma piada com Peaky Blinders, e o tempo nublado “frio e calculista”, e preciso segurar o
riso porque lembro de todos os memes que já vi com essa expressão do seriado. Raquel
comenta o vídeo dizendo que “a maioria dos outros tava olhando pra frente e esse parece que
tá olhando pra cima.”
170

Terminado o vídeo, aparece a lista de reprodução de Arthur com o arquivo “favela


cartao postal.mpeg”, referente ao funk feito para o filme. Um dos meninos começa a cantar a
música, enviada para nós seis dias antes no grupo do whatsapp. Assim que escutamos ela,
comemoramos porque todos gostaram da produção e da letra, e voltamos a conversar.

1:21:45 - 1:22:11
Raquel: Sabe o que eu fiquei pensando? Porque a música também fala um pouco disso, desse lance do tempo,
né? Tipo assim… Ah, ‘o tempo ruim passou’, que dá pra associar com dia de chuva, ‘o dia tá lindo’, que
geralmente a gente associa com dia de sol assim também… Que a gente tava vendo nos Minutos [Lumière]...
Loki: Pandemia! Pandemia é o tempo ruim…
Raquel: Pandemia é o tempo ruim!
Hórus: Tempo horrível…

Arthur começa a refletir sobre a possibilidade de, além de falar como foi 2020, como
poderia ter sido, as coisas que podemos inventar. Os meninos começam a falar então sobre
futebol, campeonatos… Loki comenta que não está jogando agora, Thamira diz que ele é
consciente. A partir disso eles falam sobre os comércios fechados, as taxas de ocupação de
leito - assuntos pandêmicos. Em um dado momento, Thamira pergunta sobre o Free Fire e os
adolescentes dizem dos níveis que estão, a dificuldade de subir de nível, outras pessoas que
jogam também, quem falta de aula para jogar. E esse assunto puxa o papo sobre escola,
contando que fizeram uma prova online no aplicativo, com várias disciplinas, para passar de
ano. Thamira questiona se eles gostaram de fazer as coisas pelo aplicativo, e respondem que
preferem escola. Que existem algumas escolas que já voltaram às aulas, com o uso de
máscara, e eles conversam se serão vacinados. Hórus diz que os menores de 18 anos não vão
ser vacinados e Loki diz que vai vacinar porque é grupo de risco. Nesse momento, Arthur
tenta confirmar o dia e horário para a próxima reunião, mas os meninos continuam
conversando sobre as notas da escola, e se passaram de ano. As informações são
desencontradas e eles preferem ir na escola. Thamira diz “Se for, vai de máscara!”. “E filma,
na horizontal.”, completa Arthur.
Mais uma vez, Arthur faz a reflexão da posição dos olhos e a posição da filmagem,
exemplificando com o Free Fire “que para jogar eles também viram o celular”. Ficamos
combinados de manter as reuniões no mesmo horário e Arthur reforça que precisamos
produzir o filme, rememorando algumas ideias que foram trazidas para cenas possíveis: a
dupla dançando passinho de funk, com a música do filme, as imagens que serão realizadas nas
oficinas, a tela do Free Fire enquanto jogam, tela do Google Maps… E também diz para os
meninos já irem pensando as histórias que querem contar, para podermos conversar na
próxima reunião. Raquel também fala para reverem os Minuto Lumière para essa reflexão.
Arthur diz que é importante eles enviarem os exercícios dos dispositivos, porque acabamos
171

conversando coisas para além da própria imagem. E que a ideia é fazer quatro oficinas,
conversar sobre as filmagens e aí sim eles receberem as câmeras em casa. Raquel explica que
o que eles irão filmar com essas câmeras depende do que a gente quer fazer com o filme, por
isso as conversas.
Além das imagens dos dispositivos, também falam que os meninos podem enviar o
que tiverem produzido. Hórus começa a contar de suas tentativas de filmagem na Geladinha, a
cachoeira perto de sua casa. Arthur sugere que os meninos conversem entre si para imaginar
as cenas que podem aparecer no filme, reforçando que não precisa ser apenas o que
aconteceu, mas o que poderia ter acontecido. Dá um exemplo de cena com animação
colocando vacinas no lugar de armas no cenário do Free Fire e comenta que, por conta do
orçamento do projeto, talvez consigam contratar uma pessoa para fazer efeitos especiais. Por
isso ele diz que os meninos precisam pensar sobre as cenas que querem ver.
Hórus tenta descobrir quem foram as pessoas que mandaram os vídeos da oficina do
dia, ou quantas. Arthur diz que ele não precisa se importar com a quantidade de gente, que se
o filme for feito por uma, duas ou três pessoas, podemos pagar outras para edição e efeitos
especiais. Não é possível fazer uma mega produção, mas a ideia é pirar. Arthur por diversas
vezes dá exemplos que extrapolam o real, e que instiguem a mistura com a ficção fantástica.
Nesse momento, Hórus volta na ideia de falar sobre o que não aconteceu, diz que tem
muitos vídeos e comenta: "O recomendado era o que? Ficar em casa, não fazer aglomeração
e... aqui em Ouro Preto teve vários lugar que pegou assim aglomeração, tipo cachoeira das
andorinhas, tava lotada. Aí a guarda chegou, tirou todo mundo. O centro tava lotado, a guarda
chegou também avisando pra não ficar assim no centro, entendeu?” Arthur responde que essa
ideia de falar sobre o centro é muito legal, e se interrompe dizendo que Kali vai entrar, mas
que já precisamos encerrar.
Raquel retoma dizendo que essa ideia é massa porque falamos sobre “como deveria ter
sido 2020, e como foi, que são coisas diferentes.” Arthur ainda fala que, sobre a ideia de
filmar o centro, é possível se organizar no final de semana para descer de carro e produzir,
que dá pra entrar no filme. Também diz que uma coisa pode entrar no filme é “a galera do
grau, os encontros de grau”, se referindo ao “dar grau” de bicicleta. Nesse momento Kali dá
um oi e comemoramos que já temos 3 pessoas para fazer o filme. Arthur fala que já
precisamos terminar, mas pra ela participar na próxima oficina também.
Quando Arthur está finalizando, ele fala que eu e Raquel estamos mais próximas deles
e podemos ajudar se precisar de alguma coisa, já que ela está em Ouro Preto e eu estou em
Mariana (Arthur e Thamira estão em Belo Horizonte). Nesse momento, Hórus diz “Nó,
172

Mariana também foi outra… Quando tinha a campanha política lá, ali na rodoviária não cabia
mais gente... Era gente demais que tinha. E a gente nem tinha a ideia de começar o filme,
entendeu, se tivesse dava pra ter filmado. Tava muito lotado. Vários lugares lotou... Bar fica
lotado, cachoeira fica lotada... Comércio também, alguns ficam, outros não.”
Raquel reforça para os meninos lembrarem de gravar o que acharem interessante e
enviar as filmagens. Hórus reclama da câmera que tem, que não é muito boa, é melhor para
imagens paradas. Arthur responde que vamos enviar câmeras para eles, mas primeiro
precisamos das oficinas, que acreditamos que elas vão nos ajudar a pensar as coisas juntos, ter
o momento de se encontrar e ver as imagens juntos. “Não é que a gente vai direcionar o que
vocês vão ter que filmar exatamente, mas pra gente entender o que vai entrar nesse filme.”
Thamira dá a dica de que, mesmo se não conseguirem formular uma frase para explicar as
ideias que tiverem, eles podem compartilhar no nosso grupo, uma palavra, um conceito que
seja. Arthur reforça para pensarem “o que eu fiz na pandemia, o que eu não fiz, o que eu
queria ter feito”. Para fechar tudo, Arthur diz que vamos conseguir fazer o filme, que vai ser
massa, que vamos conseguir ir pra outros festivais e que vamos ter ajuda de custo.
Como um comentário geral, em alguns momentos os meninos tentaram adivinhar
quem foi o autor da filmagem, o que significa que realmente não contar quem fez afeta esse
exercício de apreciação. Do resultado do dispositivo, algumas filmagens não estão
completamente estáticas (a minha por exemplo), o que indica que a pessoa estava segurando
no momento que filmou, e não posicionou a câmera em uma superfície - o mais indicado para
esse exercício. Além disso, alguns vídeos ultrapassam os 60 segundos ou então não chegam a
ter essa duração - com 25 ou 30 segundos. E esses não são motivos para descartar as
filmagens do momento da apreciação. Até a proposta de enviar as palavras no chat em um
dado momento não se torna mais o centro da reunião - por esse motivo na descrição me
atenho ao que foi conversado - e as conversas que se seguem são mediadas por Arthur, que
respeita o tempo de reflexão, mas faz o papel de voltar para o fluxo dos vídeos.
173

18/02/2021
vídeo de 1 hora e 35 minutos
objetivo: ver e conversar sobre os resultados do 2º dispositivo - foto da janela que o/a
participante mais observa + áudio até 1 minuto explicando essa escolha (cartão-postal
narrado).
participantes: Arthur, eu, Raquel, Thamira, Hórus, Jaci, Odé, Loki.

Essa reunião também teve que ser remarcada, primeiramente seria dia 15 mas não
recebemos o material do dispositivo em tempo hábil, e no dia combinado Thamira mandou
mensagem no grupo remarcando para o dia 18. Apesar de já ter aberto a brecha para o contato
com o grupo, ainda sinto que estou me aproximando, e decido fazer o dispositivo do dia mais
uma vez, fotografando a janela da minha cozinha e mandando o áudio.
Começa a reunião e vemos que Odé e Loki estão na mesma casa a passeio em Ouro
Branco, Arthur então dá a ideia deles gravarem uma conversa entre si, colocando o celular
parado. Também falamos para eles aproveitarem a estadia para filmar algumas coisas. Arthur
diz para eles mandarem pelo WeTransfer e Odé diz que usa o aplicativo Panda, de edição de
vídeo, para compactar o vídeo. Eu desconhecia esse aplicativo, já estou aprendendo com eles
essas dicas, vou baixar depois para testar. Depois disso ficamos só ouvindo eles falando sobre
os programas que usam, com toda a propriedade de criação que eles já possuem - com seus
canais de youtube e contas em redes sociais. Até aprendo que em um desses aplicativos dá
para usar a ferramenta de chroma key. Eles conversam entre si sobre ideias do que filmar onde
estão e em um dado momento, Loki fala para Odé “Tem que fazer o Minuto Lumière quando
tiver o sol saindo lá…”
Iniciando o momento de assistir aos postais narrados, Arthur pontua que dessa vez não
será possível esconder quem produziu o quê, já que tem áudio.
11:27 – 12:52
Eu gosto dessa janela, gostei dessa janela, tirei dessa
janela porque dessa janela eu consigo ver a natureza,
sabe? Eu consigo ver plantas... Além do horizonte eu
consigo ver uma montanha lá no fundo. E tipo, essas
coisas de natureza me acalma, sabe? Me traz uma paz.
Tipo assim, quando eu acordo, da janela de lá de casa eu
consigo ver o pico, as montanhas, o verde. E tipo, assim
que eu acordo isso me traz uma paz quando eu vejo isso,
entende? E é basicamente isso, pô. Quando eu acordo
pra uma janela que é a janela lá de casa eu quero ver
isso, verde. Eu não gosto de acordar e ver, olhar prédio
do lado, asfalto, carro, barulho... Eu prefiro um lugar
mais calmo, onde mostra um verde, um céu bonito...
entendeu? Então é isso, pô. Mato, coisa da vivência,
assim da natureza, no geral é isso, me acalma, me traz paz, traz uma, sei lá... Transparência. Eu reflito um pouco
da vida, as coisas que vai vim, que vai acontecer comigo, o que aconteceu, o que eu posso mudar, o que eu posso
melhorar. Reflito na minha vida, na minha família, pessoas que eu gosto, o que eu não gosto... Basicamente eu
reflito em tudo, pô. Basicamente é isso aí, entendeu? Mais ou menos isso aí. Valeu, obrigado!
174

Quando acaba o vídeo, Loki abre o microfone de novo e Odé está explicando alguma
coisa sobre intensificador de agudo e redutor de ruído, aí pela resposta de Loki entendo que
ele está falando do tratamento de áudio para a narração que acabamos de ouvir. Concordo
com Loki quando ele defende que os ruídos de fundo (barulho de pássaros) deveriam ser
mantidos, e elogio a trilha da narração porque tem tudo a ver com o que está sendo falado por
ele. Raquel ainda comenta que quando tem um pouco de natureza na cidade é “um respiro”.
Daí Odé conta sobre a paisagem que viram indo para Ouro Branco.
15:20 - 15:32
Essa é a segunda janela que eu mais fico, é a janela
do quarto do meu pai. Gosto de vim aqui todos os
dias de manhã e olhar se tá sol ou se tá chuva. Mas
é aqui que eu olho.

Ao ouvir essa narração, os meninos ficam


se perguntando de quem seria (entre duas
meninas do coletivo) e acham muito curto
o áudio. Raquel os provoca perguntando o
que falariam caso tivesse aquela janela
para olhar. Um responde que “ia falar que tem uma construção ali… não ia gostar muito não,
porque não ia bater sol lá em casa” e o outro fala “Eu ia olhar pra o que… eu gostei daquela
grama, só não achei legal aquele muro ali. Se fosse tipo uma descida toda de grama ali eu ia
achar melhor ainda.” Raquel então conta que quem fez essa foto foi de um menino que teve
todo um problema que o muro tinha caído, que precisou mudar de casa e depois voltar para
essa. Primeiro os dois meninos riem quando se dão conta de quem gravou o áudio. Ao
lembrá-los de que foi “uma luta para construir de novo”, ela pergunta “como será que ele olha
pra esse muro?” e um deles responde “provavelmente com tristeza”. Eu e Raquel
respondemos ao mesmo tempo que pode ser que sim, mas que podem ser outras coisas. Nesse
momento os meninos se distraem falando que o céu escureceu e está preto. Um deles volta ao
assunto e fala “Pode ser e pode não ser.”
Thamira completa falando que pode ser que ele esteja feliz porque o muro está de pé
ou fica triste, e propõe que então a gente pergunte para ele. Ela ainda fala que todas as janelas
dela dão para o muro do vizinho, então entende. Raquel comenta que ao olhar pela janela
costumamos fazer isso apenas na altura do olho, e “a gente esquece que se a gente olhar um
pouquinho para cima, por exemplo, a gente vê o céu, que é sempre uma surpresa.” Eu reforço
dizendo que talvez se mudasse um pouco do ângulo que a foto foi tirada daria pra ver mais o
céu e Raquel responde “poderia pegar só a grama e o céu, e a gente nem ia saber que tinha
175

muro.” Odé descreve a vista de uma janela da casa dele, que vê telhados e céu, que começou a
olhar para o céu por essa janela para procurar papagaio (pipa). Ainda diz que não enjoa de
olhar mesmo vendo todo dia, que olha “o campão, Mariana, a BR, as casas, o céu”.
[Penso que estamos vendo a imagem para além dela mesma, a relação afetiva com os
enquadros que a janela proporciona. O debate sobre os sentidos das imagens além do
significado pré-estabelecido ou sedimentado do cotidiano, em que mesmo as imagens
repetidas ganham novas formas de olhar.]
Arthur retoma sobre o que foi dito na primeira narração e pergunta para Odé como foi
ir para Belo Horizonte, já que ele diz preferir a natureza e não gostar muito de ver prédios,
carros, etc. Ele diz que não achou ruim porque quase nunca foi na cidade e foi algo novo a
cidade grande. Não achou ruim, mas achou diferente. “Tudo que tinha em Ouro Preto achei
dez vezes mais em BH, tá ligado? Questão de tudo: Trânsito, prédio, movimento, rua, tá
ligado? Tudo eu reparei lá: asfalto, comércio, calçada, tudo.” Ele diz que achou deslumbrante
a cidade, diferente, que ficou deslumbrado e encantado por ser algo novo mas que não tirou a
vontade de morar no mato. Quando perguntado sobre as pessoas, ele ri e fala que são
diferentes pra caramba.
Odé: Igual a gente viu lá naquele lugar lá… que a gente viu pessoas e… igual… igual o que você falou lá que
não devia falar se era homem ou mulher não, entendeu? Que o certo seria virar e perguntar. Pô, mas tinha muita
gente diferente lá, cara. Por exemplo, tinha um cara lá que eu achei que era mulher, mas na hora que eu olhei pra
perna tava toda cabeluda, tá ligado? Sem querer ofender, mas eu nunca fui de ver isso em Ouro Preto não.
Loki: E quando vê é turista.
Odé: É, e quando vê é turista.

Nesse momento não consigo segurar e começo a rir dizendo “Ai, gente… Eu não
depilo a perna não… Aquelas. (risos)” E Raquel completa: "E é mulher!”. Odé responde “Pois
é, pois é, então era mulher, pô”, se referindo a alguém que estava fazendo a excursão [no
Palácio das Artes]. Arthur ficou perguntando “Era mulher?”, o menino respondeu que “era
mulher mas não gostava de ser chamada de mulher” e aí ele rebateu “Então era mulher?”.
Quando os meninos descreveram a pessoa, Arthur disse que não tinha visto mulher nenhuma
ali. E aí ao descrever de novo, um deles fala “cabelo dela, ou dele, não sei.”
Arthur: Ah… agora sim tamo…
Odé: Ah, o Arthur já considera né? Porque pra Arthur já é mais fácil…
Loki: Não é que é mais fácil, é porque tipo…
Odé: Já acostumou!
Loki: Ela escolheu aquela sexualidade pra ela então Arthur sabe que ela quer que ele chama ela daquele jeito.
Arthur: Cê também sabe, cê tá falando aí!
Loki: É, uai.
Arthur: Se cê tá falando que eu sei, cê também sabe uai.
Loki: É, uai! Mas é diferente… é diferente pra nós.
Odé: Só não tem o costume de falar assim normalmente ainda, sabe? Ainda tem que bater uma lembrança.
Lembrar ainda de que tem que falar desse jeito.
176

Arthur: Mas aqui, vamo supor. Vamo pensar… Naquele caso, de uma pessoa que tava levando a gente pra ver
uma exposição. Mudaria ser homem ou mulher?
Os dois adolescentes juntos: Não.
Loki: Nem reparei, véi.
[Arthur ri]
Odé: Pra falar a verdade nem eu. Eu, assim de cara na hora que eu olhei, achei que era menino, sinceramente…
Arthur: Mas era talvez…
Odé: Tava de bigodin ralinho, pô… Falei ‘ah, sei lá, deve ser um menino assim…’
Eu: Mas cês sabem o nome da pessoa?
Loki: Não lembramos…
Odé: Pô, eu não lembro.
Loki: O Arthur deve saber!
Odé: Arthur deve saber!
Arthur: Eu sei…

Nesse momento Arthur fala qual era o nome dele, eu lembro que já o vi várias vezes
no instagram e exclamo “ai, eu acho ele lindo!”. [Foi um momento tão espontâneo porque eu
não fazia ideia de quem estavam falando e no final das contas era um artista que eu não
conheço pessoalmente, mas comecei a admirar de longe por conta de alguma ação da
Academia TransLiterária. Assim, algumas perguntas aparecem na minha cabeça durante esses
diálogos: Desconstrução acontece como? Como apresentar novas formas de ser e ver, de
forma afetuosa e não-hierarquizada? Como o diálogo acontece?.] Os meninos riem um pouco
e quando Loki pergunta “ele é ele ou ele é ela?”Arthur só responde: “Talvez nenhum dos
dois”, também falo a mesma coisa. Depois disso, eles mudam de assunto e viram a câmera
para mostrar o céu que está bem escuro com um feixe de luz. Aí começamos a perguntar se é
o sol se pondo, e é mesmo. Arthur então pergunta se podemos assistir mais um.

26:29 - 27:29
Eu escolhi a janela da cozinha pq tem uma
visão mais ampla ao redor da minha casa e
também tem… dá pra ver a subida da
Geladinha… que muitas pessoas vão lá pra
nadar aí dá pra ficar observando quem
sobe, quem não sobe. Aí quando a gente
quer ir assim lá, a gente vê. Se tiver subido
muita pessoa, aí num vai. Se tiver subido
quase ninguém, a gente vai. Aí é assim. E
também é bem em frente a BR, aí a gente
fica observando vários carros passando toda
hora, e é isso aí.

Nesse momento os meninos estão


um pouco mais dispersos e segundo um deles o outro está “respondendo a nêga”. Ele volta à
chamada e diz que achou “meio paia” a narração, que “não falou nada com nada”. O outro diz
que foi “daora, que ele falou sobre a natureza, a Geladinha…”. “Mas aí não tá respeitando a
quarentena”, diz Loki. Odé fala que não vai falar nada sobre isso, porque de vez em quando
ele também vai para a Geladinha para nadar. Segundo ele não sai de casa, mas vai na
177

cachoeira porque às vezes fica calor demais. Também diz que Hórus, que foi quem gravou o
áudio, também não sai de casa e é mentira que ele vai na cachoeira. Eu falo que eles estão
“trucando” o menino, mas que gostei da história do áudio. Daí Odé elogia a varanda da foto,
eu e Raquel respondemos que também achamos bonito demais. Ressalto que achei super
bonito que ele conseguiu pegar uma foto em que a pilastra está bem no meio.
Arthur pergunta "O que vocês vêem da casa de vocês que quem mora no centro não
vê?” e eles respondem mato, asfalto, natureza e vários animais. Depois disso Hórus entra na
chamada e Raquel conta para ele que estávamos vendo sua foto e o que os meninos estavam
dizendo. Odé, de uma forma piadista fala “Vou te falar a real, sua gravação é massa demais,
safado.” Loki diz que achou “paia” e Odé (apontando o dedo na tela) fala que Hórus nunca foi
na Geladinha, que ele é mentiroso. Ele, por sua vez, responde: “Que não, rapaz… Fiz até um
vlog lá e cê tá aí.” Os meninos então fazem piada que ele fala isso só porque está de “gopro
gravando uns grauzinho de magrela”e Odé finaliza: “Renato Garcia começou um dia assim,
pode ir que vai dar futuro”
Arthur pergunta novamente "O que vocês vêem da casa de vocês que quem mora no
centro não vê?” e eles respondem:
34:20 - 35:20
Hórus: Não vê a paisagem…
Loki: Não, mas tem vez que a paisagem do centro é mais bonita…
Hórus: Paisagem verde. Tem nada lá não, sô. Lá só tem casa e…
Loki: Eu também acho que é o mato.
Arthur: E agora eu vou fazer a mesma pergunta, só que é pra responder mais viajado, não precisa ser… Esse ver
não precisa necessariamente ser com o olho, pode ter mais uma relação com o sentir. O que vocês vêem da casa
de vocês que quem mora no centro não vê?
Hórus: Não vê a realidade.
Loki: Ar puro.
Odé: Na minha opinião, sei lá... Deixa eu ver... Meio sem graça, tá ligado? Sei lá, não tem corpo. Porque, tipo
assim, igual… Um dia eu tava na Bauxita e tava olhando um…
Loki: Bauxita não é centro não, menino.
Odé: Não, pô, perto da santa… Tava olhando um condomínio fechado que tem perto do posto de gasolina, e lá
mora um bocado de gente, sabe? Aí eu tava olhando assim… direto o povo entrava lá, mas ninguém falava com
ninguém, pô, ninguém tinha comunicação com ninguém. O povo morava um do lado do outro… Tipo, era
prédio, mas ninguém trocava uma ideia com ninguém.

[Enquanto Odé falava, estava brigando com Loki - suprimi essas falas no parágrafo
acima para deixar o texto mais fluido - porque parecia que ele estava atrapalhando. Os dois
discutem rápido e ele volta a falar.]

35:58 – 36:30
Loki: Pô, por exemplo... Em comunidade, em favela, todo mundo é amigo de todo mundo, entre aspas,
entendeu? Vizinho conversa com vizinho, vizinho é fofoqueiro...
Loki: Mas é lógico, vizinho mora do lado dele
Odé: Cê chega na porta de vizinho ‘ó vizinho, tranquilo?’ Aquelas coisas, tranquilidade e calmo. Direto eu vou
na casa do colega meu, na casa de vizinho ver se tem café, qualquer coisa... Só pra trocar uma ideia mesmo. Cê
178

chega no povo, por exemplo, em condomínio lá de cidade grande, prédio, tudo... O povo num comunica um com
outro igual em comunidade não, sô.

Quando Loki o atrapalha de novo ele fala “Mermão, fica na sua que eu tô dando meu
depoimento aqui”, enquanto o outro ri e fala que é mentira, “que vizinho é esse que mora do
outro lado do muro?”. Ele segue exemplificando como são as relações ao entorno dele, em
comparação com uma experiência de quando foi na casa de uma tia, em Pará de Minas, em
um local onde as pessoas não conversam entre si. Ele diz que no Pocinho acontecem os
churrascos, a “inteira da vaquinha” entre os vizinhos.
Arthur então pergunta para Hórus qual é a realidade que o centro não vê.
38:30 – 38:52
Hórus: “Quem mora no centro não precisa pegar ônibus pra ir lá no banco, não precisa pegar ônibus pra ir no
supermercado, não precisa pegar, fazer nada... Quem mora longe tem que ficar pegando onibus, tem que ir na
correria, as vezes ta trabalhando tem que chegar rapidão pra pegar um ônibus, um taxi, que seja, pra ir... E os
povo lá não. Os povo lá só cinco minutinho já tá na porta.”

[Quem mora no centro não vê a realidade, o que significa isso? O olhar de quem está
nas bordas para o centro histórico de Ouro Preto é atravessado de diversas formas. Quando
dizem que o centro não vê a realidade, estamos falando sobre o direito à cidade, o transporte
para acessá-la, a experiência de morar longe e como isso afeta o olhar de quem experiencia a
cidade comendo pelas beiradas.]
Odé concorda e pontua a diferença entre quem tem melhores condições e transporte
particular, que “facilita muita coisa” e quem depende de transporte público. Ainda fala que
muitas vezes se atrasou para a escola por causa de ônibus, “mas a maioria é porque eu jogava
Free Fire mesmo e isso é verdade”, conclui mudando de tom e rindo. Loki ainda continua a
piada dizendo que Odé faltava muito na escola.
40:13 - 42:27
Arthur: O que vocês acham que foi a diferença da quarentena de quem tava no centro e de quem não tava no
centro? Já que o nosso filme é sobre o ano de 2020 e o fato mais importante do ano de 2020 foi a quarentena.
Loki: Eu acho... Se eles seguisse a risca, igual as pessoas seguiram, vai ser a mesma coisa, carai... Ou não...
Porque a gente, igual eu, pra mim chegar num supermercado grande, pra comprar alguma coisa, são quinze
minutos a pé…
Hórus: Tá bom, uai.
Loki: Já eles não. Cinco minutinhos tá no supermercado lá na casa deles...
Hórus: (rindo) Na casa deles…
Loki: … tá ligado?
Hórus: Aí depois vem neguin, igual aqui tem a Geladinha, vem neguin lá de Cachoeira do Campo, vem neguin
do Centro, vem de Mariana, vem de Passagem... Aí vem aqui lotar o bagulho que tá aqui no... Como que chama
quem não mora no Centro?
[Eu e Raquel não esboçamos reação, Arthur não responde mas faz uma cara de “não sei”]
Loki: Ahn?
Odé: Ah sei lá, pô.
Hórus: Tem um nome, sô, que fala lá. Quem mora no centro é tal, quem não mora é tal... Não é favela, é um
negócio lá.
Loki: Quem mora no centro, mora no centro, é pessoa. Ahn.
Hórus: (risos) Não… Pode deixar.
Arthur: Como que chama?
179

Odé: Pra mim afetou todo mundo igual. Pra mim afetou todo mundo igual…
Loki: Eu acho que não.
Odé: De menos pras pessoas que podem…
Loki: Eu acho que não, sabe por que? Porque quem é, igual… Não podia trabalhar…
Odé: É o que eu to falando!
Loki: …aí tinha que ficar vivendo de auxílio. Auxílio emergencial.
Odé: É o que eu to falando! Por exemplo, pra mim afetou pra todo mundo igual assim... Cada um no seu estado
social de vida, mas não afetou pra quem pode trabalhar de casa, tá ligado?
Eu: Mas isso é igual?
Loki: Acho que não.
Eu: Isso não é afetar igual, então né?
Odé: Não, não é afetar igual, mas de qualquer forma afeta dos dois jeitos. Pra quem é pobre afeta mais, pra
quem não é já é menos.
Loki: Então já não é igual.
Odé: ...Já é menos, tá ligado?

Raquel intervêm e retoma o exemplo do transporte. “Por exemplo, quem mora no


Pocinho depende muito mais de ônibus do que quem mora no centro. Então eu acho que essas
pessoas tão mais expostas, não tão? Porque transporte a gente sabe que circula muita gente…
O que cês acham?” Hórus responde que nem quer pegar ônibus, prefere andar do Pocinho até
o centro do que fazer isso. Odé também diz que não anda mais de ônibus, só à pé. “Não
preciso mais andar de ônibus não, pô. Tá ligado? Ouro Preto já não é bicho de sete cabeças,
do Alto da Cruz até o Pocinho eu corto o caminho da fábrica ali e pronto, tô no Pocinho.
Mesma coisa pra ir embora pra casa.” Arthur sugere que quando ele fizer esse caminho a pé,
que ele faça alguns registros. Quando um menino fala sobre a bateria de sua câmera não durar
o percurso todo, e o outro lembra que Odé está sem celular, Arthur diz que Raquel vai
conversar com o adolescente sobre a autorização de seus responsáveis e depois das oficinas
ele vai receber uma câmera que sua bateria dura 2 horas direto. Loki comenta que Hórus pode
gravar também. Ele responde que não está indo no centro, e o mais longe que está indo é na
Bauxita. Quando Raquel diz pra ele gravar onde for, Loki responde brincando que vai gravar
saindo do quarto, indo pra cozinha e voltando de novo.
[Um cachorro aparece perto de Loki e Odé, e Arthur aproveita para mostrar seu
cachorro deitado no tapete. Segundo ele, é “tipo a Lassie”. Ele fala que tem um filme com
esse nome mas acho que os meninos não conhecem essa referência.]

48:32 - 48:40
Ah, tirei essa foto porque sei lá. É… Eu gosto dessa
janela, às vezes eu fico nela…

[Quanto de significado existe em uma janela


fechada e um áudio com poucas palavras e 8
segundos?]
180

Sobre esse exercício, entregue por Jaci, único feito por uma menina até agora, Raquel
pergunta qual é a diferença para as outras e Loki começa dizendo que não mostra nada. Até
que Hórus diz que ela tirou “a foto mais certa que todo mundo, porque era a janela que gosta
de ficar, e ela foi lá e tirou a foto da janela, e não tirou da vista não.” Raquel ainda fala que é
“como se todo mundo tivesse tirado de dentro e ela de fora.” Odé responde dizendo “a
questão da janela é do que você gosta dessa janela e tal…”
Arthur relembra: "o dispositivo era tirar foto da janela que mais vê ou fica, isso abre
um monte de possibilidades, mesmo. Porque quando a gente fala ‘vou tirar uma foto da
janela’, tem um duplo sentido na linguagem que é eu vou até a janela tirar a foto ou eu posso
tirar a foto da janela.” Ainda pontua que na foto de Hórus não há uma janela, e sim um
terraço, e nas que virão depois algumas aparece literalmente a janela aberta. E diz que o que
mais chama a atenção não é aparecer a janela, e sim aparecer a janela fechada.
51:21 - 52:10
Arthur: Que mensagem é essa de uma janela aberta? O que uma janela aberta significa?
Loki: Caminhos abertos para ser livre.
Hórus: Caminho? Mas cê não passa pela janela não. (risos)
Loki: Claro que passa.
Raquel: Será que não?
Eu: Dá pra passar, né? Dependendo da janela.
Hórus: [inaudível] Aqui não tem nem como né [inaudível]
Loki: Quem falou que não pode passar pela janela? Quem deu essa regra?
Eu: Justamente.
Odé: Uma ideia que eu tive aqui é que na casa da menina tem ar-condicionado e ventilador e… Como que é o
nome mesmo? É isso memo, ar-condicionado. Porque pra janela tá fechada…
Loki: Aqui ali não é a casa dela não.
Odé: …deve ter uns ar-condicionado daora, tá ligado?
Raquel: Ou tá muito frio né?
Odé: Pode ser também.
Loki: Mas lá tá chovendo a rodo, em Ouro Preto.

Hórus pergunta se os meninos não estão em suas casas e quando eles respondem que
não, e aí começa a perguntou se era Loki que tinha passado de carro quando ele esteve em
Saramenha, o carro estava de janela fechada. Ele sempre tem uma história para contar.

53:12 - 53:17
Essa janela é a que eu mais gosto, pois é a janela do
meu quarto.

Os meninos ficam revoltados e acham


meio óbvia a resposta dele. Arthur então
pergunta “será que necessariamente a
gente sempre gosta mais da janela do
nosso quarto?” e um deles responde que ia
181

tirar foto de seu quarto, que toda vez que abria um gato aparecia, mas então esse gato morreu.
54:23 - 55:27
Arthur: Qual é a importância desse espaço restrito, né? Porque tipo… o quarto, lugar que a gente geralmente fica
mais à vontade, que às vezes a gente divide ou às vezes a gente não divide… Talvez na quarentena é o espaço
que a gente ficou mais, ou não, cada um pode ter usado a casa de um jeito. Mas como que o quarto é um espaço
muito importante, né? Que a gente talvez… a gente passa… só dormindo a gente passa no mínimo 8 horas nele.
Loki: Ah eu passo mais tá? Eu passo umas 16 horas dormindo.
Odé: Sei lá, mano… Pra mim é um santuário sagrado.
Eu: [não havia entendido porque eles responderam ao mesmo tempo] o quarto é o quê?
Odé: Um santuário sagrado.
Eu: Por que cê acha que é uma coisa sagrada, assim?
Loki: Lugar de… Eu acho que é um lugar de paz, vei.
Odé: Tipo assim, é o quarto né? Único lugar que você pode realmente descansar assim. Desligar, sem preocupar
tá ligado?

Nesse momento, dois deles falam que sentem medo da noite, do escuro, “até corro de
assombração” mas Odé acha mais aconchegante dormir no quarto do que na sala. Eu
concordo e digo que só fui ter meu próprio quarto depois que já estava na faculdade, “que a
gente pode criar o nosso mundo” quando temos um quarto só pra gente. Odé concorda, mas
Loki fala que não quer um quarto só dele pra não dormir sozinho, eu e Raquel dizemos que
medo a gente vai superando. Ainda digo que eu também tinha medo, mas descobri que é
muito melhor ter um quarto só pra gente. Percebo que estou me abrindo mais e fico naquele
pensamento entre querer trocar mais ideias, participar desse processo de compartilhar
percepções, e me questionar se não estou interferindo demais no que eu tenho que observar.
Sigo atentamente colocando o pé para dentro e para fora.
57:10 - 58:35
Eu gostei dessa janela, desse vista daonde que
eu tô, na minha tia, por causa que mostra muito
a natureza e também mostra muito o céu e as
nuvens. Porque tá frio pra carai aqui, tá ligado?
Tá muito frio aqui e eu num gosto de… Eu
gosto de… Não, calma. Eu gosto de frio. Num
gosto muito de calor por causa das doenças
que eu tenho. Mas tipo, me lembra muito roça,
lugar pra ficar tranquilo, frutas que aqui tem
muitas… Natureza, animais… que aqui
também tem muito. E… me lembra muito, é…
meu vô. Porque meu vô morava na roça,
infelizmente ele num tá entre nós e isso me
lembra muito ele. Isso é muito legal porque
lembranças assim, das pessoas que a gente
ama, que a gente convive, é muito bom né? Ter lembranças, assim… de alguém que a gente ama, de alguém que
a gente conhece. É muito bom porque isso dá um ar tipo, é… Cê fica feliz, né? Porque cê tá lembrando da pessoa
que você conhece, que você ama, que é seus parente. E é isso.

Quando Odé nos pergunta sobre o que achamos do áudio, eu respondo que gostei
muito porque adoro dormir em rede. E que achei muito bonito ele lembrar de seu avô, “como
coisas muito simples podem lembrar a gente de pessoas e de momentos que são muito
significativos” e que tenho uma rede em casa e iria lembrar dessa reflexão agora. Raquel diz
182

que esse áudio a fez lembrar de uma coisa que “tem tudo a ver mas não tem nada a ver”, que é
sobre como se recorda de seu próprio avô toda vez que entra em um ônibus, porque ele “era
daqueles que ficava andando de ônibus o dia inteiro.”
Arthur fala da “importância das imagens, da fotografia como esse registro que traz
memórias” e que o áudio “ensina pra gente uma coisa que é muito importante pro filme, é que
a gente não precisa sempre mostrar a coisa que a gente tá falando, sabe? Pra ele falar e trazer
a presença do avô dele, ele não precisou mostrar uma foto do avô dele. Não precisa ser tudo,
no audiovisual, tão diretamente conectado. A gente pode criar outras relações com as imagens
a partir dos significados que a gente dá pra elas, sabe?” Os meninos concordam com ele.
Jaci vai entrar na chamada e Hórus comenta que Black n444 não está, que é
preguiçoso e vai puxar a orelha dele. Arthur diz “bom saber”, mas reforça que o atual
processo de produção depende da vontade dos adolescentes e vai acontecer com quem quiser
contribuir, e diferente do momento que tinham na escola, agora existem prazos definidos,
burocracias, o que impede de poder esperar demais para fazer as atividades acontecerem. O
tempo da produção é um imperativo que determina o andamento geral do projeto nesse
momento.
Arthur dá as boas-vindas para Jaci e repete o que acabou de dizer, sobre as etapas de
produção do filme, a burocracia de autorização dos responsáveis e a contrapartida do dinheiro
público, que é a Rede Minas poder passar a produção durante um ano. Ainda dá a ideia de
fazer exibição na escola se quiserem. Continua explicando a etapa de entrega das câmeras.
[Escutamos risadas vindas do microfone de Jaci e ela falando com alguém. Ela abre a câmera
e depois fecha.] Ele explica sobre a importância de pensar bem o que vai entrar, porque a
duração do filme é de 10 minutos. Um dos meninos acha pouco, mas Arthur lembra que o
entre_vistas tem apenas 4 minutos. Hórus diz: “Com 4 minutos nóis foi parar em BH, com 10
nóis vai parar em Recife.”.
Arthur explica o porquê de ter chamado uma pessoa externa para editar o filme, mas
também diz que nada impede dos meninos enviarem filmagens já editadas para colocar na
montagem final. [Jaci abre a câmera de novo] Ele também fala mais sobre a possibilidade de
gravação presencial do clipe, se o cenário da pandemia estiver melhor, e pontua “a gente não
pode também, só porque tá fazendo um filme, chegar e aglomerar e fazer… A ideia não é
essa.”
183

1:11:46 - 1:12:38
Eu escolhi essa janela pra eu tirar a foto porque é a
janela da minha cozinha. É exatamente a janela que
fica atrás do fogão que eu cozinho e.. É a janela que
eu mais gosto porque meu momento de cozinhar é o
momento que eu consigo ficar tranquila, que eu
consigo focar em uma coisa só, consigo fazer uma
coisa que eu gosto muito, que é cozinhar… e comer. E
essa vista é muito bonita, porque dá pra ver as
bananeiras do quintal que tem aqui atrás, no fundo de
casa e… Entra um vento muito gostoso e sempre o céu
tá bonito. Tem as montanhas, não dá pra ver direito
mas tem as montanhas também. E é a janela que eu
mais gosto de ficar na minha casa, principalmente por
esse momento de estar na cozinha.

Assim que termina, Hórus já comenta que o áudio é meu e Arthur fala da música que
está tocando de fundo. Eu conto que no momento estava no quarto da Mallu, que mora
comigo, e ela até tinha dito que ia desligar a música mas eu pedi para que deixasse. Enquanto
estou falando, aparece um hamster na câmera de Loki e Odé e ficamos encantados. Arthur
volta a falar sobre meu postal, e diz que, assim como uma das imagens enviadas por Black
n444, o interior do ambiente está escuro e a janela fica bem contrastada com a claridade de
fora. E que se tivesse uma pessoa em frente à janela ficar contra-luz, o que não funciona para
algumas coisas, mas outras sim. Raquel comenta que meu postal junta várias coisas que que
estávamos conversando: as casas, as bananeiras, a montanha no fundo, “a cidade junto com a
natureza”. Esse é o último que temos para assistir hoje.
Arthur então diz que vamos continuar com os dispositivos na próxima semana, mas
que temos mais uma proposta: Ronessa, a vice-diretora do Polivalente topou fazer algumas
imagens da escola, pois continua indo para algumas atividades administrativas, e ele então
pede para os meninos ideias sobre coisas que eles querem ver, para ela mandar e assistirmos
juntos. Hórus responde “da sala de aula, da quadra, da cantina, de tudo.” Ele também
relembra de um acontecimento em que filmaram a escola, inclusive com drone, e que isso
poderia ser usado também, para mostrar como ela estava e como está hoje, “quando fez as
imagens lá não lembro o que foi, festa do quê que foi, mas teve bastante imagem, acho que tá
até no grupo do Facebook da escola. Se não tiver, eu acho, não sei onde que vou achar isso
mais.” Ele fica com a tarefa de achar isso, assim como descobrir quem fez as imagens.
Arthur pergunta de novo quais imagens Ronessa pode fazer e a partir do que os
meninos falam ele sintetiza “pra essa semana vou pedir se ela topa fazer tipo uma câmera
desde a entrada da escola, ir lá na horta, mostrar um pouco, e mostrar tipo um pouco das salas,
como tá, como é que tá a rotina.” Hórus lembra de mais um vídeo que foi feito quando eles
estavam no ensino integral, e falamos pra ele enviar. Arthur comenta que a Olhares começou
184

no integral e Raquel lembra de algumas imagens que estão no arquivo e foram feitas na
escola. Arthur diz que podemos pensar em inserir no filme, que mesmo ele tendo apenas 10
minutos, se vermos que tem muito material podem ser feitas outras produções, e ele também
diz que vai ver se pode extrapolar a duração proposta - mas também afirma que 10 minutos é
muita coisa.
1:22:55 - 1:24:35
Arthur: Por isso que a gente tá fazendo essas oficinas e vai mandar a câmera. É muito melhor ter mais material e
a gente selecionar muito bem o que que vai entrar e tudo ficar muito casadinho, pro filme ter um ritmo legal,
sabe? E um ritmo legal é a gente que vai determinar. Às vezes é lento, às vezes é muito rápido. Às vezes vai ter
variável, vai começar um tempo, vai ser bem lento, vai ter sei lá, um Minuto Lumière inteiro ou 2 minutos até da
mesma cena depois vai entrar um monte de cena rápido. E o que eu comecei a falar aquela coisa da Yura..

[Nesse momento barulhos de risada e conversa interrompem Arthur e ele fala com os meninos: Loki, Odé…
Rapidão, tá acabando… É isso mesmo, também cê ficar mais de uma hora e meia, até pra gente fica muito tempo
mesmo, né? É difícil de concentrar nas telinhas, mas tá acabando.]

E aí a gente vai tanto pensar a edição desse filme pra falar pra Yura como a gente quer, e ela também vai…
Lembra como a Glauciene fez? Como a gente fez com o entre_vistas e com o Benedita? A gente vai ver um
primeiro corte, que a gente chama, que é a versão que ainda não tá fechada, entendeu? Que a gente vai ver pra
poder opinar, pra falar “olha, aqui eu acho que tem que melhorar o som…” e o que vai ser muito legal desse
filme é que, como tem o recurso, a gente vai conseguir chamar alguém pra fazer um tratamento de som bem
bacana que nem o Odé tava falando… tirar ruído… Deixar o som bem profissa pra se um dia, quando acabar a
pandemia, for passar numa sala de cinema, a gente ter esse recurso, sabe?

Depois disso ele diz que, mesmo não sendo muito recurso, podemos inclusive pensar
em contratar alguém para fazer efeitos especiais e dá alguns exemplos de animação simples
que podem ser usados como inspiração para criar no filme. “É isso que eu falei, é ano 2020, é
sobre o que foi, mas também é sobre o que poderia ter sido.” Algo que ele fala um pouco
depois é sobre assistir os filmes que já produziram para refletir sobre estilo no cinema, “não
pra fazer igual, mas pra se inspirar na gente mesmo”. “Pra ajudar também a pensar esses
dispositivos que a gente tá fazendo toda semana, o que a gente pode fazer com eles também”,
completa Raquel. E Arthur reforça que estamos fazendo esse filme, mas nada impede que
sejam produzidos vídeos para os canais dos meninos e outras produções ainda. Volta a refletir
sobre a necessidade de pensarmos “como a gente chegou até aqui?”, como a ideia do filme
surgiu a partir de uma live, e diz que às vezes isso é bom para o processo criativo.
"E a nossa função aqui dos ‘professores’, muitas aspas pra essa palavra, é de fato
tentar guiar vocês pra fazer no final ter um filme. E vocês sabem que no final vai ter, que no
final dá certo. Só que a gente precisa que vocês façam. E aí agora, pra esse filme, não importa
se vai 10, 12 ou 1 pessoa fazendo.” Depois Raquel diz algo sobre a criatividade e o
pensamento serem exercícios: “Quanto mais a gente se envolve, mais essas ideias vão
aparecendo.”
185

Finalizando a reunião, Arthur faz uma provocação imaginativa: “O que que aconteceu
realmente em 2020 que pode dar uma boa história mas que eu posso inventar sobre essa
história?” A reflexão que faço sobre esse encontro é que a conversa sobre os significados das
imagens sempre deságua em outras reflexões, contações de histórias, os meninos se mostram
muito confortáveis em subverter a centralidade do encontro e não existe censura sobre os
assuntos que podem ou não ser conversados. Arthur guia o percurso do encontro, mas todes
contribuem com o que vai ser conversado. Até eu me sinto na tranquilidade de dialogar com
os adolescentes como se fôssemos um grupo que está ali para trocar sentimentos e memórias,
a partir do que as fotos nos permitem sentir e refletir.
O encontro acontece atravessado por lembranças, conversas aleatórias e no fim Arthur
amarra as reflexões direcionando o assunto para as escolhas necessárias para produzir o filme,
apresentando as possibilidades e instigando os adolescentes a “pirar” e não se restringirem nas
ideias para o filme. Ele sempre apresenta as ideias para inspirar o grupo e não para ensinar o
que deve ser feito. Ao final dessa reunião, fico pensando como os motivos pelos quais os
adolescentes continuam no coletivo são diferentes entre si. Acho que a janela fechada e a
participação em silêncio são um tipo de vínculo diferente do vínculo daqueles que conversam
durante a reunião toda, abrem a câmera, e enviam outras imagens… Mas ainda assim é um
vínculo.

25/02/2021 (quinta-feira)
vídeo de 37 minutos e 24 segundos

objetivo: 3º dispositivo - de 3 a 5 fotos orientadas pela ideia de perto/proximidade + áudio


com 1 minuto de silêncio.
participantes: Arthur, Thamira, Raquel, eu, Hórus, Black n444.
Apenas dois adolescentes aparecem, não ao mesmo tempo, além dos adultos. Ressalto
uma conversa sobre a preocupação de Arthur com a ética das imagens, como a exposição de
outras pessoas e da escola, por exemplo. Não houve oficina, e sim uma reunião rápida com os
meninos, para pensar cenas possíveis de serem filmadas, explicar melhor o dispositivo
proposto (que acharam um pouco abstrato), os próximos passos da produção… Ficou o
encaminhamento de tentar remarcar a reunião para a próxima segunda.
186

02/03/2021 (terça-feira)
vídeo de 1 hora e 50 minutos
objetivo: 3º dispositivo - de 3 a 5 fotos orientadas pela ideia de perto/proximidade + áudio
com 1 minuto de silêncio.
participantes: Arthur, Raquel, Thamira, eu, Loki, Odé, Hórus
Começamos a reunião, Loki está no escuro, não conseguimos ver seu rosto. Arthur o
lembra do vídeo de “um ano depois da pandemia” que ele vai fazer daqui uns dias. Aí então
assistimos o vídeo feito por ele em 31 de março de 2020, a pandemia tinha apenas 2 semanas.
É incrível como um adolescente muda rápido fisicamente, a feição, a voz. Ele comenta
também que achou uma foto de sua formatura do 9º ano (dezembro de 2019) e envia para nós
no grupo do whatsapp. Arthur compartilha na tela pra gente ver e começa a falar que até pode
ser usada no começo do filme, pois é um registro próximo ao início da pandemia mundial.
08: 33 – 09:08
Loki: Nós já tá tá há um ano sem estudar... Eu to. Tá sendo muito ruim, carai. Querendo ou não, agora tá sendo
muito ruim.
[silêncio]
Arthur: Por que não tem a rotina, né?
Loki: É, aí embaralha tudo... por isso que eu to meio mal esses dias assim também... Tem mais coisa, mas por
isso também.
09:21 – 09:48
Arthur: Ou seja, ce acha que a pandemia agrava as sensações?
Loki: Eu acho que sim, porque a gente fica numa rotina muito repetitiva e se a gente não tiver um trabalho,
algum passatempo assim, aí a rotina fica muito repetitiva e a gente começa a pensar muito... E pensar muito
acaba com o psicológico da gente.

Quando o adolescente diz que está mal, entramos na reflexão sobre o que o isolamento
causa em nós. Eu e Raquel conversamos para ele fazer atividades que ocupem a cabeça, e ele
segue falando do impacto.
10:35 – 11:27
Loki: Tipo, eu sempre fui assim... Gosto de passar sozinho, tá ligado? Mas a quarentena piorou isso. Não era
tanto, agora a quarentena piorou isso.
Raquel: É porque antes era por escolha sua, e agora você não tem mais essa opção de escolher, você é obrigado.
Tem uma grande diferença.
Loki: Nem tanto, porque independente da quarentena ou não a gente… Igual eu, ia pra casa dos meus parentes,
chamava meus amigo pra vir aqui... Então, ficar sozinho ainda é uma escolha minha, tá ligado? Eu só não sei se
isso tá me fazendo bem ou me fazendo mal.

[11:27 – 11:52 - imagens do silêncio - toca uma música de fundo em algum lugar]

Arthur: É, eu fico pensando tb que tem essa coisa… Eu não sei, né, por exemplo… Quando não tinha
quarentena, eu acho que ainda assim ficar sozinho é diferente, sei lá. Ficar sozinho no canto da escola, ficar
sozinho em uma praça, ficar sozinho no mirante. É um outro tipo de estar sozinho, porque essa coisa da
quarentena é muito na casa né… Muito dentro de casa. Muito…
Eu: Não tem outros espaços, assim né?
Loki: Tipo, você fica isolado.. Querendo ou não, você fica isolado do mundo porque é um isolamento. Tipo pra
você... Você tá se protegendo e tá protegendo as outras pessoas. Mas querendo ou não um isolamento te faz mal,
carai.
Eu: Sim, é uma coisa importante ter contato com outras pessoas…
187

Loki: Independente tipo do que for... Se você tá num isolamento ou não, isso vai te fazer mal, carai. Tipo porque,
quando tá indo pra escola tá ruim, reclama. Aí quando tá fora da escola também reclama, carai.
Raquel: O negócio é reclamar, entendeu? (risos)
Eu: Mas é que cê nunca tinha tido essa experiência também né? De estar fora da escola por causa de uma
pandemia, é novidade.
Loki: Pra todo mundo né?
Raquel: E vamo combinar também que assim, é muito difícil uma coisa ser 100% boa, então pelo menos um
pouquinho assim a gente vai reclamar..
Eu: Sim!
Raquel: Mas assim, é importante também reconhecer o que tem de bom né? Não no caso da pandemia… Mas na
escola, nas outras coisas…
Loki: Pandemia veio só pra estragar mesmo…
Raquel: Aí é um outro contexto, aí é um negócio diferente
Loki: Isso aí não tem como tirar nada de bom não, tá ligado? Pelo menos eu não.

Arthur o questiona sobre a volta às aulas que foi anunciada pelo Polivalente, se é
remoto ou presencial, e Loki responde que ainda não é presencial, mas que tem um amigo do
Rio de Janeiro que já vai voltar à aula presencial. Eu comento que é algo estadual e cada lugar
vai seguir um calendário. Ele diz que é do grupo de risco, então só vai poder voltar depois que
tomar a vacina. Arthur fala que se ele quiser a câmera para gravar as imagens do passinho, é
possível enviar. Ele responde que já está ensaiando com o outro menino (Anansi), mas está
desanimado então não responde positivamente a ideia de Arthur. A tentativa é animá-lo a
fazer as atividades e pensar em sua participação dançando funk no filme. Conversamos por
um tempo sobre a música, a produção que foi feita, o tratamento que ainda falta para finalizar.
Loki fala que a música do filme não encaixa com o passinho de BH e é melhor dançar com
outra música e depois só montar. Hórus entra na reunião. Arthur discorda do que Loki disse e
acha que é possível adaptar o que ele sabe para criar outra coisa. Odé também entra na
reunião.
Hórus começa a falar de uma suposta namorada de Loki e eles ficam brincando sobre
isso. Quando Loki abre a câmera novamente, já está com a luz acesa e um chapéu de palha.
Arthur dá a ideia de que é possível chamar uma amiga dele (Dani) para fazer um trabalho de
dança e expressão corporal junto com os adolescentes e pergunta o que ele acha disso, mas ele
não responde nem que sim nem que não. Arthur tenta explicar melhor o que seria o auxílio
dela, que não seria para ensinar, e sim dar uma ajuda para “desenferrujar”. Eu ainda digo que
eles podem experimentar para ver se dá certo e cito os memes com videos de passinho de BH
e montagem com músicas diversas. “Dá pra dançar tudo, dá pra dançar até no silêncio”,
Arthur diz. E completa falando que a atuação de Dani seria para “deslocar o corpo” deles do
que estão acostumados. Não porque está errado, mas para ampliar e pensar a partir de outras
coisas.
188

No momento de assistir às imagens com os áudios produzidos, os meninos começam a


conversar entre si depois do primeiro assistido e um questiona o outro sobre o que acharam,
os adultos ficam em silêncio, só observando os comentários que eles tecem sobre a “vida de
perto” (palavras de Odé), misturadas com histórias e brincadeiras.

43:20 - 43:31
Odé: Mostra a vida dele de perto né? Pode ser também… A vida, o trabalho, de perto.

[Nesse momento, Thamira, Arthur e eu balançamos a cabeça concordando


Raquel fala “Aham! Massa isso hein?]

—----------segunda leva de fotos---------------


189

45:37 - 45:46
Loki: Aquelas duas… A primeira foto, aí depois veio a
foto, pareceu que ele só aproximou a câmera do bambu
e tirou (risos). É a mesma [inaudível, mas fazendo um
movimento de enquadramento com as mãos].

46:35 - 46:39
“Foi mais o que ele tá vendo mesmo, todo dia. Eu acho que só isso só, que mostrou…”

Um deles diz que não viu as fotos


porque saiu e foi abrir a porta, o que faz
todos na reunião caírem na risada. Arthur
comenta:
47:53 - 49:20:
nessa sequência tem uma coisa que é legal a partir da
segunda foto que é como o uso do zoom faz a foto
teoricamente perder a qualidade só que ao mesmo
tempo as formas q ele tá registrando, pé, planta, são
tão evidentes que fica até… Sei lá, eu acho bonito o
jeito que o pixel não fica tão definido, sabe? Fica
parecendo até meio pintura, uma outra coisa que não
a fotografia, sabe? E aí fico pensando que nessa
sequência começa com uma imagem que, por mais
que seja perto, é mais aberta, né? A gente consegue
ver mais elementos… No meio vai fechando bem,
vai aproximando bem do que tá bem na frente, que a
gente já viu a primeira imagem, depois a gente vê
que é um recorte dessa imagem aí depois talvez, sei lá… Imagino que ele tá na mesma posição, né? Como se ele
apontasse a câmera pra baixo, ou pra frente, não dá pra saber, porque as vezes pode ser quando tá com o pé pra
frente assim… E aí na última parece que ele olha pra outro lado, que é outra planta e é interessante como que a
foto tem outro tamanho. Não é a mesma proporção do quadro.

Então, Arthur relembra que a proposta era gravar 1 minuto de silêncio e que isso seria
impossível, questiona se eles percebem “como que ver essas imagens com esse áudio, mesmo
que ele não diga nada explicitamente” e aí é interrompido por Loki, que fala “Isso pode ser 1
minuto de silêncio para todas as pessoas que morreram pelo COVID” e Arthur responde que
poderia, mas que também poderia ser o silêncio quando estamos sozinhos, de boa. Ele volta a
perguntar se os meninos percebem como é diferente ver com esse áudio do silêncio e ver sem
190

áudio nenhum. Hórus responde que “parece que tá passando o vídeo, tem áudio, mas a gente
não consegue escutar.”

51:04 – 51:30
Odé: Eu penso que com o silêncio... Por exemplo, se fosse a pessoa mandando um áudio você não iria abrir a
cabeça, abrir a mente pra entender, entendeu? Tipo, igual nós tá entendendo aqui... O áudio tá em silêncio, aí cê
tem que falar o que cê entendeu nessa foto... Por exemplo, se ele tivesse mandando um áudio das fotos que ele
mandou, cê só iria entender o que ele falou, e não abrir a cabeça pra ter o seu entendimento, entendeu? Não sei
se cês entendeu.
Hórus: Entendemos.
Arthur: Eu entendi perfeitamente. E é isso que eu tô tentando falar um pouco com vocês sobre esse filme, talvez.
Que a gente não precisa sempre dizer o que a gente… Ou seja, tem uma esfera da imagem, uma camada, uma
possibilidade de olhar pra imagem, que é sobre a sensação, sabe? E aí a sensação, a gente pode entender como
isso que o Odé falou… O entendimento que cada um vai ter sobre aquilo. E às vezes é legal a gente não fazer
muito explícito do que que a gente quer, entendeu?

Arthur continua dizendo sobre como é legal “deixar a imagem falar por si” e não
precisar explicar tudo, “cada um ter a abertura pra tirar alguma coisa daquilo ou não”. Fico
pensando e anotando que quando Odé fala sobre o silêncio e o “abrir a cabeça” para as
imagens, ele acessa o que há de sensível e implícito no audiovisual. Há algo muito importante
para o processo da Olhares nesse exercício de olhar as imagens e refletir sobre seus
significados, causar a estranheza, convocar as interpretações dos meninos para preencher as
brechas. Esse momento de colocar as imagens em crise e tensionar os significados que surgem
do contato com os meninos é também o momento em que mais nos soltamos (apesar de hoje
todos estarem mais quietos), questionando os olhares, trocando percepções e olhando com
calma.
53:03 – 53:10
Hórus: “A gente tá vendo as imagens mas ele não tá explicando o que é... A gente que tem que entender o que
que tá passando, então é isso aí mesmo.”

Depois comento sobre como, até quando estamos em silêncio com nós mesmos, não é
um silêncio por completo. Nossos pensamentos preenchem esse vazio. E como isso é
importante para nossas ideias.

Na terceira leva de imagens, os meninos


ficam tentando adivinhar de quem são as
fotos e Arthur pergunta “nesse momento, do
jeito que a gente tá vendo essas imagens
aqui, importa de quem é?”. Hórus diz que
importa, mas não importa. Arthur diz que
não tem resposta certa ou errada, mas ele
191

gostaria de saber se importa. Eu ainda continuo perguntando se muda alguma coisa saber
quem fez, se muda o significado da imagem.
Loki diz que muda a opinião, Hórus
discorda. Então ele rebate dizendo que se o
pé [da leva anterior] não fosse de Black
n444, ele não zoaria. Arthur provoca
perguntando “quem garante que era o pé
dele?”
Depois disso, Loki reclama que Black
mandou as imagens mas não aparece na reunião, e Hórus explica que o celular do colega está
quebrado e conta a história do conserto do celular. Arthur volta a comentar sobre as fotos,
dizendo como é interessante a terceira, que é uma imagem feita sobre outra imagem. “Como a
gente vai sobrepondo camadas de imagens para criar outras imagens”, como tirar uma foto de
outra foto, filmar uma projeção em um muro, etc. “Eu tô vendo a tela da tv ou eu to vendo a
tela que foi feita a foto?” Eu respondo falando como isso distorce a imagem original, os
efeitos das cores, os ruídos. “Das próprias ondas da transmissão, a interferência”, completa
Thamira. Hórus comenta que já fez essas experiências.
01:03:59 - 01:04:59
Arthur: É uma distorção mesmo, né? De tanta
imagem de imagem, a projeção de uma imagem, a
outra câmera não dá conta de captar e isso gera um
efeito, que a gente poderia… se a gente tivesse
interessado numa qualidade técnica super boa, a
gente poderia descartar essa imagem, né? Dizer que
essa imagem é ruim, porque ela tem algum desvio,
porque ela tem falha técnica, porque ela tem algum
erro da imagem… mas dependendo de pra que a
gente vai usar, é até mais interessante que tenham
esses desvios, né? Sei lá… Se a gente for parar pra
pensar, os filtros do Instagram fazem muito isso né?
Vários dos filtros dos aplicativos é colocar ruído, é alterar a cor, é fazer movimentos que dependendo do tipo de
fotografia isso nunca seria aceito, né?

Thamira ainda comenta que vários dos filtros vêm até com o nome da câmera
fotográfica que busca reproduzir o efeito, e isso também existe em programas de edição de
vídeo como o Adobe Premiere, e “é igualzinho como se a gente tivesse fazendo essas
filmagens com câmeras específicas analógicas”. Hórus diz que não conseguiu o Adobe
Premiere Premiere e Loki comenta que usa o kinemaster, mas para usar alguns efeitos seria
necessário “hackear” também.
192

Na quarta sequência, Hórus tenta adivinhar


quem tirou as fotos buscando identificar de
onde são. Ele não acerta e Loki assume a
autoria. Sobre esse conjunto de fotos, ele
conta que as três foram tiradas em lugares
diferentes, e o áudio foi gravado em outro
ainda. Eu comento sobre como fica
parecendo que elas são do mesmo lugar
quando colocadas em sequência da forma
como assistimos.
Arthur enfatiza que é importante pensar sobre
como
quando a gente junta as imagens, elas ganham outro
significado, sabe? Pode parecer que é tudo no mesmo lugar, a gente pode pegar o significado e distorcer a partir
do áudio, sei lá, por exemplo… Uma pessoa com a
cara séria, se o áudio é triste, talvez a gente veja cara
de tristeza, sabe? Se o áudio é uma música de
suspense, que a gente tá acostumado a ver no filme,
talvez a gente associe aquela pessoa a algum
personagem que vai cometer crimes, sabe? Como que
na montagem, ou seja, na edição, a gente pode dar
outros significados pra coisa, sabe?
(01:13:35 - 01:14:27)

----------------------------------------------------------------------

Assim que o vídeo da quinta


sequência de imagens acaba, Arthur comenta
“Tinha a escola nessa né?” e Loki pergunta se
Hórus foi na escola por esses dias. Então, ele
ri e fala “ó o cê virando mortal lá, vei!”,
conta que esse registro já tem muitos anos e
que na realidade tirou print de um vídeo que ele já
tinha feito, o que não é exatamente o pensado para o dispositivo, mas penso que representa
193

inventividade da parte dele, revisitando materiais antigos. Odé exclama “Caraca viado,
saudade do presídio já!”, Loki ri falando “Presídio é foda…” e Hórus fala brincando que vai
chorar. Arthur coloca a foto na tela de novo e só nesse momento consigo perceber o menino
virando mortal na foto.

Hórus então fala para os meninos


fazerem uma manifestação para voltar a
escola, eles comentam que alguns lugares já
voltaram e Loki diz que é porque estão com
muitos casos de COVID, mas também voltar a
falar de seu amigo no Rio de Janeiro que já
voltou a ir para a escola, uma vez por semana só. Depois que eles conversam isso é que Loki
consegue perceber que ele está na foto de cabeça para baixo e pede para dar um zoom na
imagem. Ele começa a falar sobre sua turma, que não era muito cheia, mas que começou a
sair os alunos e diz que tinha “13 ou 16” na sala. Arthur comenta que, pelo fato de ser um
print de vídeo, mais uma vez temos a imagem da imagem.
194

---------------------------------------------------------------------------------------------------------

Sobre o áudio das últimas imagens, Loki diz no final parecia ter sons
de tiros, e então ri. Hórus comenta que aparece um som de cachorro,
“cachorrinho tava chorando pra dar atenção, tá?”. Loki então
responde que acha que era de Odé, a cachorrinha dele chorando.
Thamira comenta que esse foi o mais perto de silêncio que chega na
realidade dela, que seu cachorro chora o dia inteiro. Os meninos
então dizem que o áudio era dela, no que ela responde que não. Odé
começa a rir e entendemos que foi ele mesmo quem fez. Então,
aparece a voz de alguma familiar dele (depois entendo que é sua mãe) e começa a conversar
com Loki, perguntando como o menino está.
Ela sai e Odé explica que os sons são das cachorrinhas de sua tia, que ele subiu na laje
e fechou o portão, por isso elas estavam chorando, por serem manhosas. A voz em sua casa
então reaparece perguntando “Peraí, cês tão batendo papo ou o que que é?” e ele responde
com o tom de voz diferente “nós tamo batendo papo”. Hórus começa a rir lembrando de uma
vez em que ela apareceu brigando com Odé na frente da escola. Loki pergunta que janela é
essa que ele fotografou, e ele responde que é a mesma do áudio que tinha enviado (do outro
dispositivo). Então ele diz que fez as fotos “meio na pressa” e não teve “tanta criatividade
para pensar numas coisas mais explicáveis na foto”.
Quando todos entendem que foi a última sequência do dia, segue o diálogo:
1:26:47 – 1:27:05
Loki: Professor não manda não?
Hórus: Eles é patrão, não é funcionário
Odé: É... Eles é patrão, não é funcionário não...
Arthur: (rindo) Cês acham que a gente é patrão?
195

Achei bastante engraçado e significativo sermos questionados disso, mesmo não tendo
resposta. Odé pergunta se apenas os que estavam na reunião tinham mandado fotos, e Arthur
responde que algumas pessoas enviaram mas não estão. Nesse momento ele explica que na
próxima semana será a última que eles produzirão com o celular, e que depois disso vamos
partir para as câmeras. Ele explica que a atividade será feita em duplas (que serão escolhidas
pela equipe de adultos) e, a partir da escolha de um vídeo já produzido, eles produzirão a
banda sonora - sem utilizar músicas inteiras. Esse dispositivo não estava previsto antes e foi
pensado com a minha ajuda, então eu fico responsável para auxiliar seu desenvolvimento.
Penso que essa nova forma de atuar no coletivo pode ser uma maneira de me aproximar dos
meninos, além de me dar outras informações para pensar. Arthur explica que os meninos
podem falar comigo para qualquer dúvida, assim como perguntar pra ele, Thamira ou Raquel.
E que estaremos construindo juntos para desenvolver esse último exercício.
Arthur então conta que as câmeras já estão em Ouro Preto e que Raquel irá coordenar
a entrega juntamente com Susana, nossa motorista da logística. Ele fala que Raquel vai viajar
e que, se Loki e Odé quiserem receber uma câmera antes do previsto, é possível ficar com eles
durante o final de semana, já que estarão juntos na casa de Loki. Também reforça questões de
cuidado. Loki então responde que eles nem vão sair de casa, aí Thamira e Raquel dizem que
também dá para filmar coisas em casa.
Raquel relembra que em uma reunião passada, tínhamos conversado deles filmarem
um “vlog pessoal”, que seria uma conversa entre os dois. Loki fala que tem um porém, que
eles geralmente não conversam coisa boa ou feliz, e sim coisas pessoais, “só negatividade”,
Odé completa. Thamira responde que se não quiserem compartilhar coisas pessoais, tudo
bem, mas o fato de serem coisas negativas ou positivas não é um problema porque “o
audiovisual é pra gente expressar o que tá sentindo”, e que eles podem expressar o que não é
tão bom também.
Arthur comenta que é possível fazer reflexões sobre a vida sem se expor, mas que não
precisam fazer isso agora. Que pensou isso porque as câmeras vão estar paradas, eles estarão
juntos, para “experimentar a câmera, ver as funções, testar… ela tem um zoom potente que
vai lonjão.” Também segue dando algumas ideias de coisas que podem ser filmadas, como um
filmar o outro reagindo à música do filme, inclusive “falar mal da gente”, diz rindo. Hórus
então fala que nós vamos tomar vacina e eles não. Loki conta de um vídeo que gravou com
uma prima para seu canal do youtube, e Hórus reclama que seu canal, ao contrário do outro,
está “falido” . Ele então elogia a edição de vídeo de Odé, o qual responde que fazer vídeo para
o instagram é mais tranquilo do que fazer para o youtube, pois este “cê tem que fazer thumb
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[thumbnail], cê tem que pensar num título, cê tem que fazer uma descrição, tá ligado?” e que
fazer thumb é mais difícil do que editar o vídeo. Eles então começam a conversar sobre isso,
Odé conta que demorou “6 horas para fazer 2 clipadas de 1 minuto” e que usou o “kinemaster
pra editar, o mobizen pra gravar, usei um outro aplicativo lá pra fazer batida… fazer batida
demora pra caramba”. Ainda fala que se fosse fazer um vídeo de 10 minutos para o youtube
demoraria o dia inteiro. Eu brinco que estou demorando meses para fazer um de 4 minutos
[um videoclipe] e ele responde que cada função para o vídeo é um aplicativo diferente.
Hórus fala que é pra quem tem paciência e comenta das estatísticas do canal que tinha.
Loki também conta suas estatísticas e eles conversam entre si sobre como não têm animação
para jogar e gravar. Também reclamam do Free Fire em si. Odé comenta que desanima jogar
porque para a Garena [empresa do Free Fire] “quem paga é quem tem vantagem no jogo”.
Eles seguem comentando sobre as atualizações, como pesa no celular, as especificações
necessárias para aguentar o jogo. Arthur então volta a falar que se Loki quiser testar a câmera,
avisar até o dia seguinte na hora do almoço e Raquel reforça o que ele quis dizer, explicando
que todos vão receber. Depois ele explica que falou diretamente com Loki porque ele é o
único que possui autorização assinada pela mãe.
Arthur e Thamira explicam como será o processo de entrega e recolhimento das
câmeras depois de tudo organizado, a necessidade de pegar os cartões de memória depois de
cada dia de filmagem, descarregar o conteúdo, ter certeza que os arquivos não estão
corrompidos ou não serão excluídos sem querer. Arthur também diz sobre o processo de
roteirização, que será feito por nós adultos, e que facilita podermos ter acesso às filmagens
para subir aos poucos na nuvem e não tudo de uma vez só.

15/03/2021
vídeo de 1 hora e 27 minutos
objetivo: 4º dispositivo - produção de banda sonora + organização de filmagem com as
câmeras.
participantes: Arthur, Raquel, Thamira, eu, Hórus, Anansi.
Essa reunião seria dia 11, mas teve que ser remarcada, porque os meninos disseram no
dia que não poderiam. O dispositivo pensado, de produzir o som para um vídeo feito
anteriormente, não foi realizado. Isso é algo que me impacta, já que eu era a pessoa
responsável por ajudá-los a fazer. Nesse momento da produção, percebo que há um clima de
desmotivação, e, apesar de eu ter tentado conversar com as duplas para que elas realizassem o
exercício, entendi que não ia acontecer da forma como havíamos planejado.
197

No começo da reunião apenas Hórus está presente fora os adultos, então Arthur
explica que vamos conversar de novo sobre o dispositivo, para que ele tenha a oportunidade
de fazê-lo até nosso próximo encontro. Além disso, já vamos conversar sobre o recebimento
das handycam, organizar isso e pensar sobre as imagens que ele irá fazer.
Para exemplificar o que havia sido proposto, eu digo que vou mostrar um vídeo que
escolhi, e os áudios que produzi para a paisagem sonora e narração. Também queremos
assistir ao vídeo que Hórus escolheu para fazer seu áudio. Arthur questiona o porquê dessa
escolha e ele responde que “tem mais a ver com favela, mostra o local. Várias casinhas assim
em volta, retrata muito de… favela mesmo assim. E era uma visão boa que a pessoa tinha,
uma visão boa do lugar.”
Anansi também entra na reunião, a primeira que vai participar. Antes tinha dito que
queria apenas aparecer dançando no filme, mas agora mudou de ideia. Hórus é sempre a
pessoa que aparece com algumas notícias, e dessa vez nos conta sobre a morte de um repórter
de rádio de Ouro Preto, J Messias. Ele também comenta sobre os casos de aglomeração em
Mariana, as denúncias realizadas e a matéria que viu no jornal sobre isso.
Conversamos sobre algumas outras coisas, sobre como andar de skate em Ouro Preto,
a cachoeira Geladinha e a Geladeira (que só então descobri que são diferentes), o cuidado
com animais, e com meia hora de encontro começo a apresentar o vídeo com os áudios que
fiz. Hórus então pergunta quem fez o vídeo e Arthur devolve perguntando se importa saber de
quem é. Eu também questiono se ele quer saber para julgar ou criticar o trabalho, e depois
Arthur explica que fazer crítica ao trabalho nem sempre significa falar mal do trabalho, que eu
não tinha dito nesse sentido. O menino então começa a rabiscar na tela, o que leva os adultos
a desenhar também. Ele também comenta sobre um site de jogos e apostas que chama Blaze.
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Por conta de problemas técnicos no meu computador, só depois disso consigo dar play
no vídeo com a narração, e depois no vídeo com os efeitos sonoros - um simulando o barulho
de chuva, feito com papel alumínio, e outro que gravei meu gato miando. Explico que esses
sons poderiam ser montados de formas diferentes e Raquel ainda comenta que o vídeo dá
ainda outras ideias possíveis. Depois de dizer que não precisamos produzir um áudio que
necessariamente explique ou represente o que está no vídeo, eu pergunto o que Hórus havia
pensado para o dispositivo dele. Ele diz que quer fazer áudio com lugares movimentados, mas
que precisa pesquisar para decidir, e que ele mesmo vai editar. Então eu sigo exemplificando
sons que ele pode gravar na vida cotidiana e possibilidades de achá-los em sites também.
Arthur propõe que a gente converse sobre as filmagens com as câmeras e o filme em
si, e pede para que Hórus explique a ideia inicial para Anansi.
51:10 – 51:50
Hórus: Eu acho que o ano de 2020 tá sendo mais agora em 2021, porque cê tá vendo que agora as pessoas tão
preocupando, porque lá no começo ninguém tava preocupando não. Aí cê vê que não tem muita gente na rua,
tem esse trem aí de toque de recolher, que vai começar agora oito horas… E altas coisas.
Thamira: Cê acha que as pessoas tão se cuidando mais agora?
Hórus: É, tem umas que não mas tem umas que sim.

Depois disso ele contou que estava com sintomas de gripe, e já ficou preocupado que
seria COVID, mas que agora já está bem. Também disse que sua família teve os sintomas. Eu
comento que achei interessante ele dizer que o ano de 2020 está sendo agora, como se a gente
não tivesse saído desse ano, ou “como se agora a ficha tivesse caído”. Raquel também fala
que “parece que agora chegou num nível que é tão extremo, que agora que a ficha tá caindo,
tipo assim ‘ah, tá rolando isso tudo…’.” Anansi tinha saído da chamada rapidamente e voltou.
Raquel aproveita para perguntá-lo sobre o ano de 2020, as coisas que estávamos comentando.
Ele responde “Eu achei 2020 péssimo, credo. Foi ruim demais”.

54:40- 55:51
Arthur: E como que poderia ter sido?
Anansi: Ruim demais, meu fi.
Hórus: Ia ser bom né, não ia ser não? Se não tivesse os negócios, ele tentou explicar.
Anansi: Tinha que ter os baile, meu fi.
Hórus: Então, meu fi… Ele tá falando aí. Se não tivesse a pandemia, como é que ia ter sido?
Anansi: Baile todo dia, ia ser bom.
Hórus: Ah, ia…
Raquel: Tipo assim, se você fosse escolher pra você um 2020 perfeito assim, nossa um ano maravilhoso… Como
ia ser esse ano seu?
Anansi: Ia ser bom.
Hórus: O meu ia ser melhor ainda que eu ia saber que eu tava quase acabando o ensino médio pra sumir daquela
escola. Mas aí eu fui lá outro dia e quase que eu chorei... De felicidade. Tô brincando. Chorei não... Mas sei lá
vei, a gente sente alguma coisa, a gente sente um sentimento de saudade quando chega lá na porta lá e vê que tá
tudo fechado, não tem ninguém... Todo mundo lá de máscara, não tem aquela zuera mais... Então é foda.

Hórus então começa a falar que achava que os três anos [do ensino médio] iam passar
rápido, mas agora ele estava devendo conteúdo do ano anterior ainda, mesmo para o segundo
199

ano. Anansi diz que estava no sétimo ano, que tem 400 folhas para fazer [da apostila], mas
não fez muita coisa ainda. Hórus explica que tem muita coisa para fazer e que as aulas serão
feitas pelo Conexão Escola, eu pergunto se é o aplicativo e ele confirma que é. Anansi diz “se
não pode levar o celular pra escola, não pode estudar pelo celular também”, eu rio desse
argumento na hora, porque por trás dele tem várias questões de como a escola lida com a
tecnologia dentro de sala de aula.
Sobre o envio das câmeras, Hórus pergunta quando será feito. Arthur responde que
quando der pra ele, então combinam que no domingo o adolescente vai receber. Ele também
explica como é a câmera, que é própria para filmar, que não é profissional, mas é quase.
Thamira diz “A gente fazendo esse aí, quem sabe a gente num consegue recurso pra fazer uma
mega produção no próximo” e Hórus responde “Nó, aí nós fazer é Kondzilla…” e eu acho
maravilhosa a referência.
1:02:43 - 1:06:30
Arthur: E o que que cê acha que dá pra filmar num domingo de quarentena?
Hórus: Ah, dá pra filmar os lugar fechado… Dá pra filmar as ruas, pegar os outros fazendo aglomeração. Dá pra
fazer um monte de coisa. Num sei, tem que pensar. No dia que cês for mandar cês manda aí “ah, faz isso, faz
isso, faz isso…” Aí eu faço.
Arthur: Então, isso que a gente vai fazer também. A gente vai mandar umas instruções de algumas coisas pra
vocês fazerem, sabe? Só que tipo, não vai ser exatamente mandando vocês fazerem nada. Mas, sei lá… fazer um
Minuto Lumière de novo, por exemplo, é uma coisa que a gente vai pedir. Só que a gente vai mandar tripé, pra
vocês fazerem um Minuto Lumière mesmo. Outra coisa que provavelmente a gente vai pedir, é pra vocês
gravarem um tempo de algum lugar pra gente depois pegar só o áudio desse lugar, e criar a paisagem sonora do
filme. Então talvez a gente peça “deixa a câmera gravando por três minutos”, por exemplo, sabe? Pra ter os
áudios.
Hórus: Tendi. Aí cês vão falar… usar um lugar específico pra vocês falar o que é pra fazer?
Arthur: Não, a gente não vai mandar nada específico.
Hórus: Então cês vão só dar ideia?
Arthur: É, tipo… faz um minuto lumière, grava 3 minutos de áudio, faz um vídeo com a câmera em movimento,
faz um vídeo em selfie, sei lá… Não to dizendo que vai ser exatamente assim, a gente vai decidir até mandar a
câmera. Mas sempre aberto, sempre daquele jeito que a gente faz, sem certo e sem errado.
Raquel: E se além das coisas que a gente sugeriu você quiser gravar outras coisas, pode também.
Arthur: É, na verdade o que a gente vai sugerir, é só pra sugerir. Se não quiser fazer o que a gente vai pedir, fazer
outra coisa…
Eu: Por isso que é daora essa conversa que a gente tá tendo agora, Hórus… Pra gente conseguir pensar junto, né?
Tipo, se o filme é sobre 2020, quais são as imagens que você acha que tipo… vão ajudar a construir, sabe? O que
foi esse ano de 2020 e o que poderia ter sido. Você falou várias coisas aí, tipo “muito triste chegar na escola e
ver tudo fechado, ver as pessoas de máscara, ver aglomeração”, enfim… todas as coisas que vem na sua cabeça,
dessas mudanças que rolaram, como a pandemia impactou na sua vida. O que você via na rua e deixou de ver.
As coisas que você fazia, que você gostaria de fazer e acabou que você não fazer… Você falou “ó, queria tá na
escola porque eu ia terminar…” e é isso, como a gente coloca isso em imagem e em som:? Aí é você que tem
que saber, porque é a sua visão das coisas.

Arthur então diz que uma coisa que pode funcionar é filmar os lugares vazios como a
quadra, por exemplo, e narrar como se estivessem acontecendo coisas como nos anos
anteriores ou o que poderia estar acontecendo. Gravar outras coisas e contar histórias. “Não
necessariamente pensar a coisa como uma mentira, mas pensar como uma invenção, uma
possibilidade.” Ele retoma o pensamento de que parece que 2020 é agora ainda, então “meio
200

que 2020 é um ano que não aconteceu”, em que ficamos esperando “voltar a aula, chegar a
vacina, diminuir os casos”, e como com o cinema “a gente pode inventar esse ano”, um ano
de 2020 que não existiu, mas vai existir para o filme.
1:08:40 - 1:09:16
Arthur: Vou dar um exemplo, o Anansi falou “ah, se tivesse sido normal, eu tinha ido pro baile todo dia”. Se ele
pega a câmera, coloca o tripé, e se filma dançando com 10 roupas diferentes, em 10 horários diferentes, ou só em
3 horários diferentes, isso já vai dar uma ideia de continuidade do tempo… de várias vezes, entende? Ou em 10
lugares diferentes, por exemplo. Isso já dá uma ideia de que quem sabe ele passou o ano inteiro no baile, sabe?

Eu ainda completo dizendo que no cinema podemos “misturar essa coisa do que é
ficção, do que é inventado, e do que é realidade. Porque essa realidade compartilhada de 2020
a gente já tem noção de como foi, de uma forma geral pras pessoas… Ficar em casa, não ir
pra escola, etc… Por isso que é interessante pensar no que a gente não viveu, as histórias que
a gente gostaria de contar pra poder apresentar elas no filme.” Arthur ainda dá a ideia de
filmar Black n444, que é seu vizinho, de longe, dando a ideia de isolamento social. Continua
dando algumas ideias baseadas no que os meninos já tinham falado e cita “O Brasil que eu
quero”, instigando eles a perguntarem para as pessoas conhecidas o que elas mudariam no
Brasil, como fariam com a pandemia...
Hórus concorda que dá pra fazer entrevistas, mas Arthur reforça para não fazerem com
quem ele não possui contato, por conta da autorização, o menino responde que tem que pedir
autorização mesmo e pergunta “se for com desconhecido assim, a gente tem que pedir o que,
email, número de celular, nome e só?”. Arthur então diz “Mais esperto que a gente” e ri.
Raquel fala que se ele tiver essas informações a gente vai atrás da pessoa também, tá
tranquilo.
Arthur continua falando sobre como abordar as pessoas para as entrevistas e as
possibilidades. Eles conversam que se estiver chovendo muito, é para gravar só dentro de casa
e depois ele recebe a câmera de novo.

1:15:14 – 1:15:30
Hórus: Mas aqui, cês não quer mandar um bocado de perguntas aí pra gente selecionar algumas pra fazer pras
pessoas não?
Arthur: Não, cês não querem vocês mandar um bocado de pergunta e a gente selecionar pra vocês fazer não?
Não pode ser ao contrário?

Depois disso, Arthur dá apenas uma ideia de pergunta “como seria o 2020 ideal?”, na
ideia de reinventar o ano, recontá-lo. Hórus pergunta sobre a gravação em lugares com
barulho e conversamos com ele sobre as preocupações de captação de som, uso de fone de
ouvido e a importância de testar a captação antes de filmar a entrevista. Arthur então pede
para ele não mexer na configuração da câmera e não apagar nada, mesmo achando que a
filmagem está ruim. Também diz para ele não se preocupar com a duração do filme quando
201

for gravar, porque podemos usar o material depos ou mesmo fazer uma versão maior do
mesmo filme. Quando Arthur pergunta para Anansi se ele quer receber a câmera ou só
participar dançando, ele responde que não quer pegar a câmera por enquanto [sua mãe ainda
não assinou a autorização também]. Por fim, Arthur também diz para Hórus que se ele quiser
gravar alguma coisa para seu canal de youtube, pode também. Thamira ainda dá umas dicas
sobre entrevista e diz que ele pode falar com a gente se tiver qualquer dúvida. Ficamos de
marcar outra reunião na mesma semana.
Essa reunião teve um andamento mais lento, parece que o cansaço é geral e a
realização das oficinas estagnou um pouco, mas ainda assim saíram falas sobre a visão de
mundo de quem participou. Fiquei triste no começo do encontro pelo dispositivo não ter dado
certo, mas durante a conversa as coisas que ouvimos de Hórus me afetaram positivamente,
por perceber sua sensibilidade e acredito que com a entrega das câmeras a produção vai dar
uma guinada. Quando ele disse que parece que 2020 ainda está acontecendo, acho que
sintetiza muito da sensação de peso e cansaço que todos de uma forma geral estamos
sentindo.

29/03/2021
vídeo de 1 hora e 14 minutos
objetivo da reunião: assistir às imagens do Polivalente enviadas pela vice-diretora Ronessa
participantes: Arthur, Thamira, Raquel, eu, Loki, Hórus, Odé, Anansi, Black n444.

Nessa reunião, a ideia é assistir aos vídeos enviados pela vice-diretora do Polivalente e
captar as reações dos meninos. Logo no início Loki fala sobre fazer dever de casa, a mãe dele
o grita e ele responde que “vai no negócio da Olhares Impossíveis”. Assim que Odé entra, ele
pergunta o que vai rolar e Thamira responde que vamos assistir vídeos. Raquel aproveita para
falar sobre a necessidade da mãe dele assinar a autorização para que ele consiga receber a
câmera também. Hórus diz que vai ficar quieto e com a câmera desligada porque vai comer.
Odé expressa raiva nesse momento por ter que fazer o PET e diz “Eu não queria falar
isso não, mas eu acho que fazer na escola, numa sala, seria melhor do que fazer em casa nesse
cadernão de todo tamanho desse PET.” Arthur pergunta se os PET são as apostilas da escola,
a resposta é positiva. Raquel responde dizendo que “é, mas agora também não tem outra
opção, né? Tem que ser aí, tem jeito não…”, e Odé concorda “É, fazer o que? Tem jeito
não… passar raiva com esse trem aqui memo.” Ainda diz que não é difícil, que isso é só
desânimo. Arthur questiona se ele está fazendo desse ano ou do ano passado e o adolescente
202

responde que são do ano passado, que em 2020 ele pegou, mas nem olhou, nem abriu. Loki
diz que está fazendo os do ano passado e deste (1º e 2º ano do ensino médio), e depois ainda
fala que preferia estudar de novo, porque não entende nada - e reclama do suporte dado.
Eu pergunto para os meninos se eles tentaram estudar juntos a distância, e digo que
tenho dificuldade de estudar sozinha. Odé responde que ele não tem tanto, mas é desanimado
“pra basicamente tudo”, Loki diz que “tá dando preguiça demais nessa quarentena”. Odé
continua falando de como se sente desanimado e desinteressado para fazer os PET, e Loki fala
sobre seu ritmo de estudos para conseguir terminar todas as apostilas, e que fica de três a
cinco horas por dia estudando.
Enquanto eles conversam sobre o que ainda precisam fazer, entendo que são 8 PET no
total, e se fizerem pelo menos 1, é possível pegar uma prova online de 60 pontos para fazer e
passar de ano. Também compreendo que algumas escolas possuíam a opção de fazer só uma
prova sem necessariamente entregar apostilas feitas. Odé diz que “cada escola é uma escola” e
Arthur repete isso. Anansi entra na reunião também.
12:23 - 13:37
Arthur: Eu acho…. antes da gente começar… que tem uma coisa muito importante, que é essa coisa da
apostila… que é ver, talvez, os limites de até quando a gente consegue aprender sozinho e de quando que a gente
precisa do professor, sabe?
Odé: É, então… Eu acho por aí também, tá ligado? Eu peguei esse PET, mano, e fiquei com raiva porque tipo
assim, eu não fiz, eu falei ‘sei lá, mano, as vezes eles deu esse PET aí, o governo deu, só pra sei lá, mano… pra
falar que se importou com aluno’. Sinceramente eu pensava que... Eu penso que assim, não tá importando não,
soltou o PET pra deixar os menino fazendo aí e quem fizer, fez, quem não fizer é bomba, mas eu faço pensando
assim ó... Depois chegar e perguntar quem fez o PET completo, perguntar todo mundo que fez, perguntar o
quanto que aprendeu ou se aprendeu alguma coisa, entendeu?
Loki: De cópia… tá ligado?
Odé: Porque eu acho que a maioria foi pegando da internet, mano... Fazendo em casa. Teve gente que fez o PET
muito rápido, que eu tô ligado... Um bocado pegou na internet, então basicamente quase ninguém aprendeu,
pegou da internet.

Loki começa a falar que pegou da internet e Odé diz “pergunta aí o que ele aprendeu”.
Arthur entra na conversa e diz que tem que ler o que tá colocando, não dá pra só colocar. Loki
diz que pega as respostas de professores que fizeram as questões e colocaram na internet, e
ainda reclama “Mas como que a gente vai fazer 8 PET, cada um de... Tem uns que tem 200
folha, outros tem 100 e pouca... Em mais ou menos um mês sem olhar na internet, tá ligado?
Nós não é Einstein não, carai” e Odé completa “Tanto é que esses PET aí, esses PET eu não
duvido nada que eles num fez um por um, criando pergunta, criando tema não, eles pegou da
internet e fez os PET.” Black n444 também entra na chamada.
Comemoramos que todos estão na reunião hoje, e Arthur pede “uma coisa muito
importante, se for possível”, que os meninos liguem suas câmeras. Hórus diz que vai escovar
os dentes porque acabou de comer (quando volta ele liga), Loki liga e está com um prato de
203

comida que me dá muita fome, Black n444 e Odé também abrem suas câmeras. Então Arthur
explica que pediu isso porque vamos assistir os vídeos que Ronessa fez, e que os adultos vão
desligar as câmeras para ficar só os meninos reagindo, mas “não precisa fazer nada forçado.”
Quando vai explicar que é como os vídeos de react do Youtube, dois deles o interrompem
falando “eu sou Youtuber, sô!”. Ele então volta a falar que queremos registrar a imagem e o
som deles.
Antes disso, ele pergunta para quem já filmou sobre o que achou de fazer as imagens
com a câmera. Hórus diz que foi bom, mas reclama que Black n444 não acordou para ir filmar
junto e aí o outro se explica. Tirando isso, eles e Loki dizem que tudo deu certo. Eles também
contam que excluíram alguns vídeos [apesar de Arthur ter falado para não fazerem isso].
Quando Hórus comenta sobre um vídeo que fez jogando Free Fire, a conversa já toma esse
rumo e eles ficam se desafiando a “ir no x1”, além de reclamar de algumas coisas do jogo.
Odé interrompe a conversa e fala para a gente ver as imagens que Ronessa mandou. Até esse
momento Anansi não tinha falado nada, mas Arthur pede pra ele aparecer e o menino só dá
um oi, e diz que não vai abrir a câmera. Arthur pede então para ele abrir pelo menos o
microfone.
Vamos assistir três vídeos, no total são 5 minutos e pouco. Depois de ocultar os
participantes que estão sem câmera ligada, Arthur espera os meninos se arrumarem e começa
a passar os vídeos. O primeiro fica com a imagem fixa durante um tempo por problemas
técnicos e enquanto vêem a entrada da escola os meninos começam a comentar.
29:26 – 31:00
Loki: Que saudade véi, da escola…
Hórus: Eu vou chorar.
Loki: Mó saudade dessa entrada aí, que eu lembro que descia correndo, trupicava, rachava a cabeça…
Hórus: Eu já desci um monte de vez de skate aí meu filho, pra nunca mais.
Loki: Eu lembro que nós ficava brincando ali no mato... com Sandra, ali de vôlei, altos bagulho. Cê lembra?
Hórus: Hmmmm de boa, né? (risos)
Loki: Ihh, com Sandra, burro! De volêi! Burro!
Hórus: Ahhhh Sandra… a professora (risos)
Loki: Cê é burro carai!
[Depois disso ainda lembram de outra brincadeira, até que percebem que a imagem está estática por tempo
demais]
Loki: Cadê Arthur?
Hórus: Acho que já deve ter começado, não é possível
Loki: Começou não, carai…
Black n444: Arthur dormiu, Arthur dormiu lá na ligação (risos)
Odé: Arthur morreu (risos)
Loki: Que isso, Arthur?

Thamira então pergunta “Arthur, cê tá aí, amigo?” e ele responde “Eu tô aqui, cês não
tão vendo a imagem não?”. Os meninos então contam que a imagem está parada para eles (e
todos, tirando Arthur). Ele então diz que o vídeo tá rodando normal e ainda pergunta “Cês
204

tavam falando isso tudo sem ver a imagem? Parecia que cês tavam vendo, eu tava
acompanhando ela.” E vamos de novo tentar assistir aos vídeos. Quando aparece a faixa de
pedestres na frente da escola, antes do vídeo começar, Loki exclama: "A entrada, véi, da
escola!”, enquanto Hórus diz “peraí peraí, um último comentário aqui: fazer igual a gente
fazia, a gente ficava chutando o pé um do outro na faixa ali e caía” e começa a rir. Loki
responde “Eu não fazia não, carai”. Quando o vídeo começa a imagem está travando bastante,
é um plano sequência desde o início da escola e adentrando até os pátios.
32:33 – 34:21
Loki: 30fps.
Odé: Caraca, 30 não, 10.
Hórus: Travando…Agora baixou pra 10.
Anansi: Ou, tá travando hein.
Odé: Ó, por que cê não pediu pra eu editar, meu fi?
[Sobreposição de falas]
Loki: Pé de manga tá... A horta...
Hórus: caçar manga, menino?! É mesmo, tava quase na época
Ronessa [no vídeo]: Nossas goiabeiras estão cheias de goiaba
Loki: Goiaba...
Hórus: Vou lá buscar
Loki: Eu lembro quando a árvore caiu no muro... Ah lá, tá até hoje, os cara nem tira
Hórus: Vamo lá que eu vou levar a motosserra lá pra nós cortar esse trem
Black n444: Comer guiaba
Loki: Nó, lá na horta deve tá cheio de bicho
Hórus: É bom que vira ponte, viado... Muito mais fácil pra nós ir se o portão tiver aberto
Odé: É só a minha imagem que tá travando?
Duas pessoas: Não!
Hórus: Eu ficava pulando essa grade aí…
Anansi: Tá travando demais, mano…
Ronessa [no vídeo] Tem gente na escola…
[Sobreposição de falas]
Loki: Nossa sala, vei...
Hórus: A informática, vei... pra jogar
Odé: Eu vou falar do quê? Não sei como é que eu vou falar se eu só vejo foto?
Hórus: Calma que tá rodando
Odé: Eu não vejo vídeo não, eu to vendo um monte de foto pulando, uai
[Todos riem]

Enquanto o segundo vídeo começa, Hórus fala “tá gravando, mas é zuera, Arthur!” e
Loki também brinca “é meme, é meme”. Então Arthur pergunta se está travando, e eles dizem
que sim. Odé comenta sobre a imagem fixa da entrada para o pátio: “Nó, saudade daquele
cantin da escola... Um sol, pá... Virando mortal” e ainda completa “É que vocês não sabem
que naquela época eu mais o Loki era famosinho porque era os únicos acrobata da escola, tá
ligado?” Arthur está tentando corrigir o problema e Loki concorda com Odé, começando a
contar algumas lembranças da escola, de uma brincadeira que envolvia bater um no outro,
pelo o que entendi. Arthur compartilha a tela de novo, agora vamos ver um vídeo de Ronessa
indo para a horta. [As imagens ainda travam um pouco e os meninos fazem piada disso]
205

Quando a pessoa que está sendo gravada abre o portão para a horta e entra, eles começam a
reagir bastante e a sobrepor o que está sendo falado no vídeo.

36:30 – 37:51 [imagens da horta]


Hórus: Nossa senhora!
Black n444: Matagal danado
Loki: Cê é doido, os cara não tem nem... Os cara não tem compaixão com a escola não
Ronessa [no vídeo]: nossa, que triste…
Black n444: Que matagal danado
Hórus: Vou ter que levar uma roçadeira e roçar esse trem uai
[Sobreposição de falas]
Loki: Nó véi...
Hórus: Nem Ronessa não via a horta.
Black n444: Se bater pique-esconde aí não acha nunca mais
Hórus: Levar uma foice pra cada um
Ronessa [no vídeo]: Meu Deus… Retratos de uma pandemia. [Sobreposição de falas] Não dá, simplesmente não
dá para entrar lá.
[Sobreposição de falas]
Loki:…Cê lembra Hórus?
Hórus: Oi…
Ronessa [no vídeo]: Poxa vida… Tá tudo fechado
Loki: Nós brincando de pique esconde na onde tá a construção lá dentro.
Hórus: (risos) eu lembro ué.
Loki: Agora é só pular de ponta
Ronessa [no vídeo]: Nossa, gente, falhei nessa missão, viu?
Hórus: Ah não, viado, vou ter que levar uma roçadeira lá mesmo… Ó isso
Ronessa [no vídeo]: Que chocante… Não existe mais horta.
[Loki fala alguma coisa mas está em pé longe do computador e não dá para entender]
Hórus: Nem Ronessa que vai na escola todo dia ia ver esse trem, não é possível
Odé: Nó Loki, já tem serviço, tá meu fi? Nó, malei.
Loki: (risos) Malou.
Hórus: Vou levar uma foice pra cada um.
Odé: Foice? Vai se virar sozinho na foice.

O vídeo já acabou, e Arthur pergunta para eles se estão ouvindo o áudio da imagem.
Ele então diz que vai colocar o vídeo de novo, para eles conseguirem ouvir tudo o que ela
fala, e daí vai direto para o terceiro vídeo. Eles não ficam em silêncio (apenas durante alguns
poucos segundos) e repetem que vão lá na escola roçar a horta. Hórus então diz: “Nós que
falou que cuida da horta, cadê nós lá cuidando?” e o vídeo finaliza com ele comentando:
“Deve tá lá meus pé lá de melancia lá em cima dando altas melancia e não vai dar pra pegar.”
Quando o terceiro vídeo começa, ele fala: “Ela me mostrou uma coisa muito importante, que
tinha uma campainha lá na escola, agora no portão ali.”. Ronessa então mostra a escola, a sala
da pedagogia com as cestas para entregar para as famílias, as salas de aula pelo lado de fora.

41:53 – 42:55
Odé: Caraca vei, que saudade desse presídio.
Loki: Ah vei que merda vei, acaba essa quarentena..
Hórus: Eu vou chorar... Ó ginásio vei lá... Todo parado. É capaz do ginásio também tá cheio de mato também.
Loki: É mesmo
[Os meninos reagem à entrada do portão pro estacionamento e falam do tamanho do mato. Ronessa então
comenta no vídeo que a obra do estacionamento não foi entregue.]
Hórus: Ah! Essa obra aí tá mais atrasada que auxílio emergencial.
206

Loki: Ih, ah lá Hórus! Celemetério. [reagindo a imagem do mato alto em volta do ginásio]
Hórus: Dá nem pra entrar lá na quadra, no ginásio… Tá doido.
[Ela então passa por fora do laboratório de informática]
Hórus: Aí ó, ficar sentado nesse computador aí roubando... Tentando hackear o sistema pra pegar a senha do wifi
(rindo)
Loki: Ah, não mudou quase nada, só os mato que tá grande.

Mais uma vez Arthur propõe que eles assistam ao vídeo com os microfones desligados
para ouvir a narração (mas diz que se quiserem abrir para comentar rapidamente, podem).
Dessa vez eles conseguem rever o tour pela escola durante um tempo em silêncio e ouvem a
vice-diretora apresentando os espaços. A mãe de Odé aparece em sua câmera para ver o que
está passando e Loki fica acenando para ela. Quando Ronessa pergunta no vídeo se eles estão
com saudade da escola, Loki faz um sinal de positivo. Hórus então abre o microfone para
falar que quando deixavam os cadernos no armário, no dia seguinte não tinha nem o caderno
nem o cadeado. Loki então diz que “os cara é safado” e dava soco no armário para abrir. Odé
comenta que na sala da pedagoga tem um apanhador de sonhos que ele fez no 6º ano, e várias
outras artes que ele fez. Quando o vídeo passa pela entrada do estacionamento/ginásio, Hórus
diz que “até o estádio do Galo vai sair primeiro que isso aí.”
46:36 – 47:00
Loki (cantarolando): Eu to com saudade da escola demais... Só não quero estudar.
Hórus: Eu to com saudade da zuera viado, nó...
Loki: Eu to com saudade da escola... mas sem estudar.
Hórus: Cala boca, vei! Pra quadra!
Loki: Eu tenho um amigo lá do Rio, ele tem aula presencial uma vez por semana
Hórus: Nós num vai ter nunca mais…

Loki brinca que vão ter aula “no celemetério”, fazendo menção a um meme [que eu
não sei qual é] e começa a imitar o que é dito no vídeo. Depois de fazer mais algumas
brincadeiras, Hórus fala que eles tinham que trabalhar naquela escola e cita um professor que
segundo ele, se ainda estivesse na escola estaria lá “ele mesmo tirando aquele mato”. Loki
também fala desse professor, que gostaria que ele fosse diretor e Hórus fala que foi igual Lula
e Bolsonaro a eleição para diretor. Odé então diz “Irmão, o Lula vai virar maromba”. [Nesse
momento agradeço muito porque estou com câmera e microfone desligado, porque solto a
maior gargalhada]. Depois disso, eles começam a falar sobre a merenda que recebiam na
escola.
50:16 – 51:37
Black n444: Os cara pedia a professora pra ir no banheiro só pra ver o que tinha de comida
Loki: Tocava o sinal, já tinha uns 40 nego na fila
Hórus: Aí sentava no primeiro lugar da porta já… Os esfomeado tudo.
Loki: Eu nem gostava de comer não… Eu saía da sala, ia pro lado da sala e sentava.
Hórus: Eu comia assim mesmo, de vez em quando… Agora que eu não como mesmo, de aparelho. Aparelho
garra até a alma no aparelho também.
Loki: Sai fora, cé doido…
Hórus: Ó…
207

Black n444: Ô Arthur!


[A imagem de Arthur aparece]
Odé: Ô viado, Arthur… Arthur não vai falar não, viado
Black n444: Surdo!
Odé: É pra nois dialogar aqui. Cê não entendeu, cê num escutou que ele tá gravando não? Pra nois dialogar aqui
não? Cabaço!
[A imagem de Arthur some]
Black n444: Não não, meu celular vai descarregar em breve… No próximo capítulo ele irá descarregar.
Loki: Telefone fixo, carai, não viu carregador
Odé: Famoso nokia tijolão, nunca te deixa na mão.

Eles conversam mais um pouco sobre os celulares que tem, os que quebraram, e Hórus
volta a falar sobre a escola: “Nós vamo fazer um mutirão meu fi ó... Nós vamo fazer um
mutirão e ir lá naquela escola, meu fi.” Nesse momento Loki está mostrando seu computador
e falando “Gamer… gamer.” Hórus pergunta onde ele o comprou e depois conta uma história
de quando tentou consertar uma CPU e não deu certo, fizeram “uma gambiarra, que queimou
a tela, pra falar que tinha consertado.” Loki fala que sua placa de vídeo é boa mas o
processador só tem dois núcleos, Hórus respondeu que o seu computador não aguenta nem
Minecraft. Eles ficam em silêncio e ele volta a falar.

54:02 – 54:26
Hórus: Mas vamo um mutirão pra ir lá na escola?
Odé: Vai caçar fazer mutirão pra estudar na escola, que já já ce vai estudar debaixo da terra, irmão.
Hórus: Nós vai estudar na enxada, meu fi
Odé: Vai estudar embaixo da terra, sem horário marcado, sem tempo inesperado
Loki: Debaixo de sete palmo, no celemetério
Odé: Debaixo de sete palmo…

Nesse momento Hórus começa a falar de professores que eles não vão mais ver, sobre
a relação que tem com esses professores, e sobre com quem gostariam de ter aula. Também
contam a história de um professor que haviam citado antes, e que pelo que falaram era bem
questionador.
55:54 – 56:10
Odé: Eu concordo com o que ele falou porque tipo… Ó procê ver, os cara no começo do ano queria ensinar nós
sobre o que? Bagulho de fora do Brasil, coisa de outros lugar, mas não ensinava o que era nosso, que era pra nós,
essencial pra aprender, tá ligado? Por exemplo, coisa nossa os cara não ensinava, ensinava cultura dos outro…

Hórus concorda com ele e seguem falando desse professor, até Loki chamar por
Arthur. Ele então pede para que os meninos que já filmaram indiquem os vídeos que querem
ver na reunião da próxima semana. Hórus, Black e Loki indicam quais são as filmagens que
querem ver - e Hórus fala qual ele não quer ver (uma que está andando de skate). Arthur
também pergunta quando Odé quer receber a câmera e ele fala que depois que sua mãe assinar
o papel qualquer dia ele está disposto. Daqui dois dias vai fazer um ano de um vídeo que Loki
mandou no grupo no começo da pandemia e Arthur sugere que quem quiser pode gravar um
vídeo desse tipo, de um ano depois da pandemia - e pode ser que isso seja usado no filme.
208

Para finalizar, ele pergunta se os meninos querem comentar como foi terem visto as imagens
da escola.

1:02:27 – 1:02:38
Loki: Dá pra dar uma lembradinha né? Mas é melhor tá lá do que ver vídeo só.
Hórus: É uai... Tem que tá lá presenciando… interagindo, né?

Depois disso, Loki volta a falar da possibilidade de ter uma aula presencial por
semana, que se fosse assim ele já estaria de boa. A partir disso, Hórus fala sobre a notícia de
que iriam vacinar os policiais e os professores - e Loki pergunta “E o grupo de risco? Cadê eu
aí nessa história?”, Black n444 também fala “É! Cadê eu também?”. Hórus comenta que viu
lugares falando que não vai vacinar os menores de 18 anos, mas também viu que tem que
vacinar pra fazer as coisas. Quando Loki reforça que tem que tomar porque é de grupo de
risco, Hórus fala “Mas tem que vacinar é todo mundo, não é só você não!”.

1:03:18 – 1:04:06
Loki: Tão querendo comprar vacina nem a pau
Hórus: Vamo comprar, 600 reais só aí…. Uma dose.
Loki: (risos) Cê é doido?!
Black n444: Tá doido…
Hórus: To falando procê, o cara tava comprando lá e vacinando os funcionários dele. Foi esperto, aí. Agora não
deixa o cara vacina, nada a ver uai.
Loki: Cada estado compra a sua, cê tá ligado né?
Hórus: Cada um comprasse a sua também tava bom, já tava tudo imunizado aqui já…. Aqueles cara.
Black n444: Aham (ironicamente) Dinheiro cai do…
Loki: Mais de mil real uma vacina (rindo)
Hórus: Vacina do... na deepweb... Nem ia vim
Loki: Cê fica com cara de calango
Black n444: Jacaré
Hórus: Aí que ce ia virar um jacaré mesmo
Black n444: Crocodilo
Loki: Virar só lacoste
Black n444: Original, tá? Não é os falsificado não
Loki: Falsificado não, paiaço

Nesse momento eu rio demais. Aí então Hórus começa a falar sobre os idosos de sua
família que já foram vacinados, que pelo menos quando for se aglomerar eles já se vacinaram.
Loki então diz que depois do “véião mesmo”, vem “os funcionários pra poder abrir as lojas” e
“nós que é novo assim devem vim os últimos e penúltimos”. Odé diz que eles deveriam vir
primeiro e Loki concorda, dizendo que os velhos “já viveram demais”. Estou balançando
minha cabeça negativamente e me segurando para não falar nada. Black n444 então fala para
Arthur que a bateria de seu celular está acabando e pergunta se ele não vai falar mais nada,
Arthur diz que não tem mais nada a dizer, o menino sai.
Odé continua falando que “quem não aguenta ficar em casa e sai mesmo”, no caso os
jovens, tinham que ser vacinados antes. Hórus fala que se eles estivessem velhos iam querer
209

tomar primeiro também. Loki fala que quem passou da expectativa de vida (75 anos) já tá no
lucro e Odé concorda. Os adultos estão com cara de preocupados, e eu digo “Gente, que papo
é esse?” enquanto rio, mas falando sério. Hórus diz pros meninos: "Fala isso quando cê
chegar nos 76 também” e Loki segue dizendo que quem está abaixo dos 75 deveria vacinar
tudo.

01:06:20 - 01:06:38
Hórus: Ah, tem que vacinar é todo mundo... Deixa vacinar. Enquanto tá chegando, tá bom. Ó! E se não tivesse
chegando? Aí tava ruim.
Loki: Tá chegando, mas tá chegando pouco, uai! Ah! Quanto que vacinou? Do Brasil inteiro acho que foi 2%,
carai.
Hórus: Porque Lula não tá aqui, uai... Se Lula tivesse aqui, já era... Brasil já era o primeiro que tava vacinando.

Black n444 interrompe a conversa entrando de novo na chamada - sua internet caiu.
Loki então reflete: “Acho que esse trem de quarentena já tá é mexendo com a mente dos
outro, já” e Odé concorda “Tá uai, tá mexendo, carai”. Hórus conta que quando foi na quadra
quase quebrou a perna e que está com muita dor muscular.
1:07:36 – 1:07:47
Loki: Ah, eu não to com muita dor muscular porque tô fazendo exercício todo dia
Hórus: Aí! Nós ia pra escola, nós tava... Nós tinha que ir a pé todo dia, nós tava tranquilo.
Loki: É, eu andava um quilômetro, rapaz... Voltava.

Odé então diz que se eles estão reclamando, ele nem vai comentar, porque andava
mais. E os meninos voltam a falar da escola, Black n444 sendo o único que está em outra
série. Hórus então diz que vai baixar o Conexão Escola hoje mesmo. Loki fala para ele fazer a
apostila toda e buscar na internet, então sai da câmera e volta com várias folhas mostrando
tudo o que fez até então, falando as apostilas que já terminou. Hórus nos conta que sua tia
deve se vacinar na próxima remessa, mas que está ouvindo ela dizer que não sabe se toma ou
não, porque "tá morrendo gente que vacinou”. Ele diz “Ó as ideia da minha tia, gente, fica
vendo essas bosta nesse trem de whatsapp aí… Já falei com ela ‘ó, cê vai tomar ou vou levar
você a força”. Então eu respondo dizendo que a vacina não é certeza de que não vai morrer,
porque nenhuma é 100%, mas quem não vacina também morre. E que o negócio é que ela é
mais proteção.
1:11:14 – 1:11:48
Odé: A garantia de toda vacina é que cê vai viver mais um tempo
Hórus: Não, mas... Diz que é o que, diz que é o seguinte: não mata o trem não, sô. Não, mata sim porque dá sei
lá as... sei lá. Nem é bactéria. Igual, se todo mundo tiver com o vírus fora da pessoa, e morrendo assim... vai
acabar, vei, tem outra não. Agora se as pessoa num vacina, vai tá lá... Encosto.
Loki: Mas olha, tipo, igual o governo tá demorando muito pra vacinar... Eu tô ligado que o bagulho…
Hórus: O governo tá preocupado com dinheiro, sô... Da economia. Essas bosta.
Loki: Ô viado, ó… O… acho que é… qual que é o nome do país lá, sô? Árabe? Como que é… Irã?
Hórus: Estados Unidos tá vacinando mais.
Loki: Irã já vacinou acho que 50 e poucos por cento da população, carai. Brasil vacinou
Hórus: É que o Irã também…
210

Loki: ….acho que 3%


Eu: Israel.

Depois disso eles começam a falar dos países e como estão vacinando (no país
“terrorista, quem não toma é bomba”), da China que constrói hospitais rápido e tem um monte
de gente, da tia que morreu e a família nem pode ir no enterro… Uma sequência de notícias
da pandemia, que infelizmente nos acostumamos a conversar nas trocas diárias. Até que Loki
diz que não adianta nada a proteção porque ninguém tá seguindo o isolamento e pergunta
quem tá cumprindo o toque de recolher. Eu respondo que estou cumprindo e começo a rir, ele
ri também e reclama que a maioria está na rua ainda. Hórus finaliza nossa conversa dizendo
“Onda roxa aí ó... Igual, Ouro Preto porque recebe muito de fora... Cê nem vê muito em Ouro
Preto. Igual hoje confirmou só dois, só, graças a deus. Tomara que confirme menos. Só dois,
aí tá bom, mas os povo não fica em casa.”

06/04/2021
vídeo de 1 hora e 47 minutos
objetivo: assistir aos vídeos realizados com as handycams e comentá-los.
participantes: Arthur, Thamira, Raquel, Olga, eu, Loki, Hórus, Black n444.

Antes de eu entrar na reunião, Arthur e Loki conversam sobre o andamento dos


estudos de Loki, ele explica que já fez algumas apostilas atrasadas, e que terá uma reunião
para falar sobre o acesso ao aplicativo que ele não está conseguindo entrar. Arthur pergunta o
que dá pra fazer nesse aplicativo e Loki responde que acha que é para tirar foto das atividades
e colocar lá. Depois disso ele diz que baixou o OBS Studio e um editor de vídeo para fazer
vídeos e lives de jogos. Arthur comenta que precisamos marcar a live do Google Maps (para
mostrar o caminho da Escola Adhalmir Maia até o Polivalente) e que pensou em transformar
um vídeo que Loki fez de Anansi descendo a rua em uma animação parecida com videogame
- e já contatou um profissional que poderia fazer isso.
Além disso, também fala que pensou em usar a narração de um vídeo que Black n444
fez em frente à Adhalmir Maia, junto com a tela do Google Maps e a animação de Anansi
dando grau de bicicleta (que seria em 2D). Também diz que Hórus fez um vídeo similar ao de
Black n444 e pode ser usado. Nesse momento Thamira entra na reunião e Arthur repete essas
ideias. Eu, Raquel, Olga e Hórus também entramos na chamada.
Thamira repara nos violões atrás de Loki e começa a perguntar se ele toca, mas ele
responde que não - Arthur pergunta de novo, e o menino diz que fez aulas, mas não se lembra.
Eu comento que também cheguei a fazer aulas - mas de guitarra - e não lembro também. Loki
211

então diz que vai pegar café e ficamos em choque - eu, Raquel e Arthur estamos com a
câmera aberta assustados que ele está indo tomar café. Quando Loki volta, ele chega falando
que não tem hora pra tomar café, que “café é vida”.
Antes de Black n444 entrar, Arthur repete as ideias pensadas sobre criar uma
animação e aliar com narração e captação do mapa, dizendo que pensou em criar uma espécie
de avatar do menino, e quando terminasse o caminho chegando no Polivalente poderia
começar a sequência de imagens da escola e as reações dos meninos. Quando Hórus questiona
sobre a live do Maps, Arthur o lembra dos exercícios de cartografia que já fizeram e pergunta
se eles já chegaram a olhar esse caminho proposto na plataforma. Hórus diz que sim, mas as
ruas estão desatualizadas. Raquel responde que isso pode ser legal, porque podemos atualizar
durante a live, ele então fala que na própria rua dele não tem casa direito no mapa.
Arthur então nos pergunta se vimos um filme que ele enviou no grupo do whatsapp,
chamado “Nunca é noite no mapa”, um curta-metragem feito com imagens do Google Maps e
narração [eu cheguei a assistir quando ele mandou no começo do ano, achei incrível a
experimentação proposta e a narração crítica com questões sobre direito à cidade,
gentrificação, violência policial na periferia]. Ele também reflete: “A gente fica achando que
não dá pra… que precisa de muita coisa pra fazer um filme, e o cara faz basicamente sem
câmera, né? Só fazendo captura de tela.” e eu comento que em um dado momento do filme
tem a questão da diferença do espaço entre os anos, algo que podemos fazer com algumas
imagens. Loki sai da chamada, provavelmente porque a internet caiu.
Olga diz que os meninos têm que saber como usar porque ela já chegou a fazer o
exercício de olhar os mapas do Google Maps [quando era professora deles no ensino integral],
mas que não viu o filme. Arthur continua falando sobre o filme e conta que a ideia surgiu
porque o realizador fotografou o carro que registra as imagens para o Google, e é “sobre essa
relação de quem registra quem”. Olga está com o Google Street View aberto olhando de
quando são as imagens do caminho que pretendemos mostrar, e comenta que dá para ver as
dos outros anos. Arthur se dirige para Hórus dizendo que isso é legal, porque caso a gente
encontre uma imagem desatualizada, mesmo que não dê para atualizar no site, podemos fazer
um vídeo ou foto da rua em questão e colocar por cima. Nesse momento, Loki volta.
Arthur então diz que, apesar de o filme ser sobre o ano de 2020, várias imagens são de
2021 e nos pergunta se colocamos letreiros indicando de quando são. Olga volta a falar do
Google Street View, que ele está muito desatualizado, variando entre registros de 2009, 2011 e
2013. Hórus concorda e fala das diferenças que viu entre o mapa e as ruas, lugares que foram
asfaltados e casas que não existiam - e que podemos usar as imagens, mas logo volta atrás,
212

falando que se o filme é de 2020 temos que usar imagens desse ano até agora. Arthur diz que
podemos usar sim, e é importante pesquisarmos, por exemplo, de quando é o registro da Praça
Tiradentes - e que seria até interessante apontar as diferenças entre o ano em que foi
registrado e 2020. Que durante a live podemos apontar as pessoas sem máscara, por exemplo.
Aí Olga e Hórus o lembram que o rosto das pessoas fica embaçado, então não daria para
fazer. Olga então consegue achar que o registro da Praça Tiradentes é de 2019, bem mais
atualizado do que o Pocinho.
Hórus diz que vai falar com Black n444 para ele entrar e Loki vai atrás de Odé -
inclusive reclama “nóis tem que obrigar ele a fazer os trem, carai. Ele esquece de tudo.”
Enquanto os outros meninos não entram, vamos ver os vídeos de Loki. Arthur diz que se as
imagens ficarem travando, ele vai passar o link do drive para cada um assistir ao mesmo
tempo, mas em seu próprio computador (ou celular). Ele então compartilha a tela com o vídeo
que havia comentado para fazer a animação em cima. Vou me ater a alguns comentários feitos
durante os vídeos e não às narrações presentes.
Hórus comenta que não consegue dar
grau de bicicleta com os dos pés no
chão, e brinca que Loki tem que pedir
para a mãe de um menino que
aparece no vídeo para colocar a
imagem dele no filme, e que ela vai
bater nele por isso.

Loki nos mostra que Odé está logado no Free Fire e por isso provavelmente não
entrou na chamada.
Sobre o segundo vídeo, Hórus diz rindo
que até essa rua foi asfaltada antes do
que a dele, e comenta sobre o caminho
feito na gravação, perguntando por
onde Loki havia passado, porque não
tinha identificado onde era a parte com
mato onde ele passa depois de sua rua.
Loki ri quando ouve uma narração sua
dizendo que está gripado, mas não é COVID. Quando acaba ele ri e fala “Vlogueiro! Tem que
ser é vlogueiro, rapaz!”. Antes do terceiro vídeo, Hórus comenta brincando: “Vai mudar
213

alguma coisa ou vai continuar filmando o chão?”, já que a filmagem do segundo era
basicamente imagens do chão por onde Loki estava passando.
Assistindo ao terceiro vídeo - que
também é o registro do caminho que
Loki faz, mas dessa vez voltando para
casa - Hórus comenta da enxada que o
menino está segurando, mas fica mais
em silêncio por conta da narração.
Percebo que essa narração começa
descritiva, falando do lugar por onde
está passando, onde está indo, mas logo depois ele começa a falar sobre a pandemia e a
adolescência como “fases ruins” e que a adolescência em si é uma “coisa esquisita”. [Sinto ali
presente o motivo central que me fez acreditar tanto na educação audiovisual e no trabalho da
Olhares: a possibilidade de elaborar as coisas da vida, dizer sobre elas e criar a partir disso.
Imagens, narrativas, percepções sobre si e o mundo que rodeia]. Quando o vídeo acaba, Loki
está se chamando de vlogueiro novamente, e Hórus comenta sobre o tanto que ele andou e
“que só filma o chão”. Também fala “Dá vergonha, não dá? Andar com a câmera assim.”
Loki responde “e andar com a câmera assim virado pra nois? Tá doido.”, Hórus diz que anda
mas é “meio esquisito. Nós passa pelos outros assim, cê fica com vergonha.” Depois pergunta
sobre alguma menina que estava com Loki e não entendo direito sobre o que estão falando.
Aparece outro vídeo pausado na tela, com o rosto de Loki. Hórus pergunta qual vídeo
é esse, e ele responde que é o primeiro, “que gravou quando acordou”. Hórus então ri
perguntando “cê tava chorando? Acorda chorando.” Quando o vídeo roda, Loki se apresenta,
fala que está no projeto Olhares (Im)possíveis, se movimenta com a câmera [suas costas
aparecem em um espelho de guarda-roupa], fala a data e o horário (19 de março, 9h45), que
tinha acabado de acordar, sobre o que fez em sua manhã e o que ainda tem que fazer. Foi um
vídeo pensado para dar continuidade ao que ele gravou em março de 2020, que tem conteúdo
similar (com a observação de que antes eram apenas duas semanas de pandemia). Hórus então
comenta sobre o horário que Loki tinha acordado (imitando o que o outro falou no vídeo) e
que ele tinha levantado às seis e poucos.
Antes de passar os vídeos de Hórus, Arthur pergunta se queremos comentar alguma
coisa sobre eles e ressalta o que Loki disse sobre a pandemia e a adolescência. Raquel diz que
“o que ele fala tem muito a ver com o que a gente tem conversado, né? Em todos os encontros
e até a ideia do filme.” Sobre o último vídeo, comenta que quando o menino diz que vai
214

“mostrar pra vocês como que é a minha manhã”, isso é muito sobre mostrar como tem sido a
vida na pandemia, que é uma coisa que a gente tem conversado muito, “como tem sido nossa
vida nesse contexto”. Hórus comenta que se fosse uma manhã normal, ele já estaria na escola,
às 6h já estariam todos indo. Raquel também volta a falar sobre algo que Loki narra nos
vídeos, de que está acordando mais cedo para fazer as apostilas do ano anterior, e se pergunta
“será que 2020 acabou mesmo?”, lembrando coisas que também já conversamos, sobre “essa
impressão de que as coisas não mudaram, de que mudou de ano mas que tá tudo igual.” Loki
diz “É verdade… essas coisas assim são muito confusas, muito complexas, porque mudou só
de ano, só mudou o número…”
Arthur está com a pasta de Hórus aberta e ele pergunta “Só tem esse tanto de vídeo
aí?”, Loki responde “tem vídeo aí de 1 giga, carai!”. Arthur acha que o vídeo de 1 giga é ele
jogando Free Fire, vídeo de 9 minutos. O vídeo que está pausado é de Hórus subindo até a
escola Adhalmir Maia, e ele diz que queria entrar na escola mas lá está cheio de câmera - e
comenta que ainda tem gente brincando de pique-esconde lá, tampando o rosto com a camisa.
Arthur volta a comentar sobre os vídeos de Loki, que temos três vídeos dele falando sobre a
pandemia, a relação com a escola, e como ele está diferente entre os três - com a diferença de
1 ano entre o primeiro e o último.

48:08 - 48:52
Arthur: Acho que isso é uma passagem de tempo que tá muito conectada com isso que você fala no segundo
vídeo, da volta, né? Que é da adolescência. A adolescência é uma fase de acelerar o corpo, os hormônios, você
cita isso… E como que nessas três imagens, se a gente coloca elas juntas, dá essa dimensão de passagem de
tempo sem a gente precisar necessariamente dizer quanto tempo especificamente passou. Ainda que a gente vá
dizer, né? Porque tem um vídeo marcando um ano a outro. Se a gente parar pra pensar, é a mesma passagem de
tempo…
Loki: Da escola.
Arthur: … que tá na escola, no vídeo da Ronessa com a horta gigante.

Ficamos em silêncio e só consigo responder “sim” porque esse ano acaba de pesar nas
minhas reflexões. Arthur continua refletindo sobre como as imagens dão conta de mostrar que
esse tempo passou, e diz que podemos colocar uma das várias imagens que tem da horta antes
dos vídeos que recebemos da horta, “é importante a gente perceber como que o filme vai ter
essas passagens de tempo, sabe? E querendo ou não é um ano que a gente tá mesmo fazendo
esse filme, desde que a gente começou a trocar os vídeos no whatsapp. Como é um ano que a
gente tá em pandemia, um ano que a gente tá longe da escola, um ano que a gente tá… preso
em casa”. A partir disso ele faz a ligação com outro vídeo de Loki que tem um comentário
parecido sobre a casa ser prisão, e relembra que quando vimos imagens da escola, Loki e Odé
falaram “que saudade da prisão”.
215

50:10 - 51:00
Loki: (risos) Mas era uma prisão… mais ou menos né…
Arthur: É… prisão livre né? Pode entrar e sair, tem hora pra entrar e hora pra sair. Tá livre. Acho que a casa tá
mais prisão que escola, que teoricamente a gente não pode sair hora nenhuma.
Hórus: Eu tava vendo lá… é crime os professor deixar os aluno depois do horário, tá? (risos) Deixar nois muito
tempo depois da aula…
Loki: Vai denunciar procê ver!
Hórus: Não dá nada… Eu não, não tá me prendendo mais.
Loki: (risos) Agora só o governo só, toque de recolher.

[Quantas camadas essa provocação de Arthur e os paralelos entre isolamento, prisão,


escola… Às vezes nem consigo acompanhar direito as conversas que vão de um lado para o
outro.]
Hórus então comenta que baixou o Conexão Escola [aplicativo do estado de Minas
Gerais] e Loki o lembra que precisam entregar as apostilas todas até dia 30 de abril, esse mês.
Ele também fala que está estudando à tarde e à noite, e que à tarde faz uma semana inteira de
atividades. Hórus fala que quer ver os vídeos e, antes de passar, Arthur pergunta “Qual a
principal diferença entre escola normal, indo lá, e da escola na pandemia, pra vocês?”, Hórus
não entende e ele repete, explicando melhor, finalizando com “o que é mais diferente para
vocês?’.
52:52 - 53:54
Hórus: Tudo, porque ficou muito ruim depois que a escola fechou. Tá muito ruim.
Loki: Não entendi não, Arthur, minha internet bugou.
Arthur: Explica aí pra ele, Hórus.
Hórus: (risos) Eu não entendi… Não sou professor ainda não. É… O que ele falou, gente? Até esqueci, ó! viu?
É… Falou que … Como que… O que que mudou… Qual foi a maior coisa que mudou com a escola fechada,
quer dizer, com a escola aberta, e agora com a escola fechada? O que que mudou? O que que mais mudou?
Loki: Da gente não ir pra escola, uai…
Hórus: Eu acho que mudou as atividade ruim aí agora que não dá pra gente estudar direito, não. Porque com…
pelo menos com professor, os professor passava raiva mas eles ensinava a gente, aí a gente aprendia mais fácil.
Agora tá horrível… Agora vai todo mundo lá pra aquele aplicativo lá… Brainly, pegar resposta.
Loki: É lógico.

Raquel pergunta para eles se acham que os professores estão passando mais raiva
agora ou presencialmente, e os dois respondem que presencialmente, “é lógico que passa, nós
é chato.” (Loki). Hórus começa a rir e conta de uma professora “que usava até caixinha de
som pra falar” e continua rindo ao falar que ela usava um microfone e caixinha de som para
gritar com eles. “Os menino também é atentado”, diz de uma forma um pouco mais séria, e
diz que os professores não conseguiam dar aula, e apenas uma professora conseguia que todos
ficassem calados. Arthur pergunta por que e Hórus diz que “os menino não tem nem como
competir com ela, entendeu? os menino ficava na falazada lá” , Loki diz “ela não gostava de
mim nem a pau” e “ela dava tirada na gente”, Hórus continua explicando: “é, uai, não perde
não…. e assim, ela não ofende a pessoa… ela tá falando ali e cê tá só que… cê não tem outra
216

maneira. Cê tem que ficar quieto porque ó… Mas no caso não é o meu caso, é o caso dos
outros.”
Eles continuam, juntamente com Olga, conversando sobre alguns professores da
escola. Hórus diz que todos os professores são bons, mas os alunos que não deixam eles
darem aula, também conta que foi trabalhar na casa de um cara que estudou pra ser professor
de matemática, mas “o que ele viu, como os alunos se comportam dentro da sala de aula, ele
nem quis não.” Arthur seleciona um vídeo para assistirmos, Hórus exclama “três minutos de
vídeo, crendeuspai!” (eu rio nesse momento porque o vídeo é dele), então dá o play.
Assim que o vídeo começa, ouvimos a
música Freio da Blazer, do rapper L7NNON,
e Hórus diz que o volume está bem alto, que
nem no celular estava assim. Vemos então
seu ponto de vista subindo a rua, olhando
para a paisagem, para o chão, fazendo
carinho em um gato. “Hórus dos animais”,
brinca Loki. Então no vídeo percebemos que ele está chegando na escola Adhalmir Santos
Maia, e outra música começa, Debochando da Mídia, de MC Maneirinho. Hórus então
comenta que são as músicas que ele tinha baixado no celular.
O segundo vídeo começa com um toque de funk, Hórus ri enquanto fala “Não põe essa
música não, vei! Tira, tira!” e Loki
também: "Tira, tira!”. Tento entender
qual música está tocando, e Hórus fica
se explicando que está ouvindo essa
música porque só tinha as últimas que
havia baixado. Loki está cantando
algumas partes, dançando, e Hórus
parece estar meio constrangido pela música, enquanto eu, Raquel e Olga estamos tranquilas só
observando o vídeo - inclusive mexo o corpo no ritmo da música em alguns momentos. Pelos
barulhos do próprio vídeo não consigo entender muito bem o que a música fala, e porque
Hórus continua reclamando que ela está tocando, e as imagens mostram ele andando na rua,
muda de perspectiva e se mostra, pega a câmera e corta de forma repentina.
217

O terceiro vídeo é bem curto e mostra


Hórus comprando biscoito por entre o
portão de uma vendinha. O áudio é a
dona do lugar explicando o decreto
municipal que fecha o comércio - no
final a perspectiva muda e ele se filma,
falando sobre o fechamento do comércio
também. Quando o vídeo termina Hórus conta sobre um lugar que recebeu multa duas vezes
por ter vendido bebida quando não podia. Ainda fala que está passando um carro de som
avisando que pessoas sem máscara vão receber multa na segunda vez que forem pegas na rua.
Arthur começa a refletir sobre o fato do menino estar falando algo importante no
vídeo, mas ter aparecido sem máscara, e quer que a gente pense sobre o impacto de, em um
filme como o nosso, aparecer alguém sem máscara. Hórus diz “Foi mal…”, mas Arthur
explica que não quer julgar ele, nem dizer que está errado, e sim nos colocar para pensar sobre
o impacto disso. Começa a falar sobre como seria passar uma imagem de pessoas sem
máscara (ele e a dona da venda) depois de outras cenas que falam sobre como a pandemia está
difícil. Depois disso, Hórus conta a história de quando foi em uma distribuidora de máscara e
o atendente estava sem. Arthur então pergunta se ele tinha ido na distribuidora para comprar
coisas para a resenha que aparece em um dos vídeos que enviou, e Hórus fica falando “que
resenha?”, mas depois diz que isso foi em outro dia. Arthur passa o vídeo em que aparece
música tocando, mesas e pessoas, Hórus diz que foi outra pessoa que filmou isso no dia, que
nem sabia do vídeo.
Em outra filmagem, que me lembra muito “Bacurau” por causa dos motoqueiros que
aparecem no filme, ele grava alguém de moto enquanto conversa com outra pessoa. Loki
pergunta “O quê?” e Hórus explica
“entregador, meu fi… Os entregador vai
tudo lá, bobo.” “Caô que o cara foi lá na
Geladinha”, responde Loki. E Hórus rebate:
“Ó, esses cara aparece e sobe lá direto… Os
cara fica dando grau nessa rua aí.”
218

Quando outro vídeo começa, Loki comenta


“aí antes nem era muro, ó”. Hórus também
fala “aí, viado, rua de asfalto até ali, depois
não tem”. Loki fala “nem dá pra puxar
grau nessa rua”, Hórus responde
concordando que não dá, “tem uns altos e
baixos no asfalto que avacalha pra carai” e
diz que vai arrumar sua bicicleta e levar para a roça.
Antes de começar o vídeo que mostra Hórus jogando Free Fire, Loki diz que se emprestar a
câmera de novo pra ele, faz melhor. Hórus diz que é porque ele tem um emulador no
computador e Loki brinca “eu sou cinco dedos ainda”, e posiciona a mão e os dedos como se
segurasse um celular ou um controle, Hórus responde “meus dedo dá câimbra, não guenta
não”.
Assim que o vídeo começa vemos ele
jogando, frenético e com bastante
barulho do celular. Nem consigo
entender o que ele e Loki conversam, só
quando Hórus comenta que estava
usando tripé nessa filmagem. Ou
quando Loki diz alguma coisa e Hórus
responde “daqui a pouco vamo x1… pode vir de emulador sô, cê não vai aguentar não.”.
Depois de quase 2 minutos que estamos assistindo, Hórus pergunta para Arthur quanto tempo
esse vídeo demora, que se quiser pode adiantar. Arthur responde que ele tem 9 minutos. Loki
começa a rir e Hórus o desafia de novo para jogar, depois diz que esse era o primeiro jogo do
dia, “dedo tava garrando demais” e comenta outras coisas que acontecem no jogo. “A bola da
câmera bem no meio da tela, presta atenção”, ele diz sobre o reflexo da handycam no celular.
“É que cê tava no sol, aí deu reflexo”, Loki responde. Hórus então diz que deveria ter gravado
a tela do celular e mandado, não filmado assim que ficou ruim, e reclama de como ficou a
imagem. Ele segue dizendo que para fazer um vídeo melhor deveria ter captado a tela, e
comenta sobre o barulho dos vizinhos que aparece. Quando Hórus “olha a cagada, Loki,
presta atenção.” sobre algo que vai fazer no jogo, Arthur pausa o vídeo.
1:17-57 - 1:19:06
Arthur: Eu queria comentar sobre essa imagem, esse momento. Além de ser super interessante esse reflexo no
celular, que eu acho que tem tudo a ver com várias coisas que a gente fala aqui, né? Porque cês falam muito do
Free Fire, eu fico pensando até que essa imagem pode ser até…
Loki: Free Fire é jogo de corno!
219

Arthur: Pode ser até uma ima… Porque quando a gente manda um filme pros festivais e tal, a galera geralmente
pede “mande 3 fotos do filme”, sabe? E eu acho que essa pode ser. Só que eu acho que aqui tem uma coisa muito
legal na hora que começa… é essa mensagem aqui do jogo ó: “a zona segura vai diminuir em 1:40”, eu acho que
tem super relação com COVID, né? Esse ambiente seguro, a distância segura, o espaço seguro, sabe? Acho que
tem uma mensagem aí meio subliminar mas…
Hórus: É… Então vou gravar a tela do celular, que vai ficar melhor, e depois eu mando.
Arthur: Mas na tela do celular não aparece você refletido nela, uai…

Hórus responde que é só ativar a webcam e gravar a imagem da câmera, Loki começa
a falar “Hórus não sabe gravar não” e ele responde “Saiu meu vídeo, só porque eu ia fazer
aquilo ali…” Nesse momento, Arthur avisa que Black n444 vai entrar.

Também comenta sobre um frame de um


vídeo que gostou, em que Hórus começa a
filmar antes de tirar a tampa da câmera, e
quando tira a tela preta se transforma em
uma imagem superexposta (estourada).
“Fica parecendo início de filme, como se
fosse efeito especial, mas não é, sabe?”, diz
Arthur. Hórus responde “É, porque não ficou focando, aí deu a saturação ali.” Arthur
cumprimenta Black n444 e Hórus diz “Atrasado…”. Já que ele entrou, também vamos assistir
suas filmagens. Antes disso, assistimos a mais um pedaço do vídeo de Hórus jogando Free
Fire porque ele queria mostrar uma parte em que mata outro jogador.

Antes de começar o primeiro vídeo de


Black n444, ele pede para ignorar sua voz
e para tirar o áudio. [Percebemos que tem
alguém com ele, e às vezes conversam,
mas não sabemos quem é] Arthur
responde: "Como que eu vou tirar o áudio,
uai?” e Hórus fala “É memo, até o meu
que passou aí teve áudio.” Black então responde “eu abaixo o volume do meu telefone e
pronto, aí.” Quando o vídeo começa a rodar ele fala “Gravei meu pé ainda, mano, como
assim?”. Na filmagem ele está subindo uma rua, e inclusive aparece Hórus trabalhando.
Mostra seu ponto final e segue andando, ele comenta na chamada “Tá bom, Arthur, nós já
entendeu já, pode pular, pronto”. Hórus responde “Mas cê não cortou não? Cê falou que ia
cortar, seu destino é lá em cima.”, Black fala de novo “Não, pula, pula, pula!”, e Hórus ri.
Parece que a pessoa que está com ele comenta alguma coisa e Black responde “Quer ver o
220

que, DG? Tem nada de ver não! Vai jogar Free Fire aí!”, e depois “Pé sujo… Mais limpo que
o seu! Pé do pai é o pé limpo.” Enquanto seu vídeo passa, ele continua conversando com a
pessoa que está com ele, mas não consigo entender, e então ele diz “Nó mas não chega
nunca?”, e depois consigo entender que está explicando para a pessoa que se gravou subindo a
rua. Quando ele chega no alto da rua, acaba o vídeo.

Na segunda filmagem, Black n444 está


subindo uma escadaria. Hórus comenta
sobre o panfleto que está no chão, que é de
provedor de internet. Quando aparece
Black andando por outra rua, Hórus fala
“Nó, quando a gente passa ali de bicicleta

dá até…. fica assim ‘nó, vai furar meu


pneu!”. Loki brinca que ele só tem
bicicleta velha. No final do vídeo aparece
Hórus sentado em algumas manilhas, e ele
explica que estava esperando para colocar
no lugar. Loki pergunta se ele estava
carregando aquilo, e a resposta é que
estavam descendo de dois em dois. Black
fica falando “Só no pão com salame…” e quando Arthur procura por outro vídeo, o menino
diz “Tá bom, Arthur! Nós já entendeu já… O resto tudo pode ficar em off.” [Fico me
perguntando porque ele não quer ver suas filmagens.] Hórus diz: “Não, vamo ver… É pra ver,
é pra ver.”
No último vídeo Black n444 está subindo
a rua da Escola Adhalmir Maia,
explicando que estudou lá, a rua, a escola
fechada. Hórus comenta: “não tinha esse
portão quando nós estudava lá.” A música
do vídeo está alta, Black repete o que diz
no vídeo “música aleatória na casa dos
221

outros” e Hórus diz “o sonzão das mulher pocando”, também pergunta porque Black não fez
entrevista com duas pessoas (que não entendi quem são). Black reclama de novo com Arthur
“Tá bom, meu fi!” e começa a rabiscar na imagem.
Depois de alguns segundos ele diz que
sua internet vai cair e, “3,2,1”, Hórus diz
que é mentira e pede para ele excluir os
rabiscos da tela antes de sair [pelo o que
entendi ele estava na rua chegando em
casa]. Os meninos comentam sobre os
barulhos de respiração e dos passos que
aparecem no vídeo. Hórus diz que eles filmaram a mesma coisa e fala que tem que ser pago
porque aparece nos vídeos que Black gravou. Também brinca “a casa da minha sogra” quando
Black está mostrando a casa de sua tia, e Arthur pausa o vídeo antes da tia (ou prima) aparecer
porque ela disse que não queria aparecer - e diz que não precisamos ver juntos, já que não vai
aparecer no filme. Arthur também diz que precisamos ir para a última rodada de comentários
porque já são oito da noite. “E aí, o que vocês acharam? Que conexões dá pra fazer, que
conexões não dá pra fazer?, ele pergunta.
Eles não sabem muito bem o que dizer, e Hórus comenta que é tanta coisa que nem
conseguiram ver tudo, que podemos ver amanhã, mas se lembra que não temos reunião outro
dia da semana. Loki então começa a falar de questões da escola, e Hórus diz “vamo falar do
filme, falar de escola não”. Loki responde “mas o filme é da escola, uai” e ouve dele “não, é
do ano 2020, tem nada a ver com escola não, tem a ver com pandemia.”. Depois começam a
falar sobre a vacinação. Quando Hórus diz “Ô Arthur, não dá pra fazer uma reunião amanhã,
não? Pra nós terminar de ver”, Arthur pergunta se ele quer ver todos. Hórus “Ah não, cê vai
falar ‘toma o link aí e cê vê’, mas vamo fazer amanhã, Arthur”. Arthur responde “Uai, se
vocês vierem a gente faz.” e Loki diz que não é pra ver todos. Nesse momento Arthur inverte
a relação de quem decide o quê e fala para os meninos avisarem com antecedência caso
queiram fazer outra reunião, e que ele pode fazer uma outra seleção para a gente ver, e sempre
ficar no tempo de 1h ou 1h30 porque se não fica cansativo. Hórus diz “Fica não, melhor do
que ficar na escola.”
Para finalizar a conversa, Arthur os lembra que não terminamos de fazer o filme, então
eles podem enviar outras imagens que queiram colocar. Ele volta a perguntar sobre a live no
Google Maps, para ser feita no canal de Loki, e conseguirem marcá-la. Também diz que se
quiserem receber a câmera de novo, devem pensar o que vão gravar, e precisam avisar com
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antecedência para organizar isso. Hórus diz que quer gravar com a GoPro, jogando a câmera
dentro da água. Loki e Hórus ficam debatendo sobre a live, e Hórus interrompe a conversa
falando para conversarem no Discord depois dele jantar. Arthur finaliza dizendo “Por último,
mas não menos importante, usem máscara”, enquanto sorri.
Depois do término fico pensando que o fato dos meninos não pararem de falar
enquanto os vídeos passam - mesmo quando tem narração - sempre confere uma “versão
comentada” das imagens. A interação com as imagens é rápida, interativa e apresenta outras
camadas de sentido para o processo de filmagem e decupagem. Existem as imagens originais
e existem as imagens comentadas, fruto do contato e reflexão sobre o que foi filmado. Eles
não deixam de criticar, contar histórias e falar sobre suas impressões. É o react em tempo real,
algo caótico e recheado de possíveis interpretações.

27/04/2021
vídeo de 52 minutos
objetivo da reunião: conversar sobre as imagens feitas com as câmeras ou ouvir o funk
“Favela cartão-postal” e indicar cenas a serem filmadas para o clipe.
participantes: Arthur, Thamira, Raquel, eu, Loki, Hórus.

Já nos preparando para a diária presencial de filmagem, Arthur conversa com Hórus
sobre alguns detalhes. A previsão é que aconteça na segunda quinzena de maio, durante um
dia inteiro, revezando entre duplas para serem gravadas e se deslocando com um carro caso
haja necessidade. Vamos produzir um clipe para a música e nessa reunião compartilharemos
algumas ideias do que pode ser filmado.

04:03 – 04:25
Hórus: Eu tava vendo aqui... tem um monte de cartaz assim lá na Barra, os povo tão pedindo vacina pro povo.
Pixaram aqui em frente aonde vai ser o supermercado BH, pixou ali... E pixou ali na Chevrolet a mesma frase.
Arthur: E qual que é a frase?
Hórus: Vacina para o povo ou pra o... É, é para o povo mesmo... Eu acho.
Arthur: Cê não consegue fazer foto ou filmar isso não?
Hórus: Isso que eu pensei… Vou levar meu celular e tentar filmar.

Então, Arthur pergunta se ele quer receber a câmera de novo para fazer isso, e a
resposta é que sim, então ele e Raquel reforçam que o menino deve usar máscara quando for
sair. Hórus concorda e fala sobre os casos próximos de pessoas infectadas. Loki também entra
na reunião, mas está sem microfone. Hórus começa a falar sobre outra pixação que viu, mas
não consegue lembrar a frase completa, só fala que é algo como “deus é preto (ou negro) e
não sei o que lá…”, “um negócio assim racista”. Loki diz que conhece a pessoa que fez isso.
223

Nós não conseguimos entender qual era a frase ao certo e qual era o problema dela, então eu
digo “tira uma foto lá pra gente, por favor… pra debater”. Eu, Raquel e Arthur ficamos muito
curiosos.
Depois de reforçar para Loki sobre a possibilidade da produção comprar um novo fone
ou microfone para ele, Arthur explica como será a dinâmica do dia: ouvir a música do filme
juntos com as câmeras desligadas, enviar no chat as sugestões para as cenas e depois
conversar sobre elas. Ele também diz que podemos enviar quais ideias quisermos, pois no
final as cenas muitas vezes são curtas, então precisamos de muitas.
Ouvimos a música três vezes, e Arthur comenta que Hórus não sugeriu nenhuma cena
no chat. Ele então diz que precisamos fazer o videoclipe “mas o cantor não vem”, então
Arthur responde que “tem como ter videoclipe sem cantor”.

20:46 – 22:21
Hórus: É igual tá falando aí... Pega a visão do menor sonhador... É meio que, as pessoas igual, tá falando muito
de favela. As pessoas que tá na favela sempre vê ali é... Como se diz, passa uma moto ali na rua e ‘Nó, um dia
vou ter e tal...’, fica imaginando assim uns bagulho assim, entendeu?
Eu: E como cê acha que podia ser uma cena assim, que passa essa ideia? Do sonho, e pá…
Hórus: É… aí tem que ser bem criativo.
Eu: Eu fiquei pensando em alguém tipo numa janela, sabe? Não falei não porque pensei depois que tinha
acabado…
Hórus: Eu acho que é mais daorinha igual tipo... Passa alguém na rua assim, alguém tá ali sentado . Alguém
pequenininho sentado ali imaginando, aí depois coloca assim... ‘Tantos anos depois’. Aí é ele que tá lá passando
com a coisa que ele tava querendo, entendeu? tipo assim…
Eu: Uhum.
Loki: Acho uma boa também…
Hórus: Ó, arrumou o microfone.
Loki: ….Num sei o quê favela... Aí dá pra filmar lá da geladinha assim o...
Hórus: Tem foto de lá.
Loki: …..o Pocinho todo assim. Num sei o quê favela, tá ligado? Aí passa o Pocinho assim.

Depois desse diálogo, Hórus fala para Loki ver o vídeo que ele fez nos stories. Loki
responde que já viu, então o outro diz que não apareceu para ele. Arthur então pergunta para
os meninos se eles acham que no dia da filmagem do clipe deveriam estar com “roupa normal
do dia-a-dia'' ou "com uma roupa mais produzida”. Loki responde que roupa do dia-a-dia,
“pra mostrar a roupa que a gente vive”. Hórus então diz que não entende o que seria roupa
mais produzida, ou o que a roupa tem a ver. Arthur responde “roupa mais produzida, roupa de
clipe, ou sei lá… roupa de sair.” e explica que o “mais produzida” é no sentido de que quando
podia sair, a gente se produz mais, se arruma. Hórus também acha que devem usar roupa do
dia-a-dia.
Loki começa a falar dos meninos que estão andando de carrinho de rolimã na rua dele,
e que logo a polícia iria aparecer. Hórus conta uma história de alguém que estava fugindo da
polícia e passou pela casa dele, pulando o muro. Ele então nos pergunta se alguém viu seu
224

novo vídeo no canal de youtube, eu responde que não e peço para ele enviar o link. Loki
também pergunta porque não estamos falando nada. Ninguém o responde, e Hórus continua a
falar de seu canal - e também sobre o de Loki, comparando números de acessos e likes.
Então começa a falar sobre como funciona a monetização do youtube, quantidade
necessária de visualizações e valores. Segundo ele, depois que você começa a receber, a cada
mil visualizações são em torno de 20 reais. Eu me espanto e digo que achava que era bem
menos, ele diz que achava que era bem mais. Também falo que o Spotify paga bem pouco, e
ele comenta que normalmente os youtubers não vivem só do dinheiro do canal em si, e quem
fica famoso no Youtube vai pro Instagram também. Loki então fala que o que dá dinheiro é
Twitch. Eu comento que se você sabe fazer um stream bom consegue ganhar, e que também
estou vendo DJs ganharem dinheiro pela Twitch. Também conversamos sobre as formas de
receber pelo Instagram - se é por patrocínio ou diretamente pela plataforma.
Arthur pede para Loki indicar lugares para filmá-lo dançando, ele diz que não sabe.
Arthur então pergunta para os meninos seus cinco lugares preferidos. Eles citam a Geladinha,
a quadra do bairro, o Horto dos Contos, a UFOP, a praça, a Cachoeira das Andorinhas, a
escola, sua casa [Hórus]. Arthur então diz “E aí no Pocinho? Por que às vezes a gente tá
falando lugar, e vocês tão imaginando uma coisa muito grande… Mas lugar pode ser uma
coisa menorzinha, do tipo ‘o banquinho da praça tal’...” Loki fala a Geladinha novamente, e
Hórus responde que não tem muita coisa no bairro, que normalmente vão para a quadra e
quando tem que fazer alguma coisa, “tipo jogar um truco”, eles ficam na rua mesmo, ou no
quintal da casa de alguém. Então Arthur pergunta “qual rua, qual quintal da casa de quem” e
Hórus diz que na rua de sua casa, perto de um poste, é onde iam jogar truco. Arthur dá a ideia
de encenarem um jogo de truco, mas Hórus reclama que ficaria esquisito com o
distanciamento de um metro, e comenta que todo mundo ficaria pegando as cartas.
Depois disso, ele conta uma história que aconteceu com ele. De quando estava
carregando areia na obra e achou uma bolsinha que havia sido derrubada por uma moça que
passou na rua. Segundo ele, a moça voltou chorando depois de um tempo e buscou a bolsinha,
sem cumprimentá-lo em nenhum momento. Ele não quis mexer na bolsinha, mas ficou
observando e disse que a moça estava envergonhada ao voltar. Ele também comentou que
achou tudo estranho porque parecia que estava chorando, acha que ela estava envergonhada
por não ter cumprimentado e ele estava próximo da bolsinha “como se tivesse pegando pra
ela”.
Arthur pergunta para Loki se aconteceu alguma coisa esquisita na quarentena dele, e
ele diz que nada. Arthur volta a perguntar, dizendo que depois de um ano de pandemia
225

alguma coisa tem que ter acontecido. Hórus fala “nem ele sabe”. Loki responde de novo que
não aconteceu nada. Hórus expõe que o outro terminou um namoro, “ficou chorando o dia
inteiro” e faz piada disso. Loki xinga ele. Ficamos em silêncio e eu penso como é difícil falar
de si mesmo, principalmente na adolescência, e como é mais fácil jogar para o outro isso.
Arthur volta a perguntar se querem falar mais alguma cena para o filme antes de
terminar a reunião, “ou alguma ideia, alguma coisa que cês tiveram para o filme”.
39:51 – 40:14
Hórus: É… Pra isso eu acho que a gente tem que tentar fazer os conteúdos. Acho que a gente tem que começar a
filmar assim e aí através da filmagem ali a gente tem mais uma inspiração assim pra pensar o que que pode
vim... Igual, a gente tá filmando alguma coisa ‘Ah não, aí eu já posso filmar aquilo ali’... Pode servir pra fazer,
entendeu?

Também comento para eles prestarem atenção nos lugares quando tiverem passando,
para ter mais ideias. Hórus concorda que quando a gente for nos lugares durante as filmagens
vamos pensar em outros e termina falando “vai dar certo, preocupa não.” Eu e Arthur dizemos
“já tá dando”. Então Arthur confirma que Hórus tem que falar com Raquel para combinar o
recebimento da câmera e pergunta para Loki se ele quer receber de novo. Ele responde que
queria se filmar jogando e Arthur responde que isso pode ser melhor para ser feito durante a
diária de gravação, que o cameraman pode filmar eles.
Hórus pergunta se será só um dia de filmagem e Arthur diz que é muito tempo.
Quando o menino fala que vai ser difícil juntar todo mundo, Arthur responde que será
marcado em um dia que todos puderem participar. Hórus parece preocupado com esse dia de
filmagem, e não entendo direito se a preocupação é pelo tempo, se é pela distância com os
lugares, então digo para ele que por isso é bom a gente pensar tudo antes, para ter um roteiro
de filmagem. Raquel diz que nos próximos dias podemos enviar no grupo outras ideias para a
filmagem, e concordo dizendo que é melhor pensarmos tudo junto. Hórus pergunta de novo se
vamos ver o vídeo de alguém e Arthur coloca uma filmagem realizada por Black n444, mas
diz que é melhor enviar o link da pasta para ele assistir em casa todos os vídeos - e apontar o
que achou deles. Hórus então diz para marcar outra reunião e Arthur responde que teremos
outra na próxima semana, que também já vamos ter vídeos feitos por mais dois colegas.
Mensagens do chat dessa reunião com as sugestões de cenas [modificando os nomes]:
Alguém subindo a escadaria do lado da adhalmir maia
SUBINDO A GELADINHA
Filmar cada um que participa do filme na porta da sua casa fazendo um gesto, tipo joia, dançando
Loki na laje da casa dele q tem uma vista massa (acho q é a casa de Loki msm)
Loki dançando em várias partes do bairro pocinho
Hórus andando de skate na rua
Alguém dando grau de bike
Cena de alguém filmando quem ta dando grau
Acho que podia filmar o Black lá de cima da rua, enquanto ele ta na lateral da casa dele
Alguém mostrando um cartão postal do projeto que tem guardado em casa
226

Empinando papagaio no campão


Tempo ruim passou no caso depois que acabar o covid
Filmar da geladinha
mostrando o bairro pocinho
Jogando free fire
alguém fazendo uma foto da paisagem e postando no instagram
Loki dançando na geladinha
Quadra
ufop
horto
andorinhas
Escola , casa, quadra,
o quintal do black
rua da casa do Hórus perto do poste

10/05/2021
vídeo de 40 minutos e 12 segundos
objetivo: fazer a dinâmica do dicionário.
participantes: Arthur, Raquel, Thamira, eu, Loki.

Antes desse encontro, tivemos a escrita do roteiro entre a equipe de adultos, que partiu
de alguns eixos percebidos entre as filmagens e reuniões, e que poderiam ser resumidos em
ideias como adolescência, família, escola, território (ou periferia) e cuidado. A partir dessas
palavras, foi pensado em fazer a dinâmica do dicionário na reunião com os adolescentes, que
consiste em perguntar para eles a definição para essas ideias. Algo similar ao que já havia sido
feito em momentos anteriores - que inclusive virou filme gravado em 2017 e lançado em 2020
- e que poderia ser utilizado no Ano 2020. Para esse dicionário escolhemos: ser adolescente,
família, escola, bairro, território e cuidado.
Apenas Loki apareceu, então nos revezamos nesse jogo para perguntar as palavras e
com base nisso desenrolar outros questionamentos. No início da chamada, a mãe do menino
apareceu e Arthur conversou com ela um pouco, inclusive agradecendo por sua participação e
ajuda no filme. Nesse dia a casa dele estava bem animada, com mais conversas de plano de
fundo. Logo que entro me assusto em perceber como ele já mudou durante um ano e comento
isso, brincando sobre como é ‘coisa de tia’ falar ‘nossa como ele tá grande’.
Arthur começa perguntando se alguns outros participantes vão entrar na chamada e a
situação na escola de Loki na escola - e se surpreende quando ele responde que já está no 2º
ano do ensino médio e que em “um ano e pouco” vai fazer 18 anos. Arthur responde
brincando “tá véio” e depois diz que ele está “começando a vida adulta”. Depois disso,
explica como a dinâmica do dia vai funcionar.
14:08 - 14:25
Arthur: Ser adolescente.
Loki: Ser adolescente é uma coisa de crescimento, né?! Uma coisa de aprendizado, eu acho…
227

14:34 - 14:58
Eu: Família
Loki: Família é uma coisa de… eu posso falar a expressão também?
Eu acho que família é uma coisa igual amor...união… é… Nem toda família tem isso, mas algumas sim.
Pais...essas coisas assim família para mim é.

15:07 - 15:28
Thamira: Escola
Loki: Ah.. escola é um lugar preparativo… Acho que é um lugar que prepara você para vida. A escola prepara
você para seu primeiro emprego, para o que você quer ser na vida… para escolher o que você quer… e aprender
muita coisa também, como educação...e fazer amigos.

15:29 - 15:58
Raquel: Bairro
Loki: Ah.. bairro é comunidade né?! uma comunidade… nem todo bairro é unido, mas tem alguns que sim.
Bairro… uma coisa que une as pessoas. Porque você conhece muitas pessoas no seu bairro e às vezes você vira
até amigo delas. E é um lugar que você sente também "paz"... porque você mora naquele lugar e a sua casa é ali.

16:05 - 16:26
Arthur: Território
Loki: Ah, território eu acho que é uma coisa tipo do reino animal. Mas assim tipo… o cachorro, assim… marcar
território né, animal. Eu acho que isso daí é território. Porque quando a gente fala assim de marcar território para
o ser humano, a gente fala terreno né?! eu acho.

16:35 - 16:58
Thamira: Cuidado
Loki: Ah, cuidado é uma palavra que tem muita expressão né?! Tipo.. igual, ter cuidado. Quando a gente
fala….quando a gente vai sair...porque sempre quando eu saio minha mãe fala "ah...cuidado! não sei o que..."
isso é cuidado com si mesmo. Aí tem o cuidado que você cuida de outra pessoa. Então cuidado, eu acho que tem
muito significado.

17:02 - 17:35
Arthur: Fala mais um pouco sobre isso… Quais outros?
Loki: De cuidado?
Arthur: De cuidado.
Loki: Ah, cuidado é tipo, igual eu...eu cuido da minha avó de vez em quando né?! Quando a minha outra avó sai
para a igreja eu cuido da minha avó. Isso é um tipo de cuidado. Cuidado também é tipo quando você tá fritando
alguma coisa, não voar óleo em você, quente. Cuidado! É você ter cuidado nas palavras que você fala...para você
não falar besteira...cuidado. Então cuidado tem vários significados.

17;38 - 18:06
Arthur: E cê já ouviu falar em autocuidado?
Loki: Autocuidado é cuidar de você mesmo, não é não?!
Arthur: E como que funciona isso para você?
Loki: Cuidar de você mesmo? Ter saúde mental.. cuidar dos seus pensamentos...Não deixar por qualquer coisa se
levar. Isso é cuidado contigo mesmo. Ter higiene… é cuidar de você mesmo.

18:12 - 18:36
Raquel: Você acha que cuidar dos amigos também é um tipo de autocuidado?
Loki: Sim… você, tipo, dá um conselho pro seu amigo...seu amigo tá passando por algum problema, você dá um
conselho é um tipo de cuidado, tá ligado? Porque cada um sabe o que pensa e o que faz, os seus atos, mas você
também pode ter cuidado pelo outro.

18:44 - 19:22
Arthur: Então, pensando nisso que cê falou, vou falar outras expressões pra você. Cê já falou sobre elas, mas
pode repetir… então o que seria ter cuidado?
Loki: Ter cuidado? Ter cuidado…..ter cuidado….ah, você saber o que você vai fazer ué...ter cuidado de algo.
Tipo, ter cuidado de atravessar a rua. Não atravessar correndo. Ter cuidado de falar alguma coisa para alguma
pessoa desconhecida. Você ter cuidado…
228

19:25 - 19:55
Arthur: E tomar cuidado?
Loki: Tomar cuidado? Geralmente alguém fala pra gente né?! Toma cuidado com não sei o que...e tipo.. toma
cuidado com aquele….. sempre alguma vez a mãe da gente fala pra gente "toma cuidado com aquele menino
lá...não fica andando com ele não. Num sei o quê… Não gostei dele não'. Aí isso é tomar cuidado.

19:57 - 20:24
Raquel: E ser cuidado?
Loki: Ser cuidado é igual igual eu falei…. eu cuido da minha avó. Então eu tô indo lá para cuidar dela e olhar
ela. Então eu tô cuidando dela… então é ser… é ser de alguém, cuidar da outra. Sei lá, tô dando minha opinião.
Raquel: Mas a gente quer ouvir sua opinião mesmo (sorrindo).

20:30 - 20:57
Arthur: E ser cuidadoso?
Loki: Ah, ser cuidadoso é tipo ter cuidado, aí. Ser cuidadoso é… Você ser cuidadoso e escrever uma… Alguma
coisa, tipo você uma redação, que é uma coisa chata né?, Aí você tem que ter cuidado pra escrever a redação
porque cê sabe que se você fazer errado você vai tirar nota ruim.

Nesse momento, Raquel lembra dele ter falado que cuida da avó, então pergunta sobre
outras pessoas e também coisas que ele tem mais cuidado na vida.
21: 17 - 21:40
Loki: Ah, eu acho que eu tenho mais cuidado comigo mesmo né?! e com meus bem material né?! Igual tem um
ditado popular que fala que quando você morre você não vai levar nada, mas de qualquer jeito você tem que ter
cuidado com seus bens materiais porque a coisa é sua né?! Então eu acho que eu tenho cuidado comigo mesmo,
com meus bens materiais e com minha família,

21:46 - 22:05
Arthur: E quem você acha que cuida de você?
Loki: Cuida de mim? Minha mãe. [silêncio] Minha mãe… e as pessoas que moram aqui dentro de casa, né? Eu,
minha mãe, minha irmã e meu irmão.

22:09 - 22:41
Arthur: E por que que o cuidado é importante?
Loki: Tipo, não é que cuidado é depender de outra pessoa… Mas cuidado é você gostar de uma pessoa e querer o
bem dela, aí.
Arthur: E por que que isso é importante?
Loki: Pra…. porque é um sentimento do ser humano? Sei lá. Cuidado é uma coisa de dentro de nós, pra gente
querer o bem das outras pessoas?

23:00 - 23:28
Arthur: Cê acha que a pandemia tem alguma relação com cuidado?
Loki: Sim, eu acho que a pandemia tem muita relação com cuidado. Porque eles falam para você usar máscara na
rua, álcool em gel. Tomar cuidado… não ficar perto de… se você, tipo, sai você não ficar perto de idosos, que
eles são grupo de risco, essas coisa assim. Então a pandemia eu acho que tem muito a ver com cuidado sim.
Cuidado da higiene…

23:39 - 24:09
Arthur: Você acha que a escola cuida?
Loki: Em que sentido?
Arthur: Você se sente cuidado na escola? Você sente que está sendo cuidado quando está na escola?
Loki: Ah eu acho que quando a gente tá na escola a gente está sendo cuidado...querendo ou não. Porque os
professores ensina a gente também né?! E cuida da gente...porque eles quem mandam ali na sala… então é um
tipo de cuidado sim. Eu acho, num sei…

24:38 - 25:02
Arthur: Como… que você se sente quando você é cuidado por alguém?
229

Loki: Ah, eu me sinto bem, né? Porque cuidar também é um ato de também amor. Então se a pessoa tá te dando
amor você tem que retribuir com amor… Eu acho que cuidado é um sentimento bom, querendo ou não.

Arthur comenta que é legal o que ele disse porque cuidado é um sentimento, mas
também é uma ação, uma prática.
25:19 - 25:30
Loki: Sim, cuidado pode… igual eu falei… Eu não sei se eu falei foi cuidado, mas ele pode ser interpretado de
várias formas… como um sentimento e como uma coisa de ação.
25:36 - 26:45
Arthur: Cê acha que cinema… vídeo… audiovisual… tem alguma coisa a ver com cuidado?
Loki: Sim! Igual eu gosto muito de editar, essas coisas… Num gosto muito de editar não porque é bem… mas eu
edito pro meu canal. Você tem que ter aquele cuidado pra editar, pra ver se o vídeo tá ruim ou não, se o público
vai gostar do seu vídeo, o que que cê tá fazendo, qual que é o tema que cê tá fazendo…. Eu acho que isso requer
cuidado sim…
Arthur: Um cuidado com as imagens?
Loki: Sim, um cuidado com o que você está fazendo e o que você vai entregar para seu público.
Arthur: E como que é que a gente cuida de uma imagem?
Loki: Ah, sei lá… Tipo, se for uma imagem de paisagem você cuida dela colocando, sei lá, mais verde,
colocando o céu mais azul, nuvens, essas coisa assim.. pra ver o que seu público está gostando.

Arthur então diz que fazemos imagem o tempo todo, e quando vamos editar elas
podem se perder, por isso pergunta “como ter cuidado para uma imagem não se perder?”
27:09 - 27:34
Loki: Ah, isso daí depende muito dos seus aparelhos né?! E como você tem que cuidar do… Tipo, você pega um
arquivo e coloca o seu arquivo na nuvem, isso já é um tipo de cuidado com o seu trabalho que você tá fazendo.
Você edita o trabalho, salva ele, pra você não perder ele. Isso depende do quê você tá editando e como você vai
editar.
Nesse momento, eu digo que ele falou sobre cuidado na edição e pergunto se ele
também vê o cuidado na filmagem ou mais na edição.

27:53 - 28:14
Loki: Eu acho que nos dois tipos tem que ter muito cuidado, porque um complementa o outro… Se você filmar
mal, sua edição pode ajudar. Se você editar mal, sua foto pode ajudar, entendeu? Isso aí depende muito dos dois
lados… eu acho que um pode complementar o outro.

28:19 - 29:03
Eu: E cê acha que todo vídeo que cê assiste tem cuidado? Você consegue ver o cuidado em todo vídeo? O que cê
acha, assim?
Loki: Não, nem todo vídeo que eu vejo assim tem cuidado não… tem uns que só pega, começa a gravar, para de
gravar e já joga na net já. Eu acho meio ruim. Tipo, eu gosto muito de ver edit no Tik Tok, aí eu vejo muito edit
lá, que eu gosto de ver de Free Fire, essas coisa assim, de anime. Aí é interessante, essas já têm mais cuidado.
Mas tem umas que o vídeo todo embaçado, aí só pegou o vídeo e colocou lá… aí é ruim. Então nem todo mundo
tem cuidado com suas gravação.

Arthur comenta que ainda às vezes tem cuidado com a imagem mas não tem com o
áudio. Loki responde que é como ele falou, um complementa o outro - e repete a relação disso
entre gravação e edição. Raquel então diz que também pode ser que “a falta de cuidado com
um pode atrapalhar o processo do outro e você não conseguir o trabalho que você esperava
por aquela falta de cuidado também.”
230

29:45 - 30:02
Loki: Sim… igual uma coisa única assim tipo jogo… cê não consegue fazer o mesmo lance certinho, igualzinho
do mesmo jeito. Então se você fez aquele lance e saiu ruim, você vai demorar muito pra conseguir fazer outro e
nem mesmo assim vai ficar igual.

A partir disso, Arthur muda o rumo de filmagens de jogos para filmagens de pessoas e
pergunta como Loki vê a questão do cuidado com a imagem do outro.

30:33 - 31:08
Loki: Ah, isso daí vai do cara que tá filmando né… Porque tem cara que filma e tá nem aí, posta lá, não pergunta
se pode postar ou não… Mas tem uns outros que já tem, né, com aquela… identificação pessoal, sei lá. Esses
negócio lá de dar direito autoral, esses trem chato aí… Aí isso daí vai muito do cara que tá filmando. Eu acho
que cada um vai de si. Se o cara tiver respeito pela outra pessoa, ele vai perguntar. Se não tiver, ele vai postar e
boas.

31:17 -
Arthur: E… por último também que a gente só tem 9 minutos de reunião agora, que a gente não tá numa conta
paga hoje. E também porque a gente já te perguntou muita coisa né? Muito chato ficar respondendo, muita falta
de cuidado ficar interrogando as pessoas. Mas… como que você acha que é um cuidado com a cidade? Um
cuidado com as coisas que são públicas?
Loki: Ah, isso daí vai de cada cidadão também, igual a coisa da… o negócio da filmagem. Tem pessoas que joga
lixo na rua, polui… É, negócio… pixa as coisa que não pode. Porque tipo aqueles negócio que põe pra tampar
construção pode pixar… mas igual pixar uma coisa pública que colocou lá, sei lá, uma estátua que tá lá há muito
tempo, não pode, carai. Aí isso aí vai do cidadão também ter um pouco de senso e não fazer aquelas coisa que
sabe que é errado.

Então, Arthur lembra sobre o cuidado com a horta que tiveram juntos na escola e diz
que queria saber um pouco sobre o que é cuidado com a terra.

32:41 - 33:22
Loki: Como assim, cuidado com plantas e… alguma coisa?
[Arthur balança a cabeça positivamente]
Loki: Ah, eu acho que aquilo ali é um tipo de consumo porque a gente vai plantar pra comer… Igual a gente ia
plantar na horta lá, cuidar da horta, mas a gente ia consumir aquilo. Igual aquele ditado, tudo que você planta
você colhe.
[silêncio]
Arthur: Será que tudo?
Loki: Ah, eu acho que sim….
[silêncio]
Loki: Ah, eu acho que sim. Tudo que planta, a gente colhe. Porque nada vai ficar pra trás não, tudo vai pagar. Tô
falando no sentido do ditado, no sentido dos negócio lá cê não come tudo não. Cê vai comer árvore?

Começo a rir com essa resposta e também pergunto se ele acha que cuidar da cidade
ou da terra é cuidar de si mesmo, um autocuidado.

33:45 - 34:05
Loki: É lógico, se você tá cuidando do meio ambiente que você vive, você vai ganhar… Não é que você vai
ganhar em troca, cê vai ter um ar melhor, um… sei lá. Uma cidade melhor. Igual, se você tiver poluindo o
mundo, aí vai ter lá aquecimento global… Aí quem tá se ferrando é nóis, porque a gente que mora no mundo.

Arthur também pergunta sobre o fone de ouvido do adolescente, para garantir o


equipamento para ele, e fica entre arrumar um adaptador ou procurar outro modelo. Também
dá a ideia para a gente poder fazer a live do google maps, e diz para tentarmos marcar outra
231

reunião essa semana para fazer a dinâmica com outros participantes. Cheios de reflexões e
afetações, finalizamos uma reunião que foi centrada na escuta e povoada por silêncios
confortáveis.

02/06/2021
vídeo de 2 horas e 26 minutos
objetivo: conversar sobre a diária de gravação presencial + assistir ao corte do filme.
participantes: Arthur, Raquel, eu, Thamira, Hórus, Black n444, Loki, Odé.

Na última reunião antes da diária, a ideia é assistirmos ao filme sem a parte do clipe
que ainda vamos gravar. E além disso, organizar todas as questões sobre a filmagem
presencial. Primeiramente, Arthur e Raquel explicam sobre a roteirização (feita a partir das
conversas que tivemos) e como foi necessário contratar alguém externo para fazer a
montagem. Raquel também fala da dificuldade que tivemos em fazer reuniões com todo
mundo, e por isso não daria para construirmos o roteiro e a montagem com todos do coletivo.
Por isso também será importante o momento presencial, para conseguirmos estar juntos e
decidir o que ainda falta. Vamos nos encontrar na casa de Loki e lá será nosso ponto de apoio
para a produção.
Arthur também propõe que sejam feitas filmagens na porta da casa de cada um - e para
isso iremos de carro. Ele também pergunta se os responsáveis pelos meninos vão estar em
casa porque precisamos conversar sobre mais uma coisa. Explica que todos vão receber uma
ajuda de custo, mas que no caso dos menores de idade, tem que ser na conta de algum
responsável. Loki pergunta o que é ajuda de custo e Arthur responde: dinheiro. Mas ele
também diz que não é para entenderem isso como “nós estamos pagando vocês para fazerem
um filme”, porque o projeto é deles, que estamos juntos, mas que pela primeira vez
conseguimos um recurso.
Nesse momento, Arthur explica mais uma vez como funcionou o edital que selecionou
o projeto Ano 2020. Como foi o processo de escrita do projeto, as informações que precisam
estar, quem vai receber o dinheiro, porque contratar os profissionais externos para tratamento
de som, logística, parte jurídica, a trilha sonora, entre outros que vão receber a partir da verba
que foi recebida. “E cês ainda vão dar dinheiro pra gente?” Hórus pergunta. “A gente não vai
dar dinheiro pra vocês, esse dinheiro todo que a gente tem é pra gente distribuir em tudo que
foi feito do filme, entendeu? Esse dinheiro é nosso. A gente não tá pagando pra vocês.”,
232

Raquel responde para ele. Ela também diz que se não tivesse surgido a ideia de Hórus para o
filme, Arthur talvez nem teria escrito essa proposta e isso nunca iria acontecer.

08:36 - 09:47
Loki: Então Hórus tem que receber mais, uai!
Hórus: Aumento! (risos)
[Raquel ri]
Arthur: (brincando) Se fosse assim, eu tinha que receber mais então, né não?
Hórus: Oi?
Arthur: Se fosse assim, eu tinha que receber mais que todo mundo, e eu não to recebendo mais que todo mundo,
entendeu?
Hórus: Também.
Loki: Não, você e Hórus!
Hórus: To zuando, é mentira, é mentira, é mentira.
Arthur: Gente, ó… Não falem isso nem brincando, hein, porque a coisa que a gente mais aprende aqui junto é
um outro modo de fazer cinema, que não é o modo que as pessoas fazem…
Loki: Eu acho que a gente aprende mais a ter mais, tipo… Comunicação um com o outro e ajudar um ao outro
né, porque um tá ajudando o outro.
Raquel: E assim também, não é justo que as pessoas, já que a gente tem esse dinheiro, que as pessoas recebam
proporcional pelo o que fez… “Ai, porque num sei quem vai receber mais porque gravou mais”, não! Aqui a
gente tá num grupo, sabe? Todo mundo tá fazendo alguma coisa que, independente se fez mais ou não, tem
importância pro grupo, entende?
Arthur: E assim, uma coisa que é muito importante vocês saberem, dessa vez pra esse filme a gente teve recurso,
a gente acha que a gente é um grupo que pode continuar como grupo…

Hórus então o interrompe para perguntar sobre a ida para Belo Horizonte, quando
lancharam no Burger King. Questiona se eles se juntaram para pagar, diz que tinham mentido
e Arthur conta (de novo, pelo o que ele diz) que foi uma pessoa que não quer ser identificada
que deu o dinheiro. Hórus diz que Arthur é mentiroso em forma de brincadeira, e Arthur
responde bem sério que ele não mente para eles, que é sério mesmo. “Nós tá forte, hein?”,
Loki diz e Odé entra nesse momento. Arthur volta a explicar sobre como foi a ida para Belo
Horizonte, o transporte que conseguiram mediado por um vereador e a secretaria de saúde - e
a doação para alimentação, que foi feita por uma funcionária da educação que quis ficar
anônima. Hórus pergunta se algum dia vão saber quem foi, e Arthur pergunta se é importante.
Também explica que não pode falar e que muitas pessoas que ajudam não são para aparecer, e
sim para ajudar.
Arthur continua a falar sobre como agora é a primeira vez que recebem recurso para
produzir o filme, em cinco anos de projeto. Isso possibilitou que comprassem câmeras, que
pagassem logística, montagem e edição… E que mesmo que saibam editar, “tem horas que é
legal a gente dividir essas funções, e até contratar as pessoas, pra coisa ficar mais profissional
mesmo”. Que a pessoa que vai editar faz isso junto com as nossas opiniões, “vocês vão
assistir ao filme hoje, a primeira parte, e vocês podem opinar. O filme é de vocês.” Hórus
comenta que Thamira está logada na conta do Coletivo MICA, então ela explica o que é o
coletivo e Arthur relembra que o coletivo está junto com a Olhares desde muito tempo, assim
233

como algumas atividades que fizeram, em especial a dinâmica em que cortaram as fitas de
papel e falavam sobre os caminhos.
Arthur fala sobre o histórico do coletivo desde a escola Adhalmir Maia, passando
pelas oficinas no Polivalente, o cuidado com a horta até chegar na pandemia. Segue falando
sobre todo o processo de oficinas que fizemos no atual projeto, as filmagens com as câmeras
para chegar na reflexão sobre o recurso.

18:27 - 19:54
Arthur: Olha só quantos projetos a gente já fez dentro da Olhares. A gente espera que esse não seja o último. E
esse pela primeira vez, a gente conseguiu o recurso, dinheiro. E a gente acha justo que chegue alguma parte
desse dinheiro pra vocês também, mas a gente não quer que vocês vinculem isso a dinheiro. Um: porque pode
nunca mais…
Loki: Ô Arthur, ô Arthur… Tipo assim, igual quando a gente tava fazendo lá o do Olhares Impossíveis, a gente
tava fazendo porque a gente gostava, tá ligado? A gente não achava que a gente ia receber nada em troca, tanto é
que quando cê foi…
Hórus: (brincando) Eu comecei porque eu fui obrigado.
Loki: … quando cê falou assim que nós ia apresentar, todo mundo ficou feliz, porque era uma coisa que a gente
pensava que não ia acontecer.
Arthur: E olha só, agora a gente tá fazendo outro filme já, um outro filme numa outra estrutura, né? Que é isso,
ter um recurso, poder comprar uma câmera, vocês receberem uma câmera em casa… A gente não conseguiria
fazer isso na época que era na escola, entregar uma câmera na casa de vocês, porque isso tudo custa. E agora, a
gente tem a intenção de fazer outros projetos que podem ter dinheiro, ou não. O que a gente quer falar é assim:
que a gente quer dar essa ajuda de custo e a gente quer que vocês recebam muito bem essa ajuda de custo, e que
vocês negociem com a família de vocês qual que é a melhor maneira de usar essa ajuda de custo.

Ele segue falando que não podemos dar dinheiro diretamente para eles, por isso os
responsáveis que vão receber e aí os meninos podem decidir com sua família o que fazer.
Também diz que não quer que isso seja “uma coisa para jogar na cara dos outros colegas que
nesse momento não estão aqui participando” e Raquel ressalta que a gente nem sabe os
motivos pelos quais alguns não estão participando. Hórus comenta de um menino que tinha
participado anteriormente, mas agora não quis. Arthur diz que é isso mesmo, as pessoas vão
desistindo, e que não tem problema se ele mesmo um dia não quiser fazer mais.
Também explica que o processo desse filme vai ter início, meio e fim, talvez vai
passar em festivais, na Rede Minas, e que não é para pensarem “Ah, eles me pagaram pra
fazer” e sim, que “a gente tá retornando um recurso do projeto, e vocês são parte do projeto,
logo a gente considerou que vocês devem ter acesso a esse recurso.” Hórus diz que se não
quisessem também, “todo mundo ia tá aqui de boa, ninguém ia tá cobrando”. Arthur diz que
tem certeza disso, e que fica muito feliz que não cobraram mesmo sabendo da ajuda de custo.
Os meninos começam a falar que não sabiam [mesmo que Arthur e Raquel tenham falado
disso mais de uma vez]. Raquel diz que é “distribuir o dinheiro que a gente tem pra fazer o
filme que a gente fez.”
234

23:14 - 24:31
Arthur: Olha só, pensa… Se a gente fosse contratar uma pessoa para filmar todas as cenas, a gente teria que
pagar essa pessoa, por exemplo, sabe? E olha, vocês filmaram, vocês pensaram cenas, vocês vieram em
reuniões… Se o projeto dessa vez tem recurso, a gente acha justo que esse recurso seja também distribuído com
vocês, entende? Até porque é isso, tem uma autorização de imagem, que vocês… que a família de vocês tá
assinando. De alguma forma, o que eu quero dizer… É difícil dizer isso, mas assim, esse projeto desse filme, por
a gente ter aprovado ele pra fazer, ele tem uma coisa mais… burocrática… entende? O que que é burocrática?
De ter mais regras… Não é um dinheiro também que chega e a gente pode simplesmente sacar. A gente não pode
nem sacar o dinheiro, pra vocês entenderem…
Raquel: A gente tem que fazer uma prestação de contas, mostrar pro edital, né, pro governo como que a gente
gastou esse dinheiro, entende? A gente não pode simplesmente “Ah, então vou dar…
Loki: Mas então o dinheiro, tipo assim, que a gente vai receber aí a gente pode fazer o que a gente quiser? Não,
né?
Raquel: Não, aí é seus… Aí vocês fazem o que vocês quiserem.

Arthur continua explicando que quando o projeto foi aprovado, abriram uma conta que
não podem fazer saque, apenas fazer transferência ou pagando diretamente. Exemplifica que a
comida para fazer as refeições no dia da gravação vai ser paga com esse dinheiro, também o
carro que ele vai alugar para ir com Thamira de Belo Horizonte até Ouro Preto, além de usar
para fazer o transporte no dia. Assim como o cinegrafista que vai filmar no dia também, que
ele vai emitir uma nota fiscal e com a conta do projeto será pago. E diz que a ajuda de custo é
uma coisa normal no cinema, dada para os personagens, as pessoas que participam do filme.

26:12 - 27:20
Arthur: No caso aqui, vocês são mais que personagens, porque vocês são os realizadores do filme, vocês que
fizeram. Óbvio que a gente ajuda, óbvio que a gente conversa, óbvio que a gente propõe, mas quem recebeu a
câmera foi vocês. E dessa vez, pela primeira vez ainda, sem a gente, entendeu? Por mais que a gente pudesse
mandar áudio… Enfim, o que eu quero dizer de novo, vou falar isso no domingo ao vivo, a gente tá muito feliz
com o resultado do que a gente vai ver hoje, tipo de verdade. E a gente também tá muito feliz de poder fazer essa
ajuda de custo chegar até vocês. E a gente quer que vocês recebam ela da melhor maneira do mundo, sem achar
que vocês tão sendo remunerados pra isso. A gente não quer que vocês olhem pra esse projeto numa lógica de
trabalho, sabe? Então, tipo assim, na próxima vez que a gente for falar ‘vamo fazer um filme’, vocês perguntem
‘quanto que eu vou ganhar?’, não é isso… Mas também, pode acontecer. E parece que pode ser um caminho que
a gente continue conseguindo recursos pra fazer mais filmes. Porque funciona assim: primeiro você faz um
curta…
Loki o interrompe para perguntar se o município de Ouro Preto ganha alguma coisa
com nosso filme, por falar da cidade, e Arthur explica que não tem vínculo de dinheiro, o que
pode ganhar é visibilidade. E logo cita uma passagem de um vídeo de Odé, que ele está
conversando com uma pessoa e diz que está fazendo um filme “com o pessoal da escola.
Antes era na escola, agora estamos fazendo nós por nós mesmos.” A partir disso, Arthur
comenta que o “nós mesmos” não é porque a escola abandonou a gente, e sim “porque apesar
de não ter aula, esse grupo, pequeno grupo, resolveu continuar. Olha quanto tempo a gente tá
se encontrando, sabe? A gente fez muitas reuniões, vocês filmaram, é um processo que é
muito… Cês vão ver o filme agora.” Raquel então começa a explicar que o governo tem a
obrigação de fornecer a verba para apoiar a cultura e as artes e então abrem os editais,
235

processos seletivos, e que esse dinheiro sempre acontece, e daí vem o dinheiro que
recebemos.

29:40 - 30:19
Loki: Mas tipo, eu acho muito bom a gente participar assim, mesmo que a gente não ganha nada, a gente tá
participando e tá ganhando aprendizado. E pra gente igual eu, Hórus, Odé, que gosta de gravar…. Odé nem tanto
porque ele gosta de gravar mais a tela…
Hórus: Ele tá fazendo demais, meu fi, pirei aqui.
Loki: Mas igual eu e o Hórus que gosta de gravar vlog, a gente ganha, querendo ou não, um aprendizado…
Hórus: Eu tava limpando o quarto aqui, aí eu tava vendo ali em cima do guarda-roupa, tava o certificado, aí até
embalei ele e deixei bonitinho ali que agora eu vou ter pro resto da vida… Lembrei dele ali. E aí pode virar uma
profissão.

Arthur diz que uma coisa importante - que não é um certificado - também é o catálogo
do fórumdoc.bh, que tem os nomes dos meninos, que eles fizeram o filme. Raquel
complementa que aquilo serve como comprovação de que eles fizeram o filme. E Arthur
comenta que lá tem um texto sobre o filme, que eles leram juntos [em uma reunião que eu
estava inclusive], e que depois podem ler de novo. Que esse filme foi o primeiro que fizeram
depois de uma série de oficinas, ele foi exibido nesse festival e em outros dois, além de um
online nesse ano de 2021. “Isso é um documento, vocês são as pessoas que fizeram esse
documento, sabe? Então é muito legal, porque isso vai ficar… Isso é do mundo agora, né,
deixa de ser um filme que é só nosso, que é só do projeto, e vira um filme do mundo, porque
esse filme chega às pessoas. A gente não sabe quantas pessoas assistiram esse filme”.
Raquel fala que o próprio catálogo pode levar as pessoas a conhecerem o projeto,
mesmo sem assistir o filme. Arthur também diz que começaram com um filme de quatro
minutos, agora um de 15, depois podem fazer outros, se outras pessoas gostarem podem ser
incentivados a fazer filmes maiores com outros recursos. Thamira complementa que quanto
mais experiência comprovada tem, mais chance tem de fazer um projeto maior, ou outros
projetos - e por isso é importante ter tudo.
Arthur continua dizendo que isso, “numa ordem prática”, pode ser importante para
uma vaga de emprego que busca editores de vídeo para uma televisão, por exemplo. Que já
fizeram o entre_vistas e o Benedita, estamos terminando de fazer o Ano 2020, outros dois
projetos foram escritos para próximos filmes e podem acontecer. “A gente também não sabe,
e a gente depende muito de vocês para isso, a dimensão que esse projeto pode tomar, quem
sabe a gente vai continuar fazendo filmes e cada vez mais ganhando recursos...”. Ele segue
falando sobre sonhos possíveis para o coletivo, como convidar pessoas para darem cursos
técnicos de formação, e diz que depende da gente conseguir, e de eles quererem. Explica que,
às vezes quando ele (e nós adultos) é convidado para falar sobre o projeto, as pessoas dizem
que o que é mais legal é que os meninos querem estar no projeto.
236

38:26 - 41:44
Arthur: Porque muitas vezes, o que acontece com pessoas que têm dinheiro pra fazer cinema? E essa é a
diferença do cinema que a gente faz. Às vezes a pessoa tem mó grana, chega num lugar, numa comunidade, num
bairro, fala “Ó, vou fazer um filme aqui, cê quer fazer? Tenho tanto” e no final a pessoa não convida as pessoas
pra fazer o filme mesmo, começa a mandar nas pessoas, entendeu? Então… “[Fulano], vai filmar tal coisa ou
sorri aqui pra câmera ou fala tal texto… [Sicrano], vai fazer num sei o quê.” E o nosso trabalho é um pouco
diferente, porque a gente meio que faz tudo junto… É óbvio que a gente é professor, adulto, a gente ajuda vocês,
mas a gente acha que vocês tem um espaço de liberdade aqui, né?
Raquel: E eu acho, Arthur, pra além disso… Tem uma coisa que a gente tem aprendido muito com vocês, é que
vocês tem muita coisa pra ensinar pra gente também, sabe? Por mais que a gente seja “professores” [ela faz
aspas com os dedos] aqui, né? A gente não é exatamente professores de vocês, mas a gente acredita que esse
espaço, que esse grupo é um lugar de troca, que vocês aprendem com a gente e que a gente aprende muitas
coisas com vocês também, entendeu?
Hórus: Entendi…
Arthur: É por isso que pra gente é muito importante escutar coisas como as que vocês falaram aqui hoje… “Nós
não estamos aqui por dinheiro”, “a gente tá aqui porque é legal, porque a gente aprende outras coisas”. O Loki
falou uma coisa que é muito importante: “um ajuda o outro”, a pandemia foi um momento muito difícil né? Foi a
primeira vez que depois de três anos que a gente escutou vocês às vezes falando “e aí, tudo bem?”, cês falam
“não, não to bem, hoje não to afim, hoje tô cansado"... Todas as pessoas tão assim. E a gente se sente feliz por ter
aqui, nesse espaço que agora é virtual, um espaço onde a gente pode se encontrar e falar, e conversar. Porque
nem sempre é sobre cinema, né? Nem sempre é sobre a imagem, às vezes a gente vai só se encontrar, e falar
sobre a vida, falar sobre o cotidiano. E isso também ajuda muito a gente, não é só vocês. O que a gente quer
dizer no resumo é que a gente tenta ao máximo, que foi isso que a Raquel falou e a gente é muito feliz por isso,
que nesse grupo aqui todas as pessoas possam falar, não só quem é professor, aluno, estudante, adulto, jovem,
preto, branco, homem, mulher… Que todas as pessoas que venham aqui conversar com a gente, que esteja aqui
pra fazer filmes, ou pra trocar imagens, ou pra ir pra BH, ou pra cuidar da horta, ou pra caminhar no bairro, ou
pra fazer filme na escola… Que todo mundo que chegue possa se sentir acolhido aqui nesse espaço, porque a
gente sabe que às vezes o mundo lá fora não é acolhedor com a gente né? Tira onda com a nossa cara, diz que a
gente tá fazendo as coisas erradas, diz que a gente não vai chegar a lugar nenhum, diz que a nossa vida é uma
merda, e talvez aqui a gente encontra um espaço pra gente falar “Olha, não é tão assim, peraí, existe uma outra…
Minha vida não é isso que tão me contando.” A gente pode escrever junto uma outra etapa dessa vida, sabe?
[silêncio] Vamo ver o filme que eu já to ficando emocionado.

Nós começamos a rir e os meninos falam que Arthur vai começar a chorar [eu também
estou quase]. Hórus diz que no primeiro filme fez edição, mas que para isso precisa de muita
paciência e é uma responsabilidade, que está preferindo filmar. “Cê quer ficar só na moleza,
né safado?”, Loki brinca. “E filmar é moleza?”, escuta de resposta. Nesse momento, Arthur se
dirige diretamente a Odé, que não falou nada até então, e o menino responde “tô escutando
todo mundo, tô entendendo tudo muito claro.” Arthur então diz que vamos assistir ao filme,
que se travar é para avisar. Ele pede para desligarmos o microfone e que se tiverem fone vai
ser melhor verem de fone, vão “viver uma experiência melhor”. “Se vocês quiserem mudar
qualquer coisa, vocês podem falar com a gente. A parte final, que é o clipe que a gente vai
gravar no domingo, ela tá sem imagem ainda. Então vocês vão ouvir só a música e a tela vai
tá preta. E esse filme ainda vai sofrer… sofrer assim, ainda vai ter no filme um tratamento de
áudio, que nem eu tava falando lá no início, então também vocês podem sugerir coisas do tipo
‘ai, nessa hora podia botar tal música ou nessa hora podia ter o som da rua tal’.” Raquel
também sugere que a gente desligue as câmeras para ter menos chance de travar.
237

Quando o filme começa, sinto até um frio na barriga de perceber que essa etapa está
chegando ao fim. Logo nas primeiras imagens aparecem três fotos de uma oferenda na
encruzilhada que Hórus enviou no grupo e ele abre o microfone para falar “Eu não gostei
disso aí ó.” Reflito se devo falar alguma coisa depois, já que sou a única pessoa de religião de
matriz africana e poderia explicar o que é aquilo. O filme segue e penso na quantidade de
reflexões que existem por trás de cada plano ou fala presente, mesmo não sendo uma obra
pesada em si. Foi possível aproveitar as imagens enviadas no grupo do whatsapp; áudios,
vídeos e fotos dos dispositivos; filmagens com as handycams; capturas de reuniões e imagens
de arquivo, para tentar sintetizar todas as trocas que tivemos durante esse processo.
Durante sua exibição não aparecem outros comentários e, assim que ela termina,
Hórus diz que gostou “menos aquelas fotos que eu tirei, aquela macumba lá”. Então pergunto
porque ele não gostou, e ele responde que não acha legal. Quando eu o questiono de novo,
digo que nem respondi no grupo quando enviou porque queria conversar na reunião, e ele diz
“Porque acho que não é uma coisa muito boa, não traz coisa boa… Macumba não é coisa
boa.”. Nesse momento, digo com um sorriso no rosto: “Então vou te contar uma coisa…”, ele
exclama “Ai meu deus!”, e termino a frase “... eu sou macumbeira...” enquanto rio. Hórus fala
brincando: “Desliga, Arthur, desliga!”.
A partir daí eu e ele temos uma conversa sobre o que é a “macumba”. Eu explico que
que não estou em nenhum terreiro atualmente, que já frequentei terreiros de Umbanda e
Candomblé, que minha avó é mãe de santo. Também digo que tudo bem ter medo das coisas
por não entender, mas que tem gente ruim em todas as religiões e o que mais vejo são pastores
evangélicos ganhando às custas dos fiéis e nem por isso vemos pessoas falando que é
“evangélico é religião de gente que faz mal pros outros.” Concluo dizendo que se ele quiser
tirar a imagem, todos vão conversar sobre isso, mas que eu gostaria de ter essa conversa
também.
“Por essa aí eu não esperava…”, diz Hórus. Loki, por sua vez, diz “eu acho que isso
daí é cultura, tá ligado? Isso aí é cultura de cada um”.

1:02:52 - 1:05:25
Hórus: Mas aquilo ali significa o que?
Eu: Então, eu posso te explicar o que significa aquilo, até pra você ficar mais de boa no momento que você ver
isso né? Existe um orixá que se chama Exu, ele é o orixá da comunicação, da criação, da invenção, ele é o
primeiro que come de todos os orixás, porque ele é o guardador das encruzilhadas. Então ele tá em todas as
encruzilhadas, é ele que protege os nossos caminhos, é ele que ajuda mas também coloca os obstáculos na nossa
vida para gente tomar ação. E aquilo lá é uma entrega ou para Exu ou para a pomba-gira, que é uma versão
feminina assim de Exu, então aquilo lá é ou alguém que tá pedindo uma coisa pra Exu abrir os caminhos, que ele
abre os caminhos, é o senhor das mudanças, enfim… Ou a pessoa tá agradecendo pelo o que ele fez, ou a pessoa
tá pedindo alguma coisa. A última entrega que eu fiz inclusive foi dia 31 de dezembro, pra ter um ano de 2021
com os caminhos, que eu costumo fazer entrega de vez em quando, assim… E é daquele mesmo jeito.
238

Hórus: Então… Entendi. Então pode ser coisa boa e pode ser que a pessoa quer coisa ruim. Ou não é?
Eu: Ah é, igual a gente às vezes se pega com pensamentos pedindo coisa ruim pras pessoas. Mas um dos
fundamentos base das religiões de matriz africana, tipo Candomblé e Umbanda, é que a gente faz as coisas
sabendo que tudo vai voltar, de volta pra gente. Então, tem terreiro que faz coisa ruim pros outros? Tem, igual eu
falei… todas as religiões que faz trem ruim pros outros. Mas a gente sempre faz as coisas sabendo que isso vai
voltar pra gente, sabe? Então é por isso que é muito difícil, de verdade, você encontrar gente que faz coisa ruim
pros outros porque vai falar “então, cê tá pedindo isso, mas isso vai voltar pra você”. E é sempre assim, essa
relação…
Hórus: É porque, então, tinha essa daí e fora essa, quando a gente foi, só que não deu pra eu tirar foto, tinha
outra. E outra encruzilhada com três entradas. E aí já começa aquela falazada: “nossa senhora, isso aí é coisa
ruim, vamo embora!”. Aí… eu nunca tive um papo igual aí cê tá me explicando aí agora, nunca soube o que que
era de verdade… as pessoas sempre acham que é coisa ruim.

Nesse momento eu explico que isso é porque são religiões que vêm de África, e tudo
que vem de África e não está dentro do Catolicismo, da ideia de Cristo enquanto salvador - e
por nós morarmos em uma religião muito católica - falam essas coisas. Mas que isso é por
causa do racismo, e eu não iria florear. Ele diz que não sabia, e eu falo que a maioria não sabe
mesmo, por isso gosto de ter esses papos.
Ele então questiona “você fez ali o bagulho, deixou lá bonitinho… e a pessoa vem, ou
igual, tem o líquido ali, bebe aquilo ali, quebra…”, eu não entendo direito a pergunta na hora
e penso que era sobre as comidas e bebidas que tinham na oferenda, aí passo a explicar
porque são colocadas comidas e bebidas, porque os orixás se alimentam, cada um com sua
comida e bebida. E que alimentamos porque quando alguém faz a oferenda está “pedindo para
utilizar do seu axé, da sua força, desse orixá, pra conseguir meus objetivos, você está
alimentando a força do orixá.” Também digo que é por isso que deixam na encruzilhada,
porque é morada de Exu, e outros orixás são em outros ambientes. E que isso é “pedir ajuda
pra uma coisa que a gente não sabe de verdade como é, mas acredita.”
Hórus pergunta também porque sempre quando aparece [uma oferenda], ninguém sabe
quem foi. Que normalmente tem consciência de quem é, mas ninguém nunca vê. “As pessoas
vão ali, faz o bagulho, não tem ninguém pra ver, e no outro dia tá lá.” Eu respondo
brevemente que é porque as pessoas têm preconceito. E conto que também tenho medo ao
colocar a oferenda na encruzilhada. Comento o caso da menina que recebeu uma pedrada pelo
simples fato de estar toda de branco na sexta, falo dos terreiros queimados. E ainda digo que
existem vários terreiros em Ouro Preto que estão escondidos, porque se não tem gente que
apanha, que é perseguido.

1:08:31 - 1:09:05
Hórus: Hmmm entendi. Então eu acho que a gente tinha que explicar melhor pras pessoas, né?
Eu: Sim!
Hórus: Porque eu não sabia, sério mesmo. Eu pensei… Não, eu sempre vi. Já vi com copo quebrado… “Ah não é
pra…” como que fala? Teve uma vez, que nesse mesmo local aí, sempre aí acontece, sempre vai alguém aí e
põe. E tinha um copo quebrado uma vez, aí falou “Ah não, esse aqui é pra trazer mal pro cara”. Aí eu falei “Eu
não sei, às vezes pode ser…” e eu sempre fui acompanhando o que as pessoas falavam.
239

Nesse momento, minha internet trava e Raquel segue a conversa: “Mas é isso, né? A
importância da gente conversar também, escutar as pessoas que são diferentes da gente, pra
gente ir tendo esses outros pontos de vista”. Sigo com a imagem travada para todos e Cronos
entra na chamada.

1:10:03 - 1:11:44
Hórus: (rindo) Mas… Eu não vou nem falar mais pra você tirar, agora por mim fica.
Raquel: Acho que assim… A questão aqui não é nem sobre tirar ou sobre deixar, assim. É claro que a Raquel
sabe que às vezes você nem sabe disso tudo, né? É mais a gente conversar sobre essas coisas, porque cada pessoa
aqui é diferente uma da outra. Cada pessoa tem uma vivência, sabe? Às vezes eu venho de uma vivência que pra
você não é considerada “certa” ou enfim… A gente trocar mesmo e aprender com as outras pessoas, sabe?
Hórus: Uhum, entendi. Porque sempre quando tinha esses bagulho assim… Acho que minha família, acho que
ninguém tem coragem de tocar, ninguém chega e vai atrapalhar o bagulho lá, e deixa lá.
[volto para a chamada]
Raquel: Uhum…
Hórus: Aí, meio que tipo… Aí vem um e pega ali, ou bebe e vai embora e a gente fica falando “Nó, pegou lá no
bagulho”...
Raquel: A Raquel voltou. Raquel, eu acho que talvez se você tentar tirar a sua câmera…
Eu: Eu não pego nada não (risos). É, to aqui de novo… Eu deixo lá.
Hórus: É, então… Por que se você pegar então, sei lá… o que pode acontecer?
Raquel: Por que cê vai pegar um trem que não é seu?! Uai! (rindo)
Arthur: Isso que eu ia falar (rindo)
Hórus: Então, por isso mesmo… É porque tem hora que passa uma pessoa chapadona lá…

Então ele nos conta uma história de quando ficou sabendo de uma entrega com 9 latas
de cerveja (ou 10, não sabe), e quando passou lá só tinham 4 latas. Que as pessoas passaram e
pegaram. “Aí é um problema então das outras pessoas”, Raquel responde rindo. Eu completo:
“Aí vai na coragem, né?”. “A gente faz a nossa parte, a gente só cuida do nosso, entendeu?”,
Raquel finaliza. Hórus pergunta sobre a palavra “terreiro” que eu falei antes, se é “o lugar
onde acontece essas coisas que vocês fazem”, e eu respondo que sim, da mesma forma que
cada religião tem seu templo, os terreiros (ou casas de santo) são os templos das religiões de
matriz africana e onde a gente se encontra para fazer os rituais.
Quando ele me pergunta se podem ir apenas as pessoas da religião, eu respondo que
não, que existem casas abertas para pessoas que não são filhos da casa. Explico que sempre é
uma ideia de família, por isso sempre tem a mãe ou pai da casa, e os filhos de santo. E
também digo que normalmente são bem acolhedores, que já fui em vários terreiros por
convite de filhos, mas que agora não tá rolando, só para os filhos da casa. Ele então pergunta
“e quando tiver oportunidade, cê me leva?”, eu exclamo positivamente, e ele segue dizendo
que quer conhecer. Arthur brinca: "Eu tô vendo um novo filme, hein?”. Também digo para
Hórus que se ele quiser saber mais, posso indicar um documentário que fala mais sobre Exu.
Ele diz que quer sim, para mostrar para a família também.
240

Eu falo que achei ótimo ter essa conversa, que já estava pensando, e acho que temos
que estar abertos para as coisas, se perguntar, se questionar. Minha internet começa a travar
de novo. Raquel concorda comigo e diz “além de estar aberto, é procurar conhecer o que a
gente não conhece e ver o que realmente é para além do que as pessoas comentam por aí.”
Hórus diz que acha massa demais e fala “vamo lá, Loki?”. O outro então responde “Tu é
doido, é? Tenho medo de dormir de luz apagada e eu vou nesse trem?”.
Loki começa a comentar que Aquiles já foi, e tinha dito que estavam de luz apagada,
só com velas. “Ah, a pessoa pode se sentir mal, mas é religião, vamo conhecer”, Hórus
demonstra outra perspectiva. Loki então diz que acha interessante, mas tem medo. E fala que
é porque os orixás incorporam nas pessoas, e aí elas falam em outras línguas. Hórus diz que
não deve ser assim, e os dois me perguntam. Eu digo que a incorporação acontece sim, mas
minha internet não deixa eu concluir as ideias. Hórus fala com Odé e pergunta se ele iria.
Ele diz que não é nada de mais, e que quando era mais novo ouvia da família que
macumba era coisa do demônio, que faziam feitiço, mas que quando ficou mais velho,
pesquisou na internet, começou a ver filmes africanos e séries sobre escravidão, conseguiu se
aprofundar e ver que não era isso. Por isso, segundo ele, iria de boa para conhecer mais, até
para passar para quem não sabe. “Posso não ser da religião, passar a não ser, mas caso alguém
vim, virar e falar: é isso, é aquilo… Ó mano, não é assim não, porque eu fui, aprendi, sei
como o negócio é, então não é dessa forma que cê tem que olhar não, não é essa maldade toda
que cê vê, tá ligado?”. Hórus segue perguntando se Loki iria, e ele fala que não consegue nem
dormir sozinho e se visse alguma coisa não ia conseguir dormir por um mês.
Raquel ressalta uma coisa que Odé falou que considera muito importante: “quando a
gente experimenta as coisas, e a gente vê com nossos olhos, a gente sente com a nossa pele,
porque aí a gente consegue tirar um pouco desses preconceitos, do que as outras pessoas estão
falando, e a gente pode falar ‘não, eu fui lá e eu vi como é’, entendeu? Pra poder ir quebrando
esses preconceitos que a gente vai encontrando”. Arthur diz que o tema é muito importante,
mas queria ouvir mais sobre o filme. “Acho que a gente tá falando do filme, né? Porque Odé
falou um pouco sobre pesquisa, a questão dos escravos…” E cita uma sequência do filme em
que aparece uma música cantada na capoeira como trilha sonora das cenas. Arthur então quer
saber o que os meninos acharam do filme.
Odé diz que está de boa de falar, se tiver alguma coisa para falar, fala depois. Loki diz
que tá muito bom o filme, a única coisa que poderia melhorar é a parte de Anansi descendo a
ladeira, “ou colocar mais um negócio do Free Fire, ou menos, tá ligado?” Hórus diz que não
tem muito o que reclamar, mas pergunta sobre o envio de mais conteúdo: “igual, tá tendo isso
241

daí [a pixação] de ‘vacina pro povo já’, e aí vai ter como entrar no filme?”. Loki diz que
enviou mais uma foto no grupo também. Arthur fala para “não pensar esse filme como o fim
de nada”, e que ele em algum momento vai ter que terminar, “mas a gente vai continuar os
nossos processos de fazer vídeo”. Também diz que na parte da música no filme está tudo
preto porque vamos gravar todo o clipe no domingo.
Hórus brinca como se estivesse chorando que não quer fazer o clipe, e Loki mostra
suas unhas pintadas de preto confirmando com Arthur se ele tem que estar com elas pintadas
no dia. Arthur sorri e diz que sim, se ele quiser. Hórus pergunta porque ele está com unhas
pintadas de preto, e Loki responde “trapstar” gesticulando de várias formas que reconheço de
alguns trappers. Hórus pergunta se é coisa de anime, Loki diz que não, mas que no Naruto
tem, e eu digo que no Naruto os personagens da Akatsuki tem, que acho chique. Raquel ri e
fala que acha chique também. Loki explica que é mais coisa dos trappers da gringa, e Raquel
fala que do Brasil também. Aí os meninos citam alguns meninos que conhecem e que
começaram a pintar a unha.
Arthur volta a falar sobre o comentário a respeito das cenas do filme que Loki fez,
perguntando o que ele quis dizer exatamente. E logo lembra que as duas cenas que tem
animação vão ter áudio, que ainda vai ser colocado, e podem escolher um áudio de Free Fire
se quiserem para reforçar a imagem - e pergunta o que o menino acha.
1:24:10 - 1:24:52
Loki: É porque o Anansi… Igual, ele tá bem no meio, e aquilo ali era pra representar ele indo pro cenário? Ou o
que era pra representar?
Arthur: O que você acha que é?
Loki: Eu não peguei muito o negócio não, porque tipo… Ele tá indo pro cenário do Free Fire ou ele tá indo pro
cenário do Cartoon? Não entendi muito isso.
Hórus: (risos) Free Fire… Ele não passa no Free Fire, não. Ele só passa ali, as imagens passam atrás e depois
vem lá no bagulho do Google Maps… e vai.

Black começa a falar que quer ver novela [ele está com a boca bem próxima da
câmera do celular]. Hórus diz que queria fazer uma cena de grau também, mas sua bicicleta
estava estragada. Arthur fala pra fazer no dia da diária e Hórus diz que tem vergonha. Arthur
então pergunta para Black “que já falou que quer sair, o que você achou do filme?”. O menino
responde: “Bão, muito bão.” Quando questionado sobre qual parte mais gostou, ele diz “as
minha, é claro.” Os outros meninos começam a rir. Arthur voltar a perguntar sobre o que eles
acharam: “Além de gostei e não gostei, o que cês acham que esse filme tá mostrando?”.
“A realidade de 2021 e 2020”, Loki é o primeiro a falar. “E quais são os aspectos que
esse filme aborda?”, Arthur busca aprofundar. “A gente dentro de casa, o que a gente tá
passando, o que a gente tá fazendo na quarentena, o que tá sendo a quarentena”, Loki
responde novamente. Hórus intervém para dizer que uma foto da Santa Casa e do hospital de
242

campanha iriam representar o momento, e que o hospital de campanha foi construído muito
rápido para ajudar. Fala da UPA também. Ele então chama Loki para pensar junto com ele
outros lugares. Loki responde para ele pensar sozinho e diz “Eu só vou pensar… Sabe o que
to fazendo? Acordando, cuidando de cavalo, aí de noite eu estudo. Só isso.” Hórus então
começa a rir e pede que Loki faça as apostilas dele, e diz que não fez mesmo. Então Black
também entra na conversa para reclamar da escola.
“O rango vai ser bom domingo, hein?”, Loki diz sobre a comida do dia da gravação.
Arthur começa a falar mas Black o interrompe e pede que mande no grupo “o que tem que
levar, onde tem que ir, se tem que ir de preto, de azul, de colorido, arco-íris”. Arthur responde
para eles irem parecido com como foram para BH, com roupa de sair, de uma forma que se
sintam bem e pensem “Pô, eu to bem, desse jeito que eu quero aparecer na câmera…” e
sugere as cores vermelho, verde, amarelo. Hórus já diz que vai com camisa de time, Loki de
preto e Black pergunta se pode ir todo de azul e de sapato. Raquel fala que pode ir do jeito
que quiser.
Arthur pergunta se Odé vai para a gravação e Loki diz que vai chamá-lo pra dormir na
casa dele, e qualquer coisa “busca ele de porrada”. Raquel reforça que na sexta vai mandar
mensagem falando horário. Arthur também diz que ele e Thamira vão estar de carro e levarão
coisas bem cedo para a casa de Loki. Ele começa a reclamar que vão acordá-lo cedo, e Arthur
fala “é oito horas da manhã!”. Hórus diz “cê não faz nada!”, e Thamira fala que dá tempo de
acordar, tomar banho, esticar, brincar com o cachorro… Loki diz que hoje acordou duas horas
da tarde. Raquel lembra que só temos um dia para gravar, e se for deixar pra começar tarde,
não vai rolar. Hórus pergunta se já viram a previsão do tempo e Raquel diz que não vai
chover.
Loki e Hórus começam a se implicar e Arthur interrompe para perguntá-los se algum
deles têm pipa e papagaio em casa. Loki vai procurar e Hórus exclama que dá pra soltar pipa
no campo que vão filmar, mas diz que não tem os materiais. Aí, Arthur sugere levar os
materiais e eles fazerem lá. Hórus diz que demora pra fazer, Loki chega com uma pipa que
segundo ele não está subindo. Arthur então pergunta o que precisa pra fazer e diz que vai
levar umas coisas, os meninos só precisam arrumar as varetas. Que vai ser legal fazer no dia,
pra poder filmar o processo.
Arthur pergunta se Cronos ou Odé querem comentar o filme, e Odé diz que teve um
apagão em sua casa porque alguém demorou no chuveiro. Os meninos voltam a conversar
sobre as pipas e eles dizem que sabem fazer papagaio e não pipa. [Sinceramente não sei qual é
243

a diferença] Arthur sugere assistir o filme de novo, e avisa para Odé que Raquel vai conversar
com ele para combinar sua ida para a filmagem.
Assim que começa o filme, Hórus pede para pausar e pergunta porque na primeira
parte a música está sem batida. Arthur explica que o objetivo foi colocar a música depois de
uma cena em que alguém envia a mensagem com a ideia do filme, e a música estaria apenas
na cabeça dele, como um pensamento. E que só no final viria a música completa, e as pessoas
que vejam cantem a música depois, lembrando das imagens. O filme segue novamente.
Hórus comenta que aparece uma foto que retrata o “antes” de um muro que foi
fotografado por Black, e ele acha que seria bom colocar a foto do “depois” desse muro, no
momento em que a música fala “o tempo ruim passou”. Loki diz que não concorda: “não tá
falando de muro, tá falando de coronavírus.”, e Hórus responde que não tá falando de nada.
Arthur diz que podemos colocar mais fotos se eles quiserem, mas não acha que sempre tem
que ser o que tá falando… “acompanhando a música”, Hórus reflete. Loki fala dos papagaios,
que podem soltar na rua, e Hórus fala para soltar no campo. Voltamos ao filme.
Loki questiona porque um outro vídeo dele não aparece na primeira sequência, e
Arthur diz que a ideia é usar o arquivo do whatsapp, e o vídeo que foi colocado demarca um
tempo, o objetivo é mostrar o tempo passando na pandemia - que é parecido com a sequência
da horta com a reação dos meninos. Hórus sugere de colocar uma foto com a escola lotada, e
uma com a escola vazia, e Arthur pergunta se ele consegue arrumar isso até segunda para
mandar para edição, pois precisa ser finalizado até dia 15 de junho. Arthur também lembra
que essas coisas que estão sendo conversadas podem ser usadas em outro filme, ainda mais
porque esse tem só 15 minutos - e ainda terá que ser cortado.
Por conta do horário (já são 21h), Arthur sugere conversar mais um pouco mas não
assistir ao filme, e mandar o link do youtube no grupo. Ele faz uma votação entre nós para ver
o que a maioria acha melhor, e apenas Thamira precisa sair, então decidimos terminar de
assistir. Passa um tempinho sem resposta de Arthur e Raquel pergunta se vamos ver o filme
mesmo, porque ela não entendeu o que resolvemos. Arthur se dá conta de que não está
compartilhando a tela, “erros ao vivo”. De volta ao filme.
Dessa vez não fizeram comentários, exceto pelo momento que Loki questionou o
porquê de colocar duas imagens da frente da escola Adhalmir Maia, e Hórus explica que é
porque ele fez um e Black fez o outro. Quando a exibição termina, Hórus ri da fala de Loki
sobre território e diz: “periferia né? quem não mora no centro. pe ri fe ria…”. Arthur
pergunta: “E aí, como foi ver da segunda vez?”.
244

2:09:45 - 2:10:20
Hórus: A mesma coisa.
Arthur: Foi?
Hórus: Só que mais atenção agora.
Arthur: E o que que cê acha agora?
Hórus: Eu acho a mesma coisa. (risos) Só tinha que acrescentar as imagens aí só.
Arthur: Então manda essas imagens pra gente
Hórus: Tá, vou tentar… Vou tirar do muro e… o que foi que eu falei… da escola. Vou tentar ajeitar, aí eu
mando.

Arthur então pergunta para os outros como foi assistir pela segunda vez, e Hórus
pergunta se Cronos vai no domingo também. Arthur diz que sim, que falou que vai. Loki
comenta que é pertinho da casa dele. Arthur pergunta a opinião deles sobre a sequência da
família que aparece. Loki diz que ficou chique demais e pergunta se foram eles que fizeram o
refrão [a ladainha de capoeira]. Arthur pergunta se ficou legal a forma como juntamos a parte
deles, e Hórus diz que ficou daora demais. Ele também comenta sobre o funk na parte que ele
filma a escola Adhalmir Maia: “eu vi que cê abaixou na parte que fala… coisas que não
podem passar, aí cê foi lá e baixou o áudio, nem precisa tirar então não”. Arthur explica que
ninguém mexeu no som ainda, que eles podem dizer o que pode ser colocado e retirado.
Hórus então diz para retirar a música que está no vídeo dele. Raquel comenta: “são vídeos
diferentes feitos por pessoas diferentes, e num sei… penso que pode ser legal manter esses
áudios pra mostrar que são pessoas diferentes que gravaram, o que cê acha? Não sei.” Daí, ele
responde que então pode abaixar um áudio em uma parte da música e depois voltar com o
beat. Também fala que tinha outra coisa mas esqueceu.
Arthur diz que vai mandar o link no grupo pra eles conseguirem assistir com mais
calma e enviar as modificações, “anotar assim… ‘ah, em dois minutos e trinta segundos eu
acho que deveria tirar a música, ou só dizer ‘na parte que mostra a Adhalmir Maia, abaixar a
música tal’, ou na parte tal… mas se vocês conseguirem marcar o tempo, sabe quando dá
pause e você consegue ver o tempo no youtube? se vocês conseguirem marcar o tempo, é o
ideal que a gente consegue localizar certinho”. E depois fala para pensarem sobre as cenas
que podem ter no clipe, Hórus diz que não sabe, Arthur responde que vamos pensar juntos,
“vai ser legal também tá todo mundo junto, como era antes”. Hórus pergunta se Arthur vai
levar a [câmera] gopro, ele diz que sim, mas não sabe se tem a caixinha de prender. Hórus diz
que ele tem, de sua câmera.
Arthur reforça que nessa gravação vamos filmar algumas coisas que não vão entrar no
filme, mas que vamos começar a gravar para ter pros próximos filmes. E que talvez vai sentar
com eles para fazer algumas perguntas, além de filmar um pouco o dia, nós tomando café da
manhã juntos, e etc. Ele explica que vamos levar algumas sugestões de cenas, mas que vamos
245

conversar antes da filmagem. Hórus pergunta se rola ir no hospital tirar a foto ou um vídeo,
além de sugerir fazer o caminho entre as escolas. Arthur diz que o hospital rola, mas o
caminho talvez não entre por conta do tempo, mas podemos gravar para fazer anexos do filme
ou editar outros.
Hórus o questiona da duração do filme, que Arthur tinha falado que seria 10 minutos,
já está em 15, então porque não fazer 20. Arthur então explica que agora não pode mais
aumentar, que ele até queria, mas não deixam. E além disso, explica que já foi conversado
com as profissionais contratadas sobre a duração, mas que nós podemos fazer um outro.
Pondera que esse outro seria sem recursos, mas esperamos ganhar de novo, e esperamos
voltar para o presencial porque isso agiliza muita coisa. E afirma que é muito importante o
que Hórus fala de continuar fazendo imagens, talvez não para esse filme, mas para ter outros
materiais, quem sabe para redes sociais e site.
Nesse momento, Hórus pergunta sobre a autorização de uso de imagem por causa de
uma foto que aparece de sua turma no final de 2019, e Arthur explica alguns detalhes sobre
essa questão. Ele diz que nesse caso não precisa por dois motivos: por ser uma foto da foto, e
por ser muito rápido. Que só precisaria da autorização caso fosse uma imagem com pelo
menos 30 segundos de duração. E que é importante pensar nisso. Hórus comenta de outras
imagens que aparecem pessoas desconhecidas, mas Arthur diz que nessas filmagens não é
possível identificar. “Pra que serve o direito de autorização de imagem? É pra você garantir
que você não vai expor ninguém a uma situação que ela não quer. Quando a pessoa não
aparece, ou o mais importante da cena não é ela, não tá usando a voz dela, não tá contando
que ela é ela, e ela aparece rápido, a gente consegue usar.”, ele complementa. Também diz
que conseguimos porque somos um projeto, se o filme for para algum festival será de
documentário, e isso é filmar a realidade, aparecem outras pessoas. Mas que se tivéssemos
entrevistado alguém, com certeza teria que aparecer. Tanto que a avó e a namorada que
aparecem no filme vão assinar o termo de imagem. Ainda comenta que foi legal que Hórus
disse isso porque no dia da gravação vamos levar alguns termos de imagem impressos porque
se acontecer de filmar alguém, vamos precisar que ela assine.
Hórus pergunta sobre quem mais vai na gravação, e Arthur explica quem deu resposta
sobre isso, quem ele acha que não vai, e conta que convidou a vice-diretora da escola. Quando
alguns dos meninos reclamam disso, ele fala sobre a importância dela para o projeto, todo o
apoio que já deu além das imagens que enviou dessa vez, quando foi com eles para BH, a
mediação com os pais no começo do projeto. “A gente não pode esquecer que a gente é um
grupo que se conheceu numa escola. Por mais que agora a gente não esteja mais nessa escola,
246

porque ninguém está em escola nenhuma, esse foi o lugar que a gente se conheceu…. o lugar
que a gente se propôs a cuidar da horta, entendeu? E querendo ou não querendo, a Ronessa é a
diretora dessa escola”. Depois disso, ele finaliza a reunião dizendo que vai enviar o link e que
nos vemos no domingo. “Obrigado, viu? Parabéns pelo trabalho de vocês, esse filme é de
vocês”. Hórus diz “seu também” e Loki “não só nosso, né?”. Eu e Raquel repetimos como
está lindo o filme, e ela reforça que vai falar com eles depois por mensagem.
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APÊNDICE D
Observação dos encontros presenciais de 2021

06/06/2021
diária de gravação
Bairro Pocinho - Ouro Preto

Nesse dia as questões da observação para a pesquisa e a produção do filme se


misturam de forma mais contundente na minha experiência. Vou dormir no dia anterior e já
acordo pensando que não ficarei apenas olhando e anotando as coisas, pois também possuo a
responsabilidade de ajudar as filmagens acontecerem. E tudo bem, pessoalmente para mim
não faria sentido estar lá se não pudesse auxiliar de fato na prática, além de realizar minha
pesquisa. Um amigo meu que é motoboy me leva para Ouro Preto, seu nome consta na ficha
técnica e a viagem foi paga com dinheiro da produção. Isso é uma coisa que me deixa feliz,
para além de questões teóricas e técnicas, ver o quanto o audiovisual mobiliza as pessoas que
estão em volta dessa produção. Quando chego no Pocinho isso fica mais evidente.
Alguns desses meninos nunca me viram presencialmente, alguns me viram uma, duas
vezes, no final de 2019. Já mudei tanto e fiquei silenciosamente na posição de pesquisador
naqueles dias que os observei, que quem me viu não se lembra. Finalmente estou conhecendo
todos os adolescentes que conversei durante esses últimos meses, que vi desenvolvendo
ideias, imagens, reflexões e desabafos. Lá na frente da casa de Suzana ouço dizer mais uma
vez que era periferia o nome que dá pra quem não está no centro da cidade. Ali, na minha
frente se desenrola um processo de entendimento de si, do coletivo, de uma espacialidade e
temporalidade específicas. Agradeço silenciosamente por ter sido possível realizar a diária.
A pandemia demanda afastamento, a tensão pela necessidade de máscara e álcool em
gel é algo que fica explícito para nós, adultos, e ganho um kit que passo a usar. Decidimos
gravar ali na rua, na quadra do bairro, no campão, e em alguns pontos do Campus Morro do
Cruzeiro, da UFOP, em especial o mirante e a concha acústica. É interessante perceber a
sociabilidade dos meninos do coletivo, suas questões de adolescência, a forma de expressar
afeto uns com os outros. Alguns são mais retraídos com relação a isso, mas outros são mais
explícitos, se abraçam e se expressam de diferentes formas. Infelizmente as meninas do
projeto não foram tão ativas nesse processo - e em contraponto a equipe de adultos é mais
feminina do que masculina. Uma das adolescentes inclusive aparece em um dado momento da
diária, e aceita ser filmada com seu cachorro.
248

Na primeira parte do dia tomamos café da manhã e ficamos ali na frente da casa,
subimos um pouco, descemos um pouco, mas nos mantemos por lá. A vista das montanhas no
bairro é plano de fundo para algumas cenas e os meninos parecem estar confortáveis na frente
da câmera. Logo nas primeiras cenas dos meninos andando de bicicleta, outras crianças
aparecem para andar junto daquela revoada e aí Raquel entra em cena mais uma vez no seu
papel de mediação com as famílias, e conversa com pais e mães para conseguir liberação
daqueles que também querem participar do filme. Assim que liberados, eles saem pedalando,
dando grau, brincando, já fazem parte do grupo.
Vamos para a quadra do bairro, um lugar importante para a vivência dos meninos. E
aí, ao longo do dia, a Olhares vai crescendo e se multiplicando mais ainda, uma parte de nós
vai a pé, filmando uns aos outros, dançando em alguns pontos. Na quadra, olhares curiosos
brilham em cima do muro. A rua toda quer saber o que está acontecendo. Uma parte do grupo
vai com um dos cinegrafistas para a escadaria ao lado da quadra e outra parte fica na quadra,
gravando cenas dançando o passinho. Eu fico na quadra vendo os adolescentes sendo
observados pelo pessoal da rua e a conversa sobre o que está acontecendo se espalha.
De lá, subimos para a UFOP e também nos dividimos em dois grupos para fazer as
filmagens, cada um com um cinegrafista. Um dos meninos mais novos que entrou no grupo
hoje já está afeito da handycam e gosta de andar com ela na mão. Além da filmagem em si,
acho que a própria ocupação do espaço da universidade é uma ação performativa em grupo.
As pessoas que ali estavam fazendo caminhada ou levando suas crianças para brincar ficam
observando nossa chegada e acompanham com os olhos os meninos levando câmeras em suas
mãos ou performando em frente a elas. Quando o grupo que eu estava acompanhando
terminou de filmar no mirante do campus, voltamos para a casa. Os outros meninos estavam
gravando suas cenas de dança na concha acústica e dizem que vão em outros pontos da
Bauxita também. Precisam registrar o pixo de “Vacina para o povo já”.
Após o outro grupo chegar, almoçamos na varanda da casa, com vista para o quintal e
as montanhas verdes. O jovem que é pai chega com sua família, agora temos crianças mais
novas ainda participando, além de sua namorada, que também havia filmado com a handycam
que foi enviada para ele. Depois do almoço, os meninos constroem a pipa na sala da casa,
tudo devidamente filmado, e depois fazemos mais algumas imagens na rua. Aí então, para
finalizar as locações pensadas, vamos para o campo do bairro. Lá, os meninos correm, soltam
pipa, andam de bicicleta.. Um deles deixa a gopro parada em uma pedra enquanto tudo
acontece, registrando o plano maior.
249

Ao voltar para a casa, algumas cenas que faltavam em ambiente fechado são filmadas,
como os meninos jogando no computador e mexendo no celular. Durante todo o dia, a
produção é registrada por fotografias, ora feitas pela equipe de adultos, ora feitas pelos
meninos, que revezam as câmeras entre si. Consigo conversar com todos do grupo nesse dia,
em meio a questões da produção e outros assuntos, e pela forma como os meninos me tratam
sei que já não sou um ser estranho àquele grupo. Um ciclo se fecha (ou se inicia?) com esse
contato presencial.
250

09/11/2021
exibição presencial de Ano 2020
23º Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (FestCurtasBH)
Cine Humberto Mauro - Palácio das Artes - Belo Horizonte

Durante os dias em que o filme foi exibido na plataforma online fizemos campanha
para a votação do júri popular, alguns participantes gravam vídeos pedindo votos,
compartilhamos materiais em nossas redes sociais e enviamos em grupos conhecidos. No dia
anterior à exibição presencial, somos informados que a sessão vai acontecer e os meninos
decidem que querem ir. A equipe então vai tentar conseguir uma van para irmos juntos, e
passa uma lista para confirmar quantos querem ir, para também informar aos pais e pedir
autorização. Na mesma noite há um debate entre os realizadores da sessão da mostra que
estamos.
É uma correria, contatos são acionados de um lado para o outro, orçamentos são feitos,
e Olga consegue falar com um vereador de Ouro Preto. Um ofício é redigido na noite do dia 8
e na manhã do dia da exibição, a confirmação de que iremos com uma van que ele conseguiu.
Até o MC BS da J, que fez o funk para a trilha sonora, vai e atualmente mora em Diamantina.
Com dinheiro do caixa da produção é possível pagar uma passagem para ele nos encontrar no
Palácio das Artes. Para conseguir ir, tenho que remarcar uma aula de inglês que daria no
mesmo horário. Não posso perder esse momento.
O ponto de encontro escolhido foi o Polivalente, o horário de saída é 18h pois a sessão
começa às 20h. Chego com bastante antecedência, encontro duas adolescentes do coletivo na
praça da Bauxita e conversamos um pouco. Depois, vamos para a escola [lembrando que
nesse momento as aulas presenciais já voltaram] e descubro que alguns meninos estão lá
dentro esperando. Também entramos. Enquanto estamos lá uma trabalhadora da escola
pergunta se os meninos estão viajando para BH porque jogam alguma coisa. Eles respondem
que não, que estão indo apresentar o filme que fizeram.
A inquietude para a van chegar logo vai crescendo conforme esperamos. Quando
estávamos na porta da escola me dei conta de que entraria em um cinema depois de todo esse
tempo de pandemia. E ainda para assistir a um filme da Olhares, no contexto de pesquisador e
participante desse processo. É tanto para conseguir processar e, por conta de toda correria que
foi para me organizar e conseguir ir, sei que a ficha só vai cair quando estiver dentro do
cinema.
Apesar de um ligeiro atraso na chegada da van, chegamos a tempo da sessão com
alguns minutos de folga. O caminho é recheado de música (bastante trap e rap) e conversas.
251

Em um dado momento, todos começam a cantar Favela cartão-postal juntos. Assim que
chegamos na frente do Palácio das Artes e descemos, ouço um deles dizer: “Atenção BH, os
da roça tá chegando!”.
É incrível ver os adolescentes no espaço do Palácio das Artes - e sem dúvida causamos
um rebuliço chegando todos juntos, em bando. Eles são estrelas na estreia do filme, e
registraram tudo com seus celulares. “Dá uma moral pro artista aí!” é o que um deles fala
enquanto filma a si mesmo e os outros colegas. Quando o fotógrafo oficial da mostra pede
para tirar uma foto nossa é realmente um momento de estrelato. “Os menores vão pra frente”,
e por isso eu apareço à frente na foto, menor que a maioria dos jovens do coletivo, no meio do
grupo.
Antes de começar a exibição dos filmes de nossa sessão (são quatro no total, todos
parte da Mostra Competitiva Minas), a produção do festival falou algumas coisas e uma frase
se fixa em mim, reforçando tudo o que pairou nesse processo de produção de Ano 2020:
“cinema é sobre imagem, mas é sobre encontros, corpos.”. Também somos convidados a falar
antes de começar o filme, assim como os responsáveis pelas outras obras. Somos 12 pessoas
em cima do palco [as meninas preferem não subir], em contraste com duas ou três que
aparecem para falar dos outros filmes. Marcando a presença do interior, dos adolescentes, do
coletivo.
Ano 2020 é o último a ser exibido. Durante o filme as pessoas riem, se emocionam,
reagem. Quando chega a parte do clipe, começo a chorar. E quando o filme acaba, os meninos
estão rindo de quem está chorando. Não tem problema, o orgulho que os adultos sentem nesse
momento é palpável no ar. Assim que saímos da sala de exibição, outros realizadores se
aproximam para conversar e troco ideia com o diretor do filme Azulscuro, que é de terror com
uma estética baseada na câmera de celular.
Depois da exibição, vamos comer em um pub próximo dali. O mesmo que havia feito
os vídeos antes sai do Palácio das Artes se filmando “Ó os da roça andando na roça!
Ouropretano da roça na cidade!” [Inclusive vejo depois que ele fez um vídeo para seu
instagram com essa temática do interiorano na cidade grande]. Ele também faz um vídeo
enquanto entramos na van falando “Os nossos jogadores vão descansar agora, deu tudo
bonitinho!”
Chegamos no lugar em que vamos comer e nos sentamos em uma mesa grande, todos
comentando da sessão, do passeio. Me aproximo de Arthur para conversar, ele então me diz
“isso aí não tem como colocar no Lattes” e conversamos sobre o que não cabe nas pesquisas e
descrições. Aquilo que escapa da explicação, o momento vivido, a experiência de estar
252

compartilhando esse processo e vendo os frutos ao vivo. De fato, o sentimento compartilhado


nesse momento escapa a qualquer página que eu possa escrever. O cinema além dele mesmo,
abrindo portas da percepção.
A volta para Ouro Preto ainda é efusiva no começo, mas ao longo do caminho também
vamos sentindo o cansaço. Quando terminamos de deixar os meninos, vou para casa de
Raquel, em Ouro Preto, e durmo por lá porque pelo horário não é mais possível voltar para
Mariana. Antes de dormir penso como a premiação desse festival auxiliaria na continuidade
dos planos da Olhares. Em uma semana teremos o resultado.
253

APÊNDICE E
Lista de produções disponíveis da Olhares (Im)possíveis

Categoria Ano Escola Link Nome

Escola Estadual
https://youtu.be/lc_dxM
Filme-carta 2017 Cônego Mauro de Faria Banalidades Locais
hq-x0
Bandeirantes - Mariana

Escola Estadual
https://youtu.be/hQBVO
Filme-carta 2017 Cônego Mauro de Faria Futurama
TmQMks
Bandeirantes - Mariana

Escola Estadual
https://youtu.be/qaw3Tp
Filme-carta 2017 Cônego Mauro de Faria Coisas Engraçadas
6aJ84
Bandeirantes - Mariana

Escola Estadual
https://youtu.be/Kgvjcy
Filme-carta 2017 Cônego Mauro de Faria Mágica
UbGEQ
Bandeirantes - Mariana

Escola Municipal
https://youtu.be/9FppOF
Filme-carta 2017 Professora Juventina Animais do Santana
j-jsQ
Drummond
Escola Municipal
https://youtu.be/ipNOyE
Filme-carta 2017 Professora Juventina Sentimento
3fp_s
Drummond
Os Três Trapalhões
EM Prof. Adhalmir https://youtu.be/wB5NP
Filme-carta 2017
Santos Maia UlR5ck

EM Prof. Adhalmir https://youtu.be/jEA3hJd Caminhando com


Filme - carta 2017
Santos Maia N31M Categoria

EM Monsenhor João https://youtu.be/HP0Fiz


Filme-carta 2017 Grafitte EMMCB
Castilho Barbosa gYq8c
254

Olhares
Vídeo da (im)possíveis #2 -
EM Prof. Adhalmir https://youtu.be/ERnM9r
Cartografia 2017 Sonhos - EM Prof.
Santos Maia Ef5pA
dos Sonhos Adhalmir Santos
Maia

Turma Circuitos https://youtu.be/2-


Filme-carta 2017 Carta-convite
Museológicos da FAOP VYGazz_X4

Pode Passar - Filme


Carta Vivência
São João Del Rei: https://youtu.be/VKBoO
Filme-carta 2017 Olhares
Olhares (Im)Possíveis dGwghU
(Im)possíveis -
SIAUS 2017
Vídeo Oficina Olhares
Cartografia (Im) Possíveis em
dos Sonhos - Escola Estadual de https://youtu.be/1IHGPu parceria com
2018
intervenção Ensino Médio Cabanas S1m84 Coletivo MICA -
com lambe- Colagem dos
lambe Lambes
Olhares
Dispositivo e
Escola Estadual de https://youtu.be/8j4_NY (Im)Possíveis -
intervenção 2018
Ensino Médio Cabanas b86bk dispositivo escrever
física
sonhos na cidade
Escola Estadual de https://youtu.be/-
Filme-carta 2018 Filme-carta Cabanas
Ensino Médio Cabanas zddixhcvss
Escola Estadual de https://youtu.be/4hokFT
Filme-carta 2018 Benedita
Ouro Preto Crl90
Escola Estadual de https://youtu.be/ou3emx
Filme-carta 2018 Entre_vistas
Ouro Preto nGEnM
gustavo_mapa_cami
nhando
henrique_mapa_cam
https://youtube.com/play inhando
Mapa-
Escola Estadual de list?list=PLbCjxH7r_kn pedro_mapa_camin
caminhando 2018
Ouro Preto Ns8vvy0q_Yx3bVGVw hando
(5)
bSl2H pedro_nunes_mapa_
caminhando
sandra_mapa_camin
hando

Filme-Carta -
Escola Estadual de https://youtu.be/ZOgupv
Filme-carta 2018 Ônibus Bairro
Ensino Médio Cabanas mhZcQ
Cabanas
255

Olhares
Postais- Escola Estadual de https://youtu.be/CEAMa
2019 (Im)Possíveis -
narrados Ouro Preto ElRXW8
postais narrados

Dicionário de EM Prof. Adhalmir https://youtu.be/gAfiEBr Dicionário de


2020
Afetos Santos Maia Dxw4 Afetos #1

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